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A CARA DO CRIME1

Edgard Monteiro de Menezes2

Resumo: Esse artigo versa sobre as imputações dos crimes de tráfico e associação para o
tráfico, caracterizados por estruturas típicas abertas, tendo por inspiração lírica musical
carioca, sucesso em 2021. O objetivo foi relacionar lei penal em branco e racismo. A
metodologia utilizada foi revisão bibliográfica e análise de julgados.

Palavras-chave: tráfico de drogas, lei penal em branco, perigo abstrato, associação,


racismo, criminalização.

1. Introdução.

O debate a respeito da constitucionalidade do art. 33 da Lei 11.343/20063 (tipo


penal do tráfico de drogas) se faz muito presente na academia do direito penal. Talvez, o
risco de ser repetitivo é enorme. Adicionalmente, abordaremos também o art.35 da mesma
lei (associação para o tráfico)4.

Segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de


Justiça, as imputações do art. 33 e correlatos da Lei 11.343/2006 são responsáveis por
25% da prisões (cautelares e pena) do país5. Em outras palavras, os crimes da lei de drogas
figuram em um quarto dos mandados de prisão. A respeito também desses dados, cujas
atualizações remontam o ano de 2018, destacamos que 54,96 % dos presos, no Brasil, são

1
MC POZE DO RODO. A cara do Crime. Rio de Janeiro: QG das Pura/ Mainstreet Records, 2021,
duração: 5 m e 2s. In: https://youtu.be/2PRAiVs3MVc
2
Mestrando em Direito, linha de pesquisa Direito Penal, UERJ, advogado.
3
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer,
ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer
drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
4
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos
crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:
5
Cadastro Nacional de Presos – BNMP 2.0- Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, Conselho
Nacional de Justiça, agosto de 2018. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-
penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0?utm_source=banner, acesso em 20/08/2021. p. 47
negros – embora não se saiba os critérios utilizados para essa avaliação6 – e mais de 86%
dos detentos brasileiros não possuem o ensino médio completo: falamos de analfabetos,
pessoas com o ensino fundamental incompleto, com educação formal que vai até o ensino
fundamental etc7.

Considerando ainda as execuções – assassinatos perpetrados por agentes estatais –


em nome da abstrata “guerra às drogas”, os criminalizados costumam ter cara. Vale
destacar o Atlas da Violência de 2021, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que aponta que a chance de
uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma branca; as pessoas
negras representam 77% das vítimas de homicídio8. Ainda, a mesma pesquisa indica como a
“guerra às drogas” e seus efeitos colaterais, possivelmente, contribuem para a taxa de homicídios,
nos Estados-membros e a relação entre a violência e o racismo:

(...) as oscilações nas taxas de violências ocorridas nessas regiões, muito


marcadas pelas disputas entre organizações criminais, pela competição no
mercado das drogas e pela posição estratégica ocupada por alguns estados na
rota do tráfico (COUTO, 2018), contribuíram diretamente para a reprodução
da desigualdade racial nessas localidades, conforme mostrado a seguir. (...) Ao
analisarmos as proporções por raça/cor entre as vítimas de homicídios em
2019, podemos visualizar de forma mais evidente os níveis de desigualdade
racial entre as UFs, especialmente porque em estados como Alagoas, o
exemplo mais representativo, quase a totalidade das vítimas de violência letal
são negras, mesmo com os negros constituindo uma proporção bem inferior a
isso, 73,7% da população total. 9

Ademais, a criminalização da consumo de substâncias arbitrariamente proibidas


revigora o poder de vigilância disciplinar, nos territórios pobres e racializados, através

6
Nesse sentido, Silvio Luis de Almeida nos ensina que raça não tem sentido biológico, mas político e
relacional, sendo assim uma “relação social”. Portanto, sobretudo no Brasil, não é porque a pessoa tem tons
claros de pele que ela terá a passabilidade de um cidadão branco. In: ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é
racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. p. 08.
7
Cadastro Nacional de Presos – BNMP 2.0- Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, Conselho
Nacional de Justiça, agosto de 2018. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-
execucao-penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0?utm_source=banner, acesso em 20/08/2021. p. 54
8
CERQUEIRA, Daniel. Atlas da Violência 2021 / Daniel Cerqueira et al., — São Paulo: FBSP, 2021. p.
47.
9
Idem. p. 48/9.
das prisões para averiguação, de restrições de organização, de proibição de “bailes funks”
etc, como pontua Orlando Zaccone10.

