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A teoria vivida
e outros ensaios de antropologia
Sumário
Introdução
Notas
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Introdução
As livrarias norte-americanas
A antropologia feita, hoje, nos Estados Unidos domina a cena internacional
em quantidade e qualidade, servindo como indicador e termômetro para os
antropólogos de outras latitudes. Barth até considera que o diálogo com essa
vertente se tornou inevitável para todos nós.3 Em suas manifestações
variadas, a antropologia feita nos Estados Unidos parece ocupar atualmente
um espaço socialmente equivalente àquele da Inglaterra na primeira metade
do século, ou da França no período áureo do estruturalismo. No entanto,
inserida em uma ambiência em que a idéia de fragmentação se transforma em
valor, em que o bombardeio às disciplinas tornou-se comum, nos Estados
Unidos a antropologia é inevitavelmente alvo de críticas e ameaças de
dissolução.
Curiosamente, esses indícios de que a antropologia foi um fenômeno do
século XX ou, igualmente desolador, de que ela se tornou normal science,
apenas reproduzindo velhos modelos, não se confirmam no cotidiano dos
departamentos de antropologia.c Ali, a existência de múltiplas vertentes
continua sendo uma das características mais marcantes na formação de novos
especialistas, não tendo sofrido mudanças muito drásticas. Ainda assim,
observam-se algumas alterações: primeiro, modificaram-se os campos
vizinhos da antropologia (como opositores ou aliados) – em vez da
arqueologia, biologia, sociologia ou lingüística de décadas passadas, quando
saem de seus departamentos, os antropólogos hoje podem ser encontrados
nos de história da ciência, crítica literária ou filosofia. Segundo, um espaço
extra é reservado nos seminários de formação teórica a um tipo de leitura que
familiariza o estudante com os recentes cultural studies. Utilizo o termo
magia para indicar o poder e o perigo associados a essas novidades, primeiro
introduzidas, na década de 1970, pelos programas de history of
consciousness, nos anos 1980 pela abordagem dos cultural studies e, nos
1990, pelos programas de science, technology and society.d A polêmica que
envolve essas áreas, mesmo nos Estados Unidos, não impede que essas
tendências sejam incorporadas na formação de novos especialistas. (Mas,
talvez, por estimular demais, os professores mais zelosos supervisionam a
absorção dessa literatura, incluindo-a no final dos cursos obrigatórios, depois
de lidos os clássicos.)
Se as universidades refletem algumas mudanças, o locus etnográfico
privilegiado para apreciá-las não são nem os departamentos, nem os
programas de vanguarda, mas as livrarias. Nos Estados Unidos, as livrarias
acadêmicas são aqueles lugares especiais que, existindo entre a avidez do
conhecimento e o poder do mercado, devem sua sobrevivência ao espírito de
circulação e reprodução que também rege o mundo acadêmico. Boas livrarias
necessitam manter um estoque clássico, mas, especialmente, precisam exibir
novidades e antecipar tendências.e
Atualmente, circular por uma boa livraria acadêmica norte-americana
reflete, ainda, o estado de liminaridade entre dois séculos. Se o século XIX
terminou em 1914 na Europa (E. Weber 1976), nos Estados Unidos vários
projetos anteciparam a chegada do XXI. Alguns começaram mais cedo, como
o anuário Late Editions, mas dicionários e enciclopédias já faziam o balanço
dos últimos cem anos desde os anos 1990.4 Tempo e espaço mudaram nas
livrarias, e a redistribuição das estantes seguiu a reorganização das áreas de
conhecimento.
A antropologia, que nunca ocupou lugar de destaque, perdendo sempre
para a ciência política, economia e sociologia, agora parece se esconder em
recantos ainda menos visíveis. A primeira impressão é que os livros estão
fora de lugar, migrados para outras áreas. O caminho que levou os textos de
antropologia para as estantes de cultural and critical theory, e destas para as
de filosofia e ciência, foi bastante rápido.5 Nesse processo há outras
surpresas. Publicações de um mesmo autor podem ser classificadas em
diferentes categorias: por exemplo, Homo Hierarchicus, de Louis Dumont,
fica em Ásia/Pacífico, ao passo que German Ideology, do mesmo autor, em
filosofia. As chamadas antidisciplinas são indexadas pela presença do termo
studies (media studies, feminist studies, science and technology studies,
cultural studies), e transformaram-se em áreas de ponta.f Enquanto isso,
filosofia e ciência continuam a dividir o prestígio maior, mas hoje o termo
ciência compreende, ao mesmo tempo, conhecimento, crença e crítica (além
de etnografia, como veremos).
Nesse contexto fragmentado, distinções político-geográficas sobrevivem
com vigor renovado. Esse tipo de definição, em muitos casos, supera a
classificação por áreas de conhecimento. Assim, monografias antropológicas
como Writing Women’s Worlds: Bedouin Stories (de Lila Abu-Lughod),
encontram-se em Oriente Médio; Debating Muslims (de Michael Fischer e
Medhi Abedi), em Estudos Islâmicos, e, em América Latina, um lugar visível
ainda é reservado para Death without Weeping (de Nancy Scheper-Hughes).g
Finalmente, para o visitante ocasional, a surpresa maior: disciplinas
tradicionais foram renomeadas ou desapareceram – lingüística, por exemplo,
é categoria inexistente hoje porque se transformou, na última década, em
cognitive science.
Nesse processo de deslocamento e fragmentação, nas livrarias a
antropologia tornou-se, ela própria, um fenômeno pós-moderno, multi-sited,h
e não seria exagerado se temer uma vitória de Pirro: hoje transformada em
senso comum intelectual – como no caso da psicanálise, há algumas décadas
–, não teria a antropologia perdido sua especificidade social e cognitiva? Esse
parece ser um componente central da crise de identidade da antropologia nos
Estados Unidos.
Felizmente, a antropologia nunca esteve limitada aos antropólogos e tem
aparecido, como concepção e prática, sob o manto da filosofia, sociologia,
folclore, história, crítica literária, e até nos atuais cultural studies. Às vezes,
ela é parte das Humanidades; outras, das ciências sociais. Na Índia, os
antropólogos autodenominam-se sociólogos; no Brasil, a antropologia nasce
da sociologia.i No entanto, no processo de absorção seletiva das vogas
intelectuais, continuamos a conviver com as ansiedades dos centros
metropolitanos. Hoje, diante da decretada autodissolução, mas cientes da
relativa continuidade das ideologias e das instituições, a discussão sobre o
fim da antropologia talvez possa ser mais bem formulada por intermédio das
indagações: onde está a antropologia? Onde ela emerge? Onde estão os livros
de antropologia? O contexto norte-americano é extremamente sensível às
classificações acadêmicas e gerou um tipo de oposição reativa: não apenas
pós (como em pós-modernas), mas também multi (como em
multiculturalismo), anti (como em antidisciplinar) e pré (como em pré-
científico, pré-categórico, pré-psicológico, pré-sociológico).6 Mas, embora a
antropologia esteja sob suspeita, podemos nos tranqüilizar: Clifford Geertz
ainda se considera um antropólogo.j
Erra, contudo, quem pensa que Veena Das se une aos indianos em
oposição aos ocidentais. Além da aliança com os pós-modernos, é em
Wittgenstein que ela encontra inspiração para compreender que a dor é uma
queixa, e em Durkheim a lição de que a participação na dor serve como base
para uma comunidade moral.38 Entre as fontes da tradição antropológica
ocidental, de um lado, e a inspiração indiana, de outro, Veena Das faz uma
triangulação com antropólogos de outros espaços “periféricos” e aí, em um
esforço de pluralizar as narrativas da disciplina e eliminar seu eurocentrismo
dominante, uma aliança é proposta com a antropologia no Brasil. Desse
processo resulta uma multiplicação de trilhas intelectuais que oferecem a
oportunidade de expandir o diálogo empreendido com a Índia.39 (Em termos
de visibilidade, Veena Das foi homenageada no Vega Day Symposium de
1995, na Suécia.40)
Nos Estados Unidos, o quadro é bem diferente. Tomando Making PCR. A
Story of Biotechnology, de Paul Rabinow, como contraste, aí não se
encontram interlocutores próximos. Se, há uma década, os antropólogos
chamados pós-modernos podiam ser reconhecidos sociologicamente pelas
citações mútuas, o livro de Paul Rabinow indica que a época dos
experimentos acabou nessa vertente. A área revela-se consolidada por um
indício crítico: Rabinow não cita seus companheiros de aventura intelectual.
O autor reserva aos colegas um agradecimento e uma desculpa: os
agradecimentos estão no final do livro, e incluem os especialistas que vêm
realizando trabalhos na área; a desculpa é por não citar suas publicações na
bibliografia que vem a seguir. As trilhas, aqui, foram apagadas.
Trata-se da ciência nobre que, por sua promessa mágica, chama a atenção
do pesquisador. E, ao fazer a antropologia voltar para casa, a etnografia da
ciência torna-se a denúncia própria da pós-modernidade – embora realizando
o projeto durkheim/maussiano, afirma sua opção como política. No processo,
Rabinow reforça também mais um aspecto canônico da antropologia: o de
que, mesmo em casa, o etnólogo precisa aprender uma língua nova – a da
biologia molecular –, deixar-se socializar por um longo período e, como
sempre, questionar “quem tem a autoridade e a responsabilidade de
representar a experiência e o conhecimento”.45
Nesse contexto, é curioso que o livro não cite a etnografia sobre os físicos
de alta energia de Traweek (1988), considerado o primeiro experimento nessa
área nos Estados Unidos.46 Optando pelo diálogo particular com um autor
clássico distante, o livro abre e fecha com uma discussão de “A ciência como
vocação”: o estranhamento em casa talvez tenha necessitado da legitimação
que Weber dá ao empreendimento, com o bônus da peculiaridade que ele
concedeu aos Estados Unidos.47 A relação com Lévi-Strauss é igualmente
singular: não só por se tratar do único antropólogo citado, mas porque é na
bricolagem e no mouvement incident que a história da biotecnologia, que
Rabinow conta, se transforma, nas últimas páginas do livro, em “Evento”. As
revoluções científicas são, afinal, bricolagens: um jovem (e naturalmente
controvertido) cientista teve a idéia de fazer uma conexão entre suas
pesquisas com DNA e experimentos com fractais e programas de computação
– descobriu que o resultado era exponencial e a PCR tornou-se “aquela
pequena coisa simples” (that simple little thing) para o Prêmio Nobel Kary
Mullis.
O poder de fazer emergir eventos sem precedentes e verdadeiras
revoluções científicas faz parte do jogo social, mas essas revoluções precisam
de outros participantes que coloquem a invenção em uso. Essa constatação de
Paul Rabinow, contudo, não é reconhecida pelo autor na natureza da
disciplina que o informa; se há um antropólogo aqui, não existe, por
implicação, uma antropologia. Testemunhamos então, mais uma vez, o
movimento que, na biotecnologia como na antropologia, faz o conceito
retornar, a história contada se transformar em evento, e o conceito continuar a
produzir outros fenômenos por meio de novas contextualizações, gerando
mais invenções. (De forma reveladora, mas não surpreendente, nas livrarias
acadêmicas norte-americanas o livro de Rabinow não se encontra classificado
em antropologia, nem em cultural studies, mas nas prateleiras de Science.)
Assim, dados são construídos, fatos são feitos. É o próprio Geertz (1995,
p. 62) quem lembra a etimologia factum, factus, facere. Mas dados derivam e
partem de eventos empíricos. Quer os vejamos como eventos reconstruídos
no texto (Das), ou como histórias textuais (Rabinow), o que está realmente
em jogo é a determinação do melhor ângulo para a construção do que é dado
– de ce qui est donné. O fato de as variadas vertentes, modernas e pós-
modernas, nem sempre iluminarem as implicações teórico-políticas em jogo
não elimina sua inclusão.49 Histórias para uns, eventos e trilhas para outros,
isso tudo só reforça a presença de ângulos de inserção que são teóricos e
políticos nas alternativas em questão. Trata-se de um problema que diz
respeito ao que poderíamos denominar de “política da teoria”.50
Max Weber reconheceu, assim como Mauss, a necessidade de delimitar e
resolver problemas concretos contra o diletantismo enfeitado de filosofia
(Weber, 1992, p. 157). Nessa ocasião, Weber também focalizou os vínculos
entre o acaso, o evento e o fato histórico. Para ele, da mesma forma que para
os antropólogos hoje, reflexões puramente epistemológicas e metodológicas
nunca contribuíram para o desenvolvimento das ciências da cultura. (Esse é
mais um dos muitos ângulos de discussão que decorre das comparações
anteriores e que, embora fascinante, fica aqui apenas registrado.51)
De volta às livrarias
Hoje, quando um leitor percorre as prateleiras de antropologia nas livrarias
norteamericanas, ele se limita a encontrar literatura de estilo normal science.
Na seção de antropologia estão aqueles livros considerados clássicos e, das
publicações recentes, apenas aquelas que mantêm uma definição estável em
que a antropologia é sinônimo de exotismo. Assim, nessa seção se encontram
geralmente livros de autores canônicos, como Malinowski, Boas, Margaret
Mead, Evans-Pritchard, Radcliffe-Brown, Lévi-Strauss etc.; coletâneas
publicadas recentemente sobre temas consagrados (como ritual, religião,
etnografia etc.); monografias sobre sociedades indígenas – independente de
orientação teórica.
Em termos dos livros aqui examinados, onde está a antropologia
contemporânea? No que diz respeito a várias publicações novas, ela migrou
para a área dos studies. Ou, então, para filosofia, “ciência cognitiva” ou,
puramente, “ciência” – este último é o caso de Paul Rabinow. Mas os livros
novos também podem estar em seções especializadas em áreas geográfico-
culturais que, ao dividir o mundo (Ásia/Pacífico, América Latina, Oriente
Médio etc.), as englobam em uma determinada cosmologia política. Esses
vários lugares em que a produção antropológica encontra abrigo –
corroborando a característica “multilocalizada” (multi-sited) da disciplina –
remetem a uma questão central: o exotismo da antropologia. Hoje, ao
pretender negar essa associação, os estudos de inspiração antropológica
deixam de ser antropologia: se existem antropólogos, a disciplina perdeu o
fascínio. Mas é justamente nesse processo que, de forma paradoxal, o
exotismo se torna seu princípio estruturante.
A visita a livrarias confirma que a disciplina permanece tão associada ao
exotismo que até mesmo o mercado não consegue se atualizar. O caminho
parece seguir os seguintes passos: sendo a antropologia (ainda e sempre) o
estudo do “outro exótico”, depois dos anos 1990 esse tipo de abordagem não
é mais politicamente aceitável; volta-se então o olhar para o “nós”, isto é,
para a alteridade próxima. Nesse momento, o estudo deixa de ser
antropologia e transforma-se em cultural studies, estudos feministas, estudos
de área, ou outra categoria. O resultado é inevitável: se a antropologia foi o
estudo do “outro exótico” e está hoje em processo de extinção, é porque, em
termos de valores, ainda o é. Nesse processo, revela-se a força da visão
essencialista – e, portanto, a-histó-rica – no mundo intelectual norte-
americano atual: ou uma disciplina é “disciplinada”, isto é, sempre a mesma,
ou desaparece.
Seria, contudo, simplista a visão de um mundo acadêmico hegemônico e
isolado, que dita categorias às quais o restante do mundo precisa se adequar.
Aqui há um fato central: ele diz respeito à introdução maciça de autores não-
ocidentais nesse mundo intelectual. Os quatro livros analisados dão um claro
exemplo dessa mudança e, embora Veena Das e T.N. Madan não sejam tão
facilmente encontráveis nas livrarias, a antropologia hoje precisa admitir a
inclusão de autores que um dia foram nativos – até mesmo como elemento da
cruzada contra a definição pelo exotismo.52 A classificação de trabalhos de
autores étnicos, e que foram absorvidos pelo mercado, revela caminhos
característicos.
Tomo a idéia de intensificação emprestada de Louis Dumont. Para
elucidar o caráter híbrido das aculturações modernas, Dumont mostra como
as noções transplantadas se tornam intensificadas quando comparadas
àquelas de onde procedem – quer na vertente periférica, quer na própria
configuração dominante e hegemônica (Dumont, 1994, Capítulo 1). No caso
dos livros em questão, esse mecanismo ocorre por deslizamentos de
significado: mesmo com o subtítulo “Uma perspectiva antropológica da Índia
contemporânea”, Critical Events não pode ser aceito como antropologia nos
Estados Unidos. Um antropólogo nativo que estuda sua própria sociedade não
é um antropólogo, mas sociólogo. Por uma alteridade dupla (no caso, Índia &
antropologia), o livro desliza para a sociologia – um destino pouco favorável,
aliás, nesse momento em que as disciplinas são questionadas.53
Já no Brasil não ocorre a pulverização disciplinar que hoje marca a área
das ciências humanas nos Estados Unidos. Apesar da carga de simbolismo
exótico e colonial associada à antropologia, mecanismos internos de
aculturação domesticaram, aqui e na Índia, por exemplo – bem antes que nos
Estados Unidos –, a alteridade em casa. Poder-se-ia pensar, então, que,
cercada no “centro”, a antropologia prospera em algumas “periferias”, ou, se
não prospera, pelo menos provê uma abordagem positiva, crítica e
construtiva. Se o mundo moderno constitui-se de processos de aculturação,
aqui sim, este seria um de seus vários aspectos irônicos.
Mas outra situação relacionada ao exotismo, agora dos autores, diz
respeito aos trabalhos que, provenientes de áreas diversas e escritos sob
orientações teóricas múltiplas (e, muitas vezes, divergentes), são reunidos sob
o rótulo mágico de cultural studies. Bem definidos em suas comunidades
locais, os “estudos subalternos” (subaltern studies), a crítica literária
(marxista ou não) e, às vezes, até mesmo a antropologia, quando ancoram nos
Estados Unidos, perdem suas características distintivas. Mais uma vez, a
designação genérica de cultural studies evidencia a tendência atual de
fragmentar os campos intelectuais para depois reunir os diferentes como
análogos, eliminando, dessa forma, as particularidades (que são históricas e,
freqüentemente, nacionais) em nome de uma compartilhada pós-
modernidade.54 Hoje, como sempre, a questão da alteridade, tanto nas
livrarias quanto alhures, continua sem uma solução adequada.
a Ver Peirano (1995a, p. 146-155) para a distinção inicial entre histórias teóricas e historiografia, e
Capítulo 6 deste livro para uma reflexão sobre as diversas “histórias” da antropologia.
b Para a retomada da idéia de aculturação no contexto do mundo intelectual, ver Dumont (1994). Para a
idéia de situated knowledges vis-à-vis as disciplinas, ver Haraway (1991, Cap.9).
c Nesse contexto, conferir o debate “Anthropology and Science”, proposto pela American
Anthropological Association nos anos 1990, dele fazendo parte o excelente ensaio de Latour (1996).
d Estes últimos são designados pela sigla STS Programs.
e Mais ainda, livrarias precisam ter seus estoques sempre disponíveis, o que hoje se traduz em horários
ampliados e acesso eletrônico. O movimento da Harvard Book Store, principal livraria que serve à
comunidade de Harvard e Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês), pode ser
avaliado pelo horário de atendimento: das 9 da manhã às 11 da noite, de segunda a quinta; nas sextas e
sábados, o horário estende-se até a meia-noite; domingos, de 10 da manhã às 10 da noite. O acesso via
internet facilita as aquisições, mas a maioria dos compradores locais prefere freqüentar a livraria, que
promove vários eventos, como lançamentos de livros e sessões de música.
f Ver Marcus (1995b) para as chamadas arenas antidisciplinares.
g O livro de Scheper-Hughes continua nas prateleiras da estante sobre “Latin America”, junto a vários
outros sobre México e Cuba, em especial. Ver Sigaud (1995) para um exemplo da recepção de Scheper-
Hughes no Brasil.
h Novamente, a expressão é de George Marcus (1995b), e designa o tipo de etnografia em que os
objetos de estudo são descontínuos quando focalizados da perspectiva de um sistema mundial.
i Ver Peirano (1992a) para uma comparação entre as características da antropologia na Índia e no
Brasil.
j Cf. o subtítulo de Geertz (1995), “Two Countries, Four Decades, One Anthropologist”.
k As idéias apresentadas aqui são aprofundadas no próximo ensaio.
l Rabinow, 1996, p.175.
