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lÉo vaz

o burrico lÚcio
(baseado na versão atribuída a luciano de samosata)
introdução de gomes freire
segunda edição
ediÇÃo saraiva 8Í0 paulo este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas de sar
aiva s. a. LIVREIROS-EDITORSS à rua sampson, 265, são paulo (brasil), em setembro de
1964, ano do jubileu de ouro da organização saraiva.
a
difÍcil simplicidade
GOMES FREIRE
a frase, com que léo vaz dá início à sua introdução ao "burrico lúcio", poderia muito adequ
mente servir de começo a este prefácio, contanto que, nela, fosse feita a substituição d
e um nome. como numa errata, onde se lê anatole france, deveria estar léo vaz. coloc
ando, em vez do nome do criador do abade coignard, o do revelador do professor j
eremias, a aludida frase ficaria assim: "imagine-se um léo vaz que vivesse num dos
primeiros séculos da presente era, com a mente igualmente recheada de toda a cult
ura científica, filosófica e literária do tempo; de juízo crítico acerado e malicioso; de í
dole humorística e risonha a que não escapasse nenhum ridículo dos homens e das suas i
nstituições e superstições; e ainda de um espírito desabusado e irreverente, que encarasse
os sistemas religiosos e filosóficos como outros tantos sintomas da perplexidade
do homem diante do universo e de si mesmo; e que, divertindo-se imensamente com
tudo isso, buscasse divertir ou advertir também aos outros — e ter-se-á uma aproximada
idéia de luciano". podemos, pois, como num esquema, figurar uma nobre linha literár
ia, desenvolvida no tempo e no espaço, composta de muitas datas, nomes de lugares
e de homens... sintetizando muito, fazendo omissões cruéis, dou uma leve idéia dessa l
inha imaginária, a representar uma genealogia espiritual: luciano, de samosata; an
atole france, de paris; léo vaz, de capivari; o itinerário da civilização ocidental... p
arafraseando gilberto amado, podíamos dizer que as ruas de paris são rios que vêm da g
récia, e atravessam capivari... na verdade, as influências da cultura francesa, de o
rigem greco-latina, no brasil, e especialmente em são paulo, ainda estão reclamando
um estudo sério e minucioso. desde os fins do século xviii até à segunda década deste sécul
, foram elas intensas, e geralmente benéficas. a frança preparou não apenas o liberali
smo idealista dos varões plutarquianos da primeira república; corrigiu também rusticid
ades de fazenda e burgo provinciano, e pode orgulhar-se de ter "contribuído para a
florescência da sociedade paulista característica, fina, polida, que durou até 30, qu
ando a onda do novo-riquismo estapafúrdio
começou a se envolver em tudo. mesmo quando um inovador barbaramente americano, os
vald de andrade — aliás freqüentador desses salões francófilos a que nos referimos — resolv
u iniciar um movimento cultural genuinamente brasileiro, por sinal que em reação ao
francesismo dessorado que dominava o ambiente nacional depois da primeira grande
guerra — fê-lo na praça clichy — "umbigo do mundo". e quando esse mesmo artista tempest
uoso e algumas vezes profético apresentou a síntese das suas buscas pelos caminhos d
o brasil e do universo — a antropofagia — também não seria difícil perceber sinais do húmus
montaigneano nas raízes da arrojada concepção americana. que dirão, portanto, os chauvin
istas azedos, desejosos até de proibir o trânsito ingênuo e generoso dó nórdico papai noel
? que dirão os patriotas ardentes, ufanistas, incapazes de perceber o quanto devem
os aos outros povos, por falta de conhecimentos, egocentrismo feroz ou estreitez
a mental? contado, as lições da literatura, que nos ensinam cotidianamente senão a sim
patia para com todos os povos, a nossa solidariedade com os antípodas, não tão distant
es e alheios quanto o julgam os ensimesmados?! que seria a inglaterra se não tives
se recebido o influxo refinador, espiritualizador, das culturas francesa e itali
ana? que seria da latinidade sem a absorção do patrimônio cultural grego? e a grécia mes
ma o que não deveu a outros povos? as criaturas que passeiam pelas ruas de capivar
i não se lembram decerto que um ângulo da rua é grego, que, numa janela, há marca de rom
a, que uma grade será porventura gaulesa, que a ventarola da vitrina é nipônica, que a
sobremesa do restaurante é síria, e que o cartaz do cinema anuncia uma fita america
na sobre uma cocote russa exercendo a espionagem na china. mas não nos percamos na
digressão: tudo isto veio a talho de foice a propósito de léo vaz. a ventarola japone
sa, o doce sírio e a fita americana não desfiguram capivari, porque a cidade tem a s
ua própria fisionomia, a sua própria alma. também léo vaz, homem de influências gregas, fr
ancesas, etc, é antes de tudo um homem autêntico de capivari. tantos séculos de tão dive
rsas culturas não conseguiram modificar o homem. ele absorveu luciano, absorveu an
atole, e continuou cada vez mais rijamente léo vaz. esta extraordinária obra, que a
coleção jabuti lança — "o burrico
lúcio" — novela grega que o escritor paulista conheceu através do francês, resultado de
tantos anos de artesanato literário, é mais do que qualquer outra coisa, a obra de u
m caipira, a obra de um caboclo das margens do rio capivari. principalmente pela
malícia. nosso caboclo aparece malicioso até nas anedotas de cornélio pires. ante o e
ntusiasmo da gente da metrópole, o "pobre branco" do nosso interior mostra-se rese
rvado, desconfiado, céptico. esta atitude particular de um tipo, encontra-se algum
as vezes genericamente elevada, dignificada, no mundo do pensamento. há uma malícia
universal, há uma "desconfiança" universal, há um cepticismo universal. tiremos, no en
tanto, a estas palavras malsinadas — malícia, desconfiança, cepticismo — o significado c
orrentio, porque elas representam atitudes humanas muito nobres e austeras, embo
ra à primeira vista não o pareçam. sem esta malícia, desconfiança ou cepticismo, poderíamos
contar hoje com a cultura humanística? sem a cultura humanística, como obtermos uma
estrutura para a democracia? esta linha imaginária, que começamos a apontar em samos
ata, é uma linha eterna. pode também ser entrevista na bordéus de montaigne, e na fern
ey de voltaire. bem-aventurados os que não creram no primeiro instante, bem-aventu
rados os que fizeram perguntas; os frutos de sua inquietação é que alimentam hoje a no
ssa fé. "o burrico lúcio" é um romance que agradará às crianças, mas que encantará principa
nte aos adultos. referimo-nos aos adultos de espírito verdadeiramente adulto, pois
há muitos adultos que perdem a graça e a imaginação infantis sem conseguirem a lucidez
dos adultos... ou das crianças. ficam num estado intermediário desprezível, algo assim
como o limbo: nem céu, nem inferno, nada. as pessoas adultas realmente adultas ja
mais considerarão "o burrico lúcio" um livro próprio apenas para crianças, porque sabem
que nem luciano, nem swift, nem cervantes, nem anatole, e nem defoe, tiveram a i
ntenção de escrever para crianças. apenas foram eles artistas de tal pujança que consegu
iram dar realidade às suas alegorias, e por isto as crianças se extasiaram ante os s
eus mundos fantásticos. mas liliput não foi criado para a alegria das crianças. existi
u principalmente para a meditação triste dos homens. o domínio da linguagem em léo vaz é tã
perfeito e absoluto, que
consegue ele um poder de visualização incrível. o leitor vê os acontecimentos burlescos
no seu romance, como no cinema vê as cenas dos desenhos animados de walt disney. q
uando lúcio se metamorfoseia em burrico, e quando depois, de burrico, consegue, em
virtude do salutar efeito das pétalas de rosa, o retorno à forma humana, tudo é visto
em detalhe, com uma viveza impressionante. estilisticamente, o livro é simples. tão
simples que os plumitivos pensarão ao lê-lo: "qualquer pessoa pode escrever assim".
façam, no entanto, uma tentativa, e descobrirão logo a dificuldade, ou antes a impo
ssibilidade de um pastiche. nenhum escritor moço conseguirá escrever de maneira assi
m tão simples, porque o que léo vaz conseguiu foi a difícil simplicidade que só a experiên
cia e aplicação de muitos anos concedem. É preciso que uma vida se consagre inteiramen
te à literatura — e mais o natural talento — para chegar à realização estilística e literár
"o burrico lúcio". "o burrico lúcio" é, a nosso ver, como "o memorial de aires" a con
quista de um ideal literário, a chegada à utopia dos escritores, o remate de uma obr
a, feita com seriedade e desvelo. o alpinista das letras léo vaz alcançou o píncaro so
nhado; já se acha, pois, perto das nuvens, no ar limpo, rarefeito. a perfeição é simplif
icação. isto explica a curteza das frases, o pequeno tamanho do romance. só os jovens
são extensos, por falta de experiência. encontramos, numa velha revista, a transcrição d
e uma carta de salvador de mendonça a machado de assis, a propósito do lançamento do "
memorial de aires", da qual citaremos algumas frases, porque ilustra bem nossos
argumentos: "...sim fizeste a tua obra-prima... a obra, porém, é tão simples, tão fácil, tã
natural, que haverá por aí muita gente que a julgue ao alcance de qualquer pena. es
ta facilidade aparente da feitura é realmente o selo da verdadeira obra de arte".
e mais adiante: "a velhice desdenhosa, a inexperiência presumida, algum crítico madr
aço ou escrevinhador furabolos são bem capazes de supor que o seu tentâmen pode ser re
petido ao bel-prazer de qualquer deles. pois experimentem e hão dever como o "simp
lesmente simples" torna-se simplesmente impossível para quem em língua portuguesa qu
iser hoje fazer obra respondente a tua". estas palavras de salvador de mendonça a
machado de assis com
respeito ao "memorial de aires" podem ser hoje aplicadas a léo vaz, com referência a
o "burrico lúcio". em todo o caso, os candidatos à glória, os gênios incompreendidos, po
dem fazer uma tentativa... mãos a obra, portanto!
luciano de samosata
luciano
imagine-se um anatole france que vivesse num dos primeiros séculos da presente era
, com a mente igualmente recheada de toda cultura, científica, filosófica e literária
do tempo; de juízo crítico acerado e malicioso; de índole humorística e risonha, a que não
escapasse nenhum ridículo dos homens e das suas instituições e superstições; e ainda de u
m espírito desabusado e irreverente, que encarasse os sistemas religiosos e filosófi
cos como outros tantos sintomas da perplexidade do homem diante do universo e de
si mesmo; e que, divertindo-se imensamente com tudo isso, buscasse divertir ou
advertir também aos outros; — e ter-se-á provavelmente uma aproximada idéia de luciano.
samosata, capital da província de comagena, na síria helenística, então recentemente inc
orporada ao império romano, foi onde nasceu esse tardio rebento do gênio e da cultur
a da velha grécia. de pais pobres, e tão obscuros que sequer os nomes se lhes conhec
em, assim que rematou seus primários estudos viu-se o pequeno luciano metido na te
nda de um escultor, seu tio, a fim de aprender dele o mesmo ofício. aí a sua carreir
a começou mal: a primeira coisa que fez foi quebrar uma placa de mármore que o paren
te o encarregara de polir; e como seqüência de semelhante estréia, recebeu do tio uma
surra mestra, que para sempre lhe esfriou o entusiasmo que acaso tivesse pela es
cultura. e foi em soluços e com o traseiro a arder das correadas, que o rapazinho
voltou a casa e foi contar tudo à mamãe. esta, que pelo feito bem merece a simpatia
de quantos, em criança, já se viram em tais assados, consolou-o com toda ternura, en
cartou nos xingos e nas pragas que o filho lhe endereçava ao irmão, e persuadiu ao m
arido que não mais mandasse o menino a semelhante escola. excelente, amável e admiráve
l criatura! e eis aí como, deixando o escopro e o camartelo, de tão desastrado agour
o, ficou luciano livre e desimpedido para dedicar-se à carreira
que realmente o cativava, que era a das letras e da filosofia. e como eram alice
rce de tal currículo a retórica e a dialética, logo entrou ele a pleitar, com auspicio
so êxito, nos tribunais, para isso fixando-se, ao que parece, na então florescente a
ntioquia. mas a profissão de advogado não era o seu ideal. as chicanas, as tricas, a
s mentiras, a impudência, os berros, as lutas, as trapaças, a que recorriam normalme
nte os seus colegas, logo o enojaram; e ele deixou o foro e pôs-se a correr mundo.
adotando a prática dos sofistas, muito em voga ainda em sua época, começou a viajar,
dando aqui e ali improvisadas conferências, que pela graça, finura e originalidade,
logo lhe atraíram numerosa e generosa audiência. poderá, à primeira vista, causar admiração
que já naquele tempo andassem oradores, ou conferencistas, de cidade em cidade, da
ndo tais recitas. mas atentando-se a que outro meio mais fácil não havia, de comunic
ação do pensamento, senão pela palavra oral, ver-se-á que isso devia ser uma prática natur
alíssima: o livro, veículo da palavra escrita, então penosamente manuscrito em custoso
pergaminho, constituía por isso mesmo verdadeiro objeto de luxo, raro e caro, que
dificilmente podia chegar às mãos de qualquer um; de sorte que as turbas gregas, ou
helenizadas, onde quer que soubessem de um orador capaz de as entreter com arte
, subtileza, ou novidade, a ele corriam, afinadas e escorvadas por mais de cinco
séculos de intenso treino cultural. ora, todos os dotes capazes de seduzir e cati
var tão arguto e traquejado auditório encontravam-se excepcionalmente reunidos em lu
ciano. os escritos que dele nos chegaram através de quase dois mil anos de avanços,
recuos, paradas, desvios e extravios na marcha da civilização, e de mudanças, alterações,
perversões e obliterações no gosto e no critério das apreciações estéticas, têm ainda hoje
abor e frescura, e causam um tal deleite intelectual, que não admira que a divulgação
deles, pela boca do autor, perante auditórios da grécia, de roma, da macedônia, da ana
tólia, das gálias, de alexandria, e outras partes, proporcionasse a luciano a grande
fortuna, e maior fama, que a seu respeito a história consigna. e que nunca foi co
nfundido com os sofistas vulgares, sem talento e sem caráter, que vagamundeavam po
r todos os quadrantes do império,
provam-no as amizades ilustres que mereceu, entre as quais a de marco aurélio, que
o presenteou com honrosa prebenda na administração do egito, em que ele veio a morr
er, em avançada idade, rodeado do respeito e da admiração dos contemporâneos. da obra de
luciano, autênticas ou a ele veementemente atribuídas, constam escritos de vários gêner
os: contos, novelas, tratados (que se chamariam, hoje, ensaios) paródias, sátiras, a
maior parte em forma de diálogos à maneira e no estilo dos de platão. em todos sente
o leitor a mesma veia cômica, a mesma graça, a mesma ironia, o mesmo senso da medida
e das proporções, a mesma independência de espírito, e, no dizer dos entendidos, a mesm
a simplicidade e pureza de estilo, que os realçam ao nível dos do fundador da academ
ia. muitos deles foram, em várias épocas, tomados por modelo por outros autores, de
maior ou menor renome, como rabelais, cervantes, cyrano de bergerac, boccacio, s
wift, etc. e nos primeiros séculos do cristianismo não hesitaram os padres e doutore
s da igreja em servir-se das sátiras do samosatense aos deuses e lendas da mitolog
ia, para minar com elas os alicerces, ainda renitentes, do paganismo. *** a nove
la "lúcio, ou o asno", cuja autoria alguns críticos negam seja de luciano, mas a mai
oria lhe atribui com mui persuasivos argumentos, não será, evidentemente, de sua ori
ginal inventiva. tratase de uma velha história que, como os "contos milesianos", c
orria de boca em boca, e que muitos autores não se dedignaram de tomar como tema d
e uma narrativa própria, vestindo-a com o estilo peculiar de cada um, e dando-lhe
esta ou aquela intenção, segundo o seu temperamento ou doutrina. assim, consta que u
ma versão muito vizinha da de luciano se deve a certo lúcio de patras, escritor e po
eta pouco anterior ao samosatense; mas bem mais conhecida é a que corre sob o nome
de "asno de ouro", do seu contemporâneo apuleio, que se serviu do reconto para fi
ns doutrinários e apologéticos, como platonizante sacerdote e apóstolo, por sinal que
bem cacetinho, que era. É portanto muito verossímil que também luciano dela se aprovei
tasse, contando-a a seu modo, pois o "asno" que lhe é atribuído
conserva, mesmo através de traduções em línguas modernas, todo característico sabor das pr
oduções indiscutidamente lucianescas. na feitura da presente adaptação do "burrico lúcio",
serviu de texto a reputada tradução francesa que consta das "obras completas de luc
iano", de eugène talbot, cuja "introdução" também principalmente serviu para a redação dest
notícia.
o burrico lÚcio
uma surpresa
atÉ por volta dos dezessete anos eu sempre residira com a família em patras, onde éram
os gente influente e respeitada. nem pensava que jamais houvesse de deixar essa
boa terra, quando um belo dia meu pai me chamou e disse: — lúcio, escolha o cavalo q
ue prefere, avise o milon, que o acompanhará na viagem, e preparem-se para partir
amanhã cedo para hipata... se não for alguém cobrá-lo pessoalmente, aquele malandro do h
iparco não me paga o que deve... e foi assim que certa madrugada, com os alforges
bem providos de roupas e comidas, eu e o criado milon saímos da acaia para a tessáli
a. para quem, como eu, nunca andara mais de cem estádios longe de casa, tal viagem
parecia uma verdadeira aventura: enfim eu ia correr mundo, com criado e cavalos
por minha conta e risco, guiando-me pela minha própria cabeça, como gente grande...
e mal sabia que de fato ia ao encontro das mais extraordinárias e estranhas avent
uras que alguém tenha passado nesta vida.
primeira viagem caminhamos vários dias, pousando em estalagens, ou, quando não encon
trávamos nenhuma por perto, deitandonos nos arreios, à beira da estrada, sob a luz a
miga das estrelas. até que afinal, ao nos aproximar da cidade que buscávamos, fomos,
certa tarde, alcançados por outros viajantes que para ali também rumavam. e como di
ssessem que eram moradores dali mesmo, perguntei se conheciam por acaso um tal h
iparco, com quem, a mandado de meu pai, vinha eu tratar certo negócio. — hiparco? — di
sse um deles, voltando-se para os companheiros. — ora vejam vocês que pergunta! have
rá em hipata quem não conheça semelhante bisca? se o conheço!... È um sujeito riquíssimo, m
s tão avarento, que podendo morar num palácio, com cinqüenta escravos e um ecônomo, vive
, com a mulher, e uma única servente, numa das casas mais modestas da cidade. aí pas
sa os dias e grande parte das noites a contar e recontar o seu dinheiro e a vigi
ar o esconderijo dele, de medo que o furtem... nisso íamos entrando na cidade; e l
ogo o mesmo viajante que me informara, mostrando-me um sobradinho velho e deslei
xado, acrescentou: — É aí que mora o tal que vocês procuram. sejam felizes, e até outra vi
sta!... — muito obrigado! — disse eu. — e que hermes lhes seja propício... um dos viajan
tes, porém, deixando que os outros se afastassem, chegou junto de mim e falou baix
inho: — olhe, rapaz, muito cuidado com a gente que mora
nessa casa! o velho é exatamente como disse o meu amigo: um usurário que prefere mor
rer a separar-se de uma dracma. mas a mulher ainda é pior: é uma feiticeira conhecid
a, a cujas artes e malícias pouca gente escapa. portanto, toda cautela é pouca! assi
m nos despedimos; e logo me encaminhei à casa indicada, a cuja porta apeamos e bat
emos. uma criadinha, por sinal que bem bonita, veio abrir, e perguntou quem éramos
e o que queríamos. disse-lhe que era lúcio, filho de demétrio, de patras, de quem tra
zia recado para o patrão acerca de umas contas. a moça fechou de novo a porta, dizen
do que ia avisar o velho. pouco depois torna a abrir e convida-nos a entrar, que
o patrão está ansioso por me ver.
hiparco e sua mulher entramos. e enquanto milon levava os animais à estrebaria, su
bi atrás da criada ao primeiro andar, onde logo me achei diante de um velhote, de
ar simpático e acolhedor, reclinado num diva, juntamente com a mulher. era a hora
da merenda, e diante deles havia uma mesa muito bem sortida, mostrando que a ref
eição fora fina e farta, ao contrário das informações que momentos antes me haviam dado. a
única coisa, porém, que em parte abonava a má-língua dos informantes, era o jeito da mu
lher de hiparco: magra, encolhida, de cabelos ralos, duros e escorridos, olhos p
equeninos e fugidios, ladeando um narigão recurvo e agudo que nem bico de coruja,
a tal criatura dava a impressão de ser mesmo uma bruxa das mais autênticas e perigos
as deste mundo. mas o velho não me deu tempo para mais demorado exame: limpando os
lábios e os bigodes nas costas da mão, assim que me viu começou a declamar: — salve, ó ma
is ditoso de todos os jovens, tu que tens por pai o ilustre demétrio, o melhor dos
gregos, excelente amigo, que nunca saiu do meu coração e a quem sou grato por me ha
ver enviado o filho amado, cuja luminosa presença traz honra e lustre a esta minha
modesta mas honrada choupana...! e durante largo tempo continuou na mesma areng
a, dando-me a entender que bem sabia por que viera eu ali, a mandado de meu pai.
que ficasse porém sossegado, que depois de descansar alguns dias, como seu hóspede
querido, havia de regressar com a minha missão cabalmente
cumprida. havia muito — dizia ele — aguardava ensejo de remeter a patras os siclos q
ue a meu pai devia; mas não confiando em quaisquer mensageiros, tinha vindo protel
ando o envio muito contra o seu desejo e costume. que mandaria sacrificar um cab
rito a apoio, por ter procedido assim, porquanto daí resultará o ficar conhecendo tão
digno herdeiro de seu velho e dileto amigo, cuja presença naquela mísera choupana, e
tc. etc. etc. durante todo esse discurso eu não tirara os olhos da mesa, pois com
o tardio da hora e a fadiga da viagem, estava, como se costuma dizer, com o estôma
go nas costas. até que o velhote, não podendo disfarçar por mais tempo, disse a palest
ra, a criadinha, que me chegasse um sofá; e acenando que me recostasse, convidou-m
e a jantar. matada a fome, a mesma palestra arrecadou a minha bagagem e conduziu
-me à alcova do sótão, que no dizer de hiparco era o quarto melhor da casa e por isso
reservado aos hóspedes mais dignos. quanto ao pagem, que o encaminhasse a uma esta
lagem da vizinhança, com a recomendação de que o tratassem como se fora da sua própria c
asa. e desejando-me uma boa-noite, pediu licença para recolher-se, com a mulher, a
os seus próprios aposentos.
conjeturas a sÓs no sótão, enquanto me despia e lavava para a dormida, não pude deixar d
e dizer comigo mesmo: — a mulher talvez seja tudo quanto dizem: não tem cara de boa
coisa; durante todo o tempo que estive na sala não abriu o bico de suindara e não fe
z mais do que devorar-me com os olhos, como se eu fosse um apetitoso pardal. mas
o homem não me parece assim tão mau como o pintam... tão amável, tão pródigo de elogios e
e cortesias! ou será tudo plano para me engambelar, pois decerto não pretende devolv
er a meu pai um único óbolo da dívida... fosse lá o que fosse, a verdade é que eu estava m
uito contente com a situação; porque além de ser a primeira vez que andava sozinho por
terras distantes, como um verdadeiro homem, sempre tivera o mais vivo desejo de
ver de perto aquela província, famosa não só pelos seus queijos, como pelos seus brux
os e feiticeiros, cujas façanhas e poderes ocultos eram comentados e temidos nos m
ais remotos recantos de toda a grécia. e eis que por um acaso singular viera eu ca
ir justamente no ninho de uma bruxa! ali, com jeito, discrição e tato, por certo ter
ia ocasião de ver coisas mirabolantes, para contar aos meus embasbacados conterrâneo
s, quando voltasse. com esses pensamentos estirei-me no leito e imediatamente do
rmi como uma pedra.
encontro inesperado ao dia seguinte, muito cedo, pulei da cama, vesti-me, e saí a
dar um giro e assuntar a cidade. sempre preocupado com a idéia de conhecer um feit
iceiro ou taumaturgo, que me fizesse presenciar a alguma das muitas maravilhas q
ue a fama lhes atribui, umas de arrepiar o cabelo, outras de derrubar o queixo,
lá fui perambulando à toa, pelas praças de hipata, a mirar uma coisa e outra, como tod
o basbaque que pela primeira vez visita terra estranha. vagueia daqui, vagueia d
ali, eis senão quando sou abordado por um escravo, que me diz, de um jeito seu tan
to ou quanto misterioso: — senhor, se é lúcio, filho de demétrio, de patras, minha dona
pede-lhe que vá falar com ela assim que possa. surpreendido com o caso, pois me su
punha absolutamente desconhecido em cidade tão remota, olhei para uma liteira que
estava parada a poucos passos, na rua, e nela vi uma mulher, que parecia ainda j
ovem e amistosamente me sorria. devia ser pessoa de elevada posição, e de não menos al
tas posses, pois além de quatro escravos que levavam aos ombros o palanquim, vinha
acompanhada de outros, de ambos os sexos, uns abrindo caminho, adiante, outros
guardando a retaguarda, e duas rente a liteira, de um e outro lado. aproximei-me
, e antes que pudesse abrir a boca, a simpática senhora foi dizendo: — vejo que não me
enganei: é mesmo o meu sobrinho lúcio...