De outro lado, indaga-se: qual é a “cara” dos tipos penais inscritos nos artigos 33
e 35 da Lei de Drogas? Vale dizer, o que se pretende tutelar, quais são os limites e
princípios dos crimes suscitados, quais são seus critérios concretos de averiguação típica?
Tomando de empréstimo uma faixa de Trap11 de sucesso, a arte deste texto consiste em
tentar apontar, sem muita exaustão e com prosopopeias, as rusgas, os traços de identidade,
os rostos de dois dos tipos penais mais significativos da Lei de Drogas, vale dizer, os
substratos constitucionais do crime de tráfico e de associação para o tráfico. De início,
cogitamos um debate a partir da pertinência (art.5º, XLIII, da CRFB/88) e da legalidade
(art.5º, XXXIX, da CRFB/88) da criminalização vigente da circulação, armazenamento e
circulação das drogas ilícitas.

2. Tráfico de Drogas: Legalidade, lei penal em branco, bem jurídico tutelado e


mandado de criminalização constitucional

a) Criminalização das drogas como dever constitucional.

É verdade que há, na Constituição Federal, mandamento para criminalização do


tráfico ilegal de drogas. A norma inserida, aparentemente de forma deslocada, no rol dos
direitos e garantias fundamentais (art.5º, XLIII), parece ser de eficácia limitada,
definidora de princípio programático vinculado à lei12, por ser retirada da seguinte
redação

a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a


prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo
e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem

10
D`ELLIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de droga/ Orlando
Zaccone D`Ellia Filho. – Rio de Janeiro: Revan, 2007. 2ªedição, abril de 2008. p. 30.
11
Trap é um subgênero do rap que se originou na década de 2000 com DJ Paul no sul dos Estados Unidos
e, hoje, acoplado pela cultura funkeira e do hip-hop faz muito sucesso na juventude brasileira. “A cara do
crime”, do artista MC Poze do Rodo é um exemplo musical desse subgênero.
12
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª ed. São Paulo, Malheiros, 2003.
P. 88-102.
Por uma interpretação simples, é possível entender que a CRFB/88 não veda a
comercialização de drogas, apenas institui a criminalização do comércio ilícito de
entorpecentes passíveis de serem arbitrados como maléficos. Com efeito, não há nada que
proteja essa cláusula da mutação constitucional, cuja “semente” está nela mesma. Se todo
o tráfico de entorpecentes for lícito, a lei não poderá considerar crime a circulação de
substâncias que alterem o estado físico ou de consciência humanas.

Há algumas questões a respeito dessa afirmação. Para o fio de interpretação


constitucional parecer mais completo, não é possível uma leitura sem começo, sem a
observação dos princípios fundamentais, nos quais inserem-se os objetivos fundamentais
da República; ali: erradicação da marginalização (art.3º, III, da CRFB/88). Ainda que o
erradicar seja alcançado - ou atinja a sua perfeição de propósito - através de processos
políticos e sociais, criminalização é espécie de marginalização.

Outro problema é o conceito de droga e entorpecente, mormente sob uma acepção


negativa. Aqui, pede-se socorro à empiria, sem o esquecimento do que é notório. A venda
de álcool é estimulada. Entorpecentes como Argyreia Nervosa (LSA) e Salvia
Divinorum13, substâncias naturais potentemente alucinógenas (semente e planta), eram
vendidas em tabacarias de qualidade, até 2012 e, mesmo servindo perfeitamente ao
propósito da recreação, nunca estiveram na história da guerra do tráfico, quando não
proibidas. Cloridrato de propranolol 40 mg14, cujo efeito é a interrupção dos resultados
da adrenalina, provocando calmaria, relaxamento e sensação provisória de paz, é vendido
nas farmácias, sem necessidade de receita médica, por menos de seis reais.

