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ANTROPOLOGIA 1. 1. A construção do pensamento antropológico

O avanço colonialista europeu sobre as


Vamos tratar aqui de um dos assuntos mais Américas, grande parte da África, Ásia e Oceania,
relevantes das Ciências Sociais: a forma como as empreendido a partir do século XVI, não resultou
sociedades se veem e são vistas. Ao longo dos últimos apenas em dominações.
150 anos, as Ciências Sociais desenvolveram várias Esses encontros geraram relatos de viagem,
maneiras de pensar as diferenças nas formas de vida das narrativas descritivas, investigações e todo tipo de
sociedades humanas. documentos históricos sobre as populações nativas até
Como veremos, a Antropologia tem se então desconhecidas pelos dominadores. Essas
dedicado sistematicamente a esse desafio de pensar a informações foram produzidas desde o começo das
diferença, construindo instrumentos teóricos como os explorações europeias, mas só no século XIX, com o
conceitos de cultura, identidade e etnicidade. avanço do imperialismo europeu, foram sistematizadas
Esses e outros conceitos pretendem observar e por meio de estudos científicos.
compreender a enorme variedade da experiência Essa documentação sobre populações nativas
humana no mundo. diversas, somada ao interesse das sociedades
Além de conhecer a origem desses conceitos, colonialistas em ampliar suas formas de dominação,
veremos a que contextos sociais se referem e também gerou a produção de um conhecimento que hoje
como foram empregados para produzir reflexões sobre chamamos de antropológico.
o Brasil, sobre as diversas populações presentes no país A busca desse conhecimento revela a
e sobre o que poderíamos chamar de “cultura necessidade de um novo olhar sobre aquelas
brasileira” ou ainda “identidades brasileiras”. populações a fim de conhecê-las melhor. E conhecê-las
melhor para quê?
1. EVOLUCIONISMO E DIFERENÇA A resposta a essa questão tem dois lados: um
prático e um científico.
Iniciaremos esta unidade por um fato que De um lado, administradores coloniais,
marcou a História: o encontro, a partir do século XVI, missionários religiosos e comerciantes (agentes das
entre os europeus e as sociedades das Américas, da conquistas realizadas entre os séculos XVI e XIX)
África e da Ásia, que os europeus até então tinham interesse prático em conhecer melhor os
desconheciam. “primitivos”. Para os administradores coloniais, isso
ajudava a dominá-los; para os missionários, ajudava a
convertê-los; e para os comerciantes, ajudava a produzir
riquezas em benefício próprio a partir do encontro com
os “selvagens”.
Por outro lado, os cientistas que passaram a
estudar essas populações a partir do século XIX
pretendiam entender a história da humanidade. Para
eles, conhecer as sociedades que chamavam de
primitivas funcionava como um laboratório: quando
olhavam para o presente daquelas populações,
acreditavam estar desvendando o passado da
humanidade.
Por que escolhemos esse momento? Porque o
Os cientistas tentaram sistematizar o
contato entre essas civilizações possibilitou a
conhecimento das populações ditas selvagens em
construção do sistema social que predomina no mundo
narrativas que podem ser consideradas histórias de
atual. Muito mais tarde, no século XIX, o próprio
evolução: imagine uma escada na qual as sociedades são
nascimento das Ciências Sociais teve origem na reflexão
organizadas da “mais simples” para a “mais complexa”.
sobre o encontro entre diferentes culturas e suas
Aqueles intelectuais olhavam para os dados
consequências.
coletados pela empreitada colonial, determinavam quais
Inicialmente, vamos tomar como base os
sociedades consideravam mais simples e quais seriam
modelos que os europeus utilizaram para pensar os
mais complexas e as distribuíam em uma escada
nativos daqueles lugares que consideravam “distantes”.
evolutiva.
A partir dessa visão de mundo, vamos refletir
As narrativas de evolução, criadas pelo
sobre as diferenças — sociais, culturais, étnicas,
antropólogo norte-americano Lewis Henry Morgan
políticas, entre outras —, um tema fundamental para
(1818‑1881), divide a história da humanidade em três
entender as sociedades de um ponto de vista
etapas: selvageria, barbárie e civilização. Morgan foi um
antropológico.

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dos principais teóricos desse momento do pelos europeus. O que sustenta essa teoria e essa
conhecimento antropológico. justificativa é uma ideia de progresso que favorece as
Entre outros intelectuais fundamentais, sociedades ocidentais, por colocar no ápice da evolução
podemos citar o inglês Edward B. Tylor (1832‑1917) e aquilo que elas próprias consideram mais evoluído.
o escocês James G. Frazer (1854‑1941). Cada um Essa forma de pensar tem um nome: etnocentrismo.
narrou à sua maneira a história de evolução, sem chegar
a um acordo sobre a posição de cada sociedade nos Fique por dentro
degraus da escada evolutiva e sobre as linhas evolutivas
da humanidade.
Entretanto, apesar das discordâncias, todos Evolucionismo × darwinismo social
esses autores partiam da ideia de progresso. Ou seja,
pressupunham que as diferentes sociedades sempre O evolucionismo social é comumente
avançavam em direção à civilização. associado ao evolucionismo biológico, proposto por
Aqui surge uma questão que deve sempre nos Charles Darwin (1809-1882), que defendia uma
acompanhar: para que serve o conhecimento produzido evolução pela melhor adaptação ao ambiente. Os
pelas Ciências Sociais? Entre muitas respostas possíveis, evolucionistas sociais defendiam a ideia de
vamos começar pela mais dura: para dominar. progresso, inspirados pelo filósofo inglês Herbert
Veremos, por outro lado, que esse mesmo Spencer (1820‑1903).
conhecimento também gerou, por exemplo, defensores Um conjunto de teorias elaboradas na
dos direitos de populações em risco, como as indígenas. Inglaterra e nos Estados Unidos na década de 1870
O evolucionismo social (nome dado às teorias se tornou conhecido como darwinismo social. Essas
que se apoiam em narrativas de evolução) funcionava teorias defendiam a existência de diferenças
ao mesmo tempo como explicação da evolução da fundamentais nos grupos humanos, que se
humanidade e como justificativa para a dominação expressavam em raças distintas.
exercida pelos europeus. Para muitos, as teorias do A noção de raça foi introduzida no século
evolucionismo social não passam de ironia, como se o XIX pelo naturalista francês Georges Cuvier (1769-
dominador dissesse ao dominado: “Não é bem uma 1832), que dividiu a humanidade em três raças:
dominação; estamos apenas civilizando, e isso é um caucasiana, etíope e mongólica (branca, negra e
favor”. amarela). Outros autores teceram variações dessa
Os adeptos das teorias evolucionistas estavam teoria, sempre relacionando heranças fisiológicas a
convictos de que a escalada para o progresso só poderia distintas capacidades intelectuais e qualidades
se dar em um sentido: os europeus eram os civilizados morais. A miscigenação deveria ser evitada, já que a
e todos os demais eram atrasados. mistura traria decadência racial e social.
Sempre privilegiando a “raça” branca, essas
teorias serviram de justificativa para a dominação
colonial, da mesma forma que o evolucionismo
social.
O darwinismo social também deu origem à
eugenia, teoria que busca produzir uma seleção nos
grupos humanos, com base em leis genéticas. Essa
teoria defende a ideia de separar as raças e até mesmo
eliminar aquelas consideradas inferiores. Com base
nesses princípios, políticas eugênicas foram
instauradas em vários países, incentivando a
separação entre as raças, proibindo casamentos
inter-raciais e incitando todo tipo de exclusão racial.
Essa teoria depende da ideia de progresso, mas
o que define o progresso? Do ponto de vista dos
intelectuais do século XIX, um dos critérios seria o 1. 2. Parentesco e propriedade: modos de
progresso tecnológico. Embora pareça justo, esse organização social
critério é tão arbitrário como qualquer outro. Foi
adotado porque parecia evidente, mas veremos aqui que Vimos que as sociedades ocidentais
nada é “evidente”, sempre podemos questionar construíram uma hierarquia dos povos humanos,
supostas evidências. colocando-se no topo da escala. Além do progresso
O encontro com populações não europeias tecnológico, outro critério que fundamentou essa
resultou tanto em uma teoria sobre a história da hierarquização tem especial importância para as
humanidade como em justificativa para a dominação sociedades ocidentais.
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Quem primeiro explicitou esse critério foi civilização. E essa passagem seria marcada, antes de
Lewis Henry Morgan, para quem a passagem da tudo, pela invenção da propriedade privada.
barbárie para a civilização se dava pela adoção da
propriedade como modo de organização da vida de Nas sociedades organizadas pelo parentesco,
uma população. Assim, desde o século XIX (Morgan não há a propriedade privada da terra. As terras são de
publicou suas teorias por volta de 1877), o que definia uso coletivo, também regulado pelas regras de
uma sociedade avançada para as sociedades ocidentais parentesco.
era a existência da propriedade privada. A distribuição do que é produzido segue essas
Mas que organização social possibilitou a regras, que determinam com quem se deve
propriedade privada? compartilhar algo e com quem não se deve.
Ao olhar para as sociedades ditas “primitivas”, Quando alguém cerca um terreno e afirma que
os estudiosos europeus e estadunidenses do século XIX aquele espaço lhe pertence, estabelece outro tipo de
observaram que elas não possuíam uma organização relação com a terra e necessita garantir a existência
burocrática que centralizasse decisões. dessa propriedade. Segundo os autores do século XIX,
Em outras palavras, não tinham algo parecido a única forma de garantir a propriedade seria um poder
com o Estado. Para aqueles intelectuais, as sociedades central com força para mantê-la.
“primitivas” pareciam “desorganizadas”. Assim, as teorias antropológicas delimitaram a
Intelectuais como Lewis Henry Morgan e o linha de evolução e a noção de progresso a partir da
jurista britânico Henry Sumner Maine (1822-1888) existência da propriedade privada da terra e da presença
elaboraram uma resposta a essa questão: o que do Estado.
possibilitava à sociedade “primitiva” se organizar era o Para sintetizar o pensamento dos intelectuais do
parentesco. Mas o que seria o parentesco? Todas as século XIX, as sociedades não ocidentais eram vistas
sociedades humanas estabelecem formas regulares de como mais simples, e quanto mais se organizassem pelo
relações entre seus indivíduos. parentesco, mais simples seriam consideradas.
Tome seu próprio caso como exemplo: faça Essa perspectiva implicava uma série de
uma relação dos seus parentes. Eles serão categorizados preconceitos e estereótipos: aquelas populações eram
como “primos”, “tios”, “pais”, “avós”, “cunhados”, vistas como atrasadas, inferiores e intelectualmente
“primos distantes”, e assim por diante. Essas são incapazes. Paralelamente a essa sistematização teórica,
categorias de parentesco, elas traduzem um tipo as práticas colonialistas se basearam em um imaginário
específico de relação entre as pessoas. sobre as sociedades “primitivas” que legitimava o papel
O que costumamos chamar de “família” nada “civilizador” dos europeus.
mais é que um nome para um sistema de parentesco. Para grande parte dos agentes coloniais, a
Qualquer sociedade no mundo produz algum tipo de distinção entre civilizados e primitivos também era
parentesco. Porém, as sociedades constroem o definida pela presença ou não da propriedade e do
parentesco de formas diferentes entre si — e, portanto, Estado.
diferentes daquela que a nossa sociedade escolheu (ou O neocolonialismo estabelecido ao longo do
daquelas que a nossa sociedade escolheu, já que século XIX e início do século XX foi influenciado e
podemos ver vários modelos de família no Brasil). legitimado pelas teorias evolutivas. As potências
Todas as sociedades têm algum sistema de capitalistas (especialmente Estados Unidos, França,
parentesco, mas apenas algumas estruturam seu modo Alemanha, Reino Unido e Bélgica) avançaram por
de vida a partir desse sistema. Essas sociedades não têm quase toda a África, por grandes porções da Ásia, como
Estado, mas seguem regras estipuladas nos sistemas de os territórios que hoje chamamos de Índia, Paquistão,
parentesco. Bangladesh, Indonésia, e até por porções da China.
Em uma sociedade com Estado, diversas
questões são resolvidas por um sistema jurídico criado
para regular a vida social. O Estado determina leis, as
executa e julga os que tentam burlá-las.
Em sociedades sem Estado, não há sistemas
jurídicos separados; há conjuntos de regras relativas à
ordem do parentesco e são elas que permitem a vida em
sociedade.
Para os intelectuais do século XIX, as
sociedades organizadas pelo parentesco representavam
um estágio anterior de desenvolvimento; seriam mais
simples, mais primitivas. O discurso das nações imperialistas baseava-se
Para autores como Morgan e Frazer, a presença na crença de uma “missão civilizatória”, adotando
do Estado seria definidora da passagem para a desde visões otimistas, que diziam ser possível levar os

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selvagens diretamente para o estágio da civilização, até universidades e museus até se fixar na Universidade de
as mais pessimistas, que afirmavam ser impossível Columbia.
“elevar” os selvagens, e que, portanto, a dominação Nessa instituição criou um departamento de
seria sempre necessária a fim de que eles não Antropologia e um curso de doutorado, formando a
degenerassem para estágios mais inferiores. primeira geração de antropólogos “acadêmicos” norte-
Parte dessas teorias adquiriu teor explicitamente americanos.
racial, atribuindo capacidades cognitivas distintas ao Boas teve atuação política marcante, assumindo
que consideravam raças humanas diferentes. posição antirracista em um país profundamente
marcado pelo preconceito. Fundou a Associação
2. CULTURA, NORMAS E PADRÕES Americana de Antropologia, hoje a maior e mais
importante associação antropológica no mundo.
Anteriormente vimos que a Antropologia do Por ter formado antropólogos importantes para
século XIX pensava a humanidade em uma escala a história da disciplina e por sua contribuição teórica,
evolutiva. Percebemos as implicações desse tipo de Boas ficou conhecido como “o pai da Antropologia
pensamento, principalmente no que se refere ao que estadunidense”.
pode ser chamado de ideologia do colonialismo. A influência de suas ideias fez-se sentir no
Por outro lado, essas mesmas teorias que deram Brasil, principalmente na obra de Gilberto Freyre, que
origem a perspectivas racistas ao longo do século XIX afirmou, no prefácio do clássico Casa-grande e senzala, de
e do século XX trouxeram também algo novo: a ideia 1933, que a obra de Boas o ajudara a se libertar da visão
de colocar no mesmo barco todas as populações do negativa sobre a mestiçagem, então considerada um
mundo. problema da formação social brasileira.
Até o século XIX, ainda se discutia se as Franz Boas morreu em 1942, em Nova York,
populações encontradas pelos europeus eram de fato vítima de um infarto durante um jantar entre
humanas! acadêmicos.
Apesar de a bula Sublimis Deus, promulgada pelo Embora não tenha sido o primeiro a utilizar o
papa Paulo III em 1537, estabelecer o direito à liberdade termo cultura, Boas foi o primeiro a empregar a palavra
dos indígenas e a proibição de submetê-los à escravidão, em seu sentido moderno, propriamente antropológico.
na Espanha do século XVII ainda se discutia se os Antes de Boas, cultura era sinônimo de
indígenas tinham ou não alma. “civilização” e um atributo dos países tidos como
A inclusão de todas as populações em uma civilizados. Franz Boas inaugurou a utilização do
única história humana teve como base a hierarquia conceito em uma perspectiva pluralista: ele fala em
evolutiva. A Antropologia, porém, não se satisfez com “culturas” e não em “cultura”. Pode parecer uma
essa perspectiva e, desde o final do século XIX, passou pequena diferença, mas foi uma grande transformação.
a criticar a teoria do evolucionismo. O principal E por que foi uma grande transformação?
instrumento para fundamentar essa crítica foi o Porque quando pensamos cultura no plural, torna-se
conceito de cultura. possível desconstruir as hierarquias, tão importantes
para o pensamento colonial e racista em geral. Quando
2. 1. Civilização × culturas pensamos em culturas no plural e não escalonamos as
culturas em uma ordem qualquer, cada cultura passa a
Já no final do século XIX, o antropólogo brilhar com luz própria, em seus próprios termos. Esse
alemão Franz Boas construía uma crítica à ideia de brilho individual, singular, é o que interessa à
civilização das teorias evolutivas. Antropologia desde o final do século XIX, a partir do
Franz Boas nasceu em trabalho de Boas.
Minden, Alemanha, em 1858. Para Boas, as diferentes populações que existem
Filho de judeus liberais no mundo têm diferentes culturas e é praticamente
relativamente abastados, iniciou impossível estabelecer entre elas qualquer tipo de
sua carreira acadêmica na área hierarquia.
da Física e Geografia, ao se Analisando a história de várias populações
doutorar na Universidade de indígenas do noroeste norte-americano e do Alasca, o
Kiel em 1881, aos 23 anos. antropólogo chegou à conclusão de que é muito difícil
Em 1883, participou de estabelecer entre elas qualquer tipo de hierarquia, pois
uma expedição ao Ártico, onde as histórias são tão particulares, e preenchidas por
encontrou a população inuíte, o interesses tão diferentes, que qualquer comparação só
que marcou uma mudança em sua carreira. Passou a se seria possível se fosse utilizada uma medida de análise,
interessar pela Antropologia. que seria sempre arbitrária. Ou seja, a comparação para
Em 1887, abandonou a carreira de geógrafo e se estabelecer uma hierarquia sempre deveria adotar algum
mudou para os Estados Unidos, onde passou por

