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2. EDIÇÃO
ANTROPOLOGIA
CIÊNCIA
Situação da antropologia
Evidentemente, esta unificação não pode e não deve ser privilégio de uma
ciência humana com exclusão das outras. Mas é necessária, e julgamos que
o termo de antropologia convém perfeitamente aos múltiplos esforços que
em diversas disciplinas se vão aplicando no sentido de unificar os métodos,
os conceitos e os conjuntos teóricos. Trata-se, de certo modo, de retomar
um velho projeto que data da segunda metade do século XIX e que consiste
em indagar as leis gerais da evolução humana. Hoje está menos ameaçado
que então de perversão ideológica, visto que a antropologia trabalha na
elaboração da teoria do desigual desenvolvimento social e histórico.
Cumpre-lhe, portanto, criticar a «superioridade» ocidental como produto
histórico necessário de um desenvolvimento unilinear. Quer dizer: a
antropologia já não é a ciência provinciana das sociedades exóticas e
folclóricas, tal como foi frequentemente considerada. Com efeito, a
unificação da evolução histórica das sociedades humanas i2npõe uma nova
perspectiva que suprime as particularidades e as diferenças como
constitutivas de teorias locais da evolução social. A esta necessidade
histórica junta-se uma necessidade científica: a explicação do
funcionamento das sociedades europeias e «não europeias», passadas e
atuais, não pode ser elaborada senão dentro de um mesmo conjunto
teórico.
ORIGENS DA ANTROPOLOGIA
A Idade Média dá uma nova forma a esse duplo aspecto do discurso sobre
os outros: cristãos e não cristãos. É, aliás, em nane desta diferença que se
justificarão as primeiras conquistas e explorações coloniais do
Renascimento. No Renascimento principia a expansão mercantil e política
do Ocidente europeu. As possibilidades de um discurso etnológico alargam-
se a todo o planeta. Com efeito, durante quatro séculos, o Ocidente vai
estabelecer progressivamente (e violentamente) o seu domínio sobre as
sociedades não europeias. A exploração anterior ou consecutiva à
implantação europeia tornar-se-á uma nova e importante fonte para a
reflexão teórica ocidental.
É certo que a maior parte das virtualidades das ciências humanas se deixam
já entrever embrionárias no fim do século XVIII. Mas é o século XIX que
permitirá o desenvolvimento consciente e sistemático de algumas delas, e é
no decurso desse processo que se fixa a especificidade do domínio
etnológico. O primeiro campo empírico a tomar forma é o da evolução
natural da espécie humana. A pesquisa das origens conduz às classificações
biológicas das raças e à sua descrição racional: a antropologia física. Mas a
pesquisa das origens conduz igualmente à paleontologia e à pré-história,
descrição dos estádios anteriores da espécie humana como espécie social
(fabricação de utensílios, etc.). É a distinção cada vez mais acentuada entre
a origem e a evolução do ser humano como espécie natural e como ser
social que explica a constituição de disciplinas científicas autônomas. A
confusão acerca do objeto da reflexão filosófica vai desaparecendo
progressivamente. O aparecimento de disciplinas autônomas não se acha
apenas ligado a essa reflexão: provém igualmente da afirmação progressiva
de métodos e de técnicas adequados ao objeto que se deseja estudar. E é a
síntese metódica dessas diversas práticas que permite à etnologia delimitar
um campo geográfico e social original no quadro do descobrimento (e da
conquista) de novas sociedades.
II
INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA
Se bem que o objeto de uma ciência não seja um simples dado, não restam
dúvidas de que a delimitação empírica de um certo campo ou domínio da
realidade objetiva e histórica constitui o primeiro momento doo próprio,
processo de construção do objeto científico. O aparecimento da etnologia (e
a possibilidade de transformá-la numa antropologia) resulta de um
fenômeno único e original. De foto, o carpo empírico da etnologia é o
resultado de uma historia política e econômica que integra sociedades
diferentes na orbita material e intelectual do Ocidente. O campo empírico é
portanto imposto à reflexão teórica: não é um pensamento à procura do seu
objeto que o recorta mais ou menos progressivamente numa dada
realidade. Por isso é que durante muito tempo a procura de uma definição
do novo campo social se confundirá com a elaboração propriamente teórica
da sua natureza e das suas leis de funcionamento. A aparência tão diferente
destas sociedades (a sua «simplicidade» em relação às sociedades
europeias) apresenta-se coro a sua própria essência. A diferença das
sociedades não proviria de uma história diferencial (desenvolvimento
desigual), mas de uma natureza específica e irredutível. Compreende-se,
por consequência, a prolixidade e a imprecisão do discurso teórico da
etnologia: definir é analisar, visto que a aparência se apresentaria à
primeira vista como sendo a essência. Mas esta particularidade do processo
de constituição do campo empírico impõe ó método: o olhar exterior definiu
o princípio de distanciação como científico. Já que a aparência não é uma
modalidade, mas uma qualidade, é do «exterior» que podemos julgar das
aparências graças aos processos é comparativistas e às próprias vantagens
desta exterioridade. Já que a intervenção exterior é o próprio processo da
relacionação destas sociedades com o Ocidente, a etnologia é levada a ter
por científica uma relação que o não é. A etnologia é a busca eternamente
renovada de um objeto que se escapa, porque não pode ser definido senão
excluindo a priori a problematicização da relação não científica que o
produziu. A etnologia atribui-se corno objeto um produto ideológico.
