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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

PARTE I: O DIREITO PENINSULAR

CAP. I - PERÍODO PRIMITIVO

1. CONTEXTO HISTÓRICO

Existem evidências da presença de seres humanos na Península Ibérica desde a Pré-História.

- Paleolítico Inferior (das origens até 300.00 a.C.).


- Paleolítico Médio (de 300.00 a.C. a 40.000 a.C.): intensifica-se a existência de homens primitivos.
- Paleolítico Superior (de 40.000 a.C. a 10.000 a.C.).

Estes grupos populacionais vão-se desenvolvendo no sentido geral do que sucedeu no território europeu nos períodos históricos seguintes:

- Mesolítico.
- Neolítico.
- Idade dos Metais.

Chegam sobre formas tribais mais evoluídas à entrada da Idade Antiga (4.000 a.C. a 476 d.C.).

Aos Iberos, povos autóctones peninsulares, juntam-se, no sec. VI a.C., vindos da Europa Central, os celtas, criando um terceiro género
populacional, os celtiberos. Uma vez fixados na Península, estes povos organizaram-se em povos e tribos, que constituíam pequenas
comunidades reciprocamente independentes.

Segundo um historiador, Estrabão:

- Os celtas estavam divididos em cinco povos: cântabros, asturos, vascónios, galaicos e lusitanos.

Mesmo o próprio historiador, escreveu séculos depois dos acontecimentos terem ocorrido, baseando-se na tradição oral do que se
dizia na época e que foi transmitido geracionalmente. Daí que estas referências, não são conhecidas de forma rigorosa e com clareza.

A partir do século VIII a.C.,

A Península Ibérica foi também visitada por fenícios, que para cá vieram em busca de novos mercados e de outras fontes de recursos e matérias-
primas.

- Era um povo pertencente a uma civilização oriunda do Médio Oriente.


- Organizado de modo desconcentrado.
- Dividido por várias unidades territoriais independentes entre si.

- Começam a aportar na Península Ibérica e a comerciar com os seus habitantes.


Vão criando um conjunto de colónias que que lhes serviam de entrepostos comerciais e de pontos de apoio para os seus barcos e
homens, algumas das quais acabam por ganhar vida própria e se transformam em verdadeiras urbes (cidades, povoações).

Importância dos fenícios: no decurso desses contactos, os fenícios trouxeram-nos o ferro e a tecnologia necessária para o trabalhar,
assim como introduziram a produção de azeite e do vinho.

Com a decadência deste povo, no século VI a.C., as rotas comerciais dessa civilização passam a ser utilizadas por outros povos, sobretudo por
gregos e cartagineses. Uns e outros vêm também à Península Ibérica com intenções inicialmente comerciais que, no caso dos cartagineses, cedo
se transformaram em pretensões militares e territoriais.

2. ORGANIZAÇÃO POLITICA E DIREITO

A escassez de fontes, bem salientes na época, não permitiram que historiados e antropólogos tivessem um vasto conhecimento do que aqui se
passou, aceitando-se, porém, que quer as instituições jurídicas, quer as instituições politicas, se caracterizaram necessariamente pela
simplicidade das suas formas. Assim, apesar do estado primitivo em que viviam estas tribos e as suas gentes, nem por isso deixaram de ter

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instituições jurídicas e instâncias jurisdicionais que as acompanhassem, quer isto dizer, normas jurídicas - quem as fiscalizasse, fizesse respeitar e
punisse os infratores. Esse direito seria inteiramente consuetudinário, inspirado em crenças religiosas e administrado pelas chefias de cada tribo.

« A organização politica era rudimentar e prescindia, pela natureza das circunstâncias, de coesão forte.
« Os povos eram divididos em tribos familiares, com grande independência entre si. Mas, mais tarde, derivado da complexidade da vida
social, uniram-se ocasionalmente face a inimigos comuns.
« Lusitanos de Viriato: ofereceram forte resistência à ocupação romana, de tal modo, que os invasores os consideraram independentes
do Império.

CAP. II - A ROMANIZAÇÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA

1. A CHEGADA DOS ROMANOS À PENÍNSULA

A Cidade de Roma foi fundada como Cidade-Estado e, de acordo com alguns historiados, no ano de 753 a.C.

- Esta data deve ser apenas entendida como um símbolo sobre o nascimento de uma das mais impressivas civilizações de todos os
tempos, se tivermos em conta a sua expansão geográfica, perenidade e consequente influência cultural, politica e administrativa.

A partir desse momento primordial, Roma não parou de crescer e de somar novas conquistas ao seu território, tendo-se transformado, no final
do período da Républica (509 a.C. a 27 a.C.), num dos mais extensos impérios.

- A cidade foi tomando a Península Itálica, tendo chegado a um momento em que a navegação e as rotas marítimas do Mediterrâneo se
impuseram como uma apetência e uma fatalidade inevitáveis para a continuação da sua expansão

- Cartago: cidade de comerciantes e guerreiros, que conquistou a quase totalidade do norte de África, tendo-se tornado na cidade
comercial mais importante e rica do Mediterrâneo.

Guerras Púnicas

Roma e Cartago eram duas potencias em franco crescimento no Mar Mediterrâneo, por onde circulava o comércio da época, o que tornou o
choque entre ambas, inevitável.

Porquê o nome de “Guerras Púnicas”? Porque os herdeiros de Rómulo e Remo designavam os fenícios, de quem os cartagineses descendiam,
como os punici ou poemos. Estas guerras dos romanos eram contra esses fenícios.

O 1º Conflito, que se iniciou em 264 a.C., perdurou por muitas décadas, teve vários momentos de interrupção e recomeço, e um desenlace que
decidiu o futuro da Antiguidade e do Mundo que hoje somos. Foram travadas três guerras:

« 1ª Guerra Púnica: entre os anos de 264 a.C. e 241 a.C.


Conflito essencialmente marítimo, travado pelo domínio de Messina, cidade cartaginesa da Sicília que Roma então conquistou. No
seguimento desta vitória, Roma assenhora-se não apenas dessa ilha, mas também da Córsega e da Sardenha.
Foi o desenvolvimento da navegação marítima de Roma, até então muito rudimentar, e que se tornou determinante para o
crescimento e afirmação do futuro Império.

« 2ª Guerra Púnica: entre os anos 218 a.C. e 201 a.C.


Foi a mais importante e decisiva de todas porque, durante ela e devido a ela, Roma chegou à Península Ibérica e deu inicio à ocupação
desse extenso território.

- Chegada de Amílcar Barca (270 a.C. a 228 a.C.), um general cartaginês, no ano provável de 237 a.C.
Cartago apercebeu-se do imenso potencial militar que a Península poderia ter numa estratégia ofensiva contra Roma.
E foi Aníbal Barca (247 a.C. a 183 a.C.), filho e herdeiro do legado politico e da posição militar ocupada pelo pai, quem
concebeu e executou um novo plano para a desforra de Cartago contra Roma.

Aníbal, que ainda hoje é considerado um dos maiores estrategas militares, planeou atacar a cidade italiana já não pelo
Mediterrâneo, como os romanos compreensivelmente esperavam, mas por terra, pela Península Ibérica.
Seguindo esta nova estratégia militar, os seus exércitos subiram o território ibérico, atravessaram os Pirenéus e, entrando na
Itália pelo Norte, avançaram rumo ao sul.
Ao chegarem muito perto de Roma, acabaram por contornar a cidade, evitando confrontá-la, e seguiram para Cápua, cidade
próxima de Nápoles, onde Aníbal se estabeleceu com os seus.
Para cumprir os exigentes desígnios dessa campanha militar, o general cartaginês organizara um forte exército, que ia sendo
renovado durante a sua progressão no terreno. Este general beneficiou também das riquezas do território peninsular, com
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as quais construiu e renovou o equipamento militar necessário ao apetrechamento do seu exército. Trouxe ainda elefantes,
destinados a compensar a escassa cavalaria e aterrorizar os adversários.
Esta prodígio estratégia e o poderio dos seus exércitos foram permitindo que o general ganhasse a maioria das batalhas que
travou, fazendo-o sonhar com o esmagamento final da capital de Itália.
No entanto, em 204 a.C., os romanos, em resposta à ofensiva de Aníbal, avançaram para o Norte de África, atacando os
cartagineses no seu território e ameaçando a sobrevivência de Cartago. Isso obrigará Aníbal a retirar-se da Península para
rumar a África e defender os seus.
O seu último e decisivo confronto com os romanos ocorreu já no continente africano, e foi a batalha de Zama (19 de
Outubro de 202 a.C.) - o general púnico perdeu, o que obrigou à rendição final, na qual foram impostas condições muito
duras aos vencidos.

Durante o ano de 218 a.C., Roma viera para a Península Ibérica, com o fim de atacar o exército cartaginês pela retaguarda.
As forças romanas eram então comandadas pelo general Cneu Cornélio Cipião Calvo.
Depois de vencidos e expulsos os cartagineses da Península, em 206 a.C., nunca mais as legiões romanas saíram da Ibéria,
até ao Império Romano do Ocidente ter sucumbido às invasões bárbaras.

« 3ª Guerra Púnica: entre os anos 149 a.C. e 146 a.C.


Foi uma guerra de extermínio e de aniquilação total de Cartago por Roma, provocada pelo receio de que os cartagineses de novo se
estivessem a armar, para mais uma vez a atacarem.
O Senado decidiu, respondendo aos apelos de Catão (o Velho), um dos seus mais formidáveis tribunos, que terminava todos os
discursos que proferia perante essa assembleia com a celebre frase “Delenda Carthago est” - é preciso destruir Cartago.
Comandados por Cipião Emiliano Africano, Roma avançará sobre uma Cartago que se encontrava muito mais vulnerável do que nas
campanhas anteriores, destruindo-a por completo, e exterminando a quase totalidade dos seus habitantes - reduzindo a escravos os
poucos cartagineses que conseguiram sobreviver.
Para que nada mais voltasse a florescer nessa cidade, os romanos, depois de a destruírem, salgaram o solo.

Em consequência do desenlace final das Guerras Púnicas, Roma ficou senhora plena do Mediterrâneo, das suas rotas marítimas e do seu
comércio. Conhecerá, a partir daí, um desenvolvimento económico exponencial que lhe permitirá avançar definitivamente para a construção de
um grande império.

