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Lusófona, 1º Frequência

Micaela Gonçalves
História do Direito II

1) O Período Primitivo

A) Contextualização histórica e sociológica.

Segundo o historiador e geógrafo grego Estrabão (63-64 a.C. a 24 d.C.), na sua


monumental obra Geografia, os celtas dividiram-se em cinco tribos: cântabros, asturos,
vascónios, galaicos e lusitanos e estabeleceram-se no Norte e na parte ocidental do território.

A partir do século VIII a.C., estes povos peninsulares contactam com os fenícios, uma
civilização oriunda do Médio Oriente, que se constituía também por diversas unidades
territoriais independentes entre si, que começam a vir para a Ibéria, em busca de novos
mercados e de fontes de recursos e matérias-primas. Os fenícios vão criando, ao longo da costa
peninsular, um conjunto de colónias para servirem de entrepostos comerciais, algumas das quais
começaram a ganhar vida própria e se transformaram em verdadeiras urbes. Foi o caso de Gadir,
a atual Cádiz, que terá sido a primeira de todas essas colónias e hoje é uma importante cidade
espanhola. No decurso desses contactos, os fenícios trazem o ferro e a tecnologia de o trabalhar,
pelo que a sua influência na evolução dos povos da Península Ibérica não deve ser
menosprezada.

Com a decadência dos fenícios, que se acentua a partir do século VI a.C., as rotas
comerciais dessa civilização começam a ser aproveitadas por outros povos, mormente pelos
gregos e cartagineses. Uns e outros vêm também até à Península com intenções inicialmente
comerciais, e os cartagineses são mesmo os causadores diretos da vinda também dos romanos e
da romanização peninsular, que levou mais de seis séculos de tempo histórico. Veremos,
adiante, em que circunstâncias isso ocorreu.

Em síntese, podemos dizer que este primeiro ciclo do Período Primitivo da Península
Ibérica, vai até ao início da ocupação romana do território e ao começo da romanização.
Devemos datar esses acontecimentos no último quartel do século III a.C., em 218 a.C., quando o
cônsul Cneu Cornélio Cipião Calvo aqui desembarca no decurso da Segunda Guerra Púnica.

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2) A Romanização Peninsular

A) A chegada dos romanos à Península

A civilização romana principia com a fundação da cidade de Roma, como cidade-


Estado independente, que certos historiadores localizam no ano 753 a.C., data que deve ser
entendida como símbolo e mito, sendo pacífico, contudo, defender que esse facto ocorreu por
volta de meados do século VIII a.C..
Acontece que estas eram dominadas por Cartago, uma civilização do Norte de África
(onde hoje fica Tunis, a capital da Tunísia), de comerciantes e guerreiros, que dominava
algumas ilhas mediterrânicas e, inclusivamente, tinha já chegado à Península Ibérica.
Por isso, o cheque entre Roma e Cartago foi inevitável e decidiu o futuro da
Antiguidade e do mundo que hoje somos. As duas civilizações travaram três guerras, que
passaram à História com a designação de “Guerras Púnicas” )as guerras com os “punici”, nome
pelo qual eram designados os cartagineses (advinha de “poemos”, que era a forma como os
romanos designavam os fenícios, de quem descendiam os cartagineses). Roma ganhou-as às
três, à segunda com sérias dificuldades, mas poderia ter sido derrotada e o seu império impedido
de se realizar. Todavia, não apenas as ganhou, como, na terceira e última, decidiu dizimar
completamente a potência sua rival.
A primeira Guerra Púnica ocorreu entre os anos de 264 a.C: a 241 a.C.. Foi uma
guerra marítima travada pelo domínio de Messina, cidade cartaginesa da Sicília, que Roma
tomou. No seguimento dessa vitória, assenhorou-se dessa ilha, mas também da Córsega e da
Sardenha. Mais importante do que as conquistas territoriais foi o desenvolvimento das suas
capacidades de navegação marítima, que, até aí, Roma não dispunha.
A segunda Guerra Púnica travou-se entre 218 a.C. e 201 a.C.. Foi a mais
importante das três, porque foi durante ela, e por causa dela, que Roma chega à Península
Ibérica. O que aconteceu foi que os cartagineses, que, como já dissemos, tinham posições na
Ibéria desde 237 a.C., quando cá chegou um general cartaginês chamado Amílcar Barca (270
a.C.-228 a.C.), aperceberam-se do potencial militar de uma estratégia ofensiva contra Roma, a
partir desse extremo ocidental da Europa. E foi o filho desse primeiro ocupante, que com ele
tinha vindo para a Península ainda com

