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CRIMINALIDADE, SOCIEDADE,

VIOLÊNCIA E CONTROLE SOCIAL

CAPÍTULO 2 – CONTROLE SOCIAL E


SELETIVIDADE PENAL: QUAL O PAPEL DAS
CIÊNCIAS?
Ronaldo Félix Moreira Júnior

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Introdução
O processo de criminalização simbólica – como processo de tipificação de condutas sem qualquer respaldo
científico ou constitucional, normalmente baseado no clamor público – também tem se mostrado solidificado na
sociedade, ao lado da naturalização da desigualdade e preconceitos. Com a fragmentação e divisão social em
grupos, muitos preconceitos são forjados e naturalizado da mesma forma como a certos grupos são atribuídos o
caráter da periculosidade. Preste atenção ao nosso redor. Percebe que há grupos sobre os quais recai certo
rótulo de periculosidade? Moradores de favelas, imigrantes, etc. Há certo discurso propagado em relação aos
aspectos negativos e supostamente perigosos dessas pessoas.
As crises econômicas, nas últimas décadas, como um dos riscos apontados por Ulrich Beck (1986), têm gerado na
população sentimentos como incerteza e desordem, o que afeta diretamente o chamado controle social informal,
responsável por tecer determinadas regras de convivência em comunidade. Dessa forma, faz nascer e ser
estimulado um maior policiamento de fronteiras sociais, formando categorias preconceituosas. Isso acaba por
refletir não somente na atuação estatal seletiva, como também na própria dinâmica das cidades. Diante deste
contexto, é importante questionar “qual a relação entre o crescimento das cidades e o aumento da criminalidade
e segregação?” e “como isso afeta nossa vida cotidiana?”
A primeira parte desse capítulo trata justamente da questão existente entre cidade, criminalidade e democracia.
O termo “democracia disjuntiva” é de extrema importância para o entendimento da sociedade no período atual.
Em seguida, você irá entender a importância das várias áreas das ciências sociais no estudo da sociedade e
criminalidade. As disciplinas focadas nesse momento são a sociologia, a antropologia e a ciência política.
Ainda em relação à interdisciplinaridade – analisada como a união de duas ou mais disciplinas para um objetivo
comum, enquanto transdisciplinaridade diz respeito ao conhecimento ser, por si, sem fronteiras científicas –, a
terceira parte do capítulo diz respeito às áreas da saúde e seu papel no presente estudo, tendo como base a
relação existente entre o tema e à psicologia, em especial estudos da psicanálise. Indaga-se, nesse momento: “as
áreas da saúde podem contribuir no estudo a respeito da criminalidade?” Por fim, o estudo das diferentes
disciplinas apontadas serve como estrutura da análise específica da seletividade penal e da atuação policial.
Acompanhe a partir de agora!

2.1 Controle e Cultura no Brasil da década de 1990


As últimas décadas foram marcadas por mudanças consideráveis na sociedade como um todo, notadamente no
ocidente. O que se conhece como globalização alterou, de formas muitas vezes irreversíveis, costumes e hábitos
dos indivíduos e também a própria forma como muitos Estados Nacionais encaram suas próprias políticas
públicas. Na atualidade, vivencia-se um aumento exponencial de fluxos, sejam eles de capitais, de informação, ou
mesmo de pessoas. Há uma dinâmica de modificação nas cidades. O fluxo de capitais normalmente é
acompanhado de um fluxo de indivíduos que, ávidos por sua parte dos lucros, deixam suas cidades, o campo e
até mesmo outros países em busca de uma oportunidade.

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Figura 1 - O fluxo de informação, produtos e capitais se inserem na lógica do consumo, alterando drasticamente
costumes e hábitos.
Fonte: Lissandra Melo, Shutterstock, 2018.

Todos esses fluxos e mobilidades geram uma alteração nas cidades. Aumenta-se a demanda pelo consumo
(menciona-se, em especial, o consumo de drogas lícitas ou ilícitas), por consequência também se fortalece o
tráfico – que se utiliza de muitas dessas pessoas que simplesmente buscam uma oportunidade. Emerge também
o trabalho informal e, não menos importante, também se fortalece o controle penal, mas não somente isso.
A própria arquitetura das cidades, de certa forma, acompanhará essas mudanças. O medo e a insegurança geram
um maior número de condomínios fechados (horizontais ou verticais) e de arquitetura hostil e, assim, nasce
mais uma forma de segregação.

2.1.1 Dinâmica, democracia e cidades


Um aumento considerável de crimes violentos ocorreu nas cidades brasileiras nas décadas de 1980 e 1990
(PERES; SANTOS, 2005). Não somente é necessário compreender a razão da violência, mas se torna urgente
apontar uma relação entre criminalidade, democracia e espaço urbano, algo trazido por obras como “Cidade de
Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo” (2000), escrito pela antropóloga Teresa Caldeira.

Para ressaltar a relação entre o crescimento das cidades, a riqueza


e a violência, Adorno (2015) traz o estudo do sociólogo Cláudio
Beato, coordenador ­geral do Centro de Estudos de Criminalidade e
Segurança Pública (CRISP) da Universidade de Minas Gerais. Em
análise feita na década de 1990, foi provado que as taxas de
homicídios eram mais baixas em municípios mais pobres de Minas

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Gerais, e mais altas nas cidades onde havia maior circulação da
riqueza.

