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Um começo, meio que no fim

Clarisse Lyra1

Sou fiel aos acontecimentos biográficos.


Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não me largam!
Ana Cristina Cesar

Durante um tempo, pensei em começar a minha tese assim:

Quando começa a tese?


Não é certo que ela comece com a aprovação no processo seletivo para
ingresso no Doutorado. Esse momento, marcado por uma série de necessidades
contingentes, é como uma porta se abrindo. E não muito mais. Tampouco é certo
que ela comece a partir da data da primeira matrícula. Então, o percurso pelas
disciplinas ainda marcará uma série de pensamentos derivantes, estudos
prévios, e o tempo, ah o tempo, este fator, parece estar inteiro à disposição pela
frente.
Não estou certa de quando tem início a tese. Mas posso recuperar
algumas cenas, não são mais que imagens, que me aparecem, são convocadas
enquanto eu penso: quando surgiu a tese?
Alguém está morrendo no sofá. O sofá está numa sala, onde há também
uma mesa, e estou sentada nessa mesa lendo os diários de Alejandra Pizarnik. É
uma casa estranha para mim. Não me é familiar. Mas eu tento ocupá-la: vou ao
quintal fumar um cigarro, sento à mesa e sigo, começo, o trabalho; preciso dizer
ao tempo da morte que enquanto ele avança eu sigo, leio, anoto, me ocupo. A
morte avança com tanta lentidão a ponto de eu pensar que preciso me ocupar,

1
Poeta e tradutora. Texto publicado no n. 1 da Revista Capivara. Disponível em:
https://www.revistacapivara.com/um-comeco.
trabalhar; e ao mesmo tempo avança numa velocidade exasperante, que não se
mede em horas nem minutos; se mede talvez na perda de volume.
Eu sigo lendo. A morte não se aproxima de mim. Não é de mim que ela se
aproxima. Anoto: como era burguesa la Pizarnik; anoto: braguetas; _____;
_____: pesquisar. E enquanto segue o desfile de angústias juvenis de Alejandra
Pizarnik em seus 19, 20, 21 anos, enquanto ela coqueteia com o suicídio nas
páginas de seu diário íntimo, eu vejo a morte se aproximar, em sua lentidão e
sua velocidade absolutas. Até o momento em que eu fecho o diário.
Mas a tese não começa aí (com essa cena). Há muitas outras cenas, como
havia muitas outras teses. Mas para esta tese aqui (que não exclui todas as outras
teses imaginadas; que de algum modo porta todas as outras) essa cena foi uma
espécie de injunção, algo inescapável, que se agarrou ao imaginário do tecido da
escritura. A cena mostrou alguns limites, e esses limites exigiram ser pensados.
Porque sim: o tempo do trabalho é o tempo da vida; o tempo da escritura é o
mesmo das conversas com amigos, das cervejas, dos cafés, das idas ao cinema.
Mas e o tempo da morte? Ele permite ser ocupado enquanto se assiste ao seu
desenrolar? Ele permite que não se perca tempo, que se distraia e se produza
em seu intervalo?

Escrevi esse texto como um começo; depois desisti. O gênero acadêmico, as boas
maneiras e o bom senso preconizam a discrição e a reserva, que se fale do
acontecimento sem jamais nomeá-lo, especialmente se ele toca o limite (e o
acontecimento sempre toca) entre as preocupações estritamente intelectuais e o plano,
digamos, da vida. Mas, diante da necessidade de expressar algo (e aqui a "expressão"
carrega sim toda a carga patética que a crítica e a teoria literárias às vezes se esforçam
em abominar), não nomear, não confessar, pode ser simplesmente torturante. Na
hesitação absoluta, entre dizê-lo ou não o dizer, entre o apropriado e o esdrúxulo, o
sensato e o apelativo, a tentação do ridículo, a pieguice canalha, caí no poço sem fundo
da indecisão, no marasmo da afasia.
Agora a minha tese começa assim: com um escrito de Mirtha Dermisache, com
uma rasura, e com uma pergunta sobre o que significa dar a ler uma rasura, um tachado
que fala, embora não se conheça a sua língua. Em meu texto de qualificação, o escrito
de Dermisache já estava presente, mas como epígrafe final, encerrava o texto cheio de
lacunas. Na última página, sem ser explorada, a imagem aparecia como sintoma, mais
psicanalítico (devo admitir) do que textual.