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apenas nove anos de idade, Aníbal Barca (247 a.C.-183 a.C.), que foi também general e
governante cartaginês, e que ainda hoje é considerado um dos maiores génios militares de todos
os tempos, quem concebeu o plano de atacar Roma não pelo Mediterrâneo, como os romanos
esperavam, mas por terra, pela Península Ibérica, subindo-a, atravessando os Pirinéus e entrando
na Itália pelo norte. Para esse fim organizou um forte exército, que ia sendo renovado nas
campanhas militares e com a passagem do tempo, e que contava, não só com cartagineses, mas
também com hispânicos e até com povos das Gálias, por onde passou, a caminho de Roma, e
onde arregimentou outras pessoas. Igualmente se beneficiou das riquezas do território para
construir o equipamento militar necessário. Para além disso, Aníbal trouxe, para a Península,
um contingente de 38 elefantes destinados a comporem a escassa cavalaria do seu exército. Era
uma arma inesperada e eficaz, embora não tenham chegado muitos deles vivos ao objetivo final.
Quando atravessou os Alpes, o exército de Aníbal seria constituído por cerca de 80.000 homens.
Esta prodigiosa estratégia foi permitindo que Aníbal travasse e ganhasse várias batalhas,
permitindo-lhe sonhar com o esmagamento de Roma. Contudo, em 204 a.C., os romanos
infletem a sua própria estratégia militar e avançam para o Norte de África, atacando os
cartagineses e ameaçando a própria cidade de Cartago. Isso obrigará Aníbal Barca a retirar da
Itália, para rumar para África e defender os seus. A sua última e decisiva batalha contra os
romanos, em África, foi a batalha de Zama (19 de Outubro de 202 a.C.), que Aníbal perdeu e o
obrigou à rendição. Neste compasso de tempo, Roma havia vindo para a Península Ibérica,
ainda no ano de 218 a.C, para atacar o exército cartaginês pela sua retaguarda, comandados pelo
general romano Cneu Cornélio Cipião Calvo. Não mais daqui sairiam, às invasões bárbaras do
início do século V.
A terceira Guerra Púnica sucedeu entre 149 a.C. e 146 a.C.. Foi uma guerra de
extermínio e de aniquilação total, provocada pelo receio de que os cartagineses de novo se
estivessem a municiar contra Roma. O Senado decidiu assim, respondendo ao apelo de Catão, o
Velho, que exclamou, perante os senadores, a célebre frase “Delenda Carthago est” (“É
preciso destruir Cartago!”). Foi isso que fizeram, comandados por Cipião Emiliano Africano,
que atacou a cidade, exterminou os seus habitantes e salgou o seu solo, para que nada mais ali
voltasse a florescer.
Em consequência das Guerras Púnicas, Roma ficou senhora do Mediterrâneo e do seu
comércio. Desenvolveu-se economicamente, o que lhe permitiu avançar para a conquista de um
império.

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B) A Romanização

A ocupação romana da Península Ibérica pelas legiões romanas começa em 218 a.C.,
praticamente com a sua chegada para atacarem os cartagineses, que tinham nesse território um
ponto essencial na sua estratégia militar contra Roma. Uma vez derrotado Cartago na Península,
o que sucedeu com o fim da Segunda Guerra Púnica, a ocupação irá prolongar-se por quase
duzentos anos, até à Pax Augusta, ainda que com diferentes graus de resistência oferecidos
pelos vários povos e tribos peninsulares.

De todos os povos peninsulares que resistiram à ocupação, terão sido os lusitanos os


mais difíceis. Os conflitos entre as suas tribos e as legiões decorreram a partir de 194 a.C. e
foram até 139 a.C., ano da morte de Viriato, chefe lusitano que conseguiu federar todas as tribos
na guerra contra o invasor. Anos mais tarde, já no século I a.C., um ex-general e governador
romano da Península Ibérica, Quinto Sertório, revolta-se contra Roma e assume a liderança dos
lusitanos, devido a questões políticas que o fizeram cair em desgraça na República. Sertório
dominou praticamente toda a Península, mas acabará por ser assassinado, em 72 a.C., por
Perperna, seu lugar- tenente e homem de confiança, que havia sido corrompido pelos romanos.
A partir daí, os lusitanos deixam de ser uma ameaça para Roma.

