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O que é a filosofia?

14 de Setembro de 2015 Filosofia

O que é a filosofia?
Desidério Murcho

Como nunca estudaste filosofia na escola, talvez tenhas uma ideia vaga
ou até errada sobre o assunto. Ou talvez não tenhas ideia nenhuma.
Como é natural, ficarás a saber melhor o que é a filosofia depois de a
teres estudado correctamente. Mas é conveniente dar-te já uma ideia
do que é a filosofia. Deste modo, poderás orientar-te melhor na
disciplina.

Provavelmente, estás habituado a definir as ciências como a história ou


física em termos de objecto e método. Por exemplo:

A aritmética elementar estuda as principais propriedades da


adição, da subtracção, etc. O seu método é a demonstração
matemática.
A biologia estuda as propriedades dos organismos vivos. O seu
método é a observação e a elaboração de teorias que depois são
testadas, por vezes em laboratórios.
A economia estuda as relações económicas. O seu método é a
análise de dados estatísticos e a tentativa de produzir modelos
explicativos das relações económicas.

Também a filosofia tem um objecto e um método de estudo. A filosofia


tem como objecto os conceitos mais básicos que usamos nas ciências,
nas artes, nas religiões e no dia-a-dia. A filosofia estuda conceitos
como os seguintes: o bem moral, a arte, o conhecimento, a verdade, a
realidade, etc. O seu método é a troca de argumentos, a discussão de
ideias.

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01/12/2023, 09:31 O que é a filosofia?

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1. A filosofia em acção: um exemplo


Imagina que no meio de uma conversa qualquer, eu digo: “No fundo, é
tudo relativo”. Talvez já tenhas ouvido esta ideia muitas vezes. Talvez
até tu próprio penses que é tudo relativo. A ideia de que tudo é relativo
surge-nos naturalmente em certas circunstâncias, quando começamos
a pensar em certos problemas. E é assim que surge a filosofia.

A filosofia (como as ciências, as artes e as religiões) surge da nossa


capacidade natural para pensar. Não é algo que só surge quando vamos
à escola ou quando lemos livros de filósofos muito antigos. Algumas
pessoas começam a fazer perguntas de carácter filosófico por volta dos
13 ou 14 anos. Eis alguns exemplos:

Será que tudo é relativo?


Será que a vida tem sentido? E se tem, qual é?
Como se justifica a existência do estado, das leis, e da polícia?
Será que não faz diferença fazer sofrer os animais?
O que sou eu, na verdade? Será que sou apenas um corpo? Ou tenho
uma alma?
Será que Deus existe realmente, ou será que os ateus têm razão e
os crentes estão enganados?
E se o mundo inteiro fosse uma ilusão e nada fosse real? Como
posso ter a certeza que o mundo não é uma ilusão?
Quando digo que uma acção é boa estou apenas a dizer que a
sociedade em que vivo aprova essa acção ou essa acção continuaria
a ser boa mesmo que a minha sociedade a desaprovasse?

Além disso, os problemas filosóficos surgem também da nossa reflexão


sobre as ciências, as religiões e as artes. Eis alguns exemplos:

O que é realmente a arte? E o que é a música?


O que são realmente os números? Será que os teoremas
matemáticos são invenções dos seres humanos, ou descobertas?
Como poderemos conciliar a existência de um Deus bom e
sumamente poderoso e sábio com tanto sofrimento no mundo?

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O que é realmente uma lei da física? E como podemos ter a certeza


que essas leis são verdadeiras?

Apesar de a filosofia ser uma reflexão que surge naturalmente, nem


toda a reflexão que surge naturalmente é filosófica. Muitas vezes temos
respostas pessoais para perguntas filosóficas como “Qual é o sentido da
vida?” ou “Será que é tudo relativo?”. Essas respostas pessoais,
contudo, ainda não são filosóficas. Podem ser o ponto de partida da
reflexão filosófica; mas não são o ponto de chegada. Isto quer dizer que
podes e deves partir das tuas convicções pessoais. Mas só começas a
fazer filosofia quando exiges a ti mesmo justificações públicas para
essas convicções. E essas justificações têm de resistir à crítica. Vamos
ver o que isto quer dizer.