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critério, tomado de alguma população, e nesse processo determinado costume oprime parcelas de uma
a própria comparação já seria injusta. sociedade (as mulheres islâmicas, por exemplo), e essas
Nascido e educado na Alemanha, Boas formou parcelas se sentem oprimidas, é justo criticar esse
seu conceito de cultura a partir de concepções alemãs costume, mas nesse caso teríamos de fazê-lo segundo
de Kultur, ou “espírito do povo”. Ele transporta essa os próprios termos daquela cultura. Podemos criticar a
ideia para a Antropologia, em uma crítica ao mutilação genital porque as mulheres da sociedade em
evolucionismo. que essa prática existe a criticam.
Para Franz Boas, cultura era um todo Se essas mulheres mutiladas não se sentissem
integrado, e não apenas um conjunto desagregado desrespeitadas em seus direitos individuais, não
de práticas, hábitos, técnicas, relações e teríamos o direito de criticar esse costume. Ou seja,
pensamentos. Essa integração de múltiplos elementos, relativismo cultural não significa aceitar tudo o que
ordenados a partir de um princípio compartilhado por qualquer cultura faz ou produz, mas sim entender como
todos os indivíduos de uma sociedade específica, criava e por que cada sociedade faz o que faz, quem é ou não
a cultura. favorecido por determinadas práticas e como diversos
Por ser única e exclusiva de cada sociedade, tipos de opressão podem surgir dessas práticas.
inviabilizava qualquer tentativa de comparação a partir Diferentes aspectos desse dilema se manifestam
de pressupostos arbitrários. Para Boas, qualquer intensamente em sociedades pelo mundo inteiro. Na
comparação exigiria tanto cuidado e tanta investigação França, por exemplo, o Estado proibiu que estudantes
histórica e antropológica que, na prática, seria inviável. muçulmanas usassem o véu em salas de aula. Esse ato
foi visto por muitos como uma agressão à liberdade de
2. 2. Relativismo x etnocentrismo expressão religiosa dos muçulmanos na França. Outros,
no entanto, consideravam o uso do véu uma afronta à
Franz Boas inaugurou o que mais tarde ficaria concepção de uma escola laica, isto é, sem influência de
conhecido como relativismo cultural: uma tomada de nenhuma religião.
posição perante a diferença cultural, segundo a qual O debate em torno desse ato do Estado francês
cada cultura deve ser avaliada apenas em seus próprios expõe questões profundamente antropológicas,
termos. evidenciando que a diferença cultural (racial, étnica,
Relativismo cultural, portanto, é uma forma de religiosa, econômica) é um dos grandes problemas do
encarar a diversidade sem impor valores e normas mundo contemporâneo.
alheios. Podemos considerar o relativismo uma Ainda é muito difícil lidar com a diferença, e
inversão do evolucionismo: se este escalona as isso fica claro quando notamos a expansão de partidos
diferenças a partir de valores específicos das sociedades políticos anti-imigração na Europa, por exemplo. O
ocidentais, o relativismo evita qualquer tipo de escala, combate ao etnocentrismo continua importante.
analisando as diferenças segundo os termos da própria Na luta contra o etnocentrismo e o racismo, o
sociedade da qual fazem parte. conceito de cultura é um instrumento fundamental, que
O etnocentrismo é o mecanismo principal das ganhou importância desde que deixou de ser pensado
classificações evolucionistas, enquanto o relativismo como sinônimo de “civilização” e passou a ter
cultural é o motor de um pensamento não significado em conjunto com o relativismo cultural.
preconceituoso e preocupado em romper com as Mas o conceito de cultura vai muito além de
classificações hierárquicas. uma simples defesa do relativismo cultural. Veremos a
O conceito antropológico de cultura não pode seguir um pouco da história desse conceito na
existir sem o relativismo cultural e a crítica ao Antropologia.
etnocentrismo.
O relativismo foi uma revolução política no 2. 3. Padrões culturais
enfrentamento ao racismo e a outros tipos de
preconceito, mas gerou um impasse político ao longo Desde o século XIX, estudiosos começaram a
do século XX: se a premissa do relativismo é examinar perceber que diferentes culturas produziam realidades
qualquer cultura segundo seus próprios termos, é diferentes, e essas realidades, por sua vez, davam
preciso aceitar tudo o que cada cultura produz. O origem a comportamentos e práticas regulares que se
problema dessa premissa é que alguns costumes nos repetiam no tempo e no espaço. Esses
parecem inaceitáveis, como as mutilações genitais comportamentos e práticas regulares foram
impostas às mulheres em alguns países islâmicos. denominados padrões culturais.
Longos debates foram travados para superar esse A partir dos estudos de Boas, em que o conceito
impasse, levando a posicionamentos os mais diversos e de cultura ganhou sua conotação moderna como força
até mesmo à recusa do relativismo. unificadora de um povo, que dá sentido e condensa
Uma forma de solucionar esse impasse é pensar tudo o que acontece, os padrões culturais adquiriram
em termos de poder dentro de cada cultura. Se grande centralidade.
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Desde o começo do século XX, especialmente O que era normal para a maior parte das
com o trabalho de duas alunas de Franz Boas — pessoas, para essas autoras era fruto de costumes
Margaret Mead (1901‑1978) e Ruth Benedict arbitrários. O papel da mulher direcionada aos cuidados
(1887‑1947) —, o conceito de padrão cultural ganhou do lar, por exemplo, foi visto por elas como um
bastante destaque. costume cultural norte--americano, e não como algo
“natural”.
Esse movimento intelectual levou ao
questionamento de noções que pareciam naturais aos
norte-americanos. É o que chamamos hoje de
desnaturalização: aquilo que parece natural e “normal”
é apenas uma entre milhares de formas possíveis.
O fato de determinadas práticas prevalecerem
não é de modo algum “natural” — nada mais é do que
a força do costume. Essa ideia é muito importante para
o pensamento antropológico, pois permitiu
desnaturalizar muito do que parecia natural aos
membros de culturas ocidentais.
Essas antropólogas observaram que, além de Os antropólogos estão entre os grandes críticos
expressar comportamentos regulares, os padrões da segregação racial, que parecia normal à elite norte-
culturais produziam indivíduos com inclinações americana do começo do século XX, da opressão da
semelhantes. mulher, da discriminação aos imigrantes, das políticas
Para essas antropólogas norte-americanas, a de pilhagem de terras aos indígenas, etc.
relação entre as personalidades individuais e os padrões
culturais era muito significativa. Como se a cultura, de
certa forma, moldasse as personalidades individuais em
tipos-padrão.
Isso significa dizer que certa cultura tenderia a
produzir indivíduos mais violentos, enquanto outra
tenderia a produzir sujeitos mais contemplativos.
Assim, cada cultura modelaria uma
personalidade-padrão que, embora sujeita a variações,
seria predominante sobre as demais. Ou seja, a força da
cultura, ao integrar um conjunto de pessoas produzindo
padrões de comportamento, levaria à produção de um
“modo de ser” característico de uma sociedade.
Para Mead e Benedict, e também para Franz
Boas e outros antropólogos norte-americanos, a cultura Em foto de agosto de 1971, trabalhadoras do movimento
feminista protestam na Quinta Avenida, em Nova York,
podia ser comparada a uma lente que filtra tudo o que Estados Unidos, reivindicando creches nos locais de
vemos, percebemos e sentimos. Não há como perceber trabalho, acesso a todos os tipos de trabalho e salário igual
o mundo a não ser através do filtro de alguma cultura. para funções iguais.
Um dos elementos centrais desse processo de
“percepção do mundo” é a linguagem, um mecanismo Ruth Benedict e Margaret Mead tiveram grande
de transmissão de valores, ideias e formas de refletir influência no pensamento feminista, abrindo as portas
sobre a realidade. para o questionamento daquilo que era visto como
Para esses autores, não haveria possibilidade de natural: o papel da mulher exclusivamente como mãe.
perceber o mundo fora do mecanismo de transmissão Para elas, o papel de mãe era consequência do costume,
cultural representado pela linguagem. não da natureza humana. E, sendo fruto do costume,
De acordo com essas ideias, a vida de cada um poderia mudar, e a própria carreira acadêmica dessas
seria uma acomodação aos padrões culturais antropólogas era um exemplo disso: mulheres que
transmitidos de geração em geração. trabalhavam e tinham destaque acadêmico em uma
A questão é entender o papel do costume na sociedade muito restritiva quanto aos papéis femininos.
vida do indivíduo, o que, segundo Mead e Benedict, vale
tanto para as culturas ditas “primitivas” quanto para as 2. 4. O conceito de cultura no século XX
culturas ocidentais. Ao afirmar que também as culturas
vistas como “avançadas” são regidas por padrões Logo após a geração dos primeiros alunos de
culturais, as duas antropólogas desafiaram o Boas, no pós-Segunda Guerra Mundial, um movimento
pensamento comum da época. intelectual liderado por antropólogos como Marvin
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Harris (1927‑2001) e Julian Steward (1902‑1972) sociedades antes isoladas: rituais deixaram de ser
resgatou uma teoria da evolução que havia sido criticada realizados, técnicas tradicionais foram abandonadas,
por Boas. Essa teoria, entretanto, não seguia os termos crenças nativas foram atropeladas por religiões
dos evolucionistas do século XIX. ocidentais.
A partir de uma perspectiva marxista, fundada Tudo isso era considerado pelos antropólogos
na evolução dos sistemas econômicos (dos mais simples “perda”, “aculturação” aos valores ocidentais, já que
aos mais complexos), Harris e Steward repudiavam o eles entendiam a cultura como a soma dos
conceito de cultura de Boas, considerando que o foco comportamentos visíveis. Quando a cultura passou a
exagerado nas especificidades de cada cultura impedia ser vista como um código mental, os comportamentos
uma reflexão mais abrangente sobre a humanidade. se tornaram consequência desse sistema.
Na década de 1960, uma nova geração de E comportamentos podem mudar, sem
antropólogos trouxe outros significados ao conceito de comprometer o sistema, organizando novas práticas e
cultura. Destacam-se nesse momento os trabalhos dos inventando novas tradições, embora ainda seguindo
norte-americanos David Schneider (1918‑1995), certas regras básicas.
Clifford Geertz (1926‑2006) e Marshall Sahlins, que Resumindo, a cultura não se limita mais a uma
criticaram o conceito de cultura como um todo série de comportamentos, mas constitui um sistema que
integrado e estático. organiza a experiência das pessoas na vida, ordenando
A crítica desses intelectuais se referia às grandes até mesmo os processos de transformação.
transformações ocorridas no mundo após a Segunda Quando um costume muda ou uma prática
Guerra Mundial (1939-1945). Em um contexto que nativa de outra cultura é adotada, isso acontece segundo
incluía mudanças profundas — desde as lutas pela uma lógica cultural. Pense em um conjunto de rappers
independência em países antes dominados por brasileiros: embora produzam uma música que não é
potências europeias até as revoluções culturais da original do nosso país, eles a utilizam para expressar
década de 1960 —, as sociedades observadas pela suas ideias e uma crítica social que se refere ao seu
Antropologia também passavam por transformações cotidiano.
que um conceito estático de cultura não dava conta de Será que eles são menos brasileiros por se
explicar. expressarem por meio do rap? Ou será que eles usam o
Para Schneider, Geertz e Sahlins, a cultura rap para expressar um ponto de vista essencialmente
continuava a ser um todo integrado, mas era brasileiro, e nesse sentido estariam abrasileirando o rap?
eminentemente dinâmica, sujeita a mudanças. Nessa Os antropólogos do final do século XX
visão, a cultura deixa de ser um conjunto de práticas tenderiam a preferir a segunda resposta, tornando o
observáveis e passa a configurar um conjunto de conceito de cultura mais dinâmico.
códigos simbólicos. Ou seja, é mais semelhante a um
código do que a um conjunto de comportamentos: 2. 5. O conceito de cultura no século XXI
pode ser comparada a um conjunto de regras que é
internalizado pelas pessoas desde a infância. No século XX, as mais duras críticas ao
Para esses autores, cultura não é o que as conceito de cultura partiram de um movimento em
pessoas fazem, mas sim o que elas pensam: está Antropologia denominado pós-modernismo: um
presente em todos os indivíduos que vivem em comum, conjunto de autores que passou a duvidar da
é compartilhada e transmitida como um código possibilidade de falar sobre a cultura dos outros.
permeado pela linguagem e por vários conceitos que a Para eles, quando um antropólogo fazia o seu
linguagem traz consigo. trabalho, que era basicamente descrever outras
A ideia de cultura como um código de regras e sociedades, ou grupos dentro de sociedades, ele exercia
ordens que está na cabeça das pessoas e não nos um poder absoluto: sua descrição passava a ser vista
comportamentos permite muitas possibilidades de como absoluta e verdadeira.
pensar a dinâmica e a transformação das culturas. Para pensar sobre isso, considere o trecho a
Como já vimos, inicialmente os antropólogos seguir:
observavam apenas os comportamentos e os Iracema acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que
consideravam cultura. havia de provisões para satisfazer a fome e a sede: trouxe o resto
Nesse contexto, quando os comportamentos da caça, a farinha-d’água, os frutos silvestres, os favos de mel, o
mudavam, a impressão era que a cultura tinha se vinho de caju e ananás.
“perdido”. Na primeira metade do século XX, era Depois a virgem entrou com a igaçaba, que na fonte
comum os antropólogos lamentarem a “perda” de próxima enchera de água fresca para lavar o rosto e as mãos do
cultura de várias populações pelo mundo. estrangeiro.
Isso porque o avanço do sistema econômico Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho Pajé
ocidental produziu grandes transformações entre apagou o cachimbo e falou:
— Vieste?
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— Vim — respondeu o desconhecido. Para eles, não só os “representados” eram


— Bem-vindo sejas. O estrangeiro é senhor na cabana de impossibilitados de se fazer ouvir, mas a própria
Araquém. Os tabajaras têm mil guerreiros para defendê-lo, e descrição levava à construção de estereótipos.
mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te obedecerão. O alvo principal dessa crítica foi a produção de
— Pajé, eu te agradeço o agasalho que me deste. Logo que o sol estereótipos, presentes tanto nas descrições em si como
nascer, deixarei tua cabana e teus campos aonde vim perdido; mas nas teorias produzidas na Europa e nos Estados
não devo deixá-los sem dizer-te quem é o guerreiro, que fizeste Unidos.
amigo. Para esses autores, o conceito de cultura
— Foi a Tupã que o Pajé serviu: ele te trouxe, ele te levará. resultaria necessariamente em uma prisão para os
Araquém nada fez pelo seu hóspede; não pergunta donde vem e grupos descritos desse ponto de vista: a descrição
quando vai. Se queres dormir, desçam sobre ti os sonhos alegres; produziria um estereótipo do qual os descritos não
se queres falar, teu hóspede escuta. poderiam fugir, assim como os grupos indígenas
ALENCAR, José de. Iracema. 37. ed. São Paulo: Ática, 2009. p. 25. brasileiros não conseguem escapar da imagem de um
índio genérico no Brasil.
Nesse trecho do romance Iracema, publicado
pela primeira vez em 1865, o autor cearense José de
Alencar faz uma descrição da população indígena na
qual tanto a jovem Iracema como o pajé Araquém são
representados como solícitos e servis em relação ao
estrangeiro.
O escritor desenha uma imagem de submissão
incondicional, sem contestação ou mecanismos de
resistência. Essa forma de descrever os indígenas gera
uma imagem sobre essa população. E essa imagem
favorece a elite branca do século XIX, pois representa
os indígenas como serviçais.
Do ponto de vista dos críticos do conceito de
cultura, o processo sempre se repete: a cada descrição,
temos uma representação criada por quem descreve.
Aquele que é descrito, por sua vez, nunca tem
sua própria voz ouvida. Ou seja, quando alguém o A charge acima evidencia a crítica que os
descreve, produz imagens sobre as quais o indivíduo intelectuais pós-coloniais fazem ao conceito de cultura:
descrito não tem nenhum controle. gerar descrições que por sua vez produzem estereótipos
Por exemplo, na maior parte das escolas que passam a fazer parte do senso comum e prejudicam
brasileiras a comemoração do Dia do Índio é feita com indivíduos ou grupos em situação vulnerável.
base em ideias e imagens genéricas, que não se referem
a uma etnia ou população específica. Para esses intelectuais, a questão é justamente a
Como se sabe, os diversos grupos indígenas do difusão desses estereótipos, a ponto de passarem a fazer
Brasil vivem em sociedades muito distintas entre si, parte do senso comum. Na imagem acima, o cartunista
com diferentes visões sobre o mundo e a natureza. critica o estereótipo que vincula a população negra
Nenhum indígena real é representado no Dia do Índio: unicamente ao esporte, e não às atividades intelectuais.
comemoramos uma imagem, criada pela sociedade não Embora as críticas citadas sejam pertinentes,
indígena, que está muito distante da diversidade muitos defensores do conceito de cultura alegam que
presente nos grupos indígenas que vivem no Brasil. elas se referem a um conceito de cultura estático (como
Retomando a crítica dos antropólogos pós- o do começo do século XX), que de fato produziria uma
modernistas do final do século XX, eles diziam que as imagem imutável do descrito, ou então indicam um
descrições feitas pelos intelectuais eram autoritárias, mau uso do conceito, não levando em conta o
pois não davam voz aos descritos: sempre alguém falava dinamismo dos sistemas culturais.
por eles. E, para esses antropólogos, o conceito de Diante da capacidade de dinamismo de
cultura era o veículo dessa descrição autoritária. qualquer sistema cultural, os defensores do conceito de
A partir da década de 1990, essa crítica foi cultura afirmam que qualquer descrição estática deixa
retomada por uma série de intelectuais chamados de de fazer sentido. Para esses antropólogos, o conceito de
“pós-coloniais”. Originários de várias partes do mundo, cultura, quando bem compreendido e empregado, ainda
principalmente da Índia, e também de grupos é um poderoso instrumento de luta contra os
minoritários dos países centrais do mundo ocidental, estereótipos, pois procura justamente dar sentido a tudo
esses estudiosos levaram mais além a crítica pós- aquilo que gera estranheza e preconceito.
modernista.