2. A ROMANIZAÇÃO

A ocupação romana da Península Ibérica pelas legiões romanas começou ainda no ano de 218 a.C., praticamente com a chegada das primeiras
legiões. Uma vez derrotado Cartago, na Segunda Guerra Púnica, Roma terá ainda pela frente um longo processo de conquista e pacificação do
território, que irá prolongar-se por quase duzentos anos.

OS LUSITANOS

Os lusitanos foram os mais difíceis de se submeter à ocupação.

« Viriato: chefe lusitano que conseguiu federar todas as tribos contra o invasor. Foi durante a sua liderança que os romanos tiveram
maior dificuldade em manter o controlo da parte peninsular por eles ocupada, tendo-os vencido apenas por um ato de traição.
Para Tito Lívio, historiador romano, o chefe lusitano era um pastor que se rebelou contra os romanos, por causa dos massacres que os
invasores tinham imposto ao seu povo, dos quais ele milagrosamente conseguiu escapar. Entretanto, vitima desta traição, Viriato é
morto (139 a.C.) e a ocupação romana prosseguirá paulatinamente o seu curso.

« Quinto Sertório: no século I a.C., este antigo general e governador romano da Península Ibérica, rebelou-se também contra Roma,
assumindo a liderança dos lusitanos devido a questões politicas que o fizeram cair em desgraça, na Républica.
Sertório apoiara o partido derrotado no cônsul Caio Mário na guerra civil contra Lúcio Sula, passando o vencedor a perseguir os aliados
do cônsul vencido, entre eles o governador da Ibérica.
O general perseguido ainda conseguiu recuperar e dominar praticamente toda a Península Ibérica, para onde fugira para evitar ser
preso pelas legiões de Sula, e assumiu a liderança dos lusitanos, movendo-os contra Roma, mas acabará também ele por ser
assassinado pelos aliados igualmente corrompidos pelos romanos.
Os lusitanos deixam então de ser uma ameaça para Roma.

A romanização não deixou de se fazer mesmo antes desse momento. Pelo contrário, ela foi um longo processo histórico de aculturação de um
vasto território, dos seus povos, cidades e das suas gentes, para o que contribuíram diversos fatores:

« Superioridade da civilização romana: obras públicas, estradas, pontes, aquedutos, técnicas de construção, banhos públicos e cidades.

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« Direito romano: primeiramente, aplicava-se apenas aos cives, mas, gradualmente, começou a estender-se aos habitantes do Império e
a transformar-se num importantíssimo instrumento de criação de uma identidade comum a todos os homens livres que viviam dentro
das suas fronteiras.
« Muitos legionários por lá ficaram, em Roma, com a sua cultura e visão do mundo. Edificaram novas povoações e cidades, que
reproduziam a capital e as suas instituições de governo.

3. ADMINISTRAÇÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA DURANTE O PERÍODO ROMANO

Os vários territórios conquistados por Roma e integrados no seu Império, estavam divididos por províncias:

- Províncias: consistiam em grandes circunscrições político-administrativas dependentes do Senado ou do Imperador.

- 1ª Divisão: até ao começo do Principado (27 a.C.)

I. Hispânia Citerior: mais próxima de Roma, era a parte mediterrânica.


II. Hispânia Ulterior: a mais distante, era a meseta central e a atlântica.

« 2ª Divisão: durante o governo de Octávio César Augusto

I. Hispânia Ulterior Bética: a sul.


II. Hispânia Ulterior Lusitana: centro e sul ocidental.
III. Hispânia Citerior ou Terraconense: restante centro e norte.

Com exceção da Bética, governada pelo Senado, as duas outras eram de governação imperial.

« 3ª Divisão: do tempo de Antonino Caracala (198-217)

I. Hispânia Citerior: fracionada em duas províncias, que são revogadas logo após essa divisão. Passa a existir, novamente,
apenas uma.

« 4ª Divisão: operada por Diocleciano (284-305)

I. Antiga Tarraconense - repartida em: Galécia, Cartaginense e Tarraconense.


II. Bética.
III. Lusitânia.

AS REGIÕES POLITICO-ADMINISTRATIVAS DO IMPÉRIO ROMANO

- Um governador exercia o poder, nomeado ou pelo Senado ou pelo Imperador.


- Viviam nelas os “hispânicos” (habitantes autóctones) e os ocupantes romanos.
Os hispânicos tinham estatutos jurídico-pessoais de cidadania distintos entre si, em razão dos povos a que pertenciam, e face a Roma.
- As cidades eram diferenciadas quanto ao modo de administração e no grau de dependência que as ligava a Roma.
- O imperialismo romano privilegiava as relações pacificas com os povos ocupados, o que permitia estabelecer ligações de comércio,
exploração e captação de recursos.
- Só em casos extremos de resistência, como sucedeu com os lusitanos, os romanos preferiam a guerra prolongada à paz.

Estatuto político-administrativo das cidades

(A) CIDADES INDÍGENAS (pré-existentes à ocupação)

o Cidades federadas
- Pela sua dimensão e riqueza eram as mais importantes.
- Tratado bilateral entre Roma e os seus chefes (foedus).
- Conservação da liberdade.
- Governo próprio.
- Instituições politicas e jurídicas próprias.
- Podiam ser obrigadas a pagar um imposto a Roma, mas isso não acontecia com a maior parte delas.
o Cidades livres
- Unilateralmente declaradas por Roma.
- Não ofereciam resistência à ocupação.

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- Pagavam um tributo, mas gozavam de autonomia politica e administrativa.
- Cidades livres e imunes: quando estas cidades livres, estavam isentas de impostos.
o Cidades estipendiárias
- Pagavam impostos a Roma (stipendium).
- Tinham uma autonomia politica reduzida, que podia ser retirada a qualquer momento pelo governador.

(B) CIDADES DE TIPO ROMANO

o Colónias
- Fundadas pelos romanos.
- Resultavam, em regra, de acampamentos militares em comunidades sociais alargadas.
- Reproduziam a tipologia de organização politica romana, com magistraturas, senado loca e órgão de representação popular.
- Foi o caso de Santarém (Scalabis).
o Municípios
- Cidades indígenas.
- Imitavam o tipo de organização político-administrativa da capital do Império.
- Foi o caso de Lisboa (Olispo).

4. ESTATUTO JURÍDICO-POLÍTICO PESSOAL DOS HISPÂNICOS

O Império Romano discriminava as pessoas livres que nele habitavam no que respeita aos seus estatutos jurídicos e políticos pessoais. Isto é, a
cidadania romana foi, durante muito tempo, um atributo exclusivo dos cives (cidadãos romanos, que nasciam em Roma e descendiam das
famílias romanas).

- Os outros homens livres que habitavam dentro das fronteiras do império, ou eram latinos ou peregrinos.
Os latinos habitaram o Latio, a zona central da Península Itálica, mas situada fora de Roma. Não eram cidadãos plenos, ficando com
uma espécie de cidadania reduzida e de conteúdo variável consoante os povos a que pertenciam.
Os peregrinos (peregrini), eram habitantes das várias partes do Império, que não eram escravos, nem latinos, nem cidadãos. Estes
mantinham as suas instituições jurídicas, porque o Império Romano seguia, então, o principio da personalidade da aplicação do
direito: aos cives, destinava-se o Ius Romanum, enquanto os peregrinos conservavam os direitos e as instituições jurisdicionais das
suas comunidades.

Que direitos conferia a cidadania romana a quem a possuía?

Essencialmente, direitos de ordem civil, ou privada; e direitos de ordem politica, ou pública.

« Ordem civil (privada)


1. Ius Connubii - direito de casar e criar família de acordo com as regras do ius civile.
2. Ius Commercii - direito de ter e manter propriedade, bem como de contratar e fazer outros negócios jurídicos de carater
patrimonial conforme as normas do ius civile.

« Ordem politica (pública) - regras fundamentais das relações entre os cives e o Estado romano.
1. Ius Suffragium - direito de votar nos comícios populares romanos, elegendo assim os magistrados.
2. Ius Honorum - direito de ser eleito e de exercer as magistraturas e cargos públicos romanos.

ESTATUTO DE Latinidade

A latinidade, o estatuto jurídico pessoal intermédio entre a cidadania e a peregrinação, atribuía a quem a recebia e passava a deter, alguns
direitos da cidadania romana - mas não todos.

Em regra, eram conferidos o Ius Commercii e o Ius Honorum. Entende-se, pois: o primeiro, beneficiava os romanos, pondo sob a tutela do seu
direito e das suas instituições, todas as relações patrimoniais e comerciais que os romanos estabeleciam com esses habitantes do Império; o
segundo, era pouco mais que simbólico, na medida em que dificilmente alguém que não habitasse em Roma se deslocaria à cidade apenas para
votar num comício, onde nem sequer poderia ser eleito para os cargos em que votava.

Neste momento, foi politica assumida pelo Império alargar o estatuto de latinidade a muitos peregrinos:

- Latinidade maior: a mais importante. Impunha menos requisitos para se conseguir a cidadania romana.
- Latinidade menor: a mais exigente. Quem a quisesse, teria de desempenhar uma magistratura politica na sua comunidade para atingir
esse estatuto. Tornava-se pois, numa forma de atrair as elites das populações que integravam o Império para a romanidade.

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Foi de tal modo aplicada na Península Ibérica que,

« O Imperador Vespasiano atribui a latinidade menor a todos os habitantes (73-74 d.C.)


« O Imperador Antonino Caracala concedeu a cidadania romana a todos os habitantes do Império que fossem livres (212 d.C.).
Já não fazia sentido manter a discriminação dos seus habitantes quanto aos direitos individuais de cidadania.

5. O DIREITO

Principio da personalidade na aplicação do direito: cada homem livre pertencia a uma comunidade e era o direito vigente
nesta que se lhe aplicava.

- No caso dos cives, aplicava-se o Ius Romanum.


- No caso dos latinos, também tinham a possibilidade de verem reguladas e protegidas algumas das suas relações pessoais por este
direito.
- No caso dos litígios, cria-se um magistrado extraordinário: o pretor peregrino (212 a.C.).

A partir de 212 d.C.,

O Ius Romanum passa a aplicar-se a todos os habitantes do Império que sejam livres, criando uma espécie de direito comum universal, dentro
das fronteiras do Império - Ius Gentium.

que direito romano era esse? Seria o mesmo que se aplicava em Roma?