e diante do meu ar espantado: — É isso mesmo: eu, andrômaca, e clóris, tua mãe, somos prim
as, em grau distante é certo; mas queremo-nos como irmãs. há muito que não nos vemos, ma
s a tua fisionomia não me deixou dúvida: tens os mesmos traços, os mesmos olhos, a mes
ma boca que ela; não havia engano possível.. . mas que bons ventos te trouxeram a hi
pata? onde é que estás hospedado? por que tua mãe não te encaminhou para minha casa? dec
erto não sabe que resido aqui... mas diz-me onde apeas-te, que eu lá mando buscar a
bagagem... agradeci, como era meu dever, todos aqueles oferecimentos, que tinham
bem a marca de sinceros e espontâneos; manifestei minha satisfação em encontrar e tra
var relações com tão boa tia, a quem minha mãe sempre se referia com afeto e bondade; ma
s fiz-lhe ver que, tendo sido tão bem acolhido por hiparco, não convinha fosse procu
rar outra hospedagem, com o que ele bem podia melindrar-se. prometi porém fazer-lh
e visitas freqüentes. que se soubesse que tinha na cidade uma tia tão bonita e simpáti
ca, decerto não teria ido bater a outra porta.
uma tia linda, por uma feia bruxa
tudo o que dissera era, no fundo, verdadeiro; mas o que eu não queria, de fato, er
a deixar o ninho da bruxa, onde esperava poder assistir a alguma sessão de alta fe
itiçaria, o que nem por sombras poderia esperar que acontecesse na casa de tia and
rômaca. — tem razão — concordou ela, afinal. — faz pouco tempo que vim residir aqui, e ain
da não tive meio de avisar disso tua mãe... mas como é mesmo a tua história: então estás ab
letado em casa de hiparco, o usurário? — estou, a negócios de meu pai... mas por que t
odo mundo aqui se espanta de semelhante hospedagem? será a primeira vez que ele re
cebe alguém?... — É que... ele propriamente, não será tão ruim como dizem: é um agiota que
anca o couro e o cabelo de quem lhe cai nas unhas; mas gosta da boa vida, e cons
ta que em sua casa come do bom e do melhor, embora sejam festins solitários, sem c
onvivas, nem músicos, nem flores, nem dançarinas. pelo menos é o que ouço dizer... mas a
mulher é que é o perigo! jovem, belo e simpático como és, se ela se lembra de se enamor
ar de ti, estás perdido! não há moços que escapem de seus truques e artimanhas. e quando
não correspondem aos seus agrados, a velha coroca dizem que fica uma fera, e em t
rês tempos dá com o coitado na terra dos pés juntos. É o que tenho ouvido dizer... despe
di-me da boa tia, ponderando que talvez fossem mais as vozes do que as nozes. em
todo caso, estivesse descansada: eu teria todo cuidado, e ao primeiro sinal de
perigo da parte da horrível hospedeira, correria a pedir-lhe o seu conselho. a ver
dade é que a informação de tia andrômaca deixarame contentíssimo. pois eu, que daria tudo
por ver uma feiticeira de perto e assistir a uma bruxaria em regra, com todos ff
e rr, via-me exatamente de portas adentro com uma delas, e das mais pintadas! s
e era mesmo verdade o que diziam, seria apenas uma questão de tempo para poder sat
isfazer a minha velha e cada vez mais aguda curiosidade. mas como podia eu me ar
ranjar para apanhar uma velha feiticeira em flagrante?... nisso vem-me à mente uma
idéia luminosa: palestra! seria ela quem me iria proporcionar o desejado espetáculo
. então decidi começar a namorar, imediatamente a bela criadinha, pois ela deveria e
star a par de todos os tenebrosos segredos da patroa. e no primeiro bazar que vi
, comprei um bracelete, uns brincos, um xale de seda e um pote de cosmético; com o
que voltei, quase correndo, a casa.
revelaÇÕes de palestra durante o almoço escutei pachorrentamente as retumbantes e inte
rmináveis tiradas de hiparco. era evidente que ele tinha um plano qualquer para ir
-me enchendo os ouvidos de conversa mole, até deparar o meio mais cômodo de me devol
ver ao lar paterno de mãos vazias. mas enquanto o velho falava sem descanso nem alív
io, pus-me a observar furtivamente a mulher, a ver se descobria algum indício da t
errível fama que dela corria na cidade. como já observara na véspera, o aspecto exteri
or, o ar, as feições, o jeito, o modo de olhar, tudo nela era bem esquisito e mesmo
impressionante. as mãos pareciam garras de abutre, e os olhos e a bicanca completa
vam a sua perfeita semelhança com ave de rapina. encolhida no diva a comer, com ge
stos bruscos, e uns tiques nervosos nos ombros, mais parecia uma galinha depenad
a a ciscar no terreiro, que uma criatura humana a alimentar-se. mas não passava di
sso. todo interesse que na véspera a minha presença parecera despertar-lhe, desvanec
era: a velha nem sequer me via; tinha o olhar esquivo e vago, como se seu espírito
estivesse a mil léguas dali. assim, os perigos que tia andrômaca antevira para a mi
nha mocidade e inexperiência, nada disso parecia existir. por esse lado, pensava e
u, podia estar descansado. finda a refeição, cada qual se recolheu ao seu quarto par
a a sesta do costume. eu, porém, foi só para fingir: uma vez no sótão, deixei passar o t
empo necessário a que o casal de velhos ferrasse a sua soneca, e logo desci outra
vez, ficando no limiar da escada, atrás de uma cortina, a observar o que
na sala pudesse acontecer. não tardou que palestra aparecesse para remover os rest
os do almoço, dobrar a toalha, que guardou numa arca, e arrumar os sofás nos seus lu
gares. e quando ia retirar-se para a cozinha, sai do meu esconderijo e barrei-lh
e os passos. ela deu um gritinho de espanto, mas imediatamente pôs-se a rir, como
quem achasse a aparição a coisa mais natural do mundo. mostrando-lhe então as prendas
que trouxera do bazar, logo vi, pelo brilho dos seus olhos, que elas lhe interes
savam vivamente. — que acha? — perguntei. — lindas! — respondeu ela. — É para a sua namorad
, não? — É para você! — para mim?!... ah! menino, não gosto que caçoem comigo. por que é qu
enhor havia de me fazer um presente desses?... — por dois motivos: em primeiro lug
ar porque é muito bonita e eu estou apaixonado por você; em segundo, porque desejo q
ue você me faça um servicinho. — e que espécie de serviço será esse?... se não me vai traze
lguma complicação, estou às ordens; mas... os olhos de palestra não despregavam das jóias
que eu lhe pusera numa das mãos, enquanto com a outra ela palpava o xale com que l
he envolvera o pescoço. era evidente que eu acertara com o caminho que lhe ia dire
itinho ao coração. — qual é o serviço? — insistiu ela, visivelmente interessada no negócio.
imeiro, quero que me diga uma coisa: é verdade que
sua patroa é feiticeira? palestra, que decerto não contava com semelhante pergunta,
ficou um momento assustada e confusa, sem responder. depois, olhando para todos
os cantos da sala, a fim de ver se ninguém estaria espiando, chegou bem perto de m
im e perguntou, muito baixinho: — como é que ficou sabendo disso? — ouvi dizer, por aí.
mas então é verdade mesmo?... — verdadíssima! — sussurrou ela. — É a maior e pior bruxa de
as estas redondezas. — e o marido sabe disso? — acho que sabe muito bem; mas finge q
ue não. É outro que é bom não confiar nele. É o mais desalmado usurário que existe em toda
tessália. por uma jóia de ouro ou prata que lhe traga um necessitado, ele não dá mais q
ue a décima parte do valor; e ainda cobra um juro tão caro, que quase nunca o coitad
o pode mais resgatar o empenho. muitos têm ainda que trazer outras coisas para gar
antir os juros atrasados; e alguns se embrulham de tal modo, que acabam vendidos
em leilão, como escravos, para saciar a cobiça desse malvado. creio mesmo que ele s
e vale dos feitiços da velha para ainda conseguir clientes. com a fama que tem... —
mas, então, a patroa?... — É bruxa, sim senhor. — e você já viu alguma das bruxarias que el
faz? — se vi! de uma feita, quando o velho andou de viagem durante vários meses, a
cada lua cheia ela dava aqui mesmo, nesta sala, um dos seus festins, que o senho
r nem queira saber!... — como é que era, hein?! — imagine!... ela esperava que eu subi
sse para o sótão,
pois é lá o meu quarto quando não há hóspedes; e a coisa só começava quando ela supunha que
já estava ferrada no sono. mas eu, oh!... — e a moça puxou a pálpebra inferior direita,
com o indicador — desde os primeiros dias tinha percebido que havia alguma marosc
a pela casa: era um tal de queimar folhas secas, raízes, óleos; uma defumação da casa in
teira com galhos de arruda, de murta, e de outras plantas ainda mais fedorentas,
que a gente quase morria sufocada. mas eu, que não estava com vontade nenhuma de
dormir, quando chegava meia-noite pulava da cama, devagarinho, e vinha espreitar
detrás da cortina, exatamente como o senhor fez há pouco. e via tudo... — mas tudo o
que, criatura? — espere, rapaz! que impaciência! o melhor é subirmos ao sótão; lá podemos c
nversar à vontade. — isso!
a macumba subimos. e sentados à beira do leito, enquanto eu lhe alisava os cabelos
, palestra continuou contando: — primeiro de tudo a velha punha bem no meio da sal
a um tripé; depois acendia em cima dele um braseiro, que ela arejava com um abano
de folhas de lótus; quando as brasas estavam bem acesas, sem fazer mais fumaça, ela
ia buscar no quarto uma porção de estojos e de potes, de feitios esquisitos, e dispu
nha tudo num tamborete, ! perto; depois ia tirando das caixinhas e j dos bocais,
ora umas folhas, ora umas j raízes, ora uns pós, pretos, vermelhos ou amarelos, ora
uns líquidos também de várias cores; e à medida que ia atirando nas brasas, sucessivame
nte, cada uma daquelas drogas, e a sala ia se enchendo de uma \\ fumarada espess
a e fedida, ela ia rezando umas rezas em língua estranha, creio que egípcia... — e daí?.
.. — daí, quando a sala estava mesmo preta de fumaça, e a fedentina quase me dava vert
igem atrás da cortina, a velha começava uma espécie de dança macabra em roda do tripé, com
trejeitos horríveis do corpo e carantonhas ainda mais terríveis, tudo entremeado or
a de gritos selvagens, ora de gemidos lancinantes, como se alguém lhe estivesse en
fiando um longo punhal pela barriga a dentro... depois parava, e outra vez era a
lengalenga da reza, monótona, cadenciada, enigmática, enervante. não consegui decorar
a maior parte dessas orações, mas uma frase me ficou, que volta e meia a velha repe
tia; era assim: — "anda, polikanda, sherlokanda, sketimana méia, alep, shatanalep, s
herlonka, anda!" — e
outra vez, o horrível bailado... "depois de mais de uma hora dessa agonia, começavam
a ouvir-se, vindos como de todos os cantos da casa: do sótão, do pátio inferior, da c
ozinha, do quarto da velha, da rua, da horta, de toda parte, uns uivos horroroso
s, como se cem cães danados estivessem sendo lentamente estrangulados. nessa hora
eu quase estragava tudo, pois tremia tanto, no meu cantinho, que os dentes me doía
m de tanto baterem uns nos outros, como se eu estivesse com a terça. a velha então e
rguia os braços para o teto, contorcendo as mãos; revirava os olhos, vermelhos como
duas brasas, e numa voz rouca, que dava medo, continuava evocando: "shatan! isht
ar! adone! sherlonka!" e outros nomes, cada qual mais bárbaro, com o que os uivos
iam também crescendo e aproximando. eu estava que nem uma estátua de pedra, no meu c
anto; um suor frio corria pelo meu corpo como se estivesse saindo de uma tina de
banho; e se não fosse a vontade de ver o negócio até o fim, acho que não agüentava e me d
eixava cair desmaiada no chão. — mas, depois?... — daí, ouvi um ruído de asas do lado do q
uintal, e logo pousou no peitoril da janela um bicharoco monstruoso, meio gente,
meio águia, meio coruja: uma harpia em carne e osso! o bicho olhou para um lado,
olhou para outro, e depois saltou para o meio da sala, num pulo mole e surdo, se
m o menor ruído. mas assim que tocou o chão não era o mesmo: era uma velha, mais feia,
mais esquelética, mais desdentada, mais encardida e horrorosa ainda do que lâmia...
— do que quem?... — do que lâmia... ah! É verdade: lâmia é como se chama
nossa velha, que pelo nome não perca!
a macumba
(continuação)
mas, como ia dizendo — continuou palestra — a outra bruxa foi recebida por lâmia com t
odas as honras, como se se tratasse da mais nobre princesa: "— salve, linda cassio
péia! seja bem-vinda neste nosso ninho de amor!..." "a outra deu uma risada roufen
ha, engrolada como o grasnar de um corvo, e as duas se abraçaram e deram beijos na
s faces uma da outra, como duas pombinhas... nisso, outra vez o mesmo ruído lá fora;
mas desta feita foram duas as harpias que chegaram; e com os mesmos trejeitos e
esgares da primeira, saltaram para dentro, virando imediatamente outras tantas
megeras repugnantes. trocaram os mesmos cumprimentos e momices, e depois sentara
m-se em tamboretes, formando uma cruz, com o tripé no centro. e as quatro juntas c
omeçaram as rezas, os gritos, os gemidos, lançando de vez em quando no braseiro pita
das ou gotas das drogas dos potes e escrínios da nossa velha. com isso encheu-se d
e novo a sala de uma densa e negra fumarada, de um cheiro ainda mais intolerável.
"por fim, quando voltou o ar a clarear um pouco, a patroa foi até um canto da sala
, ergueu um ladrilho do chão, e voltou com um cofre de bronze, apertado com as dua
s mãos, contra o peito, como uma preciosidade. chegando junto das outras, abriu a
caixa e de dentro dela cada uma das bruxas tirou uma pitada de um pó vermelho que
nem zarcão, que lançaram, todas ao mesmo tempo, sobre as brasas, recitando
uma imprecação numa língua ainda mais bárbara. subiu então do braseiro, até o teto, uma lab
reda esverdeada, a cujo clarão os rostos das velhas pareciam quatro caveiras que a
cabassem de fugir do cemitério. nesse instante, alguém bateu à porta. — É o patrão, pensei
u, e agora é que vai haver coisa, quando ele der com essas quatro sujeitas em plen
a função! — mas não foi nada disso: as velhas tiraram imediatamente do seio uns frascos
cheios de óleo, untaram sofregamente o corpo com ele, e virando outra vez harpias,
saíram pela mesma janela, voando na escuridão, como um bando de morcegos. eu corri à
janela, e ainda pude ver as quatro sumindo no horizonte. atrás delas, porém, ia uma
coisa preta, um animal estranho, que cabriolava que nem bode, mas era do tamanho
pelo menos de um camelo... — e foi tudo?... — nessa noite, foi. mas eu tenho visto
outras coisas... — por exemplo?... — o que já vi mais de uma vez é a patroa transformar-
se em vampiro e sair pela janela afora, altas horas da noite. — e aonde é que ela va
i? — não sei... provavelmente vai reunir-se com as outras, na casa de alguma delas.
dizem que quando ninguém vai atrapalhar a sessão, elas atraem com suas rezas e encan
tamentos, algum belo rapaz, como o senhor; e quando ele chega, põem-se a abraçá-lo e a
beijá-lo... mas a cada beijo que dão arrancam um pedaço de pele e carne, e pela ferid
a vão chupando o sangue do coitado, até que não fica uma gota sequer nele. contudo as
bruxas não deixam que ele morra no lugar, não: com as suas artes, obrigam o moço a sai
r e ir andando, de olhos parados e corpo duro, como um boneco. até que, topando na
lgum tropeço pelo caminho, o
desgraçado cai, para nunca mais se levantar: está morto! eu não estava acreditando em
tudo que palestra ia dizendo: muita coisa devia ser inventiva de sua própria imagi
nação. mas como toda gente diz que as bruxas fazem mesmo das suas, e a minha curiosi
dade tinha aumentado enormemente, perguntei: — e quando será a próxima vez? — não sei... —
isse ela. — mas se amanhã o patrão, como é seu costume, for cear com o único amigo que tem
em hipata, outro usurário igual ou pior do que ele, é quase certo que lâmia também saia
para uma das suas festinhas... — pois se você der um jeito para eu assistir à sua tra
nsformação em harpia, os anéis, os braceletes, o xale, e outros presentes que ainda pr
etendo comprar, são seus. — não sei... — respondeu palestra. — não garanto que possa; mas v
u fazer uma forcinha...
lÂmia tambÉm sai
no outro dia hiparco declarou que ia jantar fora, e instou comigo para que fosse
com ele: — quero apresentar ao meu amigo o jovem, belo, ilustre e nobre hóspede com
que a munificência de zeus olímpico brindou o meu tugúrio modesto mas honrado... e lá v
eio a mesma ladainha de elogios descabelados, em que eu, meu pai, meus parentes,
meus conterrâneos de patras, éramos postos todos nos cornos da lua. mas debaixo daq
uele palavreado, que eu já sabia de cor, logo percebi que o convite era só para cons
tar: o homem estava era doido para que eu não aceitasse. por isso, assim que eu de
i a primeira desculpa, dizendo que não conhecia o anfitrião, nem fora por ele convid
ado, e que preferia ficar repousando aquela tarde em casa, ele logo chamou pales
tra e deu-lhe ordem que me levasse a ceia ao sótão. e invocando todos os moradores d
o empíreo, para que me proporcionassem uma noite serena e povoada de belos sonhos,
como competia a tão glorioso filho da ilustre patras, etc. etc. etc. etc, retirou
se lépido e lampeiro como quem acabasse de escapar de uma grave ameaça. e foi exatam
ente o que também se deu comigo. livre da prebenda de ir jantar na companhia de do
is sovinas, subi ao meu quarto e estirei-me na cama, ansioso por que a noite log
o chegasse, e com ela a possibilidade de ver enfim o que tanto desejava. logo de
pois, quando me foi servir a ceia no sótão, conforme a ordem de hiparco, palestra av
isou-me que
estivesse de prontidão, pois assim que acabasse de escurecer de todo ela viria bus
car-me para assistir aos tenebrosos bruxedos da patroa. com esse aviso as asas d
o tempo pareceram-me que estavam atacadas de reumatismo: as horas levavam séculos
para passar; e a todo momento eu entreabria a porta, a ver se a moça não viria subin
do. pelo pequeno postigo que havia no sótão, à guisa de janela, eu via porém que o sol já
descambara atrás dos montes, e que logo seria de uma vez noite fechada. até que afin
al, cansado da minha própria impaciência, caí num cochilo forte, do qual somente acord
ei ao sentir alguém entrar no quarto. era palestra que enfim chegava. sem acender
a lâmpada, em plena escuridão, tomou-me a mão e foi guiando-me pela escada abaixo, até a
sala; e daí, por outros cômodos da casa, até um corredor para o qual dava uma porta d
o quarto dos patrões. por uma frincha de madeira coava-se uma tênue réstia de luz, e e
u logo compreendi que dali é que eu devia espiar, se quisesse ver mesmo alguma coi
sa. mas primeiro palestra encostou o rosto à porta, e só depois de certificar-se de
que era o momento propício, me fez sinal para que fizesse o mesmo. assim, por minh
a vez, vi o que se ia passando no interior do quarto: a medonha velha estava int
eiramente nua, diante de uma lâmpada de três mechas, acesa bem no centro do paviment
o. apurando o ouvido, vi que estava recitando uma daquelas invocações secretas de qu
e tanto me falara a criadinha. passados alguns instantes, ela abriu um pequeno e
scrínio de estanho, dentro do qual havia uma meia dúzia de frascos
ordenadamente alinhados em duas fileiras. então, escandindo as sílabas de uma frase
mágica, e a cada uma batendo com o indicador no tampo de um dos frascos, sucessiva
mente, disse: — "alki kataski lix tetrax damnameneus aision!" deteve-se no pote qu
e calhara à ultima sílaba, retirou-o do cofre, pô-lo no chão ao lado da lâmpada, e continu
ou: — "bedy zaps chthon plectron sphinx knasxbi chlypes phlegmon dropis!!" destamp
ando então o frasco, dele derramou na palma da canhota um óleo grosso e cinzento, co
m o qual começou a untar o corpo, da cabeça aos pés. sempre engrolando a mesma reza em
língua estranha, de vez em quando renovava a provisão de óleo, a fim de não deixar sem
unto uma polegada que fosse, da epiderme. logo começou a metamorfose: o corpo da v
elha foi diminuindo, diminuindo, até ficar do tamanho de uma anã; ao mesmo tempo ia-
se cobrindo de penas, ao passo que os pés se transformavam em garras de gavião, os o
lhos e o nariz em bico e óculos de coruja, e finalmente os braços em um par de asas
como as de uma imensa galinhola. de sorte que dentro em pouco ela mais parecia u
m grande e estranho pássaro do que um ente humano, tal o seu horrendo e repulsivo
aspecto. nisso, dando uns grasnados rascantes, de mocho, correu aos pulinhos, em
direção à janela, e ruflando as asas e sacudindo as penas, saiu pelo espaço afora, toma
ndo uma direção que, do ponto onde eu me achava, não era possível determinar.
uma idÉia extravagante o que acabara de ver parecia-me tão extraordinário e incrível, qu
e comecei a beliscar meu próprio rosto, e os braços a fim de verificar se não estaria
dormindo e aquilo não passava de um horrível pesadelo. mas logo palestra empurrou a
porta; e entrando no quarto vimos a lâmpada, que continuava acesa, e o cofre dos mág
icos ungüentos que a velha ali deixara. então veio-me à cabeça uma idéia extravagante: est
ava em minhas mãos transformar-me também em pássaro, e ir pelos ares, atrás da velhota,
a ver o que ela e as outras estariam fazendo. que rol de coisas maravilhosas não t
eria eu, depois, para contar à boa gente de patras, quando lá voltasse! pedi portant
o a palestra que me ungisse com o conteúdo daqueles frascos, como fizera a bruxa,
pois o demônio da curiosidade me dava um desejo louco de tentar a temerária experiênci
a. a moça não queria de maneira alguma atender-me: — não senhor. nessa coisa eu não me met
o: de repente viro bruxa também; e não quero saber de histórias... — boba! quem vai vira
r ave sou eu. você não corre risco nenhum. quando a velha voltar você diz que me viu e
ntrar no quarto dela, e que depois sumi. o resto é cá comigo. . . e tanto pedi, tant
o roguei, tanto insisti que ela acabou por aceder. além disso na sua cara eu estav
a vendo que ela sentia uma curiosidade, igual à minha, de experimentar a coisa...
tomando pois um dos frascos do escrínio, e mandando
que me despisse, começou palestra a untar-me com óleo o corpo todo, enquanto ia reci
tando uma fórmula mágica, que disse pertencer ao repertório da bruxa: — gaudo stazi salp
henio casbu gorphus barbas as bulphiro aphrodizontes! e quando eu já estava bem en
lambuzado, desde os pés até a cabeça, começou também a minha muda.
fatal engano de palestra mas, ai de mim! em lugar de penas, de asas, de garras e
de bico, o que começou a aparecer no meu corpo era coisa muito diferente: um gros
so e tosco rabo foi crescendo no fim da minha coluna vertebral, com pêlos ralos e
duros, na extremidade; minha cabeça cresceu e alongou-se; minhas orelhas engrossar
am e empinaram para cima, cobertas de pêlo rude; meu, dedos e minhas unhas colaram
-se umas à. outras, nos pés e nas mãos, transformando-se em perfeitos cascos de cavalg
adura; os braços e as pernas igualmente se espessaram e alargaram, cobrindo-se de
uma pelagem curta e lisa; assim todo o resto do corpo, tudo foi tomando o feitio
de um animal muito conhecido e útil, mas que não prima, segundo a fama, por mui gra
nde inteligência ; e afinal o pescoço também se alongou e encorpou, cobrindo-se na par
te superior de uma crina cerrada e áspera, com o que ficou tristemente completa a
minha caracterização. então, querendo dar um passo para me aproximar de palestra, a fi
m de que ela me acudisse, se porventura ainda fosse tempo, perdi o equilíbrio e caí
de quatro, no chão, sentindo que essa era a postura natural que daí em diante me cum
pria. e achando-me entre a lâmpada e a parede, constatei com horror, pela minha so
mbra, que no muro se estampava, que me transformara, não em águia, nem sequer em cor
vo ou abutre, como pretendia, mas num autêntico e lamentabilíssimo jumento!! diante
disso, tentei censurar amargamente a palestra seu sórdido procedimento, pois estav
a certo de que a desavergonhada criadinha trocara, de propósito, os frascos
da bruxa, a fim de me pregar aquela peça indigna e humilhante. eu, que a tratara tão
bem, e a presenteara, era então aquela a paga que merecia!.. . mas em vez de me s
aírem da boca essas e outras palavras de magoado ressentimento, o que os meus própri
os ouvidos escutaram foi um zurro rouco e triste, que a mim mesmo me cortou o co
ração. então, estendendo a beiçorra diante do rosto da rapariga, sacudi vagarosamente a
minha asinina cabeça, numa lamentação muda, mas a meu sentir, bastante expressiva. pal
estra, que desde que começara a minha transformação ficara visivelmente confusa e afli
ta, compreendeu decerto os meus sentimentos; e levando as mãos ao rosto desandou a
chorar como uma criança. e entre lágrimas e soluços pôs-se a examinar os frascos do cof
re, exclamando em seguida: — ah! desgraçada de mim! infeliz, desastrada, estúpida, imb
ecil, idiota, sarambé, tantã!!... antes nunca tivesse nascido, para não vir agora come
ter um erro tão cretino destes! veja: com a pressa, peguei um frasco errado, e tod
a nossa desgraça veio daí?... que calamidade! de fato, investigando também o escrínio, l
ogo percebi que fora exatamente esse o engano: em vez de tirar o frasco que a ve
lha usara, ela tomara outro, que estava a par dele, mas cujo conteúdo não era de vir
tude harpiana, mas asnática! e a rapariga continuava a lamentar-se e a prantear e
a berrar como uma bezerra desmamada. isso me comovia um pouco e desfazia minhas
primeiras suspeitas acerca das suas verdadeiras intenções. mas a verdade é que tais lágr
imas e gemidos bem pouco contribuíam para me melhorar a situação: com lágrimas ou sem el
as, eu continuava burro, o
que como condição zoológica, na minha opinião, deixava assaz a desejar... de repente, po
rém, batendo com a palma da mão na testa, a moça exclamou: — que dois tontos que nós somos
! não tenha susto, querido: agora é que lembrei o remédio para isto: pétalas de rosas!..
