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O “petismo” como problema moral

Lido em http://www.ihu.unisinos.br/559910-o-petismo-como-problema-moral dia 09/09/16 as 10:19AM

“Lutar pelo Fora Temer e a antecipação das eleições deve, necessariamente se


articular com a Greve Geral contra o ajuste e as medidas que atacam diretamente os
direitos dos trabalhadores e ameaçam a nossa existência imediata e futura. Desta
maneira estaríamos não apenas criando as condições para uma possível reorganização
de uma consciência de classe dos trabalhadores, como diminuiríamos o espaço que o
conservadorismo logrou impor nos segmentos médios”, escreve Mauro Luis Iasi,
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB, em artigo publicado no sítio do PCB-Partido Comunista Brasileiro e
reproduzido por Jornal GGN, 09-09-2016.

Eis o artigo.

“A vida ético-individual implica necessariamente uma responsabilidade histórico social


nas decisões, nos comportamentos” – GYÖRGY LUKÁCS.

Sempre afirmamos e continuamos acreditando que o drama da experiência petista


não pode se reduzir a uma dimensão moral, isto é, a um mero problema de traição ou
abandono de valores resultantes do transformismo que se operou. Preferimos centrar
nossa atenção no estudo do comportamento da classe trabalhadora e nas
determinações materiais e históricas do ser da classe e sua consciência. Nesta direção
o transformismo verificado nas direções correspondem a um determinando momento
histórico, marcado pelo processo de reestruturação produtiva do capital e de derrota
na luta de classes no plano internacional com o desfecho dramático das experiências
de transição socialista operadas no século XX, em especial a soviética.

No entanto, há inegavelmente uma dimensão moral e ética nesta tragédia, na medida


em que há decisões que são tomadas, caminhos que são escolhidos em detrimento de
outros, valores abandonados e valores aceitos, pequenas e grandes traições. Ainda
mais que isso, a inflexão política operada na direção da conciliação de classes e a
consequente perda de autonomia dos trabalhadores, acaba por incidir num fenômeno
mais amplo no que diz respeito a moralidade social e sua eticidade. Evidente que o
petismo (que é responsável direto por muita coisa) não pode ser responsabilizado pelo
conservadorismo presente na sociedade e suas manifestações mais grotescas com as
quais nos deparamos hoje. As raízes do conservadorismo são outras. No entanto, as
manifestações reacionárias que presenciamos e sua forma, em grande medida, devem
ser compreendidas no quadro geral da luta de classes e da crise.

Chama-me a atenção em determinados romances sobre a segunda guerra mundial,


ou filmes que tratam do tema, como determinados comportamentos cotidianos
insistem em se manter mesmo no caos provocado pelo conflito. Pessoas que sob
escombros de cidades destruídas, ou na barbárie dos guetos ou campos de
concentração, buscando água, conversando com colegas de infortúnio, apaixonando-
se e outras coisas triviais, coisas como fazer uma sopa ou lavar roupas no filme A
menina que roubava livros, ou um músico vestido de soldado que reencontra seu
piano no filme O pianista, ou ainda um tenor, no filme Stalingrado, coberto de poeira
e trapos que quase não fala por conta de um ferimento e, de repente, transborda sua
alma em uma ária.

Tais fragmentos expressam, a meu ver, um mecanismo de defesa. Ou seja, uma ação
que procura relativizar a desumanidade geral em que se inserem os personagens, uma
afirmação, ainda que tênue, de que seguem sendo humanos mesmo num quadro
dramático de desumanidade. Não é necessário um quadro tão drástico como uma
guerra, a brutal exploração da classe trabalhadora nos dá exemplos cotidianos
deste fenômeno. A mãe que prepara com zelo e carinho a pouca comida, veste com
dignidade seus pequenos com as roupas que tem; a festa, a música, a dança que
resiste alegre no corpo da cidade cinza, séria e triste; o amor que insiste em nascer em
tempos de desamor.