2. A antropologia at home1
O problema
Até recentemente, a idéia de uma antropologia em casa era um paradoxo e
uma contradição em termos. Durante o século XX, a distância entre os
etnólogos e aqueles que eles pesquisavam – um dia conhecidos como
“informantes” – foi progressivamente diminuindo: dos Trobriandeses para os
Azande, desses grupos para os Bororo via Kwakiutl, no meio do novecentos a
comunidade acadêmica havia descoberto que era a abordagem, e não o
objeto, que havia sempre definido a perspectiva antropológica. Lévi-Strauss
(1962) desempenhou um papel fundamental nessa mudança, ao imprimir um
sentido horizontal às práticas sociais e às crenças em qualquer latitude, com
Firth e Djamour (1956) e Schneider (1968) atestando sua validade no campo
dos estudos de parentesco. A percepção do elemento político presente na
procura pela alteridade radical levou antropólogos “indígenas” a entrar em
cena durante os anos 1970 (Fahim, 1982), e, nos 1980, Geertz (1983) pôde
proclamar que “somos todos nativos”. Mas restrições da geração mais velha
atestavam, mesmo naquele momento, que a mudança de além-mar em direção
aos corredores dos departamentos universitários não seria fácil; pesquisar em
casa era visto por muitos como uma tarefa difícil e melhor indicada para
pesquisadores que haviam ganhado experiência em outros contextos
(Dumont, 1986).
Desde o início, antropólogos originários de antigos sítios antropológicos
foram poupados da procura por alteridade, contanto que seu treinamento
tivesse sido feito com os mentores apropriados. Assim, Malinowski deu sua
aprovação para Hsiao-Tung Fei publicar sua monografia sobre os
camponeses chineses, enfatizando que, se o autoconhecimento era o mais
difícil de alcançar, então “uma antropologia de seu próprio povo era a mais
árdua, mas também a mais valiosa, conquista de um pesquisador de campo”.2
A aprovação que Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard deram ao estudo
realizado por Srinivas (1952) sobre os Coorgs da Índia também sugere que o
cânone podia ser desenvolvido a despeito de práticas consensuais. O ideal da
pesquisa além-mar, contudo, continuou sendo o objetivo a ser alcançado.
Décadas mais tarde, e como parte de uma tradição que havia questionado
firmemente a necessidade de pesquisa de campo externa, Saberwal (1982b)
nota que, para muitos, a pesquisa de campo na Índia era vista como uma
experiência leve, soft, já que realizada principalmente nos limites da língua,
casta e região de origem do pesquisador.
No caso dos pesquisadores dos centros metropolitanos, que só
recentemente passaram a aceitar que eles também são nativos, o impulso de
trazer a antropologia para casa tem tido várias motivações. Alguns explicam
esse movimento como uma das demandas inevitáveis do mundo moderno
(Jackson, 1987a); para outros, ele emerge do propósito de transformar a
antropologia em crítica cultural (Marcus & Fischer, 1986). Nos Estados
Unidos, em particular, quando a antropologia volta para casa ela é
reapropriada como elemento do campo dos “studies” (culturais, feministas,
de ciência e tecnologia), vistos como parte de áreas “antidisciplinares”
(Marcus, 1995b), atestando, assim, a afinidade inerente entre antropologia e
exotismo. Qualquer que seja o caso, uma linhagem que justifique a
empreitada está sempre presente, seja de Raymond Firth e Max Gluckman
(Jackson, 1987b), ou de Margaret Mead e Ruth Benedict (Marcus & Fischer
1986, para Mead; Geertz, 1988, para Benedict).
Nos anos 1940 e 1950, em lugares nos quais a antropologia foi ratificada
localmente pelas ciências sociais (por exemplo, Brasil e Índia), sobretudo
como parte de movimentos em direção à modernização, um diálogo franco
com agendas políticas nacionais tornou-se inevitável, reproduzindo padrões
europeus canônicos do fim do século XVIII e início do XIX (E. Becker,
1971). Nesses contextos, a alteridade, freqüentemente, tem sido
comprometida e aspectos interessados do conhecimento (à Weber) são muitas
vezes explicitados. Essa característica “interessada”, com freqüência, torna
alguns observadores cegos para a procura constante de excelência teórica,
vista como fundamental, e que resulta em um diálogo triangular: com
antropólogos e sociólogos locais, com as tradições metropolitanas de
conhecimento (presentes e passadas) e com os objetos de pesquisa.
Neste ensaio, procuro examinar alguns dos componentes indéxicos do
termo home na expressão “anthropology at home”. Primeiro, focalizo o
momento e o contexto em que o projeto de desenvolver uma antropologia em
casa se tornou um objetivo apropriado. Focalizo minha atenção nos centros
socialmente legítimos da produção acadêmica – isto é, segundo Gerholm &
Hannerz (1982b), os lugares da “antropologia internacional” –, nos quais o
ideal de um longo período de pesquisa de campo além-mar foi inicialmente
estabelecido. Esse projeto inclui a Europa e os Estados Unidos. (Estou
assumindo que os Estados Unidos, hoje, têm um papel socialmente
equivalente ao da Inglaterra durante a primeira metade do século XX, ou da
França nos momentos áureos do estruturalismo.)
Mudo de perspectiva no final, quando procuro estabelecer uma ponte com
o próximo capítulo, ao explicitar de forma concisa algumas características da
antropologia no Brasil. Procuro apontar para a configuração de diferentes
projetos que, embora não exclusivos, podem ser distinguidos como tentativas
de formulação de uma alteridade radical, um estudo do “contato” com a
alteridade, outro sobre alteridade próxima, ou uma radicalização de um
“nós”. Após indicar uma variedade de noções de alteridade, concluo com um
alerta sobre a comunicação entre antropólogos no contexto de uma disciplina
que, embora mantendo uma história teórica minimamente partilhada,
convive, ela própria, com manifestações plurais.
Antropologia at home
No ambiente de uma nova consciência nos centros de produção
“internacional”, preocupações individuais com o futuro da antropologia nos
anos 1960 deram lugar, na década de 1970, a análises mais sociológicas,
denunciando as relações políticas que haviam sido sempre um traço da
pesquisa de campo de cunho etnográfico. Logo, a idéia de uma antropologia
at home fez seu début na Europa, ao passo que nos Estados Unidos a
antropologia transformou-se em “studies”, na interseção de vários
experimentos das humanidades. São esses movimentos que examino agora
em mais detalhe.
Antropologia pós-exótica?
Uma mudança de orientação, das preocupações com a escrita antropológica
para a atenção aos lugares e audiências, marcou a década de 1990. Strathern
(1995) examina os contextos mutantes nos quais se desenvolvem diferentes
formas de conhecimento (o que inclui os antropólogos) como um prelúdio ao
questionamento dos pressupostos sobre perspectivas locais e globais. (Nesse
meio-tempo, a Associação Européia dos Antropólogos Sociais é fundada, em
1990, e dois anos depois lança a revista Social Anthropology.)
Quase simultaneamente, dois livros sobre “lugares antropológicos”
(locations) foram publicados: Clifford (1997) examina caminhos (routes)
como práticas espaciais da antropologia, notando que a pesquisa de campo se
tem fundado na distinção entre uma base em casa e um lugar externo de
descobertas. Contudo, noções de “at home e além-mar, internalidades e
externalidades, campos e metrópoles são cada vez mais desafiadas por
vertentes pós-exóticas e descolonizadas”.11 Agora, campos de pesquisa
precisam ser negociados – e porque não há uma fórmula narrativa ou uma
maneira de escrever inerentemente adequada a uma “política do lugar”, a
distância antropológica às vezes é reconstruída de forma confusa e relativa.
Gupta & Ferguson (1997a; 1997b) também reconhecem que a antropologia se
desenvolveu como um corpo de conhecimentos baseado na especialização
regional. A separação espacial entre “o campo” e home leva os autores a
examinarem o pesquisador como um objeto antropológico. É possível
perceber aqui o que Ahmad (1992) denunciou como “migração pós-
moderna”, mas, de qualquer forma os autores sentem necessidade de propor
soluções. Clifford (1997) sugere que a pesquisa de campo tradicional,
certamente, manterá seu prestígio, mas a disciplina poderá também “ficar
mais próxima às antropologias ‘nacionais’ que muitos países europeus e não-
ocidentais desenvolvem, com visitas curtas e repetidas tornando-se norma e a
pesquisa de vários anos, totalmente financiada, uma raridade”.12 Gupta &
Ferguson também vêem soluções alternativas possíveis para a pesquisa de
campo em tradições “nacionais” fortes e antigas como as do México, Brasil,
Alemanha, Rússia ou Índia (1997b, p.27), sugerindo que antropólogos façam
a passagem necessária da idéia de “sítios espaciais” para a de “locações
políticas”, seguindo, assim, a literatura feminista contemporânea.
Tais alternativas tornaram-se inspiração para Moore (1996), que examinou
práticas e discursos como conjuntos de “situated knowledges” (cf. Haraway,
1988), todos, simultaneamente, locais e globais. Para a organizadora do livro,
o futuro do conhecimento antropológico deveria ser antecipado como
resultado de um desafio colocado por acadêmicos do Terceiro Mundo, por
movimentos negros e feministas.
A questão das audiências tornou-se um outro tópico. Quase duas décadas
depois da tentativa malsucedida de Michael Fischer, de incluir uma
introdução para iranianos e outra para norte-americanos (em Fischer, 1980), a
preocupação com o público que consome literatura antropológica finalmente
surgiu na Europa (Driessen, 1993) e nos Estados Unidos (Brettell, 1993), em
um contexto de questionamentos relacionados à “política da etnografia”. O
reconhecimento de que as audiências variam levou Marcus (1993a; 1993b),
na introdução ao primeiro número de Late Editions, a propor que os
diferentes volumes da série tinham como objetivo atingir “globally-minded
U.S. academics”, procurando um espaço entre a antropologia e os cultural
studies. Seu propósito era evocar tanto um sentido de familiaridade quanto de
estranhamento nos leitores educados nas universidades norte-americanas
(Marcus, 1993b, p.5).
As questões sobre público, locação, política e teoria estiveram presentes
no número especial de Public Culture devotado à discussão de Ahmad
(1992), mas apenas para revelar a disparidade de interpretações sobre o status
da teoria, incluindo o desacordo sobre o campo da “política da teoria”
(Appadurai et al, 1993; Ahmad, 1993). Outra tentativa de discussão
internacional foi lançada por Borofsky (1994), em uma publicação coletiva
que resultou de uma sessão organizada no encontro anual da American
Anthropological Association de 1989. O livro incluía depoimentos
individuais sobre as “raízes intelectuais” dos autores colaboradores. O projeto
teve continuidade em 1996, a partir de outra sessão em encontro similar, em
que o título “How others see us: American cultural anthropology as the
observed rather than the observer” indicava um exercício na direção da
reversibilidade do conhecimento antropológico (a despeito do fato de os
“outros”, com poucas exceções, virem da Europa e dos Estados Unidos).
Entre as etnografias at home, gostaria de singularizar um livro, o de
Rabinow (1996), sobre a invenção da reação em cadeia da polimerase
(conhecida como PCR, ou polymerase chain reaction). As razões para elegê-
lo são variadas: primeiro, pela motivação antropológica clássica que expressa
(“Freqüentemente me senti intrigado, embora cético, pelo conhecimento
miraculoso que se tornou possível pelas novas tecnologias que supostamente
conduziriam a uma nova era”). Em segundo lugar, o livro desperta interesse
por sua estrutura canônica, exatamente no contexto pós-moderno no qual se
vê inscrito: os dois primeiros capítulos apresentam a ecologia da invenção, o
terceiro focaliza o processo que culminou na invenção, enquanto os dois
últimos demonstram que uma idéia tem pouco valor se não é posta em ação.
Em terceiro lugar, o livro é inovador pela atitude de fazer tanto entrevistados
quanto leitores colaborarem no texto: no estilo de Late Editions, transcrições
de conversas com cientistas, técnicos e homens de negócios estão presentes.
Finalmente, apesar de protestos de antidisciplinaridade, o livro reforça a idéia
de que, mesmo at home, o etnólogo precisa aprender outra língua (nesse caso,
a da biologia molecular), durante um longo período de socialização, e, como
sempre, enfrentar o problema de quem tem a autoridade e a responsabilidade
de representar a experiência e o conhecimento.13 O fato de o livro não ser
encontrado nas prateleiras de antropologia nas livrarias norte-americanas,
mas nas estantes de ciência, reforça, por exclusão, a associação duradoura
entre a antropologia e o exotismo.14
De outro ponto de vista
Até o momento, focalizei trabalhos que sugerem um movimento complexo,
mas relativamente regular, em que os antropólogos dos centros
metropolitanos foram, ao longo do último século, trazendo a antropologia de
além-mar para casa e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para que antigos
“nativos” desenvolvessem sua própria antropologia. Neste momento, abro um
parêntese para indicar uma voz dissonante no que diz respeito ao último
tópico e que, indiretamente, atinge a antropologia que se faz no Brasil.
Observando o caso da Grécia a partir de depoimentos dos próprios
antropólogos locais, Kuper (1994) critica o que denomina “etnografia
nativista” – um caso extremo de antropologia at home. Segundo ele, a
etnografia nativista, geralmente, tem como fonte de inspiração o trabalho de
Edward Said e o discurso pós-moderno reflexivo, assumindo uma postura
controvertida: primeiro, que apenas nativos compreendem nativos e, segundo,
que o nativo deve ser o juiz da etnografia, até mesmo seu censor. Kuper é
crítico desta posição, mas sua proposta não é menos controvertida:
defendendo alguns etnógrafos que nomeia individualmente, e sancionando
diferentes tradições de pesquisa etnográfica, ele sugere uma alternativa
“cosmopolita” para a antropologia.
O que é esta “alternativa cosmopolita”? Para Kuper, etnógrafos
cosmopolitas devem ter como interlocutores internalizados apenas outros
antropólogos (e não, por exemplo, estrangeiros curiosos ou voyeurs de
gabinete; também não deveriam ter como interlocutores os nativos ou a
comunidade nativa de experts, isto é, cientistas sociais, especialistas em
planejamento e intelectuais locais). Para o autor, sua antropologia
cosmopolita seria uma ciência social irmã da sociologia e da história social,
sem vínculos com nenhum programa político.
Aqui, proponho que essa noção de antropologia cosmopolita seja
contrastada com o projeto multicentrado dos antropólogos indianos (Uberoi,
1968; 1983, Madan, 1994; Das, 1995a). Muito antes de as preocupações com
a antropologia at home surgirem, a Índia ofereceu ao mundo acadêmico
longas discussões sobre o estudo of one’s own society (Srinivas, 1955, 1966,
1979; Uberoi, 1968, Béteille & Madan, 1975; Madan, 1982a, 1982b; Das,
1995a), diretamente vinculadas à questão atual das audiências e dos públicos
para a escrita antropológica. Se os antropólogos, em geral, não aproveitaram
como poderiam essa extensa produção, a questão é outra (ver Capítulo 1). A
Índia também foi cenário do renascimento único de um periódico
internacional, Contributions to Indian Sociology, depois que seus fundadores,
Louis Dumont e David Pocock, decidiram encerrar a publicação na Europa
após uma década de existência.15 Os debates desenvolvidos na seção “For a
Sociology of India” – o título do primeiro artigo publicado pelos editores
(Dumont & Pocock 1957) –, depois transformada em seção regular da revista,
revelaram ser este um fórum de discussão teórica, acadêmica, política e até
pedagógica, ímpar, envolvendo especialistas de várias orientações. Se o
desenvolvimento da ciência, assim como a paixão que desperta, pode ser
apreciado nos debates intelectuais e acadêmicos (Latour, 1989), então esse
fórum de trinta anos tem uma história das mais interessantes para contar.
Autores que adotam posição semelhante à de Kuper (1994) ficam impedidos
de apreciá-la.16
Ao adotarem uma perspectiva universalista sem se situar no centro, os
antropólogos indianos estão cientes de seus múltiplos interlocutores. Madan
(1982b, p.266) menciona dois tipos de conexões triangulares: (a) a relação
entre o antropólogo de dentro, o de fora e o grupo estudado, e (b) a relação
entre o antropólogo, o agente financiador da pesquisa e o grupo estudado.
Das (1995a) também aponta para três tipos de diálogo dentro da literatura
antropológica produzida na Índia: (a) com as tradições ocidentais acadêmicas
na disciplina, (b) com o sociólogo e antropólogo indiano, e (c) com o
“informante”, cuja voz está presente quer como informação obtida no campo,
quer como textos escritos da tradição. Nesse sentido, a antropologia na Índia
avalia e refina, ao mesmo tempo, o discurso antropológico e o conhecimento
sobre sua própria sociedade. Nesse contexto, é interessante relembrar que
antropólogos estrangeiros que trabalharam na Índia também se engajaram em
diálogos com especialistas locais, e alguns desses debates influenciaram
profundamente ambos os lados. Bons exemplos a citar são o diálogo
ininterrupto, enquanto seus autores viveram, entre Dumont e Srinivas, as
reações de Dumont ao filósofo indiano A.K. Saran (Srinivas, 1955, 1966,
Dumont, 1970, 1980; Saran, 1962) e o debate entre os historiadores dos
subaltern studies com Dumont (Guha & Spivak, 1988), incluindo a recepção
e a influência dos últimos na Europa e alhures. Mas, publicadas na Europa, as
contribuições de Dumont não explicitavam essa interlocução no período que
se estende dos anos 1960 aos 1980 – ao contrário, ela só surgia como
subtexto. Na produção contemporânea dos historiadores dos subaltern studies
os diálogos são mais visíveis.