VOCÊ SABIA?
Diversas pesquisas foram elaboradas para se mensurar a desigualdade social em cidades do
Brasil para que os governos pudessem embasar a elaboração de suas políticas públicas. A
cidade de São Paulo apresenta um dos maiores índices de desigualdade, sendo que a própria
expectativa de vida na cidade possui diferenças em relação a certos locais. Enquanto em Jardim
Paulista há uma expectativa de vida de 79 anos, em Jardim Ângela, na zona sul da cidade a
expectativa é de 55 anos. No que diz respeito à educação infantil, a espera por vagas em
creches pode chegar, nas zonas mais pobres, a 441 dias (GOMES, 2017).

Clique na interação a seguir para ler sobre a opinião de Caldeira (2000) sobre a reprodução da criminalização
dos pobres. Acompanhe.
Caldeira (2000) salienta que a reprodução da criminalização dos pobres, o desrespeito aos seus direitos e a
dificuldade para determinados grupos carentes da sociedade em acessar à justiça são elementos que corroboram
para o aumento da criminalidade.
Para esse fim, também estão relacionados elementos ligados ao processo de urbanização, como a migração,
industrialização, pobreza e analfabetismo. Há também um aumento do termo em relação à instituição policial ao
mesmo tempo em que o Poder Judiciário deixa de ser considerado um recurso confiável para solucionar conflitos
– sendo essa atuação também uma das marcas da disjunção democrática.
Nesse sentido, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016) indica que 59% da população possui receio em
ser alvo de violência policial. Essa indignação em relação à atuação policial, contudo, é seletiva, tendo em vista
que uma parcela da população, apesar de recear a atuação violenta contra ela ou contra o grupo da qual faz
parte, acaba por aprovar essa ação autoritária – e até mesmo ilegal – contra determinados grupos de indivíduos.
Pode-se concluir, em relação à segregação urbana, enclaves fortificados e o espaço público, que as formas de
relacionamento urbano também têm se transformado e passado por significativas mudanças, entre elas, uma
proximidade espacial cada vez maior entre grupos heterogêneos que, por outro lado, estão cada vez mais
separados socialmente. Os mencionados enclaves, conforme Caldeira (2000), são uma das principais formas de
ilustrar essa nova regra de segregação, justamente por representar o medo do crime e da violência por aqueles
que se sentem ameaçado pelas diversas mudanças na sociedade e que, assim, preferem deixar de lado espaços
públicos de livre acesso e circulação para viverem enclausurados com seus iguais, tendo um contato com outras
classes sociais apenas em eventuais relações de servidão, como segurança privada, serviços domésticos etc.

2.1.2 Cidades e tráfico de drogas: uma análise sob a ótica da criminologia


feminista
Conforme mencionado, a grande concentração de pessoas, a aceleração da vida na contemporaneidade e a lógica
do consumo, entre outros fatores, acabam por criar uma maior demanda por drogas lícitas e ilícitas. O tráfico,
por sua vez, vale-se de um grande contingente de indivíduos pobres e desempregados para compor sua
estrutura.
Toda essa lógica do surgimento e crescimento do tráfico nas grandes cidades possui um efeito peculiar no que
diz respeito às mulheres inseridas. Uma coleta de dados realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos
e Cidadania (Universidade do Extremo Sul Catarinense) realizada com 35 mulheres do Presídio Santa Augusta

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diz respeito às mulheres inseridas. Uma coleta de dados realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos
e Cidadania (Universidade do Extremo Sul Catarinense) realizada com 35 mulheres do Presídio Santa Augusta
(CORTINA, 2015) constatou que 65% das entrevistadas foram presas por crimes relacionados ao tráfico de
drogas. Dessas, um total de 77% possuía histórico de abuso de drogas em algum momento da vida; 66% não
tinha emprego formal no momento da prisão; 60% possuía baixo grau de escolaridade; e 91% possuía filhos ou
filhas. Uma análise interessante e que corrobora com os dados do Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN) que informa que o tráfico de drogas soma um total de 62% das condenações de mulheres no Brasil.

VOCÊ SABIA?
Apesar de a média do aprisionamento feminino compor um total de 62% das condenações no
Brasil, essa proporção é muito maior em locais de fronteira e nos que estão inseridos na “rota
do tráfico”. Os maiores índices de aprisionamento de mulheres por tráfico de drogas, segundo
o DEPEN, estão nos seguintes estados: Rio Grande do Sul (89%); Roraima (89%); Mato Grosso
(82%); Mato Grosso do Sul (77%); Rondônia (77%); Amazonas (75%); São Paulo (69%); e
Espírito Santo (68%) (CORTINA, 2015).

Apesar da criminalização e o número crescente de prisões, não há redução efetiva do tráfico, pelo contrário, ele
tem se tornado cada vez mais crescente, tendo em vista a crescente demanda pelas substâncias vendidas. Tem-
se, portanto, um aumento do número de práticas delituosas devido ao lucro, que potencializa a prática de um
comércio considerado de alto risco (CORTINA, 2015).
Como já tratado, a carência de emprego, a necessidade de ganhos rápidos e de consumo são alguns fatores que
levam ao angariamento de indivíduos para a composição das “fileiras” do tráfico, mas a lógica para a participação
feminina é ainda mais complexa.
Comumente se fala que a crescente participação feminina no tráfico diz respeito à influência exercida por
companheiros ou familiares já envolvidos, mas essa explicação é superficial, não abarcando todos os casos.
Muitas mulheres que se envolvem com o tráfico de drogas por uma espécie de busca de poder e respeito, uma
espécie de status, mas ainda assim, as relações discriminatórias de gênero também as atingem, tendo em vista
que a elas são destinadas, neste ramo, atividades consideradas secundárias e inferiorizadas, reproduzindo
papéis ou tarefas associadas ao feminino, como limpeza, embalagem, ou pequenas vendas (CORTINA, 2015).
A maior parte, contudo, dos dados coletados com mulheres em situação prisional (CORTINA, 2015) apontam que
o principal motivo para o envolvimento com o crime de tráfico é a dificuldade de inserção no mercado de
trabalho lícito e formal, somado com a dificuldade de sustento de seus filhos ou filhas, tendo em vista o número
crescente de famílias monoparentais.

