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Os Onze

Trampos de Carlos
com leituras da Eliane Marques Colchete de Morais
Luis Carlos de Morais Junior

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o Trampo 1: Professor
o Trampo 2: Escritor
o Trampo 3: Filósofo
o Trampo 4: Músico
o Trampo 5: Biólogo
o Trampo 6: Político
o Trampo 7: Ator (etc.)
o Trampo 8: Cozinheiro
o Trampo 9: Pintor (etc.)
o Trampo 10: Empresário
o Trampo 11: Alquimista

2
Sabemos que existe a ala canhota no mundo e aqui. Nela se
encartam os que, acreditando ser de esquerda, não passam de
direitistas confusos.1

1
ANDRADE, Oswald de. “ordem e progresso”, O Homem do Povo. Anno I, número 1. São
Paulo: 27 de março de 1931, in ANDRADE, Oswald de e GALVÃO, Patrícia (Pagu). O
Homem do Povo; coleção completa fac-similar do jornal criado e dirigido por. Março/Abril de
1931. 3 ed. São Paulo: Globo, Museu Lasal Segall, Imprensa Oficial, 2009, p. 1.
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Trampo 1: Professor

Durante a faculdade inteira (Português-Literatura na URCE) ficou esperando


acontecer alguma mágica, que transformasse aquela algaravia, aquela enrolação, num
texto e contexto coerente, com senso e com som, e assim tudo fizesse sentido. Enquanto
isso, ia empurrando com a barriga.
Carlos é magro, barriga lisa, 1,68 de altura, branco, não costuma se bronzear, usa
óculos fortes, cabelos castanhos claros, sempre longos e revoltos, com exceção das
(várias) épocas em que raspava a cabeça. Veste-se com um desleixo luxuoso, tipo
adolescente que não liga prá essas coisas, e só lavava os cabelos com sabonete. Usa uma
calça Lee ou Levis, uma camiseta de malha e mangas curtas, um tênis surrado e uma
mochila, também Lee.
Suas maiores curtições in illo tempore sendo namorar, comer comida, caminhar
muitos quilômetros, ler livros e ver filmes e ouvir músicas. Nessa época estava
repetindo muito na vitrola da mente Num Mercado Persa de Albert Ketèlbey (1920),
Take my Heart com Jacky James (1975) e My Lady Héroïne com Serge Gainsbourg
(1977).
Na universidade só faltava ou ia e brigava (discutia teoricamente, mas eles não
entendiam assim) com os professores.
Um dia, de repente, estava formado. E não tinha aprendido nada. Como podia ser?
De chinfra, fez concurso prá professor e foi aprovado, numa boa, na nata, com
nota.
Chegou na escola e alguém lhe falou: essas são as suas turmas, esses os diários,
essas as salas, esse o livro adotado. Te vira!!!
E ele entrou na sala de aula. Trovadorismo. E começou a falar.
De noite pediu ajuda à sua namorada, que estudou os livros, preparou a aula e
produziu para ele o capítulo que seria dado então.
Quando Carlos voltou ao colégio, botou o esquema no quadro. Os alunos
copiaram. E ele começou a explicar, se apoiando no roteiro, mas veio a inspiração, ele
começou a botar variações, emendar explicações contíguas sobre temas correlatos, e...
Quando deu meio-dia, depois de repetir (melhorando a cada repetição) aquela mesma

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matéria várias vezes, ele se sentia confiante, com a certeza de que sabia o conteúdo
agora, e que não o iria mais esquecer.
Eliane lê: – E sempre assim, aconteceu que a cada aula, em várias turmas, um
período letivo após o outro, ele começou a ligar em si mesmo a máquina de variações
que não parava nunca de variar os conteúdos dos roteiros e as formas de pensar e
compreender a matéria.

Bem, vou permitir que o próprio Carlos fale sobre suas experiências profissionais,
no restante do relato, eximindo-me de ulteriores narrativas e comentários de minha
lavra, já que nosso herói também sabe alinhavar os seus discursos a contento.
Antes de lhe ceder a palavra, quero reafirmar que, apesar de ele ser meio xará
meu, tendo eu o nome duplo que inclui o seu prenome, este relato não se trata de algo
do tipo autobiográfico: esse Carlos de que falo aqui é um outro, não eu; e sim, ele é real
(como sói, provavelmente ele vai alterar os nomes de algumas pessoas que aparecem
nos eventos que descreve).

