como a forma recente do humanismo,
As três fontes da
reflexão
etnológica
Claude Lévis-Strauss
Parece óbvio que a etnologia tem lugar
reservado em uma compilação dedicada
às ciências humanas. A etnologia, com
efeito, tem o homem como objeto de
estudo e, em princípio, só se distingue
das demais ciências humanas pelo
afastamento marcadamente no espaço e
no tempo, das formas de vida,
pensamento e atividade humana que ela
tenta descrever e analisar. Não estaria o
humanismo clássico1 fazendo o mesmo,
com uma simples diferença de grau, ao
tentar refletir sobre o homem desde
aquelas civilizações diferentes das do
observador, e de que literatura e
monumentos greco-romanos lhe
mostravam o reflexo? Pois estas
constituíam, naquela época, as mais
distantes civilizações dentre aquelas que
podiam ser acessadas. As humanidades
não clássicas tentaram alargar o campo
de ação, e a etnologia, deste ponto de
vista, não fez senão estender até aos
seus últimos limites o tipo de curiosidade
e atitude mental cuja orientação não foi
modificada desde o Renascimento, e que
somente na observação e reflexão
etnológica encontra sua realização
definitiva. Desta forma, a etnologia surge
1
Humanismo clássico — As três principais
características do Humanismo são o
Antropocentrismo, o Racionalismo e o
Cientificismo.
adaptando-a às condições do mundo finito
em que se tornou o globo terrestre no
século XX: um século a partir do qual, de
fato, e não apenas de direito, como antes,
nada do que é humano pode ser estranho
ao homem.
Porém, a diferença de grau não é
tão simples, pois está ligada a uma
transformação obrigatória dos métodos a
serem utilizados. As sociedades com as
quais o etnólogo se preocupa, embora tão
humanas quanto quaisquer outras,
diferem, no entanto, daquelas estudadas
pelas humanidades clássicas ou orientais,
em que na sua maioria desconhecem a
escritura; e que vários deles têm bem
poucos, se houver, monumentos
representativos de figuras animadas ou
que estes últimos, feitos com materiais
perecíveis, são conhecidos por nós
apenas através dos trabalhos mais
recentes. A etnologia pode, portanto,
quanto ao seu objeto, permanecer fiel à
tradição humanista; o mesmo não ocorre
com relação aos seus métodos, já que na
maioria das vezes carece dos meios –
textos e monumentos – utilizados por ela.
Desta forma, a etnologia é
obrigada a buscar novas perspectivas.
Diante da impossibilidade de seguir os
procedimentos clássicos de investigação,
é necessário que ele use todos os meios
à sua disposição: seja indo para longe
do homem em sua condição de ser
pensante, como fazem a antropologia
física, a tecnologia e a pré-história, que
pretendem descobrir verdades sobre o
homem a partir dos ossos e secreções ou
dos utensílios construídos; ou, pelo
contrário, colocando-se muito mais
próximo do que são o historiador ou o
filólogo, que ocorre quando o etnógrafo
(ou seja, o observador da campo) tenta se
identificar com o grupo cujo modo de viver
passa a compartilhar.
Sempre forçado a permanecer no
aqui e ali do humanismo tradicional, o
etnólogo, fazendo da necessidade uma
virtude, inadvertidamente dota-a de
instrumentos que não dependem
necessariamente das ciências humanas, e
que muitas vezes foram emprestados das
ciências naturais e exatas, para por um
lado e, a partir das ciências sociais, por
outro. A originalidade da etnologia reside
precisamente no facto de ser, como é, por
hipótese uma ciência humana, não
podendo, no entanto, deixar-se isolar das
ciências naturais e sociais com as quais
vários dos seus métodos têm tanto em
comum.
Desse ponto de vista, a etnologia
não apenas transforma o humanismo
quantitativamente falando (incorporando
um número crescente de civilizações),
mas também qualitativamente, já que as
barreiras tradicionalmente erguidas entre
as várias ordens de conhecimento, eles
não constituem para ela senão obstáculos
que ela deve necessariamente superar
para progredir.