Mirtha Dermisache, Fragmento de Historia, 19742

Dar a ler um borrão, uma rasura. Por um lado, o desenho gráfico não
corresponde a nenhum alfabeto conhecido, ao mesmo tempo há o gesto importante de
riscar, tachar aquilo que já não poderia ser decodificado. Em Hilda la polígrafa o La
bucanera de Pernambuco, Pizarnik utiliza um neologismo oximoro que condensa o
processo radical de escritura que ela desenvolve neste livro e que pode servir também,
para além da sua própria elaboração, como uma definição bastante adequada a textos
como o da imagem acima: escriborrotear – que Tamara kamenszain deslindará em

2
Página de: Fragmento de Historia, 1974. 2010. Impressão offset sobre papel. 30 x 20,2 cm.
Disponível em: http://mirthadermisache.com/index.php. Acesso em 08 de dezembro de 2017.
escribir + borrar + abarrotar, e ao qual nós poderíamos ainda adicionar borronear. Por
muito tempo, era isso o que eu desejava entregar, já que tinha de entregar algo: um
borrão, uma página em branco, um parágrafo rasurado, cem páginas rasuradas, uma
coleção de citações, uma mesma frase mil vezes repetida, qualquer coisa que fosse a
entrega, que se desse a ler, que significasse algo, sem que, ao mesmo tempo, eu tivesse
de dizer qualquer coisa, qualquer coisa que se escrevesse em uma língua, toda a língua
repentinamente anódina, toda frase de uma hora para outra fútil, desnecessária,
sobrante, um dicionário inteiro, toda uma gramática inutilizados por uma só convicção:
a de que não vale a pena dizer nada, a de que não há nada a ser dito e a da falta de
vontade de dizer qualquer coisa, depois de tudo. A página de Mirtha Dermisache e os
procedimentos de poetas e artistas visuais agrupados às vezes sob o nome de escritas
insignificantes – um conceito praticado por escritores cujas obras consistem em grafias
inventadas, rasuradas, poemas ilegíveis, livros desfeitos, cópias sobrepostas página a
página que impossibilitam a leitura ou a mera decifração dos signos e que, mesmo assim,
mesmo sendo “textos” completamente ilegíveis, completamente sem significado
possível dentro da língua, são publicados, são expostos, são dados a ver –3 me
apareceram como a tradução do que eu gostaria que fosse a minha tese: dizer tudo, sem
que uma palavra fosse dita. Não está tudo suficientemente claro?
O que parece é que não, nada nunca está suficientemente claro. “Não falasse eu
que ninguém pensa / por si próprio / não tinha que me fazer explicar”, diz um poema de
Júlia de Carvalho Hansen.4 O simples fato de estar no mundo – quem dirá falar qualquer
coisa – parece já requerer suficiente explicação. E este é, precisamente, dizem, o
trabalho acadêmico, o trabalho pedagógico: a explicação infinita. Explicar o mundo, os
objetos textuais, seu funcionamento, suas relações. Rancière, em O mestre ignorante,
narra o espanto de Joseph Jacotot ao perceber como se deposita na figura do professor
e especialmente na explicação oral a capacidade de fazer entender um conjunto de
palavras escritas que, por si só, deveriam dizer algo a quem se propõe a entrar em
contato com elas. A esse princípio de regressão ao infinito Rancière chamou de lógica
explicativa.5 E quanto a se fazer explicar? Armadilha das mais cruéis, uma vez que algo

