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JOSÉ ROBERTO TEIXEIRA LEITE

VIAJANTES DO
IMAGINÁRIO:
A AMÉRICA
VISTA DA EUROPA,
SÉC. XV-XVII
A
maneira mais adequada de se gênero, todas populares na época dos Gran-
aquilatar em suas dimensões exa- des Descobrimentos (1). Nessas regiões ma-
tas a importância das realizações ravilhosas para além de Tule ora estaria situ-
artístico-científicas de Albert ado o Paraíso Terrestre, com seus campos
Eckhout, Frans Post, Gerg Margraf e dos fertilíssimos, um clima de perene primavera,
demais artistas de Maurício de Nassau, e o a Fonte da Juventude, a Árvore do Bem e do
papel inovador que lhes coube no que respei- Mal e o grande rio dividido em quatro braços,
ta ao rigor documental de suas imagens e à ora a terra inóspita, despovoada ou, pior,
fidelidade com que se dedicaram a fixar ha- habitada por seres disformes ou monstruo-
bitantes, animais, plantas, cenários e demais sos – arimastos dotados de um só olho na
coisas do Novo Mundo, no qual trabalharam testa, artabaritos sem boca, ciápodos de uma
de 1637 a 1644, será decerto compará-las com única perna bifurcada em dois pés (2), blêmios
o que até então, e por cerca de século e meio, sem cabeça com olhos nas espáduas, e mais
vinha sendo feito por alguns poucos cinocéfalos, andróginos, pigmeus, grifos,
cartógrafos, desenhistas e pintores europeus, antropófagos e, numa palavra, toda uma hor-
o mais das vezes operando a distância (e por- ripilante fauna subumana à qual se referem,
tanto pintando “de ouvido”), guiados por em descrições que se pretendem realistas,
desenfreada imaginação e enganados por todo escritores de autoridade e seriedade
tipo de superstição e preconceito – uma he- indubitáveis, como Heródoto, Plínio, o Anti-
JOSÉ ROBERTO rança da Antigüidade clássica ou dos tempos go, Santo Agostinho, Solino e Isidoro de
TEIXEIRA LEITE é
professor de História medievais –, sem perceberem onde começa a Sevilha entre tantos outros (3). Não admira
da Arte do Instituto de realidade e termina a lenda. assim que Colombo, na carta em que dava
Artes da Unicamp e
vice-presidente da A última década do séc. XV e as primeiras contas do que pudera observar em sua pri-
Associação Brasileira do séc. XVI presenciaram, a par de uma revo- meira viagem, esclarecesse, não sem alívio:
de Críticos de Arte. É
lução sem precedentes no campo dos conhe- “Não encontrei os monstros humanos que
autor de, entre outros,
Dicionário Crítico da cimentos geográficos, da navegação maríti- muitas pessoas esperavam que eu encontras-
Pintura no Brasil. ma e da cartografia, o primeiro e mais durável se. Pelo contrário, toda a população é muito
contato com a ampla escala entre os europeus bem feita de corpo. Não são negros como na
Em função do espaço, neste
e os habitantes de regiões remotas da Ásia, Guiné, e seu cabelo é liso”.
texto as notas não cor- África e América; ao mesmo tempo em que Monstros existiram, porém (como lhe
respondem necessariamente
às páginas das remissões. isso se passava, profundas mudanças haviam informado), no interior de Cuba, ho-
1 Consulte-se, acerca de nar- conceituais ocorriam na arte da pintura, que mens de um único olho ou cinocéfalos que se
rativas fantásticas, e entre
tantos outros estudos, os
deixava de ser dócil instrumento a serviço do alimentavam de carne humana, iguais talvez
de: Alexis Chassang, papa ou do rei para, sob o influxo do àqueles que na década de 1530 Jacques Cartier
Historia de la Novela y de
sus relaciones con la Humanismo, voltar-se para a inquirição da sustentava viverem na cidade fantástica de
Antiguedad Griega y Lati-
na, Buenos Aires, natureza – como o exemplifica, de modo in- Saguenay, na América do Norte, ou aos ho-
Poseidon, 1948; Howard
Rollin Patch, El Otro Mun- superável, a obra de Leonardo da Vinci. Não mens de olhos nos ombros que, em 1596,
do en la Literatura Medie-
val, México, Fondo de Cul- obstante tais desenvolvimentos, ainda por Walter Raleigh assegurava habitarem certa
tura Económico, 1956;
Guilhermo Giucci, Viajan- muito tempo continuaria prevalecendo na região da atual Venezuela. Um desses
tes do Maravilhoso. O Novo
Mundo, São Paulo, Compa- Europa, com relação ao Novo Mundo (e não hominídeos acéfalos, ao lado de toda uma
nhia das Letras, 1992. vasta série de outros derivados das ilustra-
só entre o povo miúdo mas também entre
2 Descendente temporão de homens de ciência), certa visão fantasiosa que, ções das Etymologiae de Isidoro de Sevilha,
todos os ciápodos parece-
nos ser – quem diria! – o para muito além do que os olhos podiam ver do séc. VII, foi “retratado” em 1493 na Crô-
Abaporu que Tarsila do
Amaral pintou em janeiro de ou a razão admitir, alimentava-se de narrati- nica de Neremberg pelo mestre de Dürer,
1928 para presentear
Oswald de Andrade, o qual vas extravagantes de viagens imaginárias ou Michael Wohlgemut, e quase dois séculos e
de imediato identificou-o
como “um selvagem, uma sobrenaturais, como as descritas na Navegatio meio mais tarde ainda servia para exemplificar
coisa do mato”. É significati-
vo o nome que a artista deu
Sancti Brendani Abbatis, nas Coisas os habitantes da América Central, numa ilus-
a seu estranho personagem, Inacreditáveis para além de Tule, na tração do Moeurs des Sauvages Amériquains
colhido no Tesoro de la
Lengua Guarani, do padre Cosmographia de Ético, na Ymago Mundi de Comparées aux Maoeurs des Premiers Temps
Antonio Ruiz de Montoya,
publicado em 1639: abaporu Pierre D´Ailly ou nas Viagens de John (1724), do jesuíta Joseph-François Lafitau.
quer dizer antropófago,
comedor de gente. Mandeville – entre tantas outras obras do Cinocéfalos antropófagos, um deles