. e como eu fizesse com o olhar e as orelhas um ar de interrogação, ela explicou: — as
sim que você comer um punhado de folhas de rosas, imediatamente desaparece o burro
e você volta a ser gente, como antes... embora a notícia me fosse das mais alvissar
eiras, não deixei de notar a mudança de tratamento que palestra adotara; antes de vi
rar burro eu era "o senhor", "meu senhor", etc; agora, de quatro patas e a abana
r o rabo, passara a "você", como qualquer lacaio... e confie alguém em mulheres!...
mas enquanto eu fazia essas reflexões, por sinal que bem fúteis em semelhantes circu
nstâncias, palestra prosseguia: — tenha um pouco de paciência, portanto, e assim que c
omeçar a clarear o dia, corro ao mercado, compro uma boa braçada de rosas, e logo vo
cê ficará desemburrado... e dizendo isso, de lágrimas já secas e certo sorriso malicioso
nos lábios, ela começou a passar carinhosamente as mãos pelas minhas orelhas, pelo me
u lombo, e pela cola, como quem, no fundo, estivesse achando certa graça na minha
jumêntica figura! mas mulher é isso mesmo...
minha primeira noite de burrÓide nÃo havia dúvida: todo meu aspecto exterior, feições, ges
tos e meneios eram de burrico. e embora no quarto não houvesse nenhum espelho assa
z amplo para me ver de corpo inteiro, eu bem sentia, por dentro e por fora do co
rpo, que a minha pessoa física estava completamente azemolada. quanto ao espírito, p
orém, eu continuava gente: pensava, sentia, olhava, ouvia e entendia, exatamente c
omo o lúcio de meia hora antes! só o que não podia era falar: cada vez que tentava fazê-
lo, em vez das frases e palavras que pretendia emitir, o que me saía era a fala ca
racterística dos burros: — hi-han! hi-han! hi-han! hi-han!... han!... han!... no mei
o dessas e outras tristonhas constatações, palestra, que afinal recobrara seu habitu
al bom senso e serenidade, disse, abraçando-me a cabeça e beijando-me o focinho: — ago
ra, meu bem, não podemos ficar aqui, todo tempo, neste quarto: quando começar a apon
tar a aurora, a velha volta, e vendo o que fizemos é muito capaz de armar uma das
suas e impedir que você venha a ser outra vez gente. portanto vou levá-lo lá embaixo, à
estrebaria, junto dos outros animais, onde ninguém dará pela sua presença. e quando eu
voltar do mercado, tudo entrará enfim nos eixos... não pude deixar de reconhecer qu
e o que ela dizia tinha todo cabimento. ficar ali no quarto da bruxa por mais te
mpo só nos podia complicar a situação; e eu de complicações já estava regularmente servido.
. assim, acompanhando a moça escada abaixo, até o pátio, dirigi-me à estrebaria onde est
avam o meu cavalo e o de mílon, em companhia de outro
burro, de verdade, que devia ser a montaria habitual de hiparco. ao verem-me che
gar, meus novos colegas pensaram decerto que eu era um concorrente, indesejável, à a
veia e ao feno que estavam mastigando; e assim, abaixando as cabeças e sacudindo a
s ancas, foi com três pares de coices, bem sincronizados, que manifestaram o regoz
ijo que minha vinda lhes causava. ante uma recepção tão eloqüente, mas de uma retórica tão
iversa da de hiparco, cautelosamente retirei-me ao canto mais afastado do estábulo
, a fim de significar aos novos companheiros que não trazia a mínima tenção de lhes pert
urbar a merenda. e percebendo decerto tais disposições, os três confrades se aquietara
m, deixando-me cavalinamente em paz. pus-me então a refletir nas lamentáveis conseqüênci
as da minha leviandade: por ter querido ver bruxedos e feitiçarias, de que não tirar
ia proveito algum, eis-me ali, transformado em vil animalejo, e como tal exposto
ao ataque de algum lobo faminto e atrevido, ou outra e tão carniceira fera, que n
um instante me reduzisse o canastro a frangalhos, como é péssimo costume delas, sem
atender a que toda minha semelhança com quadrúpedes, vivos ou mortos, não passava de m
era coincidência!...
uma desgraÇa nunca vem sÔ...
entretanto mal sabia eu que bem outro era o terrível transe que realmente me aguar
dava. avançada a noite, reinava o mais profundo silêncio na casa, na rua e nas adjacên
cias. o cansaço começava a invadir-me o corpo e o sono a pesar-me nas pálpebras. então,
amontoando com as patas um pouco de feno seco, no meu canto da estrebaria, ali m
e deitei, todo encolhido, para tirar uma pestana até que palestra me viesse com as
rosas redentoras. as outras cavalgaduras olharam-me com certo ar espantadiço, poi
s não é costume dos da raça dormir assim deitados; mas eu não liguei para elas e me acon
cheguei no canto como se ainda fosse um bebezinho. nisso ouve-se um barulho infe
rnal, como se estivessem querendo arrombar a porta da estrebaria, que palestra t
ivera a cautela de fechar a dois cadeados, depois que ali me recolhera. e de fat
o um dos batentes cedeu e caiu para dentro, arrastando na queda todo o resto da
cancela. À fraca luz das estrelas distingui então dois vultos, que entraram na estre
baria e logo passaram o cabresto aos três animais que estavam junto à manjedoura, co
nduzindo-os imediatamente para o meio do pátio. voltando em seguida, deram comigo,
e então um deles disse: — este jumento, deitado assim, deve estar doente; não vale a
pena levar conosco um tal trambolho... — doente? — redargüiu o outro — estes bichos são mu
ito malandros, e às vezes fingem de doentes para não trabalhar. vamos ver...
e vindo para o meu lado, desandou a dar-me tantos pontapés e bordoadas com um gros
so bastão que trazia, que eu, para me defender, logo me levantei e assestei-lhe um
par de coices capaz de o mandar em três tempos para os quintos de plutão. mas o hom
em devia ser prático em lidar com animais: abaixando o corpo, desviou-se do golpe
em tempo, de forma que as minhas duas patas passaram-lhe raspando por cima da ca
beça. e com um pulo de lado, quando eu voltei a pousar os pés no chão já ele me estava p
assando um tento pelo pescoço; e dando uma laçada em torno do focinho, apertava-me c
om tanta força que eu fiquei imobilizado pela dor. — viste que tal o teu doentinho? —
disse ele ao companheiro. — burrico é a pior casta de animais que existe: se não fosse
a força que têm, seria melhor matar um por um, até acabar com a raça... diante de tais
argumentos achei melhor mudar de tática, e documente fui reunir-me no pátio, às outras
alimárias.
entre ladrÕes
ali chegando vi que outros sujeitos estavam carregando os meus cavalos, e o outr
o burro, com as baixelas e alfaias que tinham trazido da casa. eram salteadores,
que informados decerto da ausência dos donos, tinham vindo saquear a residência do
usurário. e pela quantidade de objetos amontoados, pelo número de saquinhos de couro
, que continham os ciclos de prata e os talentos de ouro de hiparco, já amarrados
nos lombos das três cavalgaduras, logo vi que a colheita tinha sido das mais ricas
. quanto a mim, puseram-me também uma cangalha às costas, e nela foram atulhando tud
o quanto ainda restava a carregar: trípodes, cofres, candelabros, e outros trastes
, tudo de bronze; de maneira que quando terminaram o serviço eu quase não podia me s
uster nas pernas, tal o peso da carga que me tocara. quando afinal se aprontavam
para sair à rua, um dos ladrões chegou-se ao que parecia ser o chefe, e perguntou: —
e a moça que ficou lá em cima, amordaçada?... compreendi que se tratava de palestra, e
tive um calafrio ao pensar no que teriam feito aqueles bandidos à bela criadinha.
mas o chefe respondeu: — que fique onde está: o primeiro decurião que entrar na casa
logo a soltará; e ela há de dar-se por muito feliz em ir logo para o poder de outros
donos... sossegado ao ver que ela apenas fora amordaçada e amarrada, disse mental
mente, um adeus à boa amiga, e voltei a encarar o meu triste destino.
já porém os bandidos nos iam tangendo para a rua, e ali, montando nos seus próprios gi
netes, obrigaram-nos, a chicote e bordoadas, a trotar pela rua acima, até sairmos
da cidade. e assim, por um caminho áspero e pedregoso, fomo-nos distanciando de hi
pata, para o lado das montanhas, detrás das quais começava a surgir, como enorme ban
deja de prata, o pálido disco da lua cheia. meus companheiros cavalares iam trotan
do na frente, como era natural e fácil a criaturas que nunca tinham feito na vida
outra coisa. mas a mim, que pela primeira vez tinha de andar de quatro, e com um
a carga pesadíssima no lombo, aquela caminhada era-me um suplício. e só mesmo o pavor
das chibatas e dos porretes daqueles desalmados, que me fustigavam sem descanso,
é que me animava e dava forças para estugar o passo e acompanhar os outros. assim m
esmo, sentindo os pedregulhos pontiagudos a machucar-me a polpa dos cascos, e su
cumbindo ao peso da cangalha sobrecarregada, mais de uma vez tropecei e caí, sempr
e com uma vaga esperança de que os bandidos, para não se atrasarem na fugida, repart
issem parte da minha carga com os outros animais, aliviando-me assim um pouco. m
as os ladrões não concordaram com a minha idéia, e a cada tombo que eu levava obrigava
m-me a levantar com uma pancadaria de criar bicho. até que, a quedas tantas, o che
fe chegou junto de mim e disse. — este raio de burrico não presta mesmo para nada; v
amos repartir a carga pelos outros animais, e dar logo cabo dele de uma vez: cor
tem-lhe a goela e atirem o corpo nesse precipício, que para outra coisa não presta u
m bicho ruim
como este. e já um dos bandidos tirava do cinto uma enorme faca, e com o dedo palp
ava-lhe o fio e a ponta, pronto para executar a sentença. eu então, fazendo das trip
as coração, ergui-me de relance, e pus-me a trotar com desusado garbo e eficiência. — até
parece que o bicho entendeu a ordem, chefe: veja só como galopa! e todos desandara
m a rir, à minha custa. indignado, eu quis invocar a proteção suprema, e esquecendo qu
e não passava de um pobre asno, exclamei: — Ó césar!... mas como o que me saiu dos gorgo
milos foi um zurro lamentoso, as gargalhadas dos meus carrascos redobraram. de s
orte que, vendo que tudo me saía às avessas, resolvi resignar-me provisoriamente a c
urtir, calado e obediente, a minha desgraça.
fuga malograda
atÉ que, começando o dia a clarear, tendo já subido e descido vários morros, e posto reg
ular distância entre o nosso bando e a cidade, chegamos por fim a uma estalagem. p
ela recepção que nos fez o dono da bodega logo vi que ele era amigo ou companheiro d
os bandidos: acolheu-os com grande alegria, convidou-os a descansar, dizendo que
ia mandar preparar um almoço condigno de tais heróis. quanto a nós outros, pobres bes
tas de carga, mandou que o criado nos levasse à estrebaria e nos servisse ração dupla
de centeio e cevada, pois logo à primeira vista avaliara o excessivo do peso que vín
hamos carregando. aliviados da carga, meus companheiros logo se espojaram no chão,
rolando numa e noutra ilharga, para cocar o couro, onde as correias e retrancas
tinham deixado fundas marcas doloridas. depois do que, chegaram-se à manjedoura e
puseram-se a comer com um apetite de fazer inveja a um dalmata. eu porém, pouco a
feito a semelhante cardápio, estava condenado a morrer de fome, apesar de tão abunda
nte comida ao alcance do focinho. espreitei então para o terreiro e vi que não havia
ali ninguém, pois todo mundo entrara na estalagem, para onde os ladrões tinham leva
do as canastras, os sacos e as trouxas, toda a fortuna, não pequena, de hiparco, q
ue havíamos trazido. criando coragem, saí para o pátio, e logo avistei, atrás da casa, u
m cercado, onde havia uma porção de canteiros de legumes e hortaliças, verdes e goteja
ntes de orvalho, além
de uns arbustos que, assim de longe, me pareciam roseiras. sem pensar em mais na
da, dei uma corrida, saltei a cerca, entrei na horta, e pus-me a comer à grande: p
epinos, ervilhas, alfaces, couves, repolhos, tudo fui mandando para o bucho, poi
s fazia doze horas que eu jantara pela última vez, na grandíloqua companhia de hipar
co. as rosas, deixara-as por último, como sobremesa que me havia de restituir à form
a humana e libertar-me do jugo daqueles bandidos. mas quando, afinal, saciada a
fome velha, me dirigi ao roseiral, tive uma decepção: não eram rosas, verdadeiramente,
mas uma espécie de louro selvagem, de pétalas ásperas e amargas, que depois de comida
s não tiveram nenhum efeito mágico na minha jumental figura; antes transtornaram-me
o estômago e quase me fizeram destripar o mico e pôr a perder toda a preciosa comeza
ina! vai daí surgiu o hortelão, que logo viu o estrago que eu fizera em seus canteir
os; e avistando-me afinal no fundo do cercado, não teve mais dúvidas acerca de quem
seria o culpado. arrancando então um pau grosso e cheio de nós, que servira de arrim
o às ervilhas, investiu para mim e desandou-me às cacetadas, gritando que me havia d
e matar, para ensinar-me a respeitar a propriedade alheia. — toma, desgraçado! — brada
va ele enquanto me desancava. — meu senhor vai-me pôr três dias no ergástulo, por tua ca
usa. mas enquanto isso os corvos e os abutres estarão banqueteando-se em tua carcaça
, miserável!... vendo que o que dizia o escravo enfurecido não era apenas promessa f
iada, mas que ele parecia disposto mesmo a me acabar com a vida, perdi toda a ca
lma e discernimento e arrumei-lhe uma valente patada nos queixos, que o pobre
homem caiu estatelado no chão, como morto. em seguida voltei ao estábulo, a fim de f
azer ali, inocentemente a digestão do almoço que tão violentamente tivera de pagar. an
tes de atingir, porém, a estrebaria, ouvi um berreiro na horta. era o raio do hort
elão que recobrara os sentidos e estava a atroar o mundo como um possesso. então ach
ei melhor fugir, e em vez de entrar no estábulo, desandei a correr pela estrada, n
a direção da montanha, disposto a ir procurar noutros sítios uma outra vida, ou destin
o menos duro. mas o danado do escravo continuava a pôr a boca no mundo, dizendo ao
s que logo surgiram à porta da casa que soltassem contra mim os cães, que eu era um
ladrão desavergonhado, que além de lhe dar cabo da horta ainda o quisera assassinar
a coices. imediatamente vi que haviam desatrelado contra mim uma malta de rafeir
os, grandes, fortes, dentuços e bravios cães pastores, acostumados a farejar lobos e
ursos e a desentocar e imobilizar reses extraviadas. considerando todas essas d
esvantagens, adiei para outra e melhor ocasião a fuga, e de cabeça baixa e orelhas m
urchas voltei à estrebaria. com isso os cães, aquietados, foram de novo postos nas c
orrentes; mas eu não escapei de uma nova tunda, desta vez pelas mãos do dono da casa
, que para vingar as suas couves e o seu escravo, me moeu o corpo a pancadas, de
ixando-me, por minha vez, mais morto do que vivo.
prossegue a viagem
passaram-se alguns dias, durante os quais eu fui descansando da viagem e habitua
ndo-me, para não morrer de inanição, a esmoer a aveia e o centeio da manjedoura, em co
mpanhia dos outros burros e cavalos, tendo por sobremesa apenas uns molhos de fe
no, que aos poucos aprendi a mastigar e engolir, como gostosamente faziam os meu
s pobres companheiros. até que certa manhã os ladrões resolveram prosseguir. separaram
então, de propósito, os mais pesados cestos e canastros, que puseram nas minhas cos
tas, deixando para as outras bestas os volumes mais leves, os sacripantas! e par
timos. entretanto eu ia indignado com a injusta repartição da carga. e esquecendo a
experiência que já tivera, matutava se não seria melhor deixar-me cair no chão e ali fic
ar, insensível às pancadas, até que os bandidos desanimassem, passassem a carga para o
lombo dos parceiros, e me deixassem estendido à beira do caminho, mesmo exposto a
os lobos e aos abutres, que não tardariam a farejar-me. esse projeto me parecia pe
rfeitamente razoável, embora poucos dias antes já o tivesse experimentado, com as ma
is lamentáveis conseqüências. Ê que os jumentos são os bichos mais teimosos deste mundo, e
a minha forma corporal já estava começando, decerto, a influir na inteligência... mas
justamente enquanto eu ia arquitetando esse plano, parece que algum providencia
l demônio entendeu de sugerir a mesmíssima idéia ao outro burro. de sorte que antes qu
e
eu me resolvesse a levá-lo a prática, ele abateu-se estrondosamente na estrada, a to
do o cumprimento do corpo. imediatamente os ladrões caíram-lhe em cima, às bordoadas,
aos chuços e às chicotadas, tentando pô-lo novamente em pé. tudo foi porém inútil: o coitad
parecia insensível e indiferente ao que lhe desse e viesse: pauladas, lambadas, p
ontapés, cutucões com a ponta das espadas, berros, apóstrofes, xingos e imprecações, a nad
a ligava ele a mínima importância, continuando ali no chão, estatelado. os homens agar
raram-no então, uns pelas orelhas, outros pelas pernas, outros pelo rabo, e a muit
o custo o soergueram um bocadinho, do solo; mas assim que o largaram, o burro to
rnou a cair, como um corpo inanimado e inerte. vendo que nada conseguiam, os hom
ens consultaram-se entre si, e afinal resolveram não perder mais tempo com o caso:
distribuíram a carga do bicho pelos nossos lombos já superlotados, e arrastando pel
a cauda o pobre companheiro até a borda de um precipício, aí lhe vararam o peito com u
ma adaga e o arrojaram despenhadeiro abaixo. diante disso, perdi para sempre a i
déia de apresentar a mesma comédia àqueles malditos salteadores; e supercarregado como
ficara, tratei de acompanhar o trote das outras bestas, até que o céu me proporcion
asse outra saída. e se não desanimei completamente, é que sempre me afagava a esperança
de encontrar de repente uma roseira, cujas flores me restituíssem afinal ao primit
ivo aspecto.
na caverna de arquilestes ^
aliÁs, escutando as conversas dos ladrões que iam ao nosso lado, compreendi que nos ía
mos aproximando do termo da viagem, e que talvez antes do anoitecer chegássemos ao
antro em que moravam. apertando, pois, o passo, logo à tardinha chegamos a uma es
planada ou terreiro, que havia na encosta da montanha. no extremo dessa clareira
, na parede do morro que subia coberto de arbustos e cipós retorcidos, abria-se um
a fenda enorme entre duas rochas, formando como que uma porta, por onde podiam e
ntrar, folgadamente, homens, cavalos e burros carregados. e foi o que fizemos lo
go todos, homens e animais, uns atrás dos outros. enfiando-nos assim numa espécie de
túnel, ao cabo, de uns dez passos desembocamos numa caverna imensa, que era onde
se açoitavam os ladrões, nos intervalos entre as suas sortidas, e onde guardavam o p
roduto das rapinas. dentro dessa caverna, ao pé de um fogão feito de pedras toscas,
onde ardiam umas grandes toras de lenha, estava uma velha sentada, esperando, en
quanto grandes caldeirões, dependurados em correntes cravadas no teto da gruta, pe
ndiam sobre o fogo, cozinhando. e enquanto os ladrões nos descarregavam e iam arru
mando a bagagem aos lados da caverna, arquilestes, seu chefe, chegou-se à velha e
perguntou que é que havia para o jantar.
— está quase pronto: — disse ela — cabrito guisado, lentilhas com entrecosto de porco, f
rango assado, ovos cozidos, frutas, passas, azeitonas, vinho... — bravo! — disseram
os homens. — esta horrenda velha, quando não está bêbada que nem uma cabra, sabe o seu o
fício como ninguém. todos se despiram então, e chegando perto de um enorme tacho de co
bre que bafejava sobre o fogo, embeberam umas esponjas na água, e assim, à falta de
outras termas, lavaram os corpos empoeirados. perfumaram-se depois com óleos e essên
cias, e por fim vestiram roupa limpa, que a velha fora buscar a uma grande arca
embutida na parede da gruta. e deitando-se em pelegos e tapetes ao redor de uma
grande laje, começaram logo a comer, com invejável apetite, das iguarias que a desgr
enhada cozinheira ia trazendo. depois acomodando-se junto às paredes do antro, par
a onde levaram as mesmas peles e almofadas, logo caíram num sono pesado, roncando
todos ao mesmo tempo, mas cada qual em tom diverso, de forma que o conjunto resu
ltava numa impagável sinfonia. para nós, bichos, havia, na outra extremidade da cave
rna, uma grande manjedoura, que um dos homens foi encher de cevada, enquanto out
ro desatava um fardo avantajado, de feno, como regia recompensa aos nossos traba
lhos. mas eu, assim que percebi que todos, inclusive o chefe e a megera, estavam
também roncando, e que a luz do fogão ia quase morrendo, fui farejar furtivamente a
laje; e encontrando ainda muitos restos da merenda, tratei de encher a pança com
aqueles alimentos, mais de acordo com o meu velho paladar. e só depois de bem comi
do e melhor bebido é que voltei junto dos outros, para a dormida.
ao dia seguinte, já bem avançada a manhã, começaram os ladrões a despertar, entrando cada
qual a arrumar os seus pertences nos desvãos e recônditos da caverna. abrindo também e
u os olhos, pus-me a estudar a situação, a fim de ver como e quando poderia livrar-m
e da muar e incômoda personalidade a que o desastrado engano de palestra me sujeit
ara. o antro era de extensão extraordinária; e ouvindo as vozes do capitão e dos outro
s homens, que não estavam no compartimento em que nos achávamos, percebi que certas
frestas da rocha eram como portas ou corredores, que levariam a outras grutas, c
omo se aquilo fosse uma imensa casa subterrânea, onde poderia esconder-se e abriga
r-se muito maior número de bandidos do que aquele com o qual eu viera. pouco depoi
s um deles veio buscar-nos, e tangendo-nos para a entrada, soltou-nos na esplana
da, a fim de respirarmos ao ar livre e lambiscar as ralas ervas que brotavam pel
as gretas da penedia. meus pobres companheiros logo se puseram a pastar; eu de m
inha parte, ainda bem restaurado com o regabofe da véspera, fingi que ia fazendo o
utro tanto, mas de fato o que queria era estudar o terreno e procurar alguma ans
a de recobrar o meu antigo jeito. antes porém que eu tivesse encontrado alguma fil
a útil, eis que um bando de cavaleiros e bestas de cargas desemboca na clareira, d
irigindo-se para a entrada da gruta. logo começam a descarregar os animais, enquan
to arquilestes, vindo de dentro, os interrogava e cumprimentava, ao ver os ricos
despojos que traziam. era, evidentemente, outro bando da mesma quadrilha,
que voltava de alguma feliz expedição latrocínea. das cangalhas desciam cofres abarrot
ados de moedas, vasos de bronze e prata, panos de seda, e roupas finas em quanti
dade, que foram transportando para o interior da toca. depois, fazendo entrar ta
mbém as cavalgaduras, passaram certo tempo quietos, a fazer, decerto, como os da vés
pera, as suas abluções. mas passada uma meia hora comecei a ouvir risos, vozes, cant
orias e imprecações, pelo que deduzi que estariam também a banquetear-se, e que o vinh
o já devia estar subindo-lhes à cabeça. a algazarra, dentro da caverna, era tão grande,
os gritos e as gargalhadas tão altos e repetidos, que aquilo parecia a verdadeira
moradia de trofônio.
a jovem raptada
assim passamos todo aquele dia, tosquiando o escasso capim que encontrávamos e beb
endo de uma vasca de pedra, onde de tempos em tempos um dos homens vinha encher
uma grande ânfora de água. ao anoitecer fomos recolhidos ao interior da gruta e post
os à manjedoura, como se fizera antes. e eu usei o mesmo truque, altas horas da no
ite, para aproveitar as sobras da ceia e lastrear as tripas com comida de gente.