Alteridade no Brasil
Deixando o “continente internacional” e aproximando-nos de mais uma das
“ilhas” do mundo antropológico (Gerholm & Hannerz, 1982b), chegamos,
via Índia, ao Brasil. Destaco um aspecto fundamental: uma característica
marcante da antropologia que se faz na Índia é que os cientistas sociais têm
por objetivo oferecer alternativas às questões ocidentais. Mas eles estão
cientes de que perguntas ocidentais pré-direcionam seus esforços, até mesmo
sua contestação – o Ocidente é um interlocutor poderoso e internalizado.
Já no Brasil, a imagem de um diálogo inevitável com os centros de
produção intelectual está sempre presente, mas o tom é diferente:
antropólogos brasileiros imaginam-se como parte do Ocidente, mesmo que,
em aspectos importantes, eles não sejam. Como uma das ciências sociais, a
antropologia no Brasil encontra seu nicho intelectual na interseção de várias
correntes: primeiro, as vertentes contemporâneas ou canônicas do
conhecimento acadêmico ocidental; segundo, um sentido de responsabilidade
social em relação ao grupo estudado; e, terceiro, a linhagem de pensamento
social desenvolvida no país pelo menos desde os anos 1930 (que,
naturalmente, inclui empréstimos intelectuais e engajamentos políticos
anteriores).
No contexto dessa configuração complexa, a teoria é o caminho nobre
para diálogos intelectuais existentes ou virtuais, e o engajamento social é um
componente poderoso da identidade do cientista social (ver, por exemplo,
Candido, 1958; Peirano, 1981; Bomeny et al., 1991; Schwartzman, 1991; H.
Becker, 1992; Reis, 1996). Onde a teoria tem tamanho poder ideológico, a
comunicação torna-se mais complexa pelo fato de o português ser a língua de
discussão intelectual (escrita e oral) e o inglês e o francês, as línguas de
formação. Uma apreciação rápida sobre o que se faz como antropologia no
Brasil não revela, portanto, grandes surpresas em termos de produção
intelectual – contanto que se saiba bem o português. No entanto, exatamente
porque o diálogo intelectual, no mais das vezes, se desenvolve com
interlocutores ausentes, respostas alternativas às preocupações correntes do
“continente”, tais como etnicidade, pluralismo cultural e social, raça,
identidade nacional etc. são rotineiras. (Foi nesse contexto que Arantes
(1991) ironicamente caracterizou o meio intelectual brasileiro como um
“tanque de decantação na periferia”.)
Algo como uma certa singularidade surge quando se procura por traços
coletivos. Oposto aos Estados Unidos e à Europa de hoje, o ponto crítico no
Brasil não se resume nem ao exotismo nem à culpa associada a ele. A relação
com o exotismo tomou caminho diferente no Brasil. A noção durkheimiana
de diferença, mais que o exotismo, chamou a atenção dos antropólogos onde
e quando eles encontraram um “outro”, sancionando, assim, a idéia de que a
influência francesa foi bem mais forte que a herança germânica. Por outro
lado, devido ao fato de a inclinação geral ser, ao mesmo tempo, teórica e
política e, portanto, congenial aos valores e responsabilidades de construção
da nação, a alteridade tem sido recorrentemente encontrada dentro dos limites
do país (para as exceções, ver G. Velho 1995; Peirano 2000) e, de maneira
freqüente, relacionada à procura de uma singularidade “brasileira” (DaMatta,
1984; ver Fry 1995a para a questão explícita).
A maneira como a alteridade tem sido concebida no Brasil pelos
antropólogos será o objeto do próximo capítulo. Aqui, apenas antecipo que
identificarei quatro tipos ideais relacionados à adaptação local da noção de
exotismo que marcou o momento sociogenético da disciplina. São eles:
“alteridade máxima”, “contato com a alteridade”, “alteridade próxima” e “nós
como outros”. Sendo tipos ideais weberianos, eles não são empiricamente
discretos nem mutuamente excludentes: cortando um continuum sobre a
preocupação com a alteridade, muitos autores adotam mais de uma
perspectiva ou as combinam em diferentes momentos de suas carreiras –
todos são, contudo, reconhecidos legitimamente como antropólogos, mas,
curiosamente, nenhum se sente desenvolvendo anthropology at home. Aliás,
sugiro que, no caso brasileiro, a antropologia além-mar é que poderá vir a ser
a categoria marcada.
Conclusão
A institucionalização das ciências sociais no momento em que se alavanca o
processo de construção da nação (nation-building) é um fenômeno conhecido
(E. Becker, 1971, para França e Estados Unidos; Saberwal, 1982a, para a
Índia), tanto quanto o paradoxo de uma ciência social crítica sobrevivendo
contra os interesses das elites que a criaram. No Brasil dos anos 1930, uma
ciência social foi adotada com o objetivo de prover uma abordagem científica
para se desenhar o futuro do novo país. Acreditava-se que, no tempo devido,
a ciência social iria substituir o ensaio social, que havia sido, no Brasil, até
então, “mais que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da
vida espiritual”.17 Assim, dos anos 1930 aos 1950, enquanto a ciência social
maturava uma sociologia “feita-no-Brasil” – que se tornou hegemônica
durante as duas décadas seguintes –, o estudo canônico dos grupos indígenas
era a regra a ser seguida. Na década de 1960, esses trabalhos começaram a
dividir a cena com uma nova tendência de analisar o contato como “fricção
interétnica” e, imediatamente depois, nos anos 1970, com camponeses e
estudos urbanos. Ao longo dessas décadas, a pouca distinção entre as
disciplinas havia acompanhado o engajamento social e a ambição por padrões
de excelência acadêmica, a “diferença” sendo encontrada perto ou, pelo
menos, não muito longe de casa.
Há algum tempo, Perry Anderson (1968) sugeriu que uma antropologia
britânica exuberante foi o resultado da exportação do pensamento social
crítico para os povos que subjugou na primeira metade do novecentos.
Anderson também lembrou que a sociologia que a Inglaterra deixou de
desenvolver em casa deu lugar a uma antropologia próspera. Mais
recentemente, Fischer (1988) afirmou que os antropólogos norte-americanos
não desempenham o mesmo papel social que ele percebeu entre os
antropólogos brasileiros, como intelectuais públicos, não porque aos norte-
americanos falte engajamento, mas devido à perda de bifocalidade, capaz de
ser treinada simultaneamente at home e abroad na cultura norte-americana,
sobretudo no processo de se transformar e ser transformada pela sociedade
global, trazendo, assim, à tona o tema dos intercâmbios e empréstimos
intelectuais.18
Minha intenção, neste capítulo, foi ampliar e estender essas discussões
sobre os componentes das noções de at home e abroad, apontando para
algumas dificuldades que são inerentes aos diálogos intelectuais. De forma
significativa, a justaposição efetiva entre a experiência da “antropologia
internacional” e experiências como a nossa (como se elas fossem
inteiramente distintas) indica que, com grande freqüência, os autores
encontram-se somente no final de livros e de artigos, sem interlocução
substantiva no texto, apenas lado a lado, na seção de referências
bibliográficas. As implicações desse fenômeno merecem maior atenção da
nossa parte.
3. A alteridade em contexto:
o caso do Brasil1
Orientação geral
Neste capítulo, levo em consideração que uma disciplina pode ter o mesmo
nome em diversos momentos sem que tenha necessariamente idêntico
conteúdo ou igual objetivo. Desse modo, denominar um tipo de
conhecimento de “antropologia” em momentos e contextos distintos não
significa que se está designando o mesmo fenômeno. Segundo, parto do
suposto de que não é possível falar sobre a história de uma disciplina sem
levar em conta o desenvolvimento de áreas vizinhas – quer sejam elas
modelos ou rivais da primeira. Assim, por exemplo, investigar o crescimento
da antropologia no Brasil depois dos anos 1950 exige que se examine as
demais ciências sociais (pelo menos a sociologia e a ciência política); para
uma avaliação antes dos anos 1950, é preciso levar em conta a literatura.4
Terceiro, mesmo quando se define um enfoque dominante, este nem sempre é
medrado apenas por especialistas da área. Isso denota que, conscientemente
ou não, a antropologia pode ser feita por não-antropólogos. Finalmente, uma
disciplina acadêmica revela sua provável configuração no diálogo com as
idéias e os valores dominantes de uma sociedade. No caso brasileiro, as
ciências sociais foram reconhecidas socialmente quando o país passou a se
conceber legitimamente como parte do mundo moderno, aderindo ao preceito
iluminista de estarem comprometidas com a vida nacional no seu conjunto.5
Essa orientação nos remete, de imediato, a uma questão central:
externamente à disciplina, tem sido com a sociologia que a antropologia vem
dialogando desde a institucionalização das ciências sociais, na década de
1930; já internamente, esse diálogo é vivido como uma dicotomia entre a
etnologia indígena feita no Brasil e as investigações antropológicas sobre o
Brasil. Na década de 1950, tendo a sociologia se tornado hegemônica entre as
ciências sociais – e concebida como uma abordagem que combinava
excelência teórica com engajamento político –, à antropologia restou a opção
de se manter nos parâmetros dos estudos de sociedades indígenas, como até
então, ou integrar-se no projeto sociológico dominante. Quando Florestan
Fernandes transferiu suas preocupações dos Tupinambá para as relações
raciais, esse movimento representou mais que uma guinada na direção da
Escola de Chicago, e mais que a admissão de que os Tupinambá só serviram
para a formação de seu autor. Naquele momento, a excelência acadêmica
definiu-se como parâmetro e a temática nacional estabeleceu-se como
projeto; teoria e política passavam a fazer parte da agenda das ciências sociais
no país.6 É quando, então, o rótulo antropologia se expande em pelo menos
duas direções: ele serve para designar a investigação etnológica canônica em
busca da alteridade radical, mas passa igualmente a indicar uma sublinhagem
que, definindo-se também como antropologia, dialoga com a sociologia
hegemônica. Tenho em mente, no segundo caso, os estudos sobre “fricção
interétnica”,7 que viam o contato com grupos indígenas como um indicador
sociológico para se estudar a sociedade nacional – isto é, seu processo
expansionista e sua luta pelo desenvolvimento.8 Essa ampliação dos limites
da disciplina persiste, em um quadro no qual convivem, no mesmo meio
acadêmico, uma antropologia feita no Brasil e uma antropologia do Brasil.9
Para além da pesquisa indígena propriamente dita, uma antropologia feita
no/do Brasil é uma aspiração comum.
O caso do Brasil
Se a noção de diferença é definidora da antropologia, a questão é saber onde
ela se aninhou no caso brasileiro. Proponho que nos últimos trinta anos a
alteridade deslizou de um pólo onde ela é (ou pretende ser) radical a outro,
onde nós mesmos, cientistas sociais, somos o outro. Dessa perspectiva,
podemos identificar quatro tipos ideais: (a) a alteridade radical; (b) o contato
com a alteridade; (c) a alteridade próxima; (d) a alteridade mínima. Esses
tipos não são excludentes e, ao longo de suas carreiras acadêmicas,
antropólogos transitam por vários deles. Em termos cronológicos, nota-se
uma certa seqüência: o projeto de se pesquisar a alteridade radical antecipa o
estudo do contato; a este se segue a antropologia em casa, até que se atinge a
investigação da própria produção sociológica no país. Esse é o momento em
que fronteiras nacionais são ultrapassadas e se retorna à alteridade radical,
agora modificada. (Esclareço que, no que se segue, não faço citações
exaustivas dos casos indicados, mas apenas menciono alguns trabalhos para
sinalizar diferenças temáticas e de abordagem. Com os autores cujos
trabalhos são citados, desculpo-me pelas ausências inevitáveis.)
Alteridade radical
A procura canônica pela alteridade pode ser ilustrada, no Brasil, em termos
de distância (geográfica ou ideológica), de duas maneiras: em primeiro lugar,
no estudo de populações indígenas; em segundo, no objetivo mais recente de
ultra-passar os limites territoriais do país. Em ambos os casos, em termos
comparativos com a “antropologia internacional” (cf. Capítulo 2), a
alteridade radical não é extrema.
Vejamos a primeira situação. Hoje, iniciantes no campo podem discernir
algumas antinomias: Tupi ou Jê; parentesco ou cosmologia; Amazônia e
Brasil Central ou Xingu; história ou etnografia; economia política ou
cosmologia descritiva (ver Viveiros de Castro, 1995b). Como em qualquer
antinomia, as opções empíricas disponíveis estão muito além. Mas, nesse
contexto, a pesquisa tupi, tendo praticamente desaparecido da cena etnológica
no Brasil durante os anos 1960 e início dos 1970 (contudo, cf. Laraia, 1986),
fez sua reentrada nas duas últimas décadas (Viveiros de Castro, 1986; 1992;
Lima, 1995; Fausto, 1997; 2001; ver, também, Muller, 1990; Magalhães,
1994). Por sua vez, essas pesquisas induziram a um interesse sistemático pelo
parentesco, que, embora seja a área clássica da antropologia, nos padrões
locais se configurou como novidade.17
Antes da década de 1980, os Jê haviam sido o grupo mais bem estudado
do Brasil: depois dos trabalhos clássicos de Nimuendajú, os Jê atraíram a
atenção de Lévi-Strauss (por exemplo, 1956; 1960) e, seguindo-se, o Projeto
Harvard-Central Brazil (Maybury-Lewis, 1967; 1979).18 Em pouco tempo, os
resultados desse ambicioso programa de pesquisa tornaram-se a principal
fonte de apoio às teses estruturalistas. Para uma geração de antropólogos que
desenvolveram sua carreira no Brasil, essa experiência de campo foi
fundamental (ver, por exemplo, DaMatta, 1976a; Melatti, 1970; 1978). Nas
décadas seguintes, pesquisas sobre os Jê tiveram continuidade, embora não se
colocasse mais a questão da hegemonia.19
Este rápido apanhado mostra que as pesquisas vêm sendo realizadas em
território brasileiro. Embora para os especialistas seja fortuito que os grupos
indígenas estejam situados no Brasil, o fato é que existem implicações
políticas e ideológicas nessa localização. Para o objetivo deste ensaio, uma
delas indica não ser o exotismo a principal motivação para a pesquisa, mas a
diferença (social, cultural, cosmológica) entre eles e nós. Mas, tratando-se da
linha de pesquisa que corresponde às preocupações mais tradicionais da
antropologia, é esta a área na qual debates com a comunidade “internacional”
são mais freqüentes (para um debate entre etnólogos franceses e brasileiros,
cf. Viveiros de Castro, 1994 e Copet-Rougier & Héritier-Augé, 1993; ver,
também, Viveiros de Castro, 2003.) Fica, então, a pergunta: nossa diferença
será o exotismo alheio?20
Há o segundo caso, em que a alteridade radical é buscada fora do país.
Essas pesquisas são recentes e indicam que os antropólogos brasileiros não
ficam restritos ao território nacional.21 Mas aqui ainda se mantém algum
vínculo com o Brasil, sendo possível identificar três direções. Uma nos leva
aos Estados Unidos, que se tornaram uma espécie de “alteridade
paradigmática” para estudos comparativos. Essa prática remonta ao estudo
clássico sobre preconceito racial de Oracy Nogueira (1986), mas atinge as
análises sobre hierarquia e individualismo de Roberto DaMatta (1973a;
1980). Desenvolvimentos posteriores são, por exemplo, L. Cardoso de
Oliveira (2002) e Kant de Lima (1991; 1995a; 1995b). Nesse contexto, um
tópico emergente é o estudo de imigrantes brasileiros e portugueses (G.
Ribeiro, 1998; Bianco, 2001).
Uma segunda direção leva-nos às ex-colônias portuguesas e ao interesse
etnográfico que elas despertam. Fry (1999; 2002; 2005) compara
experiências coloniais com base nos casos do Brasil, Estados Unidos,
Moçambique e Zimbábue; Trajano Filho (1993; 1998; 2003) examina os
projetos nacionais de uma sociedade crioula, tendo como referências Guiné-
Bissau, São Tomé e Príncipe. De uma perspectiva similar, Dias (2002; 2004)
desenvolve estudos sobre Cabo Verde. A antropologia feita em Portugal
instigou uma curiosidade antes inexistente, como indicam congressos e
conferências nos dois países, atestando mais uma vez seus vínculos
históricos, lingüísticos e ideológicos. A literatura recente inclui C. Bastos et
alii (2002), G. Velho (1999), além da publicação de um número de
Etnográfica (Almeida & Leal, 2000), que reúne artigos de antropólogos
brasileiros, e o comentário de Pina Cabral (2004) ao volume sobre o campo
da antropologia no Brasil.
Uma terceira frente pode ser detectada nas investigações que não
implicam necessárias comparações com o Brasil,22 e na recente pesquisa inter
e supranacional: Góes Filho (2003) examina rituais da Organização das
Nações Unidas; Leite Lopes (2004) focaliza movimentos de preservação do
meio ambiente; K. Silva (2004) analisa as práticas da ONU na formação do
Estado-nação no Timor-Leste; e, ainda no Timor-Leste, Simião (2005)
focaliza a construção da categoria “violencia domestika” no contexto dos
valores modernos.
Alteridade próxima
Desde os anos 1970, antropólogos no Brasil fazem pesquisa nas grandes
cidades. Como a socialização acadêmica ocorre nos cursos de ciências
sociais, ao longo das últimas décadas a antropologia tornou-se contraponto à
sociologia. No desenrolar do autoritarismo político dos anos 1960, a
disciplina era vista por muitos como uma alternativa aos desafios (marxistas)
vindos da sociologia, em um diálogo silencioso que persiste desde então. A
atração ora se dá por seus aspectos qualitativos, ora pelo desafio de
compreender dimensões do ethos nacional. Registre-se, portanto, a diferença
marcante da antropologia que se faz nos Estados Unidos. Curiosamente, lá,
de onde vem a maioria das influências contemporâneas, somente na década
de 1990 se tornou apropriado estudar fenômenos próximos aos
pesquisadores.28
No estudo da alteridade próxima, a opção teórica tem sido a via predileta
para alcançar o objeto de estudo. No Brasil, teoria não é apenas abordagem,
mas afirmação política também. Assim, por exemplo, uma combinação do
interacionismo simbólico da Escola de Sociologia de Chicago com a
antropologia social britânica dos anos 1960 abriu para Gilberto Velho (1975;
1981; 1986; 1994) a possibilidade de pesquisar temas urbanos sensíveis.