3
Ver: https://www.graphs.com.br/.
4
HANSEN, Júlia de Carvalho. Seiva, veneno ou fruto. Belo Horizonte: Chão da feira, 2016, p. 14.
5
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lilian
do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
ultrapassa a barreira dos dentes. “Nunca es eso lo que uno quiere decir” (poesia, p. 398),
diz um poema de Pizarnik; “Después de hablar o de escribir siempre tenía que explicar:
– No, no es eso lo que yo quería decir” (poesia, p. 403), diz outro. Impossível seguir o
curso de um discurso até o fim, especialmente o próprio discurso, se o fundo não existe.
Com isso estão de acordo Vilém Flusser,6 quem duvida de que exista o algo, objeto da
verdade, e Roland Barthes,7 quem diz que, assim que se pensa, a linguagem se torna
corrosiva, revelando o escalonamento infinito de seus graus. E quanto ao silêncio, como
explicá-lo? Está tudo bem com o silêncio, contanto que se fale muito a seu respeito,
contanto que ele seja conceituado bem direitinho, contanto que ele seja o fundo
inacessível, a meta de ouro, um puro silêncio desejado e impossível. O silêncio, segundo
Susan Sontag, existe como mito e como termo retórico, mas não existe literalmente
como a experiência de um público, tampouco como propriedade de uma obra.8 Já
Levinas dirá que não poder contemplar em silêncio justifica a atividade crítica.9 Sem falar
em ter que explicar que ninguém pensa por si próprio – quantas palavras de outros,
quantos outros, as palavras sempre as mesmas, seriam mobilizados numa explicação
deste tipo? Entretanto, conhecemos a clarividência com o nome de “autoexplicativo”.
Mas há alguns parágrafos atrás, naquele texto escrito como um começo da tese,
eu fui cruel com Alejandra Pizarnik. Decerto, num momento, ler o seu diário, ler os seus
poemas dedicados a certas imagens funerárias me pareceu indigesto, frente ao
desenrolar real (para mim) da vida/morte. Mas depois, em outro momento, abrir de
novo o seu diário, reler a sua poesia completa, se tornou simplesmente insuportável,
angustiante, algo com cuja força autodestrutiva e desestabilizadora de qualquer
segurança depositada na linguagem eu não conseguia lidar, não conseguia enfrentar. O
distanciamento que requer um trabalho de análise textual, o distanciamento que
anteriormente me permitia pensar o seu “desejo de não escrever escrevendo” – como
define Tamara Kamenszain –10 como um tema interessante a ser investigado em

6
FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2010.
7
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003, p. 79-80
8
SONTAG, Susan. “A estética do silêncio”. In: SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. Tradução de João
Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
9
LEVINAS, Emmanuel. La realidad y su sombra. Tradução de Antonio Domínguez Leiva. Madrid: Trotta,
2001, p. 44.
10
KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesía. Buenos Aires: Norma, 2007, p. 108.
cruzamento com trabalhos de outras autoras e autores escorreu para algum lugar muito
distante da minha relação com a sua obra, na qual eu depositei então uma antipatia
terrível. (Engraçado vir essa palavra agora, antipatia, talvez o oposto do expediente de
identificação extremamente pueril que provavelmente realizei nesse momento.
Engraçado como para não confessar vem do fundo do repertório linguístico uma palavra
tão antiquada, que eu mesma não uso há anos, embora a tenha lido recentemente num
diário do final do século XIX, e, devo dizer, tenha achado no contexto o seu uso
simpático).
Laura Erber relata uma experiência parecida com a leitura de Pizarnik, parecida
e oposta ao mesmo tempo. Em 2005, ela realizou um vídeo-instalação chamado
“História antiga”, em que uma mão sádica põe (e logo retira) sobre uma página da poesia
completa de Alejandra Pizarnik um peixe vermelho vivo.11 O peixe se debate, procura
respirar movimentando freneticamente suas guelras; a mão o deixa sofrer por alguns
segundos, deixa-o buscar o ar, pular erraticamente, e então o apanha para algum canto
que não vemos. Enquanto o peixe salta, divisamos algumas palavras de Pizarnik, um
título, pedaços de versos, reconhecemos um poema ou outro. No momento máximo da
tortura, a mão tenta decalcar o contorno do peixe sobre a página com uma caneta, o
contorno desse corpo, mas a movimentação dele impede que os círculos se fechem, eles
vão se entrelaçando, formando uma figura abstrata. Nas últimas tomadas do vídeo, a
página é inundada, e os peixes, colocados ali, podem agora respirar e nadar tranquilos,
enquanto lentamente a tinta com que se imprimiu o poema vai sendo borrada; o papel
vai aos poucos se desfazendo, soltando minúsculos pedaços na água; o texto vai se
apagando como um sonho, se tornando uma lembrança vaga, e a mão agora é
voluptuosa em colocar um e outro peixe ali, em fazer vê-los nadar (e viver) contra a
permanência da escritura. É um vídeo curto, de pouco mais de cinco minutos.
Gostei de ver esse vídeo, que me parecia descrever e metaforizar (uma metáfora
bastante real na verdade; não sei como fica o conceito de metáfora no caso de uma
experiência-limite, uma performance que parece pôr em jogo a vida de um ser vivo) o
sentimento que me acompanhava de que, para viver, talvez fosse necessário fechar o
livro; de que, para escrever sobre Pizarnik, talvez fosse necessário esquecer Pizarnik. Em