– E eu sempre falo prá eles: não precisa entender, vai em frente mesmo assim, e
eles ficam muito espantados, como se fosse uma coisa imoral permitir que alguém não
entenda, e, mais ainda, não dar a mínima para entender ou não.
Porque o “compreender”, assim como a “interpretação” em Deleuze, se torna em
práticas educacionais uma tremenda armadilha, uma forma de inviabilizar o
pensamento, a criatividade, e a genuína compreensão, que não é algo passivo e
receptivo, mas sim sempre ativo e produtivo.
Na escola havia uns dez por cento de professores “de direita” e uns noventa “de
esquerda”, que na verdade eram agentes do tédio, da repetição e do engessamento do
pensamento e da moral.
Engraçado que ele era considerado esquerdista pelos direitistas, e reacionário
pelos esquerdistas.
Bem, parece que Carlos não quer escrever longamente sobre seu trabalho como
professor, e se ausentou da escrita, permitindo a mim seu narrador que continue a
tergiversar.
– Já expliquei longamente o que penso sobre isso nos outros livros
biográfico/pedagógicos que escrevi, então, vamos prá próxima.

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Trampo 2: Escritor
(Resposta aos críticos vorazes)

Quadros de uma Exposição de Modest Mussorgsky (1874) tocava no rádio. Eu


falei: é isso!!!
Outra mostra do meu investimento teórico e que se junta a (e potencializa) a
reação deles: minha opção por teóricos e artistas que trazem em si a expansão da
consciência, em vários campos de produção nos quais trabalho, os que repisam os
cacoetes e rótulos, prá eles tenho pouca paciência, os grandes criadores e inventores
humanos me atraem e meu trabalho poeteorético faz com eles simbiose.

Parece claro, portanto, que o problema com o manual, como de certos


sensos comuns sobre texto, é que universalizam critérios aplicáveis somente
ao gênero que estão tentando “ensinar” a produzir, a redação, especialmente
dissertativa. Assim, ainda que se esteja tematizando o gênero narrativo, é no
pressuposto do consenso dissertativo que se “ensina” que ela deve ser
“coerente”, ou seja, realista. Que não há dificuldade alguma na colocação
para o aluno de que os gêneros, ou suas aplicações, escolares ou literárias,
não são “generalizáveis”, mas que o que se implementa é a circunscrição de
certas expectativas conforme a constância de certas instituições onde se
exercitam certas habilidades, mostra que não seria bem esse o fator desse
“erro”, mas uma vontade real de que a realidade fosse mais simples – ou
coercitiva – do que ela é. Mas não seria a mesma vontade, quando uma
crítica biográfica psicologizante não consegue ver mais nada num texto do
que sinais dos vividos do autor, as pessoas que conhece, os referentes ao
qual não cessa de apelar por mais que seu tema não tenha qualquer coisa a
ver com isso?2

A crítica estava subjacente em várias modalidades de interação social, escolar e


profissional. E quando falo “crítica” é no sentido todo torto que a palavra ganhou no
coloquial brasileiro, é algo pejorativo, combatente contra, uma admoestação.
Alguém pode aventar que era a minha própria atitude diante dos outros que gerava
a sensação de competição e Ersatz. Sim, está certo. Mas aí é uma coisa do campo da
neurose, e, quando se trata da minha teoria-prática gnoseo-poética, a questão
complicadora inicial é que ela é tão nova e forte, que pode parecer, ou as pessoas