Estes pequenos atos de sanidade em meio ao caos, ainda que essenciais para resistir
e seguir vivendo, guardam um risco de grandes proporções: a naturalização da
barbárie. O dilema que se coloca diante dos indivíduos é o de buscar os meios de
seguir vivendo ou a recusa, a não aceitação, a revolta.

Peguemos um exemplo significativo nestes dias tão obscuros em que a presidente


eleita foi deposta e um usurpador ocupa seu lugar. Jovens nas ruas são reprimidos
com requintes de crueldade pela policia militar que já cotidianamente assassina jovens
negros nas periferias e favelas na dimensão de uma verdadeira guerra civil. Uma
menina é atingida por um estilhaço de bomba e perde a visão de um olho. Outra jovem
faz pilhéria comemorando o ato nas redes sociais e cumprimentando o aparato
repressivo por tê-la “curado de seu comunismo”. Um outro, este um professor
universitário, afirma que caso a jovem ferida seja petista “se trata de uma boa notícia”,
assim como um crápula desqualificado que se apresenta como jornalista emitiu o juízo
segundo o qual se ela tivesse perdido os “dois olhos, seria ainda melhor para
esquerda”.

Com exceção do suposto jornalista, que se especializou conscientemente em falar


imbecilidades com fins políticos claros, não conheço as outras pessoas e não quero
antecipar juízos. É possível que não sejam facínoras fascistas. Podem até ser pessoas
com um certo grau de normalidade, que voltam de seus trabalhos para suas famílias,
comem usando talheres, amam seus pares, festejam o natal, cuidam de seus filhos…
Podem ser bons profissionais, competentes no que fazem e, em situações normais,
não emitiriam qualquer juízo desrespeitoso para uma jovem que perdeu sua visão. No
entanto, o fizeram, publicamente, parecendo se regozijar com seu ato e esperam
reconhecimento de seus pares.

Assim como eles, que tinham a opção de emitir ou não aquele juízo terrível, nós
também estamos diante da seguinte disjuntiva: mantermo-nos alheios a isso ou
assumir algum tipo de indignação. A banalização da barbárie, por vezes, se esconde
sob formas sedutoras. Tratar-se-ia de uma mera questão de opinião? Seria tudo uma
questão de “narrativa”, como convencionou ser chamado? Nós achamos que o
usurpador Temer deve dar o fora, e eles acham que a polícia deveria furar os olhos de
meninas e espancar todo mundo que protesta. Nós acreditamos que atacar (mais uma
vez) a previdência, aumentar a idade de aposentadoria, destruir a Universidade
Pública, cortar os recursos da educação e saúde enquanto sangram recursos para
os bancos e grandes empresas são crimes contra os direitos dos trabalhadores. E
outros a creditam que são medidas sensatas que poderão organizar a economia e
voltarmos a crescer até ultrapassar os EUA se tornando a maior potencia da terra.

Não compartilhamos desta compreensão. Não se trata da relatividade das opiniões e


do direito de expressá-las. Estamos diante de algo distinto. Ao que parece, a
agudização da luta de classes suprime certas travas morais, desperta ódios
irracionais e primitivos. O que parece paradoxal é que isso se expressa após um
período em que a principal força de esquerda se esforçou em se apresentar moderada
e responsável, empenhada na conciliação de classes, abdicando de qualquer resquício
revolucionário.

Parece paradoxal, mas não é. O ódio de classe é o resultado dos limites do pacto. O
antagonismo entre as classes, se tomado pelas suas raízes, está longe de ser um
fenômeno meramente moral. Ele tem suas bases nas formas de propriedade, nas
relações sociais de produção e nas formas de poder que daí derivam. A ideologia
burguesa unifica no âmbito ideal o que inconciliável no plano material, daí sua
universalidade inevitavelmente abstrata. A contradição objetiva, constrangida pela
forma política da conciliação, sempre explode em um conflito ainda maior.