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3. OUTRAS FORMAS DE PENSAR A local e “observação participante”. O trabalho de campo


DIFERENÇA tornou-se um dos principais métodos de pesquisa
antropológica.
A Antropologia elaborou vários mecanismos Para Malinowski, o
para refletir sobre a diferença, e “cultura” foi o primeiro antropólogo deveria
deles, mas vários outros conceitos foram “mergulhar” na cultura
desenvolvidos, em diversos contextos e orientações local, participando das
teóricas. Ou seja, a Antropologia continua pensando atividades cotidianas
sistematicamente sobre a diferença, e para isso lança enquanto observava o que
mão de várias estratégias. acontecia. Grande crítico
Vamos agora tentar entender um pouco desse dos evolucionistas e
processo e enumerar alguns conceitos fundamentais, precursor da perspectiva
situando-os no contexto histórico e social de sua funcionalista em Antropologia, Malinowski foi um dos
produção. intelectuais mais influentes do século XX.
Veremos que esses conceitos respondem a Para Malinowski e Radcliffe-Brown, qualquer
diferentes situações históricas, a objetos de pesquisa generalização histórica esbarrava na falta de evidências
que foram se transformando e a novas preocupações, concretas e, muitas vezes, podia até ser considerada
geradas por mudanças sociais no mundo. uma invenção. Segundo eles, para entender uma
Começaremos pela Antropologia inglesa e suas sociedade bastava olhar para o presente e explicar seu
respostas críticas ao evolucionismo social. funcionamento nesse momento. Por que e como a
A seguir veremos como os franceses lidaram sociedade teria chegado àquela forma era menos
com as mesmas questões. Finalmente, vamos tratar de importante.
algumas das grandes mudanças ocorridas no mundo no Para eles, bastava uma boa fotografia da
fim do século XX. sociedade: qualquer outra explicação seria apenas uma
descrição dessa “fotografia”. O que o antropólogo
3.1 A perspectiva inglesa

Enquanto nos Estados Unidos o antropólogo


Franz Boas investia no conceito de cultura para
combater o evolucionismo social, os antropólogos
ingleses estavam mais interessados nas noções de
estrutura social e de função.
Influenciados pelas ideias de Émile Durkheim,
os ingleses se basearam no trabalho desse sociólogo
francês para pensar as sociedades “primitivas”.
A influência do evolucionismo social era
grande, e, assim como Boas nos Estados Unidos, uma
nova geração de antropólogos britânicos passou a
criticar as teorias dessa corrente. encontrava na sociedade que pretendia estudar era
Nesse momento, os dois principais nomes justamente sua estrutura social: algo que podia ser visto
foram Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown (1881- no modo de viver cotidiano daquela sociedade.
1955). Cada um deles, à sua maneira, ajudou a romper Assim, a estrutura de uma sociedade seria a
com a herança evolucionista. relação entre as diversas partes que a compunham: a
Em lugar de recorrer à cultura, contudo, forma como as pessoas produziam comida, como essa
Malinowski e Radcliffe-Brown tomaram outro comida era distribuída, as regras de parentesco, o uso
caminho: a recusa da História como fator explicativo. da terra, a forma de organizar grupos para a guerra, os
Não que desconsiderassem o valor da História, apenas rituais, as crenças religiosas.
não achavam que as teorias históricas pudessem Tudo isso poderia ser observado pelo
explicar tudo. antropólogo e descrito de forma sistemática. Dessa
Bronislaw Malinowski (1884-1942) nasceu na descrição resultaria a ideia da estrutura social daquela
Polônia, estudou Ciências Exatas em seu país e na sociedade.
Alemanha e, depois, mudou-se para a Inglaterra, onde Havia ainda outro pressuposto nesse conceito:
se naturalizou. A leitura de O ramo de ouro, obra clássica o de que as diversas partes de uma sociedade se
de James Frazer, atraiu-o para a Antropologia. organizavam para manter a estrutura sempre
Malinowski ficou conhecido por estabelecer o funcionando, garantindo um equilíbrio constante.
método etnográfico, ou seja, a pesquisa de campo de Poderia haver momentos de tensão, mas a tendência
longa duração, com conhecimento fluente do idioma seria sempre voltar ao equilíbrio. Para a sociedade

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existir, cada uma das partes desempenhava sua função marcante do trabalho de Mauss e de Lévi-Strauss foi a
na manutenção do equilíbrio. comparação sistemática: ambos eram grandes leitores
Para compreender essa ideia, podemos dos trabalhos de antropólogos norte-americanos,
comparar a estrutura de uma sociedade com a do corpo ingleses, franceses e também brasileiros.
humano, composto de inúmeras partes (os órgãos). Em seu texto clássico Ensaio sobre a dádiva
Todas as partes precisam contribuir para a (1923), Mauss diz que qualquer sociedade se baseia na
sobrevivência, tanto no caso da sociedade como no aliança: para existir, uma sociedade precisa se constituir
caso do corpo humano: se um órgão falha, o organismo em grupos que estabeleçam alianças.
todo pode morrer. Para Mauss, a necessidade de retribuir uma
Essa ideia de função remetia a uma percepção dádiva (algo que recebemos de alguém) leva a um
de utilidade: qualquer costume, prática, hábito ou ritual, sistema de trocas: trocas matrimoniais (casamentos
por mais estranho que parecesse, sempre tinha uma entre grupos diferentes), trocas econômicas (comércio)
função na sociedade. Essa função estava atrelada à e trocas simbólicas (circulação de mitos, histórias,
própria sobrevivência daquela população e se referia às objetos sagrados, práticas variadas, etc.). Ou seja, para
necessidades básicas: alimentar-se e sobreviver às esse autor, a origem da sociedade estaria na troca como
dificuldades impostas pelo ambiente. forma de estabelecer relações.
Malinowski era radical, acreditando que tudo o Essa reflexão deve muito às descrições de Franz
que uma sociedade produzia respondia a uma única Boas sobre as cerimônias do povo Kwakiutl, habitante
necessidade básica: saciar a fome. da ilha de Vancouver, no Canadá. Uma dessas
cerimônias, o potlach, era uma festa religiosa de
3.2 O olhar dos franceses homenagem, em geral envolvendo um banquete
seguido pela renúncia a todos os bens acumulados pelo
A antropologia francesa, por sua vez, homenageado, que deveriam ser entregues a parentes,
distanciou-se tanto da noção de cultura como da noção convidados e amigos, ou até queimados.
de estrutura social dos ingleses. Os principais Marcel Mauss propôs também teorias sobre a
representantes da vertente francesa foram Marcel origem de categorias como “pessoa”, “magia”,
Mauss e Claude Lévi-Strauss. “sacrifício”, entre outras.
Marcel Mauss (1872- Claude Lévi-Strauss,
1950), sobrinho de Émile por sua vez, foi o mais
durkheim, tinha uma ambicioso teórico da
preocupação semelhante à dos Antropologia do século XX,
evolucionistas do século XIX: considerado o mais importante
buscar explicações gerais para antropólogo de todos os
os fenômenos humanos, em tempos.
perspectiva sempre Essa importância se
comparativa. deve justamente à ambição de
A pretensão de explicar sua perspectiva, que resultou
aspectos gerais da humanidade, que vimos ser na teoria denominada estruturalismo. Influenciado por
característica dos evolucionistas, foi radicalmente Mauss, de quem foi aluno, e por teóricos da linguística,
contestada tanto nos Estados Unidos, com o trabalho Lévi-Strauss avançou na teoria da dádiva de Mauss e
de Boas e seus discípulos, como na Inglaterra, com a propôs inicialmente uma teoria da troca na constituição
perspectiva anti-histórica de Radcliffe-Brown e dos diversos sistemas de parentesco.
Malinowski. Para definir essa teoria da troca como
Todos esses autores fugiam das generalizações fundadora da vida em sociedade, Lévi-Strauss imagina
desmedidas do evolucionismo social, cujas explicações um estado de natureza anterior à vida em sociedade, em
sobre a humanidade tendiam a ignorar os detalhes que que as pessoas não faziam trocas. Segundo ele, o que
tanto interessavam aos antropólogos ingleses e norte- leva as pessoas a fazer trocas é a proibição do incesto.
americanos. Como assim? Vamos entender: Lévi-Strauss
Apesar da aversão de muitos estudiosos pelas afirma que qualquer sociedade impõe alguma limitação
generalizações, tanto Mauss como Lévi-Strauss aos casamentos. Em nossa sociedade, por exemplo, é
buscavam justamente explicações mais gerais e proibido o casamento entre irmãos. E se uma parte das
necessariamente comparativas, sem no entanto pessoas de um grupo não pode casar entre si, torna-se
pressupor a necessidade de nenhuma escala evolutiva. necessário buscar casamentos fora do grupo. Ou seja,
Construíram modelos de explicação que não torna-se necessário estabelecer algum tipo de troca
incluíam a noção de progresso, liberando assim a entre sociedades, para que as pessoas possam casar sem
Antropologia para pensar sobre a vida em sociedade em violar as leis de proibição do incesto.
termos mais amplos e ambiciosos. Característica
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Lévi-Strauss vai mais além, e constata que as aprofundado da sociedade levou muitos antropólogos a
formas como as sociedades “simples” trocavam se interessarem pela história das sociedades
casamentos eram restritas a poucos modelos que se pesquisadas.
repetiam. Aliás, essa já era a opinião de Lewis Henry Os adeptos da corrente simbólica, interessada
Morgan no século XIX. Ou seja, o número de sistemas em aspectos como arte e religião, procuram entender
de parentesco não era tão grande, e sociedades muito esses sistemas como históricos, isto é, produzidos ao
distantes geograficamente umas das outras longo do tempo. O trabalho de Clifford Geertz, por
desenvolviam sistemas de parentesco bastante exemplo, tem sido uma referência para uma série de
semelhantes. historiadores contemporâneos interessados na “história
Como não era possível estabelecer nenhuma das mentalidades”.
conexão histórica entre essas sociedades, a única
conclusão possível é que esses sistemas haviam sido
criados autonomamente. Essa proposição tinha uma
implicação importante: se sistemas de parentesco
semelhantes eram produzidos ao redor do mundo, isso
significaria que eles esconderiam uma estrutura comum
a toda humanidade?
Para Lévi-Strauss, a resposta é sim. É
justamente essa estrutura que ele passa a buscar. Nada
parecido com a ideia de estrutura social dos ingleses,
mas com uma estrutura que não está evidente, que não
é visível a olho nu. A estrutura proposta por Lévi- Essas preocupações geraram reflexões
Strauss é deduzida de várias comparações entre antropológicas sobre a História que são especialmente
sociedades. evidentes e explícitas no trabalho de Marshall Sahlins.
Para ele, existe algo de comum no pensamento Interessado na história das populações do Havaí,
humano, que faz com que várias sociedades produzam Sahlins trabalhou com fontes documentais (relatos,
coisas parecidas. documentos comerciais, biografias, etc.) para produzir,
Essa estrutura seria universal, e Lévi-Strauss com base nelas, a antropologia de um momento
passou a vida tentando desvendá-la a partir de estudos passado.
sobre parentesco e mitologia indígena nas Américas. A Um dos principais livros de Sahlins, Ilhas de
estrutura lévi-straussiana pensa em termos binários, História (Zahar, 1990) — que reúne ensaios do autor
constituindo oposições, como as que existem entre os sobre sociedades insulares como Havaí, Fiji e Nova
termos alto e baixo, fora e dentro, cheio e vazio, etc. Zelândia —, trata da chegada do navegador inglês
Para Lévi-Strauss, essas oposições seriam o James Cook às ilhas do Havaí em 1778. Cook foi o
motor de qualquer pensamento humano. Os mitos, por primeiro europeu a chegar ao Havaí, e esse encontro
exemplo, exemplificam essa forma de pensamento gerou uma série de eventos que tiveram implicações na
binário, mas apontam também para outra questão história das ilhas.
importante: a sua própria transformação. Essa estrutura Sahlins faz reflexões sobre História e
universal que organiza o pensamento humano indica Antropologia ocidental, criticando o pensamento
também um processo de lentas transformações entre as acadêmico que, segundo ele, cria falsas dicotomias entre
oposições. passado e presente, estrutura e História, indivíduo e
sociedade.
4. ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA Nesse livro, Sahlins demonstra a coincidência
entre a chegada dos ingleses ao Havaí e uma série de
A Antropologia contemporânea mantém rituais nativos dedicados a uma figura mítica, o deus
estreitas relações com o conhecimento historiográfico; Lono.
hoje, diversos estudiosos se dedicam à produção de Tendo chegado justamente no período desses
uma antropologia histórica. Desde os escritos dos rituais (que se realizavam anualmente), Cook teria sido
evolucionistas no século XIX, a Antropologia expressa imediatamente associado a Lono, tido na mitologia
a tentativa de pensar a história da humanidade. havaiana como o deus estrangeiro, que chegaria para
Com o trabalho dos antropólogos britânicos a dominar o Havaí. Os rituais celebravam essa narrativa
História foi colocada de lado. Entretanto, para o francês mitológica, em que Lono chega, domina, mas depois é
Lévi-Strauss, História e Antropologia caminham juntas, expulso pelo rei havaiano. Na época, o Havaí era uma
já que ambas estudam “outras” sociedades, distintas sociedade hierárquica e marcada por castas que
tanto no tempo como no espaço. separavam a aristocracia do povo.
Na antropologia norte-americana, a História
sempre teve destaque: a ênfase de Franz Boas no estudo
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Para Sahlins, o encontro entre ingleses e social, antropologia reversa, antropologia simétrica,
havaianos evidenciava uma diferença na forma de antropologia ontológica, antropologia reflexiva.
considerar a História: para os ingleses, o evento foi um Nascido nos Estados
momento de conquista, para os havaianos, um Unidos, doutorou-se em
acontecimento que reproduziu o mito. Assim, para Antropologia na
Sahlins, a Antropologia não trata apenas de sociedades Universidade de Chicago, em
com culturas diferentes, mas aborda a própria noção de 1966. Atualmente é professor
História nas diferentes culturas. Ou seja, a forma como na Universidade de Virgínia.
os havaianos encaravam a História era diferente da Fez trabalho entre os Daribi e
forma como os ingleses a encaravam: culturas os Barok (Papua-Nova
diferentes, diferentes concepções de História. Guiné). Seu trabalho tem sido
O encontro entre europeus e havaianos acabou reconhecido como inovador por muitos antropólogos
mal para Cook. Embora tenha sido tratado como um contemporâneos.
rei e partido com os navios cheios de suprimentos, Roy Wagner lançou uma série de
Cook foi obrigado a retornar quando o mastro principal questionamentos sobre grandes “verdades” tidas como
de uma das embarcações se despedaçou. Foi então evidentes no pensamento antropológico. Para esse
assassinado, e seu corpo esquartejado e distribuído autor, um dos problemas da Antropologia era a
pelas ilhas, uma vez que os havaianos não entenderam defasagem entre o conhecimento produzido pelo
esse retorno. Para Marshall antropólogo e o saber do qual deriva esse
Sahlins, esse evento trágico evidencia um momento em conhecimento, ou seja, a cultura nativa.
que as diferentes concepções culturais de História se Tudo se passa como se o antropólogo fosse a
materializaram em ações incompreensíveis de ambos os campo, observasse diferentes aspectos de uma
lados. sociedade, voltasse e contasse suas observações para os
Sahlins afirma que era impossível para os colegas. Mas isso é uma ilusão.
havaianos entender por que Lono/Cook teria voltado Na realidade, o antropólogo usa categorias de
ao Havaí após ter sido expulso ritualmente pelo rei. O sua própria cultura para pensar as coisas que acontecem
retorno deveria acontecer apenas no ano seguinte, “do outro lado”. Quando faz isso, acaba por subordinar
segundo a história havaiana, que conectava o mito aos as outras culturas ao seu próprio conhecimento. Ou
acontecimentos. Os ingleses, por sua vez, não seja, o antropólogo tem sempre uma vantagem sobre o
entenderam a reação dos nativos, que até então haviam nativo, pois pensa a experiência deste a partir das
oferecido a melhor hospitalidade, e interpretaram o ato categorias de sua própria sociedade.
como selvageria, produto de mentes instáveis.
O resultado desse desencontro de percepções Assim, os conceitos do antropólogo acabam
da História significou a morte de Cook. Para a por obscurecer a relação entre antropólogo e nativo.
Antropologia, a análise dessas diferentes concepções de Seria preciso, então, pensar diferente. Esse “pensar
História foi um avanço na possibilidade de diferente” envolve imaginar que o conhecimento do
compreender eventos passados a partir das culturas nativo tem o mesmo valor que o conhecimento do
estudadas. Sahlins demonstra também que, além de antropólogo.
serem diferentes, as concepções de cultura se alteram Para Wagner, o que nativos e antropólogos
ao longo do tempo, isto é, não são rígidas e estáticas. fazem o tempo todo é inventar cultura, no sentido de
No Havaí, a chegada dos ingleses desencadeou criar, transformar, produzir diferenças. Ou seja, a
uma série de mudanças sociais que resultaram também cultura é constantemente inventada por seus
na alteração da percepção dos havaianos sobre sua “usuários”, o que gera novas configurações que, por sua
própria história. vez, são “estabilizadas” para depois serem novamente
desestabilizadas por novas invenções. Se o nativo
5. ANTROPOLOGIA COMO INVENÇÃO inventa cultura, o antropólogo também inventa.
O que o antropólogo faz é entrar em contato
Outra discussão importante para a com a vida do nativo: o trabalho de campo. Esse
Antropologia contemporânea é a renovação da ideia de processo resulta no antropólogo descrevendo para seus
cultura, iniciada em 1975 pelo antropólogo norte- pares como é a vida do nativo, e isso é, em si, uma
americano Roy Wagner (1938-), com a publicação de invenção de cultura. O antropólogo não descreve
The Invention of Culture (A invenção da cultura, Cosac objetivamente algo (uma cultura) que está lá: ele entra
Naify, 2012), livro que passou praticamente em contato com uma diferença, e esse contato produz
despercebido. uma terceira diferença: a experiência do trabalho de
Hoje essa obra é considerada fundamental na campo.
construção de uma nova antropologia, que tem Essa terceira diferença é algo novo, que permite
recebido diferentes denominações: antropologia pós- ao antropólogo imaginar como é a vida do nativo. Essa
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imaginação Wagner chama de cultura, fruto de um 6. A ANTROPOLOGIA E AS GRANDES