Ou seja, nem toda redação de artigo inserida no artigo 5º da Constituição condiz


com direito fundamental, como bem afirmam Nilo Batista e Eugênio Raúl Zaffaroni
(2017)15 e, por esse aspecto, o art.5º, XLIII, da CRFB/88, que não se assemelha aos
objetos de proteção de cláusula pétrea (art.60, §4º, IV da CRFB/88), parece carecer de
uma razão óbvia, ou apta a dar corpo ou legitimidade embrionária para o art.33 da Lei
11.343/2006.

13
“Brasil já comercializa e consome ´drogas legais`” in: https://fenapef.org.br/23070/
14
https://img.drogasil.com.br/raiadrogasil_bula/PropranololEMS.pdf
15
ZAFFARONI, Eugênio Raúl, 1940- Direito Penal Brasileiro, volume 2, tomo 2/ Eugênio Raúl Zaffaroni,
Nilo Batista; Alejandro Alagia; Alejandro Slokar. –1.ed.—Rio de Janeiro: Revan, 2017. p.255.
b) Princípio da Legalidade e lei penal em branco – art. 33 da Lei 11.343/2006

Esse artigo de lei apresenta uma descrição não tão completa da conduta proibida, já
que importar, exportar, remeter (...) apenas são condutas proibidas, quando não
autorizadas ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. De acordo com o
art.66 da Lei de Drogas, são consideradas drogas proibidas aquelas alcançadas pela
Portaria SVS/MS nº344 da Anvisa. Assim, nos referimos a uma forma de assessoriedade
administrativa, cuja remissão é feita a um ato de uma instância hierárquica inferior à de
lei16.

Trata-se, portanto, de lei penal em branco heterogênea ou heteróloga17, legitimada


por respeitáveis criminalistas, sob o argumento de que o Congresso Nacional “não têm
condição técnica de avaliar o caráter nocivo de uma nova substância ou a conveniência
de incluí-la na Portaria 344 SVS/MS”, porque prepondera a ideia do preparo técnico e
ágil18.

Tentaremos criticar essa percepção. No entanto, antes, é preciso sublinhar que a


regra da legalidade segundo a qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena
sem prévia cominação legal”, ao contrário da autorização constitucional para a
criminalização do tráfico ilícito de entorpecentes, é norma de eficácia plena e
aplicabilidade imediata, porque advêm de uma primeira geração de direitos protetivos da
pessoa humana contra a sociedade civil organizada lida como o domínio de classes sobre
outras, sob a forma do Estado19.

Em segundo lugar, a Constituição Federal estabelece que “as normas definidoras


dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata” (art.5º, §1º, da
CRFB/88). E, nesse cenário, a semântica da norma constitucional não poderia ser
alargada para o atendimento dos sentimentos de urgência de quem dita a política da ordem

16
NAVES, José Paulo Micheletto. Tipicidade, Assessoriedade Administrativa e Erro no Direito Penal. Belo
Horizonte. Editora D`Plácido. 2019. p.84.
17
BITENCOURT, Cezar Roberto Tratado de direito penal : parte geral 1 / Cezar Roberto Bitencourt. – 24.
ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.p.298.
18
MENDONÇA. Tarcísio Maciel Chaves de. Lei Penal em Branco. Um confronto com o princípio da
legalidade e análise dos crimes ambientais e econômicos. 2ª edição. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2020. p.
54.
19
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013.
do dia, se a proteção do cidadão contra o Estado diz respeito à proteção da pessoa humana
contra o Estado de classes.

