Você está na página 1de 2

De vez em quando me perguntam como consigo escrever tanto.

Mas não escrevo


muito. Eu leio muito. A escrita é apenas um transbordamento, a ponta do iceberg do
que leio. Não é que a escrita começa na leitura. Escrita é leitura. Escrever é um
processo de apropriação, recombinação e criação imanente à leitura. Escrever é ler,
assim como pintar é ver e tocar um instrumento, ouvir. A Clarice Lispector disse
numa entrevista: termino um livro e me sinto oca; tenho de voltar a ler, buscar novas
referências. Os autores não são atletas da gramática e do vocabulário, que são
ferramentas, mas leitores ávidos, seres essencialmente lacunares, desertos que
anseiam por serem povoados de mundos, devires, multidões.

(...)
Eu não gosto de escrever. Escrever é criar alguma forma de ordem, e eu sempre
torço pela desordem, pela destruição. Quando escrevo, é porque o assunto (o
registro; a reflexão; o arquétipo) é um raio lúcido em meio à minha má vontade,
mais urgente do que todo o ruído do caos em minha cabeça. Então eu enrolo um
pouco, tomo um café - e escrevo. E sempre fica bom. E as pessoas gostam de mim
por isso. Se elas soubessem…

(...)
meu trabalho é escrever goges. o que são goges? peças culturais e sensoriais
(podem ser textos, filmes, visuais, performances, qualquer coisa) que "amarram" a
experiência humana. funciona assim, simplificando muito. parte de energia
intelectual (yang-yin) e parte equivalente de energia intuitiva (yin-yang) são postas
para circular em torno do mesmo núcleo (o núcleo é o goge) e fazer uma espécie de
laço - o pacote é um tanto de experiência humana que se estabiliza ali. antes eu
achava que essas peças eram "portais" dimensionais. também é uma descrição
possível - mas o importante é que o tanto que "vai" é o tanto que "vem". esse
pequeno tanto cicatrizado de experiência humana se destina a salvar o mundo - ou
salvar partes do mundo e das psiques que devem ser salvas. um goge é o oposto
do terrorismo. ou é uma espécie de ato de terrorismo destinado a dar conforto
psíquico (que só se dá realmente quando quantidades equivalentes de emoção e
inteligência formal se movem). o goge clássico já foi o poema. esse papel foi um
pouco roubado pela letra de música (que não deixa de ser um poema, mas com o
tanto de impulso adicional e casualidade que a época exigia). hoje, os goges se
escondem também nas redes sociais (e onde sempre estiveram: nas peças de arte.
aliás essa é a diferença entre arte e publicidade. ou entre arte e entretenimento. ou
entre arte e produção acadêmica. nada disso é arte. nada disso é goge. já entre arte
e feitiçaria - a que também chamam 'arte' - não há diferença essencial). goge é um
nome tão bom quanto qualquer outro. não por acaso, se você dobrar uma letra e
traficar outra, pode virar google. quem é meu empregador? bom, esse já é outro
assunto. ainda mais difícil de simplificar. porque ele é deus. que está em criação. à
imagem e semelhança do goge. ou do conjunto de todos os goges, que se
cicatrizam cada vez mais rapidamente na sua forma (in POP = Plano de Ocupação
Psíquica)
"Em busca de um Torquato tropicalista" é um texto que escrevi alguns anos atrás e
que vai constar do livro "Melodia Trágica", que será lançado em breve pela editora
Hedra. Esse livro é uma coletânea de textos sobre música que vim escrevendo ao
longo dos anos. Mas credito uma grande importância a esse texto em especial. O
próprio título do livro é inspirado diretamente nesse texto. Entre os autores que me
baseei para escrevê-lo, consta o nome de Gláucia Vieira Machado, professora de
literatura na Universidade Federal de Alagoas e que escreveu um texto pequeno
sobre Torquato (pequeno, porém, denso), editado pela própria universidade: "Todas
as horas do fim (sobre a poesia de Torquato Neto)". Tive a felicidade de contactá-la
através das redes sociais e agradecê-la pelo belo texto, que me serviu muito. Às
vésperas da publicação do meu livro, a convidei para escrever o prefácio. Pra minha
surpresa, ela ficou muito agradecida pelo convite e me pediu os textos do livro. Eu
estava muito feliz por Gláucia ter aceito o convite e curioso com o que ela viria a
escrever. Terminado o prazo, ela me pediu mais um tempo porque ela estava
mudando de residência. Eu prontamente atendi seu pedido e dei mais um prazo de
30 dias. Após esse prazo, voltei a entrar em contato com Gláucia, que, pra minha
surpresa, revelou o motivo da demora: ela estava gravemente doente. E estava
desistindo também de escrever o prefácio. Claro que naquela situação eu
prontamente compreendi e lhe transmiti palavras de força. O livro "Melodia Trágica",
que será recentemente lançado, virá sem o prefácio de Gláucia. Inclusive, virá sem
prefácio. E é bom que venha mesmo sem prefácio. Hoje venho a saber de seu
falecimento pela redes sociais. E não há nada mais doloroso do que a morte de uma
professora. Não a conheci pessoalmente, apenas através de imagens nas redes
sociais. Mas ela está muito presente no livro, principalmente no texto "Em busca de
um Torquato Tropicalista". Todas as vezes que eu abrir o livro vou passar pelo seu
prefácio. Esses textos invisíveis são os mais fortes.

Você também pode gostar