encontro e de uma tentativa de se aproximar do RUPTURAS
conhecimento nativo, e não uma tentativa de descrevê-
lo. O início da crítica à ideia
A ideia da cultura como invenção representou de separação entre natureza e
uma grande transformação da Antropologia. Ao cultura veio de Bruno Latour
colocar no mesmo patamar as invenções do (1947-), filósofo, sociólogo e
antropólogo e do nativo, recusando a superioridade do antropólogo francês que se dedica
conhecimento antropológico, Wagner abriu espaço a entender a ciência moderna e
para o que chamou de “antropologia reversa”. Ou seja, produz o que podemos chamar de
imaginar como o nativo pensa a nossa sociedade, como uma antropologia da ciência.
se o nativo fosse também antropólogo — em certo Segundo ele, nosso
sentido, todos nós somos um pouco antropólogos. E pensamento se apoia na certeza
mais: essa reversão significa pensar nossa própria de que há uma distinção radical entre o mundo dos
sociedade do ponto de vista do nativo, o que provoca humanos e as “coisas lá fora”. Essas coisas são os
um estranhamento e uma transformação. objetos, os não humanos em geral. Essas coisas que
Ao pensar sobre nós mesmos com os conceitos estão lá fora, separadas do mundo dos humanos,
do nativo, estamos também inventando nossa própria formam a natureza, esse mundo que é objeto de atenção
cultura, que é transformada por esse pensamento do dos humanos, mas que não tem vida inteligente ou é
nativo (o “outro”). inerte.
Para Roy Wagner, a aventura da Antropologia é A ciência seria um discurso sobre essa distinção,
uma via de mão dupla: descrever a vida do nativo acaba pois descreve a natureza (os animais, os átomos, as
por transformar nossa própria noção de vida. Isso massas de ar, enfim, tudo o que possa constituir seu
resulta da atitude de dar aos conceitos do nativo a objeto). Mas, ao fazer sua pesquisa entre cientistas,
mesma importância dada aos conceitos antropológicos. Latour descobre que a ciência, na verdade, não trata do
O pensamento de Wagner propõe, portanto, a “mundo lá fora”, mas sim de um conjunto de acordos
ruptura de uma divisão que sempre foi fundamental e disputas entre os cientistas. O que entendemos como
para a Antropologia: a divisão entre nativos e natureza depende do acordo entre uma multidão de
antropólogos. Do ponto de vista de Wagner, somos pessoas e só existe como natureza enquanto esse
todos antropólogos. acordo durar.
Assim, aquilo que vemos como avanço
científico é fruto de uma política de acordo entre os
cientistas. Por exemplo: no começo do século XIX,
acreditávamos que o átomo era a menor partícula do
Universo. No fim do mesmo século, passamos a
acreditar que existem partículas menores que o átomo,
os elétrons, o que produziu uma mudança na ideia da
natureza das pequenas partículas. Hoje, acredita-se em
partículas ainda menores, como os bósons, quarks,
neutrinos, fótons, etc., mas não há consenso sobre a
O trabalho de Roy Wagner, entretanto, levou natureza dessas partículas.
muito tempo para produzir impacto, ao contrário das No exemplo acima o que mudou não foi a
teorias de Clifford Geertz e Marshall Sahlins, publicadas “natureza”, mas o entendimento humano e coletivo,
na mesma época. Foi necessário que ocorressem outras fruto da política dos cientistas em impor uma certa
rupturas para que o valor da obra de Wagner fosse visão. A natureza não está nem nunca esteve separada
reconhecido. E, mesmo assim, suas ideias afetam dos seres humanos. Não existe separação universal
apenas em parte a Antropologia contemporânea. entre natureza e cultura, que se aplicaria a toda
Vários estudiosos continuam fazendo seu humanidade: essa é uma noção particular, específica da
trabalho sem se preocupar com os chamados “grandes nossa forma “ocidental” de pensar, derivada de uma
divisores”, isto é, grandes eixos do pensamento noção particular de ciência.
ocidental que podem ser resumidos em pares de A concepção de Bruno Latour gerou interesse
oposições, como a separação entre sujeito e objeto no que ele chamou de “antropologia simétrica”, ou seja,
(entre antropólogo e nativo, por exemplo), a separação a ideia de que, ao estudar uma sociedade indígena, o
entre natureza e cultura e a separação entre sociedade e antropólogo se preocupa em explicá-la pelo que ela tem
indivíduo. de mais importante, ao passo que, quando olha para
Vamos conhecer a seguir um pouco da crítica uma sociedade “complexa”, contenta-se em estudar sua
aos grandes divisores. periferia.
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Latour afirma que, ao olhar para sua própria Essa perspectiva pressupõe levar a sério o que
sociedade, o antropólogo deveria fazer o que faz entre nos diz o nativo e não mais jogar o jogo em que o nativo
os indígenas: olhar para o centro da forma de pensar, é “interpretado” pelo antropólogo (ou seja, a ideia de
olhar para a cosmologia. E o centro da cosmologia que o nativo não sabe exatamente o que é sua cultura,
(qualquer doutrina ou narrativa a respeito da origem, da ao passo que o antropólogo sabe exatamente qual é a
natureza e dos princípios que ordenam o mundo ou o cultura do nativo).
Universo, em todos os seus aspectos.) da sociedade No Brasil, essa premissa
ocidental seria, para Latour, justamente a ciência. de uma nova antropologia “pós-
A crítica à divisão entre natureza e cultura teve social” ou “ontológica” foi
ainda outras consequências no pensamento desenvolvida por Eduardo
antropológico. A ideia de que não existe “lá fora” um Viveiros de Castro (1951-),
mundo natural universal que é preenchido de formas antropólogo brasileiro
alternativas por diferentes culturas abriu muitas portas. conhecido no cenário
Se antes um antropólogo achava que cada internacional por seus estudos
cultura resolvia, à sua maneira, como pensar a natureza, sobre as cosmologias indígenas
ele necessariamente partia do pressuposto de que havia da Amazônia.
uma separação universal entre natureza e cultura. Para entender a vida dessas populações foi
Mas, e se pensarmos que não há essa separação necessário romper com o grande divisor
universal, o que acontece? E se, além disso, resolvermos natureza/cultura, pois a visão de mundo desses
dar aos conceitos nativos o mesmo valor que damos aos indígenas nada tem a ver com o que pressupõem nossas
nossos? Ao descrever formas de pensamento que não categorias. Para os ameríndios da Amazônia, o que é
pressupõem a divisão natureza/cultura, os universal não é a natureza, mas justamente o contrário:
antropólogos começaram a criticar as próprias noções a cultura. Em tudo e em todo lugar existe cultura, ao
antropológicas fundadas nessa divisão. passo que o que realmente muda são as naturezas. A
De fato, está acontecendo o que Roy Wagner essa concepção, Viveiros de Castro deu o nome de
dizia ser necessário: reinventar nossa cultura a partir da multinaturalismo.
invenção da cultura dos outros! Vejamos um exemplo do que ele chamou de
A inglesa Marylin Strathern foi uma das “perspectivismo ameríndio”: do ponto de vista
antropólogas que desenvolveu essa perspectiva crítica indígena, qualquer animal é humano, só que essa
(chamada de antropologia reflexiva). Ao analisar humanidade é revestida de naturezas diferentes. O
populações da Melanésia, Strathern afirma que nessa jaguar é tão humano quanto o próprio indígena, mas
sociedade inexiste a noção de indivíduo, assim como tem corpo de jaguar (outra natureza). O que o jaguar vê
inexiste a noção de sociedade. quando vê o indígena é o mesmo que o índio vê quando
A etnografia da Melanésia, portanto, coloca em vê uma presa a ser caçada. Há apenas uma mudança de
dúvida nossas certezas baseadas nos grandes divisores perspectiva.
(como sociedade/indivíduo, no caso). Para os Também o porco-do-mato é um humano, que
melanésios, cada pessoa contém em si mesma várias vê sua comida como comida humana, e vê os humanos
outras pessoas, como se cada um fosse um repositório como espíritos canibais, pois os humanos caçam e
de relações sociais estabelecidas ao longo da vida. matam porcos-do-mato. O perspectivismo ameríndio
Para os melanésios, as pessoas são divisíveis, e confere humanidade a tudo aquilo que, na ciência
não indivisíveis, como pensamos em nossa sociedade. ocidental, consideramos “não humano”. E para os
Por exemplo, quando uma mulher tem seu primeiro ameríndios não existe uma natureza comum a todos os
filho, ela precisa desfazer um pouco das relações de si seres: é justamente a natureza que diferencia os seres!
mesma para refazer-se como mãe. Esse processo de O pensamento ameríndio vira de cabeça para
partição ou divisão indica outra crítica ao pensamento baixo o pensamento científico. Viveiros de Castro
ocidental: entre os melanésios que estudou, Strathern radicaliza a ideia a ponto de considerar o
não encontrou nada correspondente à nossa noção de perspectivismo como equivalente a uma teoria
sociedade. antropológica.
O fato de as sociedades melanésias pensarem o Para ele, o perspectivismo pode ser um
mundo por meio de conceitos diferentes daqueles instrumento teórico para pensarmos a nós mesmos, por
utilizados pelas sociedades ocidentais e de nem sequer exemplo. Assim como Strathern e Wagner, Viveiros de
adotarem categorias equivalentes às de indivíduo e Castro confere à Antropologia contemporânea uma
sociedade sugere a possibilidade de uma antropologia característica simétrica: o conhecimento nativo é tão
reversa. Ou seja, podemos nos imaginar como valioso quanto o nosso e pode ser uma forma de nos
melanésios e questionar nossos conceitos e a suposta enxergarmos com outros olhos.
validade universal de distinções como natureza/cultura
e indivíduo/sociedade.
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7. SOCIEDADES SIMPLES E COMPLEXAS

Uma das principais características da


Antropologia no século XX foi a crescente variação de
objetos de interesse. Se a orientação inicial foi o estudo
de sociedades pequenas e isoladas (muitas delas vivendo
em ilhas), aos poucos outras fontes de estudo foram
encontradas, como as sociedades ditas “complexas”.

acentuada no interior de uma sociedade complexa. E


quais são esses grupos?
Nos Estados Unidos, por exemplo, os
primeiros estudos de contextos “complexos” se
referiram aos imigrantes, que chegavam aos milhares
durante a primeira metade do século XX. Ou seja, os
antropólogos procuravam os grupos em que a diferença
A oposição entre “simples” e “complexas” foi cultural era mais evidente.
uma das formas empregadas para distinguir as Também foram estudadas populações rurais,
sociedades. Esses termos, porém, são problemáticos, assim como populações indígenas que iam sendo
pois todos os antropólogos correriam a afirmar que incorporadas à força às sociedades nacionais, e cujos
nenhuma sociedade é realmente simples e todas elas, a indivíduos se viram obrigados a adotar novas estratégias
seu modo, são complexas. de sobrevivência. Mas o olhar dos estudiosos sempre
A oposição é mais evidente em outros aspectos: imaginava que aquelas populações tão diferentes iriam
sociedades “complexas” seriam aquelas que combinam lentamente se adaptar e se assemelhar aos dominadores
uma grande escala de tamanho, a presença do Estado, ou às maiorias, no caso dos imigrantes.
fortes diferenças culturais internas e ainda uma O conceito de cultura, bem como os conceitos
diferenciação social destacada. Embora o termo de estrutura social e de função não explicavam
“sociedade complexa” seja enganador, por inferir que suficientemente bem essas realidades. Isso porque esses
existem sociedades não complexas, a expressão ganhou conceitos tinham como pressupostos alguma
espaço e marcou a história da Antropologia. estabilidade duradoura, o que não acontecia no interior
Sociedades como a chinesa, as pré-colombianas, das “sociedades complexas”. As coisas mudavam! Os
as da Europa medieval, todas podem ser consideradas antropólogos norte-americanos tentaram enquadrar
complexas, assim como as sociedades das quais os essas realidades fugidias no conceito de cultura,
antropólogos faziam parte. cunhando termos como aculturação.
A passagem da primeira para a segunda metade
do século XX marcou um avanço da Antropologia no Aculturação: processo resultante do
estudo das sociedades europeias, americanas e de contato mais ou menos direto e contínuo entre
grandes nações do mundo todo. Ao desviar o foco das dois ou mais grupos sociais em que cada um desses
pequenas sociedades, a Antropologia passou também a grupos assimila, adota ou rejeita elementos da
observar as grandes. cultura do outro. Pode ser recíproco ou unilateral
A princípio isso foi feito com base em conceitos e eventualmente implicar subordinação política.
elaborados para estudar sociedades pequenas, como as Como conceito antropológico, teve grande
que vimos até aqui. Mas aos poucos os estudiosos aceitação na primeira metade do século XX; mais
perceberam que outras categorias eram necessárias para tarde, foi duramente criticado.
pensar as sociedades ditas complexas.
Ainda assim, os métodos e conceitos dedicados Acreditavam que do encontro entre grupos
às sociedades “simples” levaram os antropólogos a muito distintos, o mais frágil deles lentamente se
buscar nas sociedades de grande escala fenômenos assemelharia ao mais forte. Os ingleses, por sua vez,
semelhantes aos observados nas sociedades pequenas. fazendo pesquisas na África, simplesmente ignoravam
Essa tendência é ainda muito forte na Antropologia: as transformações pelas quais passavam os grupos que
estudar grupos marginais e discriminados no interior estudavam e tentavam retratá-los como deveriam ser
das sociedades complexas. antes da chegada dos europeus.
Muitos antropólogos estudam aqueles grupos A princípio, para entender essa diversidade, os
que de imediato passam uma ideia de diferença mais antropólogos só contavam com os instrumentos usados

