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Dilemas da segurança pública no Brasil

ALBA ZALUAR

O tema da violência invadiu o imaginário social e a discussão


intelectual rápida e surpreendentemente. A redução da explicação
da criminalidade violenta à pobreza e à desigualdade impede um
entendimento mais complexo da questão. As proposições sobre a
existência de uma cultura da violência e do monopólio legítimo da
violência, ambas falsas, terminam por dificultar a compreensão dos
diversos conflitos na arena social e política. As interconexões entre
a economia legal e a ilegal nos tráficos é também pouco acionada
nas teorias necessárias para políticas públicas mais eficazes e de-
mocráticas. Sofremos sobretudo do excesso de maniqueísmos e de
esquemas simplificados que rapidamente se disseminam nas
matérias jornalísticas sobre os temas.
A afirmação de que a pobreza é a causa da criminalidade, repe-
tidamente utilizada na defesa dos pobres na mídia, acaba por justi-
ficar a preferência, carregada de suspeitas prévias, que policiais têm
pelos pobres. Além disso, baseia-se no pressuposto utilitarista de
que, movido pela necessidade, o homem agiria apenas para sobrevi-
ver e para levar vantagem sobre os demais. Há uma redução de
complexa argumentação para o primado do Homo economicus, co-
mandado exclusivamente pela lógica mercantil do ganho e a neces-
sidade material. Esta é uma das dimensões a serem consideradas,
mas de fato explica a ambição de enriquecer de todos, sem impor-
tar o nível de sua renda e a sua origem social. Estudos recentes mos-

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tram que os pobres são as maiores vítimas de furtos, roubos e assas-
sinatos, estes últimos nos locais onde o tráfico de drogas domina e
não há policiamento que proteja a população.
O argumento economicista não deixa, sobretudo, enxergar a
dimensão do poder, do simbólico e da paixão destrutivos: o triun-
fo sobre o outro, o orgulho pela destruição do outro, o prazer de ser
o senhor da vida e da morte, o gozo no excesso da liberdade na fes-
ta dentro da comunidade dos comparsas, presente tanto em assaltos
à mão armada quanto em grandes massacres. Wolfgang Sofsky,
sociólogo alemão que estudou o terror e escreveu um tratado sobre
a violência, narra com crueza o que vem a ser essa paixão. Escolhe
para ilustrá-la, o personagem Gilles De Rais, nobre francês contem-
porâneo de Joana D’Arc que adquiriu o gosto de matar durante a
Guerra dos Cem Anos e continua a fazê-lo quando não há mais
guerra. Caçou, torturou e matou meninos com a ajuda de seus ser-
vos, conforme suas confissões. Essa redução da criminalidade vio-
lenta à pobreza tampouco permite analisar os efeitos inesperados da
criminalidade violenta que aumenta a pobreza e os sofrimentos dos
pobres. Isto na medida em que os obriga a viver entre dois fogos e
duas tiranias – a dos traficantes e a das polícias. Impede também o
acesso aos serviços e instituições do Estado presentes, tais como es-
colas, postos de saúde, quadras de esporte, vilas olímpicas etc com
as restrições ao ir e vir dos moradores e dos profissionais que aten-
dem a população pobre. Também ameaça os jovens pobres que, em
função da atividade que exercem em seus empregos, são obrigados
a entrar em favelas ‘inimigas’ e são mortos enquanto trabalham para
viver, caso sejam reconhecidos como moradores de favelas inimigas.
Contam-se sobretudo os mortos e os danos para avaliar o
crescimento da violência. A mídia e muitos pesquisadores
debruçam-se sobre as últimas estatísticas oficiais como se fossem as-
sim compreender tudo e resolver o problema. Contudo, além dos
mortos e feridos que podem ser contabilizados em delegacias e hos-
pitais, há também que se levar em conta os sofrimentos psíquicos e
morais. Os primeiros são visíveis e publicizáveis. Os segundos são