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Quadro 1 - Os dados básicos sobre o encarceramento feminino no Brasil (2014-2016) são um indicativo para as
precárias condições das detentas no sistema penitenciário brasileiro.
Fonte: BRASIL, 2016.

Essa informação corrobora com a hipótese de que no geral o objetivo de participação no tráfico é, em geral,
motivado por fatores econômicos e também com a hipótese sustentada por Adorno (2015) de que a
criminalidade (em especial o tráfico) tende a crescer em locais onde há circulação de capitais e indivíduos, muito
embora as oportunidades de empregos formais sejam escassas.

2.2 Interdisciplinaridade e Ciências sociais


Tráfico de drogas, sua ligação com a criminalidade em geral, bem como a relação existente entre modernidade,
fluxos e mobilidades são fenômenos complexos. Uma análise desses acontecimentos por meio de apenas uma
disciplina conseguiria abordar apenas aspectos superficiais e provavelmente incorreria em equívocos em
qualquer tentativa de aprofundamento. Por isso se nota que o estudo sobre a sociedade, violência e
criminalidade não é algo exclusivo da criminologia, de modo que o tema é abordado com precisão por diversas
áreas do conhecimento. A própria criminologia, como já foi visto, não é uma ciência una, tendo sido formado pela
união entre diferentes áreas do saber. Tem-se, com isso, a importância da interdisciplinaridade – como processo
de vinculação entre duas ou mais disciplinas que abordam determinado tema – para o estudo desses assuntos
complexos. Acompanhe a seguir!

2.2.1 As Ciências Sociais


O que se pode considerar como ciência, ou conhecimento científico, é algo correspondente ao século XVII, com o
surgimento de sólidos métodos de investigação. Entretanto, a ciência desse período se refere, principalmente, às
ciências naturais e exatas. O caráter científico do estudo da sociedade surgiu apenas anos depois, no século XIX.
Considera-se como Ciências Sociais (MELLO, et. al., 2014) o conjunto de saberes relacionados às seguintes
disciplinas: Antropologia, Sociologia e Ciência Política, justamente por estudarem fenômenos semelhantes,
resultantes da vida em sociedade. Apesar disso, determinados autores compreendem que esse grupo deve ser
ampliado para abordar disciplinas como: Psicologia, Etnologia, Geografia Humana, Economia, Administração e
Ciências Jurídicas. Entretanto, a maioria dos autores prefere a primeira divisão, sendo que outras disciplinas
(como as Ciências Jurídicas) acabam por ficar no contexto de Ciências Sociais Aplicadas.

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Quadro 2 - Conceitos básicos das disciplinas que formam os pilares das Ciências Sociais, indispensáveis para o
estudo não apenas da criminalidade e violência.
Fonte: MELLO, et. al., 2014, p. 18.

As relações estabelecidas pelos indivíduos dentro de uma sociedade são o principal objeto de estudo das
Ciências Sociais. Essas relações certamente não obedecem a características objetivas, pois resultam de valores,
costumes e representações histórico-culturais de um determinado grupo. Portanto, não se pode dizer que as
Ciências Sociais são como as Ciências Naturais, tendo em vista que a última lida com fenômenos distintos
relacionados à biologia, física ou química.
Roberto Da Matta, antropólogo brasileiro, trata muito bem das principais relações e controvérsias relacionadas
entre as Ciências Sociais e Naturais, conforme pode ser visto a seguir (MELLO, et. al., 2014). Clique para ver.

Eventos isoláveis são objeto das Ciências naturais. São fenômenos recorrentes e sincrônicos, podendo ser
analisados, isolados e reproduzidos dentro de determinadas condições de controle em um laboratório.

São características dos objetos das Ciências Naturais: 1) simplicidade; 2) sincronia; 3) repetitividade. Com efeito,
o teste de uma certa teoria pode ser feito por distintos observadores em locais diversos, desde que asseguradas
certas condições de objetividade.

A complexidade é a principal característica dos objetos das Ciências Humanas, tendo em vista que não é fácil

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A complexidade é a principal característica dos objetos das Ciências Humanas, tendo em vista que não é fácil
isolar causas e motivações exclusivas.

Há uma relação invertida no que diz respeito às Ciências Naturais e Ciências Humanas, pois nas Ciências naturais
os fenômenos podem ser percebidos, divididos e classificados objetivamente. No caso das Ciências Sociais, os
eventos podem ocorrer em ambientes diferenciados, tendo em vista que a sociedade é um laboratório. Um ato
pode ter seu significado mudado de acordo com o ator ou com as relações existentes em um dado momento.