Sendo muito importante a pacificação militar do território peninsular, a romanização


não se deixou de fazer antes desse momento. Ela foi um processo de aculturação de um casto
território e das suas gentes à cultura e ao espírito romanos, para o qual contribuíram diversos
fatores.

Em primeiro lugar, a superioridade da civilização romana, que trouxe obras públicas,


estradas, pontes aquedutos, banhos e cidades. Depois, o Direito Romano, que, ainda que se
aplicasse, num primeiro momento, apenas aos cives, começa gradualmente a estender-se a
todos e a transformar-se num importantíssimo instrumento de criação de uma identidade
jurídica comum. Por último, do mesmo modo que os hispânicos se foram aculturando à
civilização de Roma, também os legionários, muitos deles, por cá ficaram, e construíram novas
povoações e cidades. O processo de romanização conduziu a que, apesar dos povos da Península
terem mantido, cada um deles, a sua identidade própria, foram amalgamados, ao longo dos
séculos da presença dos romanos, pelos valores de uma civilização que passou a ser também
sua.

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Cidades Indígenas:

Cidades Federadas: as mais importantes com as quais, pela sua dimensão, Roma.
Negociava um tratado bilateral, pelo qual elas mantinham um estatuto de
independência, dependendo diretamente de Roma e não do governador. Mantinham um
governo próprio e as suas instituições políticas e jurídicas. Podiam pagar um imposto
diretamente a Roma, mas nem sempre tinham de o fazer.

Cidades Livres: eram assim reconhecidas unilateralmente por Roma, como forma de
reconhecimento por não terem oferecido especial resistência à romanização. Pagavam
um tributo a Roma, mas tinham autonomia política e administrativa, que não podia ser
modificada pelo governador provincial. Algumas destas cidades poderiam ser isentas de
pagamento de impostos. Nesse caso, deveremos denominá-las como Cidades Livres e
Imunes.

Cidades Estipendiárias: tinham sido mais renitentes à romanização, pelo que, além
de pagarem impostos a Roma («stipendium»), tinham autonomia política, embora
reduzida e cuja manutenção ou alteração dependia do governador.

Cidades de Tipo Romano:

Colónias: eram fundadas pelos romanos, em regra resultavam da transformação de


acampamentos militares em comunidades sociais alargadas que evoluíam para
verdadeiras cidades. Nestas, reproduzia-se a tipologia de organização política romana,
com magistraturas, senado local e órgão de representação popular. Foi o caso de
Santarém («Scalabis»).

Municípios: eram cidades indígenas que se transformavam em cidades de tipo


romano, imitando, à semelhança das colónias, o tipo de organização político-
administrativa da capital do Império. Terá sido o caso de Lisboa («Olisipo»)

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C) Estatuto Jurídico dos Hispânicos.

O Império Romano discriminava as pessoas livres que nele habitavam em


termos de estatutos jurídicos pessoais. Quer isto dizer que a cidadania romana foi, durante muito
tempo, atributo exclusivo dos cives, dos cidadãos romanos, que eram os que nasciam em Roma
e descendiam de famílias romanas. Os outros homens livres ou eram latinos ou peregrinos
(peregrini). Os primeiros foram, inicialmente, os naturais próximos de Roma, da zona central
da Península Itálica, mas que não eram considerados cidadãos plenos, ficando com uma espécie
de cidadania reduzida. Os segundos eram os habitantes das várias partes do Império, que não
eram escravos, nem latinos, muito menos cidadãos. Estes mantinham as suas instituições
jurídicas, obedecendo, então, o Império Romano ao princípio da personalidade da aplicação do
direito: aos cives, aplicava-se o direito romano, enquanto os peregrinos mantinham os direitos e
as instituições jurisdicionais das suas comunidades.

Que direitos conferia a cidadania romana a quem a possuía?


Essencialmente, direitos de ordem civil ou privada, e direitos de ordem política
ou pública.

Nos primeiros poderemos distinguir o Ius Connubii (direito de casar e criar uma
família de acordo com as regras do Ius Civile) e o Ius Commercii (direito de ter e manter
propriedade, bem como de contratar e fazer outros negócios jurídicos de carácter patrimonial e
comercial conforme as normas do Ius Civile). Os segundos, os direitos de natureza política ou
pública, estabeleciam as regras fundamentais das relações entre os cives e o Estado romano.
Mormente, os direitos de participação política, que eram essencialmente os dois seguintes: o Ius
Suffragium (direito de votar nos comícios populares romanos e, assim, eleger os magistrados)
e o Ius Honorum (direito de ser eleito e de exercer as magistraturas e cargos públicos
romanos).