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encarapitado no que parece ser uma lhama, corpo. Cabeças, pescoços, braços, vergo-
ocorrem por outro lado numa velha nhas e pés, tanto de homens quanto de
xilogravura germânica do Underweisung und mulheres, são enfeitados com penas. Os
Uszlegung Der Cartha Marina de Fiers, pu- homens têm também no rosto e no peito
blicado em 1530. muitas pedras preciosas. Ninguém é pos-
De todos os hábitos dos naturais do Novo suidor de coisa alguma, pois a proprieda-
Mundo, nenhum causaria decerto maior es- de é de todos. Os homens tomam por
panto entre os europeus que a antropofagia, mulher a que mais lhes agrade, podendo
causa aliás de constantes discussões filosófi- ser sua mãe, irmã ou amiga, já fazem dis-
co-religiosas acerca da verdadeira índole tinção. Guerreiam entre si e devoram uns
3 A respeito de monstros con-
desses gentios, descendentes de Adão e Eva aos outros, inclusive os que matam em sulte-se: Rudolf Wittkower,
para alguns, mas para outros pouco mais do combate, cujos corpos penduram para “Marvels of the East: a
Study in the History of
que bestas-feras – o que de resto propiciava assar sobre fogueiras. Vivem 150 anos. E Monsters”, in Journal of the
Warburg Institute, V, 1942,
um bom pretexto de escravizá-los. Seria ne- não possuem governo”. pp. 159-96; Jurgis
Baltrusaitis, Le Moyen Age
cessário que em 1537 uma bula papal reco- Fantastique, Paris,
Armand Colin, 1955. Como
nhecesse explicitamente a natureza humana A beleza física dos canibais, a contrariar escreveu Hugh Honour, no
capítulo “Science and
dos americanos (e, por conseguinte, sua a noção até então prevalecente de sua mons- Exotism” da coletânea
Johan Maurits van Nassau-
filiação a Adão e Eva, como todos os demais truosidade, o andarem despidos, sua Siegen 1604-1679 (Haia,
seres humanos) para que se calassem os que, longevidade, o não possuírem propriedade The Johan Maurits van
Nassau Stichting, 1979, p.
como Paracelso em 1520, punham em dúvida privada ou qualquer forma de governo, tudo 270), “monstros como es-
ses” (referindo-se aos des-
tal genealogia, admitindo, quando muito, que isso (que mais tarde seria reduzido às devidas critos por Mandeville) “ti-
nham já uma longa histó-
descendessem de algum outro Adão. Pode-se proporções) parecia aproximar os nativos da ria“. Referências a eles fo-
ram feitas na Antigüidade
imaginar a conturbação dos teólogos ante essa América daquela perdida Idade Áurea da raça por Plínio, Pomponius
Mela e Solinus; a crença
possibilidade de existência de mais de um humana à qual se reportam Virgílio e Ovídio, em sua existência adquiriu
autoridade eclesiástica
Adão, e bem assim a aflição com que recebe- e que motivara ao pintor Piero di Cosimo com Santo Agostinho; e
ram a notícia da descoberta de um quarto importante ciclo de pinturas (4); Ronsard, num tudo isso foi transmitido à
Idade Média, junto com
continente, em total desacordo com o que poema dedicado a Villegaignon, não hesita muitas outras tradições
clássicas, através das
estipulavam os antigos! em afirmar, dos indígenas do Brasil, que “[...] Etymologiae de Santo
Isidoro de Sevilha, de co-
Em face da enorme comoção que os cani- ils vivent maintenant en leur âge doré”. meços do séc. VII. Foram
também ilustrados em ma-
bais despertaram entre os primeiros europeus Derivam dessa visão nostálgica e irrealista nuscritos desse estranho
compêndio de informação
que deles tiveram notícia, era previsível que dos ameríndios aproximados a povos antigos e desinformação que ser-
viu como obra de referên-
as mais antigas figurações dos habitantes do certas representações em que assumem apa- cia enciclopédica ao longo
Novo Mundo mostrassem antropófagos, com de todo o mundo medieval.
rência hercúlea ou apolínea, de corpos bem
cocares de penas à cabeça e saiotes também proporcionados como os de deuses gregos: 4 Cf. Erwin Panofsky, “Les
Origines de l´Histoire
de penas que lhes atenuavam a nudez. Assim não lhes surpreendera mesmo um viajante Humaine”, in Essais
d´Iconologie. Les Thèmes
ocorre numa xilogravura de artista alemão italiano, Verazzano, certa “[...] aria dolce e Humanistes dans l´Art de
la Renaissance, Paris,
ilustrando o Novus Mundus de Vespúcio (de soave imitando molto l´Antico” (5)? Entre tais NRF/ Gallimard, 1967, pp.
53-103.
1505), na qual pode-se ver, à beira-mar, onze imagens de naturais da América assemelhan-
5 Cf. H. Honour, op. cit., p.
canibais entre os quais mulheres e crianças, do-se, pela anatomia e até pela postura, a 270. Tal aproximação dos
naturais do Novo Mundo à
tendo ao longe duas caravelas fundeadas. Na biotipos clássicos, mediterrâneos, citemos as Europa Clássica pode ter
edição germânica impressa em Angsburg por devidas a dois célebres artistas alemães, porém correspondido a um
estratagema no sentido de
Johann Froschauer, tal gravura é acompanha- Albrecht Dürer e Hans Burgkmair. Às mar- neutralizar ou amenizar o
desconcerto gerado pelo
da de curto texto-legenda, equivalente à épo- gens da página 411 de um Livro de Horas descobrimento de uma
quarta parte do mundo,
ca a praticamente quanto se sabia e pensava feito para Maximiliano, ilustrando um salmo não mencionada nas Es-
crituras. Pelo mesmo mo-
acerca dos americanos: e com data de 1515, Dürer desenhou um tivo houve quem quisesse
identificar, nos índios ame-
americano de corpo atlético e rosto quase ricanos, os descendentes
das dez tribos perdidas em
“Essa imagem nos mostra o povo e a ilha feminino, empunhando um tacape e tendo à Israel, como sustentavam
descobertos pelo Rei Cristão de Portugal cabeça cocar tupinambá, além de sustentar na o autor dos Diálogos das
Grandezas do Brasil
ou por seus súditos. Essas pessoas andam mão esquerda um escudo circular. Não se sabe (Ambrósio Fernandes
Brandão? C. 1618) e Diego
nuas, são bonitas e têm uma cor de pele onde ou quando o grande artista conseguiu Andrés Rocha (Tratado
Unico y Singular del Orígen
acastanhada, sendo bem construídas de ver de perto artefatos de índios brasileiros, de los Indios, Lima, 1681).

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6 Cf. Jean Michel Massing,
“Early European Images of
America: The Ethnographic
Approach”, in Circa 1492.
Art in the Age of
Exploration, Washington D.
C., Jay A. Levenson, Edi-
tor. Nacional Gallery of Art,
New Haven e Londres, Yale
University Press, 1991, p.
516: “O tacape por ele de-
senhado é quase idêntico
a um espécime hoje no
Musée de l’Homme em
Paris, o qual talvez seja o
que pertenceu ao chefe
tupinambá Quoniambec,
uma arma trazida do Brasil
por André Thevet em 1555
ou 1556. Dürer evidente-
mente não tinha a menor
idéia da função desse tipo
de maça, e transformou-a
numa lança. Isso prova que
ele certamente nunca viu
um guerreiro tupinambá,
mas que estava familiariza-
do com a arma”.

