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História Medieval

Rodrigo Vieira Pinnow


A formação do
Império Bizantino
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Relacionar o avanço das invasões bárbaras com o fortalecimento de


Constantinopla.
 Descrever as principais ações do governo de Justiniano.
 Identificar o modelo cultural e econômico do Império Bizantino.

Introdução
Neste capítulo, você vai verificar a importância do processo de formação
do Império Bizantino e os motivos que garantiram a sua longevidade
de aproximadamente mil anos. Você também vai ver como as ações de
Justiniano influenciaram a posteridade do Império e como Constantinopla
se tornou o polo civilizacional do mundo medieval, do ponto de vista
cultural, comercial e religioso.

Constantinopla e as invasões bárbaras


A formação do Império Bizantino começa com a reconstrução da antiga cidade
grega de Bizâncio, ordenada pelo imperador romano Constantino. Surge assim
uma nova capital para o Império Romano, com rotas comerciais estratégicas
que colocariam a Roma do Oriente como interface entre o mar Mediterrâneo
e o mar Negro, ou seja, na zona limítrofe entre Europa e Ásia.
Nesse sentido, a história de Bizâncio remete ao mundo greco-romano,
perdurando por aproximadamente mil anos na Idade Média. Segundo Monteiro
(2016), a colonização grega que deu origem a Bizâncio teria ocorrido em meados
do século VII a.C., com um agrupamento de gregos oriundos de Mégara, uma
cidade ao oeste de Atenas. Segundo o autor, a comunidade seria liderada por
um homem chamado Bizas ou Bizante. A região escolhida para o assentamento
2 A formação do Império Bizantino

das famílias seria próxima ao estreito do Bósforo, onde se originou a nova


cidade, batizada com uma variação do nome de seu desbravador.
Após aproximadamente mil anos do evento fundador de Bizâncio e após a
invasão dos romanos no século II a.C., especificamente em 330 d.C., o impe-
rador Constantino consolida na região uma nova realidade de poder político
romano, com um novo batizado. A cidade passa a se chamar Constantinopla,
uma referência ao nome do novo fundador. Hoje, Constantinopla é conhecida
como Istambul, polo da fusão milenar de culturas e histórias civilizacionais.
Monteiro (2016) ressalta que a posição geográfica de Constantinopla, com
uma ligação efetiva entre o Ocidente e o Oriente, também oferecia natural-
mente um sistema de defesas em função do Bósforo, do mar de Mármara e do
Corno de Ouro. Tal situação estimulava ainda mais a exuberante condição das
grandes rotas comerciais terrestres e marítimas entre Europa e Ásia, assim
como entre o mar Negro e o mar Egeu.
Constantino, o primeiro imperador cristão, havia escolhido um território
que ia ao encontro dos interesses romanos e que indicava um futuro promissor
para as realizações do Império. Não satisfeito com a disposição do território,
Constantino tomou medidas preventivas e buscou reforçar as defesas naturais
de sua cidade com a construção de uma muralha com uma extensão aproxi-
mada de 750 hectares. Contudo, as invasões bárbaras ocorridas no Ocidente
no processo de desfragmentação do Império também se fizeram presentes
no lado oriental. Neste, entretanto, estratégias de defesa como a construção
de muralhas, além de outros meios para manter os bárbaros longe, tiveram
mais eficácia.
Após uma série de invasões dos povos germânicos no Ocidente, a estrutura
românica foi se desfragmentando lentamente. Ainda em 395 d.C., Teodósio I
estabeleceu um processo de divisão administrativa do Império, designando
Flávio Honório como responsável pela parte ocidental e Arcádio, pela parte
oriental, Constantinopla. Em 476 d.C, quando o último imperador romano foi
deposto, restaria apenas o Império Romano do Oriente.
Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente, ou capital do
Império Bizantino, se consolidou na historiografia moderna e contemporânea
sobre o mundo medieval como centro de inúmeras pesquisas e debates. Segundo
Sancovsky (2010), aproximadamente no século VI, a extensão do Império
Bizantino compreendia a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina, grande parte da
Ásia Menor (Anatólia e Capadócia), a Grécia e os Bálcãs, além da porção
meridional da Península Itálica e uma parte da África setentrional (Figura 1).
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Figura 1. Mapa de Constantinopla elaborado por um autor desconhecido (Paris, 1840).


