Você está na página 1de 11

1

CENTRO UNIVERSITÁRIO ÍTALO-BRASILEIRO

Curso de Licenciatura em História

Disciplina: Teoria da História e Historiografia

Unidade 2) Metodologia da História – erros a evitar:


anacronismos, anatopismos, reducionismos, distorções
intencionais. Cuidados a tomar com diversos tipos de fontes.

Prof. Dr. Armando Alexandre dos Santos

Tópico A - Metodologia da História – alguns erros metodológicos a evitar

Como vimos na unidade anterior, História é, sobretudo, memória; e a memória


dos indivíduos é algo variável, dependente dos juízos de valor e das paixões de cada
pessoa.

Quando um historiador examina documentos deixados por pessoas que viveram


no passado, igualmente atuam os seus juízos de valor e as suas paixões. De modo
consciente ou subconsciente, ele selecionará as informações por um processo similar ao
da memória individual, registrando o que lhe agrada muito ou lhe causa grande repulsa,
e tendendo a desprezar o que lhe parece de menos importância. O texto historiográfico
que ele produzir refletirá sua visão seletiva e subjetiva, a propósito dos documentos
deixados, de modo também subjetivo, pelos que testemunharam o fato.

Quem ler a obra desse historiador procederá exatamente do mesmo modo:


selecionará, de acordo com critérios valorativos próprios, as informações contidas no
texto.

Em cada etapa dessa série, pois, vai-se afastando cada vez mais da realidade
objetiva de como os fatos realmente se passaram. Daí a impossibilidade prática de uma
história humana que exprima uma ―verdade absolutamente verdadeira‖. Toda história é
2

aproximativa. O historiador sério procura seriamente atingir a verdade, sem ter a


pretensão de atingi-la.

Daí também o caráter de incerteza e variabilidade que a História, uma ciência


profundamente humana, que não permite o mesmo tipo de certeza de uma ciência exata.

Uma história escrita por homens nunca exprimirá a verdade total. Atingir a
verdade absoluta, na escrita da História, pertence ao mundo das utopias. Mas, mesmo
tendo a humildade de reconhecer que jamais atingiremos a utopia da verdade absoluta,
devemos nos esforçar ao máximo para chegar o mais possível perto dessa meta utópica.
Devemos nos esforçar ao máximo para sermos objetivos, para não nos deixarmos
influenciar por preconceitos, reducionismos, subjetivismos, paralogismos, apriorismos,
teleologismos etc.

Veremos brevemente, neste tópico, esses ―pecados‖ em que pode incorrer o


historiador, deixando para tratar no tópico seguinte aquele do anacronismo, que é
considerado o ―pecado mortal‖ do historiador, e do anatopismo, que é, como veremos,
uma como que derivação ou variante do anacronismo.

Preconceito

A palavra preconceito assumiu, na linguagem contemporânea, um sentido


emocionalmente carregado, de uma rejeição injustificada, apriorística e apaixonada de
alguma atitude ou de algum costume com que não se concorda. Em História, porém, a
palavra tem um sentido bem mais amplo e não chega necessariamente aos extremos do
preconceito da linguagem corrente.

Em História, preconceito é alguma ideia ou informação preexistente que nos


leva, ao estudar algum assunto, a interpretá-lo de um modo condicionado ao que
anteriormente se conhece sobre o assunto, ou a algum estereótipo que tenhamos sobre
ele. A consequência é que, ao analisarmos algum documento, ou alguma situação fática,
somos levados a inconscientemente a nos afastar da indispensável imparcialidade. Isso
se dá, por exemplo, no historiador que estude uma guerra na qual seu país participou. Se
ele vai estudar a situação político-diplomática partindo do pressuposto de que seu país
foi agredido e o adversário foi injusto agressor, é claro que ele, insensivelmente, terá
3

dificuldade para ―se colocar no papel do outro‖, para ver ―o outro lado‖ da questão. Sua
análise pode se ressentir desse pressuposto; ele julgará estar sendo isento e objetivo,
mas talvez não seja bem assim. ―Audiatur altera pars‖ (seja ouvido o outro lado), se diz
em Direito. Também em História o conselho é válido.