De resto, esta necessidade
começa a ser sentida por cada uma das
outras modalidades de investigação
humanista, embora, quanto a estas, muito
mais tarde e provisoriamente em menor
grau.
Os problemas da etnologia
moderna só podem ser claramente
apreendidos à luz do desenvolvimento
histórico que lhes deu origem. A etnologia
é uma ciência jovem. Certamente, vários
autores da antiguidade coletaram a
história de costumes estranhos,
praticados por povos próximos ou
distantes. Assim como Heródoto, Diodoro
e Pausânias. Mas em todos esses casos
a narração fica muito distante de qualquer
narração autêntica, com o objetivo
principal de desacreditar os próprios
adversários, como costuma acontecer nos
relatos que se fazem sobre os supostos
costumes dos persas; ou, reduzem-se a
uma breve anotação de costumes
heterogêneos cuja diversidade e
singularidade não parecem ter despertado
curiosidade intelectual real ou
preocupação moral em suas observações.
É surpreendente, por exemplo, que em
sua “Moralia” Plutarco se contente em
justapor interpretações correntes de
certos costumes gregos ou romanos, sem
levantar a questão de seu valor relativo e
sem se questionar sobre os problemas
(dos quais ele mal percebe e abandona
de uma formulados).
A mais importante dessas
influências está diretamente relacionada
com a descoberta do Novo Mundo. Na
verdade, sentimo-nos inclinados a avaliar
este facto em termos de considerações
geográficas, políticas ou económicas, mas
para os homens do século XVI foi
sobretudo uma revelação cujas
consequências intelectuais e morais ainda
estão vivas no pensamento moderno, sem
que isso constitua um obstáculo, de tal
maneira que quase não nos lembramos
mais de uma verdadeira origem. De forma
inesperada e dramática, a descoberta do
Novo Mundo obriga ao confronto de duas
humanidades, sem dúvida irmãs, mas não
menos estranhas do ponto de vista dos
seus padrões de vida material e espiritual.
Pois o homem americano – em um
contraste verdadeiramente perturbador –
poderia ser visto como tendo sido privado
da graça e da revelação de Cristo e, ao
mesmo tempo, como se oferecesse uma
imagem que imediatamente evocasse
reminiscências antigas e bíblicas: a de
uma idade de ouro e de uma vida primitiva
que apareciam simultaneamente dentro e
fora do pecado.
Pela primeira vez, o homem
cristão não estava sozinho ou, pelo
menos, na presença exclusiva de pagãos
cuja condenação remetia às Escrituras e
sobre os quais não era possível sentir
nenhum tipo de perturbação interior. Com
o homem americano o que aconteceu foi
algo totalmente diferente: a existência de
tal homem não havia sido prevista por
ninguém ou, o que é ainda mais
importante, seu súbito aparecimento
verificou e refutou a mensagem divina em
uníssono (pelo menos assim se acreditou
na época) desde pureza de coração,
conformidade com a natureza,
generosidade tropical e desprezo pelas
complicações modernas, se tomado como
um todo irrevogavelmente reminiscente do
paraíso terrestre, também produziu o
terrível efeito oposto ao afirmar que a
queda original não implicava
necessariamente que o homem deveria
ser inelutavelmente banido daquele lugar.
Simultaneamente, o acesso aos
recursos tropicais, que fornecem uma
gama de variedades muito mais densa e
rica do que as regiões temperadas podem
fornecer com seus próprios recursos, deu
origem a uma sensualidade mais sutil na
Europa e, assim, acrescentou um
elemento de experiência direta às
reflexões anteriores. Perante o compostas por sacerdotes enviados ao
extraordinário ardor com que se acolhe o
luxo exótico: madeiras de vários corantes,
especiarias e curiosidades exemplificadas
por macacos e aqueles papagaios que -
como se pode ler no inventário de uma
remessa de retorno para a Europa nos
primeiros anos do século XVI – “já falava
algumas palavras em francês", tem-se a
impressão de que a Europa culta
descobre em si possibilidades de deleite
sem precedentes e assim emerge de um
passado medieval elaborado, pelo menos
em parte, com base em comidas insípidas
e monotonia sensorial, tudo isso
obscurecendo a consciência que o
homem poderia ter de si mesmo e de sua
condição terrestre.