Fonte: Marzolino/Shutterstock.com.

Há um consenso entre os historiadores medievais sobre a definição do


Império Bizantino como uma civilização composta por inúmeras culturas.
Lá, o idioma grego era utilizado mais do que o latim e ocorria a preservação
dos conhecimentos da Antiguidade Clássica. Também é necessário levar em
conta o contato com elementos do mundo árabe por meio do comércio. Além
disso, uma interpretação diferenciada das escrituras sagradas deu origem a
inúmeras celeumas em torno das concepções teológicas entre as Igrejas do
Ocidente e do Oriente.
Segundo Sancovsky (2010), no decorrer da Idade Média, o Império Bizan-
tino foi equivocadamente interpretado como uma cópia imperfeita do outrora
glorioso Império Romano. Muito dessa visão se explica pelo imaginário social
e religioso criado pela Igreja Católica, uma vez que a instituição considerava
algumas práticas adotadas pelos bizantinos conflitantes com os ideais propostos
pelo Ocidente, pautados na centralização pela universalização cristã, ou seja,
o oposto da centralização do Oriente, com foco no imperador.
4 A formação do Império Bizantino

Vale lembrar que a estrutura do Império Romano do Oriente teve uma


continuidade significativa e duradoura de aproximadamente mil anos, mesmo
com as inúmeras transformações do período medieval, ocorridas sobretudo
após a queda de Roma no Ocidente. Nesse sentido, uma das possibilidades
de análise é considerar que a sustentação e a resistência do Império Bizantino
tenha se dado pela gênese cultural composta por elementos gregos, cristãos,
eslavos, orientais e latinos, que se refletiram no aprimoramento de estratégias
de defesa pelos imperadores orientais. Considere o seguinte:

Devido a um crescimento populacional espetacular, que depressa conduziu ao


número exorbitante de 500.000 habitantes, Teodósio II (408–450) seria obrigado
a ampliar a área fortificada, tanto na parte terrestre como na zona ribeirinha;
quando Átila ameaçou Constantinopla, já a muralha (com doze a quinze me-
tros de altura) se estendia por oito quilômetros junto ao mar de Mármara (ou
Propôntida, como era conhecido entre os antigos Gregos), por sete quilômetros
no Corno de Ouro e por seis quilômetros e meio na parte terrestre, achando-se
reforçada, ao longo de todo este percurso, por 394 torres capazes de impor
respeito aos mais audazes dos conquistadores (KAPLAN, 1991, 56–60). A
história do Império Bizantino dificilmente se compreende se não tivermos isto
presente (MONTEIRO, 2016, p. 17).

A época foi marcada por inúmeras tensões do ponto de vista do risco de


invasões. Eram tempos difíceis. Contudo, como esclarecem Sancovsky (2010)
e Monteiro (2016), os imperadores orientais souberam gerir um processo de
defesa no decorrer do período de invasões dos povos germânicos, tentando
sempre desviar ao máximo, direta ou indiretamente, as atenções para o Oci-
dente. Além disso, cabe salientar o fortalecimento econômico da região,
resultado do fluxo das atividades comerciais que abasteciam o crescimento
estrutural do Império e atraíam cada vez mais mercadores de todos os tipos
para Constantinopla.

