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Crónica Crónica

Cidades invisíveis
Milfontes, uma
história feita em cacos
(“maravilhas” de
Portugal)
imagem: Google Earth
Por: Jorge Vilhena, GESTO - Grupo de Estudos do Território de Odemira e Uniarq -
Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
fig. 1 - Sítios romanos da foz do Mira referidos no texto.

Furnas-Rio, defronte de Vila Nova de boa (ver http://www.mnarqueologia- barcações semelhantes perduraram Ocupações romanas do baixo estuário do Mira
Milfontes (situada já na talvez futura -ipmuseus.pt/?a=3&x=3&i=205). Mas até época romana, como refere o geó- 1. – Monte da Gama (séc. I a.C.); 2. – Ponte de Milfontes
ex-freguesia de Longueira/Almograve) a mais célebre jazida proto-histórica grafo grego Estrabão (Geografia. IV, 4, (possível porto romano, séc. I a III e medieval); 3. – “Vicus”
foi por estes dias eleita, para gládio de do estuário do Mira é a necrópole de 1), e foram usadas em navegações flu- (aldeia) romano de Monte da Rosa/Bairro do Montinho/Colé-
munícipes e banhistas assíduos, como Galeado, descoberta fortuitamente vial e costeira de cabotagem, pelo que gio de Milfontes (período imperial); 4. – Paleo-ilha do Farol de
«praia-maravilha» de Portugal. em 1939 na margem norte do baixo esta poderia datar do período romano, Milfontes/ Roxos Pretos (materiais do séc. I a III e vestígios
Há dois mil anos atrás, Milfontes e a estuário, a 4 km da barra. O espólio ali da Idade do Ferro, ou mesmo ser pré- “romanos e cartagineses” assinalados no séc. XIX); 5.- Campo
de desportos da Praia da Franquia (margem do antigo canal
parte terminal do estuário do Mira pa- recolhido, também guardado no mes- -histórica. Nunca o saberemos, por-
norte da foz do Mira), muro romano (?); 6. – Corgo d’el Rei /
recem ter creditado no mesmo sentido mo museu de Lisboa, é diversificado: que quando A. Ribeiro a quis recolher Vila Formosa 1 (instalação ribeirinha, séc. II d.C.); 7. – Corgo
para os romanos. Isto porque durante urnas funerárias de cerâmica, contas e desenhar, havia sido consumida em das Conchinhas / Argamassa (“villa” e/ou instalação ribeiri-
quase toda a Proto-história (que, como oculadas de pasta vítrea azul, lança de lenha pelos locais. nha, séc. I e II d.C.).
se sabe, perdurou quase todo o milénio ferro, arame de bronze, restos osteoló- Portanto, durante boa parte da Idade fig. 2 - “Castellum” romano (período tardo-republicano) de Monte
antes da Era de Cristo e compreende gicos, um conjunto de peças datáveis do Ferro, por razões que desconhece- da Gama.
as Idades do Ferro e do Bronze Final), de meados do 1.º milénio a.C. que indi- mos, mas provavelmente relacionadas
o povoamento humano quase de- cam a presença de um cemitério de de- com a insegurança do mar devido à pi- do período romano republicano tardio, tes, publicada por António Mantas no ribeirinha de tipo portuário alto impe-
saparece desta zona, anteriormente posição, em fossas simples, de urnas e rataria, o povoamento da região parece mais exactamente de meados da se- Diário de Noticias em 1929 e de novo rial, possivelmente de tipo portuário,
densamente habitada na Pré-história de oferendas fúnebres. ter recuado para o alto estuário, mais gunda metade do último século pré- mencionadas por António Martins destruída pela construção do encosto
Recente (5º ao 2.º milénio a.C.), e havia Talvez da Idade do Ferro, fosse ain- escondido, onde floresceu, até ao sécu- -cristão. Possivelmente, dada a sua Quaresma em Vila Nova de Milfontes norte da Ponte de Milfontes em 1978
estranha e subitamente recuado para da a piroga monóxila exposta por uma lo I d.C., o povoado fortificado do Cerro posição e tipo de estruturas, o Monte – História, edição de 2003. (Fig. 1 n.º 2). Aqui encontram-se res-
o interior. enxurrada que rasgou o lodo da mar- do Castelo de Odemira. da Gama corresponderá a um pequeno No período imperial romano, já na tos de construções (tijolos, argamas-
Na verdade, da Idade do Ferro da gem em 5m de profundidade no Estei- Porém, a partir de meados das déca- fortim ou residência fortificada de tipo nossa Era, diversos outros sítios são sas de cal, restos de pavimentos e
zona da foz do Mira apenas se sabe ro da Galé (o actual Galeado?), a 2 km das de 50 ou 40 do século I antes da castellum, provavelmente habitada por conhecidos na área de Milfontes e de- paredes, estuques), objectos metálicos
que em 1889 surgiu no «chão, ao cor- da foz do Mira, documentada em 1876 nossa Era (a.n.e.) o baixo estuário do colonos latinos, de que se conhecem fronte a esta, na Vila Formosa. Assim, e de produção de ferro (escórias), reci-
rer de um veio de água surgido quando pelo médico em Odemira, Abel da Silva Mira enche-se de vida humana outra algumas dezenas em todo o Alentejo e na margem direita, diversos sítios têm pientes cerâmicos datados dos século I
se fez uma escavação no lugar de Al- Ribeiro, o mesmo arqueólogo amador vez (Figura 1). No Monte da Gama, no Algarve (Fig. 2, Fig. 1 n.º 1). A posição vindo a ser descobertos no últimos 50 a III e inclusive até ao período medieval,
mogrebe» um conjunto, pertencente a que recolheu o colar do Almogrebe. A braço de rio do Porto da Mó, instalou- do sítio junto de corpo de água outro- anos, desde o Colégio de Milfontes até com destaque para fragmentos de ân-
um colar, de 32 contas de pasta vítrea piroga, assim a descreveu o dr. Abel -se um pequeno assentamento sobre ra navegável faz pesar numa função ao Corgo das Conchinhas, na Argamas- foras romanas. Uma destas, retirada
pretas oculadas a branco, datadas de Ribeiro, era tronco com mais de 3m. montículo baixo mas destacado na estuarina ou mesmo portuária des- sa (onde existe uma villa ribeirinha ro- do fundo do rio, é de modelo produzi-
entre os séculos VI a IV antes de Cristo de «carvalho escavado a fogo e instru- margem norte do esteiro, onde se re- te sítio. Da mesma centúria eram as mana dos séculos I e II, com estruturas do nos séculos III a V d.C. na província
(a.C.), actualmente guardadas no Mu- mentos de pedra, cujos golpes na parte conhecem muros articulados e restos moedas de prata romanas (denários) de muros bem conservados – Fig. 1 n.º romana da Bética (a actual Andaluzia)
seu Nacional de Arqueologia, em Lis- carbonizada ficaram impressos». Em- cerâmicos, estes facilmente datados descobertos algures em V. N. Milfon- 7), com destaque para uma instalação para servir de contentor de preparados u