Não, propriamente. Na maior parte das situações, o Ius Romanum incorporava contribuições dos direitos locais, adaptando-se, tornando-se
menos puro, mas eventualmente mais adequado às situações e às pessoas a que se destinava, ou seja, vulgarizando-se. Chamou-se, por isso
mesmo, a esse direito - Direito Romano Vulgar.

CAP III - AS INVASÕES BÁRBARAS E O PERÍODO GERMÂNICO-VISIGÓTICO

1. OS «BÁRBAROS»

Definição: a palavra «bárbaro» tem origem no grego antigo e designava a ideia de «estrangeiro», aquele que não pertence à mesma cidade ou
civilização, e que vive fora delas. Os romanos antigos, a quem os gregos chamavam de «bárbaros», adotaram a palavra dando-lhe o mesmo
sentido. Assim, à medida que a cidade de Roma se foi expandindo e transformando num império, os romanos consideravam como «bárbaros»
todos os povos e gentes que viviam fora das suas fronteiras naturais, que não partilhavam da sua civilização e cultura e não falavam a sua língua.
Eram, portanto, povos bárbaros os que eram e vinham do norte da Europa, da Germânia, da Ásia.

- Ex.: Os Godos, Hunos, Alanos, Vândalos, Saxões, os Anglos.

Apesar de algumas entradas ocasionais dentro do Império, até à segunda metade do século III, início do século seguinte, todos estes povos viviam
fora das fronteiras romanas. A partir desse ano, começam a migrar para o seu interior, fazendo-o, não como simples movimentações militares de
ataque e , devastação, mas como verdadeiras migrações de povos inteiros que se procuravam fixar nos territórios do Império.

Primeira grande migração: para o interior do Império Romano do Ocidente, foi de povos Godos (Visigodos e Ostrogodos) que viviam a
norte do Mar Negro. Esta terá sido causada pela fuga às invasões das suas terras pelo Hunos, um povo nómada guerreiro e muito agressivo
proveniente da Ásia Central. Mais tarde, na primeira metade do século V, sob a liderança de Átila (401-455), um rei huno que conseguiu federar
vários povos da Ásia Central e da Germânia com o fim de invadirem a Europa Ocidental, os hunos chegaram à Gália (451), e foi por causa disso
que os Visigodos, que lá se encontravam estabelecidos, migraram definitivamente para a Península Ibérica.

Os Godos espalharam-se pela Europa Ocidental, no Império Romano do Ocidente, ao longo de todo o século IV. Muitos deles coabitavam
pacificamente com Roma, pagando-lhe tributos e ajudando até na defesa do Império. Os exércitos romanos receberam-nos nas suas fileiras. Por
volta do início do século IV, calcula-se que cerca de 35% dos soldados romanos fossem germânicos, entre eles muitos godos. As relações entre
estes povos e Roma eram, porém, muito instáveis, sendo frequentes as escaramuças e batalhas que travavam. Os romanos, que estavam em
pleno ciclo político de absolutismo imperial, desenvolveram uma pesada burocracia sustentada por um progressivo aumento de impostos. Isto
desagradava ao godos, que tinham de os pagar, e foi motivo de conflitos permanentes.

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Em 410, Roma foi saqueada pelos visigodos, que eram, nesse tempo, chefiados pelo rei Alarico I. Os diversos territórios do Império estavam cada
vez mais difíceis de controlar, de defender e de administrar. A Península Ibérica, por exemplo, fora invadida no ano de 409 por Suevos, Alanos e
Vândalos (Asdingos e Silingos), três povos bárbaros de grande ferocidade para com as populações locais. Para defenderem a Península, os romanos
tiveram de pedir ajuda aos visigodos, tendo celebrado com eles um tratado pelo qual os visigodos viriam defender a Península Ibérica e, em
contrapartida, os romanos cediam-lhes parte do sul da Gália - a região da Aquitânia - para aí se instalarem. O tratado foi assinado pelo rei Vália e
pelo imperador Honório, em 418.

A consequência disto foi que também a Gália deixou de estar, pelo menos nessa parte, sob o seu domínio. Por sua vez, as ilhas britânicas eram
também invadidas por vários povos bárbaros, entre eles os Saxões e os Anglos, que as passaram a reclamar como suas, tendo deixado de prestar
obediência a Roma. Também Átila e os Hunos entraram, como vimos já, no Império e espalharam o terror em muitos dos seus territórios. Em 476,
considera-se findo o Império Romano do Ocidente, vencido que foi o seu último imperador, Rómulo Augusto, que tinha fixado a sua corte na
cidade de Ravena, já não na perigosa Roma. Flávio Odoacro, chefe bárbaro, destronou-o nessa data e proclamou-se rei da Itália. Viria a morrer,
nessa qualidade, em 493.

2. OS BÁRBAROS NA PENÍNSULA IBÉRICA

Os bárbaros chegam à Península Ibérica em 409, com as invasões de vários povos, a saber, os Alanos, os Vândalos (Asdingos e Silingos) e os Suevos.

Estes povos bárbaros espalharam o terror e o caos entre as populações hispânicas, sendo que os romanos já não tinham, nessa época, força militar
para as poder socorrer. Por esse motivo, fizeram o referido tratado (foedus) com os visigodos, que, por sua vez, entram na Península em 418. Ao
fim de pouco tempo, os visigodos conseguem expulsar os Alanos e os Vândalos para o norte de África, mantendo-se os Suevos em território
peninsular, na faixa ocidental atlântica da Península, onde fixaram um reino com o seu nome e com capital em Braga, desde 411. O Reino Suevo
manter-se-á independente até 585, quando é integrado no Reino Visigótico.

Durante as primeiras incursões dos visigodos em território peninsular, estes continuaram na Aquitânia, no sudoeste da Gália, criando um reino
com capital em Tolosa, atual cidade francesa de Toulouse. Este reino era federado a Roma, ou seja, teoricamente integrava o Império Romano,
embora, à medida que avançamos no século V essa dependência será cada vez mais ilusória. Na prática, os visigodos governavam-se a si mesmos
e foram intervindo na Península Ibérica não só a pedido de Roma, mas também, a partir de certa altura, por sua própria iniciativa.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, o rei visigodo Eurico (440-484), que governava o Reino da Tolosa, o mais forte de toda a Europa
Ocidental, sentiu-se como se fosse o herdeiro dos imperadores romanos depostos e começou, ele também, a procurar constituir o seu império.
Avançará cada vez mais para o interior da Península, tomando posições territoriais para ampliar os seus domínios.

Após a morte de Eurico (484), a posição dos visigodos na Gália começou a ser cada vez mais precária devido às sucessivas incursões dos Francos,
que o queriam anexar aos seus territórios. No reinado de Alarico II, após uma pesada derrota contra os francos na Batalha de Vouillé, os visigodos
transferem-se definitivamente para a Península Ibérica, onde estavam naturalmente mais protegidos e podiam viver em paz, sem os constantes
ataques dos francos. Primeiro, estabeleceram a sua corte em Barcelona, mas logo em seguida transladaram-na para Toledo, fundando aí o Reino
de Toledo ou Reino Visigótico. O território ibérico deste novo reino ampliou-se consideravelmente nos anos seguintes, até dominar a quase
totalidade da Península com a anexação do Reino Suevo, em 585.

Socialmente, ao agregados germânicos e hispano-romanos vão-se aproximando, apesar de subsistirem enormes divergências étnicas e religiosas
que dificultavam essa aproximação. Mas em 589, sob o reinado de Recaredo I (586-601), os visigodos abandonaram o cristianismo ariano,
considerado herético pelo Papado Romano, e convertem-se ao catolicismo (no Terceiro Concílio de Toledo). Os casamentos mistos, se eram já na
prática tolerados, passam a ser legalmente autorizados a partir dessa altura.

A monarquia visigótica peninsular manter-se-á independente até 711, quando, em virtude das invasões muçulmanas, é morto Rodrigo, que é
considerado o seu último rei.

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3. AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DA MONARQUIA VISIGÓTICA DE TOLEDO

a) O Rei

A Monarquia Visigótica não era hereditária mas eletiva. O Rei era escolhido por um colégio aristocrático (Aula Régia), ou impunha-se pela violência
contra o rei em funções, depondo-o ou assassinando-o. Este facto, assim como o carácter particularmente tumultuoso dos povos germânicos, em
geral, contribuiu para a constante perturbação política da Monarquia Visigótica, que frequentemente submergiu em guerras civis fratricidas.

As funções do rei replicavam as do imperador romano, de quem, desde 476, se consideraram sucessores. O rei era, essencialmente, chefe político
e militar.

b) Aula Régia

Era um órgão consultivo do monarca, que inicialmente abrangia apenas a nobreza e as chefias militares dos godos. Posteriormente, com a
aproximação social das populações godas e hispano-romanos, bem como com a crescente influência da Igreja Católica na sociedade, começou a
incluir um número mais alargado de conselheiros, mesmo até dignitários religiosos.

O órgão pronunciava-se sobre leis a aprovar e sobre os assuntos mais relevantes do reino, assim como começou a eleger o rei, pelo menos, desde
o IV Concílio de Toledo, em 633. Foi, podemos afirmá-lo, uma instituição que prenunciou as futuras Cortes régias dos reinos peninsulares.

c) Concílios

Os visigodos renunciaram, em 589, no Terceiro Concílio de Toledo, com Recaredo, ao arianismo, uma heresia cristã criada por Ário (256-336),
sacerdote e pregador cristão nascido na Síria. O arianismo negava a consubstancialidade da Santíssima Trindade católica e, por isso, não aceitava
a identidade de Cristo e Deus, considerando o primeiro como um ser perfeito e divino, mas diferente e subordinado ao segundo. O Primeiro
Concilio de Niceia (325), realizado sob a égide do Imperador Romano Constantino I, declarou herética essa interpretação do cristianismo. Foi,
porém, nessa visão de Cristo que os visigodos foram inicialmente evangelizados.

A partir daquela data, os concílios católicos peninsulares assumiram uma feição claramente cesarista, no mesmo sentido do que Constantino I e
os seus sucessores tinham feito com a Igreja Romana, submetendo o poder espiritual ao temporal. Desse modo, passaram os reis a convocar esse
órgão, que reunia um leque ainda mais alargado de autoridades do que na Aula Régia, na medida em que nele eram incluídos clérigos, sobretudo
os altos dignitários da Igreja Católica, nomeadamente os arcebispos e bispos.