O imperador e o patriarca no processo


de consolidação bizantina
Segundo Tamanini (2016), a construção do conhecimento histórico sobre o
Império Bizantino não deve ser limitada à descrição desse império como uma
extensão do movimento de universalização do cristianismo no Império Romano
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Ocidental. O autor salienta que a compreensão e as maneiras de aplicação


diferenciadas do cristianismo oriental são esclarecidas em grande medida:

 pela estruturação institucional;


 pelo sistema de hierarquização correspondente ao imperador e ao seu
respectivo segmento, composto por clérigos e religiosos;
 pela representação das formas de escrita;
 pela alegoria gestual, pelos ritos e cantos;
 pela iconografia.

Toda essa miríade de elementos está relacionada aos aspectos identitários


e aos conceitos que compõem o que se convencionou chamar de Era do Ouro
de Bizâncio ou Era do Bizantinismo. Nesse sentido, considere o seguinte:

Dois personagens em aliança caracterizam a Era Bizantina: o Imperador e


o Patriarca [bispo responsável por um importante território imperial], como
dois expoentes que governam em rede e em constante geminação. Investidos
de um poder sobrenatural pela virtude da sagração, o Patriarca e o Imperador
e seus respectivos séquitos também se consideravam como responsáveis pela
salvação do seu povo e pretendiam reger o Império como se regessem estruturas
de autoridade pública, centralizadoras e reguladoras. No mundo bizantino, o
pertencimento a uma igreja e a um império tornava o cristianismo também
uma questão de práticas protocolares exteriores e de obediência a preceitos
religiosos de natureza social, onde a capacidade de síntese dos agentes de poder
superava toda e qualquer forma de organização precedente no mundo oriental
(TAMANINI, 2016, p. 161).

Conforme Sancovsky (2010) e Tamanini (2016), a conexão dialógica e


segmental entre o Império e a religião cristã alicerçou a essência da civilização
e do imaginário social bizantinos, o que evidencia a noção de um Estado fun-
damentado tal qual a orientação divina na Terra. Ou seja, o Império funcionava
como uma primeira amostragem do que imaginavam os fiéis sobre o reino dos
céus. As limitações serviam de lição para que seguissem à risca os desígnios
alinhados por Deus e transmitidos por seus representantes na Terra.
Com isso, a organização eclesiástica oriental era fielmente planejada e
pensada para configurar um processo litúrgico inigualável. Tal processo era
sacro e focado nas celebrações protocolares, relacionadas aos sacramentos da
Igreja e também referentes a conquistas, matrimônios, nascimentos e batizados,
mortes e demais comemorações imperiais. Veja:
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[...] toda esta hierarquia estava sujeita a uma etiqueta rigorosíssima, que
visava constituir uma réplica da perfeição do universo e que sustentava uma
espécie de religião imperial. Ora, este aspecto é já uma marca específica da
civilização bizantina, que aos poucos associou, a uma interpenetração muito
forte do cristianismo com a tradição clássica, o fulgor da cultura grega, língua
que se imporá definitivamente a partir dos séculos VI ou VII (MONTEIRO,
2016, p. 21).