7 Christoph Weiditz (1500-59),


pintor, medalhista e dese- Louis de Merval, água-forte do livro L’Entrée de Henri II à Rouen (1868), col. José Mindlin
nhista nascido em
Strasbourg, fixou-se em
1529 na Espanha, onde
produziu o Trachtenbuch,
coletânea de desenhos re- mas parece não haver dúvidas de que os viu, (à força) a Espanha em 1529, tendo sido en-
tratando a sociedade espa-
nhola da época, inclusive tal a veracidade com que os representou (6). tão retratados por Christoph Weiditz (7); sabe-
onze astecas, que Cortés
trouxera em 1528 para a
Por sua vez, Burgkmair representou, no Tri- se de um índio brasileiro na Inglaterra em
corte. Weiditz ficou conhe-
cido como o primeiro artis-
unfo de Maximiliano (só impresso em 1526, 1532 e de outro – o célebre Essomeriq – na
ta europeu a fixar a aparên- porém executado em data bem anterior), um França no mesmo ano (8); hurões foram tra-
cia de indígenas mexica-
nos, observados do natu- indígena americano com cocar, colar, ombrei- zidos para esse mesmo país em 1536 e uns 50
ral.
ras e saiote de penas, sustentando na mão índios brasileiros participaram, em 1550, da
8 Jean Paulmier de Gonneville,
a bordo do Espoir, por duas direita uma clava e erguendo ao alto, com a entrada de Henrique II em Rouen (9); sem
vezes entre 1503 e 1505
tocou terras do Brasil (San- esquerda, um escudete do qual pendem pe- falar daqueles levados em 1613 à França para
ta Catarina e Bahia), em-
bora pensasse ter chega-
nas. Tanto quanto Dürer, Burgkmair nunca ali serem batizados (10). Ignora-se contudo
do a África do Sul. Ao
retornar à Europa levou um
viu de perto um americano, mas pode ter-se se Colombo ou Cabral traziam a bordo ame-
jovem nativo a quem bati- deparado com armas e trajes trazidos do Novo ricanos, ao regressarem de suas viagens de
zou com o nome de
Essomeric e a quem Mundo por viajantes. Tanto nesse seu dese- 1492 e 1500 respectivamente a Espanha e a
perfilhou, fazendo-o mais
tarde casar-se com uma nho quanto em outro do Triunfo de Portugal. Por isso mesmo é que se torna tão
parenta. Descendentes
desse Essomeric ainda vi- Maximiliano, também mostrando um enigmática uma notável pintura do Museu
viam em Lisieux no séc.
XVII. Cf. Rubens Borba de ameríndio, observa-se uma mescla de elemen- Grão Vasco em Vizeu, representando uma
Moraes, Bibliographia
Brasiliana, Amsterdã e Rio
tos brasileiros e mexicanos, sendo tupinambás Adoração dos Reis Magos e atribuída ao pró-
de Janeiro, Colibris, 1958,
I, pp. 305-6.
o cocar e a coleira de penas visíveis no pri- prio Vasco Fernandes (1475?-1541?). A pe-
meiro desenho, e provavelmente astecas o culiaridade maior dessa obra é que retrata
9 Consulte-se, a respeito:
Ferdinand Denis, Une Fête escudo e a clava. No mais, cumpre salientar Baltasar não sob a aparência tradicional de
Brésilienne Célebrée à
Rouen en 1550 etc, Paris, que os ameríndios de Burgkmair mais se as- um negro ou mouro, mas sim como um autên-
J. Techner, 1850. A Biblio-
teca de Rouen conserva um semelham a africanos, e que um deles exibe tico tupinambá. O quadro dataria dos
manuscrito anônimo, ilus-
trado com dez miniaturas,
uma inadmissível barbicha, isso sem falar no primeiríssimos anos do séc. XVI, 1501-06, e
com a descrição do que foi saiote de penas que pudicamente esconde as
essa entrada, vendo-se nas
parece estar estreitamente ligado à descoberta
miniaturas os indígenas vergonhas do pretenso índio do Brasil. do Brasil pelo almirante Pedro Álvares Cabral,
tupinambás que participa-
ram das festividades. Al- Dürer e Burgkmair, repetimos, jamais o qual, de acordo com certos autores talvez
guns deles, como é sabido,
já viviam na cidade desde viram um nativo americano; americanos, demais imaginosos, teria sido figurado como
alguns anos antes, em fun-
ção das relações comerci- porém, começaram desde muito cedo a che- o Rei Mago que, de joelhos, adora o Menino
ais que desde os primeiros
anos do séc. XVI uniam as gar à Europa, levados por colonizadores e Jesus (11). Não havendo indicação de ter Cabral
costas do Brasil à
Normandia. Duas importan- marinheiros. Assim é que habitantes da Terra trazido índios a Portugal, e como evidente-
tes talhas em madeira de
carvalho, uma e outra
Nova foram levados para Portugal em 1501 e mente Vasco Fernandes ou quem tenha sido o
datáveis de 1530 e conser-
vadas no Museu de Rouen,
para a Inglaterra em 1502; astecas visitaram autor da obra jamais esteve no Brasil, forçoso

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focalizam as atividades de
é concluir que a figura do índio deve ter sido dataria de entre 1523 e 1525 e reconstituiria corte, embarque e trans-
executada a partir de esboços feitos in loco por ao pintar um combate narrado por antigo par- porte do pau-brasil, obras
de autor francês não iden-
alguém que observou de perto um desses indí- ticipante (15). tificado e de excelente qua-
lidade.
genas, a ponto de poder dele dar uma versão Tanto ou até mais fantasiosa é a teoria de
10 A história desses indíge-
etnograficamente convincente. Larsen, segundo a qual os europeus retrata- nas, trazidos a Paris por
François de Razilly “pour
No grande retábulo do Jardim das Delíci- dos são portugueses e não espanhóis, o cená- estre baptizes er conuertitz
a la foy de Jesus Christ et
as de Hyeronimus Bosch (1450?-1516?) – rio não é mexicano porém brasileiro e os in- presentez a sa Ma. te en
lannee presente 1613” foi
cuja execução situa-se também nos anos ini- dígenas são tupinambás, nunca astecas; a obra contada por Yves d´Evreux
ciais do séc. XVI –, detectou Carl Justi, em seria contemporânea das festas que marca- na Suite de l´Histoire des
choses plus memorables
fins do século passado, certa atmosfera tropi- ram a entrada de Henrique II em Rouen (da advenuës en Maragnan, ès
années 1613 & 1614
cal e oceânica, como se o mundo-de-idéias qual, como se disse, participaram vários Second Traité (Paris,
1615).
do artista “tivesse sido estimulado pela re- índios brasileiros), e também do aparecimento
11 Cf. José Teixeira, em texto
cém-descoberta América e por desenhos do do livro em que Hans narrava seu cativeiro publicado em Circa 1492
etc. (pp. 152-3): “Quem
seu cenário tropical” (12); mas os animais entre os tupinambás, ou seja, teria sido pinta- quer que tenha encomen-
dado essa imagem deve ter
híbridos e as rochas compósitas visíveis no da entre 1550 e 1556 (16), nos derradeiros tido conexões especiais
tríptico do Prado antes se relacionam com a anos da vida de Mostaert. Em nossa opinião com o Brasil, e na verdade
acredita-se que o Rei Mago
Índia mítica descrita por Eusébio em sua Carta a Paisagem em questão é obviamente imagi- ajoelhado no primeiro pla-
no seja um retrato ao natu-
Alexandre a Aristóteles, e os animais e vege- nária, aparentando-se vaga e remotamente a ral de Pedro Álvares Cabral
(1468-1519), que em 1500
tais exóticos ali figurados, como o elefante, a outras representações de cenários exóticos ou comandava a primeira fro-
ta portuguesa que atingiu
girafa e a árvore-dragão, têm como fonte as primitivos, como os que aparecem nas o Brasil. [...] Ao tempo em
que a Adoração foi pinta-
xilogravuras que ornam a Reise ins Heilige xilogravuras que adornam o Trattato di da, Cabral teria uns 35
anos. Sua história pessoal
Land de Breydenbach (1486), nada tendo por Architettura de Filarete ou o De Architettura pode explicar sua aparên-
conseguinte a ver com o Novo Mundo (13). de Vitrúvio, as diversas pinturas de Piero di cia mais idosa no quadro.
[...] Embora não existam
Muita tinta já correu também a respeito Cosimo (1461-1521) dedicadas ao tema do registros históricos da par-
ticipação de Cabral na en-
de outra importante pintura quinhentista primorum hominum vita (17) ou mesmo numa comenda do retábulo, sa-
bemos, por um documen-
flamenga: a Paisagem das Índias Ocidentais pintura como Os Primórdios da Civilização to datado de 22 de setem-
bro de 1500, que Dom
de Jan Mostaert (1475-1556), que em 1604 de Cornelis van Dalen (Bussum, Países Bai- Fernando Gonçalves de
Miranda, Bispo de Viseu
Carel van Mander descreveu no Schilderboek xos, Coleção Dr. D.P.R.A. Bouvy) (18). Nes- entre 1487 e 1491, preo-
cupado com os custos da
como “[...] uma paisagem das Índias Ociden- se ponto cumpre ceder a palavra a H. Honour: pintura que ainda não ti-
tais, como pessoas nuas, uma rocha fendida e nham sido cobertos, esta-
va procurando apoio finan-
uma estranha construção de casas e chocas”, “O modo de vida pastoral, correspondente ceiro de alguns patronos
das artes. Por esse tempo,
dizendo-a obra inacabada, e atribuindo-a à Idade de Ouro dos indígenas, contrasta pouco após seu regresso
da viagem ao Brasil, diz-
àquele mestre. Identificado em 1909 nos de- com a Idade de Ferro dos espanhóis, sim- se que Álvares Cabral pas-
sou algum tempo na cida-
pósitos do Museu van Stolk de Haarlem e bolizada pela presença de homens arma- de de Viseu ou na aldeia
vizinha de Azurara da Bei-
exposto vinte anos mais tarde em Londres dos que avançam em meio a uma paisagem ra (atualmente Mangual-
de), onde parentes seus
sob o título bem mais sedutor de A Conquista pacífica. A pintura tem sido com freqüên- possuíam propriedades.
da América, o quadro causou sensação, divi- cia descrita como um exemplo de exotismo, Seus ancestrais tinham
sido enterrados na Sé de
dindo desde então os especialistas, uns vendo mas na verdade os únicos elementos exó- Viseu, e seu avô fora um
respeitado proprietário
nele (como Leo van Puyvelde) não mais que ticos que contém limitam-se a um macaco nessa cidade”. Como se
pode constatar são apenas
uma paisagem imaginária, outros (entre os e um papagaio. Seu cenário assemelha-se hipóteses sem possibilida-
de de confirmação. Quan-
quais E. Weiss, Edouard Michel e mais re- ao da Expulsão do Paraíso (Clark Institute, to a Adorações, em que um
dos Reis Magos, mais es-
centemente Erik Larsen) acreditando tratar- Williamstown, Mass.) do mesmo artista, pecificamente Baltasar,
viu-se representado sob a
se de um episódio real da luta entre conquis- do qual seria em verdade uma contraparte aparência de um índigena
tadores europeus e aborígines americanos. moderna. Embora algumas tentativas te- brasileiro, o Museu Histó-
rico e Diplomático do Mi-
Michel julgou ver os europeus como espa- nham procurado identificar a cena com um nistério das Relações Ex-
teriores possui uma cópia
nhóis, após ter identificado a Cruz de Santo episódio específico da crônica da Conquis- ou réplica da de Vasco
Fernandes, e pessoalmen-
André no pavilhão que um dos soldados car- ta, aparentemente Mostaert buscou ilustrar te nos recordamos de ter
visto outra composição em
rega (14); quanto ao sítio em que a cena trans- em termos genéricos a lenda negra da cru- igreja de Salvador, em
1960, e uma quarta em lei-
corre seria algum lugar do México. O mesmo eldade espanhola, com o pensamento vol- lão realizado no Rio de
Janeiro nos anos 1970.
historiador vincula a pintura aos tesouros tado tanto para a Europa quanto para a Amé-
astecas que Cortés enviou a Carlos V: a obra rica” (19). 12 Apud Eilhelm Fraenger,