Realizaram-se quinze concílios, todos na capital do reino, em Toledo. Os Concílios eram abertos pelo rei, que lhes dirigia uma mensagem (“tomus”)
onde tocava nos pontos principais que a reunião deveria abordar e sobre os quais deliberava. No fim da reunião, o rei promulgava, em forma de
lei, essas decisões, passando elas a vigorar como leis civis do reino. Os Concílios de Toledo foram, deste modo, paralelamente com a Aula Régia,
as instituições de poder mais importantes da Monarquia Visigótica.

4. O DIREITO VISIGÓTICO

Só cuidaremos do direito dos visigodos a partir do momento em que este povo começa a vir para a Península Ibérica. Até então, o seu direito era
eminentemente germânico, ainda que os visigodos tenham sido, de todos os bárbaros invasores do império, aquele que foi mais sensível à
romanização e, consequentemente, ao Direito Romano.

Até essa altura, o direito dos visigodos é quase inteiramente consuetudinário, não escrito e de aplicação pessoal. Apesar do Edicto de Caracala,
de 212, e de os visigodos serem, na sua grande maioria, homens livres que habitavam no Império, eles manterão o seu direito e as suas tradições
jurídicas separados do Direito Romano. Dispunham, igualmente, de juízes e de tribunais próprios, que aplicavam o seu direito ao seu povo.

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Os primeiros documentos escritos visigóticos com força de lei foram as «Leis Teodoricianas», cuja elaboração é atribuída a Teodorico I (420-451)
e Teodorico II (451-466). O seu conteúdo trata exclusivamente da divisão da propriedade das terras peninsulares já ocupadas com os seus
proprietários hispânicos originais. Estas leis, porém, não tiveram, nem poderiam ter, influência no Direito Peninsular, para além do aspeto
mencionado.

A partir do reinado de Eurico (466-484), começam a surgir, talvez por influência das fontes escritas do Ius Romanum, os primeiros códigos de
Direito Visigótico. Direito e códigos esses cujo conteúdo é, assinale-se, fortemente romanizado, seja em influência direta sobre as normas
visigóticas, seja mesmo pela simples transcrição das fontes romanas. Vejamos que códigos foram esses.

a) Código de Eurico

Elaborado e promulgado durante o reinado deste rei, costuma-se atribuir a data provável para a sua conclusão em 476, ano em que findou o
Império Romano Ocidental. O seu conteúdo são leis visigóticas fortemente influenciadas pelo Direito Romano e leis romanas.

b) Breviário de Alarico (Lex Romana Visigothorum – Lei Romana dos Visigodos)

Elaborado no reinado de Alarico II (484-507), foi concluído no ano de 506. O seu conteúdo é integralmente constituído por Direito Romano, nele
se incluindo ius (direito romano anterior ao século IV) e leges (direito romano do e posterior ao século IV).

IUS

- Liber Gaii (as Institutas de Gaio vulgarizadas);


- Sentenças de Paulo;
- Partes do Codex Gregorianus e do Codex Hermogenianus;
- Um texto de Papiniano.

LEGES

- O Código Teodosiano de 439;


- Novelas pós-teodosianas, até 463.

c) Código de Leovigildo (Codex Revisus de Leovigildo)

Composto e aprovado no reinado de Leovigildo (568-586), não se conhece o documento original, tendo sido parcialmente reconstituído a partir
do código seguinte, o Código Visigótico, que mencionava em epígrafe, como “antiqua” (“antiga”), as leis que vinham desse código. Tratou-se de
uma revisão e atualização do Código de Eurico.

d) Código Visigótico

No reinado de Chindasvinto (642 – 649) começou a proceder-se a uma revisão oficial do Código de Leovigildo. A atividade legislativa dos reis godos
teria sido considerável e a conversão ao catolicismo de 589 aproximara as diferentes populações peninsulares, mas também criou exigências para
o Direito. Era, por isso, necessário atualizar a sua principal fonte legislativa. Contudo, a obra só seria concluída no reinado do seu filho Recesvindo
(649 - 672), mais precisamente no VIII Concílio de Toledo de 654, e vigorou até ao final da Monarquia Visigótica e, até depois dela, nos Reinos
Cristãos peninsulares, inclusivamente em Portugal, nos primeiros anos, até ao século XIII.

O Código Visigótico, ou Liber Judicum, contém 324 leis que vinham do Código de Leovigildo , algumas das quais, por sua vez, vinham já do de
Eurico (eram intituladas por “antiqua”, isto é, antigas ou leis antigas); 3 leis de Recaredo; 2 de Sisebuto; 99 de Chindasvinto e 87 de Recesvindo,
um total de 515 leis, portanto. Por sua vez, este Codex tem várias versões, visto que posteriores leis dos reis visigodos lhe foram acrescentadas,
sendo que uma dessas atualizações foi oficial, enquanto as outras são feitas por particulares. Assim, devemos considerar que o Código Visigótico
teve as seguintes formas ou edições:

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- Forma recesvindiana, de 654: a primeira, de Recesvindo;
- Forma erviginiana, de 681, mandada fazer pelo rei Ervígio, foi uma atualização da primeira edição;
- Forma vulgata, de várias datas, que são diversas atualizações particulares manuscritas posteriores a 681, que incluem leis de reis
posteriores a Evígio, nomeadamente Egica e Vitiza.

A problemática da aplicação territorial ou pessoal do direito visigótico,

Suscita-se, a propósito da natureza do Direito Visigótico e, particularmente, do Breviário de Alarico, uma problemática entre os historiadores do
direito deste período, que consiste em procurar saber se esse direito vigorava na Península Ibérica de modo territorial, aplicando-se
indistintamente a todos os habitantes, ou de acordo com o sistema personalista, destinando-se exclusivamente aos germânicos, permanecendo
os hispânicos com o seu próprio direito, que era sensivelmente o Direito Romano Vulgar.

Para os defensores da territorialidade desde o primeiro código, como era o caso do professor espanhol Garcia Gallo, o Código de Eurico destinava-
se a ser aplicado a todos os habitantes da Península e teria sido revogado pelo Breviário de Alarico, que, por sua vez, fora substituído pelo de
Leovigildo e este pelo de Recesvindo. À dificuldade lógica da substituição do primeiro código, que era de direito visigótico, pelo Breviário, que era
inteiramente romano, os defensores desta tese alegavam que o código do rei visigodo já tinha um nível tão elevado de influência romana, que
não se notaria substancialmente a diferença de um para o outro.

A este perspetiva contrapõem-se a da personalidade, segundo a qual o Código de Eurico se destinava apenas aos germânicos, enquanto que o
Breviário de Alarico se aplicava exclusivamente aos hispânicos. Nessa perspetiva, o Código de Leovigildo revogara o de Eurico, mas mantivera em
vigor o de Alarico. Quando, em 654, é promulgado o Código Visigótico, todos os outros são retirados de circulação, proibindo-se no seu texto a
utilização forense do Breviário. Esta tese é defendida pelos professores portugueses Paulo Merêa e Marcello Caetano, bem como pelo espanhol
Sanchez Albornoz.

Mais recentemente, o também professor português Nuno Espinosa Gomes da Silva, na senda da investigação desenvolvida pelo professor
espanhol Álvaro D’Ors, vem defender um ponto de vista intermédio, ou conciliatório, entre a pura territorialidade e a personalidade. Segundo
esta nova teoria, a territorialidade tinha sido sempre a regra, desde o Código de Eurico, embora os visigodos estivessem muito recetivos a
receberem o Direito Romano como direito complementar do seu. De facto, o elevado desenvolvimento e perfeição deste último sistema jurídico
tornava-o muito apelativo e útil, e os visigodos tê-lo-iam utilizado quer como fonte inspiradora das suas leis, quer mesmo como fonte jurisdicional
direta, na ausência de norma própria aplicável. Deste modo, o Breviário de Alarico teria servido como código complementar do direito visigótico,
a ser utilizado na existência de lacunas da sua ordem normativa, mas também fixando, por outro lado, toda a massa jurídica romana aplicável em
tribunal.

CAP. IV - PERÍODO DO DOMINIO MUÇULMANO

1. FIM DA MONARQUIA VISIGÓTICA PENINSULAR.

Em razão da natureza eletiva da Monarquia Visigótica, bem como das suas instituições políticas e também do próprio temperamento deste povo
germânico, foram constantes os conflitos internos e guerras civis, que ocorriam, sobretudo, quando era necessário escolher um novo rei.

Muitas vezes, contudo, os reis eram assassinados pelos seus rivais, que assim encontravam caminho direto para assumirem o poder. Dos trinta e
sete reis visigodos, que reinaram entre 382 (Alarico I) e 720 (Ardão), número que, de resto, faz entender bem a precaridade temporal das funções
régias (uma média de 9,1 anos por reinado), alguns governaram por menos de um ano (Torismundo, em 451, Teudiselo, em 548, Paulo, em 673 e
Rodrigo, em 710), outros por não mais do que dois anos (Líuva I, em 567-8, Líuva II, em 601-3, Gundemaro, em 610-2 e Tulga, 640-2) e não mais
do que dez soberanos ultrapassaram uma década de exercício das suas funções.

Foi exatamente isso que sucedeu em 710, com a morte do rei Vitiza (ou Witisa, ou Vitisa), sobre a qual os historiadores ainda hoje debatem as
hipotéticas causas naturais ou provocadas), e ao qual sucedeu Rodrigo (Roderick), um nobre que não era da sua família. As circunstâncias desta
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sucessão também não são inteiramente claras, havendo, contudo, a convicção generalizada de que não terão sido pacíficas, ou seja, que Rodrigo
tomou o poder pela força contra Vitiza e os seus herdeiros. Desse modo, Rodrigo terá sempre sido considerado um usurpador, o que fez com que
se lhe tivesse oposto um partido de nobres e influentes do reino, que pugnavam pelos direitos de sucessão à coroa de Ágila (Ákhila), filho do
falecido rei Vitiza. Daí resultou mais uma guerra civil que, desta vez, foi fatal para o reino visigótico da Península Ibérica.

