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Todo mundo tem seu quinhão de burrice no mundo e, se você não percebeu o seu,

cuidado: talvez você seja muito burro.

Entre os meus, está a incapacidade de entender o raciocínio de quem separa com


um abismo a teoria e a prática.

Jamais, em nenhum momento da minha vida, eu li ou ouvi qualquer coisa e pensei:


"isso é muito teórico".

Na verdade, o que ocorre é justamente o contrário: isso é muito fraco da teoria, está
impossível aguentar ler. Cheio de raciocínios inconsistentes. Ruim na observação
dos fatos. Incoerente.

Pra mim é tão óbvia a relação com a teoria que quando penso como eu penso o
mundo, a primeira coisa que penso é "o que é EU?", "o que é PENSO" e "o que é
MUNDO".

Mas isso é coisa minha.

Realmente, me sinto incapaz de ver como as pessoas que fazem a divisão veem.

Nos identitários estão nossas respostas

O título desta intervenção é já uma provocação. Ele fala na língua do adversário.

Na última década, vimos a profusão de movimentos minoritários ganhando novas


dimensões. Feminismo, movimento LGBT, movimento negro, povos indígenas e
ambientalistas não começaram suas lutas ontem. São movimentos que percorrem o
século XX e recebem diferentes “ondas” que aumentam suas intensidades. Desde
2013 e da emergência das plataformas digitais, parece nítido que todas essas lutas
ganharam novas intensidades.

Por esse prisma, a ascensão do bolsonarismo deixa de ser um enigma total.

Podemos entendê-la como uma resposta dos grupos cultural, social e


economicamente dominantes às lutas sociais deflagradas na última década. Seu
formato grotesco espelha a coalizão de interesses que o sustenta: contra os
indígenas, o agro e o fundamentalismo cristão; contra os negros, o poder policial
punitivo e a hegemonia da branquitude; contra as mulheres, o patriarcado cristão e
a masculinidade tóxica; contra a população LGBT, a perseguição e a calúnia do
discurso que lhes atribui a perversão sexual. A lista, obviamente, não termina aí. Há,
como diz Hill Collins, uma “interseccionalidade invertida” na convergência
bolsonarista.
Não por acaso, doa a quem doer, podemos dizer que Bolsonaro tem sim, ao
contrário dos tucanos que lhe antecederam, e mesmo dos militares, uma base
social.

Que ela tenha sido construída com mentiras, afetos desprezíveis, utilizando de
modo estratégico os algoritmos e alavancada por patrocínios obscuros, além da
tradicional complacência da mídia de centro-direita cujos temas principais, por
exemplo a corrupção, acabam a fortalecendo, tudo isso serve apenas para sempre
termos presente a assimetria comunicativa entre direita e esquerda. Mas não desfaz
a popularidade de Bolsonaro.

Por isso, surge de uns anos para cá uma resposta a esse conflito, apelidado entre
os conservadores de “guerras culturais”, que vem ganhando críticos nas fileiras da
centro-esquerda e da esquerda radical. Pelo menos três grupos se formaram:

1. uma esquerda mais liberal e racionalista, cuja adesão formal às pautas ditas
“identitárias” é afirmada, mas existe um questionamento dos métodos, da
forma de diálogo, dos excessos e da perda de vínculo com um tipo de
universalidade “cidadã”;

2. uma esquerda radical que forma aliança entre velhas lideranças de luta
marxista e um novo campo formado a partir de influencers, sobretudo
youtubers, com pontos de vista declaradamente comunistas, que veem as
“lutas identitárias” como um desvio do foco central: a luta de classes.
Segundo essa leitura, as políticas relacionadas com as lutas minoritárias não
seriam estruturais, atacando apenas com soluções cosméticas e servindo
como legitimadoras do capitalismo. Por isso, chamam em geral de
“pós-modernos” e “liberais” aqueles que as defendem;

3. uma nova direita fantasiada de esquerda, adepta das ideias do


tradicionalismo e simpática a ideias nacionalistas que flertam com o
integralismo, defendendo uma espécie de combinação invertida do chamado
“neoliberalismo progressista”, ou seja, um nacionalismo econômico
conservador.

Há pontos em comum entre (2) e (3), como a prevalência de um certo modelo de


masculinidade no seu campo militante, além de simpatias geopolíticas por regimes
autoritários como China e Rússia, sobretudo pela manutenção da civilização
industrial em primeiro plano e pelo confronto geopolítico com o poder americano.

Mas a pergunta é: será que a designação “identitário” dá conta do que está


ocorrendo no Brasil?
De fato, durante um tempo houve a prevalência de uma certa episteme
“pós-moderna” que poderia ser definida como uma combinação de afirmação da
diferença (de gênero, racial, de orientação sexual, mesmo de classe) cumulada com
a desconstrução dos estereótipos respectivos, mostrando a multiplicidade imanente
a cada grupo social, que é irredutível aos papeis sociais subalternizados e inclusive
violentados que são estruturalmente presentes no Brasil. O fato de a ênfase na
dimensão violentada ter ocorrido produziu algumas respostas caracterizando como
um movimento de “vítimas”. Isso, aliás, serviu de combustível para a direita
reacionária absorver termos como “vitimismo” e “mimimi” como resposta a demanda
pela interrupção da violência.