Doutrinadores progressistas de atual destaque como João Paulo Martinelli e


Leonardo Schmitt de Bem defendem a constitucionalidade da norma penal em branco
heterogênea, na expressão do art. 33 da Lei 11.343/2006, sob os seguintes argumentos:
(i) dificuldade técnica do legislador em relação às determinações sanitárias corretas, à
farmacologia etc, (ii) duração prolongada do processo legislativo em contraste com a
evolução social da questão, que é dinâmica, (iii) imposição da tipificação do delito pela
CRFB/88 anexa à vedação da proteção deficiente. 20

A separação entre direito e política parece ditar a ideia segundo a qual o poder
legislativo, supostamente dominado pela política partidária, seria menos habilitado para
deliberações sanitárias do que órgãos da Administração, preenchidos por técnicos
notórios e concursados. Porém, é o Presidente da República quem indica e nomeia os
diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (art.10º, parágrafo único, da Lei
9.782/99) e, paralelamente, todo concurso público é enviesado por questões estruturais,
históricas e políticas21. Com efeito, o devido processo legislativo deve pressupor debates,
consultas e audiência públicas, sendo certo também que as casas parlamentares possuem
servidores e técnicos concursados. Em suma, o direito e nenhuma outra técnica é
produção celeste; pelo contrário, são originados da política, da história protagonizada por
mulheres e homens.

Nesse sentido, a própria concepção das Agências Reguladoras, aqui criadas na


década de noventa, cuja modelagem foi importada dos Estados Unidos, parece dialogar
com a vitória americana na Guerra Fria, conforme apreendemos da leitura do
administrativista Gustavo Binenbojm22. A ideologia tecnocrática e a maior extensão de
tempo atribuída ao mandado do administrador da Autarquia Especial em relação ao do

20
MARTINELLI, João Paulo Orsini, Direito Penal parte geral: lições fundamentais/ João Paulo Orsini
Martinelli, Leonardo Smith de Bem. – 6.ed. – Belo Horizonte, São Paulo: D`Plácido, 2021. p.247.
21
A nível de exemplo, o curso de medicina é a graduação com menor inclusão de negros. In:
https://oglobo.globo.com/brasil/negros-em-cursos-como-medicina-direito-sentem-se-ainda-mais-minoria-
24089787
22
BINENBOJM, Gustavo. Agências Reguladoras Independentes e Democracia no Brasil, R. Dir. Adm.
Abril/junho de 2005. p.152: “Assim, a implantação de um modelo que subtraísse o marco regulatório do
processo político-eleitoral se erigiu em verdadeira tour de force da reforma do Estado. Daí a ideia da
blindagem institucional de um modelo, que resistisse até a uma vitória da esquerda em eleição futura.”
próprio Chefe do Poder Executivo, possivelmente, foram estruturados para evitar a
mobilidade de governos autenticamente populares ou de esquerda, na América Latina:

Em última análise, embora o modelo da agência reguladora independente


norte-americana tenha servido de inspiração ao legislador brasileiro. a sua
introdução no Brasil serviu a propósitos substancialmente distintos. senão
opostos. De fato. enquanto nos Estados Unidos as agências foram concebidas
para propulsionar a mudança, aqui foram elas criadas para garantir a
preservação do status quo: enquanto lá buscavam elas a relativização das
liberdades econômicas básicas. como o direito de propriedade e a autonomia
da vontade. aqui sua missão era a de assegurá-las em sua plenitude contra
eventuais tentativas de mitigação por governos futuros. Em semelhante
contexto, foi até natural que a preocupação básica do legislador (leia-se, do
governo Fernando Henrique Cardoso) e da doutrina nacional tenha sido a
defesa da autonomia das agências. Nessa primeira onda de criação de agências
reguladoras setoriais, o grande móvel da estrutura regulatória introduzida no
país foi a criação de mecanismos institucionais e jurídicos assecuratórios da
independência das agências em relação aos agentes políticos e ao Poder
Judiciário. Por isso as agências são criadas no Brasil como autarquias de
regime especial23

Assim, talvez seja realmente difícil separar técnica e política, se a base da nossa
forma social é estruturada em contradições e lutas históricas, muitas vezes inseparáveis
da geopolítica. O argumento da técnica isenta necessária não parece vencer a necessidade
de observação da legalidade estrita.