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The Millenium of
Hyeronimus Bosch. Lon-
Que nem sempre os indígenas brasileiros de como viviam os naturais do longínquo
dres, Faber and Faber, foram vistos como vítimas – e sim como ter- Brasil, vendo-se aqui um casal entretendo-se
1952, p. 57.
ríveis algozes – comprova-o anônima pintura numa rede, ali uma escaramuça, acolá ho-
13 “Índia” foi por muito tempo
nome genérico pelo qual se de 1550 no Museu Nacional de Arte Antiga mens caçando ou pescando, e assim por dian-
entendeu ou identificou
tudo quanto fosse bizarro, de Lisboa: trata-se de um Inferno à maneira te. A festança acabou com a simulação de um
estranho, misterioso ou
exótico. Outra expressão de Jan Mandyn ou de outro qualquer imitador combate entre dois grupos de guerreiros, fin-
que aparece amiúde em
textos antigos, à maneira de Bosch, no qual o grupo de demônios sub- do o qual a taba foi incendiada. É essa aldeia
de Calicut, Calcou, Calcut,
tem o mesmo amplo signi-
mete condenados à tortura, sob as vistas de brasileira com seus moradores que a
ficado. um satanás significativamente ostentando à xilogravura Figure des Brisilians esplendi-
14 Essa Cruz de Santo André cabeça cocar e vestindo o que pode ser um damente retrata (20). Seis anos depois, Jean
era em verdade um acrés-
cimo bem mais tardio, que traje de penas, não muito diferente aliás do Dugord dava a lume novo relato, agora em
desapareceu com facilida-
de por ocasião de uma lim- usado por Baltasar na Adoração dos Reis versos, das festividades de 1550: Les Pourtres
peza a que foi submetida a
pintura. Magos de Vasco Fernandes, há pouco menci- et Figures du Sumptueux Ordre, Plaisantz
15 E. Michel, “Un Tableau onada. O espaço central da composição é Spectacles, ilustrada com as xilogravuras da
Colonial de Jan Mostaert”,
in Revue Belge d´Archéo-
ocupado por gigantesco caldeirão fervente edição anterior, inclusive a Figure des
logie et d´Histoire de l´Art,
I, 1931, pp. 133-41.
sobre uma fogueira, tendo dentro cinco dana- Brisilians, só que numa impressão menos
dos, dois deles tonsurados. Embora caldei- nítida, pelo desgaste da matriz.
16 Erik Larsen, “Once more
Jan Mostaert´s West- rões escaldantes fossem freqüentes nas re- Entre os companheiros de Jean de Léry na
Indian Landscape”. Sepa-
rata de Mélanges presentações pictóricas do inferno desde fins viagem que fez em 1555 ao Brasil, achava-se
d’Archéologie et d’Histoire
de l’Art Offerts au da Idade Média, não há dúvida de que o con- certo Jean Gardien, “expert en l’art du
Professeur Jacques
Lavalleye, Louvain, 1970, siderável know-how dos canibais brasileiros portrait”, como a seu respeito escreveu o
pp. 128-37.
em cozinhar seus inimigos foi o que sugeriu próprio Léry na Histoire d’un Voyage Faite
17 Convém ainda recordar
que homens selvagens,
ao autor da pintura, ou a quem a encomendou en la Terre du Brésil, publicada em La
focalizados isoladamente (quem sabe um antigo colono no Brasil), Rochelle em 1578:
ou em meio a cenários exó-
ticos, aparecem com mui- emprestar a satanás a aparência de um feroz
ta freqüência na obra de
numerosos gravadores tapuia, mesmo porque como demônios é que “E muitas vezes roguei a certo Jean
europeus desde meados
do séc. XV, como o Mestre não poucos lusitanos devem ter visto exces- Gardien, de nosso grupo, perito na arte do
das Cartas de Jogar, o
Mestre da Paixão de sivamente de perto tais selvagens, mais ou retrato, que desenhasse aquele [animal] e
Nuremberg, o Monogra-
mista B. G., Martin
menos pela época em que a obra foi feita. do mesmo modo vários outros, não apenas
Schongauer, Israel van
Meckenen, etc.
Das mais belas representações de indíge- raros, como também totalmente desconhe-
nas brasileiras é uma xilogravura de autor cidos entre nós. Mas, para meu pesar, Jean
18 Leo van Puyvelde, La
Peinture Flamande au ignorado, mas de tal qualidade que já houve Gardien não quis jamais fazê-lo”.
Siècle de Bosch et
Breughel, Paris, Elsevier, quem a atribuísse a Jean Cousin, no livro C’est
1962, pp. 240-1, nos 128-
30. Cornelis van Dalen tor- la Deduction du Sumptueux Ordre Plaisantz Se Jean Gardien não chegou a produzir,
nou-se mestre em Antuér-
pia em 1566, ignorando-se
Spectacles, publicado por Jean le Prest em por preguiça, birra ou qualquer outro motivo,
quase tudo o mais a seu Rouen em 1551. O livro celebra a entrada
respeito.
o bestiário que lhe pedia Léry, quem terá sido
triunfal de Henrique II e Catarina de Médici o autor das ilustrações que, passadas para a
19 H. Honour, op. cit., p. 282.
em 1550 em Rouen e descreve as festividades técnica da xilogravura, adornam a Histoire?
20 Indígenas do Brasil, já o
dissemos, não eram pre- então organizadas pelos habitantes dessa ci- Segundo Borba de Moraes, Jean de Léry ele
sença incomum em Rouen,
em meados do séc. XVI. dade normanda. O ponto mais elevado das próprio ou alguém trabalhando sob sua orien-
Montaigne ainda os encon-
traria em 1563, e do diálo- celebrações foi decerto a construção de uma tação direta, tal a fidelidade etnográfica de
go com um deles é que
nasceria o célebre ensaio
aldeia indígena junto a uma imitação de flo- que dão prova (21).
“Dos Canibais” (Essais, I,
31). Outro grande escritor
resta tropical à qual não faltavam árvores e Por nove meses prisioneiro dos tupi-
francês, François Malher- arbustos trazidos do Brasil, ao lado de outros nambás, durante o ano de 1549, o alemão Hans
be, manifestaria enorme
curiosidade pelos nossos pintados de vermelho para simularem o pau- Staden, de Hessen, publicou em 1557 o relato
indígenas, referindo-se em
diversas cartas aos seis brasil. Cerca de 50 índios brasileiros, que já de suas aventuras no Brasil – a Warhaftige
tupinambás trazidos do
Maranhão por Rasilly em viviam na cidade, foram convocados a parti- Historia und beschreibung eyner Landtschafft
1613. Alude Malherbe à
aparência física dos indí- cipar da festa, junto com outros 150 mari- der Wilden, Nacketen, Grimmigen
genas, às suas danças e
instrumentos musicais,
nheiros disfarçados de índios, desnudos e com Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt
adiantando que um famo-
so alaudista francês do
seus corpos pintados. Nessa autêntica insta- America gelegen etc., ilustrada por mais de
momento, Gautier, compôs lação ou quadro vivo podia-se ter uma idéia 50 xilogravuras, entre mapas, combates,