enquanto isso, sem nada mais fazer senão comer de noite e espairecer de dia, no t
erreiro, fui-me refazendo das fadigas, começando a deitar corpo e a engordar, a ol
hos vistos. de tal maneira que os próprios ladrões não deixaram de reparar, dizendo um
deles, ao passar por mim e batendo-me amigavelmente com a mão na anca: — está gostand
o da boa vida, heim? mas essa mamata vai acabar... inconscientemente arreganhei
os beiços, achando graça na simplicidade do homem, que nem por sombras poderia imagi
nar que eu o entendera. mas ele, vendo pelo meu focinho e pela expressão dos olhos
, que eu estava rindo à sua custa, recuou espantado e foi-se safando, fazendo figa
s para o meu lado, como se tivesse acordado de algum mau sonho... resolvi então te
r mais cuidado na conduta, a fim de não despertar a perigosa atenção daquela gente gro
sseira e supersticiosa: não fossem eles, suspeitando em mim algum
caráter infernal, resolver, pelo sim ou pelo não, dar-me cabo do canastro!... passad
o porém algum tempo, um dia, bem cedinho, saíram todos os ladrões para uma das suas. m
as dessa feita só levavam os cavalos em que montavam, deixando no antro a mim e ao
s outros burros, que não serviam de sela, mas somente como cargueiros. por isso fi
quei logo muito curioso, a conjeturar que espécie de golpe iriam aqueles bandidos
praticar, pois era evidente que não saíam para assaltar casas nem fazendas. qual ser
ia então o objeto da sortida?... enquanto cismava nessas coisas, continuava sempre
a parafusar no modo de escapolir dali e voltar para o meio de gente mais civili
zada. a princípio supus que apenas ficara na caverna a velha, a qual não seria difícil
pôr fora de combate mediante um coice bem aplicado. depois, o resto seria por min
ha conta e risco... mas a minha má sorte dispusera as coisas do outro modo: os lad
rões tinham deixado, para nos guardar, um moço, de espada à cinta, à entrada da clareira
, como um cérbero. de sorte que nem eu nem a velha podíamos pôr o nariz meio perto da
saída, que não viesse o raio do rapaz para nos obrigar, desembainhando a espada, a r
etroceder. assim, mais uma vez ficavam os meus planos de libertação, adiados!... três
dias depois lá estavam novamente de regresso os bandidos. como eu previra, não trazi
am ouro nem prata, nem prendas de qualquer espécie, como era seu costume. traziam
era uma jovem, muito bonita, e demonstrando boa educação e procedência, que se debatia
, chorava e lamentava-se, implorando aos deuses que a devolvessem aos
parentes e ao seu noivo bem-amado. ao chefe dos ladrões dizia que lhe restituísse a
liberdade, que por zeus jurava que o pai lhe daria o resgate que exigisse. mas o
s bandidos não lhe davam ouvidos. depuseram-na, de pés e mãos atados, sobre um tapete,
no mais fundo da caverna, encarregaram a velha de cuidar dela como se fosse a p
rópria filha de arquilestes. que os seus parentes já tinham sido avisados, e por iss
o, se realmente a estimavam, logo mandariam o resgate para sua libertação. portanto,
o melhor era ficar boazinha, e esperar; que nada adiantava chorar nem deblatera
r, pois com isso não conseguiria nada, senão ficar menos bonita, de olhos e nariz ve
rmelhos... contudo a pobre moça não se consolava, e continuava a chorar e a soluçar tão
desesperadamente, que eu também, junto da manjedoura, ensopei a aveia e a cevada d
os companheiros com muitas lágrimas amargas. por seu lado os ladrões tinham-se posto
ao redor da laje; e entregavam-se ao regabofe do costume, comendo, bebendo, can
tando e vociferando, como um bando de endemoninhados. nisso um esculca veio avis
ar o chefe de que na manhã seguinte um mercador fenício, riquíssimo, devia passar por
certa estrada próxima, levando consigo fabulosa quantidade de dinheiro e pedras pr
eciosas.
a tocaia
imediatamente todos se levantam e começam a aprontarse para a expedição. põem-me cangalh
as a mim, e também aos outros burros e cavalos de carga, e em plena noite estão de s
aída pela montanha abaixo. logo alcançávamos a tal estrada que o espia mencionara, e e
ntão os ladrões, escondendo os animais atrás de moitas e de rochedos, puseram-se de to
caia para o golpe. não tardou em surgir, na volta do caminho, a caravana do tirien
se. e quando ela atingiu o ponto onde estavam os bandidos, estes, surgindo de am
bos os lados da estrada, caíram em cima dos servos e almocreves do mercador, os qu
ais trataram de defender-se, corajosamente, com as armas que levavam. mas os out
ros eram em número muito superior, e assim por mais valentes que fossem os viajant
es, em pouco tempo foram vencidos e trucidados, sem escapar um só para ir contar a
história. e como, na refrega, tivessem saído mortos ou estropiados alguns dos anima
is do assaltado, os ladrões transferiram para os nossos lombos os alforjes e canas
tras pejados de ouro e pedrarias que pudéssemos transportar, deixando o resto em e
sconderijos, que disfarçaram e marcaram, a fim de o virem arrecadar mais tarde. e
lá fomos para a caverna, outra vez. eu ia espicaçado pelo chuço do homem que me guiava
, pois todos tinham pressa de afastar-se do lugar do assalto. de uma hora para o
utra — diziam — podia surgir gente, ou mesmo algum destacamento de legionários, os qua
is seria perigoso
enfrentar. Íamos pois tropicando, ladeira acima, quando uma lasca de pedra, pontea
guda, me penetrou na palma do casco, produzindo-me um ferimento fundo. comecei e
ntão a mancar, na esperança, teimosa e vã de que os ladrões afinal teriam pena de mim e
me aliviariam de uma parte da carga. mas um deles, ao contrário, o mesmo que já uma
vez propusera a minha morte, vendo que eu dava mostras de não poder mais caminhar,
disse aos camaradas: — este burrico não vale a metade da aveia que come. até quando h
averemos de aturar semelhante peste?... — É mesmo — anuiu um outro. — devíamos atirá-lo num
despenhadeiro, em holocausto a hermes, nosso padroeiro, pelo bom sucesso das nos
sas últimas empresas... a essas palavras todos os que estavam perto se entusiasmar
am, e prometeram executar a idéia assim que nos abeirássemos do primeiro precipício. d
iante disso, como já me acontecera antes, esqueci a dor e a manqueira, e saí num bel
o galope, até passar à frente da comitiva, como se me tivessem brotado nas ilhargas
as asas do próprio pégaso. com o que os bandidos se divertiram enormemente, dando go
stosas gargalhadas. — esse malandro — disse um deles — não é a primeira vez que compreende
o que a gente diz. um dia destes eu disse uma piada perto dele, e ninguém me tira
da cabeça que o maroto entendeu: vocês precisavam ver a cara de riso que ele me fez
!... — É o burro mais velhaco e sem-vergonha que eu tenho visto — acudiu o outro. — deve
ter aprendido com o antigo dono, que dizem que é o mais completo patife de hipata
...
— claro! o que não se parece com o dono, é roubado... — sim!... ele se parece com muito
companheiro do nosso bando, e foi bem roubadinho, entretanto... com essas e outr
as conversas, sempre a meu respeito, chegamos finalmente aos pagos. os homens de
scarregaram os animais, lavaram-se e puseram-se à mesa como sempre, deixando para
tarde da noite a busca do resto da fortuna do fenício. — desta vez — disse um deles — va
mos dar uma folga ao burrinho: estive examinando-lhe os cascos e verifiquei que
tem num deles uma ferida feia. também, para trazer o que lá escondemos, as outras be
stas bastam perfeitamente. os outros concordaram; não porém sem comentar a súbita pied
ade do colega ante os meus sofrimentos: — bem dizem que quem se parece anda junto:
o péqueimado, que é a maior pinta que temos cá no bando, nunca se importou com animal
nenhum, por melhor que fosse: não tem inclinação para isso; no entanto, assim que per
cebeu a malandragem desse burrico, vejam como se interessa: até parece que o bicho
é filho dele!... — É mesmo: até risada diz que o burro dá quando ele lhe conta uma anedot
a!... e as gargalhadas recomeçaram, como se a piada fosse o cúmulo do chiste. como q
uer que fosse, eu exultava com a perspectiva de ficar algum tempo sozinho, apena
s com a velha e a moça, pois assim talvez viesse a descobrir um jeito de dar o for
a naquela detestável companhia.
fujo com a moÇa
logo que anoiteceu começaram os ladrões a preparar-se para a partida. arrearam os ca
valos de montaria e as bestas de carga, que tinham levado ao terreiro; mas a mim
deixaram ficar na caverna, deitado num monte de feno. e quando a noite fechou d
e vez, lá se foram todos pela estrada abaixo. estava escuro quando os bandidos nos
deixaram; mas logo a lua surgiu atrás de um morro e a sua luz tudo parecia estar
envolto numa poeira prateada. saí então à esplanada, e pus-me a olhar para as montanha
s e os vales que se estendiam a perder de vista. — idiota! — pensava eu. — por que hei
de ficar aqui por mais tempo, até que num dia de mau humor algum destes brutamont
es me dê cabo da pele e arroje o meu cadáver para pasto das hienas e dos corvos? cor
agem, seu lúcio! a noite já vai alta e a lua é favorável. os bandidos estão longe. Ê agora
u nunca! feitas estas reflexões, decidi tentar o golpe imediatamente. deitei pois
a correr em direção à estrada; mas o cabo do cabresto, que era comprido e ia-se arrast
ando pelo chão, desastradamente enfiou-se no vão de duas pedras e ficou preso como s
e alguém ali o tivesse cuidadosamente amarrado; e todos os meus esforços para despre
ndê-lo ou arrebentá-lo foram vãos. de sorte que parecia que uma sina má ainda daquela ve
z pretendia me embargar os passos! pois o demônio da velha,
assim que ouvira o tropel dos meus cascos no terreiro, saíra também da gruta, a ver
o que seria; e percebendo decerto o meu intento, chegou-se onde eu estava e proc
urou desprender a correia das pedras, certamente para em seguida reconduzir-me à p
risão. mas também ela não o conseguiu, de maneira que ficamos ali os dois: a megera a
forcejar na correia, e eu à espera de que ela a desprendesse para dar um repelão com
a cabeça e por minha vez arrancar-lhe o tento das mãos. ouvindo porém as pragas e pal
avrões que a velha proferia por não poder desembaraçar o meu cabresto, surgiu também a m
oça à entrada da caverna; e então a outra gritou-lhe que não ficasse ali como uma pamonh
a, mas fosse ajudá-lo no que ela estava fazendo. ao apreciar porém, a cena, a jovem
percebeu num relance que era aquela a oportunidade que os deuses lhe ofereciam p
ara que também se libertasse. veio pois correndo onde estávamos; mas em vez de ajuda
r a velha a soltar das pedras a correia, de um salto encarapitou-se nas minhas c
ostas; e segurando-se com uma das mãos à minha crina, com a outra empurrou para a fr
ente a cabeçada do cabresto, passandoma por cima das orelhas. assim me quedei imed
iatamente solto e livre, enquanto a megera, que previra o truque, procurava como
último recurso, agarrar-me e deter-me pelo rabo. mas eu não tive dúvidas, e com um co
ice das duas patas juntas logo prostrei a malvada no chão, estatelada, com os quei
xos em pandarecos e o sangue a escorrer pelos cantos da bocarra.
marcha a rÉ
no primeiro instante, vendo a velha a retorcer-se no solo, dando urros de dor e
xingando céus e terra, fiquei meio apalermado, sem pensar no que havia de fazer. a
moça porém, que não era nada tola, batendo-me com a mão na tábua do pescoço, e incitando-m
com os calcanhares, logo me fez compreender que devíamos aproveitar a ocasião sem p
erda de tempo, e pirar quanto antes. então saí num desabalado galope, como se durant
e toda a minha vida não tivesse feito outra coisa senão puxar quadrigas na arena. ma
s olhando para trás, antes de entrar na vereda, vi a velha sentada, bracejando e v
ociferando em nossa direção, como uma possessa. mas nós seguimos o caminho, montanha a
baixo, passando como um corisco entre arbustos, cardos, barrancos e penedias. — va
mos, amiguinho — ia-me dizendo a valente jovem, agarrada de unhas e dentes ao meu
cangote — se me levas sã e salva até a casa dos meus pais, dar-te-ei o prêmio que bem me
reces: ficarás livre como uma andorinha, com bom feno e fartura de cevada, sem nun
ca mais teres de trabalhar! admirado de que a moça agüentasse o meu galope, montada
em pêlo, sem freio nem rédeas, eu não diminuía porém a vertigem da carreira, tão ansioso qu
ndo ela por livrar-me do cativeiro daqueles bandidos. e assim fomos avançando, até q
ue atingimos o ponto em que o carreiro da montanha desembocava na estrada. então s
ustive a marcha e estaquei, pois não sabia qual dos dois rumos era o que levaria a
moça aos seus penates. ela, porém,
parece que estava na mesma dúvida, pois também não se decidia por nenhuma das direções. eu
, impaciente, ia tomar por uma delas, ao acaso, quando na curva do caminho surge
um bando de gente armada e acompanhada de alguns cargueiros que iam pela arreat
a. assim que os viu, a moça deu um grito, aterrorizada. e com excelentes motivos:
pois ao clarão da lua, eu também incontinenti constatei que a turma não era outra senão
a dos odiosos inimigos, que voltavam da excursão com o resto da rapina da véspera. l
ogo eles nos rodearam, e passando-me à cabeça outro cabresto, começaram a dirigir chuf
as à pobre rapariga, sem esquecer de me incluir também na festa: — ora, viva! onde é que
vão os dois pombinhos, com tanta pressa? por que não esperaram que nascesse o dia,
para viajarem sem maior perigo?... não tiveram medo de topar aí pela serra algum licân
tropo ou vampiro, desses que comem gente?... e com essas e outras iguais amabili
dades, fizeram-me virar de bordo, obrigando-me a retomar o caminho da caverna co
m a minha bela amazona às costas. comecei então a mancar, porque com a galopada o ca
sco machucado se pusera a doer terrivelmente. mas os ladrões, assim que o notaram,
voltaram as suas piadas também comigo: — então, agora, mancando, hein?... mas quando
pensavas escapar com a bela ninfa nas costelas, ias lépido e ligeiro como uma lebr
e!... e a pancadaria do costume choveu nas minhas ancas, que foi uma barbaridade
.
horrÍvel proposta
antes de romper o dia chegávamos novamente à caverna. e assim que desembocamos no te
rreiro vimos um corpo magro que balouçava ao vento, pendurado ao galho de um cipre
ste. era a velha, que prevendo decerto a raiva dos ladrões, quando voltassem e des
sem pela fuga da moça, se enforcara pelas próprias mãos, a fim de evitar outro e pior
fim. os bandidos gabaram, do seu ponto de vista deles, o brio da velhota; e desa
tando a corda que a suspendia ao galho, arrastaram o corpo até a beira de uma roch
a, e dali, dandolhe uns balanços, atiraram-no a uma grota funda e cheia de espinho
s, lá embaixo. então, exasperados com a perda da cozinheira que até então os servira, e
para impedir que a moça repetisse outra vez a tentativa de escape, puseram-lhe alg
emas nos pés, prendendo-a com uma corrente a uma argola embutida na parede da grut
a. e arranjando eles mesmos um magro almoço, enquanto bebiam vastos copázios de vinh
o, puseram-se a discutir acerca do destino que haviam de dar à prisioneira. — os par
entes dela — disse em primeiro lugar arquilestes — não corresponderam ao aviso que lhe
mandamos. nem o resgate veio, nem o nosso companheiro até agora apareceu. É capaz d
e ter sido aprisionado, se é que não nos atraiçoou, a troco de uma boa propina; e mais
dia menos dia é muito homem de surgir por aqui, guiando uma centúria. tudo isso por
causa dessa sujeitinha!
— isso mesmo — acudiu um outro. — temos que enterrar o nosso tesouro nalgum lugar dist
ante, e afastar-nos destas bandas por algum tempo. porque a verdade, como diz o
chefe, é que o nosso emissário não dá sinal de vida, e isso não anuncia nada de bom para nó
... — está tudo muito claro — disse um terceiro. — e se o resgate não veio até agora, é mai
o que tempo de darmos um fim ao raio da moça, causa destes nossos contratempos. po
r isso proponho que a lancemos no precipício, no mesmo ponto em que caiu a nossa c
aseira, de cuja morte também é ela a responsável. estavam quase todos os bandidos de a
cordo com o horrendo projeto, quando um deles, magro, cabeludo, e feio como um f
auno velho, achou que devia dar também o seu palpite: — nada disso, amigos. devemos
arranjar um castigo que abranja os dois criminosos: a moça, que quis fugir, e o bu
rro, que a quis ajudar. esse é outro, que só nos tem dado despesas, sem fazer nada q
ue preste. É um mandrião que não merece o que come, e sempre nos está armando baldas. o
que temos a fazer, portanto, é degolar o bicho, tirar-lhe o couro, costurar a moça d
entro e deixar os dois um dia inteiro ao sol: com o calor o couro irá encolhendo,
e ela, sufocada, irá morrendo aos poucos. deixaremos então a moça na sua casca, no mei
o do terreiro, até que os lobos e os abutres, no faro da carniça, venham fazer a últim
a limpeza. vivos aplausos e aclamações acolheram o odiento discurso do velhote. e fi
cou resolvido que logo ao dia seguinte se daria execução à sentença. com o que, cada qua
l estendeu no chão o seu pelego ou alcatifa, preparando-se para dormir e antegozan
do o
espetáculo raro que para todos iria proporcionar nosso suplício.
resgate inesperado nem se pode imaginar que espécie de noite foi aquela para mim.
não havia mais dúvidas: a terrível atropos estava já de tesoura em punho, pronta para co
rtar-me o mofino pavio da existência! eu jazia também, perto da moça, amarrado a uma a
rgola da parede por um cabo de couro trançado fortíssimo; além disso, tinha peias nas
quatro patas, que me tolhiam qualquer tentativa de locomoção. e ao ouvir os soluços e
suspiros desconsolados da jovem, que escutara os projetos daqueles celerados, ma
is aumentava a minha aflição, ao ver que o nosso triste fim se aproximava cada vez m
ais, à medida que avançava a noite. e mais uma vez amaldiçoava palestra, cuja estultic
e, ou talvez malícia, me havia posto naquela triste conjuntura, sem me lembrar de
que a origem de toda minha desgraça estava na infeliz e párvoa curiosidade com que m
e metera em altas feitiçarias. — agora — pensava eu — tenho que morrer miseravelmente; e
em vez de ser enterrado junto dos avós, como um homem de bem, num sepulcro decent
e, eu é que vou servir de sarcófago a esta pobre rapariga, vítima inocente da selvager
ia destes bandidos! oh! miséria das misérias!!. .. estava eu assim nesses pensamento
s, enquanto a corja dos ladrões executava, a dormir, a sinfonia habitual de roncos
, resfolegos e assobios, quando um tropel de gente varejou pela caverna adentro.
era uma companhia de soldados, que decerto tinham surpreendido e liquidado as s
entinelas dos ladrões no terreiro e à entrada da gruta, antes
que eles tivessem tido tempo de dar o alarme. uma vez dentro, à luz dos archotes q
ue a chusma de peões levava, foram trucidando um por um os bandidos que encontrava
m. estes, tontos de sono e ainda meio bêbedos da orgia que tinham feito à ceia, não ch
egavam a perceber muito bem o que estava acontecendo: ao erguer-se e cocar os ol
hos, cegados pela luz das tochas, eram atravessados pelos gládios dos milicianos;
e assim, em lugar de uma luta armada contra terríveis bandidos, o que houve foi um
a execução a ferro frio, como se todos aqueles facínoras não passassem de uma manada de
suínos. o único que procurou defender-se, de espada em punho, foi arquilestes, que o
uvindo o rumor de soldados, viera da gruta contígua a ver o que havia. mas por val
ente que fosse, e decidido a fazer pagar caro a vida, viu-se logo rodeado por ta
ntos adversários, que, encostado ao muro da caverna, nada mais podia fazer senão par
ar os golpes que todos, quase ao mesmo tempo, lhe desfechavam. até que um soldado,
indo lá fora apanhar uma lança, voltou com ela, e assim, fora do alcance da espada
do bandido, atravessou-lhe o ferro pelos peitos, prostrando-o no solo, agonizant
e. enquanto tudo isso se passava, um moço alto, esbelto e bem trajado, que entrara
atrás dos soldados, já se acercara do lugar onde nos achávamos, eu e a linda prisione
ira; e auxiliado pelos servos, com limas e tenazes procedia à libertação dela, que o a
braçava e beijava, banhando-lhe o rosto com lágrimas de comoção. era por certo o noivo,
que tendo peitado o emissário dos ladrões, conseguira afinal das autoridades uma esc
olta e viera libertar a bem-amada e expurgar toda a região daquela malta de bandid
os que havia anos a infestava.
risonha perspectiva
posta em liberdade a minha companheira, eu também fui desprendido da argola que me
retinha, assim como das peias que me travavam as patas. e como a fome me devora
va as entranhas, pois após a nossa volta forçada à caverna ninguém se lembrara de me dar
comida, aproveitei a desatenção geral, e passando ao recanto que servia de cozinha,
ali fui restaurando as forças com os restos que havia no fundo das panelas e cald
eirões. esquadrinhados todos os recônditos da caverna, atrás de algum bandido que porv
entura houvesse conseguido esconder-se, o centurião da tropa mandou proceder à arrec
adação de tudo quando os ladrões tinham ali acumulado, durante anos e anos de assaltos
e rapinas. e como começava a clarear o dia, mandou que levassem a rica presa à espl
anada para se fazer a distribuição pelos cargueiros que deviam conduzir tudo à cidade.
desejoso de respirar o ar fresco da madrugada, eu também me encaminhei para o ter
reiro, onde, esquecendo a minha muar figura, fiquei parado a certa distância, a in
specionar a faina. mas vendo-me ali todo lampeiro, a lamber os beiços e abanar o r
abo, um dos escravos pensou decerto que eu era realmente burro de carga, e passa
ndo-me na cabeça um cabresto, logo se aprestou a escanchar-me no lombo uma cangalh
a. nisso a moça, que enlaçada ao noivo também apreciava o serviço, reparou de quem se tr
atava; e correndo a mim, abraçou-me pelo pescoço, exclamando: — não! por favor! este bur
rinho não quero que carregue
nada! É meu amigo, meu protegido, e eu lhe prometi que nunca mais ele haveria de t
rabalhar... centurião, noivo, servos e soldados, todos pararam por um momento o tr
abalho, e olhando uns para os outros, espantados, davam mostras de surpresa e co
miseração ante o que viam. — com certeza a moça perdeu a razão — pensavam eles. o que não e
de admirar, tendo ficado tantos dias longe dos seus, à mercê de um bando de miseráveis
que já a haviam condenado à morte, conforme ela mesma a todos informara. o centurião
chegou mesmo a pôr a mão no ombro do rapaz, enquanto o indicador da outra apontava à p
rópria fonte, torcendo o punho para um lado e para outro, a significar que a coita
da não devia estar muito bem da bola. ela porém compreendeu num átimo o que ele estava
imaginando, e assim sorrindo para o noivo, explicou: — não estou doida, não, senhores
. É que ontem, quando os ladrões nos deixaram sozinhos aqui, com uma velha que era a
minha carcereira, este pobre jumentinho quase conseguiu que eu fugisse... e con
tou-lhes então, tintim por tintim, todos os pormenores da nossa malograda fuga, mo
strando por fim o galho do cipreste onde a velha se enforcara. então todos começaram
a olhar-me com interesse, e o moço disse: — bem, se a coisa é essa, não há dúvida: fique o
seu protegido descansado: seguirá conosco escoteiro, sem carga nem freio, como você
deseja. e chegando a casa, soltá-loemos no piquete, para que viva, durma, coma e b
eba, na mais que merecida aposentadoria. — obrigado, meu bem. mas eu quero pedir o
utro favor:
em lugar de voltar naquele cavalo, que estou vendo ali, destinado especialmente
para a minha montaria, quero ir montada no jerico, que tão bem se comportou comigo
ontem. será o último serviço dele, antes de ir descansar... — mas, filhinha, então você há
trocar a andadura cômoda e macia de um ótimo cavalo, pelo trote, de um jumento, que
não compreende coisa alguma desse seu gesto? aposto que ele preferia ir à solta, em
pêlo, sem peso nenhum no lombo, como baldoso burrico que é.. . — qual o quê! — respondeu
a jovem. — aposto que ele está ouvindo e entendendo tudo quanto estamos dizendo. vej
a só como abana as orelhas... e a expressão dos seus olhos! este burrico não é como qual
quer um, garanto... — pois então seja como você quer — anuiu finalmente o moço. assim, ter
minados os preparativos, e arrojados no despenhadeiro os corpos dos bandidos, cu
jas armas e cinturões foram devidamente arrecadados, pôs-se a comitiva em marcha, en
veredando, atalho abaixo, em demanda da estrada que nos levaria a terra pacífica e
civilizada. eu ia trotando, prazenteiro, com a bela noivinha às costas; ao passo
que o rapaz, para não se apartar dela, ia escarranchado noutro jumento, a seu lado
, quase arrastando as sandálias no chão, mas assim mesmo muito divertido com a extra
vagância.