Em relação ao segundo ponto, a necessidade de dinamismo decisório e normativo


não parece encontrar o problema do álcool, no Brasil, por exemplo. Segundo a Fiocruz,
o álcool mata mais que o crack24, e nem por isso essa droga entrou na lista das proibições
e nas pautas de urgência dos órgãos sanitários do Poder Executivo. Ademais, a relação
entre dependência química25 e estrutura social parece ser pouco explorada por quem tem
maior fé no caráter isento da ciência ou nutre alguma crença na imanência impoluível das
instituições democráticas.

23
Idem.154.
24
BASTOS, Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro et al. (Org.). III Levantamento Nacional sobre o uso de
drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT, 2017. 528 p.153/173
25
HART, Carl. “As drogas não são o problema”: entrevista com o neurocientista Karl Hart. Entrevista
concedida a Amy Goodman. DemocracyNow. Tradução Isabela Palhares, Roberto Brilhante, e Rodrigo
Giordano. 2014. In: https://www.neca.org.br/images/Carl%20hart%20e%20as%20drogas.pdf
A estrutura social parece não ser questionada, por exemplo, quando a cisão da
humanidade em classes sociais com interesses opostos, mobilizada cada vez mais por uma
lógica mercadológica, oferece poucas alternativas além do “vício” à pessoa em situação
de miserabilidade, como pontua o neurocientista Carl Hart26 e, em virtude disso, pautas
de pleno emprego, de previdência integral, de democracia popular sobre a gestão de
recursos como água, energia, petróleo (riquezas essenciais no combate à fome) não
alcançam a ordem da urgência. Pelo contrário, a urgência costuma ser reivindicada para
a retirada de direitos27.

A respeito da tipificação do crime de tráfico de drogas ser imposta pela


Constituição Federal de 1988, não há na redação do art.5º, XLIII, da CRFB/88 a
determinação de criminalizar a droga x ou a droga y, nem a de que alguma droga deva ser
proibida. Diferentemente, o tráfico ilícito deve ser combatido, na medida da ilegalidade
condicionada ao tempo histórico dessas demandas por repressão (certas ou erradas). Além
disso, o princípio da vedação da proteção deficiente deve admitir que o direito penal é
apto a proteger direitos fundamentais; não obstante isso, não está claro qual bem jurídico
a lei de drogas almeja proteger.

Em um país que sofre com 600 mil mortes por conta da má-gestão da pandemia
da Covid-19, os artigos 26728 e 26829 do Código Penal não parecem ser lembrados,
quando notórias são as aglomerações em bares e shoppings por todo o Brasil, e os atos
omissivos da Administração, mesmo que o bem jurídico “saúde pública” possa ser muito
melhor identificado e delimitado em comparação com os casos de tráfico de drogas, cuja
aplicação da lei criminal o reivindica.

26
Idem.
27
Em 2021, o poder legislativo atuou bem sob os pressupostos artificiais da urgência. Como exemplo: a
Lei 14.182/2021 que autoriza a privatização e desnacionalização da maior empresa de energia elétrica da
América Latina, foi aprovada tendo por embrião a edição de Medida Provisória. A obrigatoriedade de
construção de termelétricas à gás (extremamente poluidora – art.1,§1º), de desregulamentação das
concessões das Usinas Hidrelétrica, que passam para o regime de produção independente (art.3º, II), o
reboque de comunidades indígenas para construção do Linhão do Tucuruí (art.1º, §10º) e a perda do
controle de setor estratégico pela União (art.1º,§1º, c/c art.3º, III, a) foram legislados, mediante uma grande
“furada de fila” e abreviação da necessária participação democrática dos parlamentares e da população.
28
Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos
29
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de
doença contagiosa
Ao que tudo indica, não há um bem jurídico30 claro a ser protegido pela Lei
11.343/2006 e, em razão disso, é pertinente os ensinamentos do professor Juarez Tavares,
para quem:

Bem jurídico é elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social


e nesse sentido pode ser entendido como dado da pessoa, que se incorpora à
norma como seu objeto de preferência real e constituiu, portanto, o elemento
primário da estrutura do tipo, ao qual devem se referir a ação típica e todos os
seus demais componentes. (...) são inválidas normas incriminadoras sem
referência direta a qualquer bem jurídico, nem se admite sua aplicação sem
resultado de dano ou de perigo concreto a esse mesmo bem jurídico.31