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no estudo das sociedades pequenas. Assim, começaram O grupo étnico não é definido por seu conteúdo
a praticar Antropologia em sociedades complexas entre cultural, mas sim em contraposição a outros grupos.
os grupos mais excluídos. Mas mesmo nesses Um grupo étnico só se define em relação a outro, e o
contextos, aquelas ferramentas pensadas a partir de uma conceito de etnicidade é sempre relacional.
noção de estabilidade não se mostraram muito eficazes. Não há etnicidade num grupo isolado, pois o
Então, novas ideias foram desenvolvidas. A que constitui a etnicidade é justamente o contraste com
partir da década de 1960, as noções de etnicidade e outros grupos. Por outro lado, os autores estão sempre
identidade passaram a ganhar importância. atentos ao fato de que a etnicidade é um poderoso
instrumento de mobilização política, utilizado para
8. ETINICIDADE legitimar lutas por diferentes tipos de direitos.
As lutas das minorias discriminadas nas
O termo etnicidade já rondava a história da sociedades centrais do capitalismo foram
Antropologia desde o começo do século XX, mas só a acompanhadas do uso dos termos etnicidade e
partir da década de 1960 a expressão aparece como identidade étnica. Imigrantes eram étnicos, indígenas no
forma cada vez mais comum de pensar a diferença. seio de sociedades complexas e minorias raciais
Nesse momento histórico do pós-Segunda também.
Guerra Mundial, as nações africanas estavam se Esse conjunto de populações demonstrava que
tornando independentes e guerras de libertação a diferença continuava a existir nas sociedades
nacional se espalhavam pelo mundo. complexas: não ocorreu o processo de “aculturação”
Todos esses processos sociais desestabilizaram que alguns antropólogos haviam previsto. E ainda: a
as percepções da Antropologia e desafiaram as noções essas “diferenças” estava atrelada uma carga
de equilíbrio, tão importantes até então. significativa de injustiça social.
Em um mundo em intensa transformação, com A ideia de minoria pode ser enganadora, pois
o avanço do sistema capitalista produzindo mudanças nem sempre significa um número menor de pessoas:
radicais, era cada vez mais difícil pensar as sociedades um grupo étnico pode ser mais numeroso em termos
em termos de estabilidade. populacionais, mas muito fraco em termos de poder e
Também ocorriam transformações no interior de participação na distribuição da riqueza.
das sociedades europeias e norte-americanas: conflitos Na África do Sul, antes do fim do apartheid, uma
internos, discriminações, racismo crescente, fluxos minoria branca dominava completamente os recursos
migratórios. do país, enquanto a imensa maioria negra era excluída.
Na Inglaterra, uma nova Ou seja, o termo minoria também pode ser usado como
geração de antropólogos referência aos grupos que concentram poder. Mas,
comandada por Max Gluckman nesses casos, a propriedade da etnicidade é que aqueles
(1911-1975), começava a analisar que dominam constroem um sistema no qual se
as relações entre as sociedades inserem como a normalidade. Ou seja, os brancos são
“simples” e os impérios coloniais. vistos como os “normais”, e todos os excluídos são
Conhecida como escola de “étnicos”.
Manchester, essa geração se A ideia de etnia refere-se aos não dominantes,
dedicou a estudar a mudança pois os dominantes não se pensam como distintos ou
social e as transformações relacionadas aos processos fora da cultura predominante.
de descolonização e independência na África e na Ásia. O exemplo dos conflitos étnicos demonstra a
Entre os estudiosos desse grupo, o conceito de importância de entender como se dão os processos de
etnicidade tornou-se central. construção de diferença, pois não se trata apenas de
Outro antropólogo que pensar e falar sobre diferença, mas de perceber as
contribuiu para o práticas geradas por essas construções.
desenvolvimento da noção de Temos aqui o caso limite de práticas que são
etnicidade foi o norueguês direcionadas para constituir políticas violentas de
Fredrik Barth (1928-) formado exclusão e até de extermínio, a partir da manipulação
em Cambridge, cujo trabalho das diferenças culturais.
influenciou alguns membros da O conceito de etnicidade se contrapõe ao
escola de Manchester. conceito de aculturação (ou assimilação), que foi um
O conceito de etnicidade descreve um grupo dos desenvolvimentos do conceito de cultura.
que se autodefine e é definido por outros como Os teóricos da aculturação previam que aquelas
diferente, que supõe algum tipo de identificação populações diferentes (como os imigrantes e os
coletiva, como o compartilhamento de uma história indígenas), lançadas no interior de uma sociedade
comum. nacional, lentamente deixariam de ser “diferentes” e
passariam a fazer parte da sociedade nacional.
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Mas não foi isso o que aconteceu. Pelo responsabilizando-os pelas mazelas econômicas que
contrário: ocorreu um fortalecimento dos “diferentes”, vêm ocorrendo na Europa.
que passaram a reivindicar o reconhecimento de seus
direitos nas esferas políticas. 9. IDENTIDADE
Nos Estados Unidos, por exemplo, a
intensificação do movimento negro levou a Se etnicidade se referia a algum tipo de
transformações sociais imensas, que incluíram as ancestralidade comum (imigrantes, populações negras,
políticas de cotas para minorias historicamente indígenas, etc.), muitas outras diferenças não tinham
excluídas. mais essa conotação: entre um ultrarreligioso negro e
Essa ação política dos excluídos foi mais bem um ativista por direitos homoafetivos negro, a diferença
analisada da perspectiva de etnicidade do que da de pode ser tão grande quanto aquela entre um grupo
cultura. Como o conceito de cultura levava a imaginar indígena e uma sociedade nacional.
uma única cultura nacional, as reivindicações de Como pensar essa diferença não atrelada
minorias não se encaixavam nos quadros de explicação. necessariamente a uma ancestralidade comum?
A alternativa para pensar essa nova realidade
Conflitos étnicos complexa e fragmentada foi o conceito de identidade.
Ao contrário de outras ideias usadas para pensar
É comum encontrar na mídia o termo “étnico” a diferença, identidade não pressupõe uma
associado a conflitos de todo tipo. Em geral a expressão ancestralidade comum; a prática social (a experiência de
“conflito étnico” descreve tensões entre grupos no vida) é suficiente para produzir identidades entre
interior de Estados nacionais no mundo grupos de pessoas.
contemporâneo. A identidade é sempre vista como transitória,
Essas tensões apresentam graus variados de nunca pronta e acabada. É um processo em construção,
intensidade, desde situações não violentas, como é o modelado pela ação das pessoas que partilham coisas
caso do nacionalismo na província de Quebec, no em comum.
Canadá, que opõe quebequenses aos demais Podemos pensar num grupo de religiosos
canadenses, até conflitos que degeneram em guerras de budistas que desenvolve uma identidade a partir da
extermínio e por vezes resultam no fracionamento de prática do budismo, num grupo de homossexuais em
Estados nação divididos pelo conflito. Esse foi o caso busca de direitos familiares e na luta contra o
da ex-Iugoslávia e dos conflitos entre sérvios, croatas, preconceito, em grupos de punks que vivem segundo
bósnios, albaneses e eslovenos. um modelo diferente.
Naquele contexto, além das distinções culturais, A todos esses exemplos e a muitos outros pode
havia diferenças religiosas importantes entre cristãos e ser atribuído o conceito de identidade: identidades
muçulmanos. religiosas, identidades sexuais, identidade punk.
A guerra civil iugoslava, ocorrida na década de O conceito de identidade é oportuno para
1990, resultou em mais de 100 mil mortos, em ações de pensar a diferença num mundo onde a fragmentação
“limpeza étnica” e na origem de novos Estados das opções de vida foi multiplicada ao extremo, onde
nacionais. múltiplas alternativas se apresentam a qualquer pessoa.
Alguns intelectuais têm chamado esse Como conceito, identidade nasce sem
fenômeno de “retribalização”, mas para o antropólogo preocupação com estabilidade, continuidade ou
norueguês Fredrik Barth trata-se na realidade de qualquer ideia de completude. Os sujeitos podem,
processos políticos em que alguns líderes manipulam inclusive, modelar sua identidade pessoal a partir de
identidades étnicas com interesses específicos. várias identidades, combinando e compartilhando
Segundo Barth, a mobilização para o conflito várias experiências identitárias.
não é uma expressão de sentimentos coletivos, mas sim Um punk negro pode amalgamar uma
resultado de ações políticas estratégicas. Para esse autor, identidade baseada no estilo de vida punk e também na
as tensões étnicas que têm potencial de gerar violência experiência de ser negro numa sociedade racista, por
podem ser combatidas politicamente. exemplo.
Portanto, as identidades étnicas podem ser Num mundo fracionado pelo excesso de
manipuladas por interesses específicos, em geral de informação, a diferença social tem sido analisada sob a
políticos medíocres que utilizam a manipulação e a perspectiva do conceito de identidade, mas isso
disseminação de preconceitos e rancores para também levou a um tipo de análise que foca apenas o
se legitimar politicamente. Podemos observar essa sujeito e suas escolhas, como se a identidade fosse uma
dimensão dos fenômenos étnicos no avanço dos espécie de mercadoria que cada pessoa pode assumir
partidos ultranacionalistas na Europa. Esses partidos livremente.
estimulam o preconceito contra imigrantes (que pode O fato de que muitos grupos se definem pelo
ser considerado um preconceito étnico), consumo de determinadas mercadorias levou a uma
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associação entre o conceito de identidade e o mercado mulheres e homens são utilizadas para justificar, e até
de consumo. mesmo legitimar, desigualdades. Os estudos de gênero
Se na esfera do senso comum cada vez mais a emergem na mesma época em que eclode a
identidade assume a feição de personalidade individual chamada segunda onda do feminismo, revelando o
moldada por estilos de consumo, nas Ciências Sociais a diálogo entre o feminismo e as teorias sociais,
importância da “vida em comum” continua a ser muito constituindo, também, base teórica e científica para a
relevante. contestação das desigualdades sociais entre mulheres e
A identidade contém tanto aquilo que homens.
escolhemos como aquilo que não escolhemos. Aquela Nos estudos de gênero, o termo gênero é usado
parte da vida social que não controlamos é fundamental para se referir às construções sociais e culturais de
na formação da identidade: assim, a exclusão racial, a masculinidades e feminilidades. Neste contexto, gênero
discriminação sexual, a intolerância religiosa, por explicitamente exclui referências para as diferenças
exemplo, são fatores sociais que as pessoas não biológicas e foca nas diferenças culturais.
controlam, mas que podem moldar suas identidades. A distinção entre o componente social do sexo
As identidades comportam tanto nossas feminino e a sua base biológica é discutida na
heranças culturais como novas formas de pensar o contemporaneidade.
mundo, apresentadas pelas novas tecnologias de A filósofa e feminista Simone de
comunicação. Beauvoir aplicou o existencialismo para a experiência
de vida da mulher: “Ninguém nasce mulher, torna-
10. A QUESTÃO DO GÊNERO se”. No contexto é um testamento filosófico,
entretanto é uma verdade sociológica – a maturidade
10.1 Feminismo e estudo de gênero em relação ao contexto social é aprendida, não
instintiva – e verdade nos estudos de gênero – a
Os estudos de gênero se iniciaram na década de feminilidade como uma aprendizagem social e cultural.
1960, na Europa e nos Estados Unidos, em que outros A filósofa Judith Butler analisa, de maneira
grupos sociais, como os negros e homossexuais, crítica, a dicotomia entre sexo e gênero. Para ela, os
também se organizavam para reivindicar o direito à corpos sexuados podem ser base para uma variedade de
diferença. gêneros e que o gênero não se limita apenas às duas
Nesses movimentos, embora as mulheres possibilidades usuais.
militassem da mesma forma que os homens, seu papel Esse desdobramento do conceito de gênero foi
era considerado secundário, com os homens nas dado nos anos 1990, através da teoria queer, que
funções de comando dentro da militância, o que levou questiona a normatividade heterossexual e ressalta o
à problematização das questões de gênero nesse "aspecto socialmente contingente e transformável dos
contexto. corpos e da sexualidade".
No Brasil os estudos de gênero, também Para Butler o gênero é uma performance que se
chamados de relações de gênero, emergem durante a dá em qualquer corpo, "portanto desconectado da ideia
década de 1970/80, em torno da problemática da de que a cada corpo corresponderia somente um
“condição feminina”. Inicialmente acreditava-se que gênero". Ela percebe o corpo da mesma forma que o
havia um problema da mulher, que deveria ser pensado gênero, como um construto cultural, ressaltando o
unicamente pelas mulheres, já que, durante séculos, os aspecto cultural/social da vinculação entre sexo e
homens as silenciaram e reprimiram. gênero.
Na década de 1980 os estudos sobre a Com a proposição de gênero como
"condição feminina" dão espaço aos estudos sobre as performance, Butler também vai solapar o peso
mulheres, já que não é possível falar de uma única metafísico da identidade (de gênero). Para ela, não há
condição feminina no Brasil e no mundo: há diferenças identidades que precedam o exercício das normas de
de classe, idade, raça/etnia, orientação sexual. No gênero, é o exercício mesmo que termina por criar as
entanto, permanece a referência a uma unidade normas.
biológica: todas as mulheres se reconheceriam pela
morfologia do sexo feminino (seios, vagina, útero). 10.2 Status legal
Na década de 1990 chega ao Brasil o conceito
de gênero para assinalar que as características e O sexo masculino ou feminino das pessoas
comportamentos que reputamos como naturais de um possui significância legal – sexo é indicado em
gênero são construções sociais e culturais e que, documentos legais, e leis agem diferentemente sobre
portanto, não podem ser interpretadas como homens e mulheres. Muitos sistemas de pensão
determinados por aspectos biológicos. possuem idades de aposentadoria diferentes para
A partir de então, passa-se aos estudos de homens ou mulheres. O casamento é permitido
gênero, que buscam explicar como as diferenças entre geralmente para casais de sexo opostos.
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A questão que surge é sobre o que determina a cada dia se faz mais presente em na sociedade: a
alguém como masculino ou feminino. Na maioria dos identidade de gênero, ou seja, aquele com o qual a
casos isto pode parecer óbvio, mas a questão se pessoa se identifica, não havendo, necessariamente,
complica para pessoas intersexuais ou transgênero. correspondência com características físicas do
Jurisdições diferentes têm adotado respostas diferentes indivíduo.
para esta questão. Cuida-se em esclarecer que não se trata de
Praticamente todos os países permitem orientação sexual, uma vez que esta refere-se à opção
mudança do status legal de gênero nos casos de em se relacionar com outras pessoas, de mesmo sexo
intersexualidade, quando o gênero designado no ou não.
nascimento é considerado biologicamente incerto – Assim, um indivíduo do sexo masculino, que se
tecnicamente, entretanto, esta não é uma mudança de projeta e identifica com uma alma feminina, ou vice-
status por si. É um reconhecimento de um status que já versa, precisa ter sua proteção igualmente
existia, mas desconhecido, no nascimento. Nos últimos regulamentada por Direito. E mais, em caso de
tempos, jurisdições também têm provido de qualquer violação a direito da personalidade, precisa da
procedimentos para mudanças no gênero legal de eficaz atuação do Poder Judiciário.
pessoas transgêneros. E foi com o costumeiro acerto que o STF
O gênero designado, quando há indicações de entendeu que transexuais tenham seus direitos
que a genitália sexual pode não ser decisiva em casos respeitados, sob pena de ser estipulada indenização em
particulares é normalmente definida por uma série de caso de eventual violação.
condições, incluindo cromossomos e gônadas. Assim, A interpretação e a decisão da Corte Suprema
por exemplo, em muitas jurisdições uma pessoa com evidenciam que ninguém pode ser discriminado por
cromossomos XY mas com gônadas femininas pode uma escolha fundada no exercício do direito de
ser reconhecida como feminina no nascimento. diversidade para encontrar a perfeita adequação da
O Supremo Tribunal Federal iniciou dignidade humana, justamente para que se possa exigir
julgamento de recurso extraordinário em que se discutia os ditames de justiça tão proclamados nos dias atuais.
a reparação de danos morais a transexual que teria sido
constrangida por funcionário de “shopping center” ao 11. TROCAS CULTURAIS E CULTURAS
tentar utilizar banheiro feminino. HÍBRIDAS
O Ministro Roberto Barroso (relator) deu
provimento ao recurso extraordinário para que fosse No mundo globalizado em que vivemos, tendo
reformado o acórdão recorrido e restabelecida a nosso cotidiano invadido por situações e informações
sentença que condenara o estabelecimento a pagar provenientes dos mais diversos lugares, é possível
indenização de R$ 15 mil pela retirada da transexual do afirmar que há uma cultura “pura”? Até que ponto
banheiro. Além disso, propôs a seguinte tese para efeito chegou o processo de mundialização da cultura?
de repercussão geral: Em seu livro Culturas híbridas, o pensador
argentino Néstor Garcia Canclini analisa essas
questões. Lançando um olhar sobre a história, ele
declara que, até o século XIX, as relações culturais
ocorriam entre os grupos próximos, familiares e
vizinhos, com poucos contatos externos.
Os padrões culturais resultavam de tradições
transmitidas oralmente e por meio de livros, quando
alguém os tinha em casa, porque bibliotecas públicas
ou mesmo escolares eram raras.
Os valores nacionais eram quase uma
abstração, pois praticamente não havia a consciência de
uma escala tão ampla.
Já no século XIX e início do século XX, cresceu
“Os transexuais têm direito a serem tratados a possibilidade de trocas culturais, pois houve um
socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, grande desenvolvimento dos meios de transporte, do
inclusive na utilização de banheiro de acesso público”. sistema de correios, da telefonia, do rádio e do cinema.
O Ministro Edson Fachin acompanhou o As pessoas passaram a ter contato com
relator, porém majorou a indenização para R$ 50 mil e situações e culturas diferentes. As trocas culturais
determinou a reautuação dos autos com o nome social efetivadas a partir de então ampliaram as referências
da recorrente. para avaliar o passado, o presente e o futuro.
Desse modo, destaca-se que a Suprema Corte
foi instada a se manifestar acerca de um fato novo que
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O mundo não era mais apenas o local em que obrigação de todos nós, preservar, transmitir e deixar
um grupo vivia. Tornou-se muito mais amplo, assim todo esse legado, às gerações vindouras.
como as possibilidades culturais. Do património cultural fazem parte bens
A cultura nacional passou a ter determinada imóveis tais como castelos, igrejas, casas, conjuntos
constituição e os valores e bens culturais de vários urbanos, e ainda locais dotados de expressivo valor para
povos ou países cruzaram-se, com a consequente a história, a arqueologia, a paleontologia e a ciência em
ampliação das influências recíprocas. geral.
No decorrer do século XX, com o
desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o
cinema, a televisão e a internet tornaram-se
instrumentos de trocas culturais intensas, e os contatos
individuais e sociais passaram a ter não um, mas
múltiplos pontos de origem.
Desde então as trocas culturais são feitas em tal
quantidade que não se sabe mais a origem delas.
Elementos de culturas antes pouco conhecidas
aparecem com força em muitos lugares, ao mesmo
tempo. As expressões culturais dos países centrais,
como os Estados Unidos e algumas nações da Europa,
proliferam em todo o mundo.
Nos bens móveis incluem-se, por
As culturas de países distantes ou próximos se
exemplo, pinturas, esculturas e artesanato. Nos bens
mesclam a essas expressões, construindo culturas
imateriais considera-se a literatura, a música, o folclore,
híbridas que não podem ser mais caracterizadas como
a linguagem e os costumes.
de um país, mas como parte de uma imensa cultura
mundial.
Isso não significa que as expressões
representativas de grupos, regiões ou até de nações
tenham desaparecido. Elas continuam presentes e
ativas, mas coexistem com essas culturas híbridas que
atingem o cotidiano das pessoas por meios diversos,
como a música, a pintura, o cinema e a literatura,
normalmente fomentadas pela concentração crescente
dos meios de comunicação. Um local denominado patrimônio mundial é
Alguém poderia perguntar: Por que essas reconhecido pela UNESCO (Organização das Nações
formas particulares, grupais, regionais ou nacionais Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) como tendo
deveriam existir no universo cultural mundial, já que importância mundial para a preservação dos
vivemos num mundo globalizado? patrimónios históricos e naturais de diversos países.
Em seu livro Artes sob pressão: promovendo a As entidades que procedem à identificação e
diversidade cultural na era da globalização, o sociólogo classificação de certos bens como relevantes para a
holandês Joost Smiers responde que assim haveria a cultura de um povo, de uma região ou mesmo de toda
possibilidade de uma diversidade cultural ainda maior e a humanidade, visam também a salvaguarda e a
mais significativa; haveria uma democracia cultural de proteção desses bens, de forma que cheguem
fato à disposição de todos. Em suas palavras: “A devidamente preservados às gerações vindouras, e que
questão central é a dominação cultural, e isso precisa ser possam ser objeto de estudo e fonte de experiências
discutido com propostas alternativas para preservar e emocionais para todos aqueles que os visitem ou deles
promover a diversidade no mundo” usufruam.
A UNESCO promoveu em 1972 um tratado
12. PATRIMÔNIO CULTURAL internacional denominado Convenção sobre a proteção
do património mundial, cultural e natural visando
Patrimônio cultural é o conjunto de todos promover a identificação, a proteção e a preservação do
os bens, materiais ou imateriais, que, pelo património cultural e natural de todo o mundo,
seu valor próprio, devem ser considerados de interesse considerado especialmente valioso para a humanidade.
relevante para a permanência e a Como complemento desse tratado foi aprovada
identidade da cultura de um povo. em 2003 uma nova convenção, desta vez
Patrimônio é tudo aquilo que nos pertence. É a especificamente sobre o património cultural imaterial.
nossa herança do passado e o que construímos hoje. É

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A Constituição Federal de 1988 estabelece: A cultura erudita abrangeria expressões


“Artº 216 Constituem patrimônio cultural artísticas como a música clássica de padrão europeu, as
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, artes plásticas — escultura e pintura —, o teatro e a
tomados individualmente ou em conjunto, portadores literatura de cunho universal.
de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e
tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações
e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.”
Esses produtos culturais, como qualquer
Para além de signatário da Convenção sobre a mercadoria, podem ser comprados e, em alguns casos,
proteção do património mundial, cultural e natural e da até deixados de herança como bens físicos.
Convenção sobre o património cultural imaterial, a A chamada cultura popular encontra expressão
proteção dos bens culturais em território brasileiro está nos mitos e contos, danças, música — de sertaneja a
garantida pela Lei Federal nº 25, de 30 de Novembro cabocla —, artesanato rústico de cerâmica ou de
de 1937 que define as regras do "tombamento" madeira e pintura; corresponde, enfim, à manifestação
(inventariação) dos bens pertencentes ao "Patrimônio genuína de um povo. Mas não se restringe ao que é
Histórico e Artístico Nacional", bem como a proteção tradicionalmente produzido no meio rural.
que esses bens ficam sujeitos no sentido da sua Inclui também expressões urbanas recentes,
preservação e conservação. como os grafites, o hip-hop e os sincretismos musicais
No sentido do apoio ao património cultural é oriundos do interior ou das grandes cidades, o que
ainda a Constituição Federal no seu artº216 faculta aos demonstra haver constante criação e recriação no
Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual universo cultural de base popular. Nesse universo quem
de fomento à cultura até cinco décimos por cento de cria é o povo, nas condições possíveis. A palavra folclore
sua receita tributária líquida, para o financiamento de (do inglês folklore, junção de folk, “povo”, e lore, “saber”)
programas e projetos culturais. significa “discurso do povo”, “sabedoria do povo” ou
O órgão nacional encarregado de promover a “conhecimento do povo”.
proteção patrimonial é o IPHAN - Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado
em 1937.
Segundo estudo da Universidade Federal de
Viçosa, 100% das edificações brasileiras de relevância
histórica, principalmente igrejas e casarões, estão
ameaçadas pelos cupins, carunchos, traças, brocas e
outros insetos xilófagos. Segundo o professor e
engenheiro florestal Norivaldo dos Anjos, “se não
forem tomadas medidas urgentes e eficazes, o país
perderá, no máximo em 50 anos, os acervos dos séculos
17, 18 e 19, que guardam a memória e atraem turismo”.