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invisíveis e deles pouco se fala. As vítimas da violência que sobrevi-
vem não têm apenas as deficiências físicas que decorrem das
agressões sofridas. As marcas traumáticas no seu psiquismo são tão
ou mais graves e muitas jamais cicatrizam. Parentes e amigos das
vítimas que sobrevivem têm também o seu ordálio de sofrimentos.
A própria humilhação cotidianamente sofrida por jovens (homens e
mulheres) que não podem dizer não aos chefes muito bem armados
das quadrilhas, nem aos policiais que se comportam também como
déspotas nos locais onde suas ações não podem ser denunciadas por
causa do terror já implantado entre seus moradores. Denunciar a
polícia como instituição, numa tentativa infantil de afirmar que não
se precisa dela, é negar sua importância crucial na garantia dos
direitos civis ou humanos - o direito à vida e à propriedade - e abdi-
car de torná-la mais capaz de um controle democrático da crimina-
lidade que vitimiza principalmente os pobres. É preciso, portanto,
modificar a polícia e seus métodos de enfrentamento dessa situação
terminal com a máxima urgência. Acabar com a guerra entre coman-
dos e policiais versus bandidos, para preparar policiais e moradores
nas novas relações de cooperação que se fazem necessárias.
A ausência do monopólio legítimo do uso da violência é que
gera o medo e a violência disseminada no social. Este monopólio,
que nunca existiu no Brasil, agora, com o armamento do crime or-
ganizado, dos grupos de extermínio e dos justiceiros, das empresas
de segurança privada, continua não existindo ainda mais claramen-
te do que há algumas décadas atrás. Mas o Estado brasileiro nunca
foi suficientemente forte para impedir o uso da violência privada
pelos proprietários de terra, por grupos particulares de segurança e,
nas três últimas décadas, do crime-negócio. Mais uma razão para
não negar o medo e confundi-lo com ideologia manipulada pela
mídia. O medo pode ser exagerado ou manipulado situacionalmen-
te. Contudo, o estado brasileiro nunca cumpriu nem medianamen-
te a principal função de todo o estado: dar segurança a seus
cidadãos, um direito muito valorizado por todos, sem importar a
escolha sexual, a religião, a cor da pele, o gênero, o nível de renda,


a escolaridade etc.. Portanto, o medo é, digamos, estrutural, está na
condição de sujeito deste Estado. Isto é particularmente importan-
te para todas as categorias minoritárias que não possuem os meios
para sua defesa no caso de ataque de quem está mais bem armado.
Esses grupos precisam da proteção estatal contra seus predadores.
Hoje, portanto, trata-se da perda do monopólio estatal de
violência legítima, fundamento da soberania, em proveito de em-
presas privadas de segurança, de grupos ou indivíduos fortemente
armados com armas de calibre apenas permitidos às Forças Arma-
das mas em mãos de membros de organizações ou redes transnacio-
nais do crime. Nos Estados Unidos, que detém 43% do mercado de
armas no mundo, existem hoje 67 milhões de pessoas armadas ou
70 milhões de armas, sendo produzido, a cada ano, mais de 1,5
milhão delas. O comércio internacional e o tráfico transnacional de
armas convencionais de guerra movimentaram 22,8 bilhões de
dólares em 1995, destinadas seja aos países em guerra civil, seja às
máfias ou bandos armados que assolam quase todas as regiões do
planeta. Ou seja, embora legalmente comerciada em seus países de
origem, entram ilegalmente em países do chamado Terceiro Mun-
do, entre os quais o Brasil. Um estudo do Viva Rio, feito por Drey-
fus e Nascimento estimou em 17.325.704 milhões o número de
armas de fogo, no país, 1.031.386 com integrantes das Forças Ar-
madas; 715.224 com profissionais da segurança pública, magistra-
dos, oficiais de justiça e categorias vinculadas ao sistema judiciário;
6.815.445 com civis, incluindo-se colecionadores e esportistas; e
8.763.614 armas ilegais, nas mãos de civis (das quais 3.995.970 es-
tariam com criminosos). Impressiona a precisão dos dados, que só
podem se referir àquelas armas que estão registradas. As ilegais, que
nunca foram contadas, nos dois sentidos do termo, só podem ter es-
timativa grosseira. Em sentido contrário, outros estudos e levanta-
mentos demonstram ser muito pequena a importância da arma de
fogo na cultura brasileira, ao contrário da americana, por razões
históricas. Ao longo dos séculos XIX e XX não ocorreram conflitos
religiosos, étnicos ou políticos nacionais que tenham resultado no