CASO
Um dos autores mais importantes para a sociologia clássica, Karl Marx tem causado muita
polêmica e isso não é um fato recente. Diante do crescimento e alteração estrutural do
capitalismo (do capitalismo industrial para o capitalismo globalizado e informacional) e do
fracasso da União Soviética ainda é possível se falar em contribuição marxista para as Ciências
Sociais? Certamente. Além do fato da União Soviética não ter sido propriamente socialista (mas
com um modo de produção típico de um capitalismo estatal burocrático) e de Marx ter
mencionado que o socialismo seria capaz de triunfar somente em escala global, a relação de
Marx com a polícia continua válida nos dias atuais. Para o autor, o capitalismo avança sempre
por um processo de destruição criativa. Novas forças destroem estruturas antigas em um
conflituoso processo, mas necessário para que o sistema de produção possa se manter. Tem-se
como exemplo a indústria do entretenimento. O MP3 tornou o CD dispensável e atualmente o
streaming fez com que o download entrasse em desuso. Novos negócios por meio dessas
tecnologias surgiram (Deezer, Spotify), mas o antigo modelo de negócio da música centrado
nas gravadoras saiu prejudicado. (MELLO et. al., 2014).

Conclui-se pela impossibilidade de enquadrar as Ciências Sociais nos quadros rígidos pertencentes às outras
ciências, tendo em vista suas peculiaridades relacionadas ao objeto de estudo. É necessário ressaltar que, apesar
de não ser possível comportar métodos ou técnicas rígidas e rigorosas como nas Ciências naturais, isso não
significa que não há métodos no campo social ou que eles não possuam certo grau de rigor. Mello (2014) ainda
salienta que o próprio pesquisador deve ser considerado no contexto no qual os fenômenos se apresentam,
tendo em vista que também faz parte do objeto que investiga.

2.2.2 Ciências sociais, segurança e violência


A violência e sua repercussão nas políticas de segurança pública é um tema recorrente não apenas para a
sociologia, mas também para as Ciências Sociais em geral. Como um tema intrinsicamente ligado à sociedade, é
indispensável que se faça uma análise com bases sociológicas ou antropológicas.
Autores como Bauman, no campo sociológico, são imprescindíveis para a análise da modernidade e de como,
com o processo de globalização, o mundo inteiro tem sofrido mudanças e criado conflitos, conforme já abordado.
Como visto na análise de Teresa Caldeira, a antropologia é responsável por apontar cirurgicamente dados que
devem ser analisados primeiramente em aspectos locais. Da mesma forma, Alba Zaluar, em “A Máquina e a
Revolta” (1985), realiza uma precisa análise sobre pobreza e seus conceitos, tendo como laboratório o conjunto
habitacional Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Há um estudo direto sobre a vida dos moradores do complexo,
bem como sua vivência e relação com violência, religião, arte etc. Esse tipo de análise é indispensável para a
compreensão do fenômeno, que jamais poderia ficar presa a uma visão superficial.

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Figura 2 - Estudos antropológicos fazem uma análise diretamente na fonte de muitos conflitos na sociedade
brasileira.
Fonte: Donatas Dabravolskas, Shutterstock, 2018.

Clique na interação a seguir para saber mais sobre a importância da Ciência Política neste contexto.
A Ciência Política, por sua vez, tem a importante função de analisar o papel dos órgãos de poder no que diz
respeito às políticas públicas e a atuação geral do Estado, além de estudar, entre outros objetos, as organizações
e os processos políticos de uma sociedade e instituições, como corporações e entidades religiosas, que se
relacionam com o Estado. Quando se fala em violência estatal, análises clássicas como de Carl Schmitt se tornam
essenciais, pois trabalham com a dicotomia “amigo-inimigo”, um dos alicerces da constituição de um Estado.
Para haver a existência do espaço político é preciso que exista oposição e conflito (DIETER, 2009). O que pode
ser entendido dessa análise é que esse inimigo não é algo existente naturalmente (como já visto, não se trata de
uma entidade natural, mas construída),ele é colocado como uma figura escolhida pelo Estado para que este
consiga se autoafirmar, sem estar necessariamente ligado a uma rivalidade previamente existente em relação a
esse Estado, ainda que ela possa existir de alguma forma, mesmo que internamente naquele Estado.
Isso pode ser notado ao afirmar Schmitt que o inimigo não pode ser comparado a um adversário em geral.
Também não pode ser considerado inimigo o adversário privado a quem se nutre sentimentos de desafeto.
Inimigo será apenas um conjunto de pessoas em um eventual combate, segundo uma possibilidade real desse
acontecimento. O inimigo é o inimigo público, pois tudo o que se refere a um grupo semelhante de pessoas, como
um povo, se torna público (SCHMITT, 2008).
Hoje não há mais o endereço certo para o inimigo, isso facilita sua identificação em qualquer etnia, religião,
classe social, grupo político ou mesmo território, seja ele no interior ou no exterior do estado. Esse ponto muito
interessa ao estudo dos conflitos e da violência de uma maneira geral e pode muito bem explicar determinados
aspectos de uma seletividade presente na atuação das políticas públicas de segurança do Estado brasileiro.

Importante também mencionar que a declaração de um inimigo (como a “guerra às drogas”) é algo que pode

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Importante também mencionar que a declaração de um inimigo (como a “guerra às drogas”) é algo que pode
ensejar na decretação de normas violadoras de direitos – tem-se, como exemplo as intervenções das Forças
armadas – que apesar de atingirem primeiro sempre uma camada mais pobre da sociedade, acaba por legitimar
um verdadeiro Estado de Exceção capaz de colocar em risco todo um Estado Democrático.