A sinergia criada entre a visão militar defensivista e a gestão diplomática


exercida por imperadores promovia um processo de desenvolvimento socio-
cultural, econômico e visionário no Oriente. Por sua vez, a Europa Ocidental
possuía uma unidade em torno da fé cristã, descentralizada, porém cada vez
mais conectada com a gênese de elementos romanos e germânicos. Como
você viu, o papel do imperador e do patriarca talvez tenha sido um diferencial
no caso oriental. Por outro lado, Harris (2015) propõe um encadeamento de
motivos que podem explicar o fortalecimento e a longevidade do Império
Bizantino, entre eles a estrutura da capital, Constantinopla, com notável
arquitetura, considerada por especialistas da época como um monumento de
arte a céu aberto, extremamente fortificada.
Harris (2015) sustenta que a questão religiosa bizantina passou por um
processo de difusão efetivo a partir do cristianismo como religião única e
imperante. No que diz respeito à questão político-administrativa, o autor
ressalta: a valorização do cargo do imperador, com as devidas restrições
dogmáticas; a contemplação da fé pela exaltação e pelo fascínio, e não pela
imposição; a arte como encantamento visual do mundo sagrado e espiritual;
e, a partir disso, a construção de uma ponte com outros povos que de certa
maneira representavam risco às fronteiras do Império em termos de segurança.
Ainda de acordo com Harris (2015), um dos maiores crimes cometidos
pelos bizantinos foi a construção de uma memória coletiva, de uma história
(em diferentes representações da arte, da literatura e demais expressões), do
Império Bizantino como a continuação do Império Romano. Nesse sentido, os
bizantinos ignoraram o fato de terem desenvolvido algo mais rico, evolutivo,
progressista e extremamente adaptável.
Todos os elementos citados anteriormente também revelam um dos aspectos
mais delicados da história do Império Bizantino, ou seja, a relação entre o
núcleo eclesiástico oriental e o núcleo ocidental. De acordo com Sancovsky
(2010), o comportamento adotado pelo núcleo bizantino a partir do conjunto
de suas ordens religiosas, promovendo indagações e silogismos focados na
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complacência e na valorização da existência humana, confrontava-se poten-


cialmente com a visão dogmática construída pelo Ocidente.
A Igreja Católica do Ocidente não abria espaços para problematizações
sobre a fé cristã, seja por parte do corpo eclesiástico ou dos governantes,
que não podiam se aproximar das interpretações sobre os dogmas católicos.
A instituição ocidental entendia que tais problematizações eram abertas e
consumadas somente nos concílios, a partir das escrituras sagradas. Assim,
estabelecia ao seu núcleo eclesiástico aprimoramento espiritual calcado nos
dogmas da Igreja Católica a partir do que fosse definido e resolvido nos
concílios, e não o contrário.
As muitas divergências entre os dois centros de poder da Igreja (Ocidente
e Oriente) estavam fundamentadas na aplicação dos dogmas cristãos e na sua
representação na sociedade. Essa situação de atrito gradativamente iria causar
uma ruptura entre as duas instituições, como você vai ver a seguir.

O legado do imperador Justianiano


Justiniano é considerado um dos imperadores mais importantes do Império
Romano do Oriente em função dos feitos de seu governo e do fortalecimento
de Constantinopla no período entre 527 e 565 d.C. O imperador nasceu em
Tauresium, no território que hoje abriga a Macedônia, e foi casado com a
atriz Teodora. Justiniano, conforme a interpretação de muitos pesquisadores,
foi um imperador altivo, determinado e dedicado ao conhecimento. Ele se
interessava por temas relacionados à teologia, à formulação e à aplicação das
leis e ao aprimoramento da oratória. Além disso, desde jovem demonstrou
interesse pela política.
As referências históricas sobre os seus feitos apontam para uma linha de
comando focada no fortalecimento do Império, bem como na expansão dos
domínios bizantinos. Justiniano contemplou não só os territórios mediter-
râneos, mas também buscou a anexação de antigos territórios romanos, tais
como a própria Roma e a Península Itálica, que estavam sob o controle dos
povos germânicos.
Segundo Harris (2015), durante o governo de Justiniano, as circunstâncias
que causaram transformações no Império Bizantino a partir do governo de
Constantino alcançaram o apogeu, essencialmente pelo desenvolvimento
gradativo do processo de cristianização. O autor ressalta o papel implacá-
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vel que Justiniano desempenhou na erradicação dos focos de paganismo


dentro do Império. Além disso, o imperador empenhou grande esforço nas
campanhas militares contra os povos bárbaros e considerados heréticos que
estavam estabelecidos e governando antigos territórios do Império Romano
no Ocidente. Contudo, ele não teve sucesso no que tange à consolidação da
unidade religiosa que tanto almejava.
Segundo Angold (2002), Justiniano foi politicamente hábil, ambicioso e
autoritário. Conforme algumas referências, ele era chamado pelos súditos
de “imperador que nunca dorme”. Porém, em seu governo, a sua esposa teve
papel relevante para a época, sendo uma de suas conselheiras em assuntos
militares. Conforme seus biógrafos, Teodora, por meio de sua influência, fez
com que Justiniano reconhecesse alguns direitos femininos.