armamento da população civil, como aconteceu nos Estados Uni-
dos, na Colômbia e outros países.
De acordo com o General Social Survey dos EUA, 45% dos
domicílios têm uma arma de fogo e em mais da metade destes
domicílios, mais de uma arma. No Brasil, dados de uma pesquisa
domiciliar coordenada pela Organização Pan-Americana de Saúde
em 1997 indicam que, na cidade do Rio de Janeiro, apenas 4,5%
da população declara ter uma arma de fogo em casa. Em São Pau-
lo, dados mais recentes, de 2003, de uma pesquisa domiciliar reali-
zada pelo Instituto Futuro Brasil, permitem calcular que apenas
2,5% dos domicílios têm alguém com arma em casa.
Neste ponto, a mídia tem tido papéis contraditórios. Se repete
muito mais facilmente os argumento dos ideólogos que se valem
das fórmulas maniqueístas mais fáceis, tem também exercido uma
função importante na pressão sobre os governos até mesmo inician-
do ou acompanhando como verdadeiros investigadores vários cri-
mes descobertos por jornalistas ou aprofundados por eles. Poucas
matérias têm sido escritas sobre o fluxo ilegal das armas. Em 2003,
reportagem de um jornal carioca apontava que, em sete anos, 10
mil teriam sido roubadas das Forças Armadas. Há poucos dias, o
mesmo jornal publica, citando fonte oficial, que apenas 278 armas
teriam sido roubadas entre 2000 e 2005.
Os estudiosos da violência, por sua vez, pouco afeitos aos su-
portes teóricos que enquadraram a discussão em outros países, vi-
vem dilemas morais e ideológicos que os atormentam, ainda sob a
hegemonia do paradigma marxista e a visão dicotômica da
sociedade. Esses dilemas poderiam ser assim resumidos: como de-
nunciar a violência de grupos internos às favelas e bairros pobres,
rompendo com o ideal populista de um povo puro, oprimido pelas
classes dominantes? A solução, muitas vezes não consciente, tem si-
do a de procurar culpados na classe média, sejam os usuários de
drogas, sejam os pouquíssimos cidadãos que têm armas em casa. Os
dados passam a ser contraditórios e pouco críveis. Alguns estudos
apontam que, no Rio de Janeiro, 25,6% das armas de fogo que fo-