1.1. A filosofia é uma actividade crítica

A primeira coisa a fazer perante uma afirmação filosófica, como “Tudo


é relativo”, é tentar saber exactamente o que estamos a dizer. “Tudo”
refere-se a quê? E o que quer dizer “relativo”? No estudo da filosofia,
este trabalho de interpretação é crucial. Temos de saber com precisão o
que realmente está a ser afirmado para podermos discutir essa
afirmação. É por isso que no capítulo 2 iremos distinguir frases de
proposições, e iremos ver o que é a ambiguidade e outras armadilhas
que não nos permitem interpretar correctamente as ideias dos
filósofos.

Se me perguntares o que quer dizer “tudo” e “relativo” no contexto da


minha afirmação, posso responder assim:

“Tudo” refere-se a todas as verdades. O que eu


defendo é que todas as verdades são relativas. E
“relativo” quer dizer que as verdades mudam,
ou variam; não são coisas fixas.

Agora já compreendemos melhor o que quer dizer “Tudo é relativo”.


Mas será então que, nesse sentido, é verdadeiro que “Tudo é relativo”?
Que razões temos para aceitar esta ideia? Por que razão não será melhor
aceitar a negação desta ideia? É porque por vezes queremos negar ideias

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que no capítulo 2 irás aprender a não errar ao negar certos tipos de


afirmações.

Já estás a ver que não basta interpretar e compreender o que eu queria


dizer com a afirmação “Tudo é relativo”. É preciso ter uma atitude
crítica em relação ao que foi dito. Será que tenho razão? Porquê? Ou
será que estou enganado? E porquê?

Quando fazemos estas perguntas, estamos a exigir argumentos. Será


que os argumentos em que me baseio ao pensar que tudo é relativo são
suficientemente fortes para apoiar esta ideia? Ou são apenas confusos e
desinteressantes? A argumentação é o coração da filosofia e é por isso
que a filosofia é uma atitude crítica. É por isso também que no capítulo
2 vamos aprender a distinguir os bons dos maus argumentos.

Precisamos de argumentos para mostrar que os problemas que


estamos a estudar não são meras ilusões e confusões. Por exemplo,
será que o problema do sentido da vida faz sentido? Porquê?
Precisamos de argumentos para avaliar as respostas que os
filósofos e nós próprios damos aos problemas da filosofia. Por
exemplo, será que a resposta que Platão dá ao problema da
imortalidade da alma é boa?
E precisamos de saber avaliar argumentos porque os filósofos
passam grande parte do seu tempo a apresentar argumentos a
favor das suas ideias e contra as ideias que eles acham que estão
erradas. Por exemplo, será que o argumento de Santo Anselmo a
favor da existência de Deus é bom?

Porque a filosofia é uma actividade crítica, avalia cuidadosamente os


nossos preconceitos mais básicos. Isto faz da filosofia uma actividade
um pouco melindrosa. Em geral, temos tendência para nos agarrarmos
acriticamente aos nossos preconceitos, porque eles condicionam a
maneira como vemos o mundo e como vivemos a vida. A filosofia, pelo
contrário, exige abertura de espírito e disponibilidade para pensar
livremente.

O facto de a filosofia ser uma actividade crítica coloca-te numa posição


muito diferente, como estudante, daquela que te é exigida nas outras
disciplinas. Em filosofia, tens a liberdade de defender as tuas ideias.
Tanto podes defender que Deus existe como que não existe; tanto podes

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defender que o aborto deve ser permitido como que não o deve ser. Até
podes defender que a filosofia é uma ilusão e um absurdo.

Nesta disciplina, não te pedimos que te limites a repetir o que diz o teu
professor. O que pedimos é que aprendas a pensar. E pensar implica
apresentar argumentos. Tens a liberdade de defender o que quiseres,
mas tens de adoptar uma atitude crítica. Isto significa o seguinte:

Tens de sustentar o que defendes com bons argumentos.


Tens de aceitar discutir os teus argumentos.

O objectivo é que sejas tu a pensar filosoficamente; mas para poderes


pensar filosoficamente terás de saber usar um conjunto de
instrumentos que te permitirão pensar de forma mais organizada e
sistemática. E terás de compreender correctamente as ideias que
iremos estudar — mesmo que aches que estão erradas. Se conseguires
dizer de forma clara, articulada e fundamentada em bons argumentos
por que razão estão erradas, já estarás a fazer filosofia.

Ser crítico não é “dizer mal”. Ser crítico é olhar com imparcialidade
para todas as ideias — quer sejam nossas, dos nossos colegas ou de
filósofos famosos. E olhamos para elas com imparcialidade para
podermos avaliar se são verdadeiras ou não.