Reducionismo

Tendência a reduzir, na avaliação das fontes, na valoração dos personagens que


fazem a História, na consideração dos fatores que atuam na História, em decorrência de
um hábito mental, de uma criteriologia ou de uma ideologia. Pode haver reducionismos
de vários tipos. Um historiador materialista, por exemplo, será tendente a subvalorizar,
na sua análise, os aspectos culturais, espirituais, religiosos, artísticos. Ou a interpretar
esses aspectos como meras consequências de fatores puramente materiais.

Uma forma muito perigosa de reducionismo é a do especialista que, por força do


hábito, foca sua atenção especificamente nos aspectos de sua especialização.

Um especialista pode ser insensivelmente induzido a analisar todos os


acontecimentos – e também todos os personagens do passado – do ponto de vista de sua
área específica de conhecimento, esquecendo que a realidade dos fatos, e sobretudo a
realidade das pessoas é muito mais rica e variável do que os esquemas teóricos de cada
disciplina podem fazer supor. E, nunca nos esqueçamos, o objeto da História é o
homem, no sentido pleno do termo, e não um homem analisado de um só ponto de vista.
Nesse sentido, é de grande interesse a lição de Marc Bloch:

A ciência decompõe o real apenas a fim de melhor observá-lo, graças a um


jogo de fogos cruzados cujos raios constantemente se combinam e
interpenetram. O perigo começa quando cada projetor pretende ver tudo
sozinho; quando cada canto do saber é tomado por uma pátria.
Mais uma vez, contudo, desconfiemos de postular, entre as ciências da
natureza e uma ciência dos homens, não sei que paralelismo falsamente
geométrico. Na vista que tenho de minha janela, cada cientista pega o seu
quinhão, sem muito se ocupar do conjunto. O físico explica o azul do céu, o
químico a água do riacho, o botânico a relva. O cuidado de recompor a
paisagem, tal como a percebo e me comove, eles deixam para a arte, se o
pintor ou o poeta houverem por bem dela se encarregar. É que a paisagem,
como unidade, existe apenas em minha consciência e o que é próprio do
método científico — como essas formas do saber o praticam e, pelo sucesso
que fazem, o justificam — é abandonar deliberadamente o contemplador para
conhecer apenas os objetos contemplados. Os laços que nosso espírito tece
entre as coisas lhes parecem arbitrários; elas os rompem, preconcebidamente,
4

para restabelecer uma diversidade a seu ver mais autêntica. Logo, entretanto,
o mundo orgânico estará formulando problemas mais delicados para seus
analistas. O biólogo pode efetivamente, por maior comodidade, estudar à
parte a respiração, a digestão, as funções motoras; não ignora que, acima
disso tudo, há o indivíduo do qual é preciso dar conta. Mas as dificuldades da
história são também de uma outra essência. Pois, em última instância, ela tem
como matéria precisamente consciências humanas. As relações estabelecidas
através destas, as contaminações, até mesmo as confusões da qual são terreno
constituem, a seus olhos, a própria realidade.
Ora, homo religiosus, homo oeconomicus, homo politicus, toda essa ladainha
de homens em us, cuja lista poderíamos estender à vontade, evitemos tomá-
los por outra coisa do que na verdade são: fantasmas cômodos, com a
condição de não se tornarem um estorvo. O único ser de carne e osso é o
homem, sem mais, que reúne ao mesmo tempo tudo isso. (BLOCH, Marc.
Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p. 131-132)

Subjetivismo
Tendência para ver, interpretar e julgar os fatos e as pessoas num ângulo
estritamente pessoal e menosprezando as realidades objetivas. O que importa não é a
realidade como todos a veem, mas a visão da realidade como o próprio sujeito a
concebe. O subjetivista ―torce‖ ou distorce os fatos reais segundo a sua ótica pessoal, ou
segundo a projeção de suas emoções, de seus sentimentos ou suas ideias.