De fato, é verdadeiramente em
solo americano que o homem começa a
considerar, de maneira concreta, o
problema de si mesmo e de algum modo
a experimentá-lo em sua própria carne. As
imagens, sem sombra de dúvida, que
fazemos da conquista são povoadas de
assassinatos atrozes, roubos e
explorações desenfreadas. No entanto,
não devemos esquecer que, por ocasião
disso, a coroa de Castela, coadjuvada por
comissões de peritos, soube formular a
única política colonial reflexiva e
sistemática conhecida até agora, o que
fez com tanta amplitude, profundidade e
cuidado pelas responsabilidades últimas
que o homem deve ao homem que,
embora seja verdade que não foram
postas em prática, não o são menos do
que a nível teórico a que a brutalidade, a
indisciplina e a avidez de seus
executores, continua sendo um grande
monumento da sociologia aplicada.
Podemos sorrir diante do que hoje
chamaríamos de comissões "científicas",
Novo Mundo com o único objetivo de
esclarecer se os nativos eram meros
animais ou também seres humanos
dotados de alma imortal. Havia mais
nobreza na abordagem ingênua desses
problemas do que na mera aplicação,
como será feito mais tarde, a massacres e
explorações desprovidas de qualquer
preocupação teórica. Se acrescentarmos
que os infelizes índios adotaram a mesma
atitude – acampando vários dias ao lado
dos cadáveres dos espanhóis que
afogaram, para observar se estavam
corrompidos ou se, ao contrário,
possuíam uma natureza imortal – deve-se
reconhecer em tais episódios, ao mesmo
tempo grotescos e sublimes, o Humanos é colocada na boca dos índios
testemunho irrefutável do seriedade com
que se enfrenta o problema do homem e
onde já se revelam os modestos sinais de
uma atitude verdadeiramente
antropológica, apesar da rudeza própria
da época em que surgiram.
A América ocupou por tanto tempo
um lugar privilegiado nos estudos
antropológicos por ter colocado a
humanidade diante de seu primeiro
grande caso de consciência. Durante três
séculos, o índio americano deixaria o
pensamento europeu carregado de
nostalgia e censura, que uma experiência
similar renovada virá no século XVIII com
a abertura dos mares do Sul ao desejo de
exploração.
Que "o bom selvagem" conhece
no estado de natureza o bem-estar
negado ao homem civilizado é, em si,
uma proposição absurda e duplamente
imprecisa, pois que o estado de natureza
nunca existiu, nem o selvagem é ou foi
mais ou menos necessariamente bom ou
feliz do que o homem civilizado.
Mas tal mito escondia a humanidade: pois se tivesse começado
descoberta positiva e mais perigosa: a
partir de então, a Europa aprendeu que
havia outras formas de vida econômica,
outros regimes políticos, outros usos
morais e outras crenças religiosas além
daquelas que até então se acreditava
estarem enraizadas em um direito e
revelação de origem, igualmente divinos e
em relação aos quais só era possível
possuí-los para seu pleno gozo ou
carecer deles. A partir daí, tudo pode ser
questionado.
Não é por acaso que em
Montaigne, a primeira expressão das
reivindicações que só verá a luz do dia
mais tarde na Declaração de Direitos
brasileiros. A antropologia tornou-se
prática antes mesmo de atingir o nível de
estudos teóricos.
Nestas condições, não é sem
curiosidade que o segundo impulso que
as preocupações etnológicas devem
experimentar advém da reação política e
ideológica que se segue imediatamente à
Revolução Francesa e às ruínas deixadas
pelas conquistas napoleônicas. E, no
entanto, esse paradoxo incontestável
pode ser explicado facilmente.
Do século XVI ao XVIII, o exemplo
dos povos indígenas alimentou a crítica
social de duas formas distintas: a
coexistência, no presente, de
organizações sociais profundamente
heterogêneas, levantou a questão de sua
relatividade recíproca e permitiu que cada
uma delas fosse questionada.