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ram apreendidas pelas polícias entre 1981 e 2003, haviam sido re-
gistradas por proprietários legais. Em São Paulo, esses casos corres-
ponderiam a 52% das armas apreendidas entre 2000 e 2003,
segundo fontes oficiais das Polícias. Por último, pesquisa mais re-
cente no Rio de Janeiro afirma que, das 44.437 armas apreendidas
no Rio entre novembro de 1996 e abril de 1999, 72,9% eram pis-
tolas e revólveres nacionais. Se há tanta contestação dos dados de
homicídios, cujo registro é obrigatório e não implica em nenhum
ganho para policiais corruptos, fornecidos pelas secretarias de
segurança ou do SUS, pelos mesmos autores, como se pode tirar
tantas conclusões a partir do depósito de armas da polícia? Seria ne-
cessário supor que, a partir das informações amplamente fornecidas
por moradores de favelas, muitas armas ilegais chegam às mãos de
traficantes via policiais corruptos. È o que eu ouço há vinte e cinco
anos nas pesquisas realizadas em tais locais.
Outra simplificação ocorre, portanto, quando se diz que “é a
posse e o porte de armas pelos habitantes da cidade (cidadãos), que
as compram na ilusão de que se protegem, que está na raiz do
problema”. De fato, a facilidade de obter armas, tanto no comércio
legal como no contrabando, tem contribuído para o aumento dos
homicídios e das lesões sérias nas vítimas de agressões. Mas os aci-
dentes decorrentes da imprudência de manter uma arma em casa
têm incidência muito baixa. Não se pode tampouco tomar o
depósito da Polícia, conhecida pela sua ineficácia e minada pela
corrupção, como o indicador do tipo de armas que prevalece entre
os moradores da cidade. As mais poderosas, tecnologicamente su-
periores, mais caras e cobiçadas não vão para o depósito. Trocam de
mãos no comércio clandestino que flui entre policiais e bandidos,
assim como no tráfico ilegal que viaja clandestinamente em navios
e caminhões nas trevas dos porões e das noites. Por isso mesmo, a
guerra entre os comandos ocorre agora pelo domínio militar das fa-
velas ao redor da Baía de Guanabara. As armas importadas, embora
tecnologicamente superiores (foram feitas para guerras entre Esta-
dos e desferem dezenas de tiros em segundos), são consideradas le-


ves e podem ser carregadas por crianças. Essa revolução tecnológica
nos armamentos tem sido amplamente utilizada, tanto nas guerras
civis fratricidas quanto nos conflitos sangrentos entre quadrilhas e
comandos do crime negócio. Muito mais atenção deve ser dada,
portanto, ao tráfico ilegal e internacional de armas e à existência de
paióis de armas nos enclaves militarizados pelos traficantes de dro-
gas em muitas inacessíveis favelas brasileiras, onde a polícia tem
grande dificuldade de entrar, sendo recebida à bala.
Estudos feitos recentemente nos Estados Unidos, procuram,
por exemplo, correlacionar o tipo de arma com o tipo de crime.
As armas utilizadas em pequenos roubos não são as mesmas que
as exibidas de forma conspícuas nos assaltos feitos por quadrilhas,
nos conflitos armados entre elas, e nos homicídios que equivalem
a execuções. São estas as que mais preocupam, pois o seu desar-
mamento é mais duvidoso. Pois mais do que uma inclinação na-
tural dos homens jovens pobres à violência, o que explica o
aumento da taxa de homicídios nos locais onde vivem é a alta
concentração de armas nestes locais. É isso que cria o que o cri-
minologista Jeffrey Fagan da Universidade de Columbia chamou
“ecology of danger,” Depois de entrevistar 400 jovens nas vizi-
nhanças mais perigosas de Nova Iorque, descobriu que a violência
se expandiu nessas vizinhanças entre 1985 e 1995 pelo contágio
de idéias e posturas. Jovens que, de outra maneira, não andariam
armados, passaram a fazê-lo para evitar serem vitimizados pelos
seus pares armados, para impor respeito e para gozar do prestígio
adquirido com a posse de armas.
Em muitas cidades americanas, policiais receberam orientações
para um patrulhamento ou vigilância gun-oriented, ou seja, cujo
objetivo era a apreensão de armas. Por isso, em Kansas City e India-
napolis, policiais uniformizados passaram a trabalhar horas extras
para apreender mais armas nas vizinhanças mais perigosas, enquan-
to continuavam as atividades de praxe nas outras. Com isso, os cri-
mes praticados com armas diminuíram 49% nas áreas alvo em
Kansas City, 50% em uma área de Indianápolis que recebeu tal pa-