Por sua vez, a latinidade, estatuto pessoal intermédio entre a cidadania e a peregrinação,
atribuía, a quem a recebia e detinha, alguns dos direitos da cidadania romana, mas não todos.
Em regra, eram recebidos o Ius Commercii e o Ius Honorum, o que se entende bem. O primeiro,
beneficiava os romanos, porque ponha sob a tutela do seu direito e das suas instituições todas as
relações patrimoniais e comerciais que os romanos estabelecessem com esses habitantes do
Império. O segundo, porque era pouco mais do que simbólico, na medida em que dificilmente
alguém que não habitasse em Roma se deslocaria à cidade apenas para votar num comício,
onde nem sequer

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poderia ser eleito para os cargos em que votava. Era, por conseguinte, uma atribuição
meramente simbólica.

Cabe dizer que foi política do Império ir alargando o estatuto de latinidade a muitos dos
peregrinos. Principalmente àqueles que exerciam cargos públicos nas suas cidades, que
interessava atrair para a civilização romana. Por outro lado, uma vez recebida a latinidade,
aquele que era distinguido poderia ascender à cidadania romana plena, se cumprisse
determinados requisitos. Para esse efeito, havia dois tipos de latinidade: a maior e a
menor. A primeira, a latinidade maior, era a mais importante, logo a que impunha menos
requisitos para se ascender à cidadania romana: ou exercer um cargo no Senado da sua cidade
ou ser decurião (oficial de cavalaria do exército romano que chefiava um grupo de cerca de
trinta homens); e a latinidade menor, que era mais exigente para que quem a recebesse pudesse
ascender à cidadania, tendo de exercer um cargo de direção política na sua comunidade. Era,
esta última uma forma de atrair as elites das comunidades que integravam o Império para a
romanidade.

Esta política foi frequentemente aplicada na Península Ibérica, de tal maneira que, no
anos de 73-74 d.C., o Imperador Vespasiano concedeu a latinidade, na sua forma menor, a todos
os habitantes desse território.

Mais tarde, em 212 d.C., o Imperador Antonino Caracala concedeu a cidadania romana
a todos os habitantes, que fossem homens livres, do Império. Estávamos num momento em que
a civilização romana já estava de tal modo disseminada no Império, que não fazia sentido
manter os seus habitantes discriminados em termos de direitos individuais de cidadania – ou
seja, deixa de haver peregrinos.

3) As Invasões Bárbaras e o Período Germânico-Visigótico


A) As Instituições Políticas da Monarquia Visigótica de Toledo
a. O Rei
A Monarquia Visigótica não era hereditária mas eletiva. A partir de 633, o Rei era
escolhido por um colégio aristocrático (Aula Régia), ou impunha-se pela violência contra o rei
em funções, depondo-o ou assassinando-o. Este facto, assim como o carácter particularmente
tumultuoso dos povos germânicos, em geral, contribuiu para a constante perturbação política da
Monarquia Visigótica, que frequentemente submergiu em guerras civis fratricidas.
As funções do rei replicavam as do imperador romano, de quem, desde 476, se
consideraram sucessores. O rei era, essencialmente, chefe político e militar.

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No período que vai da constituição do Reino da Tolosa até ao fim do Reino Visigótico
de Toledo, de 382 a 711. Em 711, existe uma guerra civil sendo o vencedor a ficar com a coroa.
Dado o fim a esta guerra civil é o fim da Monarquia Visigótica.

b. Aula Régia

Era um órgão consultivo do monarca, que inicialmente abrangia apenas a nobreza e as


chefias militares dos godos. Posteriormente, com a aproximação social das populações godas e
hispano-romanas, bem como com a crescente influência da Igreja Católica na sociedade,
começou a incluir um número mais alargado de conselheiros, mesmo até dignitários religiosos.

O órgão pronunciava-se sobre leis a aprovar e sobre os assuntos mais relevantes do


reino, assim como começou a eleger o rei, pelo menos, desde o IV Concílio de Toledo, em 633.
Foi, podemos afirmá-lo, uma instituição que prenunciou as futuras Cortes régias dos reinos
peninsulares.

c. Concílios

Eram reuniões da igreja católica em que os reis convocam um órgão e reunia um leque
mais alargado de autoridades do que na Aula Régia, na medida em que nele eram incluídos
clérigos, sobretudo os altos dignitários da Igreja Católica, nomeadamente os arcebispos e
bispos. Realizaram-se quinze concílios, todos na capital do reino, em Toledo.