Por outro lado, a maior
simplicidade das chamadas sociedades
selvagens ou primitivas forneceu um
ponto de partida concreto para uma teoria
sobre o progresso indefinido da
de um lugar tão baixo, não havia razão
para supor que o movimento para frente
deveria parar e que as formas sociais
atuais representam um ideal definitivo,
impossível de melhorar.
 Ora, o início do século XIX
encontra a sociedade europeia tradicional
num estado de profunda desintegração: a
ordem social do antigo regime foi
definitivamente abalada e a nascente
revolução industrial transtorna os quadros
da vida económica sem que se possam
discernir as novas estruturas que ela
própria dará origem. Não há nada além de
desordem em todos os lugares e, em vista
disso, pretende-se definir o destino do
homem mais em termos de um passado
transfigurado pela nostalgia da velha
ordem, que por um futuro impossível de
especificar. Para as antigas classes
privilegiadas, que só encontram sua
posição anterior em uma fração ínfima, a
história não pode ser aprendida como
aparecendo de algo que se faz, mas, ao
contrário, como algo que se desfaz. Eles
não procuram entender um hipotético
"progresso", sem sentido para eles, mas a
catástrofe que os maltratou e que
filosoficamente não pode ser aceita senão
como a incidência particular de um
movimento de decomposição que deixa
sentir seu verdadeiro estilo na história
humana.
E este ponto de vista, que não é
outro senão o dos princípios do
romantismo, modifica e enriquece a
investigação etnográfica. Modifica-o na
medida em que faz do primitivismo (em
todas as suas formas) não tanto a busca
de um humilde ponto de partida para o
progresso humano, mas antes a de um
período privilegiado em que o homem
gozou de virtudes hoje desaparecidas. E
enriquece-a introduzindo, pela primeira
vez, preocupações folclóricas com
adornar no próprio seio da sociedade
contemporânea as condições antigas
sobreviventes e as tradições mais antigas.
A Renascença já conhecera nas suas
origens uma atitude semelhante quando,
após a tomada de Constantinopla pelos
turcos em 1454, acreditou ser o único
repositório do património filosófico,
científico e artístico da antiguidade. Mas
essa devoção, voltada exclusivamente
para o passado, logo seria superada pela
descoberta, em 1492, das virtualidades
insuspeitadas do presente, o que
provocou uma crescente confiança e
esperança no futuro. No início do século
XIX, ao contrário, por um lado, o
pessimismo social e, por outro, o
despertar das nacionalidades orientavam
a pesquisa sobre um passado ao mesmo
tempo distante, circunscrito no espaço e
carregada de significado.
Mas simultaneamente houve uma
transformação importante. Era
contraditório conceber o curso da história
no sentido de uma decadência quando,
por outro lado, os dados disponíveis
evidenciam a realidade do progresso
técnico e científico, bem como o que
ainda tende a ser visto como um
refinamento progressivo dos costumes.
Para tornar sustentável a posição
pessimista a que se ligaram tantas razões
políticas e sentimentais, tornou-se
necessário, então, situar a evolução
humana num campo diferente em que a
contradição entre os fatos e sua
interpretação não se tornou tão evidente.
No entanto, com o crescimento da
população e a multiplicação de
relacionamentos e trocas resultantes da
civilização, certamente há algo que
inevitavelmente se desfaz: a integridade
física dos grupos humanos, outrora
isolados uns dos outros devido ao seu
pequeno número, a falta de meios de
comunicação e o estado geral de
ignorância e hostilidade existentes. Pelo
fato de sua intercomunicação, as raças se
misturam e tendem a se tornar
homogêneas. Gobineau2 não precisará de
mais para, a partir daí, associar
arbitrariamente à noção de raça certas
disposições fundamentais de natureza
intelectual ou afetiva e conferir-lhes um
valor significativo para estabelecer um
sistema de explicação que, além das
aparências superficiais, possa explicar o
declínio inevitável de uma humanidade
em que os valores vitais se diluem
progressivamente até atingir seu eclipse
total. Dessa forma, eles são exigências
filosóficas que, colocando em primeiro
plano a noção de raça, sustentam, em
uníssono, o interesse por documentos
osteológicos3, contemporâneos ou
arcaicos, no preciso momento em que —
em parte devido aos grandes empregos
exigidos pela revolução industrial — a
atenção voltou-se para aqueles que, em
número crescente, estavam atualizados.