Esses incluíram estilos de vida da classe média, hábitos culturais do
psiquismo, consumo de drogas e violência.29 Nesse contexto, deu-se a
primeira pesquisa de campo no país vista como plenamente “urbana” nos
termos da antropologia atual, e teve como exemplo o estudo de um edifício
no bairro de Copacabana, o então conhecido “Barata Ribeiro 200” (Gilberto
Velho, 1972). Essa linha se expandiu para, mais tarde, incluir setores
populares, velhice, gênero, prostituição, parentesco e família, música,
política. O objetivo dominante do projeto tem sido desvendar os valores
urbanos; nesse sentido, as pesquisas não apenas situam os fenômenos na
cidade, mas procuram analisar, na trilha deixada por Simmel, as condições de
sociabilidade nas metrópoles. A produção dessa linha é numerosa e de grande
amplitude.30
Roberto DaMatta (1973a; 1980) também encontrou no estruturalismo a via
legítima para dar início à sua pesquisa sobre o carnaval; a horizontalidade
conferida a cada sociedade por essa abordagem teórica permitiu fazer, sem
traumas, a ponte entre o estudo de sociedades indígenas e a sociedade
nacional. Mais tarde, a pesquisa ampliou-se para um exame abrangente do
ethos nacional – tendo naturalmente como predecessor o trabalho
monumental de Gilberto Freyre. Desde os anos 1980, o autor privilegia temas
nacionais, depois de haver participado dos dois grandes projetos indígenas
que marcaram a década de 1960 – tanto o Harvard-Central Brazil quanto o
vinculado ao estudo da fricção interétnica. DaMatta (1973a) é o ponto de
transição, reunindo uma análise canônica de um mito apinayé, um conto de
Edgar Allan Poe e o primeiro exame sobre o caráter de communitas do
Carnaval – que, mais tarde, seria expandido nos livros conhecidos das
décadas de 1980 e 1990 (DaMatta, 1984; 1985; 1991). Ver, também,
DaMatta & Hess (1995).31
Noto que, nos casos previamente citados, a propriedade e a relevância de
se desenvolver uma antropologia no meio urbano nunca foram seriamente
questionadas. Depois de uma rápida discussão sobre a natureza da pesquisa
de campo em geral, que incluiu a disposição do etnólogo para sofrer de
“anthropological blues”, e o tema da familiaridade, tanto perto quanto
distante de casa (DaMatta, 1973b; 1981; G. Velho 1978), a questão foi
resolvida antes dos anos 1980. Ver G. Velho & Kuschnir (2003) para
reflexões recentes sobre o trabalho antropológico em pesquisas urbanas.
No período que tem início na década de 1960, outros tópicos haviam
emergido, primeiro relacionados à integração social de populações e, mais
tarde, a direitos de minorias. Muitas vezes, esses temas combinavam
sociologia e antropologia, reafirmando e dando validade histórica a autores
como Candido (1958), que nunca aceitou distinguir, de forma radical, as
ciências sociais umas das outras. Imigração, relações raciais, gênero,
messianismo, cultos afro-brasileiros, crime, cidadania são alguns dos tópicos
dessa série de investigações.32
Festas urbanas e rurais foram tema de pesquisa desde o início das ciências
sociais no Brasil (cf. o clássico Candido, 1964a), porém vêm adquirindo mais
vitalidade recentemente, quiçá na trilha das análises sobre carnaval. Ver
Magnani (1984), Cavalcanti (1994), Mello e Souza (1994), J. Silva (2001),
Chaves (2003). Diretamente focalizados na política como domínio nativo são
os vários estudos que resultam do projeto “Antropologia da Política” (NuAP
1998) como, por exemplo, Teixeira (1998), Bezerra (1999), Chaves (2000),
Borges (2004), Comerford (2004), Barreira (1998), Heredia et alii (2002),
Kuschnir (1999).33
Alteridade mínima
Confirmando que as ciências sociais no Brasil têm um profundo débito com
Durkheim – que propôs que outras formas de civilização deveriam ser
buscadas para explicar o que está próximo a nós –, a partir dos anos 1980,
antropólogos desenvolveram uma série de estudos sobre as ciências sociais
no país, grande parte com o propósito mais amplo de compreender a ciência
como manifestação da modernidade. Tópicos de estudo variam de biografias
de cientistas sociais brasileiros, memórias pessoais a clássicos da teoria
sociológica, como, por exemplo, Castro Faria (1993; 1998; 2002). Ver Corrêa
(1982; 1987; 2003), para uma historiografia da disciplina no país; Miceli
(1999), para um projeto comparativo entre as ciências sociais. Para os
clássicos das ciências sociais, ver, por exemplo, R. Cardoso de Oliveira
(1991) e Goldman (1994) para Lévy-Bruhl; Grynszpan (1999), para Mosca e
Pareto. Ver Neiburg (1997), para a antropologia na Argentina. Sobre autores
no Brasil, ver Peixoto (1998; 2000), respectivamente, para a carreira de Lévi-
Strauss e para uma comparação entre Roger Bastide e Gilberto Freyre; Pontes
(1998), para um estudo sobre o grupo paulista Clima; Castro Santos (2003),
para uma comparação entre a obra de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda. Pontes et alii (2004) apresenta depoimentos recentes sobre
experiências na antropologia. A publicação de diários etnográficos vem se
afirmando; ver, por exemplo, D. Ribeiro (1996), Castro Faria (2001), R.
Cardoso de Oliveira (2002).
O interesse que os cientistas sociais manifestam em assuntos educacionais
é discutido em Bomeny (2001a); especialmente para a trajetória de Darcy
Ribeiro, ver Bomeny (2001b). Em Travassos (1997), encontramos uma
comparação entre os dilemas da modernização enfrentados por Mário de
Andrade no Brasil, e Béla Bartok na Hungria, e para uma investigação entre
cientistas e a questão racial no Brasil, ver Schwarcz (1996; 2001). Para uma
bibliografia sobre a antropologia no país até os anos 1980, ver Melatti (1984),
e para uma apreciação do campo da disciplina nos dias de hoje, ver Trajano
Filho & Ribeiro (2004).
Um programa de pesquisa com o objetivo de estudar diferentes estilos de
antropologia foi inaugurado em Cardoso de Oliveira & Ruben (1995), com a
proposta de focalizar experiências nacionais diversas, incluindo Austrália,
Argentina, Canadá e Catalunha. Um novo projeto sobre a relação entre
perspectivas antropológicas e processos de construção do Estado está
desenvolvido em L’Estoile et alii (2002).
No final dos anos 1970, iniciei um projeto que tinha como objetivo
analisar a própria disciplina de uma perspectiva antropológica. A partir de
uma proposta de Dumont (1978), de que a antropologia se define por uma
hierarquia de valores em que o universalismo engloba o holismo, questionei o
tipo de antropologia que se fazia no Brasil, tendo como casos de controle a
França e a Alemanha. A relação entre ciência social e ideologia de nation-
building foi um ponto central da pesquisa (Peirano, 1981). Esse estudo teve
prosseguimento com a observação do caso indiano, e resultou na proposta de
uma “antropologia no plural” (Peirano, 1992a). A triangulação Brasil, Índia e
Estados Unidos teve continuidade em Peirano (1991; 1998; 1999).
O exame da relação entre ciência social e ideologia nacional foi refinado
em Vilhena (1997) que, comparando folcloristas e sociólogos vis-à-vis a
ideologia dominante entre 1947 e 1964 no país, desvenda o lugar dos
intelectuais ligados a valores regionais e a disputa dos folcloristas para
sobreviver em um meio no qual a sociologia se tornava hegemônica. A
psicanálise tem se mostrado um campo de saber fértil para a antropologia.
Uma apropriação desse campo vem sendo feita por uma linha de pesquisa
sólida (ver Duarte, 1989; 1990; 1996; 2000). Finalmente, várias reflexões
sobre o ensino da antropologia são encontradas em Bomeny et alii (1991);
Pessanha & Villas Boas (1995); Peirano (1995c).
Em suma, nos estudos em que a alteridade é mínima, isto é, está localizada
na própria atividade intelectual dos cientistas sociais, nota-se um traço
marcante: a maioria deles examina temas abrangentes relacionados a
tradições intelectuais ocidentais, mas, publicados em português, têm uma
audiência limitada. Surge, então, a questão crucial sobre o público desses
trabalhos: abrangentes e exaustivos, fazem eles sentido se a audiência externa
é restrita? Ou, por que se dialoga com as fontes de scholarship se os debates
estão afastados pela própria língua de enunciação? Retornamos, assim, aos
Tupinambá de Florestan Fernandes, quando o rigor teórico serviu mais para
legitimar o autor como cientista social no Brasil do que para favorecer um
efetivo diálogo com especialistas da área. Aqui, a velha questão permanece: o
vínculo com o mundo intelectual mais amplo se dá apenas por efeito
ilocucionário e a “alteridade mínima” esconde uma proposta, não realizada,
de alteridade máxima, porque teórica.
Conclusão
A institucionalização das ciências sociais como parte do processo de nation-
building é fenômeno conhecido, tanto quanto o paradoxo da existência de
uma ciência social crítica sobrevivendo aos interesses das elites que a
criaram. Nesses momentos, a nova ciência social não é especializada porque
o projeto de construção nacional é ideologicamente mais abrangente que as
disciplinas acadêmicas. Em outras palavras, a alteridade raramente é
descompromissada e os aspectos “interessados”, no sentido weberiano, são
muitas vezes explícitos. A antropologia e a sociologia separam-se, em um
processo ao mesmo tempo político, institucional e conceitual, no qual e
quando se favorecem especializações – o que geralmente acontece quando o
desenrolar da construção nacional avança historicamente. É esse quadro que
abriga o diálogo triangular composto, de um lado, com colegas antropólogos
e sociólogos da mesma comunidade nacional; de outro, com as tradições
metropolitanas de conhecimento (passadas e presentes) e, de outro ainda,
com os sujeitos da pesquisa.
No Brasil dos anos 1930, a ciência social foi adotada para prover uma
abordagem científica ao projeto de uma nova nação. Acreditava-se então que
no devido tempo a ciência social iria substituir o ensaio socioliterário que
havia ocupado aqui, “mais que a filosofia ou as ciências humanas, o
fenômeno central da vida do espírito”.34 Assim, dos anos 1930 aos 1950, por
sociologia entendia-se o leque das ciências sociais que hoje concebemos
como independentes, mas gestava-se uma sociologia feita-no-Brasil – que, na
verdade, tornou-se hegemônica nas décadas seguintes. Paralelamente, estudos
etnológicos de grupos indígenas representavam o modelo canônico para a
antropologia, que logo passa a se apropriar de temas vistos como
sociológicos – só que agora sob o olhar da diferença, social e/ou cultural. De
qualquer forma, sociológicos ou antropológicos, os temas empíricos eram
encontrados dentro das fronteiras nacionais; se a dimensão política da ciência
social estava presente, igualmente era inquestionável o desafio de
refinamento teórico (ver Fernandes, 1958).
Nesse contexto, consideramo-nos interlocutores legítimos de autores
reconhecidos da tradição ocidental, em um processo no qual o isolamento do
português tem afinidade com o papel reservado ao cientista social no país,
direcionado às questões políticas nacionais. Estamos sempre, mais ou menos
confortavelmente, em casa. Assim se justificam, de um lado, os limites
estratégicos que, como vimos, informam a escolha da alteridade; de outro, o
fato paradoxal de que, quando procuramos diferenças, muitas vezes
acabamos por encontrar uma suposta singularidade (que é “brasileira”). É
preciso reconhecer, no entanto, um aspecto sociológico positivo: esse
processo complexo de lealdades intelectuais e políticas, o labirinto de
caminhos dentro do universo possível, assim como o quadro variado de
interlocutores (presentes e ausentes) ao longo do tempo, contribuíram para a
consolidação de uma comunidade acadêmica efetiva. Com essa nota positiva,
encerro procurando resumir alguns pontos.
Contexto da orientação
Sintetizo alguns pontos que, válidos para as ciências sociais em geral,
fundamentam minha visão da orientação em antropologia:
1) na antropologia não há teoria separada da história da disciplina (embora
teoria não seja história; mais, adiante) – combinadas, elas formam uma
história teórica, interna à prática da antropologia, que informa e guia seu
refinamento e expansão a partir de pesquisas de campo nossas e de nossos
predecessores;
2) ao contestar verdades do senso comum de uma época, por meio da
surpresa intrínseca à prática etnográfica e aos acasos da experiência de
campo, o etnógrafo/antropólogo confronta também a própria teoria
acumulada e a enriquece, corrige ou contesta – esse é um traço
fundamental na idéia weberiana de uma “eterna juventude” das ciências
sociais;
3) nesse contexto, o estudante em formação entra em contato com verdadeiras
árvores genealógicas de autores consagrados (e também rejeitados) nos
cursos básicos, a partir das quais construirá a sua própria;3
4) na antropologia, então, linhagens teórico-disciplinares são mais relevantes
que supostas “escolas” – que, na verdade, são rótulos dados a posteriori,
geralmente criados ou atribuídos com uma forte dose de afirmação e/ou
rejeição política;
5) disso decorre que é necessário distinguir, na disciplina, pelo menos dois
tipos de reconstrução do passado: a história teórica (que lê os clássicos de
uma perspectiva interna, de dentro das obras clássicas, e nelas reconhece e
constrói alguns vínculos temáticos e analíticos) e a história da
antropologia (que focaliza o contexto daqueles que pensaram questões
antropológicas);4
6) a história teórica, que nos é importante aqui, resulta não de uma mera
seqüência de obras e autores, mas, principalmente, examina os problemas
e as questões que formam um repertório aberto que, continuamente
renovado em novas perguntas ou formulações, produz um movimento
espiralado e não-linear; nesse contexto, as monografias etnográficas são o
capital mais significativo da disciplina, indicando ao pesquisador iniciante
que a relação entre teoria e pesquisa de campo é hoje enfrentada, o foi no
passado e continuará sendo por outros depois dele. Em outras palavras, o
que consideramos nosso cânone não é por essa razão estático, já que se
fundamenta no arejamento que pesquisas novas produzem em diálogo com
idéias e autores que nos precederam.
Aqui entra a figura do orientador, que, apoiando-se nessa bagagem sólida
(ou frágil), no processo de orientação sustenta o diálogo com o passado e o
presente da antropologia.
Critérios da orientação
O orientador é, portanto, o intermediário da teoria acumulada com o
pesquisador iniciante. Ele é o facilitador de novas monografias.5 Mas não há
receituário ou manual que nos ensine como melhor orientar. Nesse sentido, a
orientação faz par com a pesquisa de campo, a qual Evans-Pritchard nos
alertou não ser possível ensinar. Sabemos que na pesquisa entram em ação a
personalidade e a biografia do investigador, os diálogos teóricos em vigência
no momento, o contexto social mais amplo e, não menos, as situações
imprevisíveis que farão ressoar, nessa experiência, as teorias aprendidas de
outros povos e outros tempos.
Esses mesmos processos e paradoxos existem na orientação – nada pode
ser antecipado em face do impacto de dados novos e das ambigüidades e
inconsistências inevitáveis que eles trazem. Baseado na sua experiência de
iniciado, espera-se que o orientador proporcione segurança e tranqüilidade
diante da incerteza natural de quem tem muito mais dados do que é possível
assimilar e compreender. Espera-se, também, que ele guie o iniciante de
forma que este possa se libertar (mas só parcialmente) da empiria primeira
dos dados e formular questões relevantes para o seu trabalho. A formulação
dessas questões e a hierarquia delas são, talvez, o ponto nodal da produção
de uma boa monografia – mas não há fórmula que nos ensine como lá chegar.
Post-scriptum
Assim que terminei de redigir esta comunicação, folheando textos sobre
parentesco, por acaso encontrei este parágrafo com que Jack Goody encerra a
Radcliffe-Brown Lecture que proferiu em 1984.14 O título da conferência é
“Under the lineage’s shadow”:
Pecados
A idéia contemporânea de incorreção da antropologia está associada a
pecados cometidos no passado. Entre estes, gostaria de mencionar quatro.
1) O primeiro pecado tem a ver com relações de poder: por um longo
período, a antropologia definiu-se pelo exotismo do seu objeto de estudo e
pela distância, concebida como cultural e geográfica, que separava o
pesquisador do grupo pesquisado. Essa situação era parte integrante de um
contexto de dominação colonial, a antropologia “sendo o resultado de um
processo histórico que tornou uma grande parte da humanidade
subserviente a outra”. Essa citação de Lévi-Strauss mostra que, desde os
anos 1960, não havia ilusão nenhuma de que a relação entre a antropologia
e seu objeto de estudo havia sido sempre de desigualdade e dominação.
Mas, na época, essa consciência não impediu que os antropólogos
continuassem suas pesquisas, como é o caso atualmente.
2) O segundo pecado corresponde ao pesquisador no campo. Sendo poucos
em número, até a metade do século XX, antropólogos tornaram-se “donos”
dos lugares e regiões que estudavam, delimitando áreas de pesquisa que
equivaliam exatamente ao exotismo que hoje produz culpa. É nesse
contexto que “americanistas”, “africanistas”, especialistas nas ilhas do
Pacífico ou Melanésia apareceram no cenário. A combinação dessas áreas
geográficas com tópicos como parentesco, religião, direito, economia
tornou quase impossível que especialistas se reproduzissem em um mesmo
arranjo de área + tópico. Como conseqüência, cada antropólogo se tornou
uma instituição em si mesmo, muitas vezes inibindo pesquisas de campo
em suas áreas de estudo. (Foram necessárias várias décadas para que um
antropólogo ousasse pesquisar os Nuer, depois de Evans-Pritchard, ou os
trobriandeses, depois de Malinowski.)
3) “Antropologia de resgate” foi outro pecado. Agindo como arqueólogos,
juntando debris vivos, considerava-se uma das tarefas da antropologia
resgatar e guardar, para o esclarecimento e educação de gerações futuras,
as últimas culturas primitivas e seus artefatos, salvando-os da extinção
inevitável. Dessa perspectiva, o antropólogo (ocidental) deslocava-se para
áreas do mundo que estavam sendo conquistadas por hábitos ocidentais em
uma missão de salvar e trazer de volta as provas de uma forma de vida
social diferente (e, muitas vezes, de uma forma anterior de vida social).
Havia uma urgência especial relacionada a essa tarefa, já que culturas e
sociedades inteiras estavam desaparecendo a olhos vistos.
4) Finalmente, temos o problema do financiamento. Aqui, o pecado refere-se
à falta de princípios éticos ao aceitar dinheiro carimbado. Um bom
exemplo foi o apoio do Rockefeller Memorial, durante os anos 1930, para
prover uma grande parte dos fundos para pesquisa e bolsas da London
School of Economics. Mais tarde, esse apoio foi formalizado como um
programa no Instituto Internacional Africano, permitindo que vários
africanistas (europeus e africanos) se tornassem antropólogos
profissionais. Treinar especialistas que mais tarde dominariam a
antropologia africana tinha um preço: o esclarecimento de administradores
e de pessoal trabalhando para regimes imperiais (cf. Tambiah, 2002).
(Apesar de esse uso pragmático ter sido contestado como um objetivo não
realizado, a experiência permanece.)
Valores
Fiquemos por aqui com os pecados que, hoje, levam alguns praticantes a
definir uma crise na disciplina. “Crise”, porém, é uma idéia forte no mundo
ocidental moderno e, para um antropólogo, constitui um predicamento já
esperado em períodos liminares (tal como a transição de um século para
outro). Proponho, agora, mudar o olhar da situação contemporânea e voltar
ao momento sociogenético que produziu a antropologia – esse momento
geralmente aponta tanto para contradições quanto realizações duradouras de
um fenômeno social. A primeira metade do século XX representou tal
momento para a disciplina2. Examinemos algumas de suas idéias centrais
como valores da disciplina.