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embarcações, cenas da vida dos índios, fes- se ele mesmo desenhou todas as singularitez “Figura de
tins antropofágicos, cenas do seu cativeiro e ou se, como seu rival Jean de Léry, também Brasileiros”,
até dois exemplos da fauna local, um tatu e dispunha no Brasil de um “expert en l’art du xilogravura que
um gambá. De qualidade discretíssima, algu- portrait”. Thevet reaproveitaria muitas ilus-
ilustra o livro C’est
mas das xilogravuras podem ter sido basea- trações do seu livro de 1557 na Cosmographie
das em esboços feitos pelo próprio Hans la Déduction du
Universalle publicada em 1575 em Paris, e
Staden após seu regresso à Europa, enquanto em outro trabalho, Les vrais Portraits et Vies Sumptueux Ordre...
muitas outras, que pouco ou nada têm a ver des Hommes Illustres Grecs, Latins, et Payens (Rouen, 1551),
com o texto, foram simplesmente fornecidas etc., de 1584, incluiria retratos e biografias de coleção José
pelo editor para de algum modo embelezarem cinco indígenas americanos: Paraousti Mindlin, São Paulo
o livro (22). Satovriuna, rei da Flórida, Paracoussy, rei do
Também de 1557 é Les Singularitez de la Prata, Montezuma, Ataliba e Quoniambec, uma sarabanda sobre
tema musical tupinambá;
France Antarticque, de André Thevet, livro ou Cunhanbebê; o retrato do último teria sido esclarece que um dos seis
ilustrado com 41 estampas xilográficas, sete tupinambás morreu dois
feito no Rio de Janeiro. dias depois da chegada, e
das quais assinaladas com pequena cruz de O Recueil de la Diversité des Habits etc. que outros estavam muito
doentes (“je crois que notre
Lorena – marca talvez de Guillaume Tory, de François Descerpz (Paris, 1562) retrata em air ne leur est pas sain”);
menciona o batismo e a
ou, segundo outros, de um ateliê localizado 129 xilogravuras, cada qual acompanhada de posterior apresentação e
despedida dos tupinambás
na Lorena –, duas com as iniciais J.C. (do um quarteto em rimas, outros tantos costu- ao Rei, o qual lhes deu
como souvenir, antes que
célebre Jean Cousin) e as demais sem assina- mes dos povos da Europa, Ásia, África e “das retornassem ao Brasil, cru-
zes de ouro tendo flores-
tura ou marca de identificação. Cumpre ob- ilhas selvagens”, tudo, como esclarece o sub- de-lis incrustradas às qui-
servar que, a quem quer que sejam devidas as nas. Cf. Borba de Moraes,
título, “fait apres le naturel”. As xilogravuras op. cit., I, pp. 6-7.
estampas, elas se baseiam em “portraits au estão dispostas duas a duas em cada página, 21 Parece-nos óbvio, porém,
naturel faits d’après creon que j´ai rapporté e seis se relacionam ao Brasil: Le Portugais que Léry não era desenhis-
ta, ou ele mesmo teria de-
de dessus les lieux”, como esclarece o pró- e La Portugaise, La Femme Sauvage e senhado os animais curio-
sos que em vão pediu que
prio Thevet, ficando em aberto a questão de L´Homme Sauvage e sobretudo Le Brésilien Jean Gardien desenhasse.