A crise da democracia de cooptação, do pacto de classes operado pelos governos


petistas, cria o cenário no qual os comportamentos individuais podem encontrar as
condições favoráveis para se expressar coletivamente. Uma pessoa isolada, por mais
que tenha convicções conservadoras, não se sentiria a vontade em expressar
pensamentos tão cruéis. Uma senhora, paramentada com a camisa da CBF, junto de
outros que vociferam impropérios, alegrava-se em expressar a opinião segunda a qual
a presidente Dilma deveria ter sido morta pelos militares quando estes tiveram a
chance depois do golpe de 1964.
Ocorre aqui um fenômeno que se remete àquilo que Freud estudou em seu trabalho
sobre a psicologia de massas. Não é, como acreditava Le Bon, simplesmente um
“contágio”, mas algo mais profundo ligado ao processo de constituição de identidades
projetivas e introjetivas, ou seja, o processo pelo qual cada um numa situação de
massas projeta seu ideal de ego para o líder e, desta forma, introjeta as características
do líder formando sua própria personalidade.

Isto não ocorre apenas no calor das manifestações de massa, como o próprio Freud
argumentou, mas cotidianamente através daquilo que denominou de “grupos
organizados” que produzem as condições para orientar a ação dos indivíduos numa
determinada direção, fazendo com que eles acreditem ser suas próprias opções
pessoais. Assim, operam como mediadores entre as classes e segmentos de classes e
os indivíduos que a compõem, algo que se aproxima da noção gramsciana de
aparatos privados de hegemonia.

Mas é exatamente aqui que incide nossa reflexão. Não podemos compreender este
momento, ou seja, aquele em que o indivíduo se vê diante de valores, princípios morais
e decisões a serem tomas, atitudes e comportamentos, como se fosse um processo
dual entre o indivíduo de um lado e as determinações mais gerais e sociais de outro.
Se assim fosse, como argumenta com razão Lukács, “toda conexão entre a existência
interior (ética) e a exterior (natural, social) do homem parece romper-se”. Por isso, ele
como nós, acreditamos que a vida ético-individual implica necessariamente uma
responsabilidade histórico-social.

Visto sob este ângulo não se trata de mera postura individual diante do mundo e do
universo aleatório de valores que a sustenta. Trata-se da adesão, consciente ou não,
às classes em luta e as perspectivas abertas no devir. Olhando sob o ponto de vista
estritamente racional não há sentido em uma senhora querer matar a presidente, uma
jovem querer cegar uma menina ou um professor universitário ficar contente com isso.
Mas quando olhamos na perspectiva das classes em luta, percebemos a necessidade
das classes dominantes de eliminar fisicamente seus opositores, destruir por todos os
meios a classe que pode, ao se afirmar, destruir as bases de seu domínio.

O mistério é a mediação. Afinal, como é que os interesses das classes dominantes


aparecem tão naturalmente como se fosse próprio da consciência destes indivíduos
que se orgulham de sua postura reacionária? A mediação que aqui opera é a ideologia.
As pessoas vivem as relações que constituem a sociedade e as interiorizam na forma
de valores, o que implica que os valores que constituem a visão de mundo dominante
são a expressão das relações sociais dominantes, portanto, compartilhados entre as
classes que são as personificações das diversas posições presentes nestas relações.

Quando as classes dominantes operam um valor ideológico, encontram a


correspondência nos valores que constituem a consciência imediata dos membros de
uma determinada sociedade. Uma vez que esta sociabilidade é cortada por
contradições, as diferentes posições de classe podem levar ao desenvolvimento de
processos de consciência que se choquem com a ideologia dominante, levando à
possibilidade de uma consciência de classe.