Nas Ciências Sociais em geral, e na História em particular, o subjetivismo tende


a sobrevalorizar, e até a tomar como critério único, os aspectos pessoais dos temas
estudados, imaginando ou pressupondo as intenções e as motivações das pessoas; nisso,
insensivelmente projeta para os outros seus próprios sentimentos internos. Historiadores
tendentes ao subjetivismo procuram em tudo destacar as intenções dos personagens
analisados, supondo em todos os agentes históricos uma consciência clara de suas
intenções, de seus interesses e de seus anseios. Muitas vezes, esses historiadores
projetam no passado interesses e desejos que são deles próprios, ou do tempo em que
vivem, imaginando que tais interesses e desejos sejam universais e compartilhados por
todos os homens de todos os tempos. Mais adiante, quando estudarmos o anacronismo,
outro erro metodológico no qual pode incorrer o historiador, veremos alguns exemplos
disso.

Na verdade, é sempre temerário querer atribuir uma intenção a alguém. O


interior das consciências é algo indevassável. Por isso, nos meios eclesiásticos se utiliza
o dito latino ―de internis nec Ecclesia‖ (sobre o interior das pessoas, nem a Igreja se
pronuncia). E em Filosofia se estuda, entre os sofismas, o chamado ―julgamento de
5

intenção‖, que consiste em condenar alguém não por alguma coisa que realmente fez,
ou por algum ato externo que praticou e que pode ser objetivamente comprovado, mas
por uma intenção que se atribui a esse alguém. Como a intenção é algo não
comprovável, e uma condenação não pode ser feita a partir de algo provado, o
julgamento de intenção não tem nenhuma validade. Assim, não se pode dizer que
determinada pessoa é hipócrita porque faz muita caridade com a intenção de ser
admirada e louvada.

Muito cuidado deve tomar o historiador para não atribuir intenções aos
personagens históricos. Por exemplo, dizer que o Rei Clóvis se converteu e aceitou o
batismo porque queria o apoio político dos cristãos é, pelo menos, precipitado e leviano,
a menos que essa intenção do rei seja comprovada por algum documento de época.

Paralogismo da falsa causalidade

Paralogismo é palavra de origem grega e significa raciocínio falso, raciocínio


desviado, que tem aparência de verdadeiro, mas conduz a uma conclusão errada. O
paralogismo pode ser involuntário, quando a pessoa que o comete não a má intenção de
errar ou enganar, e pode ser intencional; neste último caso, também se designa como
sofisma, falácia ou chicana.

O paralogismo da falsa causalidade acontece quando estabelecemos uma relação


de causa e efeito entre dois elementos sem que essa relação exista na realidade.

Uma forma muito frequente desse paralogismo é a de atribuir a condição de


causa de um fato algo que apenas é anterior a esse fato. Em latim designa-se essa forma
de paralogismo com a expressão ―post hoc ergo propter hoc” (depois disso, logo, por
causa disso). Nem sempre um acontecimento anterior é causa do acontecimento
posterior. Podem ambos ter razões completamente diferentes; como também podem os
dois ter uma única causa, anterior a ambos. Um exemplo clássico: o Pentateuco
hebraico, com o relato do dilúvio feito no livro do Gênesis, é comprovadamente
posterior ao relato mítico babilônico do Gilgamesh, encontrado por arqueólogos no
século XIX. Mas daí não se pode inferir, como frequentemente ocorre, que o Pentateuco
tenha plagiado uma tradição mesopotâmica, ou que pelo menos se tenha baseado nela.
Sem dúvida, a proximidade geográfica autoriza a ideia de que houve algum intercãmbio
6

cultural entre ambas as culturas, a mesopotâmica e a hebraica, mas existem versões


míticas de um grande dilúvio entre povos de todo o planeta, muitos dos quais sem a
menor relação possível com os primitivos habitantes da Mesopotâmia. O mais razoável

Outra forma desse paralogismo é designado pela fórmula latina ―non causa pro
causa” (tomar como causa aquilo que não é causa). Isso acontece quando se toma
como causa alguma circunstância que de fato não é causa, ou quando se toma como
causa única ou causa principal de algum fato uma circunstância acidental que apenas o
influencia e, no máximo, pode ser considerada uma concausa de menor importância.