de volta ao lar depois de um dia e meio de caminho, pelas exclamações de alegria que
ia dando a minha gentil amazona, percebi que estávamos chegando. e sem poder sofr
ear a própria alegria, desandei também a ornear, desabotinadamente. já na véspera ali ch
egara o mensageiro que o noivo mandara adiante, com as novas do feliz sucesso da
expedição. assim, aos meus zurros, os camponeses deixavam o trabalho e corriam à beir
a da estrada a ver o que significava tão descompassado ruído; e verificando que eram
os senhores que chegavam, juntavam-se à comitiva, e entre vivas e aclamações iam-nos
acompanhando até a cidade, onde fomos recebidos pelo pretor e todo o demais povo,
com as mais ruidosas manifestações de júbilo. dentre a turba logo se distinguiu um gru
po, que era o pai da moça, cercado dos parentes, filhos, clientes, agregados e esc
ravos, todos delirando de alegria por ver afinal de volta, sã e salva, a senhorita
, a quem todos queriam muito. foi cena que arrancou lágrimas de emoção aos meus olhos
de burrico, o ver o velho abraçar a filha, cobrindo-lhe de beijos os cabelos, sem
poder pronunciar uma única palavra, tão cerrado era o nó que lhe tolhia a garganta. en
tão, para não ficar atrás naquela porfia de alvíssaras e de regozijos, eu avancei para o
grupo de pai e filha, e chegando perto, ergui a cabeça, alonguei o focinho, e sol
tei o mais atroante zurro de jumento que jamais se ouviu no mundo, e de que até ho
je os que o ouviram se recordam. pela primeira vez, porém, a minha oratória surtiu u
m efeito salutar: achando uma graça infinita naquela minha atroadora
intrometência, todos caíram numa imensa gargalhada, retorcendo-se de riso até sentirem
lacrimejar os olhos. com isso dissipou-se um pouco da emoção que a todos trazia sus
pensos, e pai e filha e todo mundo pôde enfim recobrar a fala, e trocar uns com os
outros as suas impressões. assim, enquanto o rapaz, o centurião e o pretor, com seu
s acólitos, iam à pretória, acompanhados dos soldados e dos cargueiros, a proceder, de
acordo com a lei, ao seqüestro do tesouro dos ladrões, a moça, montando-me outra vez,
e acompanhada do pai e de toda a família, tomou o rumo da fazenda onde todos resi
diam. ali chegando, não esqueceu a boa rapariga a sua promessa. recordando os maus
momentos e piores aventuras que tínhamos passado e sofrido juntos, ela não admitiu
que me sujeitassem a nenhuma espécie de trabalho, por mais leve que fosse. e pondo
-me numa estrebaria especial e só para mim, rodeada de um pastinho de capim cheiro
so e verdejante, mandava todos os dias encher-me a manjedoura de centeio e de ce
vada, e de outras forragens, em quantidade suficiente para fazer estourar de gor
do qualquer outro paquiderme. então mais uma vez lamentei que palestra, em lugar d
e me haver transformado em burro, não mo tivesse feito em cão. estava eu ali, muito
bem instalado na vida, se fosse verdadeiramente um burro; mas na realidade senti
a-me exilado do convívio dos a quem continuava a considerar meus semelhantes. enqu
anto isso, via com inveja uma porção de perros, bem-aventurados, a entrar e a sair l
ivremente pela casa, assistindo a todas as refeições comuns, ou aos festins, e aí ench
endo a barriga com toda sorte de quitutes e petisqueiras que os convivas lhes de
ixavam. ao
passo que eu estava condenado a matar a fome com aqueles grãos crus, duros, sem sa
l nem molho, nem gosto, e a comer capim sem óleo nem pimenta, o que não dá certamente
a melhor salada. e a moça — a quem eu arriscara a carcaça e a vida por salvar dos band
idos — a pensar que o seu amiguinho não poderia desejar mais nada! e com todos esses
inconvenientes, eu bem previa que aquela mesma e relativa felicidade não podia de
ixar de ter um fim, pois a experiência da vida me ensinara que se não há mal que sempr
e dure, também não há bem que não se acabe... como era de prever, apesar da vagabundagem
em que vivia, com a vegetariana dieta a que estava condenado pusme a emagrecer
e definhar a olhos vistos. diante disso o fazendeiro, a quem a filha dissera tod
a a afeição e gratidão que tinha por mim, achou que eu estava sofrendo era de solidão e
falta de exercício, pois passara dos mais rudes trabalhos a completa ociosidade. c
hamou então um servo e ordenou que me levasse e soltasse na invernada das éguas, que
do ponto de vista estritamente cavalino era o mais invejável pasto da fazenda. — hão
de ver como ali em pouco tempo ele engorda! — disse o bom velho, sem suspeitar que
estava era lavrando a minha sentença de morte. de fato, mal me vi no meio da potr
ancada, logo senti todos os inconvenientes da nova situação: os garanhões, cuidando qu
e eu tivesse alguma intenção indiscreta quanto às suas caras metades, não me davam um in
stante de sossego, correndo-me a coices e dentadas, mal me viam aproximar, inoce
ntemente, de alguma égüinha. assim andava eu o mais do tempo escondido pelas moitas,
condenado a viver de capim puro e água, sem ter ao menos a tranqüilidade e paz de es
pírito que desfrutava antes, na estrebaria. decididamente a felicidade neste mundo
é uma coisa muito relativa, mesmo para um burro...
voltas que o mundo dÁ pelo visto estava eu condenado de uma vez a não ter sossego ne
m ventura na minha asnática existência: fossem bandidos que me escravizassem, ou ser
es mais benignos, que me quisessem afagar, tudo afinal saía errado e eu me sentia
infeliz de qualquer jeito. aquela moça, por exemplo, que se me dizia tão grata e ami
ga, logo depois de chegada à fazenda casara como seu salvador e com ele fora morar
a outras terras. no mofino jumento, que um dia arriscara o couro para libertá-la,
nunca mais pensou, decerto, enlevada como devia andar, na sua lua-de-mel. assim
, lá fiquei eu, na invernada, esquecido dos deuses e dos homens, e exposto aos coi
ces e às dentadas de mais de meia dúzia de cavalões ciumentos. por essas e por outras é
que eu digo e repito: — vá alguém fiar-se em juras e promessas do belo sexo!... mas do
nde menos se espera, daí é que vêm as surpresas. de certo modo foi à cobiça e maldade de u
m servo, que devo o haver mudado, de repente, de fadário. foi o caso que aquele me
smo sujeitinho a quem o fazendeiro incumbira de me levar às éguas, vendo que ninguém m
e aproveitava em nenhum serviço, resolveu apossar-se de mim em benefício próprio, com
a maior semcerimônia deste mundo. para isso deixou passar algum tempo, até certifica
r-se de que realmente ninguém mais se lembrava do pobre burrico que viera com a moça
. e uma noite foi à invernada, e não tardando a descobrir onde eu me achava, passou-
me uma correia nas fuças, e levou-me sorrateiramente à sua casa. aí,
entregou-me a milótris, sua mulher, dizendo que o patrão me dera a eles de presente,
e que portanto tratasse de utilizar meus préstimos como achasse conveniente. ouvi
ndo isso a mulher bateu as mãos de contente, e logo no dia seguinte, tirando da at
afona do moinho o escravo que ali diariamente trabalhava, atrelou-me em seu luga
r, a fim de o aproveitar melhor em outros serviços. assim, por prêmio de todos os me
us heróicos feitos e façanhas, contra manhosos usurários e facinorosos salteadores, ei
s-me miseravelmente reduzido ao degradante ofício de mover uma almanjarra, para mo
er a farinha de um casal de salafrários! oh! zeus ctézios, que tortuosos e inescrutáve
is são os decretos da tua justiça!! mas como tudo neste mundo tem o seu direito e o
seu avesso, dentro em pouco comecei a entrever algumas vantagens na tramóia do des
avergonhado servo. É que aos cuidados de milótris estava a moagem de toda a farinha
consumida na fazenda; e como digna esposa de tal marido, ela deixava de entregar
ao senhor uma boa parte do produto, com a qual fabricava pães, broas e bolos de m
el, que clandestinamente mandava vender ao mercado. inteirando-me de tal procedi
mento, que julguei indigno, indecoroso e desprezível, tratei de tirar partido dele
para variar e melhorar de regime, que continuava a constar de feno áspero e algum
a aveia mofada e cheia de caruncho, imprestável para outro uso. ora, milótris, não sus
peitando que dentro de seu pobre asno morava uma alma humana, que humanamente se
ntia e raciocinava, costumava deixar em tabuleiros, na casa do moinho, toda a qu
itanda que tirava do forno, enquanto ia lá dentro tratar de outras providências. eu
aproveitava então a
oportunidade, e metendo o dente em tudo quanto me ficava ao alcance do focinho,
ia enchendo o bucho com a gostosa comesaina. e quando me remordia a consciência po
r tal procedimento, eu a adormecia lembrando-lhe certo provérbio que rima ladrão com
cem anos de perdão... Às vezes parece que a mulher, dando por falta de alguns bolos
mais vistosos, suspeitava alguma coisa, e me olhava, desconfiada. mas eu contin
uava a rodar o moinho, no monótono e desesperante ritmo de sempre, com uma cara tão
inexpressiva e triste, que logo a convencia da minha mais que imaculada inocência.
e então, não havendo ninguém mais a quem atribuir o desfalque, ela repreendia e casti
gava o escravo, certa de que não podia ter sido outro o larápio. no que aliás não errava
muito, pois mais de uma vez o vi, julgando-se a sós na moenda, avançar na quitanda
sem o menor resquício de vergonha, como perfeito patife que era.
vida de lenhador o mais duro serviço que porém me davam era ir ao cume de um alto e
remoto morro, a buscar lenha. o caminho era apenas um trilho entre macegas e roc
hedos, coberto de cascalho e pedregulho que me maltratavam as patas de maneira h
orrível. calóforo, o rapazola que me conduzia, era a mais rematada encarnação do mal que
jamais pisou neste planeta: sua maior e mais constante preocupação era escarafuncha
r na cachola os mais engenhosos meios de judiar de mim. montado no meu lombo, po
r mais que trotasse, e mesmo galopasse, ladeira acima, o pequeno sacripanta não ce
ssava de meter-me o rêlho, dando freqüentemente, com o cabo, bordoadas cruéis e sempre
no mesmo sítio da minha pobre anca, do que resultou dolorosa chaga, que as moscas
e varejeiras me tornavam ainda mais insuportável. de volta, vinha ele a pé atrás de m
im; mas isso não me era nenhum alívio, pois o malvado carregava-me a cangalha com ta
l quantidade de feixes, que eu quase sucumbia ao excessivo peso dela. e se por a
caso, aos trancos do caminho, a carga ficava torta e desequilibrada, ameaçando cai
r e se esparramar no chão, o desalmado, em lugar de arriá-la e arrumá-la de novo, cata
va grossas pedras, que acrescentava ao lado mais maneiro, para com esse contrape
so restabelecer o balanço! assim me impunha o capeta uma carga extra, que somada à p
rimitiva seria suficiente para estafar um elefante. e o pior para mim era saber
que boa parte dela era absolutamente inútil! mas isso não era tudo: o caminho, no so
pé do morro,
transpunha alguns córregos; e como não havia pontes, o diabrete, para não molhar as pe
rnas, encarapitava, nesses momentos, na minha garupa, para a travessia; e uma ve
z na outra margem, fingia-se de distraído e nunca se resolvia a descer dali! Às veze
s, sem nenhuma razão, apenas para divertir-se, o demoninho arrancava à beira do atal
ho um pé de urtiga e mo amarrava ao rabo; de sorte que a cada passo que eu dava, s
entia entre as pernas os espinhos e queimaduras da amaldiçoada planta. um perfeito
carrasco, o bandidinho! e além de carrasco, ladrão: ao passarmos, de volta, pelas h
erdades que beiravam a estrada, ele ia vendendo às mulheres dos sitiantes alguns f
eixes de lenha, embolsando para si o fruto dessas transações. e ao chegar a casa, co
mo milótris estranhasse a vinda de tão pouca lenha, ele deitava a culpa em mim, dize
ndo que eu era um mandrião, que com alguns feixes a mais me deitava no chão e não leva
ntava nem a poder de pancadas. e para testemunhar o que dizia, mostrava o sinal
da sua pancadaria no meu corpo. ela davalhe todo crédito, e determinava que voltásse
mos no dia seguinte à serra, a lenhar de novo!
as crueldades de calÓforo ora, um dia perdi a paciência e estendi o malvado rapazola
no meio do caminho, com um coice bem na boca do estômago. mas para o meu próprio ma
l o fiz: calóforo criou ainda mais ódio em mim e suas invenções perversas redobraram. po
uco tempo depois os moleiros encarregaram-no de levar à aldeia próxima uns fardos de
estopa. os olhos do rapaz fuzilaram de alegria ao receber a ordem. foi correndo
buscar-me, e pondo-me a cangalha, nela amontoou todos os fardos, cuja quantidad
e e peso davam para dois bons cargueiros; e tão cuidadosamente os amarrou, que eu
logo desconfiei que o tratante devia estar-me armando alguma. e estava, mesmo: n
o momento de sairmos, correu à cozinha, de onde voltou com uma acha acesa, que ocu
ltou o melhor que pôde à vista dos circunstantes. e quando estávamos a certa distância d
a casa, enfiou o tição no meio da estopa, a qual imediatamente pegou fogo. daí a uns m
omentos estava eu transformado numa imensa e semovente tocha, e por mais pinotes
, trancos e corcovos que desse não conseguia desvencilhar-me de tão sinistra carga.
não fora à toa que o carrasco tivera tamanho cuidado na amarração! estava, pois, condena
do a morrer assado, suplício que só se aplica a criminosos da pior espécie. desesperad
o, não sabia o que fazer, quando reparei que a certa distância do caminho havia um b
rejo. corri então como uma lebre e meti-me no pântano até as orelhas, virando-me e rev
irando, num e noutro costado, a fim de mergulhar no
lodo toda a estopa chamejante. assim escapei, por um triz, de uma morte abominável
, embora a troco de novas e não menores torturas. porque a estopa, ao apagar-se, e
ncharcara-se de água, de sorte que quando consegui afinal sair do brejo, o peso qu
e levava tinha aumentado umas três ou quatro vezes. em todo caso, tropeçando e caind
o a cada passo, enfim chegamos ao destino. mas aí o safardana disse ao destinatário
da carga que eu é que me aproximara, teimosamente, de uma fogueira que havia à beira
do caminho, e que ele tivera um trabalhão incrível para apagar, com a água de um boei
ro, a estopa que se incendiara!... e a mesma história, enfeitada ainda com novos p
ormenores de sua inventiva, conta o maroto aos patrões, quando voltamos para casa,
levando, em lugar do dinheiro, o resto da estopa sapecada e umedecida. no outro
dia, mandado à serra para lenhar, o maroto arrumou-me, como de costume, uma carga
esmagadora; e em vez de voltar direito ao moinho, tomou outro atalho, por onde
fomos ter à casa de um camponês distante, a quem vendeu a lenha toda. de volta, diss
e aos patrões que eu era um bicho endemoninhado, que em vez de levar a carga sosse
gadamente, como me competia, me pusera a pinotear, a morder, a escoucinhar, sem
motivo nenhum, até esparramar pela estrada todos os feixes, soltos e desfeitos. co
m o que ele, coitadinho, perdera todo o seu trabalho!... irritado com a coisa, e
ainda com a lembrança do negócio da estopa, em que perdera mais de vinte dracmas, o
moleiro ficou fulo de raiva, e sem medir as palavras disse ao rapaz que na manhã
seguinte me passasse uma faca na goela, reservasse para ele o couro, e distribuíss
e a carne entre os
outros escravos do serviço!
o motim se bem o recomendou o irado moleiro, melhor o entendeu o pequeno facínora.
ao dia seguinte, logo de manhãzinha, prendeu-me pelo cabresto a um mourão, no terre
iro, e bem junto de mim pôs-se a afiar duas grandes facas de cozinha, cujas lâminas
brilhavam sinistramente ao sol. e de vez em quando parava na amolação, para correr a
polpa do polegar pelo gume das facas; e não as julgando ainda suficientemente afi
adas, voltava a passá-las de novo no rebolo, amorosa, delicada e deliciada-mente.
assim esteve uma boa parte da manhã, protelando e antegozando o meu suplício. enquan
to isso eu ruminava comigo mesmo algum truque, ou golpe, com que mais uma vez lo
grasse escapar à sanha da nemesis fatídica. lá pelas tantas, porém, surge um escravo da
casa grande, a dizer aos do moinho que tinha chegado a hora: — então ou nunca! — a hor
a de que? — perguntaram os outros, juntando-se imediatamente em volta do gazeteiro
. — de ficarmos livres! — respondeu ele. — de fugirmos daqui para bem longe, e mudar d
e vida, minha gente! — mas que raio de história é essa? — perguntou o moleiro. — É isso mes
o: não vê que o patrão, a mulher, a filha e o genro embarcaram um dia destes para delf
os a cumprir uma promessa. no meio da viagem morreram todos num naufrágio. e como
não ficou nenhum herdeiro conhecido, vai ser tudo posto em hasta pública: fazenda, e
scravos, animais de serviço, gado, colheitas, etc. quem maior lance
fizer no leilão será o nosso novo dono; e quem pode lá saber se não será pior peste do que
o velho?... e acrescentou que assim que na fazenda se soubera da situação, todos os
escravos instantaneamente se consideraram desde logo livres e senhores dos seus
narizes: incontinenti haviam assassinado o ecônomo, o capataz e o feitor, saquead
o a fazenda, tratando depois cada qual de porse ao fresco o mais depressa que po
dia. ouvindo isso, todos ali desandaram também, cada um por seu lado, a saquear o
que encontrava, na ânsia de não encetar a fuga de mãos abanando. e o mensageiro, vendo
me preso ao palanque, desamarrou num átimo o cabresto, saltou-me no lombo, e agarr
ado à cernelha, tocou-me a toda a brida para a sua casa. ali chegando deitou-me un
s arreios, arrumou neles a mulher e os filhos, e reunindo outros animais já carreg
ados com o que lhe coubera no saque, botou-se com essa tropa pela estrada afora,
sem olhar para trás. embora sobrecarregado como sempre, e lamentando a triste sor
te da minha bela companheira de cativeiro entre os ladrões, saí trotando prazenteira
mente, pois no meio de toda aquela tragédia, de mortes, revoltas e piratarias, o q
ue eu via bem claro é que só a esse preço escapava à parca imiga, que mais uma vez quase
me agarrara pela cola. e minha satisfação era ainda maior ao perceber que o demônio d
o calóforo lá ficara, entretido com a revolta, o saque, e outras patifarias que dece
rto cuidava poder então cometer impunemente. assim viajamos várias noites, acampando
para descansar, e principalmente para nos esconder, durante o dia. ao cabo do q
ue, chegamos afinal a uma cidade, que perguntando e
indagando de uns e de outros, soubemos que se tratava de beroe, na macedônia. meu
novo dono achou que devíamos parar aí e descansar alguns dias, até que pudesse trocar
por metal sonante as jóias e objetos valiosos que na fazenda roubara.
vendidos em leilÃo alguns dias depois éramos levados, eu e as outras alimárias, a uma
grande praça, onde havia muita gente que parecia à nossa espera. nessa multidão logo n
otei que predominavam os do campo: lavradores, ecônomos e feitores, das estâncias vi
zinhas, com certeza. e compreendi também que íamos ser postos em leilão. nosso detento
r não desejava perder mais tempo em negociar-nos um a um, em morosos regateios; an
siava por ver-se logo livre de todo trambolho, para mais facilmente alcançar o lit
oral, e embarcar para dardânia, onde esperava estabelecer-se e passar o resto da v
ida em branca nuvem. logo um pregoeiro, de voz estentórica, subiu a um tablado, e
apontando com o dedo a tropa, pôs-nos todos em oferta, gabando a beleza e garbo do
s cavalos, a corpulência e a saúde das éguas, a resistência e força dos jumentos, e a raça,
o pêlo, a idade, a índole, o talento e outras mirabolantes prendas, com que nenhum d
os meus pobres companheiros jamais tinha sequer sonhado. os interessados não se de
ixavam porém levar por tais lorotas; metiam-se no meio da tropa, examinavam direta
e detidamente os animais: erguiam-lhes as pálpebras, arreganhavam-lhes os dentes,
levantavam-lhes os rabos, palpavam-lhes o cedenho, os lombos, as canelas e os m
achinhos; soerguiam-lhes as patas para inspecionar os cascos; depois recuavam pa
ra melhor apreciar o conjunto, a ver se nenhum seria por acaso náfego, selado ou c
orcovado; tudo examinando e avaliando, enfim, como perfeitos e desconfiados sabe
dores do ofício.
somente depois disso é que se decidiam a fazer, por este ou aquele animal, um lanc
e. o pregoeiro ia então ouvindo as ofertas, e anotando-as com os nomes dos postula
ntes, numa taboinha. e quando a cavalgadura alcançava um lance que ninguém cobria, b
atia com o couto da vara no tablado, dando-a por arrematada pelo derradeiro ofer
tante. este desatava então um nó na faixa que lhe cingia a cintura, tirava daí uns par
es de moedas de prata, e alguns cobres, e contando e recontando tudo, entregava-
o ao leiloeiro; o qual por sua vez contava e conferia, e achando-o certo, entreg
ava ao outro a égua ou o cavalo, ou o burrico, conforme fosse o caso. e passava a
apregoar o animal seguinte: — quanto me dão por este nobre hipomedonte, digno de pux
ar o carro de hélios? e a coisa recomeçava, oferta sobre oferta, até ultimar-se a vend
a.
novo dono, novo destino assim, dentro de cerca de uma hora tinham sido arrematad
os, por outros tantos sujeitos, todos os meus quadrupepedais colegas; e eu fique
i sozinho. por mais que o leiloeiro se esgoelasse a exaltar as minhas qualidades
físicas, morais e estéticas, e ainda outras muitas minhas excelências, ninguém propunha
sequer um óbolo para tornar-se meu proprietário. minha machucadura no casco, meus f
erimentos na anca, as queimaduras e pisaduras em vários sítios de minha pobre carcaça,
e além de tudo as costelas, as vértebras, e outros ossos que indiscretamente se rev
elavam debaixo do pelame, atestando a magreza a que me reduzira ultimamente a ru
de vida, eram tudo eloqüente desmentido às profissionais hipérboles e metáforas do prego
eiro. ninguém, evidentemente, queria arriscar o seu rico dinheirinho trocando-o po
r uma alimária estropiada e esquálida, que parecia prestes a dar com o rabo na cerca
. e quanto mais se esfalfava o leiloeiro em descobrir em mim miríficas qualidades
corporais, além de outras, de espírito, de coração e estirpe, mais redobravam as gargalh
adas e os remoques dos papalvos que ainda se ali quedavam, aparentemente curioso
s por ver o que seria feito, afinal, de mim. — É um poleiro de corvo... — dizia um. — não
vale a primeira ração de farelo que lhe derem. — pelos dentes — acudia um outro — deve ter
mais de vinte anos: não tem portanto mais que um mês de vida, se chegar a tanto... —
está tão velho e estragado, que nem de graça eu ficaria
com ele — acrescentava um terceiro. eu, humilhado e triste, ali ia ficando, a cism
ar, como aqueles basbaques, em qual seria o meu destino se não aparecesse mesmo ni
nguém que me quisesse. estávamos em província meio bárbara, e não era impossível que algum
iperbóreo devoto, vendo que ninguém por mim se interessava, oferecesse meia dracma p
ara levar-me ao templo dos seus deuses, e aí sacrificar-me a apoio, como é o estúpido
costume de tal gente... finalmente, depois que quase todos os curiosos haviam ab
andonado a praça, achei-me a sós com o leiloeiro. este parecia irritado a meu respei
to, pois por minha causa não podia ir logo para casa, tratar de outros negócios. do
que eu não augurava nada de bom quanto ao futuro. nisso surge um velhote, de cara
cínica e velhaco aspecto, que pousando-me a mão na cernelha, perguntou: — É para vender,
este cadáver ambulante? — É — respondeu secamente o pregoeiro. — quanto é que quer por ele
— não sei: aos interessados é que compete fazer oferta; se ninguém cobrir o lance, fica
com o semovente... — ofereço dois óbolos; que tal? — complete meia dracma e o bicho é seu
. vale muito mais... o velho tirou da cinta uma bolsa, e catando entre muita moe
da de prata, e algumas de ouro, um par de cobres, estendeu-o ao pregoeiro, em pa
gamento. e dando uma risadinha debochada, indagou: — então é meu o burro? — É — respondeu o
outro. — e muito respeito com ele: dizem que descende em linha reta do rei midas..
.