2
COLCHETE, Eliane. O Pós-Moderno: Poder, Linguagem e História. Rio de Janeiro: Quártica,
2012, p. 182.
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fingem que parece, uma piração, uma loucura “controlada” ou até loucura mesmo. Não
nego que tive neurose, e que as pessoas muitas vezes viam como sendo a mesma
proposição que ela a proposta estética-política. Mas não é a mesma coisa. Da neurose
não vou falar, talvez com ela sob controle a crítica possa se abrandar, sim, experimentei
isso também; todavia, a questão aqui é responder à crítica.
O que que diz ela? Que o sujeito em questão é pouco sério, pula de um assunto a
outro com uma velocidade estonteante, que é desorganizado e superficial em suas
leituras e escritos, afinal, assim como quando fala ou na aula insere um tema no outro
sem parar, voltando ao assunto principal muito tempo depois, ele só consegue ler pilhas
de livros, e ir abrindo um e lendo um tanto, depois abrindo outro, e assim continuando,
sendo que está sempre no meio da leitura de dezenas deles, e diz que lembra da ordem
das razões, dos argumentos ou da sequência dos acontecimentos onde parou, e pode
retornar quando quiser. Também está sempre escrevendo uma quantidade enorme de
coisas, cada uma delas com a sua linha diegética, poética ou teórica própria, e também
afirma saber continuar cada uma no seu teor, tom e estilo, e não confundir uma com a
outra na hora de escrever.
O tema da crítica é, então, falta de seriedade, leviandade e incapacidade de
profundidade e fôlego – um pseudo intelectual, o que se percebe por ele não cumprir as
normas, os rituais e as rotinas do que seria um tipo assim.
Resposta: todos os meus livros e mesmo outras atividades que fiz e faço, estão sob
a égide de uma grande questão que é a minha e que desenvolvo nas obras, aulas,
conversas, estudos, palestras, passeios etc.
A questão é o modo de produção de um ultrapassamento do estágio do ser
humano, tanto na sua prática quanto na sua cognição.
O ultrapassamento é possível, porque a vida é plástica, evolui, como todos falam,
e o universo ou multiverso é infinito, e é óbvio que não sabemos tudo, na verdade quase
nada, nem podemos tudo, na realidade, muito pouco, mesmo um rei ou outro homem
poderoso é esse pequeno ser sobre o pequeno planeta numa das infinitas galáxias dos
infinitos pluriversos.
Quando fiz a dissertação de mestrado, a tese de doutorado, a pesquisa do pós-
doutorado e tantos livros (ficção, poesia e teoria, tudo que escrevo está dentro do
mesmo programa de pesquisa e produção), estava sempre produzindo uma área desse
trabalho, desta minha pesquisa.

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Meus livros são grandes capítulos de um livro gigantesco que escrevo e cujo título
é: Mundos Possíveis.
Assim também acontece quando sou estudante e quando sou professor, a maneira
de estudar e de abordar os temas e de apresentá-los, seja por escrito, falando, cantando,
pintando ou da forma que for, é sempre uma experimentação e uma produção junto com
demonstração desse trabalho de criação de novas potencialidades na prática e no
pensamento humanos.
Já publiquei trinta e tantos livros e teria publicado dez vezes mais, se não fosse
um projeto internacional de imbecilização do país.

Eliane lê: O que se ultrapassou ou que nunca foi a motivação da pesquisa ou do


pensamento, foi a mediocridade de um modelo. A questão, mais que “sobre”, nela
mesma, é a evolução em devir.

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Trampo 3: Filósofo

Quando eu era aluno do ensino médio não era oferecida Filosofia na grade
curricular, por uma decisão do governo militar, que estava labutando prá impedir que o
nosso país fosse açambarcado na loucura das ditaduras comunistas. Eles estavam
errados nesse ponto: tirar a Filosofia do programa só fez dar argumentos à esquerda, e
fortalecer uma tola visão nacional de que as ciências humanas seriam sempre
ferramentas esquerdistas. Até prá saber o que o comunismo realmente é e faz, é preciso
estudar muito bem a Filosofia, a História, a Sociologia etc.
Com isso não estou concordando que a Filosofia seja uma das ciências humanas,
ela não é ciência, prá princípio de conversa, e não compartilha uma longa lista de
pressupostos que as ciências humanas reais sempre trazem.
Com os fatos de que não tive Filosofia no colégio, não se perfilo entre os
autoritarismos da esquerda (nem da direita), não valorizo tanto assim as ciências
humanas, e que considero que a Filosofia tem seu próprio campo muito mais amplo e
bem mais anterior que os delas, não estou me excluindo do jogo, o que se dá é
justamente isso: eu sou, antes e acima de tudo, um Filósofo.
Todas minhas outras atividades que coloco aqui (e as que não coloco, porque não
são exatamente profissionais, sendo a principal dentre elas, sou religioso), sempre estão
iluminadas e ganham sentido, força e alimento do fato de que sou Filósofo.
Até fiz faculdade de Filosofia; depois da Letras, comecei música, ciências
políticas na UFA, bacharelado de interpretação teatral numa federal e direção teatral
noutra federal, uma do lado da outra, entre essas duas, na URCE, fiz: Filosofia.
Se for falar dos meus trampos longamente teria que incluir burocrata, vendedor,
faxineiro, cozinheiro, gerente de marketing, editor, militar, cantor de banda de rock... y
otras cositas mais;
No caso da música, como vou falar no próximo capítulo, tentei mas não me forcei
a fazer o curso e aprender teoria musical.
Mutatis mutandis, foi que aconteceu com a Filosofia. Porque, no caso, me formei
na faculdade, e dou aulas de Filosofia, a vários anos, nos ensinos básico e superior.