1) Um aspecto importante do empreendimento antropológico no começo do
século XX foi reconhecer não só a diversidade das culturas, sociedades e
povos, como também a unidade psíquica da humanidade. Entre esses dois
projetos polares, antropólogos fizeram pesquisas de campo em partes
remotas, geralmente desconhecidas na época, nas quais precisavam
aprender as línguas nativas, além de se tornarem competentes nelas – a
pesquisa de campo era um encontro que deveria durar pelo menos dois
anos. Inicialmente concebida como uma pesquisa sobre como os
primitivos viviam, as experiências de campo sucessivas terminaram por
permitir que esses povos, na verdade, mostrassem aos antropólogos, os
educassem e esclarecessem sobre suas categorias ou domínios da vida
social, diferentes, mas equivalentes às dos pesquisadores. Além disso, o
contato com a “diferença” e a “alteridade” fez com que os ocidentais
compreendessem melhor, por comparação, suas próprias categorias ou
domínios socioculturais. A comparação, portanto, esteve sempre no âmago
do empreendimento antropológico, quer implícita (Malinowski vai à
Melanésia e, inevitavelmente, compara os trobriandeses aos britânicos) ou
explicitamente (Radcliffe-Brown compara diversos sistemas de parentesco
na África; Mauss junta o kula dos trobriandeses e o potlatch dos Kwakiutl,
adiciona elementos chineses, romanos e medievais para chegar a uma
teoria da troca). Em suma, o confronto entre categorias ocidentais e um
fenômeno diferente, mas (funcional ou ideológico) equivalente, teve um
resultado único: mostrar que o Ocidente era apenas “mais um caso” na
totalidade da experiência humana. Essa foi a época em que um certo
relativismo prevaleceu.
2) Um subproduto desse projeto foi que áreas de conhecimento (ocidentais)
que, nessa época, estavam em processo de consolidação (economia,
sociologia, direito, psicologia) foram transformadas – sob o guarda-chuva
dessa disciplina relativamente eclética, abrangente e ambiciosa – em um
leque de subcampos, como antropologia simbólica, antropologia
econômica, antropologia psicológica, antropologia social, antropologia
cultural. (Apesar de o relativismo e os subcampos terem sido submetidos a
forte crítica nas últimas décadas, sua simples existência em um
determinado momento é, inevitavelmente, parte da nossa compreensão
atual do mundo.)3
3) Outra questão se relaciona ao Estado-nação. Enquanto os Estados-nações
também eram transformados em um modelo exemplar da “cultura mundial
dos tempos”, antropólogos estudavam “povos”, “culturas”, “sociedades”,
“tribos” situados em Estados-nações, mas não Estados-nações
propriamente. Há uma grande diferença entre estudar um grupo que
acontece viver em determinado Estado nacional e o “país” em si.
Originários de Estados nacionais – e a antropologia sendo um subproduto
deles –, os antropólogos estavam interessados em diferentes unidades e
meios: os trobriandeses, tallensi, tiv, zande, maku, bororo, xavante etc.4
4) Geralmente, essas unidades eram menores do que Estados-nações. Mas
nem sempre. (E, assim, voltamos a focalizar um dos pecados da
antropologia.) Justamente porque antropólogos, freqüentemente, (a)
atravessam fronteiras nacionais (porque “seu” grupo assim o fazia) e/ou
(b) porque os resultados de outros pesquisadores coincidiam ou
combinavam com o seu próprio, a idéia de “áreas culturais” pegou na
antropologia. Para o bem ou para o mal, a cosmologia dos antropólogos
supunha um mundo constituído de “áreas” – e não de países ou Estados-
nações. Assim, por exemplo, grupos eram reunidos em áreas ecológicas,
como “índios das terras baixas da América do Sul”, ou “índios da região
amazônica” – e não “índios brasileiros”, ou “índios colombianos”.
Virtudes
Chegamos, assim, ao tópico do nacionalismo metodológico e detectamos –
virando os pecados pelo avesso – algumas virtudes em relação aos problemas
enumerados para as ciências sociais contemporâneas:
1) Cito: “Por nacionalismo metodológico, consideramos a maneira pela qual
conceitos e medidas nas ciências sociais são constrangidos pelo Estado-
nação e por tradições acadêmicas nacionais.”
Gostaria de lembrar, mais uma vez, que antropólogos estudavam
“grupos”, “sociedades”, “tribos” – e não economias nacionais, dados
estatísticos nacionais; “áreas culturais” – e não economia internacional, ou
interações de economias nacionais; e aspectos da “condição humana”, isto
é, padrões de sistemas de parentesco, princípios da magia, atributos do
comportamento ritual, procurando, ao mesmo tempo, as diferenças
(culturais e sociais) e as dimensões universais.
2) “Em um sentido mais profundo, o nacionalismo metodológico refere-se à
maneira pela qual as ciências sociais ficaram presas às relações de poder e
tradições confinadas em fronteiras nacionais e, em última instância,
requerem diferentes abordagens metodológicas e instrumentais.”
A antropologia escapou desses limites, não por conta de uma decisão
nobre ou refletida, mas como resultado de seus objetivos explícitos, da sua
incorreção de procurar grupos exóticos, assim como de valores positivos
implícitos. Na verdade, exatamente porque os antropólogos estudavam “o
resto do mundo”, no mais das vezes o objeto de estudo se impunha sobre
as “tradições”. E, é preciso lembrar, mesmo “no mundo” (ou “no centro”),
empréstimos (“nacionais”) fizeram parte integrante do desenvolvimento da
antropologia – Radcliffe-Brown (na Inglaterra) inspirou-se em Durkheim
(na França), Evans-Pritchard (na Inglaterra) em Mauss (na França),
Dumont (na França) em Evans-Pritchard (na Inglaterra), Leach (na
Inglaterra) em Lévi-Strauss (na França), Lévi-Strauss (na França) em Boas
(nos Estados Unidos). Quando transplantadas do centro para a periferia, as
tradições “centrais” imediatamente tornam-se híbridas, transformando a
idéia de tradições puras em um caso difícil de defender.
3) “Não se trata apenas de como as ciências sociais elaboram conceitos e
medidas; trata-se, inclusive, de verificar os limites entre elas. […] O
estudo do fenômeno conhecido como globalização tem desafiado limites
convencionais e diferentes tradições.”
Se existe uma “autonomia relativa” entre os contextos sociais e a teoria
social que ali se produz, resultado semelhante pode ser alcançado por meio
de diferentes “escolas” de pensamento.5 Mas esse não é o problema aqui.
A questão é que a antropologia nunca respeitou os limites entre as
disciplinas – na verdade, o seu desenvolvimento se deve, em grande parte,
a empréstimos, feitos sem muita cerimônia, às disciplinas convencionais.
Antropólogos pediram emprestado, em uma espécie de ordem cronológica
desde o último século, da biologia, da lingüística, da psicanálise, da teoria
da informação, da economia e, mais recentemente, da filosofia, a tal ponto
que seu desenvolvimento pode ser relatado pelas disciplinas que
incorporou – e que modificou, de acordo com o material empírico em
questão.
4) “O objetivo aqui é discutir os desafios colocados pelo nacionalismo
metodológico para a investigação de problemas contemporâneos.”
Escolho um exemplo para indicar como orientações “canônicas” podem
nos ajudar a focalizar problemas contemporâneos. Refiro-me ao livro de
Stanley Tambiah sobre conflitos etnonacionalistas e violência coletiva no
sul da Ásia.6 Com o objetivo de examinar esse problema candente,
Tambiah lança mão de uma abordagem performativa do ritual (que ele
desenvolveu previamente ao reanalisar trabalhos etnográficos clássicos) e
escolhe como objeto empírico riots. Riots, no sul asiático, seguem um
padrão estabelecido: apesar de sua aparência espontânea, caótica e
orgiástica, eles revelam traços organizados, antecipados e programados,
assim como fases recorrentes. É possível distinguir um padrão de eventos
provocadores, a seqüência da violência, a duração, os participantes, os
lugares em que têm início e como se propagam, e a maneira como
terminam. (Rumores recebem especial atenção devido ao papel que
desempenham na construção, produção e propagação de atos de violência.)
Esses aspectos sintáticos dos riots não eliminam os significados
pragmáticos dos eventos, que se baseiam em um repertório de elementos
recolhidos das formas rotineiras de sociabilidade – tais como os
calendários rituais de festividades, sanções sociais populares, ritos de
purificação e exorcismo – que são imitados, invertidos e parodiados, de
acordo com suas possibilidades dramáticas.7 O foco na rotinização e
ritualização da violência e em seu caráter coletivo permite que se
clarifique por que brutalidades não deixam marcas psicológicas no
agressor, mas também ressalta o fato de que democracia participativa,
eleições, militância de massa e violência étnica no sul asiático não são
conflituosas quando em ação. Na Índia, Paquistão, Sri Lanka e
Bangladesh, a tentativa de construir um Estado-nação baseado no modelo
europeu ocidental claramente falhou; nessa região, as marcas da
experiência do Estado-nação são pálidas quando contrastadas com a escala
e a intensidade dos festivais religiosos e étnicos. Comparando o caso sul
asiático com a experiência européia, Tambiah conclui que o repertório
cultural dessa região não possui os fundamentos para a vida cívica do
Estado-nação. Teóricos da política do sul asiático devem, portanto, abrir
espaço para incluir política militante eleitoral e violência coletiva como
componentes integrais de suas teorias de democracia em ação.
Em relação às questões aqui abordadas, podemos dizer que:
1) ao escolher riots como os eventos centrais para investigar a violência
coletiva no sul asiático, Leveling Crowds evita o “nacionalismo
metodológico” – se “nacionalismo” (ou “nacionalidade”) é um tema a ser
considerado, essa é uma questão empírica que precisa ser enfrentada no
encontro entre ideais e valores nativos, comparação antropológica e os
valores do próprio antropólogo;
2) o sul asiático é uma área sociocultural, isto é, o livro inclui narrativas de
eventos ocorridos na Índia, Sri Lanka, Paquistão e Bangladesh durante os
últimos dois séculos, focalizando os atores envolvidos, sejam eles budistas,
hindus, católicos, muçulmanos, tamils, siques, mahajirs e outros;
3) a comparação está sempre presente, tanto no objeto de estudo quanto na
visão do observador (no caso específico, Sri Lanka é o lugar de origem de
Tambiah);
4) aqui, a metodologia é uma questão de logística com o propósito de definir
uma agência ou evento significativo que seja reconhecido como
socialmente importante para os “nativos” e analiticamente produtivo para
o antropólogo;
5) finalmente, Tambiah não impõe um conceito de política nem pressupõe
como ela deveria ser. Na verdade, ele está indiretamente alertando os
cientistas sociais para os perigos do que aqui estamos chamando de
nacionalismo metodológico.
Brasil
Mudemos do sul da Ásia para o Brasil. Diferente da cosmologia
“civilizacional” do sul da Ásia, o Brasil é orientado em um sentido mais
“nacional”. Nacionalidade é o pão diário da vida social (embora não
necessariamente o “nacionalismo”, o lado patológico desse fenômeno
moderno). Uma mudança de valores públicos é, portanto, evidente quando se
desloca do sul da Ásia para a América do Sul.
Tendo sido ratificada localmente durante os anos 1930 e 1940,
principalmente como um movimento em direção à “modernização”, as
ciências sociais no Brasil mantiveram um diálogo aberto com agendas
políticas, reproduzindo os padrões europeus da sociologia nos séculos XIX e
XX. Nesse contexto, tópicos para investigação raramente foram
descontextualizados e aspectos “interessados” do conhecimento muitas vezes
se tornaram explícitos. Esse traço marcante, com freqüência, impediu que
observadores percebessem a importância concedida à procura incessante de
excelência teórica, fundamental nesse ambiente e parte do projeto amplo de
modernização, que dá às ciências sociais no Brasil uma forte coloração
cosmopolita. Na verdade, até os anos 1970, muitos estudantes brasileiros iam
se formar no exterior, e acadêmicos britânicos, franceses e norteamericanos
vinham ensinar aqui. Hoje, sendo quase a maioria treinada no país, essa
situação resulta em um padrão que inclui um diálogo triangular: com colegas
antropólogos e sociólogos, com as tradições metropolitanas de conhecimento
(passadas e presentes) e com os grupos pesquisados. Cientistas sociais
brasileiros produzem como se fossem parte integrante da vanguarda
internacional – idéia facilitada pelo grande número de especialistas –, mesmo
vivendo uma experiência concentrada devido ao isolamento da língua
portuguesa.
No âmbito dessa comunidade fechada, contudo, um contraste marcante
separa os antropólogos dos sociólogos e cientistas políticos: para os
antropólogos, os sociólogos e os cientistas políticos são presas de projetos,
práticas, planos e preocupações sociais imediatos – em uma palavra, presas
do nacionalismo metodológico. Sociólogos e cientistas políticos, por seu
lado, vêem os antropólogos como especialistas soft, menos engajados social e
politicamente, menos rigorosos em termos metodológicos, interessados em
diferenças bizarras e sempre contentes com sua disciplina. Crise é uma
palavra estranha para os antropólogos, mas uma expressão comum para
sociólogos e cientistas políticos. Devo acrescentar que o desconforto aumenta
para os últimos com o prestígio crescente da antropologia.
Mas mesmo antropólogos fazem parte de contextos sociais, e se o
exotismo se tornou a marca registrada (ou o estigma) da disciplina, no Brasil
reconhecemos a alteridade e a diferença – os híbridos locais do exotismo –
surgindo em vários formatos: um tipo de “alteridade radical” pode ser
encontrado no estudo de sociedades indígenas isoladas; “contato com a
alteridade”, na investigação que focaliza sociedades indígenas e os grupos
locais nacionais que os rodeiam; “alteridade próxima”, no estudo de temas
urbanos contemporâneos, e mesmo “nós como outros”, na investigação da
natureza das ciências sociais propriamente ditas. Naturalmente, os
financiamentos têm muito a ver com essas escolhas se os recursos estiverem
direcionados à “compreensão do Brasil”. Uma tendência para se pesquisar
fora do Brasil, contudo, teve início há mais ou menos duas décadas, com
pesquisadores indo para a África, sul da Ásia e o Pacífico, geralmente
seguindo os caminhos da colonização portuguesa, ou os passos de imigrantes
brasileiros para os Estados Unidos, por exemplo. (Ver Peirano, 1998.) Em
todas essas situações, a ênfase nas categorias nativas forçou os antropólogos
a discernirem entre ideologias nacionais como projeto, como um “problema”
cívico para o cidadão comum ou como um modelo “mundial” – nesse
sentido, criando condições para evitar o nacionalismo metodológico.
Histórias da antropologia
Até os 1960, a história da antropologia era relatada apenas pelos próprios
etnólogos, e somente no final de suas carreiras. A trajetória bem-sucedida dos
autores e o fato de serem contemporâneos dos eventos e publicações davam
credibilidade e legitimidade às narrativas. Só para mencionar alguns
exemplos: seis anos antes de falecer, Alfred Haddon (1855-1940) publicou o
livro History of Anthropology; a primeira edição de The History of
Ethnological Theory, de Robert Lowie (1883-1957), é de 1937, quando o
autor já era reconhecido; Developments in the Field of Anthropology in the
Twentieth Century, de Clyde Kluckhohn (1905-1960), data de 1955.3 Outras
indicações: André Singer editou A History of Anthropological Thought, de
Evans-Pritchard (1902-1973), depois da morte do autor;4 no meio do século
XX, foram publicados estudos e biografias de antropólogos “clássicos”: esse
é o exemplo de Goldschmidt (1959) sobre Boas.
O quadro muda com George Stocking. Em 1968, o historiador publica seu
primeiro livro, Race, Culture, and Evolution. Essays in the History of
Anthropology, que se tornou referência obrigatória já na década seguinte. A
linha de trabalho inaugurada por ele se ampliou e, hoje, vários pesquisadores
se dedicam a examinar trajetórias e períodos históricos em diversos
contextos. Além dos volumes publicados na coleção dirigida por Stocking,
“History of Anthropology” (HOA) a partir de 1983, a melhor fonte para obter
informações sobre estudos contemporâneos de história da antropologia é o
HOA Newsletter, boletim editado pelo próprio Stocking desde 1988, que lista
trabalhos em andamento, comentários e recomendações. Apesar da grande
produção que atualmente se verifica, até hoje nenhum historiador ultrapassou
Stocking em termos de uma obra tão relevante quanto contínua.5
Mas autores nunca dominam a apropriação que se faz do seu trabalho, e o
uso dos escritos de Stocking não é exceção. No Brasil, há um fenômeno
especialmente curioso: a história da antropologia desenvolvida por Stocking
freqüentemente se converte em teoria antropológica. Isto é, professores, tanto
quanto alunos, não separam historiografia de teoria. Esse é um problema que
traz conseqüências sérias para a formação de novas gerações, já que
estudantes evitam trilhar as monografias clássicas em favor dos relatos
históricos mais atraentes de Stocking.
É necessário, portanto, distinguir dois tipos de histórias da disciplina que,
embora interligadas, ao terem objetivos diferenciados, desenvolvem
estratégias específicas para recuperar um autor do passado. A primeira é a
história da disciplina, no estilo propriamente historiográfico que Stocking
consagrou entre nós (e que inclui, como um subtipo, a antropologia da
antropologia). Falaremos mais sobre isso adiante. A segunda é a história
teórica, uma história interna à prática da antropologia, que indica a orientação
e as questões centrais da disciplina, os refinamentos pelos quais passou e, não
menos, os insights que, não tendo sido devidamente apreciados na época em
que foram divulgados, inspiram a renovação de perguntas tanto empíricas
quanto teóricas.
• Hallowell. Mas aqui nos perguntamos: in this context não é também uma
expressão comum em textos etnográficos? Não estamos invariavelmente
observando eventos, crenças, linguagens em contexto? Vale, então, uma
indicação sobre o período em que Stocking se formou como historiador na
Universidade da Pensilvânia. Stocking teve em A. Irving Hallowell (1892-
1974), antropólogo da linhagem de Boas, o seu mentor na disciplina. Foi
Hallowell que, em 1965 – antes, portanto, da primeira edição de Race,
Culture, and Evolution –, propôs que a história da antropologia deveria ser
“um problema antropológico”, influência que Stocking (1976) reconhece
como central no seu trabalho.7
Para compreender a história da antropologia, Hallowell defende que é
mais rentável seguir o roteiro das perguntas que a antropologia se faz do que
acompanhar a disciplina definida convencionalmente. Concebida como um
problema antropológico, a história não se reduz ao interesse até então quase
exclusivo pelos questionamentos institucionalizados, mas o suplementa. Essa
perspectiva também evita a possibilidade de isolar de forma arbitrária o
desenvolvimento da antropologia de suas raízes culturais. Para Hallowell
(1974), a história da antropologia deve dirigir sua atenção para o contexto e
para as circunstâncias históricas nas quais surgiram questões hoje centrais.