Segundo reza a história, algo imprecisa, deste período, em 711, o partido de Ágila terá pedido ajuda militar aos muçulmanos (aqueles que
acreditam em Alá) do Norte de África para a guerra civil travada contra Rodrigo. O pedido terá sido feito a Muça ibne Noçáir (ou Musa), então
governador dessa região que pertencia ao Califado Omíada (localizado na região da atual Síria), o qual se expandira para Ocidente, desde 661, e
conquistara o Norte de África. Em resposta, Muça enviou um seu general, Tarique ibn Ziade, para invadir a Península Ibérica, em Julho de 711,
com um exército de perto de sete mil homens (eventualmente reforçado por mais alguns milhares de soldados cedidos por Muça, que se
confrontou com as forças de Rodrigo, a 19 desse mês, na Batalha de Guadalete (Jerez de la Frontera). Os muçulmanos saem vencedores desse
conflito, no qual Rodrigo perda a vida e, com ele, se perde o Reino Visigótico.

Em razão da divisão dos visigodos e da sua consequente fragilidade, os muçulmanos ocuparam a quase totalidade do território peninsular, num
breve espaço de tempo. A região montanhosa das Astúrias, naturalmente propensa a uma organização defensiva, passa a ser o refúgio das elites
cristãs-visigodas, a partir da qual se organizará a Reconquista Cristã.

2. HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE E DIREITO

« A ocupação muçulmana da Península Ibérica, ou Al-Andaluz, como os invasores a passaram a designar, durou vários séculos, tendo
conhecido uma reação militar quase imediata da parte dos cristãos, organizados, pelo menos a partir de 718, num Reino das Astúrias.
Os invasores, por sua vez, passaram a estar integrados no Califado Omíada, como sua província ou emirado, com capital em Córdova. O
chamado Emirado de Córdova foi instituído em 756, sendo seu primeiro emir Abderramão I (756-788), membro proeminente da Dinastia
Omíada. Esta forma política peninsular termina em 929, quando Abderramão III (929-961) conseguiu pacificar e unir toda a Península
Ibérica muçulmana proclamando-se como califa, ou seja, como chefe político, militar e religioso desse território, doravante designado
por Califado de Córdova. Este, por sua vez, perdurará até 1031, quando, ao fim de alguns anos de rebeliões internas, essencialmente
causadas por causa de sucessivos aumentos de impostos para sustentarem a construção de obras públicas (sobretudo de mesquitas),
se extingue sob a chefia do seu último califa, Hixame III, preso após uma revolta palaciana de nobres cordoveses e morto, no exílio,
quaro anos depois (1036). Depois da queda de Hixame, o califado desintegra-se em múltiplos Taífas (reinos ou principados muçulmanos
independentes), tendo chegado a atingir o número muito expressivo de quarenta e quatro.

« Esta divisão dos muçulmanos permitiu que a Reconquista Cristã progredisse consideravelmente, o que fez com que os muçulmanos se
tivessem apercebido que precisava de se unir de novo, de modo a evitarem maiores perdas territoriais. Depois da reconquista de Toledo,
por Afonso VI, de Leão e Castela, em 1085, cidade de extrema importância para os muçulmanos peninsulares, Almutâmide, rei da taífa
de Sevilha, Iúçufe ibne Taxufine, chefe almorávida da Mauritânia, que desembarca em 1086 para auxiliar os muçulmanos a resistirem
aos cristãos. Os Almorávidas eram nómadas vindos originariamente do Saara para muitas regiões de África, que praticavam um
islamismo ortodoxo ou fundamentalista. De novo retomam posições que os cristãos já tinham reconquistado, vencem uma importante
batalha contra Afonso VI (batalha de Zalaca, a 23 de Outubro de 1086) e conseguiram impor-se no território do Alandaluz, embora, não
muito tempo depois, tenham entrado em decadência e sido substituídos, no comando político do território, pelos Almóadas. Estes eram
também muçulmanos e ortodoxos em matéria de religião, e conseguem unificar politicamente a Península Ibérica muçulmana num novo
califado, este também com a denominação da sua origem étnica e religiosa de Califado Almóada, que podemos considerar criado a
partir de 1145, com Abde Almumine, com termo em 1269, com o último califa almóada, Abul Ula Aluatique Idris (Idris II). A Ibéria
muçulmana estava, já então, substancialmente reduzida em território, graças à reconquista dos reinos cristãos, entre eles, o de Portugal,
tendo ficado confinada, a partir daí e até 1492, ao Emirado Nacérida de Granada, ou Reino de Granada. Este seria, finalmente,
conquistado pelos Reis Católicos, Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, sendo que o seu último rei, Maomé XII (conhecido, entre
os castelhanos, por “Boabdil”), assinou, com aqueles, um acordo de rendição no dia 2 de Janeiro. Nesse dia pode considerar-se
finalmente concluída a Reconquista Cristã, iniciada mais do que setecentos anos antes.

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Durante esse período da ocupação muçulmana, conviveram, na generalidade do território peninsular, ocupantes e ocupados, sendo que, quase
sempre, os muçulmanos permitiam a liberdade religiosa e de culto aos cristãos, desde que estes lhes pagassem um imposto. Muitos cristãos
renderam-se à cultura islâmica, sendo conhecidos pelos «moçárabes», ainda que nem todos se tivessem convertido à sua religião.

Nas relações jurídicas e sociais os muçulmanos respeitaram, em regra e ao longo deste extenso período, o princípio da personalidade: cada pessoa
pertencia a um agregado populacional com religião e instituições jurídicas próprias e distintas, aplicando-se o direito próprio de cada uma.

No que se refere ao Direito, há que ter em conta que o Direito Muçulmano é essencialmente de ordem religiosa, sendo o Corão, que é o livro
sagrado do islamismo, a sua principal fonte. Por isso, esse direito nunca poderia ter outro destino que não fossem exclusivamente os crentes do
Islão, não se aplicando aos cristãos, que mantinham o seu direito germânico-visigótico, muito influenciado por um direito romano-vulgar, que
permanecia na tradição oral local com muita força.

Para além do Corão, destacam-se outras fontes de Direito Muçulmano, a saber:

- Suna: que era a vida do profeta Maomé, onde o seu exemplo, as suas palavras e até os seus silêncios poderiam servir de fundamento às
sentenças dos tribunais;
- Fiqh: que consiste na Ciência do Direito muçulmano, resultante das opiniões e pareceres das autoridades religiosas do Islão;
- Ijma: é o consenso existente na comunidade dos muçulmanos sobre um determinado assunto ou tema da lei islâmica.

Sendo um direito eminentemente religioso, o Direito Muçulmano só se aplicava aos crentes no Islão. Por esse motivo, e tendo a maior parte da
população ibérica permanecido cristã, a sua influência foi muito reduzida entre nós, fazendo-se essencialmente notar no vocabulário e expressões
jurídicas que perduraram, muitas delas, mesmo no que seria o futuro Reino de Portugal.

CAP. IV - A RECONQUISTA CRISTÃ E O CONDADO PORTUCALENSE

1. CONTEXTO HISTÓRICO

Quase imediatamente após a ocupação muçulmana, os cristãos, refugiados nas Astúrias, iniciaram a resistência militar num movimento político e
geográfico que ficou designado por «Reconquista Cristã». Este processo teve um marco histórico inicial muito importante, que foi a Batalha de
Covadonga, a primeira travada entre cristãos e muçulmanos que terá sido vencida pelos primeiros e terá acontecido no ano de 722. Ao longo dos
séculos seguintes, a Reconquista foi tomando todo o território peninsular, sendo progressiva e desigual a conquista das terras pelos cristãos aos
muçulmanos, tendo o Reino de Granada, o último bastião muçulmano, caído em 1492, integrando-se na recém-criada Espanha unificada pelo
casamento de Isabel de Castela com Fernando II de Aragão. Consequentemente, podemos afirmar que uma invasão que durou pouco mais de
dois anos a consolidar as suas conquistas, teve de aguardar sete séculos até ser definitivamente derrotada.
O primeiro reino cristão tomou o nome da região montanhosa onde estava localizado – o Reino das Astúrias – e o seu primeiro monarca foi Pelágio,
que seria um nobre godo dos muitos que fugiram para essa parte da Península Ibérica, embora haja quem o considere não um nobre, mas um
antigo servo. Posteriormente, o Reino das Astúrias transformar-se-ia no Reino de Leão, a partir de 910, tendo surgido também outros reinos
cristãos. Concretamente, o Reino de Navarra, o Reino de Aragão, o Reino de Castela e, um pouco mais tarde, o Reino de Portugal.
Castela teve, desde muito cedo, a intenção de anexar o Reino de Leão, juntando-se e separando-se por várias vezes, tendo a última acontecido
em 1230, quando Fernando III de Castela, filho de Afonso IX de Leão, através do seu casamento com Berengária de Castela, se apropriou do trono
que pertencia, segundo as disposições testamentárias do pai, às suas meias-irmãs e legítimas herdeiras, as rainhas Sancha e Dulce. A partir daí,
nunca mais Leão será um reino independente.

2. A CONTROVÉRSIA DO ERMAMENTO

Uma das questões que divide os historiadores deste período é a do ermamento. Segundo alguns, como Alexandre Herculano, a estratégia militar
dos cristãos contra os muçulmanos previa a criação de uma cinta de desertos humanos, isto é, sem povoação cristã, junto aos limites territoriais
sul dos seus reinos, de modo a manterem uma zona alargada de segurança. Esta hipótese sustentava-se em fontes históricas da época, segundo
as quais os reis asturianos tinham levado «todos os cristãos» para o seu território.
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Historiadores como Gama Barros e Alberto Sampaio contestam esta tese, afirmando que vários indícios levam a acreditar que terá existido uma
continuidade populacional cristã nos territórios sob ocupação muçulmana, e que muito povo humilde dos campos não se tinha refugiado nas
Astúrias.
A corroborar esta tese está a instituição da «presúria», que era a cerimónia pública que os cristãos realizavam quando tomavam alguma terra aos
muçulmanos, e que era feita «cum cornu et albende de rege» (com trombeta e estandarte real). Isto significa, como frisou o historiador Avelino
Costa, que a cerimónia da reconquista das terras aos muçulmanos era feita com o objetivo de chamar pessoas para assistirem, o que só se
justificaria com a existência de população cristã nessas terras conquistadas.
Assim, a maioria dos especialistas deste período da História Peninsular vai no sentido de defender que o ermamento nunca existiu como política
geral e que, quando muito, poderá ter sido utilizado como técnica defensiva nalgumas ocasiões e nalguns territórios.