Além disso, na episteme pós-moderna ainda prevalecia o conceito de


“representação”, mediado linguisticamente, cuja contrapartida política era a
representatividade, a identidade e o lugar de fala. Na leitura da esquerda radical, é
precisamente este o ponto que limita as lutas “identitárias”: ao reduzir suas
demandas à representatividade, não haveria uma transformação estrutural, mas
apenas uma distribuição mais equitativa dos lugares. A própria estrutura não é
atacada. Racismo, misoginia, transfobia, homofobia ficam reduzidos a
“preconceitos” a serem desconstruídos. Falta, sobretudo, a classe.

A direita reacionária, por sua vez, quer afirmar sua “liberdade de expressão”: a
combinação entre interrupção da violência (física ou simbólica) e a
representatividade produzem a “ditadura do politicamente correto”.

Ainda há uma crítica ainda mais sofisticada ao ponto que percebe um essencialismo
entre essas lutas na escolha pela identidade, congelando papeis e estereótipos,
incentivando o ressentimento e eliminando as ambivalências. É a turma de devir, da
mestiçagem, do híbrido.

Entendo que todos esses diagnósticos estão profundamente errados.

A coalisão bolsonarista não deixou dúvida do seu caráter profundamente colonial. A


questão central do Brasil é um poder colonial que atua por meio da máxima
extração, com a exploração de recursos energéticos diversos (como a terra, os rios,
o trabalho), e pela indiferença às vidas “sem valor”. Por isso o Ministro Silvio
Almeida, no seu discurso de posse, afirmou em relação a diversos segmentos
marginalizados da população: “vocês existem”. O problema da exploração não é
apenas um problema na repartição final do produto do trabalho, que aliena o
trabalhador da sua obra e se apropria de fração maior por deter os meios de
produção, mas a manutenção da lógica da escravidão – de que o Outro (negro,
indígena, pobre, etc.) simplesmente não existe enquanto ser humano e, portanto,
não é sequer um sujeito a ser explorado.
É sob esse prisma que é possível entender o genocídio e o etnocídio que caem
sobre as populações afrodiaspórica e indígena.

Ou seja, além de o domínio se caracterizar pela economia política por meio de uma
superexploração escravista, há ainda um poder espiritual que quer se afirmar. Esse
domínio é a branquitude cristã, colonial e capitalista.

Quando se estabelecem as lutas minoritárias, é esse poder espiritual que é atacado.


Sua hegemonia é dilacerada em multiplicidades. A naturalização do gênero, que é a
contrapartida do poder patriarcal, é questionada a partir da auto-estilização queer e
da crítica feminista. O grande bloco monoteísta, cuja divindade é o
Deus-Capital-Branco, se multiplica nos politeísmos aterrados, nas confluências afro
e indígenas, na afirmação da diferença no modo de existir e se relacionar com a
natureza e a sobrenatureza.

Ou seja, se em algum momento houve a prevalência do “neoliberalismo


progressista” entre os movimentos sociais, hoje isso é coisa do passado. O que eles
propõem são novas filosofias capazes de nos re-situar em novos quadrantes
cósmicos. E, nesse sentido, o próprio léxico radical da emancipação e do progresso
é relativizado. Temos novas filosofias do encantamento, das confluências, novos
arranjos que rearticulam as próprias categorias modernas que serviram de base
para o marxismo.

É nesse sentido que devolvo a crítica ao marxismo: essas lutas são mais radicais,
mais estruturais, que o próprio marxismo. Elas não prescindem da crítica ao
capitalismo, ao contrário. Não veem nenhum mérito nele, sequer o tão comemorado
“desenraizamento” que figura como etapa inicial para a formação de uma
socialmente realmente livre, a do comunismo, quando a pressão econômica (da
“necessidade”) será superada. Na verdade, essas lutas colocam em dúvida a
antropologia filosófica de base do marxismo (e comum ao liberalismo), baseada no
humanismo de origem grego-judaico-cristã-moderno, em nome de novas
concepções cosmológicas que abrangem, inclusive, novos agentes como a própria
Terra/Gaia/Pachamama, os espíritos, os animais, os vegetais, os minerais. Essa
rearticulação cosmopolítica é muito mais radical que qualquer introjeção do discurso
ambientalista no marxismo, mesmo na forma de ecossocialismo.

Isso quer dizer que esses movimentos não têm limites, ambiguidades, ou que têm
um projeto pronto? Parece que não. É um processo de reabertura das virtualidades
que foram sufocadas pelo poder colonial, mantidas apenas na forma de
resistências, mas que podem ser reinventadas, reapropriadas, transformadas,
escaladas, enfim, que podem sofrer todo tipo de mutação oriundas de uma
libertação das suas potencialidades reprimidas.
Evidentemente, o projeto monolítico do progresso industrial e da grande classe
média é medíocre diante dessa ambição. Onde ele acusa os “identitários” de
trabalhar a favor do capital, revela apenas sua própria incapacidade de visualizar
para além de si próprio.

Se as contraculturas dos anos 1960 foram uma experimentação contra a sociedade


industrial, como dizia Marcuse, e redundaram em muitas transformações, mas
também em muitas práticas individualistas e quiçá foram apropriadas também pelo
neoliberalismo, isso não significa que não estejamos diante de uma nova geração
contracultural. Desta vez, a contracultura se confunde com a própria ontologia: não
é mais apenas o verso da “natureza”, entendido como algo externo – inóspito ou
romantizado – mas como uma nova polis para o cosmos que abrange aquilo que o
Modernidade ignorou.

É nos “identitários” que está a resposta. Não porque sejam “identitários” ou, muito
menos, liberais. Mas justamente o oposto: é neles que está a mais radical proposta
de transformação, uma transformação cósmica que atinge nossos modos de
existência e o próprio conceito de política.

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