trulhamento extra. Em Charleston, South Carolina, fez-se
experiência com um programa que oferecia prêmios a quem desse
informações ou dicas sobre armas ilegais. Mas quase todas as cida-
des americanas montaram projetos de prevenção da violência com
projetos voltados para os jovens, ao mesmo tempo em que modifi-
cavam a forma de abordagem e de investigação policiais.
Além disso, a marcante tendência à dicotomização de mundos
– o dominante ou o marginal; o incluído e o excluído – abriu
espaço para o que Habermas chamou de metafísica negativa, na
qual o mundo do desviante, marginal ou divergente, é entendido e
elogiado como a alternativa ao mundo oficial. As formas do distin-
to existente no mundo dos “marginais”, “bandidos”, “membros de
gangues ou galeras e até mesmo quadrilhas de jovens violentos” fo-
ram apresentadas num discurso que estetizava a violência e que che-
gou a tomá-la como saída ou justificativa moral para a dominação,
a exploração, a exclusão dos dominados, explorados e excluídos, ou,
ainda mais simplesmente, como uma estratégia de sobrevivência de-
les. Acontece que este foco nas divisões impede o entendimento das
pontes e passagens múltiplas, trocas contínuas e redes entrecortadas
que articulam e que tornam, por exemplo a fronteira entre o legal e
o ilegal, o público e o privado, sempre tão frágil num país como o
Brasil em que a re-pública nunca se instaurou de fato. Hoje esses
problemas são ainda mais claros no contexto de um planeta em pro-
cesso de globalização, na qual a comunicação é cada vez mais rápi-
da e generalizada, além de des-territorializada.
Quando se considera o contexto nacional e transnacional da
cultura globalizada e do crime negócio, um fluxo de recursos - ar-
mas, drogas e até dinheiro - cuja fonte transcende a prática fatal dos
adolescentes pobres, o escopo da análise tem que ser ampliado até
incluir a organização transnacional dos cartéis das drogas e de ou-
tras mercadorias negociadas ilegalmente, além, é claro, das
instituições locais - a polícia e a justiça. Entende-se então porque
adolescentes pobres, em plena fase de fortalecimento da identidade
masculina, aprendem rápido um novo jogo mortal para afirmá-la,


devido à facilidade de obter armas e ao fascínio de ganhar dinheiro
fácil nas redes do crime negócio, dos quais o tráfico de drogas, não
sendo o único, é um dos mais lucrativos.
As tentativas canhestras de justificar ou negar a violência per-
petrada intra-classe e a defesa desse jogo mortal para tantos jovens
pobres tornam-se cada vez menos aceitáveis. Impossível ignorar, nas
interpretações pretensamente em defesa dos excluídos, a percepção
do sofrimento que provoca a violência assim banalizada entre eles.
Em qualquer lugar, é o limite do aceitável e o sentido da
perturbação que caraterizam um ato como violento. As sensibilida-
des mais ou menos aguçadas para o excesso no uso da força corpo-
ral ou de um instrumento de força, o conhecimento maior ou
menor dos seus efeitos maléficos, seja em termos do sofrimento
pessoal, seja em termos dos prejuízos à coletividade, dão o sentido
e o foco para a ação violenta. Além de polifônica no significado, ela
é também múltipla nas suas manifestações. Do mesmo modo, o
mal a ela associado, que delimita o que há de ser combatido, tam-
pouco tem definição unívoca e clara. A questão é saber se existiriam
valores não contextualizados, direitos fundamentais, valores univer-
sais, o que obrigaria a pensar sobre a violência pelo lado dos limites
que tais valores e direitos imporiam à liberdade individual ou cole-
tiva. Se são os pobres que veiculam suas dúvidas quanto à aplicação
do conceito de direitos humanos apenas em relação aos que abusa-
ram da sua liberdade em detrimento das posses e da vida de outros,
então está na hora de colocar o foco no controle desses abusos, es-
pecialmente nos casos de homicídio e estupro, os que mais provo-
cam sofrimento entre os pobres, e os menos investigados pela
polícia.
Isso não quer dizer que se deva ignorar o fato de que no Brasil
a polícia tem uma dupla face: o seu caráter autoritário, repressivo e
violento “nunca hesitante em usar o chicote” para os pobres,
destituídos ou excluídos (a “polícia de moleque”); a sua face presti-
mosa, condescendente e dócil em relação aos privilégios de classe e
status (“a polícia de gente”). Por outro lado, a denúncia da repressão


