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Uma jornalista entrou em contato comigo hoje pela manhã pedindo uma entrevista

sobre o nosso trabalho de divulgação das chacinas na wikifavelas. Ela quer ajudar na
divulgação do nosso trabalho num veículo internacional. A jornalista se chama Joyce
Enzeler preparou as seguintes perguntas e a ideia é que cada grupo responda as 04
brevemente e ela faça a matéria com nossas contribuições:

1) Fale sobre o processo que resultou nessa pesquisa, que pode contribuir com a
reflexão sobre o motivo das inserções violentas nas periferias e favelas.

O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos pesquisa tanto a atuação de grupos


armados quanto o exercício da atividade policial no Rio de Janeiro. No caso das
polícias, nosso foco principal é o monitoramento das operações policiais, isto é, onde
ocorrem estas operações, quais suas motivações, quais forças policiais participam da
mesma, quantos mortos e feridos são resultado dessas operações, entre outras
variáveis. Pode soar surpreendente, mas esse tipo de monitoramento não é realizado
pelo Estado, o que torna essas operações ações fora do alcance do controle
democrático da polícia. Ao procedermos a esse monitoramento, passamos a
quantificar essas ações, seus impactos e resultados, o que nos permitiu avaliar a
eficiência das forças de segurança em sua principal forma de atuação. Nesse sentido,
os dados são claros: as operações policiais são um método ineficiente de controle do
crime e com altíssimos custos sociais. Em linhas gerais, a ausência de prestação de
contas sobre as operações policiais propicia a que muitas delas sejam motivadas por
interesses escusos de atores políticos e da própria força de segurança – não raro de
forma a favorecer outros grupos armados como as milícias – e que tenham como
principal produto um saldo de morte e destruição de vidas civis inocentes.

2) Chacina significa matança e esquartejamento de gado suínos, o que é muito


cruel, especialmente para quem pensa a vida de todos com respeito. Para
vocês que se debruçaram sobre essa pesquisa, como analisam a maneira com
que a polícia trata a população mais vulnerável?

Na etimologia da palavra chacina, descrita como o ato de salgar e esquartejar suínos,


encontramos a matriz simbólica do processo de desumanização das classes populares
levado a cabo pela polícia do Rio de Janeiro desde os tempos coloniais. Nesse período,
é bom lembrar, o Rio de Janeiro era uma cidade na qual metade da população (negra)
era propriedade da outra metade (branca). A percepção do outro como “coisa” e a
divisão da sociedade entre vidas com valor e vidas descartáveis remonta a esse
período e nunca foi minimamente superada. Nesse sentido, a polícia teve como um de
seus principais papéis a contenção dessas tensões de raça e classe. Um papel que se
tornou ainda mais marcante a partir da ditadura militar instaurada em 1964. Contudo,
ao longo do processo de redemocratização, essa promiscuidade autoritária das polícias
permaneceu inalterada e abriu espaço para que as corporações ampliassem seu
escopo de atuação para além da contenção das tensões de raça e classe, que
interessam à nossa elite, passando também a se organizarem em prol de seus próprios
interesses políticos e econômicos. É à luz desse empreendimento particular que as
operações policiais se despem de interesse público e se tornam ações puramente
econômicas, voltadas ao enriquecimento ilícito de policiais corruptos, que as utilizam
como forma de aumentar o valor do “arrego” pago aos traficantes ou favorecer os
grupos milicianos em suas disputas com o tráfico. Sem regulação, monitoramento ou
qualquer tipo de controle democrático, as operações policiais se distanciam do
princípio primeiro de proteção da vida, o que as torna mais violentas e letais. A
profusão de chacinas policiais observadas nos últimos 4 anos é o resultado direto
desse contexto.

3) Do início da UPP até a gestão do ex-governador Wilson Witzel as chacinas no


Rio de Janeiro aumentaram 313%, como vocês observam esse aumento da
violência policial de Estado?

É preciso compreender esse período como um processo de gradativa desregulação


da atividade policial. No auge da política de pacificação encarnada nas UPPs, em
2013, a polícia era responsável por 9,5% dos homicídios no estado. Hoje esse
percentual é de 35,5%, um aumento de quase 400%. O que mudou nessa década é
simples de se constatar: passamos de uma política de tentativas de controle da
atividade policial, na qual as operações foram reduzidas e substituídas por uma
presença politicamente regulada da polícia nas favelas, para um contexto de
absoluta falta de controle da atividade policial. É preciso lembrar que, a partir do
governo Witzel, a Secretaria de Segurança Pública foi extinta, retirando as
corporações policiais de qualquer esfera de regulação política. A isso somou-se o
incentivo explícito dos governadores Witzel e Claudio Castro para que a polícia
agisse para além da lei, encontrando nas chacinas uma forma de propaganda
política que reverberava o clima autoritário instaurado no Brasil desde a eleição de
2018.

4) As operações violentas aumentaram significativamente. Na gestão do atual


governador, a letalidade policial é a maior em 15 anos. Como entender que
essas pessoas, que colocam em prática uma política de segurança violenta
com as classes sociais mais pobres, sejam legitimadas pelo voto popular?

A primeira coisa que devemos compreender é que os mais pobres jamais tiveram um
ambiente seguro para viver em toda nossa história. Nos rincões da pobreza, seja no
Rio de Janeiro ou no Brasil como um todo, a vida dessas pessoas é marcada pela mais
absoluta ausência do Estado enquanto um ente protetor da incolumidade física e
material dos seus indivíduos. A violência extralegal, nesse sentido, sempre foi o termo
comum da vida dessas pessoas, seja pela mão de justiceiros locais, de bandidos ou das
próprias forças policiais. Associada a essa questão objetiva, há, também, um forte
elemento subjetivo, alimentando há décadas pela imprensa nacional, que normaliza a
violência policial, tratando-a como uma necessidade de contenção do “mal”. Esse
processo de cisão entre matáveis e não matáveis, que transparece de forma mais clara
na classe média, também exerce influência sobre as camadas populares, ainda que
sejam as principais vítimas desse processo. Por fim, mas não menos importante, é
preciso enfatizar a participação do Ministério Público como uma das principais causas
desse problema. Na medida em que o Ministério Público, instituição responsável pela
regulação da atividade policial, se omite historicamente nos casos claros de execução
extrajudicial praticados por agentes de segurança, ele passa uma mensagem de
legalidade dessas ações à sociedade, alimentando tanto a perpetuação da prática nas
polícias quanto a percepção social de que a polícia está apenas fazendo o seu trabalho.

Além das 04 perguntas, pede-se que cada grupo se apresente brevemente também.

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