13. CULTURA ERUDITA E POPULAR Para examinar criticamente essa diferenciação,


voltemos ao termo cultura, agora segundo a análise do
A separação entre cultura popular e erudita, pensador brasileiro Alfredo Bosi.
com a atribuição de maior valor à segunda, está De acordo com Bosi, não há no grego uma
relacionada à divisão da sociedade em classes, ou seja, é palavra específica para cultura, há, sim, uma palavra que
resultado e manifestação das diferenças sociais. se aproxima desse conceito, que é paideia, “aquilo que se
Há, de acordo com essa classificação, uma ensina à criança”, “aquilo que deve ser trabalhado na
cultura identificada com os segmentos populares e criança até que ela se transforme em adulta”.
outra, superior, identificada com as elites.
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A palavra cultura vem do latim e designa “o ato 14. IDEOLOGIA


de cultivar a terra”, “de cuidar do que se planta”, ou
seja, é o trabalho de preparar o solo, semear e fazer tudo O termo ideologia foi utilizado inicialmente
para que uma planta cresça e dê frutos. pelo pensador francês Destutt de Tracy (1754-1836),
Cultura está assim vinculada ao ato de trabalhar, em seu livro Elementos de ideologia (1801), no sentido de
a determinada ação, seja a de ensinar uma criança, seja “ciência da gênese das ideias”. Tracy procurou elaborar
a de cuidar de um plantio. Se pensarmos nesse sentido uma explicação para os fenômenos sensíveis que
original, todos têm acesso à cultura, pois todos podem interferem na formação das ideias, ou seja, a vontade, a
trabalhar. razão, a percepção e a memória.
Para escrever um romance, é preciso trabalhar Um segundo sentido de ideologia, o de “ideia
uma narrativa; para fazer uma toalha de renda, uma falsa” ou “ilusão”, foi utilizado por Napoleão
música, uma mesa de madeira ou uma peça de Bonaparte num discurso perante o Conselho de Estado,
mármore, é necessário trabalhar. em 1812. Napoleão afirmou nesse discurso que seus
Para Bosi, isso é cultura. E é por essa razão que adversários, que questionavam e perturbavam a sua
os produtos culturais gerados pelo trabalho chamam-se ação governamental, eram apenas metafísicos, pois o
obras, que vem de opus, derivado do verbo operar, ou seja, que pensavam não tinha conexão com o que estava
é o processo de fazer, de criar algo. acontecendo na realidade, na história.
Se uma pessoa compra um livro, um disco, um Auguste Comte (1798-1857), em seu Curso de
quadro ou uma escultura, vai ao teatro ou a exposições, filosofia positiva (1830-1842), retomou o sentido de
adquire, mas não produz cultura, ou seja, ela pode ideologia utilizado por Tracy — o de estudo da
possuir ou ter acesso aos bens culturais gerados pelo formação das ideias, partindo das sensações (relação do
trabalho, sem produzi-los. corpo com o meio) — e acrescentou outro, o de
Esses bens servem para proporcionar deleite e conjunto de ideias de determinada época.
prazer, e são usados por algumas pessoas para afirmar Karl Marx também não apresentou uma única
e mostrar que “possuem cultura”, quando são apenas definição de ideologia. No livro A ideologia alemã (1846),
consumidoras de uma mercadoria como qualquer outra. ele se referiu à ideologia como um sistema elaborado de
Não ter acesso a esses bens não significa, portanto, não representações e de ideias que correspondem a formas
ter cultura. de consciência que os homens têm em determinada
Há em muitos países órgãos públicos que época.
procuram desenvolver ações para “conservar a cultura Ele afirmou ainda que as ideias dominantes em
popular original”, com certo receio de que ela não qualquer época são sempre as de quem domina a vida
resista ao avanço da indústria cultural. material e, portanto, a vida intelectual.
Ora, os produtos culturais são criados em Marx desenvolveu a concepção de que a
determinadas condições, remodelando-se ideologia é a inversão da realidade, no sentido de
continuamente, como ocorre com as festas, as músicas, reflexo, como na câmara fotográfica, em que a imagem
as danças, o artesanato e outras tantas manifestações. aparece “invertida”. Contrapondo-se a muitos autores
Nesse sentido, é necessário analisar a cultura que acreditavam que as ideias transformavam e
como processo, como ato de trabalho no tempo que definiam a realidade, Marx afirmava que a existência
não se extingue. A criação cultural não morre com seus social condicionava a consciência dos indivíduos sobre
autores, e basta que o povo exista para que ela a situação em que viviam.
sobreviva. Assim, para Marx, as ideologias não são meras
Entenda-se aqui povo não como uma massa ilusões e aparências — e muito menos o fundamento
amorfa e homogênea de oprimidos submissos, mas da história —, mas são uma realidade objetiva e atuante.
como um conjunto de indivíduos, com ideias próprias No mesmo livro de Marx, pode-se encontrar a
e capacidade criativa e produtiva, que resiste muitas explicação de que a ideologia é resultante da divisão
vezes silenciosamente, sobretudo por meio da entre o trabalho manual e o intelectual. O trabalho
produção cultural, como seus cantos e festas. intelectual esteve nas mãos da classe dominante e,
A cultura é alguma coisa que se faz, e não assim, à medida que pôde “emancipar-se” da realidade
apenas um produto que se adquire. É por isso que não concreta em que foi produzido e se transformar em
tem sentido comparar cultura popular com cultura teoria pura, pôde também transformar-se em teoria
erudita. Quando afirmamos que ter cultura significa ser geral para todas as sociedades, sem levar em conta a
superior e não ter cultura significa ser inferior, utilizamos história de cada uma delas.
a condição de posse de cultura como elemento para Essa emancipação das ideias é muito bem
diferenciação social e imposição de uma superioridade exemplificada por Marx. Ele se refere a um indivíduo
que não existe. Isso é ideologia. que afirmava que os homens só se afogavam porque
estavam possuídos pela ideia de gravidade. Se
abandonassem essa ideia, estariam livres de qualquer
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afogamento. Marx não diz se esse homem foi bem envolve uma prática de convencimento, de ensino e
sucedido na luta contra a ilusão de gravidade nem se aprendizagem.
tentou testar sua teoria. Para Gramsci, uma classe se torna hegemônica
Émile Durkheim, ao discutir a questão da quando, além do poder coercitivo e policial, utiliza a
objetividade científica em seu livro As regras do método persuasão, o consenso, que é desenvolvido mediante
sociológico (1895), afirma que, para ser o mais preciso um sistema de ideias muito bem elaborado por
possível, o cientista deve deixar de lado todas as pré- intelectuais a serviço do poder, para convencer a
noções, as noções vulgares, as ideias antigas e pré- maioria das pessoas, até as das classes dominadas.
científicas e as ideias subjetivas. São essas ideias que ele Por esse processo, cria-se uma “cultura
entende por ideologia, ou seja, o contrário de ciência. dominante efetiva”, que deve penetrar no senso comum
Karl Mannheim (1893-1947) talvez seja o de um povo, com o objetivo de demonstrar que a forma
sociólogo depois de Marx que mais tenha influenciado como aquele que domina vê o mundo é a única possível.
a discussão sobre ideologia. No livro Ideologia e utopia A ideologia não é o lugar da ilusão e da
(1929), ele conceitua duas formas de ideologia: a mistificação, mas o espaço da dominação, que não se
particular e a total. estabelece somente com o uso legítimo da força pelo
A particular corresponde à ocultação da Estado, mas também pela direção moral e intelectual da
realidade, incluindo mentiras conscientes e sociedade como um todo, utilizando os elementos
ocultamentos subconscientes e inconscientes, que culturais de cada povo.
provocam enganos ou mesmo autoenganos. A Mas Gramsci aponta também a possibilidade de
ideologia total é a visão de mundo (cosmovisão) de uma haver um processo de contra-hegemonia, desenvolvido
classe social ou de uma época. Nesse caso, não há por intelectuais orgânicos, vinculados à classe
ocultamento ou engano, apenas a reprodução das ideias trabalhadora, na defesa de seus interesses.
próprias de uma classe ou ideias gerais que permeiam Contrapondo-se à inculcação dos ideais
toda a sociedade. burgueses por meio da escola, dos meios de
Para Mannheim, as ideologias são sempre comunicação de massa, etc., eles combatem nessas
conservadoras, pois expressam o pensamento das mesmas frentes, defendendo outra forma de “pensar,
classes dominantes, que visam à estabilização da ordem. agir e sentir” na sociedade em que vivem.
Em contraposição, ele chama de utopia o que pensam as O sociólogo francês Pierre Bourdieu
classes oprimidas, que buscam a transformação. desenvolveu o conceito de violência simbólica para
identificar formas culturais que impõem e fazem que
15. CULTURA E IDEOLOGIA aceitemos como normal, como verdade que sempre
15.1 Dominação e controle existiu e não pode ser questionada, um conjunto de
regras não escritas nem ditas.
Ao analisar a cultura e a ideologia, vários Ele usa a palavra grega doxa (que significa
autores procuram demonstrar que não se podem “opinião”) para designar esse tipo de pensamento e
utilizar esses dois conceitos separadamente, pois há prática social estável, tradicional, em que o poder
uma profunda relação entre eles, sobretudo no que diz aparece como natural. Dessa ideia nasce o que Bourdieu
respeito ao processo de dominação nas sociedades define como a naturalização da história, condição em
capitalistas. que os fatos sociais, independentemente de ser bons ou
O pensador italiano ruins, passam por naturais e tornam-se uma “verdade”
Antônio Gramsci (1891-1937) para todos.
analisa essa questão com base no Um exemplo evidente é a dominação masculina,
conceito de hegemonia (palavra de vista em nossa sociedade como algo “natural”, já que as
origem grega que significa mulheres são “naturalmente” mais fracas e sensíveis e,
“supremacia”, “preponderância”) portanto, devem se submeter aos homens. E todos
e no que ele chama de aparelhos de aceitam essa ideia e dizem que “isso foi, é e será sempre
hegemonia. assim”.
Por hegemonia pode-se Bourdieu declara que é pela cultura que os
entender o processo pelo qual uma classe dominante dominantes garantem o controle ideológico,
consegue fazer que o seu projeto seja aceito pelos desenvolvendo uma prática cuja finalidade é manter o
dominados, desarticulando a visão de mundo autônoma distanciamento entre as classes sociais.
de cada grupo potencialmente adversário. Assim, existem práticas sociais e culturais que
Isso é feito por meio dos aparelhos de distinguem quem é de uma classe ou de outra: os
hegemonia, que são práticas intelectuais e organizações “cultos” têm conhecimentos científicos, artísticos e
no interior do Estado ou fora dele (livros, jornais, literários que os opõem aos “incultos”. Isso é resultado
escolas, música, teatro, etc.). Nesse sentido, cada de uma imposição cultural (violência simbólica) que
relação de hegemonia é sempre pedagógica, pois define o que é “ter cultura”.
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A violência simbólica ocorre de modo claro no demonstrem que ela pode ser desbancada pela internet
processo educacional. Quando entramos na escola, em na massificação da informação.
seus diversos níveis, devemos obedecer sempre a um
conjunto de regras e absorver um conjunto de saberes
predeterminados, aceitos como o que se deve ensinar.
Essas regras e esses saberes não são questionados e
normalmente não se pergunta quem os definiu.
Adorno e Horkheimer procuraram analisar a
relação entre cultura e ideologia com base no conceito
de indústria cultural. Apresentaram esse conceito em
1947, no texto A indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas. Nele, afirmavam que o conceito
de indústria cultural permitia explicar o fenômeno da
exploração comercial e a vulgarização da cultura, como
também a ideologia da dominação. Preocupado com o que a televisão vem fazendo
A preocupação básica era com a emergência de em termos culturais, o cientista social italiano Giovanni
empresas interessadas na produção em massa de bens Sartori, em seu livro Homo videns (2001), reflete sobre
culturais, como qualquer mercadoria (roupas, esse meio de comunicação. Retomando a história das
automóveis, sabonetes, etc.), visando exclusivamente comunicações, ele destaca o fato de que as civilizações
ao consumo, tendo como fundamentos a lucratividade se desenvolveram quando a transmissão de
e a adesão incondicional ao sistema dominante. conhecimento passou da forma oral para a escrita.
Eles apontaram a possibilidade de A televisão, nascida em meados do século XX,
homogeneização das pessoas, grupos e classes sociais; como o próprio nome indica (tele-visão = “ver de
esse processo atingiria todas as classes, que seriam longe”), criou um elemento completamente novo, em
seduzidas pela indústria cultural, pois esta coloca a que o ver tem preponderância sobre o ouvir.
felicidade imediatamente nas mãos dos consumidores A voz dos apresentadores é secundária, pois é
mediante a compra de alguma mercadoria ou produto subordinada às imagens que comenta e analisa. As
cultural. imagens contam mais do que as palavras. Nisso o
Cria-se assim uma subjetividade uniforme e, por indivíduo volta à sua condição animal.
isso, massificada. Nos mais diversos filmes de ação, A televisão nos dá a possibilidade de ver tudo
somos tranquilizados com a promessa de que o vilão sem sair do universo local. Assim, para Sartori, além de
terá um castigo merecido. Tanto nos sucessos musicais um meio de comunicação, a televisão é um elemento
quanto nos filmes, a vida parece dizer que tem sempre que participa da formação das pessoas e pode gerar um
as mesmas tonalidades e que devemos nos habituar a novo tipo de ser humano. Essa afirmação está baseada
seguir os compassos previamente marcados. Dessa na observação de que as crianças, em várias partes do
forma, sentimo-nos integrados numa sociedade mundo, passam muitas horas diárias vendo televisão
imaginária, sem conflitos e sem desigualdades. antes de saber ler e escrever.
A diversão, nesse sentido, é sempre alienante,
conduz à resignação e em nenhum momento nos instiga
a refletir sobre a sociedade em que vivemos.
A indústria cultural transforma as atividades de
lazer em um prolongamento do trabalho, promete ao
trabalhador uma fuga do cotidiano e lhe oferece, de
maneira ilusória, esse mesmo cotidiano como paraíso.
Por meio da sedução e do convencimento, a
indústria cultural vende produtos que devem agradar ao
público, não para fazê-lo pensar com informações
novas que o perturbem, mas para propiciar-lhe uma Isso dá margem a um novo tipo de formação,
fuga da realidade. Tal fuga, segundo Adorno, faz que o centralizado na capacidade de ver. Se o que nos torna
indivíduo se aliene, para poder continuar aceitando com diferentes dos outros animais é nossa capacidade de
um “tudo bem” a exploração do sistema capitalista. abstração, a televisão, para Sartori, “inverte o progredir
do sensível para o inteligível, virando-o em um piscar
15.2 Televisão e cotidiano de olhos para um retorno ao puro ver. Na realidade, a
televisão produz imagens e apaga os conceitos; mas
Entre todos os meios de comunicação, a desse modo atrofia a nossa capacidade de abstração e
televisão é o mais forte agente de informações e de com ela toda a nossa capacidade de compreender”.
entretenimento, embora pesquisas recentes já
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Então, o Homo sapiens está sendo substituído pessoais dos proprietários das emissoras, dos
pelo Homo videns, ou seja, o que importa é a imagem, é patrocinadores ou da indústria fonográfica.
o ver sem entender. São, assim, as rádios comunitárias, públicas e
mesmo as piratas que criam espaços radiofônicos
16. INDUSTRIA CULTURAL NO BRASIL alternativos e podem desenvolver uma programação
sem as limitações e os constrangimentos mencionados.

16.1 A televisão brasileira

A televisão chegou ao Brasil no início da década


de 1950, quando o jornalista Assis Chateaubriand
inaugurou a primeira emissora brasileira, a TV Tupi, de
São Paulo. No início, a emissora contava com a
assessoria de técnicos estadunidenses e com
profissionais oriundos das redes de rádio.
Em seguida à implantação da TV Tupi, foram
inauguradas a TV Paulista, em 1952, a Record de São
O desenvolvimento da indústria cultural no Paulo, em 1955, a TV Itacolomi de Belo Horizonte e a
Brasil ocorreu paralelamente ao desenvolvimento TV Rio, em 1958.
econômico e teve como marco a introdução do rádio, Isso não significou, entretanto, uma grande
na década de 1920, da televisão, na década de 1950, e, expansão junto ao público: em 1960, apenas 4,6% dos
recentemente, nos anos 1990, da internet. domicílios brasileiros possuíam um aparelho de
Os outros campos da indústria cultural, como televisão, a maioria deles no Sudeste, o que
cinema, jornais e livros, não são tão expressivos quanto correspondia a 12,44% dos domicílios da região.
a televisão e o rádio. O cinema atinge, no máximo, 10% Ao longo dos mais de cinquenta anos de história
da população e pouco mais de 20% dos brasileiros têm da televisão no Brasil, o Estado, por intermédio dos
acesso às produções escritas (livros, revistas e jornais). sucessivos governos, influiu diretamente nessa
A primeira transmissão de rádio no Brasil indústria. Sempre deteve o poder de conceder e
ocorreu em 1922, inaugurando uma fase de cancelar concessões, mas nunca deixou de estimular as
experimentação, voltada principalmente para atividades emissoras comerciais.
não comerciais. Nas décadas de 1950 e 1960, o poder público
Hoje, muitas rádios são acessadas pela internet, contribuiu de forma substancial para o crescimento da
o que significa uma nova forma de recepção dos televisão mediante empréstimos concedidos por bancos
programas. Essa união do rádio com a internet públicos a emissoras privadas.
propiciou às emissoras uma nova forma de chegar a Foi a partir de 1964, no entanto, com o início
públicos variados, com notícia ou música. do regime militar, que a interferência do Estado na
Em vários lugares do mundo, desde as televisão aumentou de forma quantitativa e qualitativa.
primeiras décadas do século XX, o rádio foi utilizado As telecomunicações foram consideradas estratégicas
como um instrumento de dominação e reprodução pelos militares, pois serviriam de instrumento para
ideológica e de sustentação do poder central. Isso colocar em prática a política de desenvolvimento e
aconteceu nos Estados Unidos, no Canadá, no Japão e integração nacional.
em países europeus. O mesmo ocorreu no Brasil, Eles fizeram os investimentos necessários em
especialmente sob o governo autoritário de Getúlio infraestrutura para viabilizar a ampliação da abrangência
Vargas e no período ditatorial instalado de 1964 a 1985. da televisão e aumentaram seu poder na programação
Hoje, aproximadamente 85% das emissoras por meio de novas regulamentações, forte censura e
comerciais em operação no Brasil estão em mãos de políticas culturais normativas.
políticos de carreira que usam as transmissões de Nesse período as redes de televisão — que eram
acordo com os interesses próprios e dos privadas — obedeciam fielmente às determinações do
patrocinadores. Estes pressionam, por exemplo, para Estado (que tinha o poder de conceder e retirar
que sua empresa não seja relacionada a alguma notícia concessões quando bem entendesse), cumprindo à risca
que a prejudique. o que mandava o governo militar. Os programas
A indústria de discos (CDs) também faz pressão transmitidos passavam a impressão de que o governo
para que seus produtos sejam agraciados com mais era legítimo e vivíamos numa democracia. A maior
tempo de execução. Isso significa que os programas beneficiária desse modelo foi a Rede Globo.
musicais ou jornalísticos das rádios não são Fundada em 1965, cresceu rapidamente,
independentes, pois estão vinculados aos interesses apoiada nas relações amistosas com o regime militar,
em sintonia com o incremento do mercado de
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consumo. Internamente, contava com uma equipe de julgamento precipitado e muitas vezes errado. Outros
produção e administração preocupada em otimizar o reconstituem casos policiais (assassinatos,
marketing e a propaganda. O programa de maior normalmente) não resolvidos.
audiência foi a telenovela, que se tornou um “produto Os produtores desse tipo de programa fazem
cultural brasileiro”, criado por um grupo de artistas e um trabalho de detetives e, por meio de delações,
diretores nascidos no cinema e no teatro. conseguem “resolver” casos considerados impossíveis.
O modelo de televisão estabelecido pela Não se sabe se resolvem de fato ou não; só
ditadura sobreviveu ao regime militar e ganhou ainda chega ao conhecimento do telespectador o que o
programa afirma que aconteceu.
E o jornalismo? Os programas desse gênero
pouco informam, já que as notícias precisam ser rápidas
e, quase sempre, variadas: um terremoto na China, uma
festa no Haiti, um campeonato esportivo na Espanha,
uma situação inusitada na Venezuela, um ato
governamental no Brasil.
Situações completamente diferentes aparecem
com a mesma importância e como se estivessem
acontecendo no mesmo momento e num mesmo lugar,
deslocando-se a historicidade dos fatos para um mundo
e sequência que não existem.
mais poder. Com o fim do regime, as emissoras Os programas de domingo, para comentar um
continuaram atendendo aos governos seguintes, último exemplo, são de qualidade tão deplorável que só
sempre dando a impressão de ser livres e democráticas. reforçam a ideia de Theodor Adorno de que o
A televisão converteu-se, enfim, em fonte de poder entretenimento é utilizado para anestesiar a capacidade
político. das pessoas de pensar e refletir sobre a vida e as
As relações entre o Estado e as emissoras condições reais de existência.
modificaram-se na década de 1990, quando os
investimentos públicos diminuíram, a censura foi
abolida e o mercado se alterou com a introdução da
transmissão a cabo.