Até os dias de hoje, o encarceramento em massa, as chacinas e torturas produzidas


em nome da “guerra às drogas” contaminam a possibilidade de verdadeira análise sobre
os malefícios reais da circulação de drogas como a cocaína, na sociedade. Além disso, é
complicado esterilizar o debate “drogas e sociedade” como se a relação entre uma
substância química e um ser humano não fosse afetada e complexificada por aspectos
individuais específicos, por circunstâncias familiares das mais diversas, por demandas
econômicas, por problemas estruturais que compreendem noções de classe, de raça e de
gênero. Opostamente à necessária interlocução entre as ciência humanas diversas, o
idealismo das normas proibicionistas vigentes parece incapaz de apontar um bem jurídico
resguardável.

Oportunamente, vale o registro de que a “vedação da proteção deficiente” de


direitos, enquanto suposto princípio de defesa social, não mereceria compreender
investigação, prisão e perda de direitos de pessoas, primeiro porque é contraditório, já
que o princípio é protetivo das garantias individuais, segundo porque a erradicação da
marginalização é objetivo republicano fundamental.

3. Art.35 da Lei 11.343/2006- A associação legislada como lawfare aos pobres.

30
A não ser como bem jurídicos compreendamos a acepção de valor (da classe dominante). Nesse aspecto,
a moral e os bons costumes seriam bens jurídicos?
31
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal (livro eletrônico) /Juarez Tavares. – 4. Ed.- São Paulo: Tirant
Lo Blanch, 2019. p. 213.
Associar é um verbo que tem por significado unir, aliar, reunir, criar relação32.
Cogitamos um paradoxo aparente entre a criminalização de condutas que envolvam
associação e a sociedade brasileira cada vez mais individualista e competitiva, na qual as
relações de trabalho são cada vez menos coletivas, conforme determinaria a contradição
capital/trabalho, na fase neoliberal do capitalismo. Sob esse aspecto, vale a informação a
título de curiosidade: o valor mínimo da pena de multa cominada pelo art.35 da Lei
11.343/2006 alcança a importância de R$25.669,00 (vinte e cinco mil, seiscentos e
sessenta e nove reais)33, em 2021, e é maior do que aquele atrelado ao tipo penal do art.33
dessa lei. O não pagamento da multa penal tem implicações na possibilidade de
progressão de regime34 e obstado a extinção da pena35.

O crime previsto em destaque tem por pressuposto os artigos 33 e 34 da Lei de


Drogas; tipos penais de ações múltiplas ou plurinucleares. Não seria absurdo cogitar a
ausência de concretude no enunciado do suposto comportamento indesejado, porque o
tipo é de núcleo um tanto quanto indeterminado, sendo certo que a subsunção do ato
humano ao verbo não precisa ocorrer por conduta reiterada (art.35). Do mesmo modo,
esse tipo penal depende de outro (art.33), tornando o conjunto da obra extremamente
impreciso.

É de se destacar que a doutrina entende que o bem jurídico tutelado pelo art.35 da
Lei 13.343/2006 seria a paz pública36 e, tal como o tráfico de drogas, o sujeito passivo do
crime seria a sociedade, tornando-o de perigo abstrato. Assim, o tipo penal em branco
homogêneo também não se distancia de um tipo ideal fantástico ou fantasmagórico, já
que, além de ser responsável por 25% dos mandados de prisão (2018) – como destacado
no início do texto –, sem resolver o problema da violência urbana, é um aparente “cheque
em branco” para o arbítrio judicial. Como exemplo, indicamos Acórdão da 3ª Câmara
Criminal do TJ/RJ que resultou na condenação de Renan Santos da Silva, artista popular
conhecido como DJ Renan da Penha.