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Mas é que eu não visto uma fantasia da moda e sigo com ela pela estrada a fora,
quem é você, meu querido? Chapeuzinho, lobo, vovozinha ou caçador? Hermeneuta,
gramsciano, pragmatista ou “novo” “filósofo”?
A mesma intolerância que mostrei como professor de literatura e escritor, que é a
recusa de uma estante de esqueminhas rotulados a mostrar, demonstro mais ainda como
Filósofo que sou.
E sendo assim, o sou, e está certo, é assim que sou.

(Hoje assisti deliciado a o clipe do novo rock Angry dos Rolling Stones.)

Minha questão é sem nome, mas já foi chamada de metafísica, e outros nomes,
que não dizem nada, mas falam tudo.
Quando fui fazer o curso na URCE conheci o grande filósofo Leonardo Lobo, que
me apresentou ao pensamento de Deleuze e me mostrou que a Filosofia é possível num
país impassível cheio de coros dementes de contentes descontentes.

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Trampo 4: Músico

Desde o começo, na escola, entre os amigos de meu pai, com meu próprio pai, era
a mesma coisa: músico tem que saber teoria. Senão fica muito limitado, preso ao que é
previamente combinado/arranjado, por melhor que tenha o ouvido não pode entrar em
todas de repente, mostrar o seu fulgor, e se preparar a contento prá qualquer
apresentação.
Não vou dizer que me inscrever e tentar cursar o conservatório de música tenha
sido perda de tempo. Mas foi.
O tatibitate que aprendi de teoria esquecia naquele mesmo dia em que aprendia.
Mas minha guitarra melhorava cada vez mais. O conservatório ainda não
considerava guitarra suficientemente digna para ensiná-la. Por isso eu fazia violão. Ia
ser eu que iria escrever o Conserto em Lá Maior para Guitarra Elétrica e Orquestra.
Quando tinha esses sonhos, eu pensava no Quarteto de Cordas em Ré maior de
Alexandre Borodin, que ele escreveu no ano de 1881.
Mas eu faltava mais que ia, e, um dia, percebi que não queria com força fazer
aquela joça de conserva, nem escrever concerto com zilhões de colcheias e
semicolcheias na pauta.
Pensei que tinha largado a música, e tentei me especializar em letras. Comecei a
me fingir de poeta, e fiz vestibular prá faculdade onde eu pensei ia aprender português e
literaturas.
Isso eu já contei no capítulo um. Neste, o dois, eu fico de saco cheio das turmas
totalmente desinteressadas (Tem mesmo mesmo que ler? Quantos pontos ganha se
fizer? Prá que serve saber isso?) e dos colegas que odiavam uns aos outros, e ficavam
falando mal pelas costas, dizendo fulano não ensina nada, beltrano é isso, sicrano é de
aquilo, essas bazófias.
Assim que comecei a dar aulas lá eu saí da escola e fui caminhando pelo caminho
inteiro, até chegar em casa, pensando: vou ter que reprovar todo mundo?
Ninguém sabia de nada, não queria saber, e tinha muita raiva de quem sabe.
Foi aí que me lembrei da música. Mas não iria repetir o erro da Letras, não ia
voltar prá conserva (in)musical. Eu simplesmente me declarei músico, com o que sabia