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e La Brésilienne. Muito se tem discutido acer- leva a crer ter De Morgues trabalhado no es-
ca da autoria dessas ilustrações, por alguns boço (que mais tarde passaria à propriedade
atribuídas ao próprio Descerpz; ora, ele mes- de De Bry) para dele fazer uma pintura, ao
mo esclarece em seu texto serem as mesmas que parece quando já residia na Inglaterra.
baseadas “en quelques desseins du deffunct Na Historia da Provincia Sãcta Cruz a
Roberval , Capitaine pour le Roy, & d’un que Vulgarmente Chamamos Brasil, de Pero
certain Portugais ayãt frequenté plusieurs & de Magalhães Gandavo (Lisboa, 1576), po-
divers pays”. Não se trata por conseguinte de dem ser vistas duas ilustrações xilográficas
representações imaginárias de indígenas do assinadas por certo Jerônimo Luiz, uma re-
Brasil, porém de figuras tomadas do natural, tratando a execução de um prisioneiro por um
se bem que adaptadas ao gosto europeu por grupo de indígenas, e a outra uma
quem as transpôs para a técnica da xilogravura, estranhíssima criatura marinha que apareceu
tornadas mais elegantes, de formas mais bem em 1564 em São Vicente – o Ipuiara, certa-
proporcionadas. Uns oitenta anos mais tarde, mente um inocente leão-marinho, afinal aba-
Albert Eckhout retomaria o expediente de tido a golpes de espada e flechaços. A ilustra-
representar aos pares os tipos étnicos que lhe ção do Ipuiara deve ter causado sensação na
foram dados a conhecer no Brasil holandês, Europa, dela existindo pelo menos mais duas
quem sabe sob a influência desse que já foi versões, uma alemã, italiana a outra, acom-
considerado o primeiro livro de etnografia panhadas de curtos textos explicativos sobre
jamais publicado. a aparição do monstrengo (Newe Zeytung von
Enquanto tais coisas sucediam no Brasil, einen seltzamen Meerwunder etc., Frankfurt,
em outras regiões americanas, pela mesma sem nome de editor ou data, e Nel Bresil di
época, artistas europeus também se dedica- San Vicenzo nella Citta di Santos etc., im-
vam a representar tipos e costumes do Novo presso em Veneza em 1565 por Nicolo Nelli).
Mundo. Um desses artistas foi o cartógrafo O esboço primitivo, talvez devido ao próprio
francês Jacques Le Moyne, também chama- Gandavo, mostraria apenas o monstro, de
do De Morgues, enviado em 1564 à Flórida corpo ovalado, cabeça quase humana, sobre
como integrante da expedição colonizadora pés de palmípede, dotado de seios mas com
chefiada por Laudonnière. Depois que o Fort órgãos genitais masculinos; possivelmente em
Caroline, em que se tinham estabelecido, viu- versões posteriores foram acrescentados o
se destruído pelos espanhóis, Le Moyne (dos português que o acomete com a espada e os
poucos que escaparam com vida) radicou-se indígenas que lhe atiram flechas.
em Londres como empregado de Sir Walter Curiosa irrupção temática americana na
Raleigh, para aquela cidade levando desenhos arte italiana de fins do séc. XVI pode-se ver
e aquarelas que produzira na América. Após respectivamente na Galleria Borghese de
sua morte em 1588, seu diário de viagem e as Roma e na decoração do teto da sala de armas
ilustrações correspondentes foram adquiridos do Pallazzo degli Uffizi em Florença. A pin-
por Theodor de Bry, que passou boa parte do tura na Galleria Borghese é de autoria de Jacob
material para a técnica da gravura em metal, Zucchi, data de 1580 e deve ter sido motivada
publicando em 1591 a Brevis Narratio eorum pelo Itinerário de Lodovico Varthema, dado
quae in Florida Americae provincia Gallis a lume em 1508: representa As Riquezas do
acciderunt. Uma das mais antigas pinturas de Mar, também conhecida como Os Pescado-
assunto norte-americano, datada de 1564 e res de Pérolas. Entre os numerosos persona-
22 As 25 xilogravuras de meia-
página que adornam a devida a Jacques Le Moyne De Morgues, foi gens dessa curiosa composição inclui o artis-
Warhaftige Historia de
Staden nas duas edições vendida em 1967 pela Sotheby’s de Londres: ta dois de nítida aparência indígena america-
de Frankfurt de 1557 são
as mesmas que tinham ser- representa indígenas garimpando ouro nas na, com seus arcos e flechas e um deles levan-
vido para ilustrar uma edi-
ção do Itinerario de faldas dos Montes Apalaches e, a despeito da do à mão direita um papagaio. Quanto à pin-
Lodovico Varthema surgida
na mesma cidade em 1548.
execução pesada e algo desgraciosa, é docu- tura decorativa do Pallazzo degli Uffizi, é de
Cf. Helmut Andrä, “Hans
Staden e seu Tempo”, in
mento palpitante de vida. A composição des- autoria de Lodovico Butti e data de 1588,
Revista de História, Univer- sa pintura a óleo é idêntica à que se vê na mostrando em um dos seus pormenores uma
sidade de São Paulo, no 42,
1960. Prancha 41 das Viagens de De Bry, o que nos figura ao que parece derivada dos desenhos

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de Dürer e Burgkmair aos quais nos referi- Em 1976, procedendo ao recenseamento
mos atrás, ou de qualquer modo relacionada das imagens produzidas até 1590 acerca dos
com as curiosidades mexicanas que Cortés indígenas americanos, William C. Sturtevant
remetera a Carlos V em princípio do século. chegou a um total de exatas 268, aí incluídas
Governador da colônia fundada por Sir as ilustrações em livros e mapas (23); naque-
Walter Raleigh em Roaneke, na Virgínia, o le ano de 1590, contudo, surgia um novo ca-
inglês John White foi ao mesmo tempo o pítulo na história da iconografia americana,
documentarista da expedição, tendo produzi- com o início da publicação, em Frankfurt, de
do entre 1584 e 1587 elevado número de aqua- uma série de livros enfeixando praticamente
relas e desenhos enfocando motivos da fauna toda a literatura até então produzida por des-
e da flora locais, além de tipos étnicos de cobridores, navegantes e aventureiros acerca
algonquins e cenas da vida dos peles-verme- das terras exóticas da América, África e Ásia,
23 Acerca de representações
lhas. Sessenta e cinco desses seus trabalhos em textos latino e alemão acompanhados de de indígenas das Américas
anteriores a 1590, consul-
encontram-se no British Museum, e muitos numerosas ilustrações. Essas Narrationes te-se: William C. Sturtevant,
“First Visual Images Native
foram transpostos para a técnica da gravura Peregrinationum, ou Schiffarten, divididas America”, in F. Chiapelli
(ed.), First Images of
(como veremos mais adiante), assim contri- em duas coleções, as Grandes Viagens, de America, Berkeley/Los
buindo para disseminar uma imagem perti- formato um pouco maior e dedicadas à Amé- Angeles/Londres, 1976, pp.
417-54; Hugh Honour, The
nente do indígena norte-americano. White rica, e as Pequenas Viagens, de formato um New Golden Land, New
York/Londres, 1975/76;
dizia, de suas aquarelas, terem sido pouco menor e consagradas à Ásia e à África, idem, The European Vision
of America, National
“counterfeited according to the truth”, e não eram uma iniciativa do ourives e gravador em Gallery of Art e Cleveland
Art Museum, 1975/76 e
há dúvidas quanto à acuidade e precisão de metal flamengo Theodor de Bry (1528-98), Paris, Grand Palais, 1976
(L´Amérique vue par
muitas delas; mas é também inegável que na continuada após sua morte pelos dois filhos l´Europe); Jay A. Levenson
(ed.), Circa 1492. Art. in the
representação dos seus tipos indígenas en- Johann Israel e sobretudo Johann Theodor Age of Exploration, New
trou ponderável parcela de estilização, a pon- (1561-1623) e, com o desaparecimento desse Haven/Londres, Yale
University Press, 1991 (es-
to de muitos deles, senão todos, apresenta- último, pelo genro, o gravador suíço pecialmente os dois ensai-
os de Jean-Michel Massing,
rem traços europeizados e posturas irreais. Matthäeus Meryan (1593-1650). Até 1630 I, pp. 115-9, eII, pp.515-20).