VOCÊ QUER LER?


“Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo” (2000), é uma indispensável
obra de antropologia escrita por Teresa Pires Caldeira. O livro se baseia em depoimentos de
moradores de diferentes bairros da cidade de são Paulo que foram colhidos entre os anos de
1989 e 1991. A tese defendida pela obra é de que ocorre no Brasil o que se compreende como
“democracia disjuntiva”, marcado pela expansão da cidadania política e por uma
deslegitimação da cidadania civil, criando uma noção de espaço público com características de
fragmentação e segregação.

É importante mencionar que a citada autora realiza um apontamento em relação ao fim de um período de
ditadura militar e à chegada de um Estado considerado democrático. Não obstante, pilares indispensáveis à
democracia, tais como: liberdade; igualdade; tolerância e respeito às diferenças, não encontraram disseminação
na sociedade, sendo substituídos por características como: fragmentação; separação sólida nos espaços sociais e
urbanos; e pela valorização da desigualdade.
Nasce uma noção social sobre o crime, ou seja, uma ideia introjetada na sociedade embasada pelo senso comum
sobre o que – ou quem – é o criminoso. Trata-se de um discurso classificatório maniqueísta que distingue de
maneira nítida o criminoso do “cidadão de bem”, sendo que muitas vezes o migrante, o indivíduo que chega à
cidade em época recente, é visto pelo menos como um “criminoso em potencial”. Isso fica claro na obra
mencionada quando uma senhora de classe média, descendente de imigrantes italianos, refere-se a migrantes
recentes, como os nordestinos, como sendo culpados do aumento da violência e criminalidade em seu bairro
(CALDEIRA, 2000).
Por meio dessa percepção ocorre a criação de um círculo que se inicia com a ideia do medo que é trabalhado e
reproduzido na sociedade e gera a violência que, combatida com aparatos violentos, acaba, em verdade, por se
ampliar, gerando ainda mais medo e insegurança.

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Figura 3 - A grande mobilidade de pessoas na atuallidade escapa ao controle estatal contemporâneo.
Fonte: Komar, Shutterstock, 2018.

Interessa o fato de que na entrevista mencionada tanto a entrevistada (descendente de imigrantes italianos),
quanto o indivíduo objeto de sua análise (o nordestino) compartilham uma condição de proximidade (a condição
de migrante), mas nesse caso, o migrante mais recente, diferente do já estabelecido, pertence a outra classe
social, sendo analisado como um distante, um criminoso. Esse mesmo tipo de pensamento pode ser visto quando
a obra analisa moradores de bairros de elite e suas opiniões a respeito dos moradores de regiões periféricas da
mesma cidade.
No que diz respeito às cidades em si, é importante mencionar a existência e o papel dos enclaves fortificados
como um dos pilares da representação da democracia disjuntiva.
Os enclaves fortificados, conforme Caldeira (2000), são propriedades privadas de uso coletivo, enfatizando
valores do que é privado e restrito, enquanto desvaloriza, ao mesmo tempo, o que é público e aborto na cidade.
Tais enclaves são demarcados e isolados por grandes muros, grades e enfeitados por todo tipo de sistema de
segurança, como cercas elétricas e câmeras. Voltam-se, normalmente, para o próprio interior, rejeitando
explicitamente a vida pública das ruas.
O controle desses complexos é feito por meio de guardas (normalmente armados) e por sistemas de segurança –
importantes no papel de imposição de regras de inclusão e exclusão. Ressalta-se que com o crescimento das
cidades (e por consequência dos condomínios fechados), os indivíduos, que guardam características por
determinadas áreas, passam a se relacionar em um círculo de vida muitas vezes marcados pela vigilância mútua,
uma característica importante do controle social informal exercido por membros de uma mesma comunidade.
Esses enclaves são uma das formas de representação dessa democracia disjuntiva justamente por ser também
uma forma de se expressar a lógica de exclusão que existe na sociedade brasileira, exclusão que convive com
características de democracia nessa sociedade.

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2.3 Interdisciplinaridade: Ciências sociais e Ciências da
saúde
Neste tópico, trataremos da influência das Ciências da Saúde no que diz respeito ao estudo da Segurança Pública.
O tema é amplo, a partir do momento em que se discute tanto a questão da saúde do profissional dessa área – de
grande importância no planejamento operacional e estratégico das instituições relacionadas à segurança –
quanto a contribuição dessas ciências para o estudo da criminalidade em si.
Muito embora os conceitos trazidos pela Medicina durante a vigência do pensamento criminológico positivista,
como frenologia, tenham sido deixados de lado, não se pode ignorar a contribuição dessa área em outras
disciplinas, como na Criminalística, no auxílio à elucidação de uma atividade criminosa. Interessa-nos, nesse
momento, mencionar a contribuição da psicanálise para os estudos criminológicos, mas é preciso que alguns
conceitos sejam explicados, que traremos a seguir.

