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EL PAÍS BRASIL

Jacarezinho, vestígios de um Brasil colonial


Daniel Cerquera
São Paulo - 9 maio 2021
A chacina nos lembra um país ainda preso num passado remoto, com uma
parcela da população excluída dos benefícios do contrato social, para quem o
Estado só aparece com o arbítrio e violência desmedida

Resultado da operação policial no Jacarezinho, Zona Norte do Rio: 28 mortos (vários


por execução, segundo denúncias), pessoas feridas no metrô, cidade parada, danos materiais e
desperdício de recursos públicos. No mundo civilizado, uma tragédia como essa iria gerar
comoção nacional, investigação rigorosa por parte da Justiça sobre o uso da força policial,
responsabilização dos autores e debate sobre o modelo de polícia e sobre os melhores
mecanismos de controle dessa organização pela sociedade civil.
Na província chamada Brasil em algum momento nos perdemos nas esquinas da
história e ficamos presos numa longínqua idade média. Aqui, ao contrário, o governador do
Rio de Janeiro comemorou o “êxito” da polícia, assim como certo segmento da sociedade que
festejou a morte de supostos criminosos. Ao que parece, até o momento, três das vítimas
fatais haviam sido denunciadas pelo Ministério Público por tráfico de drogas e eram
procurados pela polícia. Sabe-se, contudo, que os mortos eram pobres e negros, “merecendo”,
portanto, a execução extrajudicial, num país ainda dominado pelo racismo estrutural e pela
violência atávica contra as classes econômicas subalternizadas, que vem desde os tempos
coloniais.
A malfadada operação já nasceu ilegal, uma vez que o ministro Edson Fachin do
Supremo Tribunal Federal (STF) havia determinado a suspensão de operações policiais em
comunidades pobres no Rio de Janeiro no período da pandemia, no âmbito da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 635. Apenas aquelas de natureza
emergencial estão permitidas, o que claramente não foi o caso, uma vez que o próprio
representante da polícia civil afirmou que a ação foi supostamente precedida por um trabalho
de inteligência e planejamento.
Além da desastrosa operação policial consistir numa afronta direta ao STF e, portanto,
ao próprio Estado Democrático de Direito, é um desserviço à imagem das boas organizações
policias ainda existentes no país preocupadas com a segurança pública e com a boa técnica
policial. O objetivo central de qualquer política de segurança pública é preservar vidas e
garantir a incolumidade física e material, bem como a tranquilidade dos cidadãos. Para atingir
tais objetivos, a principal arma das polícias modernas é a inteligência e o planejamento tático,
para permitir que as operações tenham êxito no sentido de prender os criminosos e garantir a
vida de todos. Naturalmente, em muitos casos, o policial tem a prerrogativa até de matar o
outro, desde que tal ação seja necessária e legítima, conforme normatizado em vários artigos
no Código Penal e do Processo Penal, que seguem o Código de Conduta para Encarregados
da Aplicação da Lei – CCEAL (ONU, 1979), adotado pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, em sua resolução n. 34/169 de 17 de dezembro de 1979. A chacina do Jacarezinho,
portanto, foi a negação ao que se entende por política de segurança e por um bom trabalho de
polícia. Trouxe apenas morte (inclusive de um policial), medo e insegurança e nenhum
benefício para a sociedade.
Com efeito, a política do confronto, ou da guerra contra o tráfico de drogas nos
morros cariocas, é praticada desde 1980 e só tem contribuído para o adoecimento das nossas
instituições e para o aumento da violência no Estado, em um ciclo insano que lembra o
princípio da contraindução, jocosamente definido pelo grande economista Mario Henrique
Simonsen. Segundo ele, quando uma política adotada no Brasil dá errado, tratamos de
repeti-la indefinidamente para ver se dá certo um dia.
De fato, para além das vidas perdidas, a política do confronto associada à falta de
controle do uso da força pelas organizações policiais gera consequências indesejáveis que
prejudica a segurança pública de forma persistente ao longo dos anos. Primeiro, a ideologia
da guerra promove ódios recíprocos entre polícia e comunidade, que passam a se ver como
inimigos. Em segundo lugar, confrontos, balas perdidas e o som da guerra fazem aumentar a
sensação de medo não apenas dos próprios moradores das comunidades, mas do entorno e de
toda uma cidade, o que compromete a segurança de todos no amanhã. Em terceiro lugar, a
política do confronto faz aumentar a demanda por armas de fogo com maior potencial
ofensivo, numa verdadeira corrida armamentista entre criminosos e organizações policiais
—como exemplo, o uso carnavalesco do AR15 é uma invenção genuinamente carioca. Em
quarto lugar, a repetição reiterada da experiência da morte no trabalho do dia-a-dia dos
policiais gera sérios problemas de adoecimento mental individual e também institucional.
Não é à toa, que a taxa de suicídios entre policiais é quatro vezes maior do que a da
população civil. Por fim, o uso indiscriminado e descontrolado da violência pela polícia faz
vicejar um próspero mercado de propinas, uma vez que vida e morte passam a ter preço no
mercado do arrego.
Jacarezinho nos traz vestígios de um Brasil ainda preso num passado remoto, com
uma parcela da população excluída dos benefícios do contrato social, para quem o Estado só
aparece com o arbítrio e violência desmedida, onde cidadania é um conceito distante; e onde
parcela da população no andar de cima aplaude.

Fonte:
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-09/jacarezinho-vestigios-de-um-brasil-colonial.html

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