11
ERBER, Laura. “História antiga”. Disponível em: http://revistacarbono.com/artigos/03historia-antiga-
lauraerber/.
novembro de 2017, Laura Erber publicou um texto sobre sua relação com a obra da
poeta e descreveu a realização do vídeo como um modo de “jogar o livro contra suas
próprias imagens de regresso e crueldade”.12 Tendo lido a Poesía completa, organizada
por Ana Becciú, mais de trinta vezes em um ano, Laura Erber sentia-se aprisionada nesse
livro, tonta e torturada por seu enlaçamento radical entre poesia e morte. Tentar
abandoná-lo era se ver abrindo-o mais uma vez, recaindo em sua vertigem insistente. O
vídeo-instalação, então,

era uma resposta ao círculo vicioso de leitura, mas era também um


modo de tentar sair do sofrimento da abstração – Pizarnik chega a
dizer que é possível morrer por abstração – e tocar as palavras com o
corpo, tratá-las como substância. Felizmente, o vídeo teve também
um efeito libertador e há muitos anos não o abro.13

Para Erber, então, a questão era como parar de ler o livro, como se libertar desse
objeto que parecia mais uma armadilha, um brinquedo perverso. Para mim, ao
contrário, que tinha firmado um compromisso de relativo longo prazo com ele mediante
um projeto de pesquisa aprovado por uma banca avaliadora e financiado por uma bolsa
de pesquisa, o problema era como conseguir lê-lo; como percorrer suas páginas com
disposição e serenidade suficientes para ter ideias, para pensar outro texto a partir dele.
Para isso seria necessário não enjoar, não me aborrecer, não tremer nem vacilar a cada
pequena leitura, fatalmente interrompida. A questão era como desenvolver, criar, tirar
sem saber de onde uma outra relação com essa escrita, já que nesse ponto ela tinha sido
atravessada, para mim, por uma onda de angústia, e só. Este texto é ainda parte dessa
tentativa.
Ainda no artigo que venho citando, Erber realiza uma leitura da obra de Pizarnik
que é talvez a melhor crítica que já li a seu respeito, e gostaria de colocá-la aqui pelo
tanto que ela pode falar sobre a natureza de suas tensões e sobre o tipo de
consequências que a sua leitura intensiva pode gerar, muito embora eu não vá comentá-
la extensivamente, não por enquanto:

12
ERBER, Laura. “Pizarnik e a busca por uma saída”. In: Suplemento Pernambuco, n. 141, novembro de
2017, p. 18-19. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1987-pizarnik-e-um-
livro-sem-saída.html.
13
ERBER, Laura. Op. cit., p. 19.
A percepção da linguagem como um objeto enfeitiçado não torna
Pizarnik uma poeta maquiavélica, que exploraria oportunisticamente
o mito romântico e a própria depressão para produzir afinal uma
poesia de efeitos, cerebral, feita de meros jogos virtuosos de
linguagem. Que o lirismo seja algo distinto de uma poética da
subjetividade inflada e autoflagelante e que possa, em certos casos,
converter-se numa experiência que margeia a loucura e a perda de si,
não faz dela uma experiência livre de efeitos sérios para quem escreve
tanto quanto para quem lê. Pizarnik, sendo uma poeta mulher,
diferente dos surrealistas franceses, mostra que a fragmentação do
sujeito pode se traduzir em uma espécie de desmaio sucessivo, em que
a linguagem é a espessura fina que recebe o eu incessantemente em
queda da escritora. O que se toca ao tocar a morte com a linguagem?
A essa pergunta que ronda diabolicamente seus poemas e seu diário,
Pizarnik responde multiplicando os paradoxos que a questão envolve,
dando-lhe uma formulação mais difícil: como matar aquilo que nunca
teve uma vida plena, em suma, como matar um fantasma?

Como matar um fantasma se torna, pois, a questão. Ou como dar aos mortos o
lugar dos mortos – e saber dar aos vivos o lugar dos vivos. Ou, ainda, como matar um
fantasma na acepção psicanalítica da palavra, aquela fantasia criada em vigília que pode
ir do puro deleite – um romancinho de bolso que pode ser aberto a qualquer momento,
em qualquer lugar, como diz Barthes –14 à projeção de um monstro de expectativa e
terror: o fantasma da Tese, por exemplo: do delírio da aprovação e do reconhecimento
ao pavor de não conseguir escrever; um romance do imaginário cujas grandes
elucubrações volta e meia terminam no fracasso. Para matar esse fantasma seria preciso
talvez compreender que a tese está se escrevendo sempre, mesmo que ela esteja
sempre por vir, mesmo quando se imagina estar adiando a “verdadeira” tese por falta
de tempo, por falta de recursos, por falta de algo qualquer que se julgue como
extremamente necessário. Para isso seria preciso talvez aprender com La novela
luminosa, de Mario Levrero, com A preparação do romance, de Roland Barthes, mesmo
com os poemas de Pizarnik – definidos por ela em seu Diário como fragmentos
oferecidos a seus leitores para que se distraiam enquanto ela não escreve a sua grande
obra, um romance sólido, um colosso da língua – que a promessa do texto já é o texto,
que o jogo com o fantasma é sempre inexato e que enquanto há rascunho há sempre
um caminho sendo aberto.

14
BARTHES, Roland. Op. cit., p. 101.
Quando esse sentimento de impossibilidade de seguir lendo Alejandra Pizarnik
me angustiava, há um tempo, e eu tentava sair dele, me lembrei de um texto de Roberto
Bolaño, “Un narrador en la intimidad”, em que ele utiliza a metáfora da cozinha literária
para falar derrisoriamente de seu processo de escritura. Bolaño descreve a sua cozinha
literária como um cômodo vazio e sem janelas, que às vezes se transforma num castelo
medieval e às vezes toma as proporções de três estádios de futebol onde estão expostos
todos os seres vivos de que dispõe ou já dispôs a terra. Como de costume, ele aproveita
o ensejo para ditar aquilo que se espera ou não se espera de um escritor – o plágio
aparece então como o crime capital –, e finalmente em sua cozinha resta apenas uma
figura, um guerreiro que luta a sua luta corajosamente sem esperança de vitória. Esse
texto menciona (acredito que pela única vez em toda sua obra) Alejandra Pizarnik, e
voltei a ele com a memória assertiva e equivocada, como se provará, de que Bolaño
afirmava que, por algum motivo, não desejava de maneira alguma viver na cozinha
literária de Pizarnik. Fui atrás do livro em busca de solidariedade. Qual não foi minha
surpresa ao redescobrir exatamente o contrário do que minha memória registrara:

Si tuviera que escoger una cocina literaria para instalarme allí durante
una semana, escogería la de una escritora, con la salvedad de que esa
escritora no fuera chilena. Viviría muy a gusto en la cocina de Silvina
Ocampo, en la de Alejandra Pizarnik, en la de la novelista y poeta
mexicana Carmen Boullosa, en la de Simone de Beauvoir. Entre otras
razones, porque son cocinas que están más limpias.15

Além da decepção primeira de não encontrar ali o que eu buscava – um


argumento, uma voz amiga endossando e compadecendo junto comigo a experiência
sufocante de passar muito tempo dentro da cozinha literária de Pizarnik; além de ser
apenas isso, uma menção e nada mais, sequer particularizada ou comentada em relação
às outras autoras tão díspares citadas; não poderia ser maior o meu espanto diante da
razão alegada. O que significa dizer que as cozinhas literárias das escritoras são mais

15
BOLAÑO, Roberto. “Un narrador en la intimidad”. In: BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Barcelona:
Anagrama, ano, p.
limpas que as dos escritores? O que pode querer dizer isto além de reafirmar o papel
doméstico da mulher, mesmo a intelectual, cuja higiene é brandida como valor máximo
do feminino, enquanto os homens podem continuamente se reconfortar em sua fingida
desatenção a detalhes da própria sujeira, enquanto esperam por uma mulher que limpe
seus dejetos enquanto se concentram em atividades cerebrais, depois de saciada a
fome? Não me parece que haja mais ressonâncias nesse motivo.
Não sei se a cozinha de Pizarnik é limpa ou suja. Sei que ela é escura, às vezes é
atravessada por uma lufada de vento e de sol, há flores nos cantos que cheiram muito,
mas é um lugar para pouco respiro, para muita concentração, uma cozinha
extremamente organizada para um objetivo, com poucas distrações, uma cozinha para
oficiar cerimônias. Não é grande, é aconchegante o tamanho, é atrativa e perigosa. Em
vez de seres vivos, vozes, aparecidos, sombras de afogados. Há poucos objetos, eu
suponho, memórias antigas, a lembrança de um jardim inalcançável, um sonho
esquecido que volta e se dissipa rapidamente, deixando apenas um traço no papel. O
meio-dia às vezes se confunde com a meia-noite, mas quando é noite parece que há
uma faca que brilha na escuridão.
Eu permaneci tempo demais tentando me acostumar com essa cozinha.
Prefiro atualmente a cozinha de Ledusha (por exemplo) onde há toddy em vez
de tédio; onde certamente há alguns restos de mingau empelotado numas panelas
espalhadas, e talvez até mesmo um grande clássico afogado na pia, pois lavar a louça
depois de ir à praia, depois de ouvir um disquinho girando na vitrola (pode ser Ave
Sangria), depois de sondar a tese bordada por um gato, não parece definitivamente a
coisa mais inadiável do dia.

O que é um começo? Num pequeno texto em prosa, “El poema y su lector”,


Pizarnik precisa a mecânica entre destinação e sentido com que opera, explicando que,
quando termina um poema, ela não o termina, mas o abandona, não sendo já o poema
pertencente a ela. A partir desse momento, em que o poema apenas existe, o triângulo
ideal composto por autora, poema e leitor dependerá exclusivamente deste último, o
único capaz de terminar o poema inacabado, de reaver seus sentidos múltiplos e de
atribuir-lhe outros, inesperados. “Terminar equivale, aquí, a dar vida nuevamente, a re-
crear”, ela diz.16 Terminar, então, pode ser começar, dar uma nova vida ao poema, uma
vida própria e fluente que já não depende de qualquer ligação intrínseca com a sua
autora, com o que ela pensou, com o que quis dizer. Assim como terminar pode ser
começar, nascer também pode ser morrer, e morrer, nascer, na dinâmica sempre
nascente – sempre promessa – e sempre morrente – sempre crepuscular – da poesia de
Pizarnik, em que às vezes se nasce para a morte, e às vezes se nasce dando à luz a si
mesma, parindo-se esforçadamente do fundo do próprio útero.
O que é um começo? Esta pergunta é também o título de um poema de Marília
Garcia, no qual a poeta relata ter descoberto, através de uma tradução de um poema
seu feita ao francês, que fechar, em português, pode significar abrir.