policial, muito embora importante para tornar públicas as inúme-
ras violações dos direitos civis ou fundamentais, presentes na
Constituição Brasileira de 1988, tomou tanto investimento que
barrou em certa medida a formulação de projetos de reforma das
instituições.
Criou-se, assim, um círculo vicioso das violações de direitos e
da escalada da violência pela inércia institucional e a cegueira dos
que elaboram políticas de segurança que não resolvem os problemas
estruturais das principais instituições que as levam a efeito. O mo-
delo tradicional de polícia repressiva, que não presta contas aos con-
tribuintes cidadãos nem se livra dos mecanismos perversos que a faz
privilegiar o pobre como o alvo de sua investigação e castigo, mas
que também não investe na investigação e na eficiência na resolução
dos crimes que mais afetam a população pobre, arrasta-nos para o
poço cada vez mais fundo da violência societária e institucional ir-
remediavelmente atreladas. Só depois de desfeito este nó pode-se
pensar numa polícia comunitária que sirva a uma população local e
preste contas de seus atos a ela.
Impressiona, até mesmo os que se defenderam com a couraça
da indiferença, a facilidade com que os comandantes arregimentam
jovens em várias favelas do Rio para suas guerras particulares. A li-
berdade de movimento desses chefes é também um acinte à
inteligência dos moradores dessa cidade. Porque é evidente a co-
nexão deste inusitado crescimento da violência entre os jovens po-
bres e as profundas transformações nas formas de criminalidade que
se organizaram em torno de vários tráficos, inclusive o das drogas
ilegais, e de inúmeros contrabandos, principalmente o de armas,
dois negócios extremamente lucrativos que atravessaram fronteiras
nacionais e que passaram a mobilizar as várias máfias transnacionais
com seus agentes pertencentes a classes sociais superiores.
Muito se fala sobre as culpas e as responsabilidades, que prefe-
rencialmente recaem sobre a classe média carioca onde estariam os
consumidores. Ledo engano. Os consumidores estão em todas as
classes sociais de todos os estados brasileiros e não podem ser res-


ponsabilizados pelo modo de atuação das polícias nesse intricado
problema que mobiliza imensas verbas públicas no seu combate
sem que se impeça o acúmulo de enormes fortunas privadas nem
aqui nem no mundo. Há que entender o que representam esses
negócios no funcionamento de um mercado livre de quaisquer li-
mites institucionais ou morais, com que nem os mais liberais entre
os liberais sonharam, justamente por transacionar mercadorias ile-
gais. As atividades econômicas ilegais, que não são poucas, por não
terem controles institucionais, tendem a ser muito lucrativas para
certos personagens estrategicamente posicionados em suas redes de
contatos que atravessam fronteiras entre os estados brasileiros e as
nações do mundo. Ora, com tanto lucro, ficou fácil corromper po-
liciais, comprar apoio político, conseguir receptadores, encontrar
alvejantes de dinheiro imundo e arregimentar jovens para morrer
nas guerras recorrentes em que disputas são resolvidas à bala. Em
todo o país.
A recusa em aceitar que novas formas de associação entre cri-
minosos mudaram o cenário não só da criminalidade, mas também
da economia e da política no país, atrasou em muito a possibilida-
de de reverter o processo. Deixou livre o caminho para o progressi-
vo desmantelamento nos bairros pobres do que havia de vida
associativa, tão importante no direcionamento de suas demandas
coletivas. Deixou-se espalhar, entre alguns jovens pobres, um etos
guerreiro que os tornou insensíveis ao sofrimento alheio, orgulho-
sos de infligirem violações ao corpo de seus rivais, negros, pardos e
pobres como eles, agora vistos como inimigos mortais a serem
destruídos numa guerra sem fim. Nessas condições, construir mu-
ros para cercar favelas é um disparate. Quem o iria construir no
espaço dominado militarmente pelos traficantes armados? Se não
autorizam nem mulher grávida a subir em ambulância, como ga-
rantir a integridade física dos construtores do muro que iria supos-
tamente limitar seus movimentos? Das duas, uma. Ou a construção
seria impossível, ou a reconquista do território dominado pelos tra-
ficantes tornaria essa construção desnecessária.