O objetos
O método e as técnicas
Eis por que o trabalho de campo já não tem o atrativo da mudança de país.
É na realidade uma prática de gabinete, onde se confrontam os diferentes
tipos de informação. O campo deixa cada vez menos lugar à intuição e à
simpatia participante como instrumentos científicos. A utilização dos meios
audiovisuais, a colecta sistemática, por meio de questionários, de certos
dados destinados a tratamento mecanográfico ou eletrônico, o recurso às
disciplinas afins para situar cada elemento o mais precisamente possível (já
não há descrição agrária possível sem levantamento dos terrenos, dos
tempos de trabalhos, sem pesagem das colheitas; sem botânica, pedologia
e agronomia; as análises nutricionais limitam a apreciação subjetiva das
rações alimentares, etc.), são outras tantas dimensões novas que assinalam
o fim de etnologia tradicional. A arbitrariedade subjetiva e individual de uma
ciência infusa e «ocidental» cede o Lugar a uma antropologia respeitadora
das regras do discurso cientifico e da complexidade das estruturas sociais.
III
Marx dizia que «ao homem só se põe os problemas que pode resolver». Ora,
parece na verdade que para as ciências antropológicas chegou o tempo de
pensar a prática em relação à teoria, portanto de constituir una
«consciência de si» explícita e crítica. Porém, uma vez admitida a
necessidade histórica deste fenômeno, é preciso tirar dela todas as
consequências.
Por sua vez, a análise teórica propriamente dita sofreu, e sofre ainda, um
certo número de influências novas no sentido do rigor conceptual e da
formalização.Sublinhamos já as consequências dos progressos da linguística
sobre os trabalhos de Claude Lévi-Strauss. Variados campos inéditos
puderam ser desbravados 'graças às metodologias elaboradas por esta
disciplina. Em primeiro lugar, foi possível melhorar o registro, a transcrição,
a tradução e a análise da -literatura oral (mitologias, contos, genealogias,
etc.). A análise linguística intervém simultaneamente ao nível da
apresentação mais rigorosa dos documentos e ao nível da sua análise
antropológica. Além disso, assiste-se desde há menos de quinze anos ao
desenvolvimento da análise componencial que visa revelar os elementos
básicos dos sistemas de designação de parentesco, e, portanto as leis
inconscientes do seu funcionamento lógico. Esta influência da linguística
tende frequentemente para um requinte formal, por vezes esotérico, ruas
supõe, a longo prazo, a delimitação do campo ideológico das sociedades
ditas aprimitivas.
Por outro lado, o etnólogo toma a palavra para falar dos que se calam (ou
que foram obrigados a calar-se), dos que não falam (porque o seu discurso
não estaria de acordo com a imagem que deles temos e que eles devem ter
de si próprios). A descolonização pôs em moda as literaturas das países do
Terceiro Mundo. A descolonização e as lutas de libertação nacional
permitiram também que o objeto de estudo tomasse a palavra em lugar do
etnólogo ou do romancista. Estes tornam-se simples porta-vozes. O
fenômeno manifesta-se por meio de autobiografias faladas, histórias de
vidas que o etnólogo se limita a apresentar como documentos em bruto ou
ilustrações. Assim se acha reconhecida a origem individual e subjetiva da
informação oral. É um americano, Oscar Lewis, quem vai dar forma a este
princípio, transcrevendo e publicando as biografias faladas de todos os
membros de um grupo familiar. A análise teórica cede o lugar a um pedaço
de vida (do «romanesco»), mas pedaço de vida refratado por várias
subjetividades, o que permite um mínimo de objetividade. Inversamente, o
escritor vai-se transformar em, investigador para descrever uma certa
realidade utilizando os documentos e as técnicas clássicas do trabalho de
campo.
IV