o que é um começo?

[...]
encontrei uma tradução da inês oseki-
depré de um poema do meu livro
chamado “rue de fleurus”
naquele momento
entendi algo sobre o começo
entendi que fechar em português
pode significar abrir

mas isso depende você me diz


e eu pergunto
mas o que seria um começo?
pensando que fechar para mim
só podia ser o fim
sem abertura sem deslocamento sem nada além
no mundo daquele poema
e lembrando do dia em que o escrevi
me convenço de que o fim era sem começo
começo era outra coisa ainda estou
aprendendo
mas na semana passada
ao ler a tradução da inês
entendi que em português
fechar pode significar abrir
que fechar pode ser sim um
começo só que a vida não disse isso

16
PIZARNIK, Alejandra. Prosa completa. Barcelona: Lumen, 2010, p. 301.
quando precisei
talvez porque você estivesse vivendo
em outra língua ela diz
talvez não sei bem
de todo modo na semana passada
ao ler a tradução da inês lembrei que
traduzir um texto é um modo de ler
com uma lupa na mão
e que nessa tradução
a inês me mandava
suas observações-de-lupa
nesta tradução a inês oseki dizia
que o vendedor de crepe
tinha acertado o negócio
(o acerto é um começo
certo? você diz)
mas no poema eu dizia
que o vendedor de crepe
tinha fechado o negócio
(aqui também
fechar o negócio
podia ser um acerto
chegar a um acordo)

podia ser mas no poema


eu queria dizer que o vendedor de crepe
tinha falido que tinha fechado a loja
fechar era literal uma porta em movimento
pronta para bater
isso era o fim deserto falência
fechar poderia ser positivo e significar
um acerto
mas ali eu queria dizer outra coisa
queria dizer que a forma de uma
cidade muda mais rapidamente
do que o coração dos mortais
queria dizer que
embora meu coração ainda buscasse
uma lembrança qualquer
um vestígio um sinal que pudesse
ser recomeço
ao chegar no jardim
a loja de crepe já não existia
tinha fechado suas portas

eu queria dizer que embora buscasse


começar fechar ali era o fim17

17
GARCIA, Marília. Um teste de resistores. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
Fechar, aqui, é o fim de algo e é também o começo de algo. Terminar e começar,
morrer e nascer, fechar e abrir. Por sorte, não apenas o senso comum, mas também a
língua, em sua imprevisibilidade, dá expressões em que pares tão opostos se tornam
intercambiáveis. Estou terminando com Alejandra Pizarnik. Estou começando com
Alejandra Pizarnik. Estou saindo e entrando, tudo ao mesmo tempo, nesse texto que é
uma introdução, mas que a cada parágrafo se parece mais com uma conclusão. Talvez
seja sempre assim, e talvez seja por isso que em muitos trabalhos acadêmicos a
conclusão diz exatamente o mesmo anunciado na introdução (a introdução e a
conclusão também seriam intercambiáveis, afinal): é preciso abrir e fechar, é preciso
saber entrar e saber sair, é preciso, se possível, prever o caminho, estabelecer um ponto
de chegada, um destino fatal. Não sei ainda o que será na conclusão. Estou tirando
Alejandra Pizarnik para dançar, e a dança é, sabemos, uma atividade sem objetivo,
somos levados no embalo da música, sem hora certa para começar, sem hora certa para
acabar.

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