Corpus Juris Civilis


O estudo, a compilação e a organização da coleção de leis e textos jurídicos do
Império Romano foram idealizados pelo imperador Justiniano. O Corpus Juris
Civilis (Corpo do Direito Civil) desenvolvido e estabelecido pelo imperador
se tornou um documento referencial para a posteridade, pois influenciou a
elaboração de inúmeros códigos civis no Ocidente.
Na interpretação de Guandalini Jr. (2015), a análise, a seleção e a orga-
nização dos textos relacionados ao Direito romano publicados em um livro
oficial conecta o resultado da unidade do texto normativo com a autoridade
sociopolítica presente na estrutura de poder do imperador. Segundo o autor,
a obra de Justiniano refunda e ressignifica o passado romano, trazendo à tona
todo o conhecimento empreendido pelos antigos estudiosos do Direito, ou seja,
os antigos legisladores e juristas, com as suas contribuições e problematizações.
Com isso, a organização burocrática bizantina conciliou o passado jurídico
com a sua realidade, alinhando a relevante experiência jurídica constru-
ída por séculos com as novas demandas sociais de uma fase de profundas
transformações. Assim, complementou as garantias legais com um olhar de
previsibilidade no âmbito da tecnologia social reguladora. O Corpus Juris
Civilis, com suas características de distanciamento social, religioso, moral e
político, se colocou num lugar de destaque na sociedade da época, uma vez
que consolidou um status singular, autônomo, com efetiva difusão e aplicação
entre o tecido social bizantino. Veja:
A formação do Império Bizantino 9

O Corpus compõe-se de três partes: o Codex Iustinianus (uma recolha e


adaptação das leis imperiais desde o século II até 534); as Institutiones (um
manual jurídico para estudantes); e os Digesta ou Pandeta (uma recolha de
jurisprudência romana (especialmente dos séculos II e III, reunindo Ulpiano
e outros 40 juristas) para uso nos tribunais (incluía cerca de 2.000 casos).
O tiro de partida para esta reforma foi dado em 13 de fevereiro de 528, por
uma comissão de dez pessoas, com a tarefa de recolher as leis imperiais
ainda válidas, reordená-las e, se necessário, interpolá-las. Em abril de 529,
já o Codex estava a ser publicado, anulando as recolhas anteriores, tendo os
50 livros dos Digesta, preparados por uma comissão de dezessete pessoas
chefiada por Triboniano, entrado em vigor, com força de lei, em 533; por
volta do mesmo ano entraram também em vigor as Institutiones e procedeu-
-se a uma reforma do ensino do Direito. No ano seguinte surgiu uma edição
revista do Codex (com leis a partir do imperador Adriano), que felizmente
se conservou até hoje (ao contrário da edição original), e assim se encerrava
o chamado Corpus Iuris Civilis, uma designação atribuída apenas no século
XVI (MONTEIRO, 2016, p. 16).

