Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Eis o artigo.
Tais fragmentos expressam, a meu ver, um mecanismo de defesa. Ou seja, uma ação
que procura relativizar a desumanidade geral em que se inserem os personagens, uma
afirmação, ainda que tênue, de que seguem sendo humanos mesmo num quadro
dramático de desumanidade. Não é necessário um quadro tão drástico como uma
guerra, a brutal exploração da classe trabalhadora nos dá exemplos cotidianos
deste fenômeno. A mãe que prepara com zelo e carinho a pouca comida, veste com
dignidade seus pequenos com as roupas que tem; a festa, a música, a dança que
resiste alegre no corpo da cidade cinza, séria e triste; o amor que insiste em nascer em
tempos de desamor.
Estes pequenos atos de sanidade em meio ao caos, ainda que essenciais para resistir
e seguir vivendo, guardam um risco de grandes proporções: a naturalização da
barbárie. O dilema que se coloca diante dos indivíduos é o de buscar os meios de
seguir vivendo ou a recusa, a não aceitação, a revolta.
Assim como eles, que tinham a opção de emitir ou não aquele juízo terrível, nós
também estamos diante da seguinte disjuntiva: mantermo-nos alheios a isso ou
assumir algum tipo de indignação. A banalização da barbárie, por vezes, se esconde
sob formas sedutoras. Tratar-se-ia de uma mera questão de opinião? Seria tudo uma
questão de “narrativa”, como convencionou ser chamado? Nós achamos que o
usurpador Temer deve dar o fora, e eles acham que a polícia deveria furar os olhos de
meninas e espancar todo mundo que protesta. Nós acreditamos que atacar (mais uma
vez) a previdência, aumentar a idade de aposentadoria, destruir a Universidade
Pública, cortar os recursos da educação e saúde enquanto sangram recursos para
os bancos e grandes empresas são crimes contra os direitos dos trabalhadores. E
outros a creditam que são medidas sensatas que poderão organizar a economia e
voltarmos a crescer até ultrapassar os EUA se tornando a maior potencia da terra.
Parece paradoxal, mas não é. O ódio de classe é o resultado dos limites do pacto. O
antagonismo entre as classes, se tomado pelas suas raízes, está longe de ser um
fenômeno meramente moral. Ele tem suas bases nas formas de propriedade, nas
relações sociais de produção e nas formas de poder que daí derivam. A ideologia
burguesa unifica no âmbito ideal o que inconciliável no plano material, daí sua
universalidade inevitavelmente abstrata. A contradição objetiva, constrangida pela
forma política da conciliação, sempre explode em um conflito ainda maior.
Isto não ocorre apenas no calor das manifestações de massa, como o próprio Freud
argumentou, mas cotidianamente através daquilo que denominou de “grupos
organizados” que produzem as condições para orientar a ação dos indivíduos numa
determinada direção, fazendo com que eles acreditem ser suas próprias opções
pessoais. Assim, operam como mediadores entre as classes e segmentos de classes e
os indivíduos que a compõem, algo que se aproxima da noção gramsciana de
aparatos privados de hegemonia.
Mas é exatamente aqui que incide nossa reflexão. Não podemos compreender este
momento, ou seja, aquele em que o indivíduo se vê diante de valores, princípios morais
e decisões a serem tomas, atitudes e comportamentos, como se fosse um processo
dual entre o indivíduo de um lado e as determinações mais gerais e sociais de outro.
Se assim fosse, como argumenta com razão Lukács, “toda conexão entre a existência
interior (ética) e a exterior (natural, social) do homem parece romper-se”. Por isso, ele
como nós, acreditamos que a vida ético-individual implica necessariamente uma
responsabilidade histórico-social.
Visto sob este ângulo não se trata de mera postura individual diante do mundo e do
universo aleatório de valores que a sustenta. Trata-se da adesão, consciente ou não,
às classes em luta e as perspectivas abertas no devir. Olhando sob o ponto de vista
estritamente racional não há sentido em uma senhora querer matar a presidente, uma
jovem querer cegar uma menina ou um professor universitário ficar contente com isso.
Mas quando olhamos na perspectiva das classes em luta, percebemos a necessidade
das classes dominantes de eliminar fisicamente seus opositores, destruir por todos os
meios a classe que pode, ao se afirmar, destruir as bases de seu domínio.
Ocorre que tal processo não é linear nem homogêneo. Ele depende da luta de classes
e de seu desenvolvimento, das determinadas configurações das classes e segmentos
de classe, assim como as disposições dos indivíduos em cada momento, que
encontram certas condições que podem formar suas consciências no sentido da
adequação ou da ruptura com o universo ideológico estabelecido. Quando as direções
da luta de classes optam pelo pântano da conciliação de classes, elas desarmam os
trabalhadores, que perdem sua autonomia e independência e se tornam presa da
ideologia.
Os segmentos médios atuam de forma muito particular nesse processo. Por sua
natureza de classe de transição, que oscila entre a burguesia e o proletariado, as
camadas médias desenvolvem a curiosa percepção de que estando acima dos
radicalismos das classes em luta representam a abstração da sociedade em seu
conjunto. Na luta concreta, entretanto, acabam sempre assumindo ora a posição dos
trabalhadores em luta, ora a necessidade conservadora das classes dominantes. Um
cenário no qual os trabalhadores abdicam de sua radicalidade, aceitando a premissa
pequeno-burguesa da “nação” ou do “povo”, ao contrario de atraí-los, produz
exatamente o momento que empurram os segmentos médios para a reação.
Por isso, acreditamos que lutar pelo Fora Temer e a antecipação das eleições deve,
necessariamente se articular com a Greve Geral contra o ajuste e as medidas que
atacam diretamente os direitos dos trabalhadores e ameaçam a nossa existência
imediata e futura. Desta maneira estaríamos não apenas criando as condições para
uma possível reorganização de uma consciência de classe dos trabalhadores, como
diminuiríamos o espaço que o conservadorismo logrou impor nos segmentos médios.
As manifestações e protestos, por mais importantes que sejam, não têm a força
necessária para impor o “Fora Temer” com esta qualidade necessária que a recusa
dos trabalhadores em greve geral pode gerar. Ou o próximo período se abre como uma
consolidação da derrota, ou abrem-se duas possibilidades, uma por concessão do
Estado e buscando manter o desfecho nos limites da reprodução do existente, ou um
novo ciclo que se inicia sob a retomada da iniciativa dos trabalhadores redescobrindo
sua força. Esta última possibilidade implica na greve geral e em sua força.
O resultado imediato esperado, muito além da eventual vitória barrando uma ou outra
medida, é a criação das condições sociais e políticas que torne possível que os
indivíduos de nossa classe se sintam parte de algo maior e que lhe forneça as
condições para as escolhas éticas capazes de enfrentar a barbárie e voltar a sonhar
com um futuro emancipado, ao mesmo tempo que reduza o espaço para que
manifestações gritantes de desumanidade e arbítrio possam frutificar e lançar raízes
abrindo um período de retrocesso com consequências trágicas.
Leia mais...