— então vem a calhar para o que eu quero — rematou o outro. e foi assim que mais uma v
ez mudei de dono e de destino.
a serviÇo de cibele filebos era o nome do sujeito que me arrematara. o qual ao che
gar a casa, numa das saídas da cidade, pôs-se a gritar com toda a força dos bofes: — olá,
meninos! venham ver o servo que acabo de comprar para vocês! um belo escravo da ca
padócia!... os tais meninos eram uma súcia de rapazolas, com os quais andava filebos
de um lugar para outro, a exibir e a explorar uma imagem de cibele, a dea syria
ca, de quem se dizia sacerdote. exibindo-a nas cidades, nas vilas, e povoados, c
olhiam farta messe de esmolas, em dinheiro ou em espécie, com o que viviam à tripa f
orra, sem trabalhos nem cuidados. quando numa localidade começavam a escassear as
oferendas dos devotos, punham a imagem num andor, e levavam-na estrada afora, ca
ntando, dançando e tangendo címbalos ao redor dela. e iam parando nas herdades e estân
cias, onde nunca faltava quem os acolhesse e agasalhasse, à larga, em atenção à deusa. a
o ouvir que o velho lhes trazia um servo de capadócia, pensaram os marotos que se
tratava de algum escravo daquela província, sem se lembrarem de que essa região é just
amente famosa pela excelência dos jumentos que exporta. assim, ao ver que o servo
anunciado não passava de um jerico pelado, estropiado e manco, ficaram furiosos e
começaram a xingar filebos de todos os nomes feios que tinham na memória, nesse capítu
lo mui rica. até que um deles, mais gracioso, impondo silêncio aos outros disse, em
tom grave e circunspecto:
— mais respeito, rapaziada: não vêem vocês que o velho encontrou afinal o próprio pai, de
cuja pessoa e destino não havia notícia certa? vejam só como se parecem! devemos vener
ar uma tal prova de filial amor... com o que a raiva dos rapazes descaiu para um
a grande troça. mas o velho não se deu por achado. deixando-me aos cuidados dos meni
nos, afastou-se outra vez para a cidade, de onde daí a pouco voltava trazendo nos
ombros uma velha cangalha. e entrando na casa, pôs-se a consertá-la e adaptála, de for
ma que apresentasse, na parte de cima, elevada a certa altura, uma espécie de tabo
leiro, ou plataforma, onde a imagem de cibele pudesse ficar seguramente fixada.
entre esse taboleiro e a cangalha, propriamente, ficava um espaço quadrado, ou >>
caixão, que o velho guarneceu com panos de seda, aos quatro lados, dando-lhe o jei
to de uma rica e vistosa peanha. vendo esse arranjo, os outros começaram a mudar d
e tom, porque logo adivinharam que eu os iria substituir daí por diante, no mister
de transportar a imagem, o que até então era tarefa deles, em turnos de quatro em q
uatro. o que o velhote não demorou a perceber, conforme se via no risinho irônico qu
e que lhe aflorava à boca desdentada, enquanto ultimava aos aprestos da cangalha.
logo ao dia seguinte preparam-se todos, desde cedo, para a partida. a cidade, ao
que parece, já lhes tinha dado o máximo de rendimento, e não valia a pena perderem al
i mais tempo. puseram-me nas costas o tal arreio, e com correias disfarçadas sob g
uirlandas de folhagens, firmaram em cima dele a imagem que me competia transport
ar.
e com as danças, os cantos e os timbaleios do costume, deixamos a cidade e saímos a
vaguear estrada afora.
minha primeira atuaÇÃo assim fomos andando, colhendo aqui e ali, de algum viajante m
ais beato, alguma moedinha, ou dádivas de roupas e alimentos, dos campônios que acud
iam das suas lavouras, ao verem-nos passar. ao cabo de algum caminho, chegamos a
um povoado, onde filebos resolveu fazer breve estadia. buscamos assim a praça pri
ncipal da vila, onde eu me detive com a deusa às costas. os mariolas puseram-se en
tão a dançar e a cantar, ao som de suas flautas, címbalos e adufes, numa melopéia rítmica,
monótona e estridente, que não tardou em reunir em torno de nós uma turba de devotos
e curiosos. e quando a multidão se tornou bem numerosa, iniciou-se de vez a função. en
quanto os das flautas, tímpanos e pandeiros continuavam com a música, os outros metr
agirtes começaram a simular o delírio sagrado. uns atiravam ao chão as suas mitras, de
rreavam para trás a cabeça, retorcendo o pescoço, mordendo a língua, e estertorando e gr
unhindo como possessos; outros golpeavam as próprias pernas, os braços e o ventre, c
om espadas, até parecerem inteiramente cobertos de sangue; outros, enfim, caíam cata
lépticos, e firmados apenas com o occiput e os pés no solo, formavam com o corpo um
arco em que vinha encarapitar-se um colega, dando-lhe trancos aparentemente capa
zes de deslombar um touro. e com essas e quejandas pantomimas, despertavam a adm
iração e a reverência do povinho, certo, este, de que estava a presenciar uma autêntica
e indubitável manifestação divina. durante esse tempo filebos conservava-se a meu lado
, em
atitude hierática e solene, pronunciando a meia voz uma sucessão de litanias em que
o nome fenício de cibele vinha freqüentemente repetido. mas quando julgou que a cois
a chegara ao ponto favorável, com os assistentes imóveis, de olhos arregalados e de
boca aberta, tomou de uma salva, e deitando ao ombro uma bissaca, saiu a recolhe
r as dádivas. logo começaram a retinir na bandeja as moedas, e a engolfarem-se no al
forje os punhados de figos, de passas e de azeitonas, e os bolos, as broas e pães
de centeio, além de algum pato, coelho, abóbora, pepino, couve, repolho e outras que
tais ofertas. e com tristeza eu vi que a bissaca recolhia também mancheias de cev
ada e aveia, evidentemente doadas em minha intenção... e quanto mais tiniam as moeda
s na salva, e engordavam as bolsas do sapicuá, mais crescia o sagrado transe ou fr
enesi dos nossos coribantes. durou o espetáculo bem mais de duas horas. afinal, di
spersada quase toda a turba, e despedidos os últimos devotos, voltou filebos, sorr
identemente carregado; e soerguendo uma das sanefas da peanha, esvaziou no inter
ior o farto conteúdo do alforge. por onde vi que mesmo entrando em tão sagrado serviço
, não escapara eu de todo à sina de cargueiro... — em todo caso — pensei — se a coisa não f
r muito além disto, ainda é esta a melhor vida que tenho tido desde que virei burric
o!...
quem anda com manco nesse teor me foi então correndo a vida, mais ou menos docemen
te. o trabalho de teóforo, que eu fazia, era relativamente leve, e nunca andávamos m
aior distância que de uma aldeia a outra. aparentemente filebos e seus acólitos não ti
nham muita pressa; a noção de tempo e espaço lhes era absolutamente alheia ou desdenháve
l. dormíamos ordinariamente todos juntos, sempre nalguma casa ou tenda isolada, na
s cercanias dos povoados. e como depois das orgias, a que de portas adentro os m
eus parceiros se entregavam, comendo e bebendo desbragadamente do produto da sua
indústria, todos caíam numa profunda e uníssona camoeca, dormindo e roncando como uns
porcos, sempre se me deparava algum jeitinho de encher também o pandulho com os r
estos do regabofe. devorava os bolos, os figos, as olivas, os nacos de peixe ou
de carneiro, que haviam sobejado, e ainda ajudava a enxugar as ânforas de vinho qu
e os farsantes não houvessem de todo esvaziado. como se vê, parecia que tique finalm
ente se cansara de perseguir-me e resolvera abrir uma fase nova em minha asinina
existência. com o que, comecei a restaurar as forças, a deitar corpo e a criar unto
s, amaciando-se-me de tal sorte o couro e alisando o pêlo, que em pouco tempo eu p
arecia inteiramente outro. e não sem dar nas vistas dos biltres meus comparsas, qu
e logo se puseram a notar: — vejam só o maroto deste bucéfalo: quando veio não passava d
e um feixe de ossos dentro de um odre roto e
escalavrado: agora que nos acompanha em nossa pia peregrinação, em pouco tempo torno
u-se nédio, brilhante e luzidio como um melro! que outro melhor sinal de que cibel
e nos é propícia e aprova a santa penitência em que andamos?... — É verdade — acudiu um del
s. — tanto mais que este malandro, que apenas nos livrou da maçada de carregar o and
or, parece viver de brisas: quase não toca na forragem que lhe damos, quando é certo
que a essa espécie de alimária não há cevada, nem aveia, nem feno que lhe chegue: um únic
o burrico come por dois ou três cavalos... — e é mesmo! — concordaram todos. — nunca se vi
u tão singular jejuador como esse!... essas e outras semelhantes considerações dos ind
iscretos raparigos puseram-me de orelha, como se costuma dizer, em pé: se eles des
confiam da marosca e põem espiões a vigiarme, lá se me vai por água abaixo toda a minha
providencial pitança... então tratei de tomar umas tantas providências. lembreime daqu
eles debochados de roma, de quem se diz que quando estão a arrebentar de cheios, n
os banquetes, afastam-se a um adequado sítio, e metendo o dedo na goela, provocam
a regurgitação do já comido, a fim de volverem ao festim com a capacidade ingurgitava
renovada. e todas as noites, antes de regalar-me com a apetecida petisqueira, en
golia, sem mastigar punhados e punhados de aveia e cevada, até diminuir-lhes visiv
elmente o monte. depois ia ao recanto que os meliantes destinavam a semelhante p
réstimo, e sem maior esforço restituía ao monturo todo o cereal repugnadamente absorvi
do. e só então, descansadamente, é que me entregava ao costumeiro bródio.
um "hi-han!" intempestivo estÁvamos um belo dia em certa aldeia, onde a féria de óbulo
s e oferendas fora das mais pingues. vai daí, entendem os meliantes de convidar al
guns jovens camponeses para um festim, que, diziam, iam celebrar àquela noite em h
onra de cibele. o que fizeram apesar dos protestos de filebos, que pelos modos não
antevia nada de bom em semelhantes cortesias: — meninos — dizia o velhote — mais de u
ma vez já tenho dito que não convém trazer gente profana ao nosso operto. cada vez que
vocês não me obedecem nessa regra, sai encrenca!... mas os "meninos" fizeram ouvido
de mercador às prudentes palavras do corifeu, e à noite a casa ficou cheia de rapaz
es e raparigas, ansiosos pela festa. e como era de esperar, dentro em pouco temp
o os vapores do vinho entraram a fazer o seu ofício, degenerando a ceia numa farra
das mais desbragadas deste mundo. a algazarra era infernal. os gestos e as atit
udes daquele bando de estróinas iam-se tornando cada vez mais indecentes. e as fra
ses, os ditos, os berros e as imprecações, capazes de enrubescer a um fauno. a toda
essa bacanal eu assistia, indignado, do meu canto. e mais ainda ao ver que o mes
mo filebos, perdendo a compostura e o escrúpulo que pouco antes afetara, entrara t
ambém na dança e era um dos mais salientes e desavergonhados da indecorosa sarabanda
. assim, esquecendo mais uma vez minha mofina condição de asno, em dado momento ente
ndi de manifestar a minha
abominação, exclamando a plenos pulmões: — Ó zeus poderoso e pacientíssimo! onde tens teus
aios, que não fulminas imediatamente toda esta corja de birbantes?!... mas de novo
aconteceu o que doutras vezes sucedera: em lugar do meu protesto, o que se ouvi
u foi um zurro altíssimo e clangoroso, que reboou pela sala, pela casa e pelos arr
edores, pondo de pé, surpreendidos e aterrorizados, todos os partícipes da desbragad
a súcia. e quando todos iam caindo em si, do susto, e já alguns começavam a rir por ve
r de onde e de quem partira discurso tão inesperado, ouve-se na rua uma grande gri
taria, a que logo se segue um bater atroador à porta. de novo os meliantes ficam m
udos, a olhar uns para os outros, espantados. mas desta feita logo viram que o c
aso era bem mais sério do que antes. impacientes por não lhes ir ninguém abrir a porta
, os de fora tinham metido nela os ombros, deitando-a abaixo fragorosamente. e s
em maiores cerimônias irromperam na sala do festim, onde o espetáculo que viram os e
ncheu de indignação ainda maior. era um grupo de campônios dos arredores, que andavam à
cata do jumento de um deles, que sumira. iam passando pela casa exatamente no in
stante em que eu invocava os raios de vulcano para os nossos valdevinos; e ouvin
do o meu altissonante orneio, logo pensaram que o orneante fosse o que buscavam.
assim tinham vindo bater à nossa casa; mas vendo que ninguém lhes acudia, e atentan
do aos ecos da algazarra que ia dentro, arrombaram a porta sem maior delonga. an
te a cena, porém, que ali se lhes deparava, logo esqueceram o burro procurado: é que
todos eles tinham
concorrido, pouco antes, com suas dádivas, que cuidavam ser em honra e glória de uma
deusa, e agora estavam vendo em que tal glória e honra consistiam. mas o que lhes
pareceu o cúmulo da infâmia foi ver, entre aqueles jovens, ébrios e descompostos, est
e a um filho, aquele a uma filha, aquele outro a uma irmã, e assim por diante. então
ficaram furibundos, e agarrando cada qual pelo gasnete o seu parente, levando-o
s a pescoções e bofetadas, para fora, anunciaram a fibelos que assim que amanhecesse
iriam denunciar-nos ao pretor, como ímpios, sacrílegos, prevaricadores e corruptore
s da juventude. — fiquem aí, curtindo o seu pifão, até que os meirinhos venham para os m
eter no xilindró!...
como sempre, eu pago o pato assim que os camponeses se retiraram, tanto filebos
como seus pupilos imediatamente sararam da carraspana. num instante o susto e o
medo dissiparam-lhe das cabeças os eflúvios da vinhaça. e como se de antemão tudo estive
sse combinado, todos se aprontaram para pôr o pé na estrada quanto antes. atiraram-m
e às costas a cangalha com a deusa, ajuntaram o que puderam de toda a tralha que a
ndava esparramada pela casa: mantimentos, roupas, armas e instrumentos, e enchen
do-me a peanha com o que coube nela, saíram comigo da aldeia, em plena escuridão, a
fim de que quando chegassem os meirinhos já estivéssemos bem longe. e por caminhos e
atalhos distantes das estradas principais, fomos trotando todo o resto da noite
, de sorte que ao raiar o dia e empinar o sol, achávamo-nos razoavelmente fora do
alcance do "inimigo". então, parando para descansar ao desembocar o carreiro numa
estrada, puseram-se os farsantes a comentar os últimos sucessos, chegando em breve
à conclusão de que o responsável por todo aquele desaguisado fora eu. — foi esse burro
quem nos estragou a festa, o maldito!... — É mesmo: se esse salafrário não desse para zu
rrar tão fora de propósito, nunca aquela gente se lembraria de nos vir perturbar a f
esta!... — É preciso dar uma lição nesse maroto, para que ele aprenda a respeitar nossos
mistérios... — exatamente; nem devemos perder mais um minuto para decidir: tem que
ser já...
arriando-me então a cangalha, e o tapete que me servia de baixeiro, depuseram a im
agem à beira do caminho e amarraram-me ao tronco de uma árvore seca que havia perto.
e uns fazendo látegos das correias, outros armados de cacetes que andaram catando
pelas redondezas, deram-me uma tunda de mestre, sem se incomodarem com meus gem
idos e corcovos de protesto. e provavelmente ter-me-iam matado a bordoadas, numa
diamastigose verdadeiramente espartana, se afinal filebos, lembrando decerto as
dracmas que dera em pagamento ao leiloeiro, não pusesse cobro à fúria daqueles assass
inos: — chega, meninos! — gritou o velho. — se matam o burrinho terão de carregar de nov
o a deusa no andor, como antes!... então, caindo em si, acharam os malvados que já t
inham feito o bastante para minha emenda, e aos poucos foram amainando a surra.
e ali fiquei eu, derreado no chão, mais morto do que vivo, a matutar que novos tor
mentos e misérias ainda me reservaria a adversa fortuna!
novo e terribilÍssimo perigo mal refeito ainda daquela flagelação, fizeram-me os malan
dros levantar, a pontapés e cutucões de faca, pois iam prosseguir viagem. com a deus
a e a cangalha novamente às costas, lá fui eu, com os meliantes, a trotar pelo camin
ho, apesar de não ter no corpo um osso, uma junta ou um músculo que não estivesse agud
amente dolorido. mas ao entardecer de tão mal-aventurado dia chegamos à estância de um
rico lavrador, que nos acolheu com muitas honras e agrados, por ser sua mulher
especial devota de cibele. agasalhou em casa o velho e os rapazes, como hóspedes m
erecedores da mais alta. consideração; e a mim mandou-me alojar numa tulha ou despen
sa, junto à cozinha, da qual ficava separada por uma taipa que não chegava até o teto.
um burro de verdade não teria nenhuma razão de queixa: o quarto era abrigado, e no
chão, junto à parede, havia uma dose de forragem capaz de abarrotar o bucho a meia dúz
ia de esfaimadíssimos jumentos. o diabo, porém, era o perfume que por cima da taipa
me chegava da cozinha: guisados, pastéis, assados, bolos, peixes, patos, galinhas,
de tudo me vinha até o nariz um cheirinho ao mesmo tempo delicioso e cruel. e eu
que desde a véspera não comera nada, e ainda caminhara e apanhara tanto! com água na b
oca, pus-me então a escutar a conversa do casal de cozinheiros, que do outro lado
andavam de um lado para outro, atarefados. e logo comecei a sentir um certo frio
nos bofes, ao perceber que o objeto das conversas daqueles
servos, que pareciam aflitos e desesperados, não era outro senão este pobre seu cria
do! pelo que ouvi, e deduzi, o lavrador tinha recebido aquele dia, de um vizinho
amigo, um pernil de asno montes, que ele caçara. recebido tão apetitoso presente, e
ntregara-o ao cozinheiro, recomendando-lhe que o fizesse assado ao forno, que er
a como ele mais gostava do pitéu. por desgraça, à nossa chegada à estância, o casal acorre
ra a ver-nos, com os outros servos, descuidando o pernil que lá ficara assando. de
volta à cozinha sentiram, com terror, um forte cheiro de queimado; e correndo a a
brir o forno, viram que o precioso pernil estava reduzido a um fumegante punhado
de carvão!... pensando na ira do amo ao saber da coisa, e mais ainda no castigo q
ue pelo desleixo o aguardava, o cozinheiro pusera-se a andar, desatinado, de um
lado para outro, imprecando e blasfemando os deuses, como responsáveis pela sua de
sgraça. — o raio desses sujeitos, com o seu burrico e a sua cibele, é que me fizeram e
squecer a obrigação e puseramme neste apuro... ao ouvir falar em burrico a cozinheir
a deu uma palmada na testa, e exclamou: — burrico!... olhe, é a própria deusa que nos
está. mostrando a salvação. você vai ao quartinho aí ao lado, pega o jumento que os foliões
trouxeram, leva-o ao pé do morro, entre os rochedos, e mata-o imediatamente; tira
um pernil para substituir o queimado, enterra o resto num buraco, e volta ainda
em tempo para prepararmos de novo o assado. carne de burro, selvagem ou não, tudo
deve ter o mesmo gosto...
ouvi então o estalar de um beijo: era o miserável do cozinheiro que assim aplaudia e
agradecia a idéia, na qual via a sua única saída! — e quando derem pela falta do animal
— ajuntou a peste da mulher — cuidarão que fugiu, e irão procurá-lo pela estrada...
hospitalidade interrompida criando alma nova, o cozinheiro não demorou a aparecer à
porta da minha estrebaria, com um cabresto na mão, e, a aparecer no cinto, o mal-a
gourento cabo de uma faca. sem saber ainda muito bem o que havia de fazer para m
ais uma vez despistar a parca ingrata, deixei que o homem se acercasse de mim, a
fim de que a porta do quartinho ficasse bem desimpedida. e quando ele ia erguen
do o cabresto para mo pôr na cara, apliquei o meu método costumeiro: dei um prisco p
ara o lado, arrumei-lhe nas ventas um valente par de coices, e saí voando pela por
ta afora. e uma vez no terreiro, corri para a porta principal da casa e entrei p
or ela, até à sala, onde o estancieiro principiava a ceia, em companhia de filebos e
seus mocinhos. mas no terror em que ia, vendo a morte ainda nas ancas, não repare
i no que fazia, e fui derrubando tudo o que encontrava: mesas, trípodes, candelabr
os, deixando tudo em pandarecos, como se por ali tivesse passado um terremoto. a
ssim eu escapava a um perigo eminentíssimo, para logo cair noutro talvez pior. poi
s tanto o dono da casa, como os servos, julgando que eu houvesse enlouquecido, l
ogo correram a munir-se de espadas, lanças e forcados, prontos para me dar cabo da
pele incontinenti. percebendo o novo risco que corria, enveredei por uma porta
e entrei no aposento que estava preparado para a dormida dos meus donos. estes,
ainda meio espantados com o caso, fecharam e trancaram imediatamente a porta, de
ixando-me ali outra vez preso, sem saber o que me
poderia afinal acontecer. aconteceu que o fazendeiro julgou que eu fosse um burr
o amestrado, treinado especialmente para fazer semelhantes estrepolias, a fim de
dar aso ao velho e aos rapazes para, na confusão, subtrair os objetos de valor qu
e nas unhas lhes caíssem. certo deste truque, ficou naturalmente furioso com os hósp
edes, aos quais intimou que não ficassem mais um momento sequer em sua casa: — e sum
am imediatamente destas redondezas, antes que eu mude de idéia e lhes faça pagar ain
da mais caro o atrevimento!. .. rapazes e velhote não esperaram segundo convite: a
rrumaram-me o andor nas costas e, tocando-me por diante, foram saindo cabisbaixo
s em demanda de outros pagos onde o destino se mostrasse menos atro. mas ao pass
ar pela cozinha dei uma espiada de soslaio para dentro, e pareceu-me que vi, pen
durado de uma trave, um vulto de homem, a sacolejar nos derradeiros estremeções da m
orte; seria o cozinheiro, que desesperado da vida, resolvera acabar com ela? se
assim foi, que os lobos e as hienas lhe dêem condigna tumba aos ossos!
tanto vai o pote À fonte... a raposa perde, como diz o provérbio, o pêlo, mas não perde
a manha. .. pouco depois desses sucessos chegamos a outro porém mais importante po
voado. no ponto mais elevado dele havia, consagrado a divindade local, um templo
, que por informações que logo colheu, soube filebos que era mui suntuoso, rico e pr
ocurado por peregrinos. usando então de suas lábias, convenceu o nosso velhote aos h
abitantes de que não deviam deixar cibele recolhida à casa de um simples cidadão, mas
depô-la, para passar a noite, no próprio templo da outra deusa, com a qual teria, se
gundo contrita-mente ele afirmava, tais ou quais laços de parentesco. o que foi ad
otado e aceito, sem suspeita nem malícia, pela simplória gente. retirou-se então o ídolo
, com cangalha e tudo, dos meus lombos, e em grande procissão levaram-no ao templo
, onde ficou depositado ao lado da deusa autóctone. quanto a nós outros, deram-nos p
or moradia uma excelente casa, onde passamos vários - dias regalados, enquanto as
espórtulas e oferendas não davam mostras de diminuição. de dia, trazida a imagem para a
praça, aí os teóforos davam ao povo o espetáculo das suas danças e ritos sanguinários; enqu
nto a salva e a bissaca de filebos várias vezes se enchiam. até que, chegado o dia d
e seguirmos viagem, todo o povo da vila se dirige ao templo, e formando um corte
jo ainda mais imponente do que à vinda, conduz a deusa até à nossa casa, com muitas mo
stras de devoção e respeito.
beijados então os pés da estátua pelo último devoto, e recolhida a última dracma de esmola
, dali partimos, com grande séquito, até certa distância do povoado. e depois das derr
adeiras despedidas, seguimos nosso caminho em demanda de outras paragens. mal tính
amos porém andado uns dois estádios, quando vimos atrás de nós uma turba de gente a corr
er e a gritar, num alarido. aproximando-se cada vez mais o bando, logo pelo relu
zir dos capacetes distinguimos, dentre os demais sujeitos, um bom número de legionár
ios, cujas intenções não seriam, decerto, muito amigas. dentro em pouco, ei-los todos
que nos cercam e agarram o velhote e os coribantes pela goela, imobilizando-os.
o que já nem era mais preciso, pois o medo os deixara frios e paralisados, incapaz
es de mover sequer um dedo... então, enquanto um dos soldados me segurava pela arr
eata, o decurião deu uma vistoria em regra na charola. e dentro em pouco foi retir
ando da peanha um rol de coisas de que eu nunca tivera a mínima notícia: vasos e ban
dejas de prata, estatuetas de bronze, de ouro, ou de marfim; ex-votos de idênticos
cabedais; retábulos e alfaias de variado feitio e serventia; e ainda um cofre, ch
eio até a boca de moedas, o que tudo, somado, perfazia um tesouro capaz de assegur
ar a filebos e seus acólitos uma existência ociosa e regalada por mais cem anos que
vivessem. só então compreendi o motivo que levara o velhote a insistir tanto em faze
r da nossa deusa hóspede da outra: a pretexto de dar-lhe guarda durante a noite, e
le tivera permissão para entrar no templo; e uma vez ali, não perdera tempo ao fazer
todo aquele servicinho. postos imediatamente a ferros, ante os insultos
indignados daquela pia gente, lá tiveram filebos e seus sequazes que voltar pelo m
esmo caminho, para irem celebrar os seus recônditos mistérios, desta vez entre as qu
atro paredes de um calabouço. e desde esse momento nunca mais os vi, nem soube del
es; presumo que, depois de açoitados em público, tenham sido mandados às galés, ou enfor
cados, como adequado prêmio às suas trapaças e senvergonhices.
novamente na atafona no dia seguinte fui a leilão, pela segunda vez na vida, junta
mente com outros pertences confiscados aos tunantes. desta feita, porém, a vida bo
a e a pouca fadiga do oficio de teóforo tinham-me dado um aspecto muito outro: eu
era um burrinho gordo, robusto, de pêlo fino e lustroso, que em nada absolutamente
se parecia com o mofino "poleiro de corvo" de outrora. por isso não foram preciso
s ao pregoeiro grandes esforços para achar quem me quisesse: quatro ou cinco pesso
as, das muitas que assistiam ao leilão, logo por mim se interessaram; de sorte que
os lances pela minha posse foram sucedendo-se numa porfia que em breve elevou a
s ofertas acima de quarenta dracmas. finalmente ninguém cobrindo a última, de quaren
ta e sete, o pregoeiro deu com o taco no assoalho, e eu fui adjudicado ao último o
fertante. este era um liberto, que nos arredores da vila exercia o ofício de padei
ro. o qual, escarranchado em cima de mim, imediatamente se pôs a caminho de casa,
por uma série de becos e sendas pedregosas. lá chegando, levou-me logo ao moinho, on
de se me depara uma dúzia de pobres alimárias, com a pele sobre os ossos, que punham
em movimento uma série de moendas, tudo envolvido em densas nuvens de farinha. er
am os meus futuros companheiros, cujo mísero destino eu ia desde esse momento part
ilhar. nesse dia, porém, foi-me permitido descansar. mas no dia seguinte puseram-m
e uma venda nos olhos, atrelaram-me a uma das muitas atafonas e obrigaram-me a r
etomar aquele eterno giro, sem remissão nem apelo, que eu já tão
intimamente conhecera. eu bem sabia o que um burro tem de fazer nessas condições; ma
s na esperança de ser aproveitado em algum serviço menos enervante, fingi-me de calo
iro no ofício, e deixei-me ficar, parado e imóvel, como uma estátua. os escravos que v
igiavam a moagem procuraram incitar-me com berros e palmadas na anca; mas eu, na
santa ilusão de que eles afinal desistiriam, conservei-me quieto. como quase semp
re me acontecia, foi um cálculo, esse, que me saiu completamente ao revés: os camara
das perderam afinal a paciência, e indo buscar algures alguns látegos, logo me puser
am por diante a chicotadas. entrei então a girar, rápido e solerte, como um velho az
enheiro, e ainda tive de ouvir, sem protestos, as chufas e deboches daqueles bru
tamontes, que se divertiam à grande com o meu súbito aprendizado.
