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04/09/2020 Folha de S.

Paulo - Viagem ao país dos últimos sociólogos - 28/12/97

São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997.

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Viagem ao país dos últimos sociólogos

Para Jacques Rancière, o périplo de


Lévi-Strauss pelos "tristes trópicos"
é na verdade o último episódio de
uma ciência do século 19

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Sabemos que "Tristes Trópicos" começa por um capítulo


intitulado "O Fim das Viagens". Mas por que exatamente as
viagens terminaram e por que o Brasil é um lugar
privilegiado para a verificação desse fim? Estas duas
questões pressupõem uma outra: o que é viajar, se
entendemos com isso não simplesmente um deslocamento de
corpos, mas uma aventura do espírito?
Para compreendê-lo, detenhamo-nos num relato de viagem
ao Brasil mais antigo e muito mais tosco que o de Lévi-
Strauss. Nas "Mémoires d'un Enfant de la Savoie"
(Memórias de um Jovem da Savóia), publicadas em Paris em
1844, Claude Genoux, antigo limpador de chaminés que se
tornou tipógrafo, narra seus anos de peregrinação e em
particular sua viagem ao Brasil, em 1832.
Sua partida deveu-se ao acaso, nos diz ele. Um aviso afixado
no porto de Marselha lhe fez saber que os barbeiros
brasileiros necessitavam de sanguessugas. Ele comprou,
então, um grande lote e transportou-o sobre o Atlântico.
Vendidas as suas sanguessugas, diversas circunstâncias o
retiveram no país, e ele nos narra as mais relevantes. Estas
têm por personagens principais: um jacaré que devora seu
companheiro de viagem, uma jibóia que ameaça devorar a
ele próprio, um escravo negro de nome Papagaio, antigo rei
de uma tribo africana que se revolta contra a injustiça do
fazendeiro, massacra toda a família de seu dono e morre
enforcado. Este último episódio, para Genoux, enseja uma
intensa meditação sobre a contradição de um país em que a
opinião pública e a imprensa liberal coexistem com a
barbárie da escravidão e os castigos corporais.
A narrativa de Genoux nos apresenta uma figura clássica do
relato de viagem. O que nela descobrimos, em primeiro
lugar, é que o outro país é muito parecido com a sua
alteridade, que ele revela à perfeição o bestiário humano e
animal e os acessórios vegetais que o tornam conhecido
daqueles que nele nunca puseram nem porão os pés. As
aventuras tropicais que Genoux nos relata são as que ele teria
podido inventar, se nunca houvesse deixado a Europa. E, de
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fato, chegamos a pensar que ele talvez jamais o tenha feito.


O princípio dessa equivalência, a que jacarés, jibóias e
papagaios emprestam sua figura, é igualmente simples: o
mapa-múndi não apresenta ao viajante senão as etapas do
desenvolvimento da humanidade.
O território do Brasil é um mapa do tempo. O encontro
África-América, arbitrado pelo europeu, é o encontro do
passado da humanidade com seu futuro. Diante da pintura a
óleo da floresta tropical, o jovem da Savóia e o antigo rei
tornado escravo comunicam-se na língua do espírito
universal. Tal língua se deixa reduzir sem problemas a essa
estranha linguagem, que só existe nos livros escolares e na
prosa dos autodidatas: "Branco, és o primeiro de tua cor que
se abaixou, ou melhor, que se mostrou grande o bastante para
aviltar-se na ajuda de um pobre negro"; "jamais, penso eu,
discurso semelhante foi pronunciado por um branco na
presença de um negro...".
Ao identificar-se à língua do espírito universal, essa língua
literária que ninguém jamais falou anula o ceticismo que o
viajante extrai de sua experiência. Ela traça a linha de um
futuro, ao fim do qual o novo mundo acabará por identificar-
se ao território de uma humanidade que marcha rumo à
civilização e que se achará governada por uma "ordem",
recapitulação de seu "progresso". Essa esperança de uma
comunidade regida pela lei de um passado posto em ordem
constitui, ao tempo de Genoux, o objeto de uma jovem
ciência que Auguste Comte aperfeiçoa e que Durkheim
ensinará aos mestres de Lévi-Strauss. Esta ciência, que é
mais do que uma ciência, que é a idéia de uma sociedade que
transforma sua ciência em crenças e em ritos comuns,
chama-se sociologia. Viajar pelo Brasil é viajar pelo país da
sociologia.
É esta viagem que o périplo brasileiro de "Tristes Trópicos"
conduz ao fim. A recuperação do tempo que vai de Paris a
São Paulo e de São Paulo às fronteiras de Rondônia é o
caminho pelo qual a sociologia vê o seu sentido inverter-se.
Essa é a "tristeza" destes trópicos. Ao desembarcar em
Santos, Lévi-Strauss certamente conhecia a célebre frase de
um presidente francês: "O Brasil será sempre um país do
futuro". E ele também poderia, sem deixar Paris, descrever as
alamedas e as casas tropicais do Rio, semelhantes às estações
balneárias da França de 1860, as boiadas que cortavam São
Paulo ao meio, os edifícios novos já envelhecidos ou a
aristocracia decadente dos hipódromos e do Automóvel
Clube. O cenário tropical tomou o lugar dos jacarés e das
jibóias de Genoux. O futuro da civilização não passa da
imitação de seu passado. Porém uma consequência mais
grave pode ser deduzida: se o futuro do Brasil está no
passado, o mesmo se aplica ao futuro da sociologia.
É o que já mostra o "minueto sociológico" executado pela
sociedade seleta que rodeia os jovens professores franceses
da Universidade de São Paulo, onde cada espécie sociológica
se acha representada por um espécime único: o comunista e o
católico, o amante de cães de raça e o de pintura moderna, o
erudito local e o poeta surrealista. Este universo social em
miniatura -o que é ele senão a caricatura do princípio
sociológico de uma sociedade orgânica, constituída de
funções bem diferenciadas? A grande fé sociológica, na qual
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a teoria do progresso recobrara o seu fôlego e que devia