32
https://www.dicio.com.br/associar/
33
De acordo com o art.49, §1º, do CP, o valor mínimo do “dia-multa” é 1/30 do salário mínimo vigente.
As penas para os crimes de tráfico e de associação são calculadas a partir de 500 e 700 dias-multa,
respectivamente. Em 2021, o salário mínimo é valorado em R$1.100,00 (mil e cem reais).
34
STF - HC: 197847 SP 0048020-98.2021.1.00.0000, Relator: NUNES MARQUES, Data de
Julgamento: 12/03/2021, Data de Publicação: 17/03/2021
35
REsp nº 1.785.861/SP
36
MASSON, Cleber Lei de Drogas: aspectos penais e processuais / Cleber Masson, Vinícius Marçal. –
Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. p.98.
O músico foi condenando pelo crime de associação para o tráfico em razão dos
bailes funks que organizaria (onde, surpreendentemente, parte do público consumia
drogas), em razão das manifestações públicas de afeto e de saudades a amigos que
morreram supostamente em confronto com a polícia militar, e por informar a sua
comunidade a aproximação dos “caveirões”, quando direcionavam-se à entrada da favela
onde nasceu (a respeito desse fundamento condenatório, vale um espaço sobre legítima
defesa, em uma futura continuação deste texto). Eis o fundamento curioso:

Cite-se, também, a indicação de que o caveirão estava subindo o morro,


sem qualquer chamada ou referência aos moradores para proteção dos
seus veículos (doc. 000614 – n. 21).
Chamam a atenção também as fotos de possíveis pessoas mortas, com
referência de afeto e saudades, sem explicação para uma divulgação
através do meio utilizado, salvo uma possível exaltação à morte durante
a repressão ao tráfico (doc. 000614 – n.03). Em relação à exaltação, há
uma foto de um elemento desconhecido, mas que é apontado pelo ora
apelado como “soldado perigoso” (doc. 000614 – n. 12).
Consequentemente, levando em conta o depoimento do Delegado Dr.
Carlos Eduardo, do adolescente R.M.S., a confirmação pela testemunha
Leandro da existência de bailes funk na comunidade com venda de
entorpecente, a confissão do próprio RENAN de que os organiza e
recebe rendimentos através desta atividade, bem como a exibição das
postagens em redes sociais nitidamente indicativas do seu
envolvimento com o tráfico de drogas, vejo como suficiente a prova
colhida de forma a permitir a procedência do pleito ministerial de
reforma da sentença absolutória.37

Para reforçar a anamnese deste artigo, apontamos mais indícios de que o Poder
Judiciário utiliza as condições materiais dos acusados, seus estereótipos sociais
imputados pelas classes altas, para condená-los por associação (art.35). Nesse sentido,
uma decisão proferida pelo juízo da 34ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de
Janeiro, no Processo nº 0140155-21.2018.8.19.0001, página 205 dos autos judiciais, tem
tintura verde e amarela: “O endereço da apreensão fica no interior do Complexo do

37 APELAÇÃO CRIMINAL N. 0233004-17.2015.8.19.0001, p. 5730.


Chapadão, local conhecido como ponto de venda de drogas e seria impossível que o réu
traficasse na comunidade sem que estivesse associado para tal finalidade.”

Como hipótese inicialmente lançada, aqui, encarceramento em massa, imputação


dos crimes previstos na lei de drogas como causa relevante de aprisionamento, genocídio
da população negra, que compõe 77% dos assassinados no país, têm possível relação.

Seguindo a proposição de Juarez Cirino dos Santos, segundo a qual o racismo


inerente à seletividade do sistema penal “tem suas raízes nas estruturas econômicas e de
poder de Estado, determinado pela necessidade de superexploração da força de trabalho
negra na produção de mais valor”38, a conduta de associação talvez ganhe relevo para o
Estado Policial, nos último anos, quando ocorre a progressiva articulação do
neoliberalismo brasileiro, com golpes às organizações classistas como os sindicatos 39, e
ataques aos direitos coletivos das grandes massas populares40.