Hallowell vai mais longe: questões antropológicas não são exclusivas dos
tempos modernos. Se as procuramos em sociedades não-ocidentais, vamos
encontrá-las inseridas na orientação cognitiva desses povos, na sua
cosmologia, de onde elas não teriam sido separadas, abstraídas e articuladas
como hoje entre nós. Dessa perspectiva, Hallowell abre espaço para examinar
não apenas a história cronológica, mas as condições para a emergência de
uma antropologia fora de seu campo institucional próprio. Isto é, Hallowell
permite-nos questionar quem são e como surgem antropólogos, em que
sentido não-especialistas podem fazer antropologia e como alguns
questionamentos se legitimam como antropológicos – assim nos levando de
volta à problemática de uma antropologia da antropologia.8
Hallowell representa, portanto, um elo fundamental na nossa discussão,
unindo e diferenciando vários tipos de reflexão. Por partes: primeiro está a
convergência que a proposta de Hallowell propicia entre a história da
antropologia e a antropologia da antropologia, graças à inspiração comum
que indicamos acima. Essa convergência se dá exceto por dois pontos
principais: (a) enquanto a primeira focaliza o passado “como um outro lugar”,
à segunda interessa questionar igualmente passado e presente, sempre em
busca das condições que legitimem certas questões como antropológicas; e
(b) pela exigência, na antropologia da antropologia, de uma orientação
teórica, ela própria antropológica, que fundamente a investigação – e que, no
meu caso, encontrei em Durkheim e Mauss.9 Segundo, como Hallowell tanto
refletiu sobre a história da antropologia quanto foi um pesquisador de campo,
existe, para sorte nossa, certa permeabilidade entre a historiografia de
Stocking, a antropologia da antropologia e o que chamo de história teórica.
Mas, nesta terceira abordagem, a distinção é mais clara, e a separação, mais
imperativa. Vejamos.
• História teórica. Em contraste com as abordagens da história da
antropologia e da antropologia da antropologia está a história teórica – termo
que uso para indicar a combinação sui generis de história + teoria –, que
consiste em uma visão interna à prática da antropologia. É a história teórica
que informa e guia o refinamento e a expansão da antropologia a partir de
pesquisas de campo nossas e de nossos predecessores. É por meio da história
teórica que vislumbramos as questões que marcaram o desenvolvimento de
obras consideradas fundantes da disciplina, seu corpo canônico (ou mítico,
para quem preferir). Quando procuramos formar alunos em teoria
antropológica pela leitura seqüencial dos autores e pelo exame dos
desdobramentos de questões tidas como relevantes, estamos colocando a
combinação história + teoria em ação. A história teórica trata, assim, do
exame dos problemas que se tornaram pertinentes e merecedores de
investigação, e dos diálogos que antropólogos empreenderam e que
constituem um repertório aberto e continuamente renovado de perguntas ou
formulações. O movimento final é espiralado e dinâmico, em que questões
prévias adquirem nova vida, afastando-se de uma idéia linear ou progressiva.
Como alunos de antropologia não “aprendem”, mas se “formam” em
antropologia (Duarte, 1995), parte importante da iniciação pela qual passam
resulta na criação de linhagens de autores, individuais ou coletivas, produto
de bricolagens de orientações teóricas específicas. Interna à prática da
antropologia, a história teórica informa e guia seu refinamento, a partir de
pesquisas que, ao contestarem verdades do senso comum pela surpresa
intrínseca à prática etnográfica, também confrontam a própria teoria
acumulada e a corrigem, enriquecem ou contestam. Essa “eterna juventude”
da antropologia vem sendo desenvolvida desde que Malinowski estabeleceu o
kula como uma nova agência no mundo ocidental, em contraste com as
teorias então vigentes sobre economia primitiva. Não é inesperado, portanto,
que a revisitação aos clássicos seja uma prática fundamental, da mesma
forma que as monografias etnográficas se tornam o capital mais significativo
da disciplina. Teoricamente necessárias, mas também indispensáveis por seu
papel sociológico de criar vínculos entre gerações, as monografias clássicas
fornecem-nos um quadro de referência intelectual, um legado teórico, um
mapa de questões relevantes e um repertório de problemas à procura de
solução. Aqui, a promessa teórica que suscitam é mais significativa do que o
contexto em que foram produzidas.10
• Recapitulando. Stocking é um scholar sui generis – treinado por Hallowell
no período de sua formação, há décadas atuando como professor de
antropologia em Chicago, ele mantém sua identidade como historiador por
duas razões, que vê como centrais: seu interesse mais pelo passado do que
pelo presente e o fato de nunca ter vivido o rito de passagem da pesquisa de
campo: “O arquivo do historiador não é o campo do etnógrafo”.11 Como
antropólogo, portanto, reconhece seu status de outsider, visto com certa
suspeição pelos etnólogos legítimos (que temem se transformar em nativos).
Como historiador da ciência, também se considera marginal, já que a área é
dominada em termos de prestígio pelas hard sciences. Mas se Stocking não é
um antropólogo/etnólogo, seu alerta contra o anacronismo é precioso – uma
lição lúcida, esclarecedora e equilibrada, sobretudo quando os antropólogos
passam a considerar o passado como algo descartável. Sua visão entre as
perspectivas historicista e presentista é inestimável: se o passado é um outro
lugar, ele sobrevive nas elaborações e nos diálogos teóricos contemporâneos.
Mas, como o próprio Stocking propõe, história da antropologia não é teoria, e
teoria antropológica não é história – mistura de abordagens internas e
externas que freqüentemente confundem mais do que esclarecem a formação
dos alunos.
Dou dois exemplos rápidos. O primeiro refere-se a Charles Peirce. Para
um antropólogo, suas lições sobre os signos icônicos, indéxicos e simbólicos
independem do fato de ele ter sido considerado por seus pares um intelectual
excêntrico nos Estados Unidos do século XIX e nunca ter conseguido, em
parte em vista disso, um posto acadêmico. Até que ponto as idéias sobre a
natureza dos signos nasceram do seu status de outsider continuará sendo uma
incógnita que não nos cabe resolver.12 Durkheim fornece-nos um segundo
caso. Não perturba nossa apropriação contínua de suas lições sobre a natureza
da sociedade saber que o autor podia ter uma personalidade considerada
questionável na época – um autoproclamado guardião da verdade, com
características dominadoras e tirânicas, e um adepto virtuoso do sistema de
patronagem (Lepenies, 1985).13
Sugiro, portanto, em relação às nossas categorias gerais que, … no seu sentido mais
forte, política e economia de um lado, religião e sociedade de outro, se opõem, os dois
primeiros conceitos representando a inovação moderna e os dois últimos, “a
continuidade com o universo tradicional que permanece no universo moderno”.
Louis Dumont (1977, p. 22)
Weber e a antropologia
Mas antropólogos geralmente não consideram Max Weber um dos
fundadores da disciplina. Aqui há um fato curioso na descendência intelectual
dos praticantes da antropologia: embora Durkheim e Mauss sejam os
ancestrais por excelência, servindo como inspiração expressa para problemas
e questionamentos, um exame mais minucioso da literatura indica a
existência de um diálogo menos explícito, mas extremamente relevante, com
Weber, discernível especialmente no trabalho daqueles que, nas últimas
décadas, estabeleceram como objetivo, e vêm procurando focalizar, a
interdependência da especificidade etnográfica com as teorias
macrossociológicas.
Confirmando que as idéias ditas científicas têm vida social, foi somente
quando a antropologia reconheceu que poderia legitimamente examinar
eventos etnográficos singulares e microscópicos para responder a grandes
perguntas universais que o diálogo com Weber se fez presente. Antes, desde
a década de 1950 pelo menos, Edmund Leach já apontava para o fato de que,
protegida nos sistemas equilibrados e sincrônicos, a antropologia precisava
enfrentar a História e, portanto, só teria a ganhar com um diálogo com
Weber. O desejo dessa interlocução não é, portanto, uma novidade na
antropologia, mas o desafio de Leach (de 1954) não encontrou eco quando foi
formulado, em plena efervescência estruturalista.
Dos antropólogos contemporâneos que têm Weber como interlocutor,
podemos apontar três: Louis Dumont, Clifford Geertz e Stanley Tambiah.
Curiosamente, cada um deles se vincula etnograficamente a uma das
“religiões mundiais” weberianas: hinduísmo, islamismo e budismo.4 Não
pretendo fazer uma avaliação ampla da obra desses autores – tomo como
dado seu conhecimento geral –, registro apenas a influência diferenciada de
Weber sobre cada um dos três.
• Louis Dumont. Por que ir à Índia, senão para aprender algo sobre o
Ocidente? Senão para aprender sobre um princípio social universal, a
hierarquia? Como o homem não somente pensa, mas age, ele não tem apenas
idéias, mas também valores. Se adotar um valor é introduzir a hierarquia, a
Índia mostra-nos a hierarquia de maneira explícita, na contramão dos
princípios da sociedade moderna. A antropologia, ao procurar gradualmente
compreender as mais diversas sociedades, dá provas da unidade da
humanidade.
Se essa proposta tem sua inspiração em Durkheim e Mauss – a Índia vista
como contraponto ao Ocidente como civilização –, Dumont credita a Weber a
formulação de seu problema central, quando este indicou a necessidade de se
analisar os vários significados históricos do termo “individualismo” em uma
nota de rodapé de A ética protestante.5 Embora o abandone depois em favor
de Tocqueville, para Dumont Max Weber teria alcançado “um milagre de
empatia e de imaginação sociológicas”6 por sua contribuição à sociologia
geral, pelo vasto afresco da religião comparada que ele pintou e, na ausência
de dados primários, pela maneira refinada com que pôs em contraste os
universos hindu e ocidental.
Mas há outro aspecto significativo a considerar. A perspectiva de Dumont
reporta ao fato social total (de Mauss) e à inspiração antropológica que,
contrária à especialização moderna, comanda: “reunir sempre!” Mas Dumont
não apenas aceita a idéia de fato social total, como a expande e complexifica
quando inclui a dimensão do valor. O valor indica diferença e traz como
desdobramento uma hierarquia de domínios. Por exemplo, para ele a esfera
da economia só existe a menos e até que os homens construam
ideologicamente tal objeto – tal foi o caso do Ocidente. Como conseqüência,
distinguir, separar, desgarrar (dis-embed) a economia em uma sociedade que
não a concebe no domínio do ideário social torna-se uma tarefa procustiana.
Inversamente, naturalizar uma política e fundamentar uma “ciência política”
em uma teoria de poder tout court é tornarse presa da ideologia (ocidental e
individualista) que a engendra. Por esse caminho, Dumont conclui que o
questionamento da política não pode evitar o exame da relação entre poder e
valores, sem o qual corre vários perigos: de a subordinação se tornar um
resultado mecânico da interação de indivíduos, de a autoridade se degradar
em poder; e de o poder se tornar influência.7
Nesse contexto, seria inapropriado lembrar que Weber considerava
produtivo examinar como os mesmos problemas eram resolvidos em
sociedades diferentes, revelando formas alternativas de coerência estrutural?
Weber – a quem Dumont não poupa elogios –, não foi ele quem identificou o
sinal da diferença nas grandes religiões ao focalizar, no caso hindu, os
brâmanes; na China, os literati; no judaísmo, os profetas – inspiradores de
“estilos de vida” que eventualmente se tornaram orientações dominantes de
diferentes civilizações?8 Fica a pergunta: estaremos diante de uma afinidade
eletiva entre Weber e Dumont ou, melhor, de uma inspiração weberiana que
se percebe em Dumont?
Histórias teóricas
Nas comunidades transnacionais formadas por cientistas sociais, as obras
clássicas colaboram na manutenção de ideais de universalidade, ao mesmo
tempo em que ajudam a cimentar as relações sociais entre cientistas de várias
origens. Os clássicos de uma disciplina são, portanto, criações teoricamente
indispensáveis e sociologicamente necessárias, por intermédio das quais os
praticantes se identificam e (re)produzem nos diversos ambientes
acadêmicos.15
Nesse contexto, finalizo com a seguinte proposta: se Max Weber não
figura na genealogia direta da antropologia, tal fato não impede que
possamos incluí-lo em uma das muitas histórias teóricas da disciplina,
gerando círculos de troca por afinidade.16 Schluchter (1989) faz uma
comparação sensível entre Weber e Durkheim. Ele nota que, ao estudar a
religião, tanto Weber quanto Durkheim:
1) perceberam o homem como um animal simbólico;
2) viram os “objetos sagrados” como representações (isto é, indicando
aspectos não empíricos da realidade; expressões da existência de idéias,
ideais e de um mundo de valores);
3) aceitaram que os símbolos religiosos e as idéias que eles representam
podem ser generalizados e sistematizados.
A essas semelhanças, Schluchter acrescenta duas diferenças principais: se
Durkheim propôs condições coletivas, Weber introduziu condições
individuais; enquanto a teoria do valor de Durkheim se centrava na diferença
de valores, Weber enfatizava o conflito de valores.17 Ainda seguindo
Schluchter, Durkheim salientava a idéia de sociedade, enquanto Weber
evitava tal conceito.18
Mas há outros pontos fundamentais a mencionar: ao propor a religião
como ponto de partida, o projeto durkheimiano desenhava uma teoria do
conhecimento e da reprodução social que incluía a manutenção e a eficácia
das representações. Se Durkheim historicamente foi apropriado – às vezes,
mesmo por antropólogos – como o teórico das “representações” e das
questões relativas à solidariedade, essa foi uma simplificação perversa, um
empobrecimento de sua proposta teórica. O próprio Durkheim havia alertado
para uma visão das formas elementares da vida social que insistia em incluir
os rituais como atos de sociedade, enfatizando que é por meio da ação
comum que a sociedade toma consciência de si, se afirma e recria
periodicamente, mediante uma eficácia sui generis. Estava aberta a porta para
que os antropólogos estudassem, com o mesmo instrumental analítico, tanto
sociedades primitivas quanto modernas. Durkheim havia proposto uma teoria
da sociedade em termos universalistas.
Hoje, contudo, quando os antropólogos procuram realizar esse projeto de
forma mais integral, eles (re)descobrem que podem enriquecê-lo a partir do
legado weberiano: há uma longa história de conquistas comuns, que passa
pela preocupação com a cultura, pela comparação entre projetos históricos
que iluminam valores equivalentes (mas não iguais), pela ênfase na
interpretação e pelo desafio perene de combinar a visão microetnográfica
com uma perspectiva macrossociológica. Essa fusão certamente nos
aproxima como cientistas sociais e, conseqüência imediata, questiona as
diferenças radicais entre os projetos da antropologia e da sociologia. Mas,
mesmo concluindo que as especializações, se não intelectuais, pelo menos
institucionais, são inevitáveis, ainda assim teremos todos a ganhar: nós,
antropólogos, uma teoria da ação e uma concepção da relativa autonomia da
esfera política. À cosmologia durkheimiana acrescenta-se a ação do indivíduo
moderno. Em reciprocidade, podemos oferecer uma longa reflexão sobre a
horizontalidade das crenças e das práticas na religião, magia e ciência. Quem
sabe não é hora de sobrepor essa construção triangular à weberiana da
religião, ciência e política? Desafios não vão faltar.
8. Por uma sociologia da Índia:
alguns comentários1
Diálogos difíceis
Assim, mais uma vez, a história da disciplina se repete: rebelião e
assimilação, sempre por meio de diálogos difíceis. “For a Sociology of India”
é um retrato, ou talvez um script, de um deles. Esse debate é singular na
medida em que, aqui, diferenças de contextos sociais, colonialismo,
princípios éticos, tanto quanto momentos históricos, surgem de forma mais
forte do que nos debates clássicos da história da disciplina.
O ideal de intercomunicação estava presente desde o início. Para Dumont,
a revista tinha por objetivo reunir “contribuições com um propósito comum”.3
Foi em consonância com essa orientação que, nos primeiros anos, Dumont e
Pocock assumiram uma prática inusitada: eles não assinavam os artigos e
avocavam a si a responsabilidade conjunta por eles. Mas, aparentemente,
Dumont não estava preparado para aceitar perspectivas diferentes daquelas
que ele e Pocock defendiam, e deixou explícito seu desapontamento quando a
revista não recebeu a aprovação consensual tão esperada. Por tudo, Dumont
sentia-se frustrado por haver falhado em criar uma comunidade, reclamando
das condições de trabalho intelectual, em que cada um “é compelido a se
abster das orientações coletivas … em direção às orientações mais pessoais
do filósofo, escritor ou artista”, chegando a admitir que não havia um
processo cumulativo de conhecimento, além de concluir que entre os
antropólogos “uma comunidade científica mal existia”.4 Comparando essa
frustração com o prestígio da revista então, o leitor sente certa incongruência
entre a sociologia que Dumont praticava e sua recusa em aceitar que o
trabalho individual do cientista se soma, sob qualquer circunstância, e produz
um fenômeno coletivo.
O cientista aqui está no lugar do mágico de Mauss. De Mauss, podemos
também lembrar que representações coletivas ou cosmologias precisam de
rituais, porque o consenso, como uma proposta ideológica, só pode ser
alcançado por meio de “atos de sociedade”. Em termos do debate em questão,
um estágio confortável foi alcançado somente quando se aceitou que posições
antagônicas precisavam ser explicitadas e ouvidas. Nesse contexto, o
engajamento no diálogo foi o caminho inevitável, embora nem sempre fácil,
para confrontar visões opostas, com a vantagem adicional de que o ato de
debater propiciou a criação de um lugar ritual específico – a seção “For a
Sociology of India” –, além de permitir o reconhecimento da igualdade de
fato entre os contendores potenciais.
É, portanto, interessante notar que os sociólogos indianos aceitaram a
polarização, e que esta se transformou na motivação básica para o desafio de
dar melhores soluções às questões colocadas pelos sociólogos ocidentais. O
Ocidente predefinia os temas; os indianos excediam-se no questionamento
dos problemas trazidos à baila e ofereciam respostas de perspectivas
alternativas. O resultado foi uma espécie paradoxal de cosmopolitismo
indiano.
A persistência e a duração do debate tornaram-se, se não mais, tão
importantes quanto as idéias discutidas. Tal fato pode ser atestado quando
percebemos que, embora o início não tenha sido fácil, de desafiadores os
sociólogos indianos transformaram-se, ao longo do tempo, em participantes
da discussão. Suas posições foram se tornando mais moderadas: por exemplo,
o swarajist Uberoi de 1968 ressurgiu como estruturalista em 1974; o crítico
Madan de 1966 reconheceu publicamente o papel mobilizador de Dumont em
1982. O exemplo de Saran é revelador, já que suas idéias foram introduzidas
na revista indiretamente por Madan, que recebeu uma resposta irritada de
Dumont, demonstrando não haver lido o original.5 Os sociólogos indianos
parecem ter assumido uma perspectiva sociológica que se revelou mais
satisfatória que a do amargo Dumont.