No entanto, mesmo neste caso,
não é um fenômeno absolutamente novo.
A crise política e social decorrente da
Fronda4, na França, no início do século
2
Arthur de Gobineau - foi um diplomata,
escritor e filósofo francês. Foi um dos mais
relevantes teóricos do racismo no século XIX.
De acordo com ele, a miscigenação seria um
processo que estaria levando a humanidade a
graus sempre mais altos de degeneração
intelectual e física. Uma de suas frases mais
famosas é: “Não creio que viemos dos
macacos, mas creio que vamos nessa
direção”.
3
Osteológico é em relação à osteologia;
osteologia é o estudo dos ossos.
4
A Fronda, ou as Frondas, foi uma série de
guerras civis ocorridas na França entre 1648 e
1653 — concomitantemente à Guerra
Franco-Espanhola, e alguns anos após a
Guerra dos Trinta Anos — em que a
monarquia se viu diante de uma série conflitos
contrários a ela partindo de diversos
segmentos da sociedade.
XVIII, já nos levou a traçar, em um
passado distante, as causas e a origem
de uma situação contraditória que estava
então ligada à dupla origem da população
francesa: a nobreza franca e o povo
galo-romano. A nova tentativa foi ser mais
durável, e deve experimentar uma
completa transformação em seu
primitivismo, enquanto prepara o terreno
para uma terceira e mais recente
orientação.
Um dos eventos mais decisivos da
história científica do século XIX estava
prestes a acontecer. Apenas cinco anos
separam a publicação do “Ensaio sobre a
desigualdade das raças humanas” da
“Origem das espécies”. Elaborado pelas
pesquisas de Boucher de Perthes em
arqueologia pré-histórica e pelo avanço
dos estudos geológicos, devido ao
trabalhos de Agassiz e Lyell, a teoria
evolutiva de Darwin iria, com efeito,
fornecer uma interpretação global da
história biológica dentro da qual os
documentos relativos ao homem, até
então recolhidos em forma dispersa,
poderiam encontrar seu devido lugar e
receber seu pleno significado.
A partir de agora, não teremos
mais que lidar com construções filosóficas
como a teoria do progresso indefinido do
século XVIII, ou a do declínio das raças
humanas do século XIX. A concepção de
uma evolução gradual das espécies vivas,
operando através de imensos períodos
geológicos, facilmente sugere pensar o
mesmo sobre a história da espécie
humana. Os documentos osteológicos e
as pederneiras esculpidas que os
acompanhavam já não são vistos como
vestígios de uma humanidade
antediluviana5, destruída por algum
cataclismo. Pelo contrário, são agora
vistos como testemunhos normais da
lenta evolução que, desde as fases mais
distantes, deve ter conduzido os
antepassados ​do homem moderno às
formas atuais. E na medida em que o
ferramental pré-histórico se assemelha ao
que ainda é usado em numerosos povos
primitivos contemporâneos, é possível
aventurar-se a ver neles a imagem viva
das diferentes etapas pelas quais, em sua
marcha progressiva, a humanidade havia
passado por milênios.
Os objetos patrimônio dos
selvagens, as descrições de costumes
estranhos e distantes, o que foi visto e
contado pelos viajantes, na maioria das
vezes deixa de ser considerado como se
fossem curiosidades exóticas ou meros
pretextos para embasar previsões de
caráter filosófico ou natureza moral. Agora
eles são promovidos ao status exclusivo
de documentos científicos com os
mesmos direitos detidos por fósseis e
coleções botânicas e zoológicos. A partir
daí, basta descrevê-los, classificá-los,
tomar consciência das relações históricas
e geográficas que os unem ou os
distinguem, tudo visando desenvolver
uma visão coerente das diferentes etapas
pelas quais a humanidade passou, em
sua trajetória, em seus passos da
selvageria à barbárie e da barbárie à
civilização.
Tais ambições não são mais
nossas. Mesmo o progresso do
evolucionismo biológico se dá segundo
uma concepção infinitamente mais
nuançada e mais consciente dos
problemas e dificuldades que existiam
5
Antediluviana — 1. De antes do dilúvio. 2.