2.3.1 A relação entre Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria


A Psicologia, em geral, é classificada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
como uma disciplina atinente às Ciências Humanas, como Sociologia, História e Filosofia. Entretanto, o próprio
Conselho Nacional de Saúde (em sua Resolução 218/97) reconhece o papel do psicólogo como uma atuação
profissional da área da saúde, tendo em vista que seu objetivo é, em essência, a promoção de qualidade de vida
ao ser humano. Muito embora as três disciplinas (Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria) tratem, em última análise,
da saúde mental dos indivíduos, há fundamentais distinções entre elas.
A Psicologia e a Psiquiatria foram fundadas com diferentes fundamentos e preocupações. Enquanto a Psicologia
tem como objeto de estudo a busca do funcionamento da consciência, a Psiquiatria tem lidado com a construção
de um saber sobre a loucura e transtornos mentais. Conforme Bock, Furtado e Teixeira (1999), o
desenvolvimento da Psicologia permitiu que se compreendesse os processos psicológicos, ao passo que a
Psiquiatria foi responsável por sistematizar o conhecimento e aspectos do funcionamento psicológico que se
desviam de um padrão compreendido de normalidade.

VOCÊ SABIA?
A gênese psicanalítica veio a partir de Sigmund Freud (1856-1939). Pela utilização de
elementos observáveis ao seu redor como base para a criação de suas teorias, Freud tentou
compreender e explicar fenômenos como a histeria, a neurose e a psicose. Freud também
cunhou a noção do inconsciente, uma importante peça da mente humana, utilizada ao lado de
formulações como o complexo de Édipo (MEZAN, 1996).

A Psicanálise, desenvolvida originalmente por Sigmund Freud, trata da interpretação de conteúdos inconscientes
de um indivíduo por meio de suas ações, falas e de seu imaginário. Nesse contexto de análise do homem como
sujeito do inconsciente, não poderia essa disciplina deixar de trazer explicações para o comportamento
desviante (SERRA, 2015).

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2.3.2 A Psicanálise, o criminoso e teoria da sociedade punitiva
Conforme Serra (2015), os diversos saberes que formam o conhecimento criminológico tratam de uma redução
da tensão que existente entre as ideias de delinquente e vítima, na tentativa de relativizar o contraste entre seus
termos. A Psicanálise, por outro lado, ao adentrar no campo da criminalidade, faz aproximações entre as ideias
de homem “de bem” e homem “criminoso”, fazendo com que não haja especificamente uma oposição entre esses
conceitos.
Não somente isso, as diversas teorias da Psicanálise não se limitam a explicar simplesmente o comportamento
desviante, mas pode se voltar, inclusive, para a pena e a necessidade de sua aplicação, incluindo a sociedade
dentro do próprio objeto de estudo.
A orientação da pesquisa psicanalítica no que diz respeito ao comportamento desviante foi desenvolvida por
Freud entre as décadas de 1920 e 1930 – desenhando o que poderia ser classificado como a gênese de uma
criminologia psicanalítica.
Para que se possa compreender com mais clareza a teoria psicanalítica em relação à criminalidade e à sociedade
punitiva, é preciso entender a representação da personalidade por meio de suas instâncias: Id, ego e superego.
Conforme Serra (2015), o Id pode ser visto como a instância inferior, que é comandada pelo princípio do prazer.
Trata-se da área responsável pela impulsividade. O superego, instância superior, é o que se pode compreender
como uma espécie de consciência, atuando como um regulador das pulsões instintivas do Id. Desenvolve-se na
personalidade por volta dos cinco anos de idade e fornece as noções de obrigações e valores.
O ego, por sua vez, é a instância intermediária. Seu funcionamento é pela mediação entre os desejos do Id e a
censura feita pelo superego. Trata-se da ponderação.
Após essas considerações, é possível tecer uma teoria psicanalítica da criminalidade, baseado nas teorias
psicanalíticas de doutrina freudiana. Serra (2015) aponta os três princípios fundamentais dessa criminologia
psicanalítica. Clique nos itens a seguir.


O homem é por natureza antissocial.

O crime é consequência de uma domesticação sem êxito de uma espécie de animal selvagem.

A personalidade é moldada durante a infância do indivíduo, fase fundamental para a determinação
de um futuro comportamento desviante ou conforme.

Rejeita-se, por meio desses parâmetros, a ideia de um delinquente nato porque, conforme Freud, todos os
indivíduos entram na vida com instintos imorais e antissociais, que podem ou não ser conditos na fase adulta. O
crime existe, portanto, para a satisfação simbólica dos instintos libidinosos. O caráter inibitório do superego, de
uma forma que o ego se submete às exigências do Id.
Ressalta-se, contudo, a existência de uma criminalidade neuroticamente condicionada onde é possível perceber a
existência de processos neuróticos que flexibilizam a dependência do ego em relação ao superego, ou até mesmo
o iludem em relação aos reais motivos, ocultando-lhe o sentido do ato. Veja na interação a seguir alguns
exemplos de Serra (2015):
O delito-sintoma também chamado de delito-obsessão, em que o ato aparece de maneira incompreensível e
irresistível na consciência (cleptomania).
O crime que é provocado por mecanismos patológicos de sofrimento, tanto de sofrimento real como de
sofrimento imaginado (o agente projeta sobre a vítima, por meio de um processo psicótico, seus instintos
recalcados, como que em legítima defesa ao entender-se prejudicado).
O crime “legitimado” por racionalizações, que se trata da situação em que se invoca algum tipo de razão aceitável
para a prática do ato, o que faz com que o ego se desvie da vigilância do superego.