Ser crítico não é ser extravagante. Uma pessoa pode ser perfeitamente
crítica e seguir as convicções da maioria. Ser crítico não é dizer “Não”
só para marcar a diferença. Ser crítico é dizer “Sim”, “Não”, ou até
“Talvez”, mas com base em bons argumentos.

Voltemos agora à minha ideia de que tudo é relativo. Que argumentos


tenho a seu favor? Se me fizeres esta pergunta, posso responder assim:

Ao longo dos séculos, verificamos que o que


pensamos ser verdade vai mudando. Primeiro,
pensávamos que a Terra estava no centro do
universo; depois, que não estava. Primeiro,
pensávamos que o cristianismo era a única
religião verdadeira, e que o Deus cristão tinha de
ser imposto pela força. Depois, verificámos que

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há várias religiões e que todas têm o direito a


existir. Em suma, o que hoje pensamos que é
verdade, amanhã pensamos que é falso, e é por
isso que eu digo eu é tudo relativo.

Esta resposta é uma tentativa de justificação da ideia de que tudo é


relativo. Mas será uma boa justificação? O teu trabalho em filosofia é
discutir os meus argumentos. Poderias começar por fazer notar que
esta justificação parece misturar duas coisas diferentes: o progresso
científico e a tolerância religiosa. E por isso talvez fosse vantajoso ver
cada uma dessas coisas em separado.

Poderias começar pela primeira, perguntando se é mesmo verdade que


o progresso científico mostra que as verdades são todas relativas. Pelo
contrário, poderias dizer, se tudo fosse relativo, não haveria realmente
progresso científico; haveria apenas uma mudança de teorias
científicas. As teorias antigas seriam tão boas como as modernas. Mas
se isto fosse verdade, que razões teríamos nós para mudar de teorias?

Eu poderia responder que somos forçados a mudar de teorias por vários


motivos. Por exemplo, quando um certo grupo de cientistas se quer
destacar, pode apresentar uma nova teoria revolucionária e fazer tudo
para ver a sua teoria ser aceite. Mas isto nada nos diz sobre o valor
intrínseco da nova teoria. A nova teoria é tão boa como a velha; são
apenas diferentes.

Já vês que a filosofia é uma actividade dialogante: consiste em trocar e


discutir ideias. A diferença entre uma discussão filosófica e uma
gritaria, por exemplo, é esta: em filosofia discutimos para chegar à
verdade das coisas, independentemente de saber quem “ganha” a
discussão; numa gritaria discute-se para “ganhar” a discussão,
independentemente de saber de que lado está a verdade.

1.2. O pensamento filosófico é consequente

Ao reflectires sobre a minha resposta às tuas objecções poderias tentar


saber até que ponto o que a minha teoria implica é aceitável. E poderias
perguntar-me: “Será que a ideia de que tudo é relativo é também
relativa?” Como é óbvio, eu teria de dizer que sim, pois acabei de

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defender que todas as ideias são relativas. Mas então a minha ideia não
é realmente verdadeira; só é relativamente verdadeira. É verdadeira
para umas pessoas e falsa para outras. Mas nesse caso caio em
contradição, pois tenho de admitir que a minha ideia é falsa, de certos
pontos de vista. Nomeadamente, do teu. E tenho de admitir que tu tens
tanta razão como eu.

Imagina agora que quando fazes notar que nesse caso a minha própria
opinião não pode ser verdadeira, eu digo que não. Há algo de errado
comigo.

O que está errado comigo é que não estou a ser consequente. Ser
consequente é aceitar as consequências das nossas ideias. Não estou a
ser consequente porque não quero aceitar uma consequência da minha
ideia, só porque é desagradável para o que estou a defender. Isto é
pensamento irresponsável.

O pensamento filosófico é consequente. Isto significa que apesar de


seres livre para defenderes as posições que quiseres, terás de ser
responsável pelas consequências do que defendes. Se defenderes que
toda a vida é sagrada e que isso quer dizer que nunca devemos matar
um ser vivo, não podes ao mesmo tempo defender que se pode comer
salada de alface. Se defendes que tudo é relativo e que não há verdades,
não podes defender que a tua convicção é verdadeira.

Se quiseres pensar filosoficamente terás de ser responsável pelas


consequências das tuas ideias; e se as tuas ideias tiverem
consequências falsas, improváveis, absurdas ou de outra forma difíceis
de aceitar, terás muito provavelmente de mudar de ideias.