Os Concílios eram abertos pelo rei, que lhes dirigia uma mensagem (“tomus”) onde
tocava nos pontos principais que a reunião deveria abordar e sobre os quais deliberava. No fim
da reunião, o rei promulgava, em forma de lei, essas decisões, passando elas a vigorar como leis
civis do reino.

Os Concílios de Toledo foram, deste modo, paralelamente com a Aula Régia, as


instituições de poder mais importantes da Monarquia Visigótica.

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4) Fontes do Direito Visigótico

O direito dos visigodos é quase inteiramente consuetudinário, não escrito e de aplicação


pessoal.

Leis teodoricianas: 420- 466

Os primeiros documentos escritos visigóticos com força de lei foram as «Leis


Teodoricianas», cuja elaboração é atribuída a Teodorico I (420-451) e Teodorico II (451- 466).
O seu conteúdo trata exclusivamente da divisão da propriedade das terras peninsulares já
ocupadas com os seus proprietários hispânicos originais. A proporção seguida nessa divisão foi
de 2/3 para os novos proprietários, ficando somente 1/3 para os antigos. Estas leis, porém, não
tiveram, nem poderiam ter, influência no Direito Peninsular, para além do aspeto mencionado.

A partir do reinado de Eurico (466-484), começam a surgir, talvez por influência das
fontes escritas do Ius Romanum, os primeiros códigos de Direito Visigótico. Direito e códigos
esses cujo conteúdo é, assinale-se, fortemente romanizado, seja em influência direta sobre as
normas visigóticas, seja mesmo pela simples transcrição das fontes romanas. Vejamos que
códigos foram esses.

Código de Eurico: 466-476

Elaborado e promulgado durante o reinado deste rei, costuma-se atribuir a data provável
para a sua conclusão em 476, ano em que findou o Império Romano Ocidental. O seu conteúdo
são leis visigóticas fortemente influenciadas pelo Direito Romano e leis romanas.

Breviário de Alarico (Lex Romana Visigothorum – Lei Romana dos


Visigodos): 506

Elaborado no reinado de Alarico II (484-507), foi concluído no ano de 506.

O seu conteúdo é integralmente constituído por Direito Romano, nele se incluindo ius
(direito romano anterior ao século IV) e leges (direito romano do e posterior ao século IV).

No ius encontramos: (direito velho)

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- Liber Gaii (as Institutas de Gaio vulgarizadas);

- Sentenças de Paulo;

- Partes do Codex Gregorianus e do Codex Hermogenianus;

- Um texto de Papiniano.

Nas leges figuram: (direito novo)

- O Código Teodosiano de 439;

- Novelas pós-teodosianas, até 463.

Código de Leovigildo (Codex Revisus de Leovigildo): 568-586

Composto e aprovado no reinado de Leovigildo (568-586), não se conhece o


documento original, tendo sido parcialmente reconstituído a partir do código seguinte, o Código
Visigótico, que mencionava em epígrafe, como “antiqua” (“antiga”), as leis que vinham desse
código. Tratou-se de uma revisão e atualização do Código de Eurico.

Código Visigótico: 654

No reinado de Chindasvindo (642 – 649) começou a proceder-se a uma revisão


oficial do Código de Leovigildo. A atividade legislativa dos reis godos teria sido considerável e
a conversão ao catolicismo de 589 aproximara as diferentes populações peninsulares, mas
também criou novas exigências para o Direito. Era, por isso, necessário atualizar a sua principal
fonte legislativa. Contudo, a obra só seria concluída no reinado do seu filho Recesvindo (649
- 672), mais precisamente no VIII Concílio de Toledo de 654, e vigorou até ao final da
Monarquia Visigótica e, até depois dela, nos Reinos Cristãos peninsulares, inclusivamente em
Portugal, nos primeiros anos, até ao século XIII.

O Código Visigótico, ou Liber Judicum, contém 324 leis que vinham do Código de
Leovigildo , algumas das quais, por sua vez, vinham já do de Eurico (eram intituladas por
“antiqua”, isto é, antigas ou leis antigas); 3 leis de Recaredo; 2 de Sisebuto; 99 de Chindasvindo
e 87 de Recesvindo, um total de 515 leis, portanto.