16.1.1 A programação da televisão.

A televisão é, no Brasil, o meio de comunicação


com presença mais marcante, sendo o principal veículo
de difusão cultural e de informação. Apesar de o rádio
ter maior abrangência, principalmente por causa do
baixo custo e do pequeno porte dos aparelhos, a
televisão atinge quase a totalidade do território nacional.
Os produtos que ela desenvolve de alguma
forma definem o que é importante e o que não é, ou
seja, o gosto, a sexualidade, a opção política, o desejo
de consumo e outros sentimentos são promovidos
prioritariamente pela televisão comercial.
A influência da televisão pode ser facilmente
constatada nas conversas do dia a dia, nas quais se
observa a frequente adoção de gírias, expressões e
gracejos criadas por personagens dos programas de
maior audiência.
Essa influência é bastante preocupante, pois
existem graves problemas relacionados à informação e
à formação de opinião. Há, por exemplo, programas de
crônica urbana e policial nos quais julgamentos são
feitos sem nenhuma possibilidade de revisão.
Alguns deles apresentam e analisam (sem
pesquisar) os fatos, e normalmente formulam um
veredicto para os casos policiais, ou seja, fazem

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ANTROPOLOGIA BRASILEIRA pensamento teve grande relevância. E também enormes


efeitos práticos, provavelmente afetando a história da
A partir de meados do século XX, a maioria dos brasileiros.
Antropologia concentrou seu interesse nas populações A política de imigração do período, influenciada
marginalizadas das sociedades nacionais. No Brasil não por esse olhar pessimista e preconceituoso sobre a
foi diferente: a Antropologia construiu um acervo de população do país, adotou medidas de incentivo à
conhecimento sobre populações indígenas, negras, imigração europeia: imaginava-se, assim, “branquear” o
camponesas, entre outras. Brasil. Essa tentativa de “branqueamento” foi uma
Ao contrário das antropologias norte- resposta à ideia de que a população brasileira,
americana, inglesa e francesa, a antropologia brasileira majoritariamente composta por indígenas, negros e
preocupou-se basicamente em estudar o próprio país. mestiços, não poderia construir um país desenvolvido.
Apenas muito recentemente os antropólogos brasileiros Assim, temos até as décadas de 1920 e 1930 um
começaram a estudar a diferença em contextos fora do predomínio de perspectivas evolucionistas,
Brasil. principalmente as que atrelavam noções de
Durante praticamente todo o século XX, o superioridade a determinadas raças ou criticavam
principal interesse foi explicar o Brasil, observando as qualquer tipo de mestiçagem.
populações marginalizadas do país e também as A partir dos anos 1930, tem início no Brasil uma
populações urbanas de classe média e as elites. gradual profissionalização das Ciências Sociais, entre
elas a Antropologia. São referências nesse processo a
1. Os primeiros tempos Universidade de São Paulo (USP) e a Escola de
Sociologia e Política de São Paulo, que concentraram
Até a década de 1930, o conhecimento professores estrangeiros como os franceses Claude
antropológico era produzido por intelectuais ainda não Lévi-Strauss e Roger Bastide (1898-1974), os
formados na área, pois essa formação acadêmica só alemães Emilio Willems (1905-1997) e Herbert
passou a existir em 1933, na Escola de Sociologia e Baldus (1899-1970) e o norte-americano Donald
Política de São Paulo, e em 1934, na Universidade de Pierson (1900-1995).
São Paulo (USP). No Rio de Janeiro, o pernambucano Gilberto
Na época, o principal interesse (permanente por Freyre (1900-1987) assumiu em 1935 a primeira cátedra
um bom tempo) era a formação da sociedade brasileira. de Antropologia na Universidade do Distrito Federal,
Como dominavam as ideias evolucionistas e o depois Universidade do Brasil. Em 1939, o alagoano
darwinismo social, a questão para muitos intelectuais Arthur Ramos (1903-1949) ocupou a cátedra de
era qual seria o povo formador do Brasil ou como Antropologia na mesma universidade, que depois se
formar um país com a população existente. tornaria a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Entre os principais intelectuais brasileiros do Havia um predomínio da influência norte-
período estavam Sílvio Romero (1851-1914), americana, com o início de um intercâmbio entre
Euclides da Cunha (1866-1909), Nina Rodrigues docentes vindos dos Estados Unidos e antropólogos
(1866-1906), Oliveira Vianna (1883-1951) e o poeta brasileiros, fazendo prevalecer nesse momento uma
Gonçalves Dias (1823-1864), para quem a população perspectiva cultural, atrelada à ideia de aculturação.
indígena, além de “inferior”, estava em decadência. Uma questão importante era a integração das
Nesse momento, os estudos sobre indígenas populações imigrantes à vida nacional, daí a
brasileiros eram predominantemente realizados por preocupação com a “aculturação”, ideia derivada do
estudiosos alemães, fato que guarda certa semelhança conceito de cultura de Franz Boas e desenvolvida por
com a influência de Franz Boas sobre os estudos alguns de seus alunos.
antropológicos nos Estados Unidos. Esse foi também um período de grandes teorias
Um dos principais antropólogos a estudar as sobre a formação do Brasil, como as de Gilberto Freyre.
populações indígenas do Brasil foi Karl von den O autor pernambucano afirmava ter sido muito
Steinen (1855-1929), que, como Boas, havia sido influenciado por Boas, de quem foi aluno na
influenciado pelo etnólogo Adolf Bastian (1826-1905). Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
Esses autores, com diferentes abordagens, viam A novidade desse momento foi a inversão
a população brasileira do ponto de vista da hierarquia dramática das hierarquias raciais e do pessimismo em
racial. Esse olhar resultou numa visão pessimista do relação ao povo brasileiro que caracterizara o período
Brasil: com uma população predominantemente anterior.
“inferior”, seria impossível construir um país Para Gilberto Freyre, a mestiçagem brasileira
desenvolvido. Embora tais ideias pareçam deslocadas era justamente o trunfo de uma nova civilização luso-
hoje em dia, naquele momento histórico, entre o final tropical. Além da perspectiva de Freyre, estudos de
do século XIX e o começo do século XX, esse tipo de Arthur Ramos e Roger Bastide, entre outros, romperam

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com a tradição racializada adotando um tom sociedades como totalidades integradas, a exemplo dos
formalmente não racista. estudos de Malinowski e Radcliffe-Brown.
Também em relação ao que era então chamado
2. Antropologia e cultura popular de “folclore”, ou seja, as manifestações culturais das
camadas populares da sociedade, esse período de
Outra tendência marcante da antropologia transição foi marcado por uma renovação funcionalista.
brasileira é exemplificada no conjunto de trabalhos Se boa parte dos trabalhos anteriores sobre o assunto
conhecidos como “estudos de comunidade”. Nas era meramente descritiva e preocupada em relacionar as
décadas de 1950 e 1960, muitos antropólogos se práticas a antigas heranças culturais, os novos estudos
dedicaram a estudar, como vinham fazendo em tinham como foco a mudança social.
comunidades indígenas, pequenas cidades ou vilas Na década de 1960, Florestan Fernandes e
caracterizadas por uma transição entre ruralidade e Octavio Ianni produziram trabalhos em que a cultura
urbanidade. popular deixava de ser um “vestígio” do passado e
Esses intelectuais buscavam descrever aquelas passava a ser vista como manifestação legítima da
comunidades como totalidades integradas e tendiam a cultura de camadas populares, em processo de
desprezar as conexões entre elas e o restante da atualização e modificação em consequência da
sociedade nacional. Partindo da mesma tradição norte- urbanização e modernização do país.
americana que influenciava a antropologia brasileira, A partir da década de 1960, começou a crescer
esses estudos demarcaram outra característica relevante o número de cientistas sociais no Brasil, o que resultou
ao pensamento social da época: uma preocupação com numa produção de conhecimento mais sistemática e
o desenvolvimento. mais informada por modelos teóricos reconhecidos.
Cidades como Cunha (SP), Itapetininga (SP), Foram deixados para trás o “ensaísmo”
Cruz das Almas (RJ) e Rio das Contas (BA), entre várias intelectual do começo do século e a fase de transição
outras, foram objeto de estudo, alguns deles (de 1930 a 1960), marcada ainda por um pequeno
coordenados por antropólogos norte-americanos, número de pesquisadores. A Antropologia realizada a
como Charles Wagley (1913-1991), ex-aluno de Boas. partir de 1960 destacou novos objetos de pesquisa. Em
A mudança cultural era o interesse central lugar das comunidades isoladas, entraram em cena o
desses estudos, dos quais muitos resultaram de projetos campesinato, os assalariados rurais, os trabalhadores
maiores, que objetivavam compor uma análise ampla da urbanos, as frentes de expansão, a migração do campo
sociedade brasileira, uma espécie de mosaico ou para a cidade e a vida nas favelas.
panorama que revelasse as relações entre cultura As abordagens teóricas também se
popular e urbanização, campo e cidade, atraso e diversificaram segundo as diferentes linhas de formação
desenvolvimento. dos antropólogos, ganhando destaque o estruturalismo
Os estudos de comunidade podem ser francês e as teorias da etnicidade e do contato
relacionados aos estudos de aculturação, já que as duas interétnico, de inspiração inglesa e norte-americana.
perspectivas se preocupavam com os processos de
transformação social, associados às diferenças culturais. 3. A Consolidação da antropologia brasileira
De um lado, foco nas culturas populares rurais;
de outro, foco nas populações de imigrantes em suas A partir dos anos 1960, ganham destaque
próprias “comunidades”. A questão central era a antropólogos como Roberto Cardoso de Oliveira
transformação social e cultural pela qual passava a (1928-2006), Roberto DaMatta (1936-), Darcy
sociedade brasileira, numa urbanização crescente, a Ribeiro (1922-1997), Eunice Durham (1932-),
culminar com o desenvolvimento industrial a partir da Gilberto Velho (1954-2012), entre outros, todos
década de 1960. formados pela geração anterior.
Esses intelectuais respondiam a questões da Os objetos de estudo abrangem uma variação
mesma ordem que os intelectuais do período anterior: de interesses cada vez maior: a Antropologia se volta
queriam entender a população brasileira nos contextos para temas diversos na cidade, no campo e entre as
das suas transformações. populações indígenas.
Entre as décadas de 1930 e de 1960, também Duas preocupações ainda são marcantes: os
foram feitos no Brasil estudos de caráter funcionalista. efeitos da urbanização e da industrialização e as
Principalmente em relação às populações indígenas, o populações em situação marginal. Entretanto, a
foco passou a ser o estudo do funcionamento das modernização do Brasil altera a situação dos
sociedades. camponeses, que passam a encontrar novas formas de
O paulista Florestan Fernandes e o trabalho assalariado no campo. O deslocamento para as
catarinense Egon Schaden (1913-1991), por exemplo, cidades produz novos coletivos desfavorecidos
desenvolveram trabalhos que buscavam analisar as socialmente, como os moradores de favelas e periferias
urbanas.
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As populações indígenas são fortemente populações indígenas que viviam em relativo


afetadas pelo avanço da sociedade nacional sobre seus isolamento.
territórios ancestrais. Também a questão do gênero e da Nesses trabalhos, o foco eram os processos de
discriminação das mulheres passa a ser objeto de transformação das sociedades afetadas pela expansão
reflexão antropológica. Antigos temas, como as do capitalismo no Brasil. Seus estudos seguiram
relações raciais, continuam importantes, ainda que sob orientações variadas, tanto inglesas (a partir do trabalho
novas perspectivas. de Florestan Fernandes) como francesas, com
Uma diferença marcante em relação ao período influência do estruturalismo de Lévi-Strauss.
anterior, ligada ao uso mais sistemático da categoria Na década de 1970 interessou-se pela
“etnicidade”, é que os antropólogos não mais identidade étnica; nos anos 1980 passou a discutir a
imaginavam que populações como as indígenas (ou epistemologia da Antropologia e publicou textos sobre
quilombolas, entre outras) seriam inevitavelmente a história da disciplina antropológica.
“aculturadas” ou “incorporadas” à sociedade nacional. Considerado um dos fundadores da
A perspectiva anterior mais parecia um lamento antropologia brasileira pelo destaque de suas atividades
pela inevitabilidade do desaparecimento de certas docentes e institucionais, influenciou gerações de
sociedades e de suas diferenças e especificidades, antropólogos com suas ideias sobre fricção interétnica,
quando colocadas em contato ou confronto com a identidade étnica e epistemologia da Antropologia.
sociedade nacional. Partindo do interesse pelo contato interétnico,
O foco das preocupações gradualmente se os estudos passaram a observar a política interna das
transforma: não mais se olha para essas populações do populações indígenas, profundamente afetadas pelo
ponto de vista do Estado nacional, mas sim do ponto contato com o homem branco. Os processos que
de vista das próprias sociedades. Entretanto, esse levaram populações indígenas a se urbanizar foram
movimento ainda se direcionava ao entendimento da também examinados. Como já vimos, o conceito de
sociedade nacional, para a qual, segundo afirmava etnicidade se refere sempre à diferenciação entre grupos
Roberto Cardoso de Oliveira, o indígena, por exemplo, colocados em contraste.
aparecia como “um incômodo”. A noção de etnia possibilitou aos antropólogos
Nascido na cidade de São desse período uma reflexão sistemática sobre as
Paulo, Roberto Cardoso de populações em estudo: permitiu entender as relações
Oliveira graduou-se em Filosofia raciais, as populações indígenas, os imigrantes e seus
pela USP, em 1953. Mais tarde, descendentes.
voltou seus estudos para as Ciências Nos estudos da antropologia indígena (também
Sociais, tendo completado seu conhecida no Brasil como “etnologia” indígena)
doutorado em 1966, sob a cresceu a influência do trabalho de Lévi-Strauss, e tanto
orientação de Florestan Fernandes. os mitos como os rituais passaram a ser objeto de
Logo após sua formatura, foi convidado por análise sistemática. Nesse contexto, a antropologia
Darcy Ribeiro para trabalhar no Serviço de Proteção ao brasileira passa a buscar uma dimensão mais
Índio (SPI), depois transformado em Fundação abrangente, refletindo sobre o avanço do capitalismo
Nacional do Índio (Funai). Ali trabalhou no Museu do no universo rural e a emergência de um proletariado
Índio, onde se aproximou da Antropologia. Sob a rural, entre outros temas. Estudos com foco mais
influência de Darcy Ribeiro e das teorias de assimilação restrito também foram conduzidos, mudando o
cultural, em 1955 fez sua primeira experiência de campo interesse de estudos de comunidade para estudos em
entre os Terena (grupo indígena de Mato Grosso do comunidade, focando aspectos como religiosidade,
Sul), que resultou no livro O processo de assimilação dos hábitos alimentares, etc.
Terena, publicado em 1960. A dimensão que corresponderia a uma estrutura
A partir de 1958 ingressou no Museu Nacional, social clássica (como em Radcliffe-Brown) perde
onde iniciou um trabalho sistemático de ensino de espaço quando a Antropologia foca as populações não
Antropologia social. Criou cursos de formação que se indígenas: fica cada vez mais difícil considerar
tornaram o embrião da pós-graduação em Antropologia comunidades como isoladas ou fechadas, ou seja, como
do Museu Nacional, hoje um dos principais do Brasil. supostas unidades de análise. Entretanto, assim como a
Criou depois o programa de pós-graduação em Antropologia do começo do século XX e a do final do
Antropologia na Universidade de Brasília (UnB) e século XIX, a Antropologia do período de
doutorado em Ciências Sociais na Universidade de institucionalização acadêmica (quando se criam os
Campinas (Unicamp). Na década de 1960, coordenou programas de pós-graduação) continua comprometida
vários projetos dedicados ao estudo do que chamava de em entender e explicar a sociedade brasileira.
“fricção interétnica”, ou seja, a tensão gerada pelo Diferenças de outros tipos, como as existentes
avanço da sociedade nacional aos territórios de entre pobres e ricos, mulheres e homens, homossexuais