A nossa pequena discussão sobre o relativismo já permitiu ver que há


três elementos na filosofia:

Problemas
Teorias
Argumentos

O problema, no nosso caso, era saber qual é a natureza da verdade. Eu


estava a defender a teoria ou a posição de que a verdade é relativa. E
apresentei alguns argumentos a seu favor. Depois tu respondeste a

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esses argumentos, o que me levou a apresentar outros argumentos, aos


quais tu respondeste — e assim por diante. Os filósofos, ao longo dos
séculos, têm proposto teorias que tentam resolver os problemas
filosóficos. Essas teorias apoiam-se em argumentos.

O teu papel perante os problemas, as teorias e os argumentos da


filosofia é duplo:

Saber formulá-los claramente.


Saber discuti-los com rigor.

1.3. A filosofia é um estudo a priori

Quando começamos a discutir a ideia de que tudo é relativo,


percebemos que ela tem uma característica especial: nada há na
experiência empírica que nos permite resolver o problema. Só pelo
pensamento podemos tentar resolver o problema. É porque isto
acontece com os problemas filosóficos que dizemos que a filosofia não
é um estudo empírico; é um estudo a priori. A melhor maneira de
perceber o que isto quer dizer é com um exemplo.

Imagina que queres saber se há vida em Marte. Não é possível resolver


este problema unicamente através do pensamento. É preciso dispor dos
dados enviados pelas sondas que foram para Marte, fazer observações e
medições, etc. Todas essas coisas fazem parte da experiência empírica:
são maneiras de recolher informação acerca do mundo.

Mas os problemas da filosofia não se resolvem olhando para o mundo


para recolher informação. Não podemos decidir se é tudo relativo ou se
a vida faz sentido recolhendo informação do mundo. É por isso que
dizemos que a filosofia é um estudo a priori. Queremos dizer que a
filosofia se faz unicamente com o pensamento.

Todavia, isto não significa que não podemos usar informação sobre o
mundo. Na verdade, sempre que isso é relevante, temos de usar
informação sobre o mundo. O estudo filosófico é a priori, mas temos de
ter informações sobre tudo o que for importante para a solução dos
problemas que estamos a tratar. Muitas vezes essa informação é
fornecida pelas ciências, pelas artes ou pelas religiões. Não podemos

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discutir filosofia da religião sem nada saber de religião. Nem podemos


discutir filosofia da arte sem nada saber de arte.

Quando chegamos a este ponto podes pensar que o relativismo, como


todas as outras ideias filosóficas, não passa de uma confusão e que nada
há para discutir — precisamente porque é algo que não podemos
decidir recorrendo à experiência. Todavia, é curioso que esta é também
uma posição filosófica — e uma posição que não se apoia na
experiência. Como poderemos decidir se é mesmo verdade que o
relativismo e a filosofia são uma perda de tempo porque nunca se pode
chegar a lado nenhum? Como podemos saber que não podemos chegar
a lado nenhum?

Quando começamos a pensar nas razões que nos levam a pensar que em
filosofia nunca se chega a lado nenhum começamos a fazer filosofia. É
por isso que a filosofia é inevitável. É inevitável porque não é mais do
que a procura sistemática de justificações sensatas para as nossas
ideias mais básicas — mesmo as nossas ideias acerca da própria
filosofia. É neste sentido que a filosofia se opõe ao dogmatismo:
nenhuma ideia tem o direito de suplantar quaisquer outras ideias,
enquanto não mostrar que é realmente melhor do que as outras.

1.4. A filosofia é diferente da história

Como é óbvio, muitos filósofos defenderam a ideia de que tudo é


relativo. O primeiro a defendê-lo parece ter sido Protágoras de Abdera
(cerca de 490–420 a.C.), na Grécia antiga. Muitos outros filósofos e
pensadores defenderam diferentes versões desta ideia, incluindo no
século XX e hoje em dia.

Quando discutimos uma ideia filosófica verificamos muitas vezes que


essa ideia tem uma história; houve outras pessoas que a defenderam ou
atacaram. É por isso importante saber o que os grandes filósofos
pensaram. Nada há de extraordinário nisto. Se estás preocupado em
saber se o relativismo é ou não aceitável, é uma boa ideia tentar saber o
que as outras pessoas pensaram sobre isso. Afinal, pode ser que o que
elas pensaram te ajude a pensar melhor — quer concordes, quer
discordes delas.