Por sua vez, este Codex tem várias versões, visto que posteriores leis dos reis visigodos
lhe foram acrescentadas, sendo que uma dessas atualizações foi oficial,

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enquanto que as outras são feitas por particulares. Assim, devemos considerar que o Código
Visigótico teve as seguintes formas ou edições:

- Forma recesvindiana, de 654: a primeira, de Recesvindo;

- Forma erviginiana, de 681, mandada fazer pelo rei Ervígio, foi uma atualização da
primeira edição;

- Forma vulgata, de várias datas, que são diversas atualizações particulares


manuscritos posteriores a 681, que incluem leis de reis posteriores a Ervígio, nomeadamente
Egica e Vitiza.

5) A Reconquista Cristã e o Condado Portucalense


A) Contexto Histórico

Quase imediatamente após a ocupação muçulmana, os cristãos, refugiados nas Astúrias,


iniciaram a resistência militar num movimento político e geográfico que ficou designado por
«Reconquista Cristã». Este processo teve um marco histórico inicial muito importante, que
foi a Batalha de Covadonga, a primeira travada entre cristãos e muçulmanos que terá sido
vencida pelos primeiros e terá acontecido no ano de 722. Ao longo dos séculos seguintes, a
Reconquista foi tomando todo o território peninsular, sendo progressiva e desigual a conquista
das terras pelos cristãos aos muçulmanos, tendo o Reino de Granada, o último bastião
muçulmano, caído em 1492, integrando-se na recém-criada Espanha unificada pelo casamento
de Isabel de Castela com Fernando II de Aragão. Consequentemente, podemos afirmar que uma
invasão que durou pouco mais de dois anos a consolidar as suas conquistas, teve de aguardar
sete séculos até ser definitivamente derrotada.
O primeiro reino cristão tomou o nome da região montanhosa onde estava localizado –
o Reino das Astúrias – e o seu primeiro monarca foi Pelágio, que seria um nobre godo dos
muitos que fugiram para essa parte da Península Ibérica, embora haja quem o considere não um
nobre, mas um antigo servo. Posteriormente, o Reino das Astúrias transformar-se-ia no Reino
de Leão, a partir de 910, tendo surgido também outros reinos cristãos. Concretamente, o Reino
de Navarra, o Reino de Aragão, o Reino de Castela e, um pouco mais tarde, o Reino de
Portugal.
Castela teve, desde muito cedo, a intenção de anexar o Reino de Leão, juntando- se e
separando-se por várias vezes, tendo a última acontecido em 1230, quando Fernando III de
Castela, filho de Afonso IX de Leão, através do seu casamento com

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Berengária de Castela, se apropriou do trono que pertencia, segundo as disposições


testamentárias do pai, às suas meias-irmãs e legítimas herdeiras, as rainhas Sancha e Dulce. A
partir daí, nunca mais Leão será um reino independente.

B) O Condado Portucalense e a fundação do Reino de Portugal

Antes de progredirmos há que relembrar que os acontecimentos históricos que vivemos


se inserem na Idade Média (476-1453), que se caracterizou, em termos históricos, políticos e
sociológicos, pelo Feudalismo.
O Feudalismo foi uma forma de organização social onde não existiam poderes fortes
e uniformes em áreas geográficas alargadas, pulverizando-se os reinos em pequenas unidades
políticas e territoriais, que eram os feudos. Nestes, as relações pessoais eram de proteção de um
senhor em relação à população que vivia no seu território castelar e muralhado, firmando-se
essas relações através de «pactos de vassalagem», pelos quais o senhor garantia ao vassalo um
pedaço de terra para agricultura e segurança, e, em contrapartida, o «servo» oferecia ao senhor
parte dos frutos colhidos do seu trabalho da terra e integrava a milícia militar do senhor, caso
isso fosse necessário.
Os pactos de vassalagem firmavam-se, também, entre os reis das monarquias que,
um pouco por toda a Europa, foram emergindo por esse tempo, e os grandes senhores
territoriais. Também aqui a relação seguia a mesma lógica, sendo as necessidades de proteção
recíprocas que deveriam ser objeto principal do pacto.
Nesses territórios foi-se desenvolvendo o privilégio da imunidade, que significava que
elas estavam isentas de pagarem impostos à coroa. Neles também existia uma justiça própria
(quase sempre presidida pelo senhor) e, inclusivamente, os funcionários régios só podiam entrar
nelas com prévio consentimento do seu proprietário ou senhor. O rei, contudo, tinha direito de
entrar nesses territórios, inclusivamente para aí exercer algumas funções de justiça, como, por
exemplo, conhecer e decidir recursos de sentenças locais proferidas pelos tribunais senhoriais
(as “apelações” ao rei).
O governo do Condado Portucalense foi concedido pelo rei de Leão, Afonso VI, reino
onde o condado se integrava, à sua filha Teresa, por motivo do seu casamento com o nobre
bolonhês D. Henrique, que viera para a península com o seu primo D. Raimundo para ajudarem
o rei Afonso na Reconquista Cristã. A este último foi concedida a mão de D. Urraca, herdeira do
trono de Leão, e a D. Teresa e a D. Henrique foi concedido o governo da terra portucalense.