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e heterossexuais, também demandavam novos universos diferentes, como por exemplo o


conceitos e novas análises. estreitamento de conexões “sul-sul”, ou seja, entre
A partir da década de 1970, o conceito de países não desenvolvidos ou em desenvolvimento.
identidade passou a ser uma referência principalmente Assim, o século XXI é marcado pela
nos contextos citados acima e nos casos em que essas internacionalização e pela circulação da antropologia
demarcações e diferenças coexistiam em um mesmo brasileira.
contexto. Por exemplo, as relações urbanas em que as
diferenças de renda e de etnia estão presentes, 3.1 Explicando a sociedade brasileira
suscitaram o uso do conceito de identidade em
conjunto com o de etnicidade. A explicação da sociedade nacional foi e
Dos anos 1980 em diante, o que marca a continua sendo uma característica da antropologia
antropologia brasileira é justamente essa grande brasileira. Gilberto Freyre inaugurou essa tradição com
variedade de olhares sobre as diferenças: estudos sobre seus estudos sobre a família e a produção agrícola no
relações de gênero, sobre opções sexuais e identidade, Nordeste brasileiro, recorrendo a explicações
sobre identidade de grupos urbanos, sobre antigas e culturalistas que indicavam uma especificidade da
novas religiões. colonização portuguesa, que teria gerado um país
O número de antropólogos formados menos preconceituoso que os demais.
aumentou exponencialmente. Na década de 1950, uma Para Freyre, o fato de Portugal ser ele mesmo
reunião da Associação Brasileira de Antropologia reunia um país mestiço, devido à ancestral presença moura
cerca de sessenta pessoas, nos dias de hoje congrega (árabe), possibilitou a criação de um modelo de
mais de 2.500 pessoas. colonização menos racializado. No final do século XX,
Num universo tão maior, é claro que os objetos essa tradição foi revisitada por dois importantes
de pesquisa serão cada vez mais variados. As influências autores: Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta.
do mundo contemporâneo também se fazem sentir: Em seu livro O povo
estudos sobre relações sociais na internet, sobre novas brasileiro (1995), Darcy Ribeiro
tecnologias reprodutivas, sobre novos campos da (1922-1997) pretende explicar a
ciência, etc. gênese da especificidade brasileira,
Outra característica da Antropologia mais a um só tempo diversa e
recente foi o crescimento vertiginoso da antropologia semelhante, etnicamente variada e
urbana (que veremos a seguir) em detrimento da misturada de inúmeras maneiras,
tradicional antropologia indígena. Podemos dizer que mas sentindo-se como uma única
dois campos se constituíram, inclusive com nomes etnia.
diferentes: os cientistas que estudam indígenas se dizem Essencialmente otimista,
etnólogos, enquanto os que realizam pesquisas urbanas Darcy oferece uma perspectiva
chamam-se antropólogos. pós-freyriana, destacando a beleza do povo brasileiro.
Em alguns momentos, a antropologia urbana se O livro é uma descrição de toda a história do Brasil do
confunde com uma sociologia urbana, e é comum a ponto de vista da formação de sua população.
circulação de pesquisadores nos dois campos. Natural de Minas Gerais, Darcy foi
Essa “massificação” da Antropologia gerou antropólogo, político e escritor. Ficou conhecido por
novas perspectivas teóricas na etnologia brasileira, evidenciar a sua preocupação com o índio e a educação
francamente críticas à ideia do contato interétnico. brasileira. Dedicou-se e desenvolveu trabalhos nas áreas
Segundo essas críticas, a ideia do contato remete da educação, sociologia e antropologia. Sua principal
sempre à sociedade nacional, pois faz do contato (e do obra é O povo brasileiro, publicada em 1995, onde trata
branco) o agente principal da análise da vida dos da formação histórica do povo brasileiro.
indígenas. Para esses etnólogos, a compreensão das Darcy Ribeiro destacou a importância do
sociedades indígenas deve fundamentar-se nos termos indígena, do crioulo, do vaqueiro, do matuto e do
dos próprios grupos indígenas, analisando suas caipira, procurando mostrar a importância deles no
cosmologias e modos de ver o mundo não pelo viés e âmbito da formação da Nação, desde o período
pelos termos e modelos da “sociedade dos brancos”. colonial. O autor também procurou mostrar a
Embora em termos numéricos a Etnologia sociedade brasileira desde o Brasil colônia até o império.
tenha diminuído em relação à antropologia urbana, em Ele verificou a existência de uma sociedade dual, onde
termos de impacto internacional a ordem é inversa: a constatou a existência da exploração confirmada na
etnologia brasileira teve e ainda tem impacto relação senhor de engenho e escravo presente na
internacional muito maior. Por outro lado, está em produção açucareira.
curso um avanço das relações entre as diversas Enquanto intelectual de esquerda, com
antropologias nacionais: os antropólogos brasileiros influência marxista, o autor denunciou a exploração no
têm circulado mais e se empenhado em conectar Brasil nos períodos de colonização, império e república.
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No seu ponto de vista, havia um grave problema, entre Nesse contexto, a população negra passou a
outros, que é o fato de a população mestiça não ter sido representar um problema para as elites brancas: o que
integrada ao processo de cidadania. fazer com os negros livres, libertos e com os mestiços?
Em sua última obra, Darcy Ribeiro estabeleceu Essa pergunta foi respondida tanto com base no
as matrizes culturais da formação étnica do povo darwinismo social adaptado à realidade brasileira (que
brasileiro e, através de uma explicação histórico- via os negros e mestiços como entraves ao
antropológica ele procurou tornar compreensível como desenvolvimento) como a partir das teorias mais
foi a autoconstrução do brasileiro, ou seja, o modo otimistas da miscigenação, segundo as quais, com o
como o Brasileiro fez a si mesmo para sermos o que tempo e se fosse evitada a entrada de mais negros no
somos. O autor também fez a separação do Brasil em Brasil, o país lentamente “embranqueceria”.
cinco “Brasis” diferentes, isto é, o Brasil sertanejo, o Um dos principais pensadores desse período foi
crioulo, o caipira, o caboclo e o sulino. o médico-legista baiano Nina Rodrigues da Escola de
Dessas comunidades se projetaram os grupos Medicina de Salvador.
constitutivos de todas as áreas socioculturais brasileiras, Influenciado pelas teorias eugênicas (relativo à
desde as velhas zonas açucareiras do litoral e os currais eugenia, ciência que estuda as condições mais propícias
de gado do interior até os núcleos mineiros do centro à reprodução e melhoramento genético da espécie
do país, os extrativistas da Amazônia e os pastoris do humana) do século XIX, Nina Rodrigues acreditava que
extremo sul. o negro era um contaminador da nação. Ainda assim,
Cobrindo milhares de quilômetros, essa desenvolveu pesquisas sobre a cultura negra na Bahia.
expansão – por vezes lentas e dispersa como a pastoril, Nesse momento, as pesquisas procuravam
por vezes intensa e nucleada como a mineradora – foi conectar as expressões da cultura negra com suas
multiplicando matrizes, basicamente uniformes, por origens na África, numa perspectiva evolucionista e
todo o futuro território brasileiro. racializada.
Apesar de tão insignificantes, de fato O período viu nascerem algumas explicações
disseminaram-se como uma enfermidade, gerais sobre o Brasil, pensado como nação. Uma dessas
contaminando a indianidade circundante, desfazendo- explicações, contudo, transformava a miscigenação em
as e refazendo-as como ilhas civilizatórias. Só muito vantagem civilizatória.
depois começaram a comunicar-se regularmente umas Gilberto Freyre, em seu livro Casa-Grande e
com as outras, através dos imensos espaços desertos Senzala, publicado em 1933, afirmava que a
que a separavam. especificidade na civilização brasileira eram as relações
Entretanto, embora o autor tenha procurado sociais harmônicas, sem os conflitos permanentes que
estabelecer uma legítima preocupação para com a existiam em outros lugares. Influenciado por Franz
formação do povo brasileiro, demonstrando todo o Boas, o autor pernambucano recusou o discurso do
processo de desenvolvimento da sociedade, ele darwinismo social e destacou o Brasil como uma
verificou uma devastação racial e cultural. Mas oi espécie de paraíso racial. Essa tendência durou até as
possível gerar a civilização tropical brasileira, a qual, décadas de 1920 e 1930.
para Gilberto Freyre, é herança da colonização O alagoano Arthur Ramos foi outro
portuguesa. intelectual que se dedicou ao estudo das populações
Porém, para Darcy Ribeiro, essa civilização negras, na década de 1940. Acreditava que tínhamos
tropical não está ligada à cultura nativa, nem à relações raciais menos tensas que as norte-americanas e
civilização européia, pois é fruto da forte miscigenação via o Brasil como uma espécie de laboratório de
de etnias. civilização menos preconceituosa.
Mais uma vez, contrapondo Gilberto Freyre,
Darcy Ribeiro refere-se às muitas raças presentes no
Brasil e que vivem em relativa harmonia, porém não vê
nisto uma democracia racial.

4. Antropologia e relações raciais

O tema do “negro” ganhou destaque no século


XIX com o processo de abolição da escravatura, que
teve início em 1850, com a proibição do tráfico
negreiro, avançou com a Lei do Ventre Livre, em 1871,
seguida pela Lei dos Sexagenários, em 1885, e,
finalmente, com a abolição da escravidão, em 1888 (em Afirmava também que até aquele momento as
algumas províncias a abolição ocorreu antes de 1888). reflexões sobre as relações raciais no Brasil eram
ensaísticas, isto é, ideias sem comprovação científica

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que as legitimasse. Quando assumiu o departamento de o tema, o que traz novas perspectivas para o estudo das
Ciências Sociais da UNESCO, em 1949, Arthur Ramos relações raciais.
propôs à entidade um programa de estudos sobre as Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF)
relações raciais no Brasil. decidiu por unanimidade que a introdução de cotas
Esse programa, que ficou conhecido como raciais no acesso às universidades públicas federais não
Programa Unesco, marcou o pensamento sobre as viola a Constituição da República.
relações raciais brasileiras entre as décadas de 1950 e A introdução dessa medida reacendeu o debate
1970. sobre as relações raciais no país. Num campo repleto de
Sob a influência do movimento negro brasileiro disputas políticas, vemos antropólogos e cientistas
e contando com uma série de estudos comparativos sociais se posicionando a favor e contra as políticas de
realizados com base em métodos reconhecidos (como cotas. E as discussões giram justamente em torno das
o trabalho de campo, a produção de surveys e a análise especificidades das relações raciais no Brasil.
de estatísticas), desenhou-se um novo cenário sobre as Aqueles que são contrários afirmam que as
relações raciais brasileiras. cotas vão alterar para pior as relações raciais, levando
O projeto deixou claro que a democracia racial para o caminho norte-americano; os que são favoráveis
era um mito: a realidade brasileira não se configurava argumentam que uma mitologia da democracia racial
como um paraíso racial. Negros e mestiços deve se tornar realidade na prática cotidiana das
continuavam a ser discriminados, tinham menos populações discriminadas, e as cotas seriam um passo
oportunidades de trabalho e condições de vida nessa direção.
inferiores às dos brancos.
Por outro lado, essas novas pesquisas 5. Antropologia urbana
evidenciaram também que as relações raciais no Brasil
eram diferentes das de outros contextos, marcando uma A partir do fim dos anos 1960 a cidade e suas
comparação, até hoje importante, com o sistema racial diferentes populações passaram a constituir um novo
norte-americano. campo de análise para a antropologia brasileira. Essa
No Brasil, o preconceito ficou conhecido como mudança de foco pode ser explicada pela crescente
“de marca”, ou “de cor”, ou seja, manifesta-se com base urbanização do país e também pelo desejo de
em uma gradação da cor da pele, é bastante flexível e compreender e explicar o Brasil.
variável conforme a região do país. É diferente do Entretanto, para muitos estudiosos, os estudos
preconceito “de origem”, característico do sistema de comunidade da década de 1940 já seriam
norte-americano, em que basta ter um ascendente negro antecessores de uma antropologia urbana,
para ser considerado negro, independentemente da cor especialmente por terem sido inspirados pela Escola de
da pele. Sociologia de Chicago, que já nas décadas de 1920 e
O Projeto Unesco marcou também uma 1930 empreendia verdadeiras etnografias urbanas.
divergência entre a sociologia e a antropologia As diferenças que interessavam à Antropologia
brasileiras quanto às relações raciais. As pesquisas estavam agora na cidade, muito próximas dos
conduzidas em São Paulo, principalmente, deram antropólogos. Entretanto, essa proximidade ocasionava
origem a um grupo de estudiosos que ficou conhecido algumas questões importantes: se a experiência urbana
como “Escola Paulista de Sociologia”, que tendia a ver de populações vindas do campo, ou mesmo de negros
nas relações raciais um problema a ser dissolvido num e mestiços, era de certa forma similar à dos próprios
sistema de classes sociais. antropólogos, como fazer Antropologia? A
As perspectivas antropológicas, por outro lado, Antropologia não era o estudo dos “diferentes”?
preocupadas com a cultura negra, perdiam espaço para Ao olhar para realidades tão próximas, a
uma discussão marxista sobre classes sociais. Ou seja, o Antropologia passou a pensar em como transformar o
ponto de vista dos marxistas prevaleceu nesse período. similar em exótico. Ou seja, pensar aqueles que se
Apesar dessas discordâncias, a Antropologia assemelhavam aos antropólogos como se fossem
continuou a produzir conhecimento sobre a cultura “estranhos”. Esse foi o lema da antropologia urbana
negra, principalmente sobre a religião afro-brasileira, brasileira: transformar o semelhante e parecido em
grande tema de pesquisa desde o final do século XIX. diferente e, a partir daí, fazer Antropologia.
Dos anos 1980 até os dias atuais, a Antropologia Esse deslocamento possibilitou o estudo das
tem voltado a estudar as relações raciais, principalmente experiências urbanas de populações desfavorecidas e
a partir da noção de identidade. logo se mostrou útil para pensar também a experiência
As políticas de reafricanização — valorização da urbana das camadas médias e altas da sociedade
herança africana entre a juventude negra —, por brasileira.
exemplo, têm sido analisadas por antropólogos. A A Antropologia passou a se interessar também
grande diferença é que cresceu muito o número de pelo contexto de vida em que estavam imersos os
antropólogos negros fazendo trabalho de campo sobre
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próprios antropólogos: no caso, principalmente as centros de pesquisa e linhas de pesquisa em programas


camadas médias urbanas. de pós-graduação.
O mesmo movimento possibilitou ainda que a Em termos gerais, a noção de gênero busca
proximidade fosse vista como objeto de análise em pensar a relação entre homens e mulheres como
outras dimensões além das de diferença de renda: relacional e flexível (ou seja, homem e mulher são
antropólogas feministas passaram a estudar a opressão categorias que variam, não descrições de uma realidade
da mulher, antropólogos e antropólogas homossexuais biológica). Essa é uma forma de desnaturalizar a relação
passaram a estudar as relações de gênero e as diversas entre homens e mulheres, historicamente comandada
sexualidades, antropólogos negros se dedicaram a por determinações biológicas.
estudar as relações raciais, e assim por diante. Os termos usados são “masculinidade” e
O movimento fundamental de “tornar exótico” “feminilidade”, pois descrevem estilos e processos
aquilo que é próximo tornou possível uma antropologia diferentes conforme o contexto: isto é, existem
urbana também militante e que de forma geral se diferentes “masculinidades” e diferentes
aproxima dos movimentos sociais. Essa antropologia “feminilidades”.
assumiu uma feição prática, de luta política em favor Uma derivação dos estudos de gênero são os
dos direitos de populações discriminadas. que tratam de “identidades sexuais”, marcando também
Não por acaso, esse momento da antropologia uma luta política de antropólogos homossexuais em
brasileira coincide com o desenvolvimento dos busca de reconhecimento de direitos e no combate à
movimentos sociais no Brasil. discriminação.
Como precursores da antropologia urbana Esses trabalhos questionam aquilo que
brasileira podemos destacar Gilberto Velho, no Rio de denominam “heteronormatividade”, ou seja, a visão de
Janeiro, e Eunice Durham e Ruth Cardoso (1930-2008), que o normal e o correto seriam as relações
em São Paulo. heterossexuais (entre homens e mulheres). Tais estudos
O trabalho clássico de Eunice Durham, A produzem uma desnaturalização das relações tidas
caminho da cidade (1973), reflete sobre a migração a partir como normais, abrindo espaço para que outras relações
da vivência dos migrantes e dos significados que eles (como as homoafetivas) sejam consideradas legítimas.
atribuem a esse processo. Esse estudo tem inspiração Como vimos, a antropologia brasileira
funcionalista, com grande influência de Florestan contemporânea apresenta um leque extenso e variado
Fernandes. de preocupações, assim como a Sociologia e a Ciência
Posteriormente, Eunice Durham e Ruth Política praticadas no Brasil contemporâneo.
Cardoso desenvolveram, em conjunto, estudos sobre Quanto à especificidade da antropologia
movimentos sociais. Gilberto Velho também foi urbana, a passagem das diferenças “distantes” para as
pioneiro ao estudar as classes médias urbanas no Rio de diferenças “próximas” é uma característica importante.
Janeiro, fazendo uma antropologia muito influenciada
pela escola de Chicago.
Em todos esses trabalhos, o processo de
urbanização e industrialização da década de 1970
aparecia como pano de fundo, tanto na constituição de
novas classes populares como de novas classes médias.
Mais recentemente, a antropologia urbana tem
se dedicado a uma variedade enorme de temas, entre os
quais se destacam a violência nas periferias — também
resultado da urbanização desordenada e do crime
organizado, principalmente o tráfico de drogas; o lazer
das classes populares; as diferentes “tribos urbanas” —
como punks, vegetarianos, skinheads estudos sobre
doença e saúde; sobre sexual dade e gênero; entre
outros.
As discussões sobre sexualidade e relações de
gênero ganharam dimensões políticas importantes, num
contexto marcado pela discriminação e pela violência
contra mulheres, homossexuais e travestis.
O debate sobre as relações de gênero,
relacionado com o desenvolvimento de lutas feministas
no Brasil, ganhou destaque a partir da década de 1970,
sendo integrado à Antropologia através da criação de

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