Ocorre que tal processo não é linear nem homogêneo. Ele depende da luta de classes
e de seu desenvolvimento, das determinadas configurações das classes e segmentos
de classe, assim como as disposições dos indivíduos em cada momento, que
encontram certas condições que podem formar suas consciências no sentido da
adequação ou da ruptura com o universo ideológico estabelecido. Quando as direções
da luta de classes optam pelo pântano da conciliação de classes, elas desarmam os
trabalhadores, que perdem sua autonomia e independência e se tornam presa da
ideologia.

Os segmentos médios atuam de forma muito particular nesse processo. Por sua
natureza de classe de transição, que oscila entre a burguesia e o proletariado, as
camadas médias desenvolvem a curiosa percepção de que estando acima dos
radicalismos das classes em luta representam a abstração da sociedade em seu
conjunto. Na luta concreta, entretanto, acabam sempre assumindo ora a posição dos
trabalhadores em luta, ora a necessidade conservadora das classes dominantes. Um
cenário no qual os trabalhadores abdicam de sua radicalidade, aceitando a premissa
pequeno-burguesa da “nação” ou do “povo”, ao contrario de atraí-los, produz
exatamente o momento que empurram os segmentos médios para a reação.

Estas considerações implicam em um posicionamento diante da conjuntura política e


as decisões a serem tomadas. A luta necessária pelo “Fora Temer”, implicará, num
primeiro momento, na luta pela antecipação das eleições, a não ser que alguém em sã
consciência queira Rodrigo Maia na presidência. No entanto, diante de tudo que foi
aqui argumentado, devemos nos preocupar muito com o caminho que nos conduzirá
neste campo de opções táticas. As eleições, sejam antecipadas para 2017 ou
realizadas em 2018 como o previsto, não tem o condão de legitimar o governo que
virá, seja qual for, e enfrentar as bases do problema que fratura a sociedade e a coloca
a beira do confronto.

É fundamental buscar recriar as condições para recuperar a autonomia de classe dos


trabalhadores, condição essencial para disputar as consciências e a sociedade. A
simples demanda pela alteração do calendário eleitoral, ainda que necessária, não nos
leva a isso. É necessário uma recusa, uma atitude de avaliação profunda dos limites da
democracia representativa e a forma que constrange os processos eleitorais na forma
como estão sendo realizados, uma mudança radical nas regras do jogo político, mas
isso não é possível na atual correlação de forças o que leva ao risco de novas eleições
serem o caminho para legitimar o governo usurpador ao contrário de questioná-lo.

Por isso, acreditamos que lutar pelo Fora Temer e a antecipação das eleições deve,
necessariamente se articular com a Greve Geral contra o ajuste e as medidas que
atacam diretamente os direitos dos trabalhadores e ameaçam a nossa existência
imediata e futura. Desta maneira estaríamos não apenas criando as condições para
uma possível reorganização de uma consciência de classe dos trabalhadores, como
diminuiríamos o espaço que o conservadorismo logrou impor nos segmentos médios.

As manifestações e protestos, por mais importantes que sejam, não têm a força
necessária para impor o “Fora Temer” com esta qualidade necessária que a recusa
dos trabalhadores em greve geral pode gerar. Ou o próximo período se abre como uma
consolidação da derrota, ou abrem-se duas possibilidades, uma por concessão do
Estado e buscando manter o desfecho nos limites da reprodução do existente, ou um
novo ciclo que se inicia sob a retomada da iniciativa dos trabalhadores redescobrindo
sua força. Esta última possibilidade implica na greve geral e em sua força.

O resultado imediato esperado, muito além da eventual vitória barrando uma ou outra
medida, é a criação das condições sociais e políticas que torne possível que os
indivíduos de nossa classe se sintam parte de algo maior e que lhe forneça as
condições para as escolhas éticas capazes de enfrentar a barbárie e voltar a sonhar
com um futuro emancipado, ao mesmo tempo que reduza o espaço para que
manifestações gritantes de desumanidade e arbítrio possam frutificar e lançar raízes
abrindo um período de retrocesso com consequências trágicas.

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