Esse episódio lança um pouco de luz sobre o velho problema da estrutura
de poder no mundo acadêmico – que, aliás, não se altera substancialmente
pelo fato de o inglês ser a língua comum a todos os participantes. Mas outra
questão também se esclarece: foi a posição de Madan que, em médio prazo,
tornou possível que o diálogo se desenvolvesse a ponto de haver lugar para
todos. Surpreendentemente, nesse contexto, a posição de Saran foi a mais
confortável: como um tradicionalista radical, sua visão extrema eximiu-o de
tomar parte na tentativa de uma comunicação mais efetiva, apesar de ter
desempenhado seu papel indispensável como oponente respeitado.
Em que medida o debate “For a Sociology of India” representou um
momento fundamental no estilo de antropologia que se desenvolve na Índia,
hoje, é uma questão em aberto. É possível também se perguntar, nesse
contexto, se o debate favoreceu um grau satisfatório de comunicação. Aqui,
talvez a questão central seja a de que o ato de comparar – ao qual os
antropólogos em geral se dedicam com tanta tenacidade – é incompatível
com o diálogo tout court. Como o próprio Dumont sugeriu, comparação
implica diferença, a diferença traz hierarquia e, como conseqüência, o ideal
de comunhão entre iguais não se dá. Mas pode-se também levantar a hipótese
de que, mais que um diálogo, “For a Sociology of India” se constituiu em um
fórum simbólico das intenções dos participantes e que, ao expressar o desejo
e a necessidade de comunicação, a troca de idéias efetivamente se realizou.
De fato, antropólogos indianos são convidados por centros no exterior, há
algumas décadas, não apenas pelo interesse etnográfico que a Índia sempre
despertou, mas pelas contribuições teóricas que os cientistas sociais indianos
podem oferecer e pela abordagem específica mediante a qual enfrentam
temas novos ou tradicionais.
Por outro lado, quando especialistas estrangeiros visitam a Índia, deles não
se espera que tragam a última moda – que certamente será vista com cautela
–, mas que ouçam o que os indianos têm a dizer. Por meio de debates,
controvérsias e diálogos com o mundo mais amplo, a antropologia na Índia
encontrou seu próprio caminho – ela hoje tanto é herdeira do pensamento
clássico indiano quanto um ramo da sociologia de origem européia.
O título de eleitor
O título de eleitor leva-nos por outros caminhos. Ele se fez presente, em
termos etnográficos, em uma pesquisa de campo em Minas Gerais no início
dos anos 1980. Diferentemente da situação urbana descrita por Santos,15 em
Rio Paranaíba, o título de eleitor era o documento mais requisitado no
cartório da cidade. Tudo faz crer que se tratava, para a população rural, do
equivalente à carteira de trabalho, tendo em vista o fato de o empregador
providenciar o título eleitoral para seus novos empregados, até arcando com
eventuais despesas. No entanto, se esse documento preenchia função
correspondente à da carteira profissional, por outro lado, continha implícitas
outras dimensões que eram especificamente rurais – ou, melhor, “não-
urbanas” –, entre elas a personalização das relações sociais e a onipresença da
política como esfera de atuação e como categoria ideológica.
Rio Paranaíba não era uma comunidade isolada, como comumente
idealizado pela população urbana em relação ao interior em geral. Rio
Paranaíba formava com outros municípios vizinhos – São Gotardo, Carmo do
Paranaíba, Patos de Minas, Ibiá, por exemplo – uma espécie de rede de
relações comerciais e de serviços, a qual podia estender-se a Belo Horizonte
ou mesmo Brasília, para onde, inclusive, foi significativa a migração na
década de 1960. Rio Paranaíba, apesar de sua população pequena (nos anos
1980 contava com, aproximadamente, três mil habitantes na sede e 11 mil no
restante do município), desfrutava de recursos razoáveis em comparação com
os da maioria da população rural brasileira. Na época da pesquisa em pauta,
encontravam-se lá, por exemplo, um posto de saúde, um hospital (quase
inoperante) com dois médicos, uma escola pública, um ginásio, um cartório,
escritório do Sindicato de Trabalhadores Rurais, agência do Banco Real,
escritório de contadoria, uma igreja católica com padre residente, um templo
protestante, um hotel, uma pensão. Moravam em Rio Paranaíba um juiz, um
procurador e dois advogados. Nos últimos anos, tinham sido inauguradas
uma creche, uma estação rodoviária, uma nova sede da Prefeitura e instalada
uma agência do Banco do Brasil.16
Nesse ambiente, em que os habitantes conviviam com recursos urbanos, o
título de eleitor não era uma sobrevivência de um passado clientelista, mas
uma realidade que coexistia com a introdução de medidas modernizantes, tais
como a criação do Estatuto do Trabalhador Rural e do Fundo de Assistência e
Previdência do Trabalhador Rural – Funrural. É importante salientar isso,
porque Santos em seu argumento sugeriu que, com a extensão dos direitos
sociais ao campo, não só a população rural se integraria à sociedade legal,
mas também o Funrural representaria uma inovação de tal ordem nos valores
políticos e sociais que romperia a concepção de “cidadania regulada”. Esses
novos direitos, segundo o autor, trariam como novidade o fato de se
estenderem a todos os membros da coletividade agrária, independentemente
de sua ocupação. No entanto, se o título de eleitor servia como símbolo de
identidade cívica, se não contradizia, pelo menos sugeria que se deve encarar
com cautela a relação entre a extensão de direitos pelo Estado e as
concepções de cidadania vivenciadas pela população. Nesse contexto, o título
de eleitor vinculava, em primeiro lugar, o cidadão ao empregador, e só
secundariamente aos outros eleitores. Ele simbolizava não o direito de voto,
mas uma filiação política.
A esse respeito, dois aspectos devem ser salientados para futuras
pesquisas: um se refere ao que se concebe localmente como política; o outro,
associado ao primeiro, tem a ver com a concepção de filho do município.
Ambos mostram que, apesar da integração de Rio Paranaíba nos cenários
regional e nacional, as informações provenientes dos grandes centros, e
mesmo as medidas concretas de inclusão da população na categoria de
cidadão, recebem interpretações locais particulares.
Como exemplo da importância da “política”, basta mencionar seu uso
como explicação para grande parte dos eventos locais: meio de se conseguir
um emprego, causa de uma demissão, razão última de problemas
aparentemente religiosos. Justificativas para essas situações eram geralmente
dadas em termos lacônicos: “É a política.” A “política” elucidava ocorrências
históricas – por exemplo, a razão de Benedito Valadares ter sido nomeado
interventor em Minas Gerais sem sequer estar incluído na lista dos
candidatos, mas apenas por ser casado com uma filha adotiva de Getúlio
Vargas. Mas a “política” deslindava também a morte de um padre católico
pela facção protestante ocorrida cinqüenta anos antes. Por outro lado, a
“política” era dada como razão para a nomeação de procuradores, inspetores
escolares, professores, assim como para a perda de cargos quando a outra
facção estava no poder.
Tratava-se de uma concepção de política vinculada a relações
personalizadas e hierárquicas, em contraste com o modelo individual e
universalista da ideologia moderna. Não eram as características de cada
pessoa, e tampouco sua qualificação ou mérito, que determinavam sua
escolha para um emprego, mas sua posição social dentro de um grupo e a
rede de relações mantidas com outros membros desse mesmo grupamento.
Por outro lado, em Rio Paranaíba, essa mesma dinâmica se observava no que
diz respeito aos valores dos serviços. Ali, praticamente, inexistiam tabelas de
preços, notando-se uma flutuação constante e considerável entre os mesmos,
sendo o mercado regulado por meio de avaliações de status e posição
hierárquica. Assim, por exemplo, o custo para a obtenção de um documento
no cartório local ou o salário de uma empregada doméstica diferiam de
acordo com as pessoas envolvidas. Essa situação era aceita e não havia
demandas por isonomia, já que pessoas com papéis sociais diferentes tinham
obrigações e deveres que variavam conforme o lugar que ocupavam na
sociedade. Tudo isso convivia com situações reveladoras, como o jovem
prefeito de então que, mesmo não pertencendo a nenhuma das famílias
tradicionais locais, foi extremamente bem-sucedido quando procurou
imprimir um caráter moderno-tecnocrático ao seu governo, ao mesmo tempo
em que assumia um estilo mais tradicional nas suas relações com os governos
estadual e federal – sabendo que suas reivindicações para o município só
seriam aceitas uma vez estabelecidas certas alianças, ele costumava visitar o
governador em Belo Horizonte uma vez por semana, e a cada três meses, ia a
Brasília para manter contato com altos escalões federais.
Ser filho do município era, por outro lado, motivo de orgulho e atestado de
identidade social. A hipótese que gostaria de levantar aqui é que o município
serve como mediador entre os níveis individual e nacional, atuando como
entidade política, e não simplesmente como entidade territorial e
populacional (como define o IBGE). À medida que o indivíduo opera na
esfera municipal, ele também participa da vida nacional, via política.
Podemos citar o exemplo de pessoas que, mudando-se de Rio Paranaíba para
outros centros, fizeram questão de não transferir seu título de eleitor, em uma
clara afirmação de sua identidade de filho do município.
Em suma, a experiência em Rio Paranaíba não confirma a concepção de
Louis Dumont de que uma nação é uma sociedade que se vê como composta
de “indivíduos”. Para os seus habitantes, a imagem de nação era clara, mas o
modelo de cidadania, tal como tradicionalmente engendrado, ou a concepção
individualista de indivíduo, eram duvidosos. A idéia de nacionalidade era
mediada pela identidade de filho do município, cujo símbolo cívico e político
era o título de eleitor. A ênfase não recaía, portanto, no indivíduo como valor
último, mas no grupo. No município, os grupos eram os partidos políticos,
incluindo aqueles não mais reconhecidos oficialmente: “Aqui é tudo UDN e
PSD e vai continuar assim enquanto o mundo for mundo.” No plano estadual,
a identidade se fazia pelo município de origem, reafirmando a idéia de filho
do município. Finalmente, em termos nacionais, a identidade era de mineiro
(em contraste com goiano, baiano, paulista etc.). Esse esquema, familiar aos
antropólogos depois de Evans-Pritchard, aponta para uma ideologia nacional
que, em termos de padrão, deveria ser “individualista”, mas que se insinua,
ao contrário, como “holista”. Em contraste com o modelo de Dumont, o que
Rio Paranaíba sugere é a possibilidade de termos uma nação constituída de
indivíduos que não se vêem como iguais, e que, ideologicamente
hierarquizados na esfera local, transferem essa configuração para o plano
nacional. Ao que parece, esse modelo está intimamente associado à noção de
território – sobretudo de município –, quando não a partidos políticos que
simbolizam as divisões internas. Mas é necessário distinguir aqui, como faz
Dumont em relação ao “indivíduo”, o território como presença empírica e o
lugar do território na consciência que o grupo tem de si.17
O não-documento
É claro que a carteira profissional e o título de eleitor não esgotam as
possibilidades de simbolização da identidade nacional no Brasil. Há situações
em que a certidão de batismo preenche a mesma função, misturando-se aí
identidade civil e religiosa. Da mesma forma, há instâncias em que não é a
nação, mas o estado da federação (por exemplo, o Ceará) a unidade de
referência.18
Dado esse cenário variado, a discussão do impacto do programa de
desburocratização iniciado pelo governo federal em 1979 torna-se
interessante. A desburocratização seria definida, vis-à-vis os documentos
mencionados anteriormente, como a instância do “não-documento”. O
pressuposto era que a palavra do cidadão vale por um documento, e o
objetivo, eliminar ao máximo as dificuldades enfrentadas pelos usuários dos
serviços públicos.
Da mesma forma que os documentos simbolizam um modelo de
cidadania, a desburocratização representa um outro, em que o cidadão está
dispensado do excesso de documentos. Dominava a idéia de que o
indivíduo/cidadão deveria ter acesso direto ao governo, bastando para tanto
escrever, pessoalmente e sem intermediários, ao Ministério da
Desburocratização. Logo depois de iniciado, o programa procurou avançar:
por via do telefone, o projeto “Fala Cidadão” (implantado em 1985)
eliminaria até a intermediação da carta. Tratava-se, portanto, da implantação
de um modelo de nação na forma como foi definido por Mauss, em que a
integração era de tal ordem “que, por assim dizer, não existe intermediário
entre a nação e o cidadão, que toda espécie de grupo desapareceu”.19
A cidadania alcançaria sua condição mais pura: os cidadãos da nação,
iguais perante o Estado, teriam acesso direto não só ao Ministério, mas ao
próprio ministro (no caso das cartas). Vale aqui lembrar que o programa de
desburocratização teve início no âmbito de um Ministério “extraordinário”,
ele próprio concebido como desburocratizado.
A desburocratização fez-se em um espaço político-ideológico bem
definido. Ao contrário de medidas econômicas centralizadoras, a
desburocratização propunha, desde o início, a descentralização
administrativa. Mas a descentralização tinha implicações inesperadas no que
se refere à integração nacional. Aparentemente, essa parece ter sido a meta
não só do Ministério da Desburocratização na época, mas também de outras
entidades governamentais determinadas a construir a memória do passado
nacional. Órgãos como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – SPHAN, a Fundação Pró-Memória etc., visando modificar a
médio e longo prazos “a consciência do Brasil”, representariam, no sentido
mais puro, uma experiência de nation-building sob o comando do Estado. Se
tal hipótese for correta, o Ministério da Desburocratização atingiria seus
objetivos à medida que produzisse respostas de participação popular e, ao
mesmo tempo, ou secundariamente, a efetiva concretização de medidas
desburocratizantes. Tal sugestão parecia se confirmar em ações que
nitidamente visavam a mobilização popular. Em dezembro de 1981, por
exemplo, 1,2 milhão de funcionários públicos federais receberam, junto com
seus contracheques, formulários do Ministério para serem preenchidos com
sugestões visando simplificar a burocracia no país. Em 1985, não obstante,
entre os nove principais projetos do programa, o item “desburocratização”
propriamente dito figurava em quinto lugar, sendo precedido pelo Projeto
Cidadão, pela Política Nacional de Defesa do Consumidor, pelo Projeto de
Apoio à Microempresa e pelo Plano de Descentralização e Municipalização.20
(Vinte anos depois, a meta da desburocratização sobrevive no Prêmio Hélio
Beltrão – nome do único ministro da Desburocratização –, destinado a
distinguir projetos de facilitação da vida pública.)
Outras observações são ainda pertinentes. Desburocratizar, em termos
estritos, significa eliminar papéis. Pressupõe, portanto, uma situação
altamente burocratizada, com um grau de ineficiência tão elevado que se faz
necessária uma intervenção. Se tal fenômeno é claramente visível nos
grandes centros urbanos brasileiros, sua aplicabilidade é incerta no meio
rural. Assim, em Rio Paranaíba, os habitantes não acreditavam na utilidade
do programa, uma vez que lá “todo mundo conhece todo mundo”. A solução
local era até vista como mais favorável, e mesmo superior, que a federal na
tentativa de se eliminar injustiças sociais. Como todos se conhecem, “muitas
vezes pobre não paga”. A maioria da população de Rio Paranaíba encarava o
seu cotidiano como já desburocratizado. (Uma perspectiva pré-burocratizada
talvez fosse mais realista.) A exceção ficava por conta dos funcionários do
Judiciário e despachantes, que viam na desburocratização a solução para se
romper o esquema de satelitização em que Rio Paranaíba estava envolvido,
cuja principal implicação era a situação de dependência para com São
Gotardo, Carmo do Paranaíba, Patos de Minas e mesmo Belo Horizonte e
Brasília. A quebra desse sistema acarretaria um maior fortalecimento do
município. Note-se que mudanças são pretendidas no âmbito dos vínculos
externos ao município, preservando as relações sociais existentes na esfera
local. (Em 1981, duas pessoas de Rio Paranaíba tinham escrito para o então
ministro Hélio Beltrão, ambas pertencentes ao sistema judiciário: um
advogado e um escrivão.)
O exemplo de Rio Paranaíba mostra que é possível andarem juntas a
descrença no programa de desburocratização e a assimilação do seu apelo
ideológico – a prefeitura de Rio Paranaíba exibia um cartaz do programa logo
na sala de entrada. Revela, igualmente, o paradoxo de ver a desburocratização
chegar a lugares pré-burocratizados. Por outro lado, durante algum tempo,
países como Colômbia, Argentina, Venezuela, Portugal e Espanha
procuraram o governo brasileiro para iniciar convênios visando a consultas e
trocas de experiências.21
Independentemente da versão de modernidade sobre a qual se assentava o
projeto, permanece a questão se, com o novo modelo de cidadania, a
desburocratização não traria junto o famoso “paradoxo de Tocqueville”,22 que
se refere ao fato de o individualismo e o poder central poderem crescer lado a
lado, na medida em que cada indivíduo tem o direito de fazer suas
reivindicações à assistência governamental de forma autônoma. Em outras
palavras, a pergunta que fica é a seguinte: a igualdade de participação que a
desburocratização prometia naquele contexto não poderia acarretar a perda de
identidade social do indivíduo? Tratar-se-ia, então, de uma cópia falsa de
participação, porque enquanto do ponto de vista do Estado novos canais de
comunicação eram oferecidos, para os cidadãos a representação coletiva
ficava bloqueada. A inexistência de intermediários entre a nação e o cidadão
também chamou a atenção de Marcel Mauss, para quem “[…] o poder do
indivíduo sobre a sociedade e o da sociedade sobre o indivíduo, exercendo-se
sem freios e sem engrenagens, pode resultar em algo anormal […]”.23
Tendo em vista que a burocracia faz as vezes de grupo intermediário entre
o Estado e o cidadão, a questão que se coloca, então, é a de se pensar no
problema da burocracia a partir de novos modelos de organização – não
necessariamente “de cima para baixo”, mas também na direção inversa.
Uma última observação refere-se ao timing do início do programa de
desburocratização. Santos24 mostra que foi nos períodos autoritários que mais
se propuseram modelos de cidadania no Brasil. Se isso é verdade, temos aqui
um processo contraditório de disseminação, vindo “de cima” – em que pesem
os indícios de abertura na época da sua implantação –, de um modelo
democrático. Essa proposta, por exemplo, não brota de aspirações populares
específicas, pois se trata de uma iniciativa particular do governo. A rigor, as
reivindicações populares (como demandas salariais e outras) ficaram por
longo tempo à margem e, na época, propôs-se, como uma espécie de
substitutivo, a desburocratização. Além disso, cabe salientar que essa é uma
proposta eminentemente urbana, cujo pressuposto é que a burocracia é um
procedimento puramente técnico.25 Já no meio rural, onde as relações sociais
são, reconhecidamente, relações “políticas”, o programa produz uma possível
integração ideológica, mas desprovida de eficácia.
Em 1985, seis anos depois da implantação do Ministério da
Desburocratização, a mudança de governo não implicou alterações
substantivas nas diretrizes gerais do projeto. Nota-se, até, a perpetuação dos
seus paradoxos, como, por exemplo, no Programa de Documentação para a
Cidadania, por intermédio do qual pequenos postos municipais provisórios
ofereciam título de eleitor, certidão de nascimento, certidão de casamento,
certidão de óbito, carteira de identidade ou de trabalho e certificado militar
para a população desprovida de tais documentos. Observa-se aí a tentativa de
habilitar as pessoas, intentando a consolidação de uma sociedade civil,
supondo-se que somente esta poderia alterar a correlação de forças
encontrada nos escalões intermediários – e mais burocratizados – do governo.