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Todavia, é preciso distinguir claramente o estudo da filosofia do estudo


da história da filosofia. Em história da filosofia estudamos o que os
filósofos dizem só para saber o que eles dizem. Na filosofia estudamos o
que os filósofos dizem para discutir as suas ideias. Mas é claro que só
podemos discutir as suas ideias se as soubermos formular bem. Estudar
filosofia é como estudar música e estudar história da filosofia é como
estudar história da música. Num caso, aprendemos a tocar um
instrumento ou a compor peças musicais; no outro, aprendemos
apenas a apreciar a música do passado. Num caso, aprendemos a
discutir ideias e a propor ideias e a defendê-las; no outro, aprendemos
apenas a formular as ideias dos outros.

2. Para que serve a filosofia?


A filosofia responde a problemas que surgem da nossa capacidade
natural para pensar. O mesmo acontece com a ciência, a religião e a
arte. Portanto, em grande medida, a filosofia serve para o mesmo que
serve a ciência, a religião e a arte: serve para compreender melhor o
mundo, os outros e nós mesmos.

Mas será que só serve para isso? Afinal, nas artes, nas religiões e nas
ciências, fazem-se coisas úteis — não nos limitamos a compreender
melhor o mundo. Por exemplo:

A ciência alarga a nossa compreensão do universo; mas também


permite curar a tuberculose.
A religião alarga a nossa compreensão do nosso lugar no universo;
mas também oferece conforto e orientação espiritual aos crentes.
A arte, como a literatura, por exemplo, alarga a nossa
compreensão da condição humana; mas também produz obras de
grande valor artístico, que nos inspiram e maravilham.

Também a filosofia não se limita a alargar a nossa compreensão. A


compreensão que a filosofia nos oferece do mundo, de nós e dos outros
ajuda-nos a mudar a nossa vida. Vejamos dois exemplos.

Em 1869 um importante filósofo inglês chamado John Stuart Mill


publicou um livro intitulado A Submissão das Mulheres. Neste livro,
Mill defendia, com argumentos filosóficos, a igualdade política e social
das mulheres. Hoje, parece-nos óbvio que as mulheres não devem ser
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discriminadas em nenhum aspecto da vida social. A filosofia pode


mudar as nossas vidas porque pode mudar as nossas convicções.

Em 1975, Peter Singer, um importante filósofo contemporâneo,


publicou um livro com o título A Libertação dos Animais. Nesse livro,
Singer procura mostrar que o modo como tratamos os animais na
indústria pecuária e na ciência é moralmente indefensável; os animais
não podem ser tratados como se fossem meros objectos. Em resultado
do seu estudo, os movimentos de libertação animal ganharam
legitimidade. Hoje, muitas das maiores empresas deixaram de testar os
seus produtos em animais. A filosofia pode mudar as nossas vidas
porque pode mudar as nossas convicções.

Os seres humanos entregam-se a diferentes actividades. A religião, a


ciência, a arte e a filosofia têm cada uma a sua utilidade.

A religião é útil porque fornece orientação e conforto espiritual aos


seus crentes. A filosofia fornece orientação a qualquer pessoa,
independentemente de ser ou não crente. E mostra que muitas das
respostas que acriticamente estaríamos dispostos a aceitar são
insatisfatórias.
A ciência é útil porque nos ensina a curar a tuberculose, por
exemplo. A filosofia ensina-nos a enfrentar os problemas morais
levantados pela ciência, como a eutanásia ou o aborto.
As artes são úteis porque produzem obras que nos inspiram e
maravilham. A filosofia produz ideias e argumentos que nos
inspiram e maravilham, e põe a descoberto problemas que nos
convidam a dar o nosso melhor para tentar resolvê-los. E isso faz
de nós seres humanos melhores, seres humanos mais completos.

Em suma: as razões pelas quais a filosofia serve para alguma coisa são a
razões pelas quais as artes, as ciências e as religiões servem para
alguma coisa.

Todavia, é verdadeiro que muitos dos problemas, teorias e argumentos


da filosofia não têm qualquer utilidade prática. Mas também a maior
parte do que constitui as religiões, as artes e as ciências não tem
qualquer utilidade prática. Mas, mesmo assim, essas coisas podem ter
valor.

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As coisas sem utilidade prática podem ter valor porque o conhecimento


é algo suficientemente importante para ter um valor próprio. Nada
ganhamos em conhecer a anatomia dos dinossáurios que se
extinguiram há 65 milhões de anos, nada ganhamos em saber como
aconteceu o Big Bang. Mas desconhecer todas essas coisas é viver uma
vida mais pobre e mais provinciana. É por isso que há pessoas que
gostam de alargar o conhecimento e a compreensão,
independentemente de isso servir ou não para alguma coisa. E isto é
algo que não acontece apenas aos filósofos; acontece aos físicos, aos
biólogos, aos músicos, aos escritores, etc.