Segundo Giordani (1968), a obra de Justiniano compreende a compilação


dos ensinamentos das grandes mentes juristas da Roma Antiga, adaptando-os
para constituir uma legislação efetiva e pragmática. A ideia era sintetizar a
essência do tempo e incorporar, de certa forma, meios para que os legisladores
pudessem complementar o corpo de leis na medida em que fosse necessário.
Como você já viu, o código criado por Justiniano serviu como base de inúmeros
códigos civis na posteridade. Trata-se do alicerce do Direito internacional,
sendo considerado o grande feito de Justiniano na história mundial.
Do ponto de vista estatal, a partir da organização legislativa, o governo
do imperador Justiniano também agiu na questão tributária, desenvolvendo
diversos projetos econômicos, ampliando o seu sistema burocrático. Justiniano
também empreendeu ações relacionadas à política externa, na tentativa de
restabelecer antigos territórios do Império Romano, entre os quais as provín-
cias no norte da África, sob controle dos vândalos, e as Penínsulas Ibérica e
Itálica, sob controle dos ostrogodos.
Os pesquisadores acreditam que Justiniano, a partir da organização legisla-
tiva, fortalecia o Estado bizantino e via nesse processo a fundamentação para
redesenhar as ações expansionistas. Uma conexão em suas ações permitiria
a manutenção por meio militar de novas fronteiras no Oeste, daí as ações
tributárias para a arrecadação de fundos, com os impostos encarecidos. Essa
estratégia gerou questionamento e revolta na sociedade bizantina, o que pro-
vocou um gradativo processo de enfraquecimento das estruturas do Império.
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Justiniano, Teodora e a revolta de Nika


A obra História Secreta ou Anékdota, de Procópio de Cesareia, reconhecido
historiador do Império Bizantino, trata-se de uma das fontes primárias mais
importantes para a compreensão de um evento histórico ocorrido durante o
governo de Justiniano.
No universo de costumes e práticas romanas, sempre existiram competi-
ções envolvendo ação e violência. Os jogos tinham uma função social para os
imperadores romanos: estabelecer o controle e o entretenimento das massas
para que elas pudessem “esquecer” a realidade. No caso do Império Bizantino,
as práticas esportivas eram realizadas no Hipódromo de Constantinopla, local
de encontro de grupos rivais. Contudo, a disputa esportiva tinha como reflexo
divergências sociais, políticas e religiosas.
As organizações esportivas rivais eram representadas pelas cores verde,
azul, branca e vermelha. Entretanto, Procópio de Cesareia menciona apenas
dois grupos: os azuis, que conforme alguns historiadores representavam
latifundiários e membros da Igreja Ortodoxa; e os verdes, que seriam altos
funcionários, oriundos de províncias orientais, artesãos, comerciários e adeptos
da doutrina monofisista. Veja:

Na tentativa de explicar a separação entre os Verdes e Azuis no Império


Bizantino muitos historiadores criaram teorias de diferenciação destas duas
facções. Manojlović aponta para a separação entre duas classes sociais: sendo
os aristocratas a cor azul, e o povo verde. Manojlović também aponta para
uma separação de cunho religioso, vinculado à própria questão social. Assim,
propõe que os Azuis seriam aristocratas, de Constantinopla, de províncias eu-
ropeias, da elite intelectual de províncias da Ásia ou do Egito, sendo ortodoxos,
enquanto os Verdes seriam o povo de classe mais baixa, dos fellahin do Egito,
dos estrangeiros da Síria ou Antioquia, sendo monofisitas (RUPPENTHAL
NETO, 2012, p. 82).

A revolta eclodiu a partir do questionamento sobre a vitória de uma rixa


específica. Nika era o nome do cavalo pela qual a população torcia e que havia
chegado ao fim do trajeto cabeça a cabeça com o cavalo do imperador. A
última palavra, obviamente, era do imperador: Justiniano declarou vencedor
o seu próprio cavalo.
As camadas sociais que compunham o público no hipódromo, enfurecidas,
rebelaram-se e iniciaram uma intensa manifestação contra o imperador. Além
disso, a revolta do público tinha outros motivos: a fome, a falta de moradia
e, acima de tudo, a cobrança de impostos, considerados altos pela grande
A formação do Império Bizantino 11

maioria da população. A massa enfurecida massacrou a guarda do Imperador.


Justiniano quase desistiu do trono, mas sua esposa, Teodora, o impediu. Por
fim, Justiniano encarregou o general Belisário de encerrar a revolta, o que
resultou em aproximadamente 30 mil mortos degolados.

