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Ao conversar com colegas advindos de outras faculdades brasileiras de exatas,
constatei como em nenhuma delas o trote é tão levado a sério e pedagógico quanto
no ITA, a ponto de o caráter lúdico, de zoeira, ser relegado ao acessório. É como se
houvesse uma dupla formação. De um lado, as aulas e os cursos formais oferecidos
pela instituição, o lado “aluno do ITA”. Do outro, uma formação paralela, que não se
aprendia em sala de aula nem era ensinada pelos professores, transmitida
cuidadosamente durante os cinco anos, através da participação ativa na
comunidade de alunos. O trote assumia um papel estruturante nessa segunda
formação, a educação sentimental pela qual passava o primeiro ano. Esse segundo
lado é o iteano propriamente dito. A bem da verdade, as aulas e os professores do
ITA nem eram (são) tão bons assim, os laboratórios e as ementas não estão à frente
de algumas outras faculdades de engenharia do país. O diferencial do iteano está
nessa segunda formação, ante o que as aulas e notas são secundárias. Porque o
longo percurso do trote no ita não se resume ao ritual iniciático. Também envolve o
aprendizado de truques e de práticas associadas ao estudo eficiente, a saber onde
buscar saberes (know-where), com quem contar no processo (know-who) e como
aplicá-los de maneira eficaz (know-how). O bicho aprende primeiro os modos de
assimilação e de aplicação dos saberes, a estudar em grupo, a potencializar a
pesquisa acessando materiais herdados de turmas anteriores e a expandir
constantemente sua trama de contatos. Um dos elementos mais caros aprendido no
trote é a chamada “disciplina consciente”, um complexo código de condutas
cobrindo desde a ética do compartilhamento de conhecimentos e de tecnologias, até
o dever de não trapacear entre iteanos ou no âmbito do instituto — falta gravíssima
penalizada com imediata excomunhão.

Tudo isso tem razão histórica de ser. O ita foi fundado em 1950, no alvor da década
nacional-desenvolvimentista no Brasil. O binômio de modernização e
democratização do nacional-desenvolvimentismo repercutia na matriz organizativa
do ita, que havia sido projetado para se tornar o “MIT brasileiro”. Quanto ao polo da
modernização, copiavam-se alguns elementos da vida do campus das
universidades de elite americanas, com a reprodução das tradições quase
maçônicas, cultivadas turma após turma para dotar o alunado de um capital cultural
confiável e duradouro. De fato, ao abrasileirar-se, a diretriz modernizadora consistia
em formar uma aristocracia técnico-científica coesa, nacionalista, para guiar a
marcha do Brasil ao progresso e melhor posicioná-lo no concerto das nações,
conforme as oportunidades que se entreabriam naquele período prospectivo.
Quanto ao aspecto da democratização, desde que o ita foi fundado, o governo não
só garante o caráter gratuito e público do ensino, com também um vestibular
nacionalizado, voltado a captar estudantes de todas as regiões do país. Além disso,
o governo subsidia um robusto programa de assistência estudantil, que engloba
alimentação, saúde, moradia e uma pequena renda (porém significativa para um
jovem de dezoito anos), em troca da exigência da devoção aos estudos.
Nas décadas seguintes à da fundação do ITA, emergentes contextos nacionais e
internacionais rasgaram o pano de fundo nacional-desenvolvimentista existente na
fundação do instituto, de modo que as ideias-guias passaram a pairar sobre outras
realidades em movimento. Nem por isso, o conjunto de atos de fala e de rituais
embutidos na formação do iteano veio a ser alterado. Pelo contrário, agarrou-se a
eles como fiadores da substância da instituição diante das transformações do
entorno, a fim de sustentar o principal, pois o segredo do ita sempre fora a formação
diferenciada do iteano. Por isso, os itinerários do trote mantiveram-se intocados,
atravessando as décadas até, pelo menos, o período em que lá estive, no final dos
anos 1990. Percebia um empenho grande, e até orgulho da comunidade em
preservar as tradições em sua literalidade, sem reparos a fazer nos conteúdos do
trote (apesar das punições sazonais por “excessos” ou quando “violento”). (...)

Em "Um departamento francês de ultramar" (Paz & Terra, 1994), Paulo Arantes
descreve os mecanismos de formação da geração de filosofia e letras da usp à
época da ffcl, situada na rua Maria Antônia. Na minha intepretação, Paulo descreve
duas formações articuladas do uspiano naquele contexto. De um lado, o percurso
institucional, com aulas, provas e regramentos acadêmicos formais. Do outro lado, a
educação sentimental, uma experiência menos cerimoniosa — nem por isso menos
formalizada — associada a mesas de bar, a seminários dedicados e a uma rede de
relacionamentos que punha rápido o aluno da usp em contato com as elites
intelectuais da comunidade, que se estende para outras gerações e épocas. Além
disso, no mesmo livro, Paulo confere uma importância ímpar ao ensino da
explicação de texto à francesa, tal qual praticada por próceres do método, como um
Martial Gueroult. Ao ser adestrado no rigor disciplinar da academia filosófica
francesa, o estudante angariava um conjunto de ferramentas que o tornava
capacitado para filosofar sobre o que quer que quisesse. No fundo, os conteúdos
específicos não importavam senão na medida em que a partir da sua lenta digestão
conceitual, em matutação paciente, se depreendia um método que terminava por
elevar o estudioso ao patamar transcendental ou maturidade autorreflexiva — como
no arco psicológico de um Bildungsroman. Em suma, aprendia-se a aprender,
ensinava-se a filosofar — intransitivamente.

Ao ler essas passagens pela primeira vez, fui acometido por um dejà vu, pois
ressoava com a dupla formação do iteano que eu havia vivenciado alguns anos
antes. Analogamente, só que para o campo das ciências aplicadas, o principal
aprendizado do iteano também não é um conteúdo específico (técnico-científico),
um conteúdo curricular sintetizado pelas ementas das matérias e cursos, mas
tornar-se uma máquina capaz de processar quaisquer conteúdos aplicativos que
sejam, para extrair-lhes rotinas de otimização e de modulação da eficiência. Assim
como o uspiano da Maria Antônia se tornava capaz de deduzir de qualquer sistema
filosófico a sua gênese, o conceito; o iteano acedia ao nível do engendramento dos
problemas técnicos e prático-científicos. No decurso do trote do ita, por sinal, se
costuma pontificar que a fórmula — digamos, de cálculo, aerodinâmica ou
estatística — não importa. O que deve interessar ao iteano é como se chegou à
fórmula, porque aí se poderá alterá-la, se poderá compreendê-la no meandro
genético. O caso para o iteano não é decorar a fórmula e saber aplicá-la, como
“qualquer outro engenheiro” poderia fazê-lo, mas aprender de onde ela surgiu e por
que,quais são as equações, axiomas e premissas embutidas. Eis o surplus
metodológico que eleva o iteano ao estatuto de senhor do processo como um todo,
e não mero operador do já constituído.

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