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que aprendi com os parças, as cifras e orelhadas. Não virei poeta, mas ia ser músico, de
nascença.
Comecei com o som antes de tentar em vão ser poeta, tinha entrado no
conservatório antes da faculdade, mas tinha desistido. Antes ainda, desde a
adolescência, eu aprendi algumas posições com os colegas, e comprava a revista Vigu,
Violão e Guitarra, que trazia as músicas que estavam fazendo sucesso na época,
nacionais e importadas.
Quando comecei a tocar com profissionais percebi que as posições eu tinha
aprendido nas revistas (seguindo as cifras: C = dó, D = ré, E = mi, F = fá, A = Lá, B =
Si, Cm = dó menor, Cm7 = dó menor com alteração de sétima, etc.) traziam uma
harmonia simplificada, dependendo do caso até demais. Todavia, serviu pra começar.
Mais que o conserva.
Larguei aquela coisa chata de escola e também de escritório, e comecei a ganhar
grana fazendo shows pelas madrugadas, nos lugares mais improváveis que você nem sei
se pode imaginar.
Eu tocava guitarra numa banda de rock, e, às vezes, fazia o vocal.
It’s funny que no lugar onde estreei com minha banda fue justamente uma escola.
A estreia foi supimpa, fiquei nervoso, era um festival, e quem estava antes não queria
sair do palco, bisava sem parar. Quando entramos, comecei um dos nossos rocks, e foi
uma coisa muito mágica ver do palco todo mundo na plateia ligado por uma teia mágica
de ritmo e tom, e eles se moviam com os movimentos dos meus lábios e das minhas
mãos, éramos como um ser só dentro da música.
Ao mesmo tempo, escrevia minhas músicas, meu trabalho autoral, que, como tudo
que me diz respeito, é muito doido, diferente e, pra ser sincero, pro meu
sentimento/pensamento, genial.
Alguns falam que faço rock, outros dizem que é baião, e mesmo há quem pense
que isso é samba.
Coloco aqui um link pra você ouvir alguns demos que fiz:
https://soundcloud.com/lui-morais
A banda na qual comecei era integrada por Eliane no vocal e baixo, eu mesmo no
vocal e guitarra e o irmão dela Davi (que pronunciamos sempre em inglês na bateria).
Quando fomos escolher o nome da banda, ele pediu que cada um de nós
escrevesse uma ou várias palavras num papel e dobrasse. Depois ele desdobrou, na
ordem que saiu seria o nome da banda. O primeiro papel sorteado foi o meu, no qual eu

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tinha escrito: o próprio lado. Depois veio o dele, que escreveu: música alienante. O
papel da Eliane trazia a palavra: deserto.
Assim no nome da nossa banda ficou sendo: O Próprio Lado da Música Alienante
no Deserto.
Mas nós e todo mundo sempre a chamamos de Música Alienante.

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Trampo 5: Biólogo

The Palace of the King of the Birds com os Beatles 1969 is heard by me ouvindo
por mim em 2023 e enviado pra mim adolescente entrando no curso de Biologia da
federal em 1979.

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Trampo 6: Político

Ao sol de Rewind Forward com Ringo Starr.

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Trampo 7: Ator (etc.)

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Trampo 8: Cozinheiro

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Trampo 9: Pintor (etc.)

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Trampo 10: Empresário

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Trampo 11: Alquimista

MonaLisa Twins sing and play She loves you.