Belisário (c. 505–65) foi um general bizantino. Tendo servido primeiro na guarda
pessoal de Justiniano, foi nomeado depois comandante do exército. Em 530, levou
a efeito uma vitoriosa campanha contra os persas e sufocou o motim conhecido
como Nike, em Constantinopla, em 532. Foi-lhe confiado o comando da expedição à
África vândala (533), quando tomou Cartago e aprisionou o rei vândalo. Em nome de
Justiniano, invadiu a Sicília e a Itália (535), combateu aí os ostrogodos e conquistou a
sua capital, Ravena, em 540. Na década de 560, caiu em desgraça e foi envolvido numa
conspiração contra o imperador, embora tenha sido reintegrado na plena posse de
suas honrarias antes de sua morte.

Modelo cultural e econômico


do Império Bizantino
São muitos os exemplos da cultura bizantina, mas sem dúvida o maior mo-
numento legado à posteridade é a atual Basílica de Santa Sofia, ou Hagia
Sophia, em Istambul. Trata-se de um dos maiores patrimônios da humanidade.
A sua edificação data de 532 d.C. A construção foi ordenada pelo imperador
Justiniano e envolveu a participação de mais de 10 mil operários. Foram
aproximadamente 15 anos de trabalho até a obra ser inaugurada.
Segundo Glancey (2001) e Cole (2011), com a construção da Basílica, o
imperador Justiniano promoveu uma revolução em termos de arquitetura de
igrejas. A Basílica foi idealizada por Antêmio de Trales e Isidoro de Mileto,
considerados muito mais cientistas do que grandes construtores. Os pesqui-
sadores ressaltam que ambos os projetistas foram os maiores responsáveis
por esse patrimônio da humanidade, mesclando dois estilos de construção:
de uma igreja com abóbada bifólia e de uma basílica com cúpula, alternando
o uso de tijolos e blocos de pedras.
Culturalmente, Constantinopla foi um polo de arte, cultura e educação. Ela
tinha uma posição geográfica privilegiada, na rota comercial entre a Ásia e
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a Europa, além de contar com rotas para os territórios europeus e africanos.


Assim, o intercâmbio cultural foi inevitável, o que fez com que o Império
Bizantino prosperasse não só economicamente, mas em erudição. Veja:

A importância dada pelos bizantinos à educação foi um fator que teve, eviden-
temente, uma forte influência no caráter erudito de determinada parte desta
civilização. Com efeito, “uma boa educação era o ideal de todo bizantino”
e a apaideusia — falta de cultura mental — era considerada um infortúnio
tremendo. Nesse sentido, para cultivar o gosto pelos estudos e para garantir
que parte dos cidadãos fosse culta, a educação no Império Bizantino era
bastante sistemática. Autores que trabalham com a questão da educação em
Bizâncio costumam alertar para as inúmeras lacunas existentes na documen-
tação sobre este assunto. Contudo, é possível ter uma boa noção dos métodos
aplicados e dos conteúdos estudados pelas crianças e pelos jovens bizantinos.
Estes métodos iniciavam-se com a educação dada pelas mães no ambiente
familiar a partir da exposição oral de aventuras fantásticas da literatura e
narrativas das Sagradas Escrituras. Devemos salientar que a educação já
sob a tutela materna era direcionada majoritariamente aos filhos homens
(KRACHENSKI , 2010, p. 7).