3. FEUDALISMO E REGIME SENHORIAL

Antes de progredirmos há que relembrar que os acontecimentos históricos que vivemos se inserem na Idade Média (476-1453), que se
caracterizou, em termos históricos, políticos e sociológicos, pelo Feudalismo.

O Feudalismo foi uma forma de organização social onde não existiam poderes fortes e uniformes em áreas geográficas alargadas, pulverizando-
se os reinos em pequenas unidades políticas e territoriais, que eram os feudos. Nestes, as relações pessoais eram de proteção de um senhor em
relação à população que vivia no seu território castelar e muralhado, firmando-se essas relações através de «pactos de vassalagem», pelos quais
o senhor garantia ao vassalo um pedaço de terra para agricultura e segurança, e, em contrapartida, o «servo» oferecia ao senhor parte dos frutos
colhidos do seu trabalho da terra e integrava a milícia militar do senhor, caso isso fosse necessário.
Os Pactos de Vassalagem firmavam-se, também, entre os reis das monarquias que, um pouco por toda a Europa, foram emergindo por esse tempo,
e os grandes senhores territoriais. Também aqui a relação seguia a mesma lógica, sendo as necessidades de proteção recíprocas que deveriam
ser objeto principal do pacto.

Discute-se muito se no território peninsular da Reconquista houve, ou não, feudalismo, sendo que a maioria dos historiadores se inclina para a
resposta negativa. Na verdade, em razão da ocupação muçulmana sempre existiu muito maior unidade em torno dos reis do que sucedeu, em
geral, nos reinos europeus. Todavia, o facto de não ter havido feudalismo na Península Ibérica não se nega a existência de um forte regime
senhorial, isto é, de terras de cada um dos reinos cristãos peninsulares que eram propriedade de um senhor com largos poderes de autonomia
face à coroa.
Nesses territórios foi-se desenvolvendo o privilégio da imunidade, que significava que elas estavam isentas de pagarem impostos à coroa. Neles
também existia uma justiça própria (quase sempre presidida pelo senhor) e, inclusivamente, os funcionários régios só podiam entrar nelas com
prévio consentimento do seu proprietário ou senhor. O rei, contudo, tinha direito de entrar nesses territórios, inclusivamente para aí exercer
algumas funções de justiça, como, por exemplo, conhecer e decidir recursos de sentenças locais proferidas pelos tribunais senhoriais (as
“apelações” ao rei).

4. O CONDADO PORTUCALENSE: A NATUREZA JURIDICA DA TRANSMISSÃO AO CONDE D. HENRIQUE E À


INFANTA D.TERESA

O Condado Portucalense foi, precisamente, um senhorio que fazia parte do Reino de Leão, que terá sido fundado após a presúria de Vimara Peres
(nobre leonês, cuja estátua equestre está ao pé da Sé Catedral da cidade do Porto), no ano de 868. Ocupava uma faixa territorial considerável, já
que se estendia sensivelmente dos Rios Minho ao Mondego.
O governo do Condado Portucalense foi concedido pelo rei de Leão, Afonso VI, reino onde o condado se integrava, à sua filha Teresa, por motivo
do seu casamento com o nobre bolonhês D. Henrique, que viera para a península com o seu primo D. Raimundo para ajudarem o rei Afonso na
Reconquista Cristã. A este último foi concedida a mão de D. Urraca, herdeira do trono de Leão, e a D. Teresa e a D. Henrique foi concedido o
governo da terra portucalense. Em que termos político-jurídicos foi feita essa concessão?

Há essencialmente duas teses extremas e uma conciliatória que tentam dar resposta a essa questão,
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- Alexandre Herculano defende a tese de que o território foi concedido como uma mera «tenência amovível», querendo isto significar
que D. Henrique fora nomeado como mero representante de Afonso VI («tenens») para, em seu nome, governar aquela parcela do
Reino de Leão, mas que esse cargo lhe poderia ser retirado pelo rei a todo o momento, razão pela qual se qualifica como «amovível».
- Paulo Merêa defende que se tratou de uma verdadeira doação de um «senhorio hereditário», isto é, de um território doado com poderes
atribuídos muito mais fortes do que os de uma simples tenência, já que o senhor recebia a terra em propriedade, transmitindo-a aos
seus descendentes.
- Sánchez-Albornoz, historiador e jurista espanhol, vem defender uma tese intermédia de que o território é cedido como uma «tenência
hereditária com vínculo de vassalagem». Ou seja, os poderes de D. Henrique não seriam tão amplos como no caso de um senhorio, nem
a sua propriedade abrangeria a totalidade do condado. Mas, em contrapartida, podia transmiti-lo aos seus descendentes.

Qualquer uma destas hipóteses é academicamente defensável, porquanto não existe nenhum documento autêntico sobre a natureza desse
vínculo jurídico constituído por Afonso VI de Leão, embora, vistos os laços familiares existentes, os serviços prestados por D. Henrique ao rei e a
estrutura política conhecida do Reino de Leão, a hipótese da tenência hereditária seja muito plausível. Todavia, nenhuma das outras, ou mesmo
uma outra que possa ser concebida, não pode ser excluída por inexistência de provas.
Esta problemática reveste-se de certo significado histórico-político para Portugal, porque o ato político de independência face ao Reino de Leão,
concretizado por Afonso Henriques, filho de Teresa e Henrique, em 1143, será, conforme veremos, mais ou menos significativo conforme os
vínculos mais ou menos fortes que o Condado Portucalense e os seus governadores tivessem para com o Reino de Leão e o seu rei.

PARTE II: O DIREITO PORTUGUÊS

CAP. I - PERÍODO DO DIREITO CONSUETUDINÁRIO (1143-1248)

1. A FUNDAÇÃO DE PORTUGAL

O nascimento do Reino de Portugal resultou da independência do Condado Portucalense, que era parte integrante do Reino de Leão (nessa altura,
o Reino de Leão estava agregado ao Reino de Castela, designando-se como Reino de Leão e Castela).

Para esse fim, costuma assinalar-se a data do Tratado de Zamora (20 de Dezembro de 1143) como a da independência de Portugal. Esse importante
documento foi assinado por Afonso Henriques e pelo seu primo Afonso VII, rei de Leão e Castela, durante um encontro que os juntou na cidade
que lhe deu nome patrocinado pela Igreja Católica, nomeadamente por João Peculiar, arcebispo de Braga, e por Guido de Vico, cardeal do Vaticano
enviado para a Península Ibérica, em 1139, pelo Papa, com a missão de tentar pacificar as relações, frequentemente conflituosas, entre os vários
príncipes cristãos desse território, que punham em risco a guerra contra os muçulmanos. Nele reconhecia-se a constituição de Portugal como um
Reino e D. Afonso como o seu rex, ainda que o novo rei aceitasse o seu primo como Imperador das Hespanhas e ficasse, conforme os vínculos do
feudalismo, com a obrigação hierárquica de lhe prestar vassalagem.

Há quem proponha, porém, as datas anteriores de 1128 (24 de Junho) 1139 (25 de Julho) como tendo sido aquelas em que a consciência nacional
portuguesa verdadeiramente. A primeira dessas duas datas assinala a Batalha de São Mamede, travada entre Afonso Henriques e os exércitos do
conde galego Fernão Peres de Trava, amante de sua mãe Teresa, que queria repor o Condado Portucalense sob a tutela mais apertada do Reino
de Leão. A revolta dos portugalenses contra essa pretensão foi um motivo de consolidação de um espírito português em formação, que se opunha
à dependência leonesa. A segunda remete-nos para a importante batalha de Ourique (25 de Julho), travada entre as tropas capitaneadas por
Afonso Henriques e os muçulmanos, momento a partir do qual o filho do falecido conde D. Henrique e da princesa D. Teresa passou a proclamar-
se rex, o que nunca fizera até então.

« Todavia, essa dignidade só lhe foi reconhecida depois de celebrado o tratado acima referido, pelo que deverá considerar-se, esse
momento de Ourique, como determinante no caminho para a independência de Portugal, mas não ainda a sua concretização, que só
viria com Zamora e, ainda assim, relativamente incompleto.

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Na verdade, mesmo depois de Zamora faltava ainda a Portugal e ao seu rei o reconhecimento da Igreja Católica e do Papa para se poder dizer que
o processo da criação do novo reino estava concluído. Compete aqui recordar que estamos em plena Idade Média, ainda que já na transição da
Alta para a Baixa, período em que a influência da Igreja, que já vinha crescendo desde a queda do Império Romano do Ocidente (476), foi
determinante na cristandade. De facto, em toda a Europa se aceitava que o poder espiritual do Papa era superior ao do Imperador (do Sacro
Império Romano-Germânico, iniciado em 961 por Otão I, que procurara reconstruir o perdido Império Romano Ocidental) e aos dos primeiros reis
dos Estados em germinação, sendo que, dentro da lógica feudal das relações pactícias entre as pessoas, todos os reis eram vassalos do Papa.

MUNDO MEDIEVAL: o mundo medieval é, assim, caracterizado por duas autoridades: o Sacerdotium, que era o poder papal e espiritual, e o
Imperium, que era o poder temporal do Imperador do Sacro-Império. Defendia a doutrina católica desde o Papa Gelásio I (492-496) e a sua Bula
Duo Sunt (“São Dois”), de 494, que, em caso de colisão entre os dois poderes, deveria prevalecer o espiritual sobre o temporal, porque o Papa,
representante de Deus na Terra, tinha de prestar contas a Deus pelos atos de todos os homens e não apenas pelos seus, como sucedida com os
imperadores e reis.

Assim, o mundo medieval é marcado pelo predomínio da Igreja Católica, que não se ficará somente por uma influência espiritual e religiosa,
natural na sua vocação existencial, sendo também eminentemente temporal e política. Essa influência começará a decair com os conflitos entre
alguns imperadores e certos papas, nomeadamente com a célebre Questão das Investiduras (sécs. XI e XII), quando alguns imperadores entraram
em conflito com os papas por causa da nomeação dos bispos e sacerdotes dos seus países, o que os chefes da Igreja não aceitavam. Com a
passagem da Alta Idade Média para a Baixa Idade Média (sobretudo a partir do início do século XIV), quando se começa a formar o Estado Moderno,
com o poder régio mais forte e centralizado a influência e o poder da Igreja Católica começam a entrar em declínio.