Por exemplo, alguém que analise de modo superficial os índices econômicos do


desenvolvimento norte-americano comparativamente com os brasileiros, pode ser
levado a concluir que o Brasil seria hoje tão rico quanto os Estados Unidos se tivesse
sido colonizado por protestantes ingleses, e não por portugueses católicos. Seria uma
conclusão precipitada e incorreta, porque cometeria o erro metodológico básico de
atribuir, de modo simplificado, a um fator étnico, ou a um fator religioso, um
desenvolvimento diferenciado que, na realidade, dependeu de um conjunto muito amplo
de outros fatores.

Tendência ao judicialismo

Tendência para julgar os personagens do passado, sem procurar entendê-los em


seu tempo.

É claro que o historiador tem suas ideias, suas convicções, seus princípios éticos
e morais, e que é influenciado pelo senso comum e pela escala de valores própria do
tempo em que vive. Nada mais normal. O historiador pode, sem dúvida, formular
julgamentos sobre personagens históricos, mas antes de julgá-los deve procurar
entendê-los, como pessoas que compartilhavam ideias, critérios e modos de agir do
tempo em que viveram. O que ele não pode é deixar suas paixões influenciarem seus
julgamentos históricos. Mais uma vez, ouçamos o ensinamento de Marc Bloch:

Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: compreender.


Não digamos que o historiador é alheio às paixões; ao menos, ele tem esta.
Palavra, não dissimulemos, carregada de dificuldades, mas também de
esperanças. Palavra, sobretudo, carregada de benevolência. Até na ação,
7

julgamos um pouco demais. É cômodo gritar "à forca!". Jamais


compreendemos o bastante. Quem difere de nós — estrangeiro, adversário
político — passa, quase necessariamente, por mau. Inclusive, para travar as
inevitáveis lutas, um pouco mais de compreensão das almas seria necessário;
com mais razão ainda para evitá-las, enquanto ainda há tempo. A história,
com a condição de ela própria renunciar a seus falsos ares de arcanjo, deve
nos ajudar a curar esse defeito. Ela é uma vasta experiência de variedades
humanas, um longo encontro dos homens. A vida, como a ciência, tem tudo a
ganhar se esse encontro for fraternal. (BLOCH, Marc. Apologia da História
ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2001, p. 128)

Apriorismo

É a tendência para iniciar os estudos e as pesquisas de um tema partindo de um


pressuposto teórico que se tem como certo e que insensivelmente, se procura na
pesquisa demonstrar. A investigação histórica deixa, assim, de procurar saber o que
aconteceu, mas passa a ser a busca de confirmações da teoria que, previamente, já se
tinha como verdadeira. Um pesquisador assim mal encaminhado perde o senso da
objetividade; ele tende a descartar ou desprezar informações que vão de encontro a suas
convicções, e tende interpretar meras probabilidades como certezas, e meros indícios
como provas daquilo que se quer demonstrar. Esse erro básico, contrário a qualquer
metodologia científica, é muito comum.

Um acontecimento da História do Brasil é bem exemplo característico disso.

Em 1897 se concluiu tragicamente, com um banho de sangue, a Guerra de


Canudos, a povoação sertaneja que Antônio Conselheiro conseguira transformar numa
das maiores do Estado da Bahia. Segundo algumas estimativas, ainda não confirmadas,
somente Salvador seria mais populosa do que Canudos, no momento de sua maior
expansão.

Numerosos estudos foram publicados, tentando interpretar a ―realidade‖ de


Canudos de acordo com variadas tendências sociológicas e ideológicas, desde Euclides
da Cunha, que se colocava numa ótica positivista, até mais proximamente interpretações
marxistas, que preferem ver em Canudos uma ―resistência ao latifúndio‖. Há, ainda,
interpretações weberianas, culturalistas de vários tipos etc. Sistematicamente, todos os
estudiosos do tema iniciavam suas pesquisas partindo de pressupostos apriorísticos e
eram levados a interpretar o ―fenômeno Canudos‖ de acordo com suas teorias.