[Figurado] Muito velho; muito antigo.
entre os primeiros fundadores. Isso
estimula os etnólogos a desconsiderar as
teses do evolucionismo sociológico6, que
aliás é anterior ao evolucionismo
biológico7 e que por isso sofre de excesso
de ingenuidade.
No entanto, algo permanece
dessas primeiras esperanças: a convicção
de que os mesmos tipos de problemas,
mesmo que não sejam da mesma ordem
de grandeza, podem ser julgados pelo
mesmo método científico, e que a
etnologia, como as ciências naturais e
seguindo seu exemplo, pode muito bem
esperar descobrir as relações constantes
existentes entre os fenômenos: mesmo
que pretenda apenas tipificar certos
aspectos privilegiados das atividades
humanas e estabelecer entre diferentes
tipos criaram relações de compatibilidade
e incompatibilidade; bem que pretende, a
longo prazo, unir ainda mais a etnologia
estreitamente com as ciências naturais, a
partir do momento em que se
compreendem as circunstâncias objetivas
que presidiram ao surgimento da cultura
no próprio seio da natureza, e das quais,
porém, a primeira, independentemente de
suas características específicas, não é
senão uma manifestação.
Esta revolução não significa uma
ruptura com o passado, mas sim a
6
Evolucionismo sociológico ou social —
refere-se às teorias antropológicas e
econômicas de desenvolvimento social
segundo as quais acredita-se que as
sociedades têm início em um estado primitivo
e gradualmente tornam-se mais civilizadas
com o passar do tempo.
7
Evolucionismo biológico — pode ser definida
como as modificações nos organismos
através do tempo; segundo essa teoria, todos
os organismos apresentam um ancestral
comum e todas as espécies hoje existentes
são resultados de contínuos processos de
mudanças.
integração, ao nível da síntese científica, Assim, a etnologia, no penúltimo
de todas as correntes de pensamento quartel do século XIX, constituiu-se a
cujo desempenho nós revelamos. partir de personagens híbridos e
Por outro lado, o evolucionismo equívocos, que reuniam as aspirações da
pode ser apresentado como uma teoria ciência, da filosofia e da história. Presos
científica porque preserva secretamente, por tantos laços, eles não quebrarão
se bem de acordo com a teoria do nenhum sem algum pesar. Numa época
progresso como tem sido formulada no em que o mundo inteiro lamenta o caráter
século XVIII, a ambição – sabiamente irreal e gratuito da cultura clássica, a
reprimida na maioria de nós – de secura e a desumanidade da cultura
descobrir o ponto ponto de partida e o científica, a etnologia, se permanecer fiel
significado da evolução humana, bem a todas as suas tradições, possivelmente
como ordenar seriamente as diferentes contribuirá para mostrar o caminho que
etapas das quais certas formas de conduz a um humanismo concreto,
civilização certamente preservaram a fundado na prática científica quotidiana e
imagem. ao qual a reflexão moral permanecerá
E, no entanto, mesmo a etnologia indissociavelmente ligada.
mais decididamente evolutiva, como a de
Tylor e Morgan, não pode permanecer
cega ao fato estabelecido de que a ˜”*°•.˜”*°• Good studying! •°*”˜.•°*”˜
humanidade não se transforma, de acordo
com o esquema darwiniano,
exclusivamente pelo acúmulo de
variações e seleção natural. A etnologia
também confirma fenômenos de outro
tipo: transmissão de técnicas, difusão de
invenções, fusão de crenças e costumes
como resultado de emigrações, guerras,
influências e imitações. Todos esses
processos tendem a disseminar traços
inicialmente circunscritos a grupos
privilegiados que, pelo próprio fato da
difusão, tendem também a igualar-se aos
demais. Enquanto, na ordem sistemática,
a etnologia permanece dentro da tradição
filosófica do século XVIII, no que diz
respeito às suas formas descritivas,
fundadas na distribuição espaço-temporal
das traços culturais, não faz mais do que
prolongar as interpretações regressivas
típicas da primeira metade do século XIX,
que por isso experimentam uma renovada
vitalidade.