emprestar alma às novas repúblicas racionais, talvez não
passasse de um jogo social, como o espelho brasileiro fazia
suspeitar.
E, contudo, a sociologia não é uma ilusão. Mas para
reencontrá-la será preciso deslocar-se para os territórios reais
daqueles índios que, segundo o mestre Lévi-Strauss,
povoavam as ruas de São Paulo e que, segundo seus
interlocutores paulistas, há muito tinham desaparecido do
solo brasileiro. À margem do rio Paraguai ou nos confins de
Rondônia, o etnólogo descobre, por fim, a sociologia em ato.
A pintura facial dos cadiueus ou a topografia da aldeia dos
bororos realizam o mesmo programa intelectual: inventar
uma ordem cultural que impõe as suas normas à natureza. De
fato, estes "selvagens" são "ainda mais sociólogos que
Durkheim e que Comte". Eles sentem a mesma repugnância
por aquilo que associa aos prazeres do sexo as vulgaridades
da procriação quanto gosto por aquela pintura que impõe a
regularidade geométrica de seus enfeites aos traços
"naturais" do rosto.
Mas a solução desse problema intelectual é também a
solução de um problema político: o plano complexo da
aldeia bororo e a repartição dos hemisférios na pintura facial
dos cadiueus integram, na mesma estrutura, os dois
elementos contraditórios da estrutura social: a igualdade,
traduzida em simetria, e a repartição assimétrica das três
classes hierarquizadas. Ora, exatamente para este propósito é
que a sociologia nascera na Europa do século 19 -para fundir
numa mesma estrutura a hierarquia necessária à vida do
corpo social e a igualdade reivindicada pelo homem dos
tempos democráticos; para fazer dessa estrutura o princípio
de uma fé e de um ritual pelos quais os membros de uma
sociedade manifestam, de uma forma a meio caminho entre
consciente e inconsciente, o princípio de sua coesão social.
Longe de todo exotismo, o ritual funerário dos bororos
realiza o ideal da república positivista, aquele que havia
inspirado as comemorações de Terceira República francesa.
O Brasil, portanto, é a terra da sociologia -só que apenas
nessas populações em vias de extermínio total, que ele
repeliu para os confins de seu território. A cumplicidade do
etnólogo com a visão de mundo dos "selvagens" é mais do
que um traço de caráter ou princípio de método. É a
solidariedade dos últimos autênticos eruditos da sociologia.
E a morte lenta dos nambiquaras não é somente o último
episódio da conquista "civilizadora". Com eles não morrem
tanto os últimos selvagens, mas os últimos verdadeiros
sociólogos. E aquele chefe nambiquara que se apodera de um
simulacro da escritura -concebida unicamente como meio de
poder-, antecipa a morte dessa última verdadeira sociologia.
Ele faz dela um simulacro semelhante ao "minueto
sociológico" da elite paulista.
Esta é a última lição da viagem brasileira: a recuperação do
continente sociológico pelo etnólogo. Porém os nambiquaras
não são o último povo visitado pelo autor dos "Tristes
Trópicos". Pondo de lado o método científico, ele arranjou
tempo para gazetear com os tupi-cavaíbas. Lá, nos relata ele,
foi efetivamente capaz de bancar o Robinson e travar com os
selvagens um contato que a ausência de intérprete abandonou
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à sua muda virgindade. Retorno da ciência etnológica ao


bom selvagem de Rousseau? Ou a descoberta de que a
austera ciência sociológica não era menos utopista que o
devaneio do bom selvagem?

Tradução de José Marcos Macedo.

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