Para conseguir esse reconhecimento por parte da Igreja, Afonso Henriques teve de aguardar trinta e seis anos e ver passar seis papas (Celestino
II, Lúcio II, Eugénio III, Anastácio IV, Adriano IV e Alexandre III). De facto, apesar das diligências diplomáticas desenvolvidas junto da Igreja Católica,
nos trinta e seis anos que vão do Tratado de Zamora à Bula, nunca a Igreja se refere ou dirige a Afonso Henriques como rei, tratando-o apenas
como duque. Estas dificuldades não foram alheias às pressões políticas exercidas por Leão e Castela junto do Igreja para que esse reconhecimento
não acontecesse, assim como por causa da política seguida para evitar divisões entre os cristãos da Península, tendo em vista o bem maior da
Reconquista Cristã. Só com Alexandre III, um papa com um percurso muito acidentado e conflituoso, esse reconhecimento seria obtido, em 1179
(23 de Maio), por um documento papal.

Foi, efetivamente, com a Bula Manifestis Probatum (estes documentos são designados pelas suas primeiras palavras) que a Igreja Católica
reconhecia Portugal como um reino sob o «excelso domínio» de Afonso Henriques, que passaria a ter «a dignidade que aos reis pertence». Note-
se que o texto é muito subtil e habilidoso, para não ofender gravemente o rei de Leão e Castela (Afonso VII), mantendo-se relativamente dúbio
quanto às relações que deveriam estabelecer-se entre esse soberano e o novo rex de Portugal. O facto é que, se já antes Afonso Henriques se
considerava independente do primo, desde aí essa separação foi total. Em contrapartida do reconhecimento da Igreja, Afonso comprometia-se a
ser um defensor da fé cristã, a ser vassalo do Papa e a pagar uma contribuição (censo) anual à Igreja em ouro.

2. A AUSÊNCIA DE SOBERANIA E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS: A INTERVENÇÃO DE INOCÊNCIO IV EM


PORTUGAL

A fundação de Portugal assinala o início do nosso Direito. Até aí, o território de onde nasceria Portugal, o Condado Portucalense, era parte
integrante do Reino de Leão, com um estatuto jurídico-político sobre o qual os historiadores ainda não se entenderam, como já assinalámos
anteriormente, mas que sempre teria sido de uma grande autonomia.

O Direito Português conhecerá, deste modo, um primeiro ciclo de vida que abrange praticamente cem anos (1143-1245) e quatro reinados:

- Afonso Henriques (1143-1185);


- Sancho I (1185-1211);
- Afonso II (1211- 1223);
- Sancho II (1223-1247).

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Em 1245, o Papa Inocêncio IV ataca o rei português Sancho II, que considerava um rei muito frágil e que tinha o reino em profunda desordem.
Sobre estes factos e o carácter de Sancho II também não há unanimidade histórica, mas é seguro que muitos nobres e padres portugueses se
terão queixado ao papa do rei, em razão de alguns conflitos que com ele tinham. O papa, recetivo a essas queixas, começou a diligenciar
diplomaticamente para promover a substituição do rei pelo seu irmão Afonso, que vivia na Bolonha francesa. Nesse sentido, decretou a Bula Inter
Alia Desiderabilia (Março de 1245), responsabilizando Sancho II pela desordem em que o reino se encontrava e, a 24 de julho de 1245, com nova
Bula, a Grandi non immerito depôs oficialmente Sancho II do governo do reino, declarando-o «rex inutilis» e designando Afonso como regente.

Durante estes primeiros cem anos de Portugal e do seu Direito, este não possuía ainda identidade própria, já que, por várias razões, não existia
um «Direito Português» propriamente dito. De facto, muito do direito que entre nós se pratica nessa altura vem do passado, algum do Reino de
Leão e algum outro ainda da própria Monarquia Visigótica, sendo que os reis portugueses não conheciam ainda a «arte» de fazer a lei. O pano de
fundo principal do nosso direito será, por conseguinte, o costume, o que bem se entende se tivermos em consideração que as populações estavam,
em matéria de poder público, praticamente entregues a si mesmas e, por isso, tinham de ser elas próprias a criarem as condições para a ordenação
das suas relações jurídicas. Há, também, que ter presente que, neste primeiro ciclo de cem anos da vida do nosso país, o Estado português estava
ainda em formação, o que, aliás, sucedia com todas as monarquias europeias desse tempo. Isto quer dizer, reforçando o que já acima referimos,
que estes novos reinos estavam ainda muito longe de ser Estados organizados por autoridades únicas e centralizadas, não havendo, por isso, um
sistema de justiça pública uniforme. De facto, em Portugal, como na maioria dos países europeus de então, a justiça era administrada
essencialmente por autoridades locais nos senhorios (ou terras senhoriais) e nos concelhos (ou terras municipais).

SENHORIOS E CONCELHOS: Os primeiros, os senhorios, eram terras da propriedade de um nobre (senhorios laicos) ou de uma ordem religiosa
(senhorios eclesiásticos), e onde havia uma considerável autonomia face ao poder do rei, vigorando nelas o chamado privilégio da imunidade. Os
segundos, os concelhos, eram terras também com uma enorme autonomia face ao poder régio, mas que não eram propriedade de um senhor,
sendo administradas pelos seus habitantes, homens livres, na sua generalidade, com vários níveis sociais entre si. Entre eles, existiam proprietários
rurais ricos (homens bons ou homens honrados), sendo que mesmo os menos prósperos eram igualmente homens livres. No seu conjunto, os
habitantes dos concelhos tomavam o nome de vizinhos e reuniam-se em assembleias próprias, nas quais tomavam decisões sobre a vida
comunitária, elegiam os magistrados que desempenhavam funções de poder e de autoridade pública , bem como os que aplicavam o direito, isto
é, os juízes locais.

Os reis portugueses, quando começam a tentar centralizar o poder, procuraram criar, de imediato, um sistema de justiça que dependesse de si,
esvaziando as justiças locais, a senhorial e a concelhia. Para esse efeito, começam a nomear juízes régios que eram enviados para os concelhos e,
mais tarde, mesmo até para terras senhoriais, chamavam-se juízes de fora, precisamente por virem de fora das terras onde iam exercer o seu
magistério, e nem sempre eram bem recebidos pelas populações.

3. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS CENTRAIS E LOCAIS

Como se acabou de ver, este primeiro período da história do nosso direito decorre durante um tempo anterior ao surgimento do Estado Moderno,
organizado em torno do princípio do primado do poder régio. Como era próprio do período medieval em que nos situamos, o poder encontrava-
se disseminado e não existe um poder público que se impusesse eficazmente em todo o país.

Desse modo, compreende-se que o Rei não seja ainda um rei soberano, ao modo como Bodin o desenharia no século XVI e que, em Portugal, até
se configura precocemente nesse sentido, pelo menos, desde que com D. Afonso III se inicia o processo de criação do nosso Estado Moderno
centralizado na figura do rei. Mas, até lá, o rei será, mais do que um organizador e um administrador, um rei-guerreiro, preocupado com os
conflitos da independência, da reconquista e da afirmação da sua autoridade e da segurança interna. Ele é, consoante a lógica do medievalismo,
um primus inter pares, um primeiro entre iguais, um chefe entre outros chefes, ainda que, em Portugal e no conjunto dos reinos cristãos
peninsulares, essa fragilidade do poder real nunca tivesse alcançado o que sucedia noutros países europeus continentais, onde o feudalismo foi
uma forte realidade. Entre nós, talvez devido à ocupação muçulmana e ao esforço de guerra para lhe resistir, bem como à pequena dimensão
inicial dos territórios desses novos reinos, gerou-se uma coesão muito maior entre os barões e proprietários do reino, o que facilitou a progressão
mais precoce para a centralização do poder.

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Por isso, o rei destes primeiros cem anos apoiar-se-á sobre um conjunto de personalidades que lhe são próximas e que formam a Cúria Régia,
talvez a primeira forma de governo do reino que conhecemos. Esta Cúria era itinerante, estando permanentemente a deambular no território do
país, o que se compreende não só por razões militares, como para que o rei pudesse fazer sentir a sua presença no conjunto do país. Afonso
Henriques trasladou a capital do reino de Guimarães para Coimbra, cidade que manteve esse estatuto até 1255, quando a capital é transferida
para Lisboa, mas daí não é legítimo concluir que o reino fosse governado, no seu conjunto, a partir da centralidade da capital.

Quanto aos funcionários régios são de destacar, entre os mais próximos do rei:

« Alferes-mor era o comandante-chefe do Exército Real.


« Mordomo-mor era primeiro responsável pela Casa Real, competindo-lhe também a chefia e organização de todos os outros funcionários
régios. Era, no início da monarquia portuguesa, quem superentendia sobre os assuntos de governação do Reino, naturalmente sujeito
à autoridade do rei.
« Chanceler-mor era o responsável pelo selo do Rei, pela emissão dos diplomas régios, o seu arquivamento e guarda, bem como a
produção e envio de cópias dos mesmos para os concelhos e demais pontos do reino a que se destinavam.

Acresce dizer que, neste primeiro período, não reuniram ainda Cortes na forma tradicional das três Ordens (Clero, Nobreza e Povo), o que só
aconteceria com Afonso III, em 1254, com a reunião das Cortes em Leiria. Todavia, a Cúria Régia podia ter uma formação mais alargada para além
da acima referida, nela se incluindo pessoas (prelados das dioceses, abades, chefes de ordens religiosas militares, nobres) que não a compunham
ordinariamente, como sucedeu em 1211, na cidade de Coimbra, no governo de Afonso II. Quando isso sucedia usava tomar o nome de Cúria Régia
Plena. Apesar disto, perdurou, por muito tempo, entre alguns historiadores nacionais, a convicção de que teria havido uma reunião de Cortes em
1143, na cidade de Lamego, com todos os três braços do Reino, da qual teriam saído algumas leis sobre a sucessão da coroa portuguesa. Hoje é
seguro que esses documentos foram apócrifos e forjados para fundamentarem a Restauração Portuguesa de 1640.

4. AS FONTES DE DIREITO

Neste primeiro ciclo da vida do nosso direito, ele foi eminentemente local, consuetudinário e foraleiro (já veremos o que significa esta palavra), e
quase omisso de legislação dos nossos reis.

a) Costume

Como é conhecido, enquanto fonte de direito, o costume é considerado como uma prática reiterada à qual corresponde a convicção de
obrigatoriedade por parte dos seus destinatários. Ou seja, para que um uso social se converta em costume é necessário que ele cumpra dois
requisitos: um material e outro psicológico.