Nicolo Nelli, “No


Brasil de São
Vicente...” (1565),
Zentralbibliothek,
Zurique

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nada menos de 25 volumes já tinham sido duas gravuras assinadas – P. Firens, ex. –
lançados, compondo uma gigantesca Enci- Joachim Duviert pinxit – e datadas de 1613,
clopédia do Exotismo fartamente ilustrada ambas representando três índios tupinambás
com gravuras em metal feitas a partir de ori- em trajes europeus, com tembetás aos lábios,
ginais dos mais diversos autores, trabalho brandindo no ar seus chocalhos ou maracás.
coletivo da equipe de gravadores de que dis- Tais indígenas tinham sido levados do
punha a casa editora dos De Bry. Integravam Maranhão por Rasilly para serem batizados,
por exemplo os três tomos iniciais das Gran- e após convertidos à fé cristã, apresentados
des Viagens as narrativas e imagens sobre a aos autores do desenho original e da gravura
América produzidas por Jacques Le Moyne dele originada, respectivamente o holandês
De Morgues, John White e Hans Staden, in- Joachim Duviert, ativo na França entre 1610
tegralmente redesenhadas e por isso mesmo e 1614, e o gravador flamengo Pierre Firens,
exibindo uma aparência padronizada, índios radicado em Paris em 1610 e falecido em 1639
da América do Norte e da América do Sul em Antuérpia.
apresentando os mesmos corpos atléticos e Em 1624, antecipando em décadas o que
só se distinguindo uns dos outros por deta- fariam do gênero Zacharias Wagener e Caspar
lhes de vestimenta ou de penteado. Após 1630, Schamalkalden, frei Cristóvão de Lisboa,
ao mesmo tempo em que dava seqüência à primeiro Custódio da Ordem Franciscana no
publicação das Narrationes, Meryan inicia- Maranhão, dava início a uma coletânea de
va novo projeto editorial, concretizado um bisonhos desenhos de animais, pássaros, pei-
ano depois na Historia Antipodum oder Newe xes e plantas da região, pouco depois partin-
Welt etc. Essa obra, coordenada por Johnn do do Brasil, nomeado que fora para o Bispa-
Ludwig Gottfried, abarcava em mais de 600 do de Angola – que nunca chegaria a assumir,
páginas de grande formato, com 173 gravu- tendo falecido em Évora em 1652. Robert C.
ras e sete mapas, todos os relatos de viagens Smith, primeiro a divulgar no Brasil esse
referentes à América, inclusive vários dizen- Códice de frei Cristóvão de Lisboa (conser-
do respeito ao Brasil, como os de Hans Staden, vado no Arquivo Histórico Ultramarino lis-
Jean de Léry, Aldenburgh e tantos outros; das boeta, que dele fez em 1968 uma edição fac-
173 estampas, 82 referiam-se à América do similar), assim se refere aos desenhos que o
Sul, 37 à Central, 23 à do Norte e 29 nada integram:
tinham a ver com as Américas (24).
Só episodicamente relacionadas com o “Se essas ilustrações são trabalho do pró-
Brasil, porém cheias de interesse por traduzi- prio Custódio não se sabe. [...] Que essas
rem de modo muito claro a crescente cobiça ilustrações se destinavam à publicação,
da Holanda pelas riquezas do Brasil, são pin- está indicado pela palavra ‘estampa’ que
turas como O Retorno de Paulus van Caerden aparece em várias folhas desenhadas do
do Brasil, de Hendrik Cornelizs Vroom (1566- códice. [...] Todos os desenhos são feitos
1640), Ataque a Salvador a 9 de maio de 1624, a bico de pena, em papel grosso. São to-
de Andries van Eertvelt (1590-1652), ou in- dos aproximadamente de duas por três
clusive a célebre Reconquista da Bahia, de polegadas de tamanho, e cada um está
Frei Juan Bautista Maino (1578-1649), exe- intitulado com seu nome indígena. Num
cutada entre 1630 e 1634 e destinada a ador- ou noutro caso dos motivos se apresen-
nar, juntamente com várias outras pinturas tam destacados da paisagem indicada o
patrióticas (como a Rendição de Breda, de mais simplesmente possível e, mais
Valasquez), o Salon de reinos do novo Palá- freqüentemente, são representados sem
cio Buen Retiro, de Felipe IV. Pouco anterior nenhum fundo. Do ponto de vista do esti-
e de maior importância para nosso estudo é a lo, não têm grande valor artístico, embora
Suite de l’Histoire des Choses plus sejam excepcionalmente pitorescos, reve-
24 Cf. Helmut Andrä e Edgard
de Cerqueira Falcão,
Memorables Adventuës en Maragnan, ès lam uma observação cuidadosa aplicada
Americae Praeterita Even- Annés 1613 & 1614, do capuchinho Yves a certos pormenores, como os pés e garras
ta, São Paulo, Edusp, 1956,
p. 25. d’Evreux (Paris, 1615), obra ilustrada com dos animais. [...] É claramente trabalho

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de um observador acurado da natureza, modo de vê-los e de corretamente fixá-los. Georg Marggraf
de talento considerável, mas de muito As imagens que em seguida elencaremos e Johanes Blaeus,
pouco tirocínio artístico” (25). são já todas elas posteriores aos óleos e dese- “Mapa do Brasil
nhos dos pintores de Nassau: as três cenas de
sob Domínio
É nesse ponto que entra a contribuição tema americano pintadas a óleo sobre tela por
Holandês”,
dos chamados artistas de Nassau – nota- artista holandês não-identificado por volta de
damente Albert Eckhout, Frans Post e Georg 1640-50 (Rijksmuseum, Amsterdã), as car- gravura em metal
Marcgraf, com suas grandes pinturas tas de jogar com ilustrações de Stefano della aquarelada(1647),
etnográficas e naturezas-mortas de frutas e Bella, feitas em 1644 para a educação do fu- coleção Pedro Piva,
vegetais dos Trópicos, o primeiro, os vastos turo Luís XIV, alguns trabalhos produzidos São Paulo
cenários a se perderem de vista, pontilhados no Suriname nos últimos anos do séc. XVII e
aqui e ali de figurinhas de europeus, índios e primeiros do séc. XVIII por Maria Sibylla
negros, entremeados de casas-grandes e ca- Meryan e Dirk Valkenborgh, as três nature-
pelas, o segundo, e os saborosos detalhes da zas-mortas ilusionísticas com cestas e frutas
vida dos indígenas ou do fabrico do açúcar do Museu Flehite e, enfim, já de 1710, as
que ilustram o esplêndido Qua parte paret ilustrações relativas ao Brasil no álbum
Belgis, do terceiro. Não apenas pela elevada Habillements de plusieurs nations,
qualidade artística de tais trabalhos, quanto representez au Naturel, en cent trente-sept
pelo agudo senso de observação de que dão belles figures, publicado em Leiden por Van
prova, contrastam de tal modo com tudo der AA. Das três cenas americanas de autor
quanto até então se fizera no que respeita à anônimo no Rijksmuseum, uma reproduz a
representação de cenários, seres e coisas do execução de um cativo por indígenas brasi-
Novo Mundo, em geral, e do Brasil em parti- leiros, na conhecida composição divulgada 25 Robert C. Smith, “O Códice
cular, que verdadeiramente inauguram novo na Warhaftige Historia, de Hans Staden, de Frei Cristóvão de Lisboa”,
in Revista do Serviço do
capítulo da iconografia tropical e america- publicada em 1557, enquanto as duas outras Patrimônio Histórico e Artís-
tico Nacional, no 5, Rio de
na, representando um divisor de águas no são procissões ou cortejos triunfais em que Janeiro, 1941, pp. 121-6.