Não se trata, talvez, de uma crise do ser coletivo; mas de economia-política


colocada em prática, de maneira organizada41. A reunião de trabalhadores, de estudantes,
de negros, de mulheres, da população LGBTQI+, de candomblecistas é inconveniente ao
status quo, que na superestrutura reafirma a forma de relação social de subjetividade
jurídica (direito) como mercadoria, e a “imagem de rosto” do tipo penal contido no art.35
da Lei 11.343/2006 - com o perdão da prosopopeia - demonstra-se ainda mais turvada,
em um ano de chacinas42 e de crise sanitária deliberada.

38
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição/
Juarez Cirino dos Santos. -1.ed.- Tirant lo Blanch: 2021. p. 424.
39
O fim da obrigatoriedade da contribuição sindical previsto na Lei 13.467/2017, cuja constitucionalidade
foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 5.794) é um indicativo que a aliança e reunião de
pessoas, em oposição – até meramente reformista- à ordem vigente, é um fato indesejado pelas classes
dominantes.
40
Enfatizamos novamente a Lei 14.182/2021 que desnacionaliza o controle sobre a energia elétrica do
Brasil (art.3º, II, a), cuja fonte é majoritariamente hídrica, impondo – ainda - a alteração do marco
regulatório do setor elétrico, mediante investimento em modelagem mais cara e poluente. O pagamento de
dividendos cada vez maiores aos acionistas dar-se-á em detrimento da prestação de um serviço regular,
contínuo e com preço módico, aumentando o preço dos alimentos, transformando inúmeras moradias em
locais insalubres tais como os presídios. Junto a isso, vale destacar outros ataques constitucionais: marco
temporal das terras indígenas, reforma da previdência, reforma administrativa, reforma trabalhista.
41
Silvio Luis de Almeida compreende que o autoritarismo é sintoma de economia-política, e não apenas
uma falha moral ou má compreensão técnica da Constituição. ALMEIDA, Silvio Luis de. A democracia
como fetiche e a ocultação do debate econômico. Colunas. Folha de São Paulo. 02 de setembro de 2021.
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/silvio-almeida/2021/09/a-democracia-como-
fetiche-e-a-ocultacao-do-debate-economico.shtml
42
O episódio da chacina do Jacarezinho, em maio de 2021, merece memória, repúdio e manifestos por
responsabilização.
4. Considerações finais.

A figura de linguagem contida no título “a cara do crime” expressa uma ironia.


Os artistas demonstram saber que crime e criminoso não são dados pela natureza; pelo
contrário, na realidade da periferia do capitalismo, as lutas de classes forjam
criminalizações e criminalizados, como ensina Vera Malaguti Batista43.

Narrando a rotina de serem sempre parados no trânsito pela polícia, os cantores


expressam-se em versos como “nóis incomoda/favelado chique empilhando as nota/
enquanto, na blitz, os caninha bola/ sempre pergunta se no carro tem droga/ pode
revistar e depois tu me fala/ carro tá quitado vai arrumar nada/ me libera logo”
denunciando a criminalização primária calcada em pura esteriotipação racial prosseguem,
notas depois, “ querem saber se é artista ou se é vagabundo/ não vou dizer/ pesquisa meu
nome no Google”.

Embora a presença de versos ideologicamente consumistas e outros pequenos


problemas difusos, esse sucesso musical de massas tem materialidade e conteúdo útil ao
questionamento da lei penal em branco, notoriamente aplicada no aprisionamento de
corpos negros, cujo grau de intensidade possivelmente é mediado pela contradição
histórica brasileira capital/trabalho negro hiperexplorado. Em outras palavras, a
personificação do crime tem pobres e negros como fonte de “inspiração” e, embora pareça
vulgar cogitá-los como tais, os tipos penais em branco compreendidos no art. 33 e 35 da
Lei 11.343/2006 situam –se perfeitamente no antagonismo de classes brasileiro, em que
a raça é elemento central.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT, 2017.

43
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Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição, julho de 2012, 2ª reimpressão, 2015. p. 98.
BATISTA, Vera Malaguti, Introdução crítica à criminologia brasileira/ Vera Malaguti
Batista. – Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição, julho de 2012, 2ª reimpressão, 2015

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