uma briga desastrada nÃo sei, hoje, quantos meses passei nessa agonia. e obrigado
a matar a fome com alimentos que nos repugnavam, a mim e aos meus pobres companh
eiros, logo tornei a emagrecer e a mirrar, e a pôr-me tão mofino e estropiado, que p
arecia prestes a esticar as canelas, como se costuma dizer. vendo-me o dono assi
m tão aniquilado, e a fim de não perder de todo o dinheiro que por mim pagara, vende
u-me por algumas dracmas a um hortelão amigo seu, chamado laerte. nesta nova fase
as coisas melhoraram, para mim, um bocadinho: apenas trabalhava pela manhã, com a
fresca, quando o patrão me carregava com cestos e mais cestos de verduras, que lev
ava ao mercado. vendida a quitanda, encarapitava-se-me no espinhaço, e volvíamos a c
asa. então, enquanto ele se punha a capinar e a afofar a terra, a mondar e regar a
s plantas, eu ficava a pastar num piquete, melancólica mas sossegadamente até à seguin
te madrugada. comparada com outras que eu já passara, aquela vidinha até que não era d
as piores: trabalho, pouco, e, para variar a dieta, algumas verduras que eu cons
eguia surrupiar na horta, às ocultas do meu dono. mas o inverno vinha aproximandos
e, e o hortelão, não tendo sequer uma coberta para si mesmo, muito menos cuidava de
saber se eu passava as noites bem ou mal encapotado. sem falar nos caminhos cobe
rtos de lama gelada e escorregadia, e na escassez de produtos em que nessa estação f
icava a horta. em todo caso o pobre homem, que no fundo não era mau
sujeito, nem por isso era muito mais feliz do que eu. ao contrário: eu, na minha a
parência de asno, tinha apenas os aborrecimentos relativos à minha alma, que ainda t
eimava em continuar humana; ao passo que ele, sob a forma de gente, tinha todos
os encargos, as responsabilidades, as obrigações e as amofinações decorrentes dessa cond
ição, sem poder deixar de trabalhar o dia inteiro, como um verdadeiro burro de carga
, para poder sustentar pobremente a mulher e uma recua de crianças que lhe enchiam
a cabana. ora, um dia, quando íamos à cidade, como de costume, um soldado que topam
os no caminho faz parar o hortelão e pergunta: — onde é que vai esta estrada? não sei se
laerte estava de veneta aquele dia, ou se era habitualmente espremedor de graças;
o certo é que, em lugar de responder como toda gente faz, dando a informação pedida,
entendeu de dizer: — a estrada não vai a lugar nenhum: está parada; os que nela andam é
que vão a esta ou àquela parte... o soldado era romano, e como tal não muito afeito às áti
cas ironias. achando que era um desaforo responder-lhe, um mísero camponês, daquela
forma, fica branco de raiva e aplica no hortelão violentíssimo sopapo. laerte cambal
eia uns momentos; mas recuperando afinal o aprumo, dá no outro uma rasteira, esten
dendo-o no chão, de corpo inteiro; então cai-lhe em cima a socos e pontapés, sem pensa
r nas conseqüências. e só depois de algum tempo, tendo-o surrado a valer, e vendo que
o outro não reagia, é que reparou que o homem estava inanimado: ao cair, batera com
a nuca numa pedra e perdera os sentidos! assustado, por julgá-lo morto, o hortelão t
repa imediatamente no meu cangote e toca para a cidade num galope furioso, semea
ndo pelo caminho as
alfaces, os pepinos, os melões, as couves, e demais artigos do nosso habitual comérc
io.
uma apariÇÃo indiscreta chegando à cidade, não quis laerte ir para o mercado, onde podia
ser reconhecido e denunciado imediatamente; foi pois procurar um ferreiro seu a
migo, a quem contou todo o sucedido, pedindo-lhe que o acudisse. o outro, depois
de matutar uns momentos, resolve esconder o hortelão numa adega oculta e abandona
da, no porão da casa, até ver em que paravam as modas; o que foi feito sem perda de
um momento. restava porém uma testemunha ou cúmplice do crime, que era eu; e a minha
presença era francamente comprometedora, pois toda a gente que ia ao mercado esta
va acostumada a ver o burro e hortelão juntos. e quando dessem com o soldado morto
e vissem pela estrada os ingredientes que na fuga tínhamos vindo esparramando, lo
go haveriam de suspeitar quem estaria envolvido na pendência. então o ferreiro chamo
u os dois filhos, e atando os meus quatro pés num feixe, com sólidas correias, içaram-
me a uma corda, passada numa roldana, até acima do telhado, onde havia uma açotéia. de
pois, por uma janelinha, recolheram-me ali, desamarraram-me as pernas, e deixara
mme a um canto, com uma certa provisão de capim, para irme entretendo. e já era temp
o: o tal soldado, voltando a si do desmaio, fora direito à caserna, onde contara,
a seu modo, a agressão de que se dizia vítima. tomando as dores do companheiro, os o
utros milicianos saíram à cata do hortelão, que não podia ainda ter saído da cidade.
indaga daqui, indaga dali, não tardaram em ficar sabendo que o maior amigo do hort
elão era sóstenes, o ferreiro. assim, mal me tinham os três rapazes encerrado na açotéia,
eis que se forma diante da casa um grande ajuntamento, pois os soldados, onde ia
m passando, e interrogando, iam despertando a curiosidade dos basbaques, que log
o se juntavam ao bando a ver como o caso acabaria. acompanhados do meirinho, que
tinham trazido, os da milícia varejaram a casa e a tenda do ferreiro, em busca do
meu dono. mas ou porque a entrada da adega estivesse muito bem disfarçada, ou por
que não tivessem reparado na tal janelinha do sótão, o fato é que por mais que houvessem
rebuscado e remexido, não deram nem com o dono nem com o burro. por isso, saindo
outra vez à rua, puseram-se a discutir, soldados e meirinhos; aqueles afirmavam qu
e o hortelão estava na casa, e que deviam dar nova busca, mais rigorosa, ou prende
r os moradores, no caso dela de novo resultar baldada; ao passo que o beleguim d
eclarava que a diligência ali havia de ser dada por feita, e que cumpria ir procur
ar o fugitivo alhures. palavra puxa palavra, a discussão vai-se acalorando e as vo
zes elevando-se, degenerando a coisa numa algazarra infernal; os populares, cujo
número viera crescendo à medida que a gritaria aumentava, começavam também a dar o seu
palpite, no que eram repelidos com apóstrofes e insultos dos dois lados. e com os
protestos de uns, os berros de outros, as objurgatórias daqueloutros, tudo afinal
resultará no mais perfeito pandemônio. eu, cansado da carreira e dos tratos da polé a
que estivera submetido por salvar meu dono, tinha-me estirado a um
canto da água-furtada, a tirar uma pestana. mas o desabotinado vozerio, embaixo, l
ogo me pôs desperto, que o barulho era de molde a acordar até um defunto. movido então
pela maldita curiosidade, e esquecida, como sempre, a minha eventual jumência, ca
ndidamente assomei à janelinha, a ver o que era aquilo. mal pusera porém as orelhas
e o focinho de fora, e uma gritaria ainda maior se levantou, sincronizada com um
a gargalhada homérica da multidão: ao ver-me, os soldados, furibundos por terem sido
bigodeados, redobraram seus impropérios; e o povinho, divertido com o logro, e pr
incipalmente com a minha aparição em tão inesperada altura, desandara naquela ruidosa
hilaridade; e por último os da casa, indignados por terem sido apanhados em flagra
nte, dirigiam-me injúrias em altos brados, votando-me às mais profundas do tenebroso
tártaro. daí é que nasceu o ditado, que corre em toda a grécia: casa de burro à janela, f
iga com ela! de novo varejam a casa, e ameaçam levar presos todos os que nela mora
m: ferreiro, filhos, e escravos. diante de semelhante perspectiva, um destes dá co
m a língua nos dentes e então os soldados e o meirinho vão encontrar o pobre hortelão, h
irto de frio e de medo, no fundo da adega.
castor e pÓlux assim foi o meu pobre laerte dar com os ossos na cadeia, e dele nun
ca mais tive notícia. quanto a mim, os juizes me atribuíram, como compensação de injúrias
e danos, ao tal soldado, que logo tratou de me passar a cobre; o que não tardou em
fazer, vendendo-me por vinte dracmas atenienses. meu novo dono era escravo de u
m homem muito rico de tessalonica, que como se sabe é uma das maiores cidades mace
dônicas. para lá me levou ele dias depois, carregado de coisas que viera comprar na
terra do malogrado laerte, a mandado de seu senhor. chegando aos novos pagos, ve
rifiquei que tal escravo, mais um irmão seu, eram os cozinheiros da casa: um, cham
ado castor, preparava os guisados, os peixes, a caça e outras viandas de todo gênero
; ao passo que o mano, pólux, lidava com os pães, os bolos de mel, as empadas, e dem
ais pastelaria. moravam ambos juntos, e tinham estabelecido entre si a comunidad
e de bens: o que um ganhava nalgum biscate extra, pertencia igualmente ao outro,
e vice-versa. de sorte que eu pela primeira vez tive dois donos ao mesmo tempo,
pois passei a pertencer em codomínio àqueles dióscuros de forno e fogão. ora, como escr
avos que eram, não dispunham os irmãos de estrebaria própria, onde me alojassem; e não q
uerendo pôr-me na casa, a fim de que os outros servos não passassem a valer-se abusi
vamente dos meus préstimos, instalaram-me no mesmo aposento onde moravam, o que não
deixou de ter, para mim, certa importância. lidando na cozinha, os irmãos todas as n
oites levavam
para o quarto, como era natural, os restos da comida dos patrões. e à noite, findo o
serviço, punham-se à mesa e regalavam-se, de portas adentro, em cotidianas bambocha
tas. antes da ceia, porém, costumavam ir ao banho com os outros serviçais da casa, e
então deixavam-me fechado no quarto, diante de toda aquela comedoria, sem a menor
suspeita do que assim podia acontecer. porque é claro que eu, que havia tanto tem
po não provava comida feita ao fogo, mal eles se ausentavam, tratava de aproveitar
a ocasião. só mandava, entretanto, para o bucho, o que havia em maior abundância, res
peitando os manjares mais finos, cuja falta poderia dar na vista.
brigam os diÓscuros a principio tudo correu bem: tal era a quantidade de iguarias
que deixavam, que nenhum reparava no desfalque. aproveitando essa distração, achei q
ue estava sendo por demais escrupuloso, e passei a manducar também dos pratos mais
gostosos. então creio que os manos começaram a notar a diferença; e naturalmente cada
qual entrou a suspeitar do outro. e não tardou que chegassem quase a vias de fato
em conseqüência dessa desconfiança. um dia castor esperou que o irmão entrasse, e mal o
viu, desembuchou: — olhe aqui, seu pólux, nós não combinamos, desde que entramos no ser
viço da cozinha, que tudo entre nós seria dos dois? — claro... e por que cargas dágua ve
m agora você com essa pergunta? — por que cargas dágua, hein? não se faça de tolo: por que
é que, assim que sai da terma, vem você logo correndo para casa, se não é para chegar b
em antes de mim? — o quê?! eu é que pergunto o que é que você estava fazendo aqui antes qu
e eu chegasse?... — sim, hoje eu vim mais depressa, justamente para apurar certas
coisas. — muito bem; e o que foi que apurou o nosso Árgus? — apurei que você já esteve aqu
i antes de mim, para devorar sozinho aquele pernil quase inteiro, de cabrito, qu
e eu hoje trouxe, e que era para nós dois! pólux olhou para o prato onde eu deixara
apenas o osso
quase nu, do pernil, e explodiu: — ah! É assim? que gracinha! o maroto vem aqui, enc
he o pandulho com o que há de melhor, e depois pretende me acusar, para tirar o co
rpo!... sim, senhor! não se pode mais ter confiança em ninguém neste mundo!... — não se faç
de sonso, que esse lero-lero eu não engulo... o que quero saber é por que todo esse
esganamento que deu em você ultimamente: ontem foi aquele lombo de porco, do qual
eu não vi nem mais o cheiro; outro dia, aquela posta de badejo, que quando eu che
guei tinha virado sorvete; e agora este pernil... — ah! meu irmãozinho! e aquela tor
ta de tartaruga, quase pelo meio, que eu trouxe anteontem, e da qual você não me dei
xou mais do que uns tarecos secos?... e aqueles pastéis de estorninho, mais de uma
dúzia, que eu trouxe outro dia, e não alcancei senão dois? — olha, pólux, o que eu devia
fazer era rachar-te a cara, sem nenhuma discussão, para não seres, além de ladrão, tão cíni
o. .. e se não te fui mais cedo às fuças, foi por causa do mordomo, que nos meteria os
dois no ergástulo, nos tiraria da cozinha e nos poria a trabalhar na roça, por cast
igo. mas agora estou por aqui; estou farto do teu egoísmo e semvergonhice; vamos d
esmanchar o trato, e viver cada um para o seu lado: quem não se parece não se ajunta
!... o pasteleiro, que a essa altura também já estava roxo de raiva, de repente fran
ziu a testa e disse: — castor, você jura que não tem sido você que tem quebrado o nosso
trato? — então você ainda quer me convencer quê?... — calma, rapaz, calma! É verdade que eu
estava ultimamente desconfiado de você, desde que comecei a
notar a falta de certas coisas que eu trago: mas agora você me diz que do seu quin
hão também tem sumido coisas... então há alguém que anda nos roubando enquanto estamos for
a. — mas como, se deixamos e encontramos sempre o quarto bem trancado? — aí é que a porc
a torce o rabo; mas em vez de continuarmos desconfiando um do outro, devemos pri
meiro pôr tudo em pratos limpos...
com a boca na botija eu, no meu canto, ouvi toda aquela altercação, abanando o rabo,
a fingir que roía um punhado de feno, inocente como o mais mouco dos jumentos. ma
s vendo que a coisa ia caminhando mal, tratei de sofrear a gulodice, e por algun
s dias fiquei engolindo em seco, sem tocar em nenhum dos pitéus que pólux e castor m
e deixavam mesmo embaixo das ventas. É que eu previa que os irmãos, em vez de ir ao
banho e voltar logo para a ceia, deviam andar rondando o quarto, a espiar por al
guma fresta, a fim de descobrir quem seria o tertius que lhes entrara, sem convi
tes, na irmandade. e nem queiram saber qual era o meu suplício: varado de fome, di
ante de uma mesa sortida com um cardápio digno de luculo, e obrigado a comer com o
s olhos e lamber com a testa, como se costuma dizer, sem sequer poder chegar per
to, para aspirar-lhe pelo menos o cheirinho! afinal o que tinha de acontecer aco
nteceu: após duas semanas dessa penitência, os irmãos deixaram, certa tarde, bem à mostr
a, sobre a mesa, uma terrina, quase cheia, de sardinhas de escabeche. parece que
os malvados adivinharam que eu me pêlo por tal prato! se não fossem sardinhas, e lo
go de escabeche, talvez eu houvesse resistido... mas eram; e o aroma que se exal
ava da fatal terrina começou a encher o quarto a me fazer cócegas nas ventas. então en
treguei os pontos: meio hesitante, como quem não quer, dei uma volta pelo quarto,
espiando com o rabo dos olhos a terrina; depois cheguei mais perto, e esticando
o focinho, dei uma fungada. baco, que perfume! as sardinhas
— haveria bem umas trinta, de mais de um palmo cada uma — nadavam em vinagre, com re
flexos mais lindos do que se estivessem vivas! diante de tal pitéu, o mais ferrenh
o espartano teria certamente sucumbido! ... então eu, que de espartano muito pouco
tinha, sucumbi: sem pensar em mais nada, enfiei o focinho na terrina, e fui abo
canhando, sôfrego, de duas em duas, de três em três, todos os esplêndidos peixotes; e ag
arrando pedaços de pão com os dentes, ensopava-os no molho, entre cada dois bocados.
se os imortais provassem algum dia um tal escabeche, decerto perderiam todo o g
osto da ambrosia... esgotada a terrina, quando estava ainda lambendo os beiços, co
m delícia, ouço do lado de fora o ruído de alegres gargalhadas. imediatamente abre-se
a porta e entram os dois manos, com as mãos nas ilhargas, a morrer de riso. por um
a frincha da porta eles tinham estado à espreita, e assistido de princípio a fim à min
ha cena. e embora admirados do fenômeno que era um burro comer cibo de gente, o a
que sobretudo atentavam era o lado cômico da coisa. e continuavam a rir a bandeira
s despregadas, de olhos lacrimejantes, a olhar para a minha figura. apanhado ass
im de sopetão, eu ficara meio atarantado, sem saber o que havia de fazer. e para f
azer alguma coisa, fui recuando de mansinho, até o meu canto, onde comecei a masti
gar um punhado de feno, seco e insoso, como se ainda adiantasse o fingimento. — já v
ai tarde, seu malandro... — disse pólux. — agora já sabemos quem era o ratão que andava po
r aqui!... — nada de cerimônias — disse-me o outro — abanquese; venha dar a honra de cea
r também conosco!... e aproximando-se de mim, foram-me empurrando para o
lado da mesa, chegando um tamborete para eu me sentar, por debique: — faça o favor..
. o hóspede, por mais insignificante que seja, em primeiro lugar...
“alea jacta est” as coisas tinham chegado assim a um ponto, de onde já era impossível re
cuar. minha extravagância gastronômica fora constatada pelos dois escravos, e não tard
aria a ser conhecida de toda gente da casa e mesmo da cidade. assim pensando, re
solvi arriscar a última cartada; e aderindo às ironias dos dioscuros, coloquei polid
amente o meu traseiro no tamborete, ao lado dos divas em que eles se recostaram,
e com equivalente cortesia descansei os cascos dianteiros na borda da mesa, com
o hóspede bem criado, que espera o momento próprio para servir-se. de novo caíram os d
ois servos na gargalhada, de mistura com tal ou qual espanto ao verem os meus mo
dos e atitudes. — deve ser um burro amestrado — disse pólux — que fugiu do dono e veio d
ar com os costados aqui em casa... — É: — respondeu castor — há animais que aprendem coisa
s do arco-da-velha. mas ensinar um burro a comer comida de sal, é coisa meia dura
de engolir... — também pode ser que este bicho seja algum homem, que um deus irritad
o transformou em asno. no tempo de dantes havia muito disso. — seja lá o que for, o
que estou vendo é que estamos com a fortuna feita: ou o patrão quer ficar com o burr
o para si, e nós, em troca, pedimos a nossa liberdade; ou saímos a exibi-lo pelo mun
do, e então ganhamos o necessário para a alforria, e ainda ficamos ricos, depois de
libertados. entrementes iam eles pondo à minha frente ora um guisado, ora uma empa
da, ou cabidela; e eu, com invejável apetite, devorando.
nisso um escravo da casa, ao passar pela porta, que ficara meio aberta, lobriga
a cena que nós três oferecíamos. chama então, por aceno, os outros, de forma que daí a pou
co entra meia dúzia deles, todos boquiabertos diante do que viam. castor e pólux con
tam-lhes então o sucedido, e novas gargalhadas reboam por toda aquela ala de morad
ia. ouvindo tal alvoroço, vem afinal o próprio diocles, o patrão, a ver do que se trat
a. e ao ser-lhe explicado o caso, põe-se a rir também, mandando que me sirvam mais a
lguma coisa, que quer ver como é que faço. põem-me então à frente um alguidar cheio de sal
ada. mas eu já tinha comido tanto aquela noite, que apenas belisquei algumas folha
s, enfarado. vendo isso, disse ele: — se já comeu tanto como dizem, deve estar agora
com sede. verificaram se também bebe como gente? imediatamente trazem-me outra ti
gela grande, e nela despejam todo o vinho de uma ânfora. eu então olhei para diocles
com jeito expressivo, fiz-lhe uma reverência com a cabeça, e abanando as orelhas em
sinal de satisfação, mergulhei os beiços na malga e chuchurriei até a última gota que nel
a havia. diante disso houve um coro de exclamações e aplausos, a cujo ruído todo o res
tante do pessoal da casa veio saber o que era. a mulher, os filhos, e as filhas,
parentes e apaniguados, e todos os escravos, queriam entrar no quarto já apinhado
de gente, para ver a maravilha. mas eu, farto de tanto comer, e meio atordoado
da vinhaça, deitei-me, na presença deles, num dos divas, e pus-me a dormitar, de pança
cheia, como fazem os requintados, nos simpósios. com o que os que não me puderam ve
r comer não ficaram menos espantados e divertidos, pois era manifesto que
debaixo da figura de burro, que era a minha, devia haver muito de humano. — amanhã — d
isse por fim o patrão — tenho vários amigos ao jantar. deixem portanto o burrinho o di
a inteiro sem comer, a fim de que na hora. eu o possa mostrar, com bastante apet
ite, aos hóspedes.
minha exibiÇÃo no dia seguinte, quando o jantar já ia chegando ao fim, fui solenemente
introduzido no aposento. diocles tinha anunciado aos convivas que lhes estava r
eservada para essa hora uma surpresa; mas pelas exclamações e olhares espantados da
maioria deles, percebia-se que a minha aparição ultrapassara toda expectativa. esper
avam certamente alguma bailarina, jovem e formosa, ou um acrobata, ou algum gimn
osofista exótico, que com suas danças, suas pelóticas ou suas taumaturgias, lhes ofere
cesse um espetáculo mais ou menos fora do comum. mas vendo entrar, em lugar de uma
pessoa, um burro, ficaram intrigados extraordinariamente. estando tudo combinad
o de antemão, mandou o mordomo colocar no meio da sala outra mesa, coberta de igua
rias das mais finas e variadas; e junto dela um diva com muitas almofadas, como
se se tratasse de algum personagem retardatário, mas importante, a quem se devesse
a maior consideração. então castor, que me introduzira, apontou-me a mesa, e com um a
ceno de cabeça convidou-me a tomar o assento. eu, encartando na comédia, adiantei-me
, com ar majestoso, e recostei-me no sofá, como o faria o mais acabado sibarita. n
essa altura os convidados já se tinham levantado, vindo formar um círculo ao redor d
e mim. e os risos e os comentários revelavam o agrado e a admiração que os meus talent
os já em todos despertavam. fazendo o papel de copeiros, castor e pólux foram pondo à
minha frente os pratos, cada qual mais extravagante como
comida de burrico. começaram por uma sopa de andorinhas, que eu sorvi até à metade, po
is bem sabia que não era de bom tom ir até o fundo do prato, como um esfaimado; segu
iu-se um faisão assado, com molho de alho e mostarda, que eu devorei em grande par
te, como sujeito bem educado, que faz a honra devida ao anfitrião; depois veio um
pastelão de trutas com aspargos, que degluti com equivalente cortesia. e entre um
pitéu e outro, pólux enchia a malga de prata que estava à minha esquerda, e eu, metend
o delicadamente o focinho nela, sorvia o vinho, cerrando as pálpebras, como um con
sumado membro da báquica confraria. e assim até a sobremesa, que eram maçãs cozidas em m
el, com passas de corinto, tâmaras da anatólia e figos açucarados, de cirene. findo o
cardápio, castor apresentou-me uma toalha de linho, alvíssima, e eu nela esfreguei d
uas ou três vezes o focinho, para limpar os beiços. então os aplausos, os risos e as e
xclamações, que, durante toda a minha refeição não tinham cessado, chegaram ao auge; um a
um, todos os convivas cumprimentavam diocles pela estupenda maravilha que tinha
em casa. e todos quiseram saber de onde eu viera, de quem me havia ele comprado,
quem é que me amestrara, etc, etc. mandou então diocles que castor e pólux relatassem
o que sabiam, o que eles fizeram, até os últimos pormenores, orgulhosos que estavam
, perante os demais servos, de serem os meus principais descobridores. e a narra
tiva dos cozinheiros teve também o dom de suscitar o interesse geral e muita hilar
idade, principalmente quando eles se referiram às mútuas suspeitas que quase os
tinham levado a pugilato. um dos convidados propôs então aos outros que se cotizasse
m, e reunindo quantia suficiente, indenizassem diocles a fim de que ele libertas
se os dióscuros. mas não querendo ficar atrás no capítulo da magnanimidade, ele concedeu
-lhes ali mesmo, gratuitamente, a alforria, com a condição de que eu ficasse para se
mpre na casa, como seu liberto também. o que tudo foi feito, e celebrado com muita
s libações, por todos os convivas, parentes e agregados da família.
a caminho de corinto chegadas as coisas a esse pé, entregou-me diocles à guarda dos
dois novos libertos, recomendando-lhes que tratassem de desenvolver ao máximo as m
inhas prendas, amestrando-me em tudo quanto» a seu ver, mais extraordinário pudesse
parecer num burro. assim começaram eles a ensinar-me a andar somente com as patas
traseiras, a dançar ao som da citara e da flauta, a recostar-me numa cátedra, a resp
onder "sim" ou "não" às perguntas que me fizessem, e outras que tais artes, que eu a
liás faria perfeitamente sem precisar de mestres. eu, porém, documente obedecia, apa
rentando o melhor aproveitamento de tal ensino, a fim de não suscitar neles e nos
outros, maiores e inoportunas desconfianças. mas mesmo com essas precauções minha fama
logo encheu toda a cidade; e dentro de alguns dias ninguém falava noutra coisa. a
casa de diocles vivia cheia de curiosos, que queriam verificar com os próprios ol
hos se era mesmo verdade o que de mim contavam. ora, aconteceu que o procônsul de
corinto tivera aviso de que o césar estava prestes a chegar à sua província, numa excu
rsão que andava a fazer por todo o império. e devendo hospedá-lo em sua sede, tratou d
e preparar em grande estilo as festas e cerimônias com que lhe competia honrar o s
oberano. despachou, pois, a todos os recantos da grécia, do ponto, da síria e do egi
to, agentes seus, que descobrissem e engajassem os melhores músicos, dançarinos, gla
diadores, mimos, malabaristas, corredores, domadores de feras, condutores de qua
drigas, e quejandos profissionais do circo
e do teatro, para condignamente celebrar, com o povo de sua jurisdição, a augusta pr
esença. chegando um desses delegados a tessalonica, a primeira coisa de que ficou
sabendo foi a minha fama, e por isso desejou ver-me de perto. ao que diocles não t
eve dúvida em anuir, interessado que estava em fazer também o seu cartaz entre os de
roma. tão maravilhado ficou o agente, que não quis saber de outros artistas. ordeno
u a diocles que imediatamente se aprontasse para ir com ele apresentar-me ao pro
cônsul, pois tinha certeza de que somente com o achado de uma raridade tão estranha
como eu, já ultrapassara tudo quanto ele pudesse desejar. eis-me, pois, novamente,
acompanhado pelo agente, por diocles e pelos dois libertos, a caminho do istmo.