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6) A Independência de Portugal: alguns aspectos histórico-políticos mais


relevantes
O nascimento do Reino de Portugal resultou da independência do Condado
Portucalense, que era parte integrante do Reino de Leão (nessa altura, o Reino de Leão estava
agregado ao Reino de Castela, designando-se como Reino de Leão e Castela).

Para esse fim, costuma assinalar-se a data do Tratado de Zamora (20 de Dezembro
de 1143) como a da independência de Portugal. Esse importante documento foi assinado por
Afonso Henriques e pelo seu primo Afonso VII, rei de Leão e Castela, durante um encontro que
os juntou na cidade que lhe deu nome patrocinado pela Igreja Católica, nomeadamente por João
Peculiar, arcebispo de Braga, e por Guido de Vico, cardeal do Vaticano enviado para a
Península Ibérica, em 1139, pelo Papa, com a missão de tentar pacificar as relações,
frequentemente conflituosas, entre os vários príncipes cristãos desse território, que punham em
risco a guerra contra os muçulmanos. Nele reconhecia-se a constituição de Portugal como um
Reino e D. Afonso como o seu Rex, ainda que o novo rei aceitasse o seu primo com Imperador
das Hespanhas e ficasse, conforme os vínculos do feudalismo, com a obrigação hierárquica de
lhe prestar vassalagem.

O mundo medieval é caracterizado por duas autoridades: o Sacerdotium, que era o


poder papal e espiritual, e o Imperium, que era o poder temporal do Imperador do Sacro-
Império. Defendia a doutrina católica desde o Papa Gelásio I (492-496) e a sua Bula Duo Sunt
(“São Dois”), de 494, que, em caso de colisão entre os dois poderes, deveria prevalecer o
espiritual sobre o temporal, porque o Papa, representante de Deus na Terra, tinha de prestar
contas a Deus pelos atos de todos os homens e não apenas pelos seus, como sucedida com os
imperadores e reis.

7) O primeiro período do Direito Português: O Período do Direito


Consuetudinário e Foraleiro (1143-1245

A) Aspetos Gerais

A fundação de Portugal assinala o início do nosso Direito. Até aí, o território de onde
nasceria Portugal, o Condado Portucalense, era parte integrante do Reino de Leão, com um
estatuto jurídico-político sobre o qual os historiadores ainda não se entenderam, como já
assinalámos anteriormente, mas que sempre teria sido de uma grande autonomia.

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História do Direito II

O Direito Português conhecerá, deste modo, um primeiro ciclo de vida que abrange
praticamente cem anos (1143-1245) e quatro reinados:

- Afonso Henriques (1143-1185);

- Sancho I (1185-1211);

- Afonso II (1211- 1223);

- Sancho II (1223-1247).

Durante estes primeiros cem anos de Portugal e do seu Direito, este não possuía ainda
identidade própria, já que, por várias razões, não existia um «Direito Português» propriamente
dito. De facto, muito do direito que entre nós se pratica nessa altura vem do passado, algum do
Reino de Leão e algum outro ainda da própria Monarquia Visigótica, sendo que os reis
portugueses não conheciam ainda a «arte» de fazer a lei. O pano de fundo principal do nosso
direito será, por conseguinte, o costume, o que bem se entende se tivermos em consideração que
as populações estavam, em matéria de poder público, praticamente entregues a si mesmas e, por
isso, tinham de ser elas próprias a criarem as condições para a ordenação das suas relações
jurídicas.

De facto, em Portugal, como na maioria dos países europeus de então, a justiça era
administrada essencialmente por autoridades locais nos senhorios (ou terras senhoriais) e nos
concelhos (ou terras municipais).