O crime por sentimento de culpa, o maior exemplo da criminalidade neurótica, que se manifesta pelo desejo

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O crime por sentimento de culpa, o maior exemplo da criminalidade neurótica, que se manifesta pelo desejo
inconsciente de punição, não somente pelo crime, mas pela culpa proveniente dos desejos proibidos em geral. A
culpa, nesse caso, precede o crime e a sanção representa o alívio.
Não obstante as ideias relacionadas ao indivíduo e seu desejo inconsciente de delinquir (ou ser punido por esse
ato), as teorias psicanalíticas também conseguem desenhar um estudo a respeito do desejo punitivo de uma
sociedade, tendo como base as análises freudianas em “Totem e Tabu” (1913) para compreender as razões e a
estrutura por trás da vontade social em infligir pena aos indivíduos que cometem algum tipo de ato desviante.
Segundo a análise da sociedade punitiva, os impulsos por algum tipo de repressão ao “delinquente” existem em
decorrência de um medo “capacidade de contágio” do crime. A punição, nesse caso, será capaz de proporcionar
àquele responsável pela aplicação da pena de uma oportunidade de cometer similar crime e a descarregar seus
próprios sentimentos reprimidos de culpa.

VOCÊ O CONHECE?
Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) foi um dos maiores psicanalistas franceses. Após
estudar medicina, especializou-se em Psiquiatria, cursando doutorado no ano de 1932. Apesar
de ter tido Freud como uma de suas grandes bases, Lacan deu início a uma corrente
psicanalítica própria, chamada de Lacanismo. No que diz respeito às teorias psicanalíticas da
criminalidade, os pesquisadores lacanianos argumentam que o crime é a busca de uma
inscrição social desejada por todo sujeito (SERRA, 2015).

Serra (2015) explica que, para Freud, há uma tentação por parte dos membros de um grupo em imitar aquele o
violador do tabu, com o objetivo de também liberar seus instintos reprimidos, o que explica a estrutura punitiva
de “solidariedade” (ou seja, de atuação mútua) e, consequentemente, a representação da capacidade contagiante
do tabu. É pressuposto da reação punitiva a presença de impulsos similares àquele proibido nos demais
indivíduos pertencentes ao grupo. A pena, portanto, sendo anterior ao crime, representa um reforço do ego
social. Conclui-se que onde houver algum tipo de proibição, haverá também algum desejo impedido.

2.4 Seletividade penal e atuação policial


Até aqui, temos estudado a importância das mais variadas ciências no que diz respeito ao tema do controle social
e da seletividade penal. Mas, como já falamos, é impossível que apenas uma disciplina – tal como o Direito ou
mesmo a Sociologia – seja capaz, por si apenas, de abordar os diferentes aspectos desses complexos fenômenos.
Também é de grande importância demonstrar como os diferentes campos científicos possuem diferentes formas
de análise de um mesmo fenômeno, como o tema criminalidade recém abordado na perspectiva das teorias
psicanalíticas.
O tópico atual tem como objetivo tratar de um importante tema da matéria como um todo – a seletividade penal
e atuação judicial –, mas para tanto faz uso de uma importante disciplina para as Ciências Humanas: a Filosofia.

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Figura 4 - A filosofia, desde a antiguidade, tem o objetivo de gerar reflexões e críticas.
Fonte: Lefteris Papaulakis, Shutterstock, 2018.

Por meio da análise de autores como Giorgio Agamben e Jessé de Souza, é possível elucidar e aprofundar ainda
mais nesse importante tema, compreendo as raízes do que se compreende por subcidadania e o descaso estatal
relativo a determinados grupos da sociedade. Faz-se, também, nesse momento, uma alusão e correlação entre a
literatura distópica e a violação a direitos pelo Estado, como forma de ilustrar o problema mencionado.

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2.4.1 A análise da sociedade por meio da Distopia
Utopia tem sido um termo recorrente nas discussões cotidianas, mas também na filosofia política – é um termo
que traz uma noção de progresso. Distopia, por outro lado, é um termo que foi utilizado pela primeira vez por
John Stuart Mill e Greg Webber em 1868 para tratar de sociedades hipotéticas em condições piores do que as da
própria realidade. Por que se falar em distopia? Moreira e Moreira Júnior (2017) entendem que a reflexão por
meio do estudo da distopia também pode ajudar compreender fenômenos como a violência e subcidadania –
tendo em vista que são temas comuns em obras distópicas, ao mesmo tempo que também são temas
preocupantes na sociedade contemporânea. A sociedade constantemente vivencia uma “barbárie civilizada”
ilustrada por atos considerados violentos realizados por Estados para o exercício de seu poder punitivo. A
distopia se mostra, portanto, como um eficaz meio de estudar a realidade por meio do irreal.

Figura 5 - A vigilância é uma característica marcante das obras distópica, como “1984”, de George Orwell.
Fonte: martin33, Shutterstock, 2018.

A literatura distópica, em geral, pode ser analisada como um aviso de incêndio. Chama-se a atenção para
fenômenos em crescimento por meio da arte para que seja criada uma reflexão.
Para Moreira e Moreira Júnior (2017), obras clássicas sobre distopias, como “Admirável Mundo Novo” (HUXLEY,
1932) ou “1984” (ORWELL, 1949) carregam similaridades entre si e com a própria realidade ao abordarem
temas como os apontados na interação a seguir.

Processos de indiferenciação subjetiva.

Massificação cultural.

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Massificação cultural.

Vigilância total de indivíduos ou grupo de indivíduos.