O primeiro (e praticamente o único) pesquisador universitário brasileiro que


ousou se afastar da tendência geral de analisar Canudos a partir dos sucessivos modelos
8

teóricos e ideológicos da moda, e a usar como fonte primária, não obras de literatura ou
artigos de jornal, foi o Prof. José Calasans Brandão da Silva (1915-2001), da
Universidade Federal da Bahia. Optando pela História Oral, ele preferiu realizar
pesquisa de campo direta; entrevistou nos arredores do local do conflito, na década de
1950, muitas dezenas de pessoas que haviam participado da luta ou tido contato direto
com combatentes. Alguns dos depoentes não haviam residido na Canudos de Antônio
Conselheiro, mas lá haviam estado numerosas vezes, de modo que conheciam o dia-a-
dia e o modus vivendi dos canudenses. Entre o fim da guerra e a iniciativa de Calazans,
dezenas de obras haviam sido publicadas sobre Canudos, com análises e interpretações
das mais variadas, e a nenhum autor havia ocorrido a ideia óbvia de entrevistar as
próprias testemunhas presenciais do conflito. Clichês e ideias formadas sobre Canudos
caem redondamente por terra a partir desses depoimentos.

Com base nos depoimentos gravados e transcritos, Calasans procurou entender e


descrever a realidade psico-sociológica de Canudos, que ele pôde reconstituir com
paciência e método científico.1 A verdadeira Canudos, revelada por Calasans, é bem
diferente do que supunham os positivistas da passagem do século XIX para o XX, entre
os quais se inseriu Euclides da Cunha. E também não foi uma sociedade de tipo
comunitário ou socialista, como ainda hoje imaginam historiadores influenciados pela
escola marxista.

Por exemplo, não é verdade que em todo o arraial houvesse comunidade de bens.
Sem dúvida, havia um bom número de canudenses que viviam em regime de pobreza
voluntária, à maneira das ordens religiosas, mas na sua grande maioria os moradores da
cidadela tinham bens particulares, de modo que coexistiam ricos, pobres e integrantes
de uma espécie de ―classe média‖. Havia casas de melhor nível ao lado de casebres,
havia livre-iniciativa, havia comerciantes que concorriam entre si, e até um
estabelecimento que, à maneira dos bancos, emprestava dinheiro a juros.

Outra ideia que caiu por terra foi a do domínio total que Antônio Conselheiro
teria exercido em Canudos. Os depoimentos mostram que o Conselheiro era respeitado
como fundador e benfeitor de Canudos, mas havia moradores que o criticavam, que não
gostavam dele e até falavam mal publicamente das suas rezas e pregações. A suposta

1
VILLA, Marco Antonio. Calasans, um depoimento para a História. Salvador: Gráfica da UNEB, 1998.
9

crença de que em Canudos se acreditava no retorno do Rei D. Sebastião, veiculada pela


imprensa republicana da época e repetida por Euclides, também não tem o menor
embasamento.

Pseudo bom senso

Muitas vezes, um historiador, colocado diante de duas afirmações opostas, pode


ser tentado a, sem maior análise, preferir uma sentença intermediária como sendo a mais
provável. Especialmente quando se trata de quantificar, por exemplo o número de
mortos numa batalha, há discrepâncias entre as fontes, a dos vencedores e a dos
vencidos. Na dificuldade de apurar a realidade tirar a média parece ser uma solução de
bom senso, generosa e simpática por evitar os extremismos... mas não é
necessariamente a correta. A esse respeito, ironiza Marc Bloch:

O mais universal dos postulados lógicos; o princípio da contradição proíbe


impiedosamente que um acontecimento possa ser e não ser ao mesmo tempo.
Encontramos, mundo afora, eruditos cuja generosidade não descansa até
descobrir, entre afirmações antagônicas, um meio-termo: isso é imitar o
pirralho que, interrogado sobre o quadrado de 2, como um de seus vizinhos
lhe soprasse "4" e outro "8", acreditou acertar respondendo "6". (BLOCH,
Marc. Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Tradução de André
Telles. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p. 110)