Em suma, a filosofia tem valor, mesmo que na sua maior parte não
tenha qualquer utilidade prática, porque o conhecimento é um valor em
si.

Por outro lado, nunca podemos saber quando uma ideia aparentemente
inútil pode vir a ser útil. A lógica, por exemplo, parecia uma área do
conhecimento completamente inútil. Mas hoje temos computadores
graças aos estudos levados a cabo pelos especialistas em lógica. Logo,
mesmo que só as coisas úteis tivessem valor, nunca poderíamos saber à
partida quais das nossas ideias se viriam a revelar úteis.

Acresce que a filosofia consiste, em grande parte, em discutir ideias


com argumentos rigorosos. Isto dá-lhe uma utilidade muito
importante: quem for capaz de discutir filosofia claramente, será capaz
de discutir claramente qualquer assunto (desde que disponha da
informação relevante). A filosofia é útil para a vida pública de um país
porque nos ensina a pensar melhor.

A filosofia exercita as nossas capacidades argumentativas. Ficamos


com uma capacidade acrescida para avaliar e discutir ideias,
argumentos e problemas. Do mesmo modo que quem estuda pintura
fica com um olhar mais sensível às cores e formas, quem estuda
filosofia fica mais sensível ao modo como fundamentamos as nossas
convicções e decisões.

Quem sabe argumentar bem toma melhores decisões, porque as


decisões que tomamos são baseadas em argumentos. E esses
argumentos podem ser melhores ou piores. Todos queremos melhores

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decisões (e portanto melhores argumentos) quando essas decisões


afectam a nossa vida. A filosofia pode ajudar-nos a tomar fazer isso.

Desidério Murcho

Questões de revisão

O que é um preconceito? Dá alguns exemplos, explicando por que


razão são preconceitos.
Para que fins precisamos de argumentos na filosofia?
O que precisas de aceitar para poderes ter uma atitude crítica?
Qual é a diferença entre justificar as nossas respostas pessoais e
ter uma atitude crítica?
O que significa dizer que o pensamento filosófico é consequente?
Dá um exemplo.
Dá um exemplo de uma convicção inconsequente.
O que significa dizer que a filosofia é um estudo a priori?
“Uma vez que a filosofia é a priori, não precisamos de informação
empírica para fazer filosofia”. Concordas? Porquê?
Dá dois exemplos de problemas a priori e dois exemplos de
problemas empíricos.
Por que razão a filosofia se opõe ao dogmatismo?
“A filosofia é inevitável”. Concordas? Porquê?
Será que a filosofia se limita a alargar a nossa compreensão do
mundo?
Em que aspectos a filosofia pode ser útil?
“Para uma actividade ter valor não precisa de ser útil”. Concordas?
Porquê?

Problemas

“Não há qualquer interesse em estudar filosofia, porque cada qual


tem a sua filosofia pessoal”. Concordas? Porquê?
“A atitude crítica é apenas dizer mal dos outros”. Concordas?
Porquê?
“Desde que uma pessoa seja extravagante, é crítica”. Concordas?
Porquê?
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“O que uma pessoa diz com o cérebro, nega na sua vida concreta”.
Concordas? Porquê?
Qual é a relação entre os problemas, as teorias e os argumentos da
filosofia?
“Dado que tanto a filosofia como a matemática são a priori, não há
diferença entre as duas”. Concordas? Porquê?
“A filosofia é inútil porque é tudo subjectivo e nunca se chega a
lado nenhum”. Concordas? Porquê?
“A filosofia é inútil porque é tudo subjectivo e nunca se chega a
lado nenhum”. Achas que esta afirmação é objectiva ou subjectiva?
Porquê?
“A filosofia não serve para nada”. Concordas? Porquê?
“Nenhuma filosofia do mundo pode mudar a nossa vida”.
Concordas? Porquê?
“A filosofia responde à nossa curiosidade natural e não precisa de
ser útil”. Concordas? Porquê?
“Mesmo que só as coisas úteis tivessem valor, teríamos de fazer as
coisas aparentemente inúteis, porque nunca podemos saber
quando podem vir a ser úteis”. Concordas? Porquê?

Copyright © 2023 criticanarede.com


ISSN 1749-8457

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