Teria este domínio militar dos traficantes e policiais corruptos
que os acompanham abalado a civilidade dos moradores desta cida-
de, desenvolvida ao longo de décadas principalmente pelos seus ar-
tistas populares que passaram em congraçamento competitivo, mas
amistoso, aqui, onde sambaram nossos ancestrais?
Outra interpretação preferencial dos que se apresentam como
politicamente corretos é culpar a Cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro, que passou a ser difamada como a mais violenta do
mundo. Mesmo que tenha havido manipulação de estatísticas nos
últimos anos, seria impossível que essa manipulação anulasse os
números apresentados por muitas outras cidades e regiões metropo-
litanas cujas taxas de homicídio são duas ou três vezes maiores do
que a apresentada no município e RM do Rio de Janeiro. Estranha
conclusão, já que os cariocas continuam sendo considerados
simpáticos, afáveis e gentis. E como culpar uma cidade pelo que
seus moradores não conseguem controlar?
Ora, as polícias do Rio de Janeiro ainda não realizaram as ne-
cessárias mudanças na sua forma de atuação. Em outra cidade tris-
temente famosa pelas guerras entre gangues durante os anos de
proibição da venda de álcool e, mais recentemente, da venda de
cocaína e heroína, isso aconteceu no início dos anos 90 com resul-
tados evidentes no controle da violência entre as gangues, medida
pela diminuição nas taxas de homicídio. Ali as unidades policiais
encarregadas do crime organizado, dos narcóticos e das gangues
mudaram a maneira de agir. Além de atuarem conjuntamente,
montaram a estratégia que denominaram a “trama da esquina”. De-
pois de chegar à conclusão que não adiantava prender apenas o ven-
dedor que ficava na esquina, que era sempre substituído por outro
vendedor, configurando essa tarefa interminável de enxugar o gelo,
adotaram novas formas de investigação para prender todos os en-
volvidos na atividade de venda dos narcóticos. Prisões simultâneas
de quem passa a droga, quem pega o dinheiro dos vendedores,
quem fornece a droga, quem avisa quando a polícia chega. Para is-
so, policiais disfarçados com a ajuda de informantes, passaram a vi-


sitar o ponto de venda na esquina para comprar a droga de todos os
traficantes que ali negociam, enquanto outros observam, fotogra-
fam, fazem vídeo etc. Esse material constitui prova jurídica sufi-
ciente para colocar na prisão todos os envolvidos. Ou seja, o
objetivo é prender todos os que atuam no negócio das drogas, usan-
do a possibilidade de diminuir a pena pela denúncia de quem está
mais acima na hierarquia. Nessa unidade atuam também represen-
tantes de outros órgãos federais: o DEA, FBI, CIA, cada um com
seu representante. A unidade de narcóticos tem cinco times para in-
vestigar as atividades dos cartéis ali presentes: os colombianos, me-
xicanos, porto-riquenhos. Chicago tem cem mil membros em cerca
de 220 gangues, quase todas envolvidas hoje com atividades crimi-
nais, especialmente o tráfico de drogas ilegais, ao contrário do que
acontecia no passado, quando se dedicavam também a atividades
recreativas e culturais. Levaram um século para ter algum controle
sobre elas.
Além do controle e restrições ao comércio de armas, faça-se
mister portanto um grande investimento público na formação dos
jovens, marcados pela atração do prestígio adquirido via hipermas-
culinidade e via o poder conquistado pelos instrumentos que
podem matar o rival. Esta formação deve retomar o processo
civilizatório, que sofreu um grande retrocesso nas últimas três
décadas. Portanto, deve estar voltada para a cidadania ou o etos ci-
vilizado. Além disso, a prioridade maior deveria ser a reforma ur-
gente e absolutamente necessária das nossas forças policiais.



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