Teleologismo

Teleologia é palavra de origem grega que significa estudo dos fins, ou dos
objetivos finais. É muito usada em Filosofia. Na História, denomina-se teleologismo a
tendência errada de analisar os processos históricos com a partir do conhecimento de
suas conclusões, interpretando os personagens e os fatos do passado em função do que
aconteceu muito depois. Nessa interpretação defeituosa, muitas vezes se é levado a
supor, em personagens do passado, uma visão dos acontecimentos que eles realmente
não tinham nem podiam ter, por falta da perspectiva histórica que somente muito depois
se constituiu. Esse erro metodológico é muito frequente e passa quase sempre
despercebido... o que aumenta o risco de nele cairmos. Vejamos dois exemplos.
10

Portugal iniciou a sua expansão ultramarina em 1415, com a conquista de Ceuta,


no Norte do continente africano. Desenvolveu a seguir, durante décadas, um lento e
metódico trabalho de prospecção do litoral africano e das correntes marítimas e de
ventos e correntes marítimas do Atlântico. Só muitos anos depois, em 1497-99 Vasco da
Gama faria a sua famosa viagem até a Índia. A partir daí, seguiu-se um período em que
o Reino de Portugal se tornou uma potência das mais importantes e mais ricas da
Europa com uma área de irradiação verdadeiramente global. Na nossa perspectiva atual,
vemos a expansão lusitana como um processo único, desde 1415 até a efetiva chegada
na Índia. Mas essa é uma visão teleológica e falseada do processo. Na verdade, a ideia
de chegar à Índia não estava presente desde o início; só depois da queda de
Constantinopla, tomada pelos turcos em 1453, é que pouco a pouco se foi constituindo
uma conjuntura histórica em que foi possível conceber a meta de atingir a Índia,
inicialmente como objetivo remoto, depois, já no reinado de D. João II (1481-95) como
mais próximo e francamente atingível. Durante décadas, a exploração da costa africana
se deu em função da luta contra os maometanos e na esperança de se atingir um reino
africano cristão, governado pelo Preste João, um monarca cristão do qual se esperava
substancial ajuda na Cruzada europeia contra o Islã.

Também historiadores brasileiros, ao analisarem o longo período chamado


Colonial, são levados muitas vezes a supor que, desde o início já havia uma espécie de
percepção de que, no futuro, o Brasil seria uma nação unida e independente de Portugal.
Essa também é uma visão teleológica e falseada. Várias revoltas locais ocorreram, ao
longo dos séculos XVII e XVIII, mas somente no final deste último, com a
Inconfidência Mineira, a perspectiva de uma separação política em relação a Portugal
ganhou corpo e real importância. As demais insurreições ou manifestações chamadas
―nativistas‖ foram, na verdade, valorizadas teleologicamente pela historiografia depois
da Independência, num presumível esforço para valorizar a alteridade nacional
brasileira.

* * *

Vimos, neste tópico, alguns dos principais ―pecados‖ ou erros metodológicos em


que pode incorrer o historiador, e veremos no próximo o anacronismo e o anatopismo.
Desde já, porém, fique claro que todos esses erros não são excludentes e podem em
11

alguma medida se fundir e se confundir na obra interpretativa de um historiador. Em


outras palavras, ele pode ao mesmo tempo incorrer em dois ou mais desses erros.

Dica do professor:

O livro Apologia da História ou O ofício do historiador, de Marc Bloch, é obra


fundamental para todo aluno de uma licenciatura em História. Mesmo historiadores
experientes, com muitos anos de experiência, sempre aprendem coisas novas quando
releem esse clássico. É de fácil acesso, por meio do portal da Universidade de São
Paulo, que disponibiliza em PDF seu texto integral em português, na excelente tradução
de André Telles, com prefácio de Jacques LeGoff e apresentação à edição brasileira de
Lilia Moritz Scwarcz (JorgeZahar Editor, Rio de Janeiro, 2001):

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1646938/mod_resource/content/1/Texto%201%20-
%20Apologia%20da%20Hist%C3%B3ria%20ou%20o%20Of%C3%ADcio%20do%20Historia
dor.pdf

Você também pode gostar