26 fotografia gentilmente cedi-


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da por Irmã Teresa
Crónica Crónica

de conservas piscícolas (Fig. 3). Muito


perto da zona dos vestígios romanos
sob o encosto norte da ponte, existe
na margem do Mira um tanque rupes-
tre de planta rectangular, escavado no
afloramento rochoso logo acima da ac-
tual cota de maré cheia (Fig. 4). Muito
provavelmente, serviu para celebrar
cultos religiosos relacionados com
água ou outros líquidos.
Logo a jusante da ponte, na mesma
margem do rio, têm sido encontrados
desde há muito sinais da presença de
uma vasta povoação romana, entre o
Monte da Rosa, onde se encontraram
lápides funerárias (entretanto, de- fig. 3 - Ânfora bética para produtos piscícolas, séc. III a V d.C, recuperada no fundo do rio
saparecidas) e o Bairro do Montinho, em V. N. Milfontes.
onde se encontraram mais sepulturas
feitas de tijolos (o que aponta para cro-
nologia romana), enormes concentra- “Além de praia e natureza, o que
dos de escórias de produção de ferro
com minério da Serra de S. Luís. Os
há, honestamente, aqui, agora, para
vestígios encontram-se, ou encontra- mostrar?” Jorge Vilhena
vam-se, desde o lado sul da avenida
de Milfontes até aos socalcos a meio fig. 5 - Sul da Lusitânia romana por A. Dufour, 1846.
da margem do rio (Fig. 1, n.º 3). Mais
recentemente, no Colégio de Milfontes
ra, presentemente exposto no Museu tiga cidade de Merobrica referida entre de pesquisas de terreno em Milfontes
foram encontrados, a profundidade
de Arqueologia de Setúbal. as mais notáveis da costa da Lusitânia e arredores, para o que será necessá-
considerável, um grande feixe de cavi-
Assim, no seu conjunto, a foz do Mira pelo historiador romano Plínio-o-Velho rio que ainda exista alguma coisa para
lhas de bronze e um pequeno caldeiro
parece ter tido um povoamento poli- na sua História Natural (IV, 116), obra investigar. E com o actual ritmo de
do mesmo metal, ambos achados de
-nucleado, mas importante, em ambas escrita no séc. I d.C.. Mas, mais adian- destruição, já não restará muito, pois
cronologia romana. Infelizmente, ne-
as margens do estuário, entre os sé- te (História Natural, IV, 118), o mesmo essa história com dois mil anos quase
nhuma destas descobertas foi alguma
culos I a.C. e III ou IV d.C, que segura- autor latino refere um povo dos «Mi- desvaneceu nos últimos vinte, feita em
vez seriamente estudada e publica-
mente seria relevante no contexto da robricenses cognominados Célticos», cacos e pedaços.
da, e a desenfreada construção civil
costa da Lusitânia, uma das principais um nome ligeiramente diferente. Cem A perder duplamente ficam os na-
em toda esta área levou à irremediá- fig. 4 - Tanque rupestre escavado na rocha da margem do Mira, Milfontes. Teria funciona- províncias do império romano entre os anos depois de Plínio, o geógrafo gre- turais de Milfontes, que vêem ser eli-
vel destruição de grande parte destes lidade cultual. séculos I a V devido à riqueza dos solos, go Cláudio Ptolomeu enumera na sua minada, obra a obra, urbanização a
vestígios.
dos minérios e das pescas e conservas obra Geografia (II, 5,5) duas cidades dos urbanização, a história das origens da
Parte das terras removidas na mar- dunar existente entre o farol e a vila e vemente afectado pela construção do piscícolas — produções que a foz do Célticos da Lusitânia próximas entre sua vila, bem como a possibilidade de
gem direita do rio, aquando da cons- que colmatou esse canal. Ilhas costei- empreendimento turístico da Vila For- Mira oferecia. No tempo dos romanos, si e com nomes idênticos, Mirobriga aqui potenciar o fomento de turismo