Segundo Krachenski (2010), os bizantinos eram focados na cultura oral,


pois era uma exigência social que os membros da sociedade soubessem se
expressar com clareza e objetividade. Com isso, uma herança grega se fez
presente no repertório de ensino, a retórica. Eis aqui um fato interessante e
com conexão direta com outras esferas sociais da realidade do Império: os
estudantes bizantinos, independentemente do ofício, após estudarem gra-
mática, eram imersos no estudo da oratória, aprendendo a expressar os seus
pensamentos com elegância e persuasão.
Talvez o foco na educação explique as habilidades com o comércio, pois a
prática comercial contribuiu para que o Império Bizantino produzisse uma vida
urbana agitada e efervescente. Segundo os pesquisadores, em Constantinopla,
circulavam cerca de 1 milhão de pessoas. O que se sabe é que grande parte da
população era composta de trabalhadores de camadas populares e camadas
que atuavam no campo. As manufaturas absorviam boa parte da mão de obra
qualificada, ao passo que as outras camadas sociais, como servos e alguns
escravos, eram mão de obra utilizada nos templos, minas e edificações.
Segundo Runciman (1961), graças à burocratização implementada
pelo governo de Justiniano, os funcionários estatais controlavam todas
as atividades socioeconômicas, com foco na supervisão da excelência,
da qualidade e da quantidade da produção e dos serviços prestados.
A formação do Império Bizantino 13

A estrutura econômica bizantina girava em torno da pesca, pela proxi-


midade do mar, e da produção de armas, por meio da metalurgia e da
tecelagem. Considere ainda o seguinte:

No período da Antiguidade Tardia, o mundo rural era a grande fonte de re-


cursos. O imperador era o principal proprietário, seguido pela Igreja e pelos
latifundiários (mas no Egito, por exemplo, só havia 10% de grandes proprie-
tários, em contraste com os muitos cidadãos que dispunham de pequenas
courelas); a escravatura rural entrou em recuo e não parece ter havido mudanças
significativas, nem nos utensílios, nem nos métodos agrícolas. As principais
culturas eram o trigo, a vinha e a oliveira (uma trilogia muito mediterrânica),
mas com rendimentos muito variáveis, consoante as regiões; por exemplo,
nas montanhas dos Bálcãs produzia-se muito menos do que no vale do Egito.
Esta agricultura produzia excedentes que alimentavam as grandes cidades,
como Constantinopla, com meio milhão de habitantes no seu apogeu (ainda
assim, muito abaixo de Bagdade, que tinha o dobro no século X), mas também
havia lugar à criação de animais, sobretudo como forma de valorização das
regiões montanhosas, florestais ou semiáridas, e até de cavalos de guerra (p.
ex., nas coudelarias da Frígia). As mulas e os camelos eram utilizados para
o transporte, os bovinos para a tração, o leite e a carne, enquanto as cabras,
os carneiros e os porcos serviam para o consumo alimentar e para as artes
têxteis. Havia algumas especializações, como os cereais ou o azeite, mas não
existia monocultura, e algumas regiões, como o norte da Síria, alcançaram
níveis elevados de prosperidade (MONTEIRO, 2016, p. 122).

Segundo Franco Jr. e Andrade Filho (1985), o Império Bizantino teve êxito
por meio do comércio com a Arábia, a China, a Pérsia e a Índia. As rotas
comerciais eram por via terrestre e marítima, com comércio de especiarias,
metais preciosos lapidados em joias, seda, imagens sacras, marfim, papiros,
entre outras mercadorias. Para os imperadores romanos, desde o princípio do
Império, a seda sempre foi um tecido extremamente valioso e cobiçado, porém
o seu custo era altíssimo, pois ela era originária da China e o transporte era
inflacionado. Entretanto, na época de Justiniano, Constantinopla começou a
produzir seda. Algumas fontes apontam que missionários cristãos ou então
comerciantes levaram as larvas do bicho-da-seda para a cidade.
Assim, a produção da seda foi exclusiva do Império do Oriente. Com a
burocratização implementada por Justiniano, a produção e o comércio foram
controlados por meio de éditos e leis, tornando-se fontes de riqueza do Império
Bizantino. Além disso, como você viu, o posto comercial no qual Constanti-
nopla se situava era um grande privilégio, pois por ela tinham de passar todos
os comerciantes que transitavam entre Oriente e Ocidente.
14 A formação do Império Bizantino

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Leituras recomendadas
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