« O primeiro significa que esse uso, ou procedimento social face a uma determinada factualidade social, tem de se repetir durante um
período relativamente dilatado de tempo para que possa revelar a sua importância e pertinência. Não se esgota num só momento, nem
pode ser apenas resultado de uma prática circunstancial e breve.
« Por outro lado, o chamado elemento psicológico significa que, ao fim de um período dilatado de repetição desse uso social, a
comunidade sobre a qual se aplica acabará por se convencer da sua juridicidade, isto é, de que esse uso tem natureza jurídica, o mesmo
é dizer, poderá ser coercivamente invocado por via judicial, se preciso for.

Nesta época, na ausência de um poder estatal que se afirmasse em todo o território do país, são, como vimos, os poderes e as forças sociais locais
a emergirem para criar o direito e a administrar a justiça. O costume é, assim, em primeiro lugar, eminentemente local, porque nascia e se aplicava
em localidades geograficamente reduzidas e geograficamente limitadas, mas, por vezes, poderia ser nacional ou geral, aplicando-se alguns
costumes, de forma igual, em todo o território do reino. Esse processo gerava-se pelo fenómeno da comunicação de costumes, através do qual
uma prática consuetudinária local ia sendo acolhida noutros pontos do país, graças à eficácia e pertinência das suas soluções, primeiro nas terras
mais próximas e acabando por se generalizar em todo o país. Estes costumes eram, assim, usos sociais que as comunidades locais iam gerando de
modo espontâneo, para conseguirem responder às exigências de segurança e de justiça das suas pessoas e sociedades. Repetiam-se no tempo,
eram casuisticamente utilizadas pelos tribunais locais, até se gerar, no espírito de todos, a convicção de que se tratava de autênticas normas
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jurídicas de vigência obrigatória. É a partir desse momento que deixavam de ser meros usos sociais e se transformam em efetivas normas de
direito local.

O costume era a principal fonte de direito português deste período, havendo quem defenda a tese de que podemos encontrar no conteúdo das
suas normas vestígios de direito romano vulgar, o direito romano adulterado que vigorou na geografia do velho Império Romano do Ocidente,
que se adaptava às práticas e costumes locais e que, por isso, estava longe de ser o direito romano originário e puro.
Esta teoria não é suscetível de comprovação histórica completa, porque é muito difícil estabelecer-se uma conexão histórica sucessiva entre
práticas jurídicas já tão antigas e um direito que era disperso, não escrito e oral. Contudo, do que dele hoje conhecemos – e que nos advém de
livros escritos nesse tempo e nos tempos próximos que o seguiram – podemos, de facto, concluir que existem vestígios, ainda que muito diluídos,
nesse direito consuetudinário português, do que fora, no passado, algum direito romano. A sua transmissão ter-se-á feito pela prática das
populações e pelo próprio Direito Visigótico, que, como sabemos, em boa medida o incorporou nas suas instituições jurídicas, e que depois da
queda da Monarquia Visigótica se manteve no espírito e nos usos das populações.

Por último, acrescente-se que muitas terras concelhias redigiram pequenos códices de direito consuetudinário local, de modo a darem mais
segurança jurídica ao seu direito consuetudinário. Esses livros de direito local não retiravam ao seu conteúdo a sua natureza costumeira: reduziam
as suas normas a escrito, mas elas não deixavam de ser, por esse facto, normas jurídicas consuetudinárias. Esses livros tomaram o nome de foros,
ou estatutos locais, e não devem ser confundidos, apesar de alguma aparente aproximação semântica, com as cartas de foral ou forais. Estes
últimos são, conforme veremos em seguida, documentos outorgados por uma autoridade pública a determinada população, que continham o
regime jurídico fundamental do direito público aplicado nessa localidade, enquanto que os foros são códigos escritos de direito consuetudinário
aplicado na terra que os elabora.

Direito anterior à fundação de Portugal,

b) Leis das Cúrias de Leão, Coiança e Oviedo

No momento da sua independência, Portugal, ainda como Condado Portucalense, integrava o Reino de Leão e Castela, pelo que muito do direito
que então se aplicava, antes de 1143, continuou em vigor. Entre esse direito, têm realce leis feitas em cúrias reunidas nas cidades de Leão (1017),
de Coiança (1055) e de Oviedo (1115). As cúrias eram órgãos auxiliares do rei para o governo do país e reuniam quando eram por ele convocadas,
tomando decisões e fazendo ocasionalmente leis. Estas a que nos referimos foram leis feitas para vigorar no Reino de Leão, de que o Condado
Portucalense fazia parte, e permaneceram em vigor em Portugal, por mais algum tempo, depois da nossa independência.

c) Código Visigótico

O Código Visigótico foi, como é sabido, o último código de direito mandado fazer pelos reis da Monarquia Visigótica, sendo que este teve, com
toda a certeza (ao contrário dos demais códigos visigóticos) vigência territorial em toda a Península Ibérica. Por conseguinte, vigorou também no
território que seria o futuro território português, mesmo durante o período da ocupação muçulmana, graças ao sistema da personalidade já atrás
aflorado.

O Código Visigótico é frequentemente encontrado em documentos portugueses deste tempo com diversos nomes (lex gothorum, lex gothica,
liber judicum, etc,), começam essas referências a rarear a partir do início do século XIII, sendo que, em meados desse mesmo século, a partir do
início do segundo período da história do nosso direito, será substituído pela lei régia e pelo direito romano-canónico, conforme oportunamente
veremos.

d) Leis Régias e Testamentos Reais

A lei, como processo autoritário e voluntário de criação de normas de direito, não era, no século XII, comum entre os reis desse tempo. Muitos
fatores contribuíram para isso, mas, desde logo, a natureza essencialmente militar e guerreira dos reis medievais, provocada pelas necessidades
de defesa, de consolidação ou até de expansão dos seus territórios, levava-os para outras paragens. O direito era, por esse tempo, em toda a
Europa, eminentemente consuetudinário, e só o renascimento do Direito Romano Justinianeu, sobretudo quando os trabalhos dos glosadores

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começaram a circular pela Europa (meados do século XII em diante) é que os reis se apercebem da importância da lei para firmarem a sua
autoridade.
Dos nossos quatro primeiros monarcas conhecem-se poucas leis: de D. Afonso Henriques, somente uma; de D. Sancho I, outra; D. Afonso II
constituiu uma exceção ocasional a esta regra, porque, em 1211, reuniu a sua cúria na cidade de Coimbra e nela aprovou vinte leis; por sua vez,
D. Sancho II também não fez qualquer lei. A partir do rei seguinte, D. Afonso III, este panorama mudará radicalmente, e os reis portugueses
passarão a ser verdadeiros “reis legisladores".
Importantes foram os testamentos dos nossos primeiros reis, sobretudo para ajudarem a fazer da nossa monarquia uma monarquia hereditária,
já que eles, nesses documentos, determinam que os seus sucessores seriam os filhos varões primogénitos. De facto, foi através deles que se foram
compondo as regras sucessórias da monarquia, sendo que são de invalidar, em absoluto, as “leis” das pretensas Cortes de Lamego, de 1143, onde
Afonso Henriques teria reunido os representantes do reino e fixado essas leis de sucessão ao trono, que se tratam de uma invenção e falsificação
histórica criada por altura da revolução da restauração da independência de 1640. Foram os testamentos régios a compor essas regras da sucessão
e não quaisquer leis que, por essa época e durante muito tempo, não existiram.

e) Cartas de Privilégio e Cartas de Foral

Neste período são também muito importantes as Cartas de Privilégio e as Cartas de Foral. Estas últimas devem, aliás, incluir-se nas primeiras como
uma das suas espécies, porquanto o seu conteúdo e o facto de serem emitidas era já um benefício para as populações que as recebiam. Tratavam-
se, umas e outras, de documentos de direito público emitidos por uma autoridade pública - pelos reis ou por senhores laicos ou eclesiásticos
(proprietários das terras senhoriais) – a determinadas populações, podendo ser, nos casos das povoações mais importantes, negociadas com os
seus representantes. A sua finalidade era a de regularem juridicamente as relações entre essas autoridades e as populações locais que as recebiam,
sendo que variavam conforme o seu conteúdo. Assim temos:

« Cartas de privilégio: que é a designação geral de todo este tipo de documentos. Podiam ser outorgadas pelo rei ou por senhores
territoriais, quando estes o faziam unilateralmente, ou pactuadas com as populações, quando eram o resultado de uma negociação e
consequente acordo;
« Cartas de foral ou forais: que são as cartas de privilégio mais importantes, em razão da multiplicidade dos domínios que regulavam.
Nelas encontramos, por exemplo, normas sobre o pagamento de impostos, normas sobre a prestação de obrigações militares, sobre
multas, sobre crimes e penas, etc.. As populações que os recebiam ficavam, assim, a saber com o que poderiam contar da autoridade
pública e esta, por sua vez, estava limitada, na sua atuação, pelo texto desses documentos. Em Portugal encontramos forais em
Santarém, Linhares, S. João da Penela, Paredes, S. João da Pesqueira, entre outros.
« Cartas de povoação: constituíam privilégios ou propriedade para quem fosse ocupar determinadas terras despovoadas, ou de escassa
população, habitualmente aquelas que tinham sido alvo recente de presúria. Eram menos abrangentes do que as cartas de foral.
« Cartas de franquia: regulavam aspetos tributários de uma determinada povoação.
« Cartas de feira: fixavam dias e regras para a realização de feiras e mercados.

f) Façanhas

Parecem ter sido fontes de direito jurisprudencial, isto é, de sentenças judiciais que eram aplicadas em casos futuros iguais ou semelhantes. Seriam
sentenças proferidas, ou confirmadas, pelo rei, no uso da sua faculdade de conhecer e dar resposta às apelações e agravos que lhe chegavam.

g) Concórdias e concordatas

Os conflitos entre os monarcas e o clero nacional, ou mesmo entre aqueles e a cúria romana, eram frequentes. De tal modo que se foram
desenvolvendo expedientes para a pacificação dessas relações, através de documentos assinados pelas partes, que tinham a designação desta
epígrafe. A diferença residiria no facto das concórdias serem acordos escritos entre o rei e o clero nacional, enquanto que as concordatas eram
acordos firmados entre o soberano e o papa. Tratavam-se, neste último caso, de quase-tratados internacionais.

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