como arreame condigno de tão ilustre cavalgadura, puseram-me nas costas uma albar
da carmesim, bordada a ouro e presa debaixo da barriga por um par de fivelas do
mesmo metal; além disso, um rabicho e um peitoral, de couro da cítia, tudo pregueado
com tachas douradas e guarnecido de guizos e cincerros de prata, que tiniam e t
ilintavam, ao tranco do meu trote, numa música que todos achavam deliciosa. de sor
te que onde quer que passasse a comitiva, havia à beira da estrada bom número de cur
iosos, atraídos pela fama, que por toda parte já trombeteara a minha celebridade. as
sim nossa entrada em corinto foi como um verdadeiro triunfo. um correio, despach
ado adiante, já levara ao procônsul a notícia do meu achado, de maneira que tanto essa
alta autoridade, como as mais miúdas, e todo o povo da
cidade, estavam extramuros, à nossa espera. o olhar que o procônsul me lançou ao ser-l
he apresentado, confesso que não foi dos mais acolhedores. pelas notícias que tivera
, não sei que idéia teria ele concebido a meu respeito; mas não tenho a mínima dúvida de q
ue, ao ver que eu parecia um burrico como qualquer outro, bem grande foi a decepção
que teve.
exame vestibular entretanto, chegados ao palácio, imediatamente tratou o agente de
dar ao procônsul uma amostra dos meus talentos. assim, logo à primeira refeição do dia,
a que concorriam muitos dignitários, funcionários, cidadãos, amigos, e parasitas, foi
disposta na sala uma mesa para mim, com o competente diva e respectivas almofad
as. e quando o almoço ia já quase no fim, pela mão de castor e pólux dei entrada no salão,
numa indumentária ainda mais vistosa e rica do que a com que viajara. sem que nin
guém mo ordenasse, encaminhei-me para diante do procônsul, e aí, dobrando os joelhos,
fiz-lhe com a cabeça um rol de reverências, como competia a tamanha personagem. depo
is, erguendo-me nas duas patas traseiras, saudei à esquerda e à direita os outros co
nvivas, como a gente também importante, mas não tanto. e só então me dirigi ao meu diva,
onde me recostei, apoiado num dos cotovelos, como sujeito bem habituado aos pro
tocolos. a uma exclamação que por fim o procônsul não soube conter, os convivas explodir
am também em aplausos, maravilhados que estavam, todos, com o meu singular comport
amento. e eu, erguendo-me das almofadas, agradeci com a cabeça para um lado e para
outro, como fazem, no circo, os acrobatas. seguiu-se a exibição das minhas faculdad
es gastronômicas. de caso pensado havia o procônsul dado ordens para que só me fossem
servidas iguarias caras, condimentadas com mostarda, canela, alho, murta e outra
s ainda mais exóticas espécies, de par com vinhos fortes e
licores raros, a fim de que na minha mesa nada houvesse que não fosse absolutament
e estranho ao regime habitual dos muares. para aguçar-me o apetite tinham-me os diós
curos deixado desde a véspera sem comer, o que, com a fadiga da viagem, dera-me um
a fome arquicanina. comecei então a jantar com a melhor disposição deste mundo, devora
ndo conscientemente quanto me punham pela frente, tudo entremeado de largas tala
gadas de bom vinho. depois de bem comido e melhor bebido, castor me fez dançar uma
pírrica ao som de pífaros e pandeiros, o que redobrou a admiração e curiosidade dos cir
cunstantes. e praticadas mais algumas das minhas artes, o próprio procônsul se levan
tou para cumprimentar a diocles pela posse de tão inusitado artista. estava eu, po
rtanto, aprovado com distinção naquele primeiro exame, e definitivamente arrolado pa
ra figurar no anfiteatro, na augusta presença do césar. fui alojado, com castor e pólu
x, numa das dependências do palácio, e aí levamos uma vida regalada, à espera do dia do
espetáculo. escravos vários se sucediam no meu trato: uns para pentear-me o rabo e o
sedenho, outro para raspar-me e alisar-me o pêlo, este para aparar-me e polir-me
os cascos, aquele para limpar-me as orelhas, as ventas e o focinho; e assim por
diante, como se eu fosse uma linda e caprichosa cortesã. veio até um ferrador, espec
ialmente convocado, que me pregou nas patas dois pares de ferraduras de bronze,
com cravos de prata, a fim de que eu comparecesse ao circo condignamente embotin
ado.
conjeturas tenebrosas a cerca de um mês depois chegou a corinto o césar. pelos comen
tários de castor e pólux, e dos demais servos postos a meu serviço, soube que a cidade
se desmanchara em mesuras e salamaleques diante do poderoso senhor do mundo. re
ceberam-no como se fosse um deus extraviado do olimpo, que lhes tivesse vindo fa
zer visita. oradores, poetas, músicos, filósofos e sofistas celebraram e exaltaram a
augusta personalidade com todo o talento e imaginação que tinham. e a bajulação foi a t
al ponto, que às pressas mandaram fazer-lhe, por um escultor, a estátua, a fim de so
lenemente proceder-se à sua apoteose no próprio templo de hélios, patrono da cidade. e
como era praxe obrigatória em semelhantes ocasiões, organizou-se em honra de césar um
grande e extraordinário espetáculo no anfiteatro. artistas e mimos de todos os gênero
s e de todos os recantos do império e do mundo estavam contratados e escalados par
a exibir diante do imperador os seus talentos. seria um espetáculo como nunca em c
orinto houvera outro, e, ao que diziam os bairristas, coisa que mesmo em roma te
ria tido o maior sucesso. por toda parte da cidade havia grandes taboletas em qu
e era anunciada a função. e a todos os lugares e províncias se haviam despachado araut
os, a fazer igual anúncio e a concitar os povos a que concorressem à cidade, a fim d
e que o imperador tivesse no anfiteatro uma homenagem à altura. mas tanto nesses c
artazes, como nos bandos de arautos, a parte que a mim se referia era, de longe,
a mais saliente. destacando dos demais números anunciados, uns e outros
afirmavam que o espetáculo ia marcar época na história devido às proezas e ao talento do
burrico sÁbio
o maior assombro de todos os tempos. o jumento que come, bebe, dança e se comporta
como o mais perfeito cortesão. a maravilha das maravilhas. verdadeira fábrica de ga
rgalhadas. ver para crer!
com tamanha propaganda dos meus feitos e capacidades, era do povo ficar na dúvida
se o maior acontecimento seria a presença do césar na cidade, ou o meu aparecimento
no anfiteatro... até os meus cornacas acabaram por ficar apreensivos: — será que o rai
o do burro compreende a importância da festa?... — indagou pólux ao companheiro. — como
assim? — retrucou castor, franzindo a testa. — imagine se na hora h o demônio do bicho
amua, ou esquece todas as habilidades, e dá para zurrar e escoicear indecentement
e, como um burrico qualquer, diante do imperador, do procônsul, de todo o povo!...
— vira essa boca para lá! nem é bom pensar em semelhante coisa! como afinal o burro não
passa de um animal, sem consciência, na melhor das hipóteses nós é que haveríamos de paga
r o pato, e, olha!... e fez um gesto de passar uma lâmina afiada pelo pescoço, indic
ando o triste suplício que os esperava, caso eu fizesse, rio circo, um tal fiasco.
— em todo o caso — disse ele — vamos fazer uma promessa a apolo délfico, a quem antigam
ente se sacrificavam burros. ..
eu não deixei de sorrir, cá comigo, à idéia de semelhante hipótese. seria uma boa peça a pr
gar a diocles, ao procônsul e ao imperador, se na minha hora, em vez de imitar os
gestos, as atitudes e os hábitos dos homens, eu desse para arremedar a postura, e
o comportamento de um asno autêntico! que crise, que complicação, que angu-decaroço não ha
veria em tal caso: o imperador, furioso; o procônsul, indignado, diocles, desesper
ado; os meus dois libertos, aprontando-se para morrer ignominiosamente!... mas s
e a conjetura era assim tão prometedora, contudo não deixava de ter o seu reverso: q
uem me garantia que no meio da encrenca não iria eu também na onda, como primeiro e
direto responsável pela coisa?... pelo sim e pelo não, o melhor era eu ficar quietin
ho e desempenhar o meu papel, conscienciosamente, até o fim. granjeada a simpatia
ou o interesse do imperador, ou quando menos do procônsul, talvez a sorte começasse
enfim a se me mostrar menos madrasta...
Últimos preparativos com esses propósitos mais sensatos na mioleira, aguardei pachor
rentamente o dia do espetáculo, decidido a dar o máximo do meu asinino estro. afinal
, certa madrugada, o mimopompo veio ter com os dioscuros, e depois de trocarem a
lgumas palavras, tomaramme pela arreata e conduziram-me em direção ao circo. apesar
de ainda estar um tanto escuro, os que nos encontravam, vendo-me o vulto, logo d
esconfiavam da minha identidade; e punham-se a acompanhar-nos, interessadíssimos.
de sorte que ao chegarmos ao anfiteatro, em cujas dependências fora reservado para
mim um dos melhores camarins, íamos escoltados por um verdadeiro cortejo de curio
sos. — será o tal burrinho?... — indagava um. — claro! não há outro número asnático no prog
.. — mas assim, em pêlo, e com o cabresto, como qualquer azêmola de lavrador?!... — ora!
É para despistar, não está vendo... os guardas, porém, abriram a porta e fizeram-me ent
rar, obrigando o zé-povinho a ficar, com os seus comentários, do lado de fora. no ca
marim já me aguardava numerosa turba de serviçais: barbeiros, peruqueiros, pedicuros
, odontônomos, alfaiates, clamideiros e outros que tais artífices, os quais logo se
puseram a cuidar da minha tualéte e maquilage, a fim de que eu aparecesse perante
o imperador na melhor forma compatível com a minha quadrupedal figura. como ficara
sendo praxe ultimamente, nada de comida
nem bebida naquelas longas horas preliminares; de sorte que eu já estava sentindo
a barriga a dar horas, com a língua seca e o cuspo grosso, de sede. mas como a pac
iência é a máxima virtude dos estóicos, e dos burros, resignadamente me submeti aos cuid
ados dos meus embelezadores, e quedei esperando que passasse o tempo. não sei ao c
erto quantas horas fiquei ali, enquanto me alisavam o pêlo, me frisavam a cola e a
crina, me bruniam os cascos, me escovavam os dentes, me alimpavam as orelhas, a
s narinas, e outros orifícios, como a uma outra frinéia que daí a pouco houvesse de en
frentar novos e mais ferrenhos juizes. até que a horas tantas, que não deviam ter si
do poucas, comecei a ouvir aplausos, aclamações, berros, assobios, com uivos de fera
s de permeio, donde concluí que o espetáculo havia principiado. meu número figurava po
rém quase no fim do programa, de maneira que tive de esperar ainda um bom pedaço, an
tes que me chegasse a vez. e o estômago a roncar, cada vez mais imperiosamente!...
um contra-regra veio avisar, afinal, que nos preparássemos, pois daí a pouco teríamos
de entrar em cena. — e o espetáculo, que tal? — perguntou-lhe um dos que cuidavam de
mim. — muito bom, muito bonito, muito variado ... mas o povo está ansioso por ver o
burro. nos intervalos, enquanto se varre e se recompõe a arena, não cessam de gritar
, os das gerais: — "nós queremos: burrico! nós queremos: burrico!! nós queremos: burrico
!!!" — escutem só... e de fato, apurando as orelhas, ouvimos o eco de um berreiro, s
incopado e epiléptico, que plenamente confirmava o que dizia o homem.
no anfiteatro chegou afinal a minha hora, e fomos, eu mais os dois libertos, par
a a arena. no meio dela tinham disposto uma mesa, com uma toalha finíssima de linh
o, e ao lado um sofá, com muitos coxins, para as minhas exibições manducativas. num ap
arador, a certa distância, toda sorte de iguarias, cada qual mais alheia à dieta nat
ural dos burros, ao lado de ânforas e bilhas que certamente conteriam vinhos e lic
ores igualmente extravagantes para a goela de uma cavalgadura. À minha entrada lev
antou-se um alarido ensurdecedor de aplausos da enorme multidão, que como de costu
me já de saída me rendia um preito, ainda antes que eu lhe desse a menor amostra da
minha arte. donde concluí que os empresários tinham feito conscienciosamente a propa
ganda. eu trajava uma albarda de púrpura, bordada e franjada de ouro, com cabeçada,
fivelas e peitoral reluzentes de metais caros. da cabeçada e demais arreames pendi
am guizos e cincerros de prata, ainda mais ricos e harmoniosos do que os que tro
uxera de tessalonica. e da testeira surgia um feixe de plumas, que ondulavam maj
estosamente ao meu mínimo movimento. decididamente, desde o tempo de artaxerxes ni
nguém jamais vira outro sátrapa tão soberba e pròdigamente indumentado. sem que ninguém me
encomendasse o sermão, imediatamente me dirigi à frente da tribuna onde estava o césa
r, com seus áulicos, atrás dos quais percebi a grenha ruiva e crespa do procônsul, que
mesmo com a sua coroazinha de louro, nem por isso deixara de ser posto no
lugar que lhe competia, atrás das togas e diademas dos mais validos. chegado a dis
tância conveniente, dobrei os joelhos em terra, e fiz três séries de mesuras profundíssi
mas ao imperador, o qual não pôde conter uma gostosa gargalhada, diante do que via.
então, ante o augusto exemplo, o mundo pareceu que vinha abaixo, tal a estrondosa
hilaridade que encheu o circo, desde as tribunas até os últimos e elevados degraus d
as arquibancadas. após essas devidas reverências, fez-me castor executar, de pé apenas
nos cascos traseiros, vários gêneros de dança, desde a guerreira pírrica, até a cordax e
a calabis, com todos os ademanes, trejeitos e gaifonas com que o costumam fazer
os mais deslavados bailarins. depois reproduzi, na mesma postura, a sarabanda do
s que acompanham o carro de dionísio, com os gestos, saltos, contorsões, priscos e e
strebuchos de tais bacantes. o povo delirou de entusiasmo e os arcos e muros do
teatro retumbaram à vibração dos aplausos e aclamações. em seguida um arauto, de voz mais
tonitroante que heródoros, começou a me fazer perguntas, a fim de revelar a minha in
telectual capacidade. a primeira das quais foi esta: — quem te trouxe a corinto, a
fim de te exibir ante a divindade augusta de césar? eu percorri com os olhos todo
o anfiteatro, e vendo numa tribuna lateral a ri-sonha figura de diocles, dirigi
-me para o seu lado, e chegando perto estendi em sua direção o beiço, como se o estive
sse apontando com o dedo. estrondosos e ainda mais prolongados foram os urros ad
mirativos da multidão, a essa e demais respostas que adequadamente fui dando a cad
a pergunta do estentor.
por fim levou-me pólux à mesa; e ao aproximar-me, ouvi o arauto que bradava: — o procôns
ul ordena que te ponhas a mesa e comas pelo estilo dórico!... dirigi-me então a um b
anco reforçado e sem encosto, que estava do outro lado da mesa, e sentei-me nele a
o modo espartano. a turba porém protestou: — abaixo esparta! fora com os dóricos! há de
ser ao modo jônico!! eu, que também nunca fora muito com a cara dos lacônicos, fingi h
esitar uns momentos, e rodeei a mesa, indo recostar-me no diva, entre as almofad
as, abanando as orelhas em sinal de satisfação. É impossível exprimir a tempestade de ap
lausos e de vivas com que o povo acolheu meu gesto. só posso dizer que, com o apet
ite que me varava as tripas, pareceu-me que aquela turba pretendia levar mais de
uma hora no berreiro. e o mesmo alarido e estrondo prosseguiram enquanto eu fui
saboreando os quitutes sucessivos que me eram apresentados; e ainda mais quando
, entre um prato e outro, piscava um olho a pólux, apontando-lhe com o focinho a m
alga, a fim de que ele ma tornasse a encher de vinho. enfim, multipliquem por ce
m mil o êxito que eu obtivera dias antes em casa do procônsul, e terão uma aproximada
idéia do sucesso que logrei no circo. pois essas e outras mostras dos meus talento
s já se prolongavam por mais de duas horas, e entretanto a multidão não dava sinal de
cansaço. depois de cada sorte, pedia, aos f berros, outras e outras, como se estiv
esse disposta a passar ali o resto da tarde e a noite toda!
a metamorfose e ali ficaríamos nós, a satisfazer as exigências da multidão, sem saber até
quando a coisa iria, se zeus, paternal e amigo, não se dignasse a pôr enfim um termo
ao espetáculo e às minhas asininas desventuras. foi caso que um dos servos que de q
uando em quando procediam à limpeza e recomposição da pista, varrendo-a, passando-lhe
o ancinho, e esparzindo flores pelo chão, assomou de repente na arena, trazendo à ca
beça um grande cesto de rosas. imediatamente lembrei-me do que dissera palestra ac
erca do único meio de eu recobrar à forma humana, e vinha a ser o comer pétalas de tai
s flores; o que, em todas as minhas variadas andanças e aventuras, jamais me havia
sido possível. então, sem pensar em mais nada, sem atender a imperador, nem a procôns
ul, nem ao público, dei um salto do diva e voei para onde estava o escravo; este,
tomado de surpresa e de susto, deixou cair o cesto e esgueirou-se pela mesma por
tinhola por onde entrara. eu, sem ligar ao homem, que escapolia, entrei a devora
r as preciosas pétalas salvadoras. o povo, cuidando que aquilo fosse outra proeza
especial minha, pois nem os homens nem os burros jamais se alimentaram de flores
, pôs-se incontinenti mudo e quedo, à espera do que ia suceder. e foi então que dei ca
usa à maior de todas as maravilhas: porque à medida que ia engolindo as mimosas flor
es perfumadas, meu corpo de jumento se foi modificando: as grandes orelhas pelud
as foram diminuindo, bem como a
cabeçorra, que foi minguando e arredondando pouco a pouco reassumindo as feições human
as de outrora; enquanto isso o corpo também se fora transformando, tornando-se mai
s esguio; o couro, adelgaçando, clareando e derrubando o pêlo, tomava a cor, a macie
z e o aspecto da pele humana; as pernas e os braços volviam ao feitio antigo, ao p
asso que os cascos se dividiam, adelgaçavam-se e voltavam a ser mãos e pés, com seus d
edos, suas unhas e sua epiderme de gente. recuperando então o uso dos braços e das mão
s, desvencilhei-me da albarda, do rabicho, do peitoral e do plumífero cabresto, re
ssurgindo afinal — pelo menos assim o imaginava — no antigo porte e aprumo de rapaz
esbelto e bem apessoado. o sol, porém, já descambava, e quando ia dar graças aos deuse
s pela minha redenção, vi, pela sombra que se estirava na arena, que do malfadado ju
mento ainda me sobrava alguma coisa: o rabo! corado de vergonha, como se fosse m
inha a culpa, passei a mão pelo traseiro e verifiquei que a cola tosca e áspera do a
sno que tinha sido até pouco antes, persistia, renitente e ridícula, pendente do fim
da minha espinha dorsal; e inconscientemente, com o hábito jumental adquirido, o
maldito rabo abanava de um lado para outro, como se ornasse ainda a velha anca d
o burrico! o público, que até então assistira, em suspenso, a toda a minha metamorfose
, à vista daquele apêndice, indecente e afrontoso, que teimava em me enfeitar o sua,
começou a rir incoercivelmente, a princípio com certa discrição, depois mais alto, e af
inal, contaminando-se uns aos outros, numa hilaridade generalizada e retumbante,
e sobretudo
humilhantíssima para mim, que ali estava, no meio do anfiteatro, exposto a todos o
s olhares. desesperado, lembrando-me do rifão de que o rabo é sempre o mais difícil de
esfolar, voltei de novo ao cesto e pus-me a engurgitar sofregamente o que nele
ainda restava de pétalas cheirosas. sem escolher, como antes, apenas as tenras par
tes das flores, fui comendo tudo: pétalas, pecíolos, cálices, talos, folhas, e até os próp
rios espinhos, sem maiores luxos. de vez em quando dava uma espiadela à sombra, ma
s o maldito rabo sempre ali, impertérrito! em todo caso, pareceu-me, numa dessas i
nspeções, que a sombra se mostrava mais delgada e curta do que a princípio então, apalpa
ndo com a mão, percebi que de fato a cauda se reduzira a menos da metade, tanto na
espessura como no comprimento. e vendo que ainda havia no fundo do cesto e ao r
edor, no chão, alguns bons punhados de pétalas, apanhei-as como último recurso, e engo
li-as, sem mesmo mastigar. nesse instante, um clamor de admiração e de entusiasmo su
biu aos ares, do anfiteatro inteiro; e eu, voltando-me um pouco, vi, estendida a
meus pés, ressequida e hirsuta como uma múmia, a cauda fatídica que finalmente se dec
idira a desprender-se! uff!...
o juÍzo de cÉsar nessa altura, ante a inesperada e estranha maravilha a que presenci
ara, a multidão começou a mudar de sentimentos. enquanto uma parte continuava a apla
udir-me e aclamar-me com entusiasmo cada vez maior, outra entrou a berrar que me
prendessem, que me matassem, que eu não podia deixar de ser um maligno e perigosíss
imo feiticeiro, que usava de minhas artes e poderes demoníacos para transformar-me
em burro ou em outros bichos, para assim exercer mais livremente os mais detestáv
eis malefícios. outros declaravam, estarrecidos, que aquilo era um sinal de péssimo
agouro, e que o mínimo que deviam esperar seria o fim do mundo! mas nisso o impera
dor levantou-se na sua tribuna. e no meio do silêncio profundo que logo se estabel
eceu, assim falou o césar: — não é costume dos romanos, nem por certo o será dos gregos, c
ondenar a quem quer que seja, sem prévio julgamento. antes de tomar qualquer decisão
acerca do estranho caso deste homem, ordeno que ele fale e produza os argumento
s que porventura tenha em sua defesa. uma nova torrente de aplausos acolheu as p
alavras do soberano, embora muitas mulheres ainda cobrissem o rosto com os véus e
fizessem figas em minha direção. então eu me adiantei até à tribuna imperial, alcei o braço
como manda o latino protocolo, e declarei: — ave, césar, predileto dos deuses, segu
rança do mundo, e particular e honrosa providência dos helenos! não sou nenhum estrang
eiro, nem muito menos taumaturgo ou mago, nem tenho pacto com exóticas ou ctônicas d
eidades,
para debaixo de proteicas aparências exercer o mal e prejudicar o próximo. sou filho
de demétrio, de patras, chamo-me lúcio, e tenho um irmão que da tua estirpe ilustre t
omou o nome, para si, de caio. este é autor de livros de histórias e de várias outras
obras que lograram certa estima e aceitação na grécia. há alguns anos, cuja conta não sou
capaz de estatuir, indo a hipata, a negócios de meu pai, em castigo de minha curio
sidade uma bruxa ali transformou-me em asno... a estas palavras o procônsul levant
ou-se, e fazendo profunda vênia ao imperador, cortou-me em meio o discurso: — permit
e, ó césar, que eu interrompa as declarações deste mancebo, pois um dever de consciência m
e obriga a fazer-me seu advogado. creio absolutamente na verdade de tudo quanto
ele acaba de afirmar. antes que a tua magnanimidade me confiasse, há dois anos, o
proconsulado da acaia, em que atualmente procuro servir à tua divindade e ao império
, fui procurador naquela província, cuja sede é hipata. durante a minha administração de
u-se um fato, diversamente apreciado por uns e por outros, mas cujo epílogo agora
vejo revelado no maravilhoso sucesso a que acabamos de assistir. foi o caso que
um velho usurário da cidade, chamado hiparco, teve uma noite sua casa assaltada po
r ladrões, estando ele ausente, bem como a mulher, cuja reputação naquela cidade era a
de uma bruxa da pior espécie. quase toda a gente acreditou na conivência de um rapa
z, que dias antes se hospedara na casa, dizendo-se enviado de um comanditário de h
iparco, e que na realidade seria apenas um comparsa dos bandidos, encarregado de
iludir os donos e lhes franquear a casa, facilitando o assalto.
poucos deram crédito às declarações de uma jovem escrava, que afirmou, e posta em tormen
to confirmou, que o moço fora transformado em burro e levado pelos ladrões, com outr
os animais que se achavam na estrebaria, antes que ela pudesse dar-lhe a comer f
olhas de rosas, com que ele volvesse à forma humana. À falta de provas e de indícios m
ais certeiros para uma decisão, acredito que o processo até hoje deva ter ficado em
suspenso. .. a multidão, embasbacada, aguardava a decisão que devia dar o imperador
ao meu surpreendente caso. e essa foi esta: — louvando-me no testemunho do mui pre
stante e amado procônsul desta província, em nome do senado e do povo romano, declar
o livre e isento de toda a culpa o burric... isto é, o mancebo que aí está em nossa pr
esença, e ordeno que assim seja ele havido e tratado por todas as autoridades, pat
rícios, cavaleiros e povo, desta como das demais províncias do império. vale! um delírio
de aclamações coroou a sentença do césar. e enquanto, a mandado do procônsul, um escravo
me vestia uma túnica de linho, e outro me punha nos pés umas sandálias, eu repetia a t
erceira reverência ao césar, a quem palas acabava de inspirar tão memorável e justo juízo.
e despedindo-me da multidão, e agradecendo os aplausos que ela ainda me fazia, de
ixei o anfiteatro e saí a procurar, em corinto, alguém que me proporcionasse os meio
s e a oportunidade de regressar à minha terra.
segredo
assim, pouco depois estava novamente em patras, onde meus pais, meus irmãos, e meu
s amigos, durante vários anos me haviam dado e chorado por morto. como minha família
era antiga e considerada na cidade, em breve estava eu investido em alto posto
da administração e da judicatura, acatado, benquisto e prestigiado por todos, conter
râneos e forasteiros. mas cá entre nós, que ninguém nos ouve: às vezes me vem uma tal saud
ade dos meus tempos de burrico... não vão porém dizer isso por aí, hein!

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