Sendo intrinsicamente antiautoritárias, insubmissas e com viés fortemente crítico, tais obras problematizam
possíveis eventos perigosos caso certas tendências atuais acabem por se tornar vencedoras (os autores
mencionam como exemplo o crescimento de ideias fascistas no ocidente).

2.4.2 Ação estatal e violação à igualdade e dignidade humana


Uma das principais marcas do cenário político brasileiro é a manutenção exagerada da hierarquia e a
naturalização da desigualdade. Jessé Souza (2006) compreende que nas sociedades periféricas a desigualdade
social toma grandes proporções. Por existir esse tipo de desigualdade endêmica, forma-se a noção de
subcidadania, uma qualidade designada a certos grupos de indivíduos que não possuem os requisitos
considerados básicos para uma plena cidadania e nem atendem aos desejos da classe dominante.
Essa subcidadania é constantemente representada em obras distópicas, que tratam de uma realidade similar à
vida real, sendo que os aspectos ruins são sempre maximizados. Em muitas dessas obras o rótulo de subcidadão
não recai sobre os seres humanos, mas sobre seres diversos.
Esse campo da literatura e do cinema permite essas conjecturas porque a partir delas se torna possível
compreender melhor a própria realidade. Exemplos podem ser muito apontados como “Androides sonham com
ovelhas elétricas?” (DICK, 1968), ou sua adaptação cinematográfica “Blade Runner” (SCOTT, 1982).

VOCÊ QUER VER?


Blade Runner – O caçador de Androides, de Ridler Scott, (1982) é, além de ser um dos maiores
exemplos do cinema em relação à ficção científica distópica, um excelente filme sobre a própria
condição do ser humano. O enredo trata de uma corporação que desenvolve no século XXI
humanos sintéticos que são utilizados para trabalhos forçados e um policial persegue um
grupo desses replicantes renegados. De maneira extraordinária, o filme consegue abordar
temas como preconceito, desigualdade e subcidadania.

Nas obras mencionadas existe o estigma e o rótulo de subcidadão nos chamados “replicantes”. Não existe uma
sanção aos indivíduos responsáveis pelo extermínio desses indivíduos. Há uma semelhança com a ideia de Homo
Sacer trazida por Giorgio Agamben (concebida do direito romano) vista na figura da pessoa cuja sua própria
condição é desqualificada de uma forma que sua vida é apartada de qualquer conjunto de direitos. A vida do
Homo Sacer está submissa ao poder do soberano, ela pode ser lesada e morta, sem, entretanto, ser sacrificada
(AGAMBEN, 2002).
Essa figura de excluída pode ser associada à realidade brasileira e à violência estatal praticada pelas forças
policiais contra os integrantes das regiões de periferia. Há uma violência que antecede à violência física e ocorre
ainda no processo de determinação de condutas criminosas. O poder punitivo trabalha com o direcionamento de
sua punição a um grupo de indivíduos. Normalmente em uma sociedade capitalista (focada, atualmente, no
consumo), o aparato jurídico punitivista incide nos grupos fora desse contexto. A atuação policial ocorre em
momento posterior.

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VOCÊ QUER LER?
“Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua” (1995), do autor Giorgio Agamben, é uma
incrível obra filosófica que aborda temas como o Poder Soberano e o Homo Sacer (o indivíduo
que pode ser morto por qualquer pessoa sem que esta seja, por sua vez, punida), abordado
como o corpo do cidadão que acaba por ocupar uma posição importante dentro das estratégias
e ditames de um poder estatal, existindo, assim, uma verdadeira biopolítica. A condição de
matabilidade de determinados indivíduos trazida pelo autor serve como parâmetro de reflexão
sobre as violentas políticas públicas de segurança públicas aplicadas atualmente.

Menciona-se novamente a criminalidade como um status social que é atribuído a certa pessoa pelos detentores
do poder de definição. O indivíduo rotulado reveste-se de uma condição: a de violador de uma norma.
É necessário ainda mencionar que hoje equivocadamente se imagina um país composto por uma população
homogênea, dona de alguma identidade-padrão. Conforme o autor, as origens dos diversos grupos humanos que
formaram a sociedade são rapidamente esquecidas.

Síntese
Após o fim deste capítulo foi possível aprofundar ainda mais em relação ao tema da segurança pública e
violência. A função do capítulo consiste justamente em apontar as perspectivas de diferentes campos do
conhecimento em relação ao tema principal. No que diz respeito à antropologia, foi mostrado o processo de
segregação espacial e política existente no Brasil, bem como também foi abordado com precisão a visão
psicanalítica em relação ao criminoso (e a vontade inconsciente de delinquir) e em relação à própria sociedade
punitiva (em conter os anseios desviantes). Você também aprendeu sobre os aspectos filosóficos de autores
como Jessé de Souza e Giorgio Agamben para ilustrar a condição de matabilidade do indivíduo excluído na
sociedade brasileira.
Neste capítulo, você teve a oportunidade de:
• relacionar as transformações metropolitanas com o processo de segregação espacial e política;
• compreender a importância das ciências sociais no desenvolvimento da criminologia e no estudo da
criminalidade;
• compreender a importância das demais ciências no estudo da criminalidade e da sociedade punitiva.
• avaliar a importância da comunicação entre ciências sociais e ciências da saúde no contexto da
segurança pública;
• analisar de maneira crítica a relação entre atuação policial e seletividade penal.

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