Ah, uma coisa que não precisa falar, mas é muito importante declarar: não escrevo
numa linha cronológica, eu crio no complicatio3 Aionlógico.
(Nota importante: o alquimista trabalha o tempo todo e sempre com o
complicatio, que é a matéria prima da obra, e, é claro, não tem preço, todos têm acesso,
está em toda parte, e muita gente não lhe dá o devido valor.)
Quero dizer, por exemplo, esses fatos da psicoterapia aconteceram sim quando eu
tinha quinze anos, bem assim, como me lembro e consigo expressar, mas foram ao
longo dos meses, eu fui me conscientizando naquele ano e fui ficando cada vez mais
engajado nas minhas escritas criativas e na insuportabilidade de como estava a
conjuntara social, política e ecológica.
O que eu sentia sempre e não conseguia ainda expressar clara/mente em palavras,
as poesias e prosas sempre sendo essa expressão, expresso quero dizer me aproximo a
expressar assim:
A vida é a essência do universo, a vida é algo em si, não se confunde com a
energia ou a matéria. A expressão material e energética da vida é uma interface que a
vida faz, mas a vida é muito mais, e o todo da vida, do tempo, da energia, da matéria e
do espaço é integrante de Deus, viva Espinosa.
A vida tem um potencial demiúrgico não condicionado, a vido cria, é assim que a
vida se manifesta, em todas as formas do cosmos, as que vemos e entendemos e as que
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complicātiō f (genitive complicātiōnis); third declension: folding up;
multiplication, complication, isto é, substantivo latino da terceira declinação: 1. dobrando,
dobra, dobrar ; 2. multiplicação, complicação; segundo a
https://en.wiktionary.org/wiki/complicatio.
Outra visão: “O termo ‘complicados’, empregado entre aspas no texto, foi assim disposto no
intuito de aludir à noção de ‘complicatio’ dentro do pensamento do Cusano. O termo deve, pois,
ser entendido não no sentido de dificuldade ou mal esclarecimento, mas, no sentido de
condensamento, abarcamento, contração, síntese”. BAUCHWITZ Oscar Federico; ANDRADE
FILHO, Osvaldo Ferreira de, “Sobre o conhecimento em Nicolau de Cusa (1401-1464): um
percurso pela natureza dinâmica e pelos sentidos até o intelecto”, nota 7, p. 502-503, in ANAIS
Congresso Internacional de Filosofia Medieval, Metafísica, Arte e Religião na Idade Média.
Org. Augusto da Silva Santos; Ricardo da Costa. Vitória, Vitória: Campus de Goiabeiras
Departamento de Línguas, 01 a 04 de Agosto de 2011, praesto in
https://www.academia.edu/13385382.
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não reconhecemos. Mas nos animais, por exemplo, a criação coloca um limite
específico: as abelhas inventaram tudo aquilo, e o usam, mas uma abelha não inventa
uma coisa nova, de repente.
O ser humano é diferente. Nós somos como microcosmos, ou melhor, como filhos
do Demiurgo, porque temos o potencial indefinido de criar. O potencial ilimitado e
infinito de criar é divino. Mas nosso, sendo limitado, é indefinido. Não precisamos criar
so/mente dentro de estruturas pré=existentes, podemos criar no nível mental, linguístico
e físico.
O modo humano de se desenvolver como indivíduo em sociedade nos ensina mais
que tudo e antes de todas as coisas o medo e a total falta de fé no nosso potencial. Ela
nós dá muletas, a sociedade humana, como andadores, para repetir indefinida/mente e
sempre de maneira igual os programas de pensamento, de fala e de comportamento que
aprendemos quando somos crianças.
Ninguém é real/mente obrigado a repetir esses programas, como um animalzinho
girando sem parar correndo dentro de uma roda numa gaiola. Alguns se apoiam no
andador, mas pensam entusiasmados que podem criar, e criam alguma coisa, seja no
campo do pensamento, da linguagem ou da matérienergia.
Esses provocam infalível/mente uma reação muito forte da maioria das pessoas à
sua volta, que em grande proporção ficam indignadas com aquela “loucura”, e fazem
algum tipo de sanção, muitas vezes terrível, contra a pessoa que saiu das trilhas pré-
programas dos raciocínios, falas e atos. Quem não se revolta e tenta reprimir o
desviante, se torna um seguidor, exalta aquele cara, como se ele fosse um profeta ou um
gênio ou um mestre da arte, dependendo se o fato se dá na religião, na ciência, na
filosofia ou nas produções artísticas.
As duas reações são escravas, não querem ver e entender que o potencial criativo
é a nossa natureza como seres humanos.
A minha transformação de inocente e careta em um cara curioso e contestador
começou na oitava série, o último ano do ensino fundamental, por causa já de leituras,
de jornais e de um colega que era mais velho, e questionava tudo, todas as aulas, levava
e lia o Pasquim, tocava flauta doce nos intervalos, e falava coisas estranhas, sempre
rindo muito. Meus colegas da época fizeram um círculo de rejeição em torno dele, mas
eu conversava com todos os alunos da turma, inclusive com ele, e as coisas que ele
falava me impressionaram e influenciaram.