Em que pese a aparente contradição de “documentar para desburocratizar”,
havia (e continua havendo) um toque de realismo na medida. Esquecia-se, no
entanto, o significado cultural de tais documentos em contextos diversos (ver
Capítulo 10). Esquecia-se, ainda, que a cidadania passa pelo domínio do
“político”, não se limitando a aspectos propriamente civis e sociais. A
questão, então, é saber se a construção de uma sociedade civil tem na
desburocratização o seu caminho mais eficaz.
Observações finais
Chegamos, portanto, à conclusão de que o ideal de se viver “sem lenço, sem
documento” é fundamentalmente urbano.26 No meio rural, “cidadão” é um
termo que possui conotação negativa, que se usa para designar uma pessoa
desconhecida, estranha à comunidade – uma pessoa “sem nome”: “Ei,
providencia um café para o cidadão aqui!” ou “O cidadão não está
entendendo…”. A expressão “cidadão” marca o indivíduo como um estranho.
Fica claro, portanto, que “cidadania” e “cidadão” são conceitos cujos
significados variam entre cientistas sociais e membros de uma comunidade
específica, podendo ter até um status valorizado para uns e indesejável para
outros.
Cientistas sociais sofrem de uma perene dificuldade para definir cidadania,
na medida em que, mesmo reconhecendo o fenômeno como resultado de um
processo histórico, há uma inevitável tendência a se falar em uma tipologia
dos direitos do cidadão. Esta tem origem nos trabalhos de T.H. Marshall, que,
embora afirme que sua análise é ditada “mais pela história que pela lógica”,27
divide o conceito em três partes:
“• os direitos civis, compostos dos direitos necessários à liberdade
individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé,
direito à propriedade e de realizar contratos válidos e o direito à justiça;
• os direitos políticos, como o direito de participar no exercício do poder
político como membro de um organismo investido de autoridade política
ou como eleitor dos membros de tal organismo;
• os direitos sociais, que se referem ao direito a um mínimo de bem-estar
econômico e segurança, ao direito de participar por completo da herança
social e de levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões
que prevalecem na sociedade”.28
Marshall revela que os três elementos da cidadania se formaram na
Inglaterra no decorrer de três séculos: os direitos civis podem ser atribuídos
ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX, mesmo se aceitando
uma superposição no seu desenvolvimento. Assim, além de uma descrição
histórica, nota-se uma tendência implícita de conceber os direitos como “um
modelo de cidadania”. A mesma perspectiva aparece nos estudos de Bendix,29
quando este autor focaliza sua preocupação na extensão dos direitos de
cidadania às classes baixas. Em seus trabalhos, a visão histórica é
freqüentemente contaminada por termos como “os elementos da cidadania”30
e “nas experiências de transição”.31
Para T.H. Mashall, não há nenhum princípio universal que determine
quais são os direitos e obrigações da cidadania, “mas as sociedades nas quais
a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam a imagem de uma
cidadania ideal”.32 O principal problema dessa abordagem reside no
pressuposto implícito de que algumas nações ultrapassam o ponto crítico em
que ocorrem transformações no conceito de cidadania. Mesmo que se aceite,
por exemplo, que a Inglaterra “é a exceção, mais que o modelo”,33 é como se
o Estado nacional se encontrasse em sua forma definitiva e o conceito de
cidadania plena e categoricamente estabelecido. Em primeiro lugar, essa
perspectiva é etnocêntrica e ahistórica; em segundo, ela não distingue os
direitos que um Estado oferece aos cidadãos da própria concepção que os
cidadãos têm da cidadania. A vinculação entre os dois níveis não é
automática, nem necessariamente ambos são homólogos; por fim, e talvez
mais importante, ela não leva em consideração que, em diferentes contextos,
os direitos civis, políticos e sociais de que fala Marshall podem ter valores
ideológicos diferenciados – como parece ser o caso histórico brasileiro em
relação à predominância dos direitos políticos.
Criticando a visão estática a partir da qual os Estados nacionais têm sido
estudados, como se fossem sistemas ou tipos ideais, Blok34 mostra como é
inapropriada a idéia de que qualquer desenvolvimento político seja o
resultado do esforço de um governo particular contra as forças da tradição, da
corrupção e do particularismo. Nesse sentido, Blok mostra que a máfia
siciliana, por exemplo, não é o resíduo de um passado sem lei, mas o
resultado da forma específica mediante a qual o processo de state-formation
se desenvolveu na Itália.
Minha hipótese é que o próprio desenvolvimento de uma sociedade é
apreendido em termos de valores culturais. Nos países ricos e
industrializados, predomina uma ideologia que os vê como Estados prontos e
acabados. No Brasil, a noção de uma nação acabada não existe. Há mais de
um século que um aspecto dominante de nossos valores é que estamos
construindo uma nação. Nation-building não é, portanto, apenas um processo,
mas um traço de nossos valores. Formar um Estado nacional foi projeto de
imperadores, intelectuais, revolucionários, governos militares e governos
eleitos.35 A consciência de construção da nação convive, ao mesmo tempo,
com a idealização do que seja um Estado-nação, concebido como uma
reificação dos processos históricos europeu e norte-americano.
A proposta contida neste capítulo é que conceitos como cidadania, Estado,
nação variam histórica e etnograficamente. De um lado, temos processos de
formação do Estado, de construção da nação, de ampliação dos direitos. É
nessa esfera que as políticas estatais devem ser analisadas e os aspectos
administrativo burocráticos avaliados. De outro, vinculadas, mas não
necessariamente homólogas, estão as categorias de cidadão, Estado, nação,
também sofrendo processos de construção ideológica. O corolário é que a
ampliação dos direitos, por exemplo, desejável sob o ponto de vista da justiça
social, não cria, automaticamente, indivíduos que se concebem como
cidadãos, segundo o modelo clássico. Da mesma forma, é indesejável, e
mesmo condenável, forçar esse mesmo valor sem que os direitos
correspondentes sejam oferecidos. Isso nos leva a postular que a cidadania,
tal como definida classicamente, é, do ponto de vista do indivíduo, apenas
uma das formas de identidade nacional.
Os exemplos que vimos, por precários que sejam, indicam que essa noção
varia no Brasil em situações urbanas e rurais, regionalmente, em termos de
concepções impostas ou “reguladas” pelo Estado ou de concepções nativas.
Estamos diante, portanto, não de um conceito de cidadania, mas de um
processo de construção de identidade nacional em que ela é uma de suas
expressões, em que vários modelos coexistem e no qual o Estado e a
sociedade civil se empenham de maneiras diversas. Resta saber até que ponto
suas visões divergem ou coincidem. Em termos de políticas concretas, é
necessário estar atento para que a disseminação dos direitos de cidadania não
venha atrelada, necessariamente, à sua concepção moderna e ultra-
individualista. Devem, por outro lado, acautelar-se os administradores e
políticos para o logro que significa fazer com que a população se sinta
participante quando seu poder de ser efetivamente ouvida é mínimo ou
inexistente. Aqui, confrontamo-nos, novamente, com o valor ideológico
elevado dos direitos políticos. Em termos teóricos, o caso brasileiro
representa um entre aqueles que mostram variações da questão de integração
nacional – social e territorial –, apontando para possíveis combinações entre
os valores modernos, vistos como individualistas, e os valores tradicionais,
holistas. Talvez uma nação possa existir na consciência dos homens sem que
necessariamente estes se vejam como entidades abstratas independentes.
10. A lógica múltipla dos
documentos1
Quando, [em 1954,] depois de quase vinte anos vivendo sem nacionalidade, Blücher
fez o juramento e seus documentos chegaram pelo correio, ele informou a Arendt que
o tempo horrível sem papéis, “neste tempo terrível de documentos”, finalmente tinha
terminado – “até a próxima vez”.
Elon2
• Episódio #2
Dois índios da aldeia do Carretão, Goiás, chegam a Brasília e, na estação rodoviária, são abordados
por um guarda que se dirige ao mais velho, Zé Belino:
– Você tem documento?
Zé Belino tem guardado no bolso, mas diz que não:
– Não tenho não.
O policial pergunta:
– E como é que está viajando? Você não tem documento nenhum?
Zé Belino responde:
– Tenho, sim, olha aqui. E mostra as mãos calejadas.
O guarda se satisfaz:
– Já sei o que você é. Dirige-se ao índio mais moço e faz a mesma pergunta sobre os documentos.
Recebe a resposta que ele tem, sim, carteira de identidade e carteira de reservista. Mostra os dois
para confirmar.
O guarda retruca:
– Você tem documento, mas não trabalhou. Como é reservista se não trabalhou?14
• Episódio #3
Na cidade-satélite do Guará II, no Distrito Federal, um casal descobriu, pela manhã, que havia sido
roubado à noite. A bolsa da mulher havia desaparecido. A grande preocupação era com a perda dos
documentos, mas quando ela chegou ao portão da casa levou um susto ao ver seu rosto no chão – era
sua carteira de identidade. Seu alívio se misturou ao ultraje: como poderia estar ali, jogada no meio
da rua? Passado o portão, logo depois estava seu CPF. Andando mais um pouco, achou o título de
eleitor.16
• Episódio #4
Recanto das Emas, ano de 2000. Visto como um “depósito” de pessoas sem-teto, essa cidade-satélite
de Brasília – que o IBGE considera uma das quatro favelas da capital – abriga uma população
demandante de lotes que são distribuídos pelo governo local. Para se tornarem proprietários, os
candidatos devem comprovar tempo de residência em Brasília por meio de “papéis” como, por
exemplo, boletim escolar, protocolo hospitalar ou conta de água. Esses são indicadores de que
aquela pessoa ou família manteve relação com o poder público local por um período igual ou maior
do que cinco anos. A essa comprovação se soma a exigência do título de eleitor (exigência essa
escrita à mão no cartaz que divulga os documentos necessários para a solicitação), o que significa
que quem quiser se tornar proprietário precisa votar no Distrito Federal.19
• Episódio #5
Eliseu foi jardineiro em uma residência em Brasília durante dois períodos, sempre trabalhando três
dias por semana e recebendo como diarista. Depois dos dois primeiros anos, o empregador precisou
de um caseiro permanente porque passaria um ano no exterior. Esse regime não convinha a Eliseu
por ser casado. Quando o empregador regressou, Eliseu voltou ao trabalho de jardineiro. Mas, dessa
vez, tornou-se ineficiente e foi dispensado. Logo após, o empregador foi intimado a comparecer à
Justiça do Trabalho porque o ex-diarista pedia uma indenização. Ele alegava haver trabalhado na
casa seis dias por semana por quatro anos consecutivos e reivindicava os direitos reservados em lei a
um “empregado doméstico”, que incluem a carteira de trabalho assinada.
• Episódio #6
A mulher de um policial resolveu vingar-se do marido por ter sido traída: tirou-lhe os documentos
sem que ele percebesse, incluindo a licença de porte de arma, e enterrou-os no quintal. O policial,
nervoso e inquieto, procurava os papéis pela casa, sem sucesso. Passado um tempo, a mulher
exumou os documentos e guardou-os em sua bolsa, mas não se sentiu segura. Consultou a irmã, que
se recusou a escondê-los, pois não queria o cunhado, “aquela pessoa”, em sua casa, mas se ofereceu
para guardá-los na caixa de correio. Dias depois, arrependida do arranjo, devolveu os documentos à
irmã que, sem poder apelar para mais ninguém, decidiu dar um fim a tudo cortando os papéis um por
um. Era como se estivesse “cortando o marido”. Ela sentiu-se vingada e aliviada; o marido tirou
nova via dos documentos.22
Racionalizando o Estado
Neste ponto, não surpreende que seja por meio de propostas de
racionalização (muitas vezes, de mais números) que o Estado procure se
tornar mais amigável, buscando facilitar a vida do cidadão pela eficiência e
boa administração. Os projetos de desburocratização dos últimos 25 anos no
Brasil fazem parte desse esforço, e se mantiveram relativamente
independentes dos governos que os lançaram. Embora se saiba que a
multiplicidade dos papéis seja um aspecto intrínseco à cultura do Estado, o
viés antidocumento tem sido um traço marcante.40 Nesse sentido, a
desburocratização surge como um contraponto extremo do padrão dos
documentos.
Para relembrar: criado o Ministério da Desburocratização em 1979, a
simplificação começava pelo próprio órgão, com sete funcionários. Nos
primeiros anos, solicitava-se ao cidadão que escrevesse diretamente ao
ministro, que respondia às cartas pessoalmente. Quando perdeu o status
ministerial para se transformar em secretaria especial da Presidência, em
1983, à carta acrescentou-se o acesso por telefone, na campanha “Fala
Cidadão”. Daí até 2000, o Programa hibernou e, quando reapareceu, já não
era mais um corpo semi-autônomo, mas um projeto a ser incorporado a vários
órgãos do governo. Nessa nova versão, o Programa passou a integrar a
implantação do “governo eletrônico” (e-governo), cujo ideário central reside
na transparência das medidas administrativas e nos direitos do cidadão –
nesse momento denominado de “cliente”, em contrapartida aos impostos que
paga.41 Em menos de vinte anos, portanto, caminhou-se da carta para o
telefone e, deste, para o e-mail, sempre na tentativa de promover o acesso
direto entre o cidadão e o governo. A ligação por Internet expressaria, hoje,
mais um passo em direção a um modelo mais aperfeiçoado de cidadania. No
desenho da simplificação, o site atual do programa é <www.d.gov.br>, no
qual um singelo “d” denota a longa palavra “desburocratização”.
Depois de experimentar vários meios de comunicação, a novidade mais
recente é o “Projeto Linha da Vida”, de 2004, que combina a informatização
com a proposta de mais um número. O NIS (Número de Identificação
Social), junto a uma senha pessoal, dará acesso a uma caixa postal eletrônica
com as mensagens do governo para cada cidadão. Essa idéia surgiu da
constatação de que, nas várias etapas da vida, estamos sempre vinculados a
diversos Ministérios: ao nascermos e morrermos, ao da Justiça, para as
certidões; na infância, ao da Saúde, para as vacinas, e ao da Educação, ao
ingressar na escola; no primeiro emprego, ao do Trabalho. Se o trabalho
assegura renda, ficamos sujeitos ao Ministério da Fazenda e, ao garantir a
aposentadoria, ao Ministério da Previdência Social. Se homem, o Ministério
da Defesa se faz presente no serviço militar. Ao dirigir veículo, é a vez do
Ministério das Cidades. Eventualmente, podemos ter vínculos com o
Ministério do Turismo ou o do Esporte. Em suma, a vida está sempre referida
ao Estado. No capítulo anterior notamos como a desburocratização tinha uma
referência eminentemente urbana. Essa característica se mantém, hoje, na
opção pela comunicação via Internet. (Para a maioria da população, que não
dispõe de um computador, sugere-se o telefone como meio alternativo.)
Nessas tentativas de implantação de um modelo de Estado eficiente, ao
identificar a simplificação e a transparência como os caminhos nobres para a
democracia, naturalmente não se leva em conta que novas tecnologias podem
se traduzir em renovados mecanismos de centralização e controle. Um
exemplo é o projeto do Ministério da Educação de iniciar, em 2005, a
fiscalização da freqüência nas escolas públicas de ensino básico por meio do
registro da impressão digital das crianças.42 De fato, mais as propostas
mudam, mais se reafirma a ideologia de que simplificar é sinônimo de
libertar tout court – sempre mantendo o mapeamento da vida das pessoas. As
reformas na administração substituem projetos de inclusão efetiva, e as
práticas do Estado, a burocracia enfim, ao espelhar a fonte principal dos
males políticos, transforma-se, em uma lógica circular, na sua possível
solução.
Conclusão
O discurso que produzimos no Ocidente, como qualquer discurso nativo,
também se constitui de oposições binárias, em que um dos termos é
considerado superior ao outro. Avaliamos a lógica da causalidade como
superior à lei da participação em termos hierárquicos, sendo esta considerada
o padrão a ser perseguido. Cabe à antropologia, quando não corrigir a
assimetria absoluta, mostrar que as duas não são exclusivas. Reconhecer o
valor do discurso racional científico não é contraditório com a admissão de
que, em certos contextos, convertemos relações metafóricas e metonímicas
em relações de identidade, de “participação”.43 Trata-se de uma situação em
tudo equivalente à que Jakobson definiu para a linguagem, em que a função
referencial, convivendo com as funções poética, fática, conativa, emotiva e
metalingüística, se torna o protótipo do modelo ocidental. Foi mérito de
Jakobson mostrar como a relação convencional e arbitrária entre o
significante e o significado (saussureano) não repudia os usos motivados da
linguagem na comunicação social, mas a complementa. A suposição de que
experimentamos múltiplas orientações ao mundo, desafiadora que seja, e não
desprovida de conseqüências, na verdade permite uma visão mais complexa
da nossa vida em sociedade.
Os documentos de identidade indicam a simultaneidade da lógica da
causalidade e da lei da participação. Se, em princípio, o Estado privilegia a
lógica instrumental, a neutralidade, a linguagem da razão analítica, e a nação
atua no quadro de referência da comunicação entre pessoas e objetos, e entre
pessoas entre si, nos eventos do dia-a-dia as duas lógicas se reforçam,
validando a idéia de uma configuração una de Estado-nação. Em ato,
portanto, os dois elementos que a ciência social separa não se distinguem –
Estado e nação se legitimam mutuamente, deixando entrever ao analista tanto
a estrutura social abstrata quanto o ponto de vista nativo dos que vivem na
sociedade. Mais ainda: no contexto da ação social, revela-se o fato
inequívoco de o Estado se constituir em um elemento intrínseco da nossa
visão de mundo. A relativa facilidade com que cientistas sociais discutem o
Estado, mas abdicam da nação – ou mesmo separam Estado de sociedade –,
nada mais do que reflete nossa inserção na cosmologia ocidental e a absorção
de suas categorias sociais. Nesse sentido, encerro este exercício sugerindo ser
o documento de identidade uma evidência empírica, se não material, da
configuração social moderna; o documento mostra-se um First, um ícone
desta sociedade contemporânea que é o Estado-nação.
Introdução
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Coleção
ANTROPOLOGIA SOCIAL
diretor: Gilberto Velho
• O RISO E O RISÍVEL
Verena Alberti
• ANTROPOLOGIA CULTURAL
Franz Boas
• O ESPÍRITO MILITAR
• EVOLUCIONISMO CULTURAL
• OS MILITARES E A REPÚBLICA
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• DA VIDA NERVOSA
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• NOVA LUZ SOBRE A ANTROPOLOGIA
• OBSERVANDO O ISLÃ
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• O COTIDIANO DA POLÍTICA
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• CULTURA: UM CONCEITO ANTROPOLÓGICO
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• CULTURA E RAZÃO PRÁTICA
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