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Na verdade, o que ocorre é justamente o contrário: isso é muito fraco da teoria, está
impossível aguentar ler. Cheio de raciocínios inconsistentes. Ruim na observação
dos fatos. Incoerente.
Pra mim é tão óbvia a relação com a teoria que quando penso como eu penso o
mundo, a primeira coisa que penso é "o que é EU?", "o que é PENSO" e "o que é
MUNDO".
Realmente, me sinto incapaz de ver como as pessoas que fazem a divisão veem.
Que ela tenha sido construída com mentiras, afetos desprezíveis, utilizando de
modo estratégico os algoritmos e alavancada por patrocínios obscuros, além da
tradicional complacência da mídia de centro-direita cujos temas principais, por
exemplo a corrupção, acabam a fortalecendo, tudo isso serve apenas para sempre
termos presente a assimetria comunicativa entre direita e esquerda. Mas não desfaz
a popularidade de Bolsonaro.
Por isso, surge de uns anos para cá uma resposta a esse conflito, apelidado entre
os conservadores de “guerras culturais”, que vem ganhando críticos nas fileiras da
centro-esquerda e da esquerda radical. Pelo menos três grupos se formaram:
1. uma esquerda mais liberal e racionalista, cuja adesão formal às pautas ditas
“identitárias” é afirmada, mas existe um questionamento dos métodos, da
forma de diálogo, dos excessos e da perda de vínculo com um tipo de
universalidade “cidadã”;
2. uma esquerda radical que forma aliança entre velhas lideranças de luta
marxista e um novo campo formado a partir de influencers, sobretudo
youtubers, com pontos de vista declaradamente comunistas, que veem as
“lutas identitárias” como um desvio do foco central: a luta de classes.
Segundo essa leitura, as políticas relacionadas com as lutas minoritárias não
seriam estruturais, atacando apenas com soluções cosméticas e servindo
como legitimadoras do capitalismo. Por isso, chamam em geral de
“pós-modernos” e “liberais” aqueles que as defendem;
A direita reacionária, por sua vez, quer afirmar sua “liberdade de expressão”: a
combinação entre interrupção da violência (física ou simbólica) e a
representatividade produzem a “ditadura do politicamente correto”.
Ainda há uma crítica ainda mais sofisticada ao ponto que percebe um essencialismo
entre essas lutas na escolha pela identidade, congelando papeis e estereótipos,
incentivando o ressentimento e eliminando as ambivalências. É a turma de devir, da
mestiçagem, do híbrido.
Ou seja, além de o domínio se caracterizar pela economia política por meio de uma
superexploração escravista, há ainda um poder espiritual que quer se afirmar. Esse
domínio é a branquitude cristã, colonial e capitalista.
É nesse sentido que devolvo a crítica ao marxismo: essas lutas são mais radicais,
mais estruturais, que o próprio marxismo. Elas não prescindem da crítica ao
capitalismo, ao contrário. Não veem nenhum mérito nele, sequer o tão comemorado
“desenraizamento” que figura como etapa inicial para a formação de uma
socialmente realmente livre, a do comunismo, quando a pressão econômica (da
“necessidade”) será superada. Na verdade, essas lutas colocam em dúvida a
antropologia filosófica de base do marxismo (e comum ao liberalismo), baseada no
humanismo de origem grego-judaico-cristã-moderno, em nome de novas
concepções cosmológicas que abrangem, inclusive, novos agentes como a própria
Terra/Gaia/Pachamama, os espíritos, os animais, os vegetais, os minerais. Essa
rearticulação cosmopolítica é muito mais radical que qualquer introjeção do discurso
ambientalista no marxismo, mesmo na forma de ecossocialismo.
Isso quer dizer que esses movimentos não têm limites, ambiguidades, ou que têm
um projeto pronto? Parece que não. É um processo de reabertura das virtualidades
que foram sufocadas pelo poder colonial, mantidas apenas na forma de
resistências, mas que podem ser reinventadas, reapropriadas, transformadas,
escaladas, enfim, que podem sofrer todo tipo de mutação oriundas de uma
libertação das suas potencialidades reprimidas.
Evidentemente, o projeto monolítico do progresso industrial e da grande classe
média é medíocre diante dessa ambição. Onde ele acusa os “identitários” de
trabalhar a favor do capital, revela apenas sua própria incapacidade de visualizar
para além de si próprio.
É nos “identitários” que está a resposta. Não porque sejam “identitários” ou, muito
menos, liberais. Mas justamente o oposto: é neles que está a mais radical proposta
de transformação, uma transformação cósmica que atinge nossos modos de
existência e o próprio conceito de política.