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Nas férias eu revolvi, considerando que ia mudar de escola, da unidade Tijuca do
Pedro Segundo para o Centro, de turma e de colegas, e ia sair “do meu bairro”, eu ia ser
um outro cara, ia me construir diferente, na verdade seria o mesmo que eu sou, mas que
não tinha conseguido exteriorizar ainda.
Desde criancinha eu vivia apaixonado, já falei, inventava paixão e depois ficava
acreditando, sentindo aquilo, primeiro por atrizes, cantoras e garotas-propaganda da
televisão e do rádio, depois pelas colegas, uma de cada vez, e professoras das escolas.
Na época o CPII adotou um ensino profissionalizante pra inglês ver, quero dizer,
tinha esse nome e as quantidades das aulas das matérias era diferente, mas não tinha o
mínimo de técnica de nenhuma delas, pra ser profissionalizante mesmo. Eu escolhi
tradutor-intérprete, o que, na prática, significava ter mais aulas de português, uma
matéria chamada expressão e comunicação, que era na base da enrolação, e latim, acho
que foi por causa do latim que eu escolhi essa modalidade, as outras não tinham.
Na Marechal Floriano só havia segundo grau. As turmas eram formadas por
alunos que vinham da Tijuca e do Humaitá, onde só se oferecia o primeiro grau. A
mesma coisa acontecia com São Cristóvão, que atendia os egressos do Engenho Novo,
mas acho que metade da Tijuca ia pra lá também, acho que a gente escolhia, e eu preferi
o centro.
Metade da minha turma era de alunos e alunas da zona sul, a outra metade da zona
norte, como eu.
Glaura tinha a minha idade, fiz quinze naquele ano, como já disse, e ela também.
Mas ela gostava de um monte de coisas legais e contracultura, contestava o regime, lia o
Pasquim, falava de Chico e Caetano etc. Eu me apaixonei, de novo, e fiquei muito feliz
com isso, porque saía do círculo anterior, com suas modas e manias.
Mas ela faltava muito. Veio no começo, a gente conversou, depois no segundo
dia, faltou. E eu fiz este soneto antes da aula pra ela: Aceitar a tua falta/É achar tudo
vazio,/Entender o riso falso,/Respirar um sonho vago;//A voz que dentro me fala/Me diz
só que nada vale,/Que caído dentro da vala/Do sentir, tudo me falha;//Compreender que
você/Por hora ainda não veio/E eu nada posso fazer,//Sentir este amargo frio/Que me
produz teu faltar,/É, quieto, vociferar.
Bigalho, que era também da zona sul, extrovertido, engraçado, estranho, cabeludo,
com grossas lentes, jeito de malandro, fala meio vulgar, e que também escrevia poesia,
de uma maneira muito estranha, eu vim a ler depois, ele leu meu soneto, achou muito

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legal e colocou o apelido pelo qual todo mundo me conheceu no Pedro Segundo do
centro nos três anos em que lá estudei: Poeta.
Sempre que eles resolviam visitar o tio a tia as primas e o primo, que moravam
em Guadalupe, depois em Marechal Hermes, parecia que íamos a um outro mundo, no
Prefect do meu pai, verde, depois ele trocou por uma Isabella, vermelha, ainda nesse
tempo, nos anos sessenta, em que morávamos na esquina da Visconde de Ouro Preto
com a Praia de Botafogo, e só “atravessávamos o túnel”, o que não é necessária/mente
uma não metáfora ou metonímia, pois podíamos ir pelo centro avenida Rio Branco
Presidente Getúlio Vargas, pra visitar meus tios e meus primos, o que eu gostava muito.
Ou para ir no sítio do meu pai, quer dizer, nosso, mas quem gostava e queria o sítio era
o meu pai, em Citrolândia, distrito de Magé.
Por isso quando, depois que operei a hérnia e o homem foi à lua, eles me falaram
que iríamos morar na zona norte, algo assim matrushka tipo uma vila dentro de Vila
Isabel, pra mim pareceu que isso era uma grande aventura, um aprendizado mágico,
como se eu estivesse indo morar em outro país ou até mesmo em outro universo. E eu
gostei disso.
Logo que chegamos na casa, no dia seguinte depois da mudança, meu pai foi
trabalhar de manhã cedo, e nós fomos, eu e meu irmão, com minha mãe comprar
comida no supermercado que ficava no Boulevard 28 de setembro, fomos a pé e
voltamos com as sacolas, ela carregando tudo, ficamos felizes porque ela comprou Ki
Suco de morango, que era pura anilina com muito açúcar e outros produtos químicos,
foi mágico, na nossa casa 7 da vila na Rua Jorge Rudge.
Gostei de Vila Isabel.
Vila Isabel me trouxe a brincadeira na rua: nossa casa de número sete, na vila que
fica no Rua Jorge Rudge, que, ainda por cima, além de ter todo o espaço fora de casa
pra brincar, dentro de casa tinha um quarto pra mim e pra meu irmão, outro pros meus
pais, a sala, banheiro, cozinha, um grande “quartinho” de empregada que virou
despensa, mas do qual eu ocupei um canto pra ser o meu laboratório secreto, e o quintal,
e uma escada que subia do quintal pra um terraço, ao lado do telhado, pelo qual eu
caminhava, e ficava ali sentado, olhando o céu e o sol, e pensando em versos pra
escrever.
Muita novidade.
Antes eu tinha estudado em três escolas: Instituto Novo Horizonte, na Voluntários
da Pátria; Escola Resende, na Rua Bambina; e Colégio do Imaculada Conceição, que