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aparecem astecas e conquistadores. A fonte de Campen, situada em Randenbrock, próximo
todas três é a America, de Theodor de Bry. No a Amersfoort, e hoje propriedade do Museu
entanto, o pintor imprimiu aos índios brasilei- Flehite dessa cidade holandesa. Dispostas em
ros uma aparência de titãs, dando-lhes massa nichos para serem observadas desde um pon-
muscular que os transforma em outros tantos to baixo, tais naturezas-mortas deixam ver
Hércules e fazendo-os adotar poses convenci- entre seus elementos constitutivos a mesma
onais. Quanto às ilustrações de Della Bella nas cesta africana, bakongo, que também apare-
cartas de baralho destinadas à educação do ce numa pintura de Eckhout produzida no
herdeiro do trono francês, então com seis anos, Brasil em 1641 – a Mulher Negra, do Museu
cada uma delas mostra uma alegoria de um de Copenhague –, e por isso hoje há quem a
país ou de um continente, acompanhadas, to- atribua ao próprio Eckhout e não mais ao pro-
das, de curtas informações geográficas. A que vável mestre dele, Van Campen (27).
representa a América é uma mulher Quatro das belles figures do álbum publica-
emplumada, sobre um carro tirado por dois do por Van der AA sobre os Habillements de
tatus, e a que simboliza o Brasil, uma índia em plusieurs nations etc. – as de número 12, 49,
pé, adornada de penas e sustendo um buquê. 107 e 108 – representam tipos étnicos do Brasil:
Meia-irmã de Matthäus Mergan II, Maria respectivamente Femme de Brézil avec leurs
Sibylla Meryan (1647-1717) destacou-se como ornements, Tamoyes ou mangeurs d’hommes
excepcional pintora de flores, insetos e borbo- en Amerique, Lutteurs des Tapuyes qui se battent
letas, e já era famosa na Europa quando, em leurs jours de fête e Guaymures grands de
1699, chegou a Paramaribo, atraída pelas be- stature, et grands mangeurs d’hommes. Tais
lezas naturais da América do Sul. Seu livro cenas derivam de fontes mais antigas: Femme
Metamorphosis Insectorum Surinamesium, de de Brézil, por exemplo, originada nitidamente
1705, continua sendo referencial para a da há pouco citada Mulher Negra, de Eckhout,
entomologia sul-americana, do mesmo modo só que livremente interpretada.
que suas observações acerca das metamorfo- Fecharemos estas poucas notas com algu-
ses das borboletas (Der Raupen wunderbare mas observações acerca de representações
Verwandlung und sonderbare Blumen- simbólicas da América, originadas em sua
nahrung) ainda hoje mantêm sua atualidade, maior parte dos tableaux vivants organizados
ambas as obras achando-se ilustradas com quando da entrada de reis e nobres nas gran-
desenhos ao mesmo tempo minuciosos e sen- des cidades, ou por ocasião da realização de
síveis da fauna americana. Outro artista a tra- procissões, desfiles e ommegancks. No
balhar no Suriname foi Dirk Valkenburgh Ommeganck realizado em 1564 em Antuér-
(1675-1721), de Amsterdã, aluno entre outros pia, por exemplo, quatro moças ricamente
de Jan Weenix, a quem imitou. Contratado pelo vestidas representavam cada qual um dos
fazendeiro Jonas Witsen em 1706 como bi- continentes – um modismo que então fazia
bliotecário e pintor, devendo, nessa última con- sua aparição na arte européia. Como regra,
26 Bob Haak, The Golden Age.
Dutch Painters of the dição, fixar em pintura as plantações, pássaros nessas alegorias dos quatro continentes, a
Seventeenth Century. Nova
York, Harry A. Abrams, e vegetais raros do país, Valkenburgh execu- Europa aparece como uma imperatriz, coro-
1984, p. 59.
tou naturezas-mortas de frutas e vívidas repre- ada, de cetro e orbe às mãos; a Ásia surge
27 Leia-se a respeito: R. sentações da Guiana, sendo contudo sua obra
Joppien, “The Dutch Vision
envolta em pesadas roupas; África é uma negra
of Brazil”, in E. van den mais importante a de um esplêndido batuque desnuda, ou quase, tendo a seu lado um sol
Boogaart, Johan Maurits
van Nassau-Siegen 1604- de negros numa clareira de floresta, hoje no abrasador; ao passo que a América é uma
1679. The Johan Maurits
van Nassau Stichting, The Museu de Copenhague (26). indígena coberta de penas, segurando flecha
Hague, 1979, em especial
p. 140. P. J. P. Whitehead e Atribuídas ora a Jacob van Campen (por ou arco e acompanhada de um papagaio, tatu
M. Boeseman, em A Portrait
of Dutch 17th Century Brazil seu inegável caravaggismo), ora ao próprio ou jacaré, por vezes um braço ou perna huma-
(Amsterdam/Oxford/New
York, North Holland Publ. Albert Eckhout no seu período pós-brasilei- nos decepados em clara alusão ao canibalis-
Co., 1989), com alguma he- ro, e de qualquer maneira evidenciando al-
sitação atribuem as pintu-
mo. Em outras ocasiões, porém, a América
ras do Museu Flehite a
Eckhout, “the Bacongo
gum tipo de colaboração entre ambos, são as pode ser representada como uma jovem rica-
basket being so much a part naturezas-mortas que outrora adornavam a mente trajada, tendo à cabeça um cocar de
of Eckhout´s repertoire” (p.
175). residência “Het Hoogerhuis” do próprio Van penas e aos ombros mantilha também de pe-

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nas, ajoelhada e ofertando um cesto de flores, 1847, um óleo sobre tela – no Museu de Arte José Teófilo de
enquanto um tatu busca entre as dobras de da Bahia –, no qual a América é corporificada Jesus, “Alegoria da
suas vestes, junto a seus pés descalços. Foi por uma índia sentada, tendo aos pés as rique- América”, óleo sobre
assim que a pintou em 1636 o flamengo Frans zas da terra, trajando saiote de penas e cocar,
tela(1820c.), Museu
Francken II, numa alegoria da abdicação de mas de busto desnudo (28). Sustenta na mão
de Arte da Bahia,
Carlos V, ocorrida quase um século antes. direita um papagaio, vendo-se ainda próxi-
Justificava-se tal representação da Europa mos a si outros bichos: onça, cobra jacaré, Salvador
como imperatriz e os demais continentes como macacos, preguiça, boi, arara, tucano, emas,
seus súditos, numa época em que piamente se peru, garça, etc., bem como espécies vege-
acreditava que a própria Providência assim tais, como a bananeira, o mamoeiro, a jaqueira,
estabelecera: a Europa, como se pode ler numa o cajueiro, etc. Sofisticada também é a Amé-
das cartas de jogar de Stefano della Bella, era rica do pintor fluminense Francisco Pedro do
“a menor, porém a mais importante das qua- Amaral, falecido em 1830: uma índia, com
tro partes do mundo, por sua fertilidade, va- uma arara na mão esquerda e arco e flecha na 28 Ingênuas representações
já não da América, porém
lor, civilização, ciência, notoriedade e diver- direita, contra um fundo de coqueiros e bana- do Brasil, como um índio
ataviado de penas
sidade dos seus habitantes, e por ser sede da neiras, vendo-se no primeiro plano um arran- ofertando os frutos da ter-
ra, contra um fundo
própria Cristandade”. jo de frutas tropicais. Integra a decoração da paisagístico que inclui um
estilizado Pão-de-Açúcar
É curioso salientar que representações da chamada Sala dos Continentes, no Solar da na Baía de Guanabara,
ocorrem em alguns poucos
América como uma das quatro partes do Marquesa de Santos no bairro de São Cristó- leques comemorativos
mandados fazer na China
mundo ocorrem serodicamente na pintura vão, Rio de Janeiro, e, tal como a pintura de nas primeiras décadas do
brasileira de fins do séc. XVIII e começos do Teófilo de Jesus, testemunha a permanência, séc. XIX para marcar even-
tos como a chegada do
séc. XIX. É de autoria de José Teófilo de Jesus, no oitocentismo ocidental, de um tema já então príncipe regente em 1808
e a elevação a Reino Uni-
natural da Bahia e falecido octogenário em velho de centenas de anos. do em 1818.

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