trução da ponte, foram depositadas ras eram importantes para a geografia mosa, tendo em conta que os vestígios entre os séculos I e IV da nossa era, e Meribriga. Entre os investigadores cultural e histórico-arqueológico. É que
no lado norte da foz do Mira, na cons- de povoamento e da religião do final arqueológicos se desenvolvem desde seria dominante no povoamento do actuais, as opiniões dividem-se entre sabe-se que os destinos turísticos que
trução da actual rotunda do farol de da proto-história e período romano, e a linha de cota da praia até meio da estuário do Mira a mancha urbana, de que se trata de apenas uma única ci- nada mais têm a oferecer que apenas
Milfontes, onde se encontram peças Abel da Silva Ribeira documentou na- encosta) e já no topo leste da “praia- tipo vicus, situada ao longo de quase dade duplicada nos textos por engano, sol e praia têm menor possibilidade de
cerâmicas datadas da segunda meta- quele local a presença de vestígios de -maravilha” de Furnas-rio, escavações um quilómetro na margem norte, en- que corresponderá ou às Ruínas Ro- competir com aqueles que diversificam
de do século I ao século III. Mas o ca- construções de romanos e “cartagine- superficiais realizadas em 1995 per- tre o Bairro do Montinho e o Colégio de manas de Santiago do Cacém, ao Cerro a sua própria oferta às actividades en-
beço pode ter sido ocupado na Idade ses”. mitiram descobrir outro sítio romano. Milfontes (ver Fig. 1). do Castelo Odemira (povoado impor- riquecimento cultural, segmento cada
do Ferro e na época romana (Fig. 1, n.º Por fim, a recente abertura do terrei- Foram encontradas muros de cons- Desde há mais de cem anos, os es- tante entre os séculos V e I a.C.) ou a vez mais procurado por quem visita os
4). Estudos pormenorizados demons- ro para instalação de um campo des- truções e o derrube de uma cobertura tudiosos de História Antiga e Arqueo- Milfontes; enquanto outros defendem países do sol do sul.
traram que a elevação do farol foi até portivo a poente do forte de Milfontes feita de telhado de tégulas e imbríces logia, por exemplo José Leite de Vas- que Mirobriga e Merobrica/Meribriga
mudança à de Era uma ilha de maré permitiu por a descoberto parte de tipicamente romano, bem como frag- concelos (fundador do Museu Nacional eram efectivamente duas cidades dis- Além de praia e natureza, o que há,
em plena boca do rio, separada de ter- uma construção romana, em local co- mentos de ânforas de transporte de de Arqueologia, que nesse sentido fez tintas, situando uma delas, com maior honestamente, aqui, agora, para mos-
ra por um antigo canal do rio no lado berto pelo aterro da avenida marginal vinho, datadas do século II e produzi- pesquisas na zona de Argamassa logo probabilidade a segunda, em Milfon- trar? n
norte que desaguava na Praia do Car- do rio (Fig. 1, n.º5). das na Bética (Fig. 1,n.º 6). nos inícios do século XX) pretendem tes.(Fig. 5).
reiro da Fazenda. Iniciou-se depois um Na margem oposta do rio, na Vila A comprovar a navegação romana na situar na bacia do Mira, dada a seme- Esta questão histórica poderá ape- Nota: O texto não foi escrito ao abrigo do
processo cumulativo de abastecimen- Formosa, no sítio chamado de Corgo foz do Mira, foi há c. 30 anos recupera- lhança com a raiz do hidrónimo, a an- nas ser resolvida pelo desenvolvimento novo acordo ortográfico.
to sedimentar que formou o cordão d’el Rei (local que poderá vir a ser gra- do um cepo de âncora romana na bar-

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