Os primeiros, os senhorios, eram terras da propriedade de um nobre (senhorios laicos)


ou de uma ordem religiosa (senhorios eclesiásticos), e onde havia uma considerável autonomia
face ao poder do rei, vigorando nelas o chamado privilégio da imunidade. Os segundos, os
concelhos, eram terras também com uma enorme autonomia face ao poder régio, mas que não
eram propriedade de um senhor, sendo administradas pelos seus habitantes, homens livres, na
sua generalidade, com vários níveis sociais entre si. Entre eles, existiam proprietários rurais
ricos (homens bons ou homens honrados), sendo que mesmo os menos prósperos eram
igualmente homens livres. No seu conjunto, os habitantes dos concelhos tomavam o nome de
vizinhos e reuniam-se em assembleias próprias, nas quais tomavam decisões sobre a vida
comunitária, elegiam os magistrados que desempenhavam funções de poder e de autoridade
pública, bem como os que aplicavam o direito, isto é, os juízes locais

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Lusófona, 1º Frequência
Micaela Gonçalves
História do Direito II

Os reis portugueses, quando começam a tentar centralizar o poder, procuraram criar, de


imediato, um sistema de justiça que dependesse de si, esvaziando as justiças locais, a senhorial e
a concelhia. Para esse efeito, começam a nomear juízes régios que eram enviados para os
concelhos e, mais tarde, mesmo até para terras senhoriais, chamavam-se juízes de fora,
precisamente por virem de fora das terras onde iam exercer o seu magistério, e nem sempre
eram bem recebidos pelas populações.

A) Instituições Políticas

Como se acabou de ver, este primeiro período da história do nosso direito decorre
durante um tempo anterior ao surgimento do Estado Moderno, organizado em torno do princípio
do primado do poder régio. Como era próprio do período medieval em que nos situamos, o
poder encontrava-se disseminado e não existe um poder público que se impusesse eficazmente
em todo o país.

Com D. Afonso III se inicia o processo de criação do nosso Estado Moderno


centralizado na figura do rei. Mas, até lá, o rei será, mais do que um organizador e um
administrador, um rei-guerreiro, preocupado com os conflitos da independência, da reconquista
e da afirmação da sua autoridade e da segurança interna.

O Rei destes primeiros cem anos apoiar-se-á sobre um conjunto de personalidades que
lhe são próximas e que formam a Cúria Régia, talvez a primeira forma de governo do reino
que conhecemos. Esta Cúria era itinerante, estando permanentemente a deambular no território
do país, o que se compreende não só por razões militares, como para que o rei pudesse fazer
sentir a sua presença no conjunto do país. Afonso Henriques trasladou a capital do reino de
Guimarães para Coimbra, cidade que manteve esse estatuto até 1255, quando a capital é
transferida para Lisboa, mas daí não é legítimo concluir que o reino fosse governado, no seu
conjunto, a partir da centralidade da capital.

Quanto aos funcionários régios são de destacar, entre os mais próximos do rei, o
Alferes-mor, o Mordomo-mor e o Chanceler-mor.

O Alferes-mor era o comandante-chefe do Exército Real.

O Mordomo-mor era primeiro responsável pela Casa Real, competindo-lhe também a


chefia e organização de todos os outros funcionários régios. Era, no início da monarquia
portuguesa, quem superentendia sobre os assuntos de governação do Reino, naturalmente
sujeito à autoridade do rei.

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Lusófona, 1º Frequência
Micaela Gonçalves
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Por sua vez, o Chanceler-mor era o responsável pelo selo do Rei, pela emissão dos
diplomas régios, o seu arquivamento e guarda, bem como a produção e envio de cópias dos
mesmos para os concelhos e demais pontos do reino a que se destinavam.

Acresce dizer que, neste primeiro período, não reuniram ainda Cortes na forma
tradicional das três Ordens (Clero, Nobreza e Povo), o que só aconteceria com Afonso III, em
1254, com a reunião das Cortes em Leiria. Todavia, a Cúria Régia podia ter uma formação mais
alargada para além da acima referida, nela se incluindo pessoas (prelados das dioceses, abades,
chefes de ordens religiosas militares, nobres) que não a compunham ordinariamente, como
sucedeu em 1211, na cidade de Coimbra, no governo de Afonso II. Quando isso sucedia usava
tomar o nome de Cúria Régia Plena.

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