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ficava atrás da Igreja (hoje fica ao lado, num novo prédio). Escolas particulares,
elitizadas, principal/mente o Novo Horizonte. Agora eu estava num colégio municipal,
na Rua Oito de Dezembro 275, que fazia esquina com a rua em que morávamos. Agora
é uma outra escola lá, ou tem outro nome, com novo prédio, mas é municipal também,
ou é a mesma, renomeada.
Fiquei tentando lembrar como se chamava, e consegui: Escola Municipal Olímpia
do Couto. Procurei na internet, e vejam que estranho, a escola ainda existe, mas é no
Irajá! Quem mudou, a escola ou os nomes? Ou eu?
Eu sempre gostei de ir às aulas, por causa de tudo. Ver as pessoas, as crianças e as
professoras, conversar, ouvir as aulas, ler os textos, fazer as atividades. Tudo era novo,
intrigante, desafiador. Minha mãe encontrou meu irmão chorando, quando foi buscá-lo,
lá no Resende, no primeiro dia de aula. No meu caso, eu estava entusiasmado, falando
com todo mundo, e reclamei, porque não queria ir embora.
Eu me socializava fácil, gostava de conhecer as pessoas, e tinha curiosidade sobre
o mundo. Também estava sempre apaixonado, pela professora e/ou por uma aluna da
turma. Ficava pela noite até dormir fantasiando uma paixão romântica com ela, haurida
das novelas de tv às quais assistia junto com minha mãe, e das canções de amor que
ouvi no rádio e no programa do Chacrinha, na tv.
Meu pai participou como calouro, cantando, neste; depois fez um quadro em que
apresentava candidatos num concurso de mergulho em apneia num tanque transparente;
e, ainda depois, quando já estava atuando como repórter do Show da Madrugada na
Rádio Globo, foi jurado na Buzina do Chacrinha, algumas vezes. Sua carreira de
repórter e apresentador de programas de rádio começou no início dos anos 70, a gente já
estava morando na Jorge Rudge.
Quando Washington Rodrigues o convidou pra ser repórter do Show da
Madrugada, ele quis escolher um nome artístico. Conhecia todo mundo, do seu trabalho
de operador, e era muito simpático, falante e inteligente. Além disso, um ótimo cantor; e
queria seguir esta carreira, também.
Quando era criança eu também queria ser cantor, e fazia músicas, inspirado nele,
que compunha; pra mim parecia uma coisa natural, ao vê-lo fazer, e eu e meu irmão
compúnhamos também, por imitação.
Washington Rodrigues ganhou o apelido Apolinho, pelo qual é conhecido até hoje
na rádio, porque era coproprietário de uma revendedora de automóveis na Praça
Varnhagen, na Tijuca, Apolo Veículos. Eu ia com meu pai algumas vezes lá, visita-lo.

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Eu e meu irmão assistíamos e éramos fãs do desenho Speed Racer, que era um
anime e a gente nem sabia disso, mas claro que sabíamos que era japonês. Um jovem
piloto de corrida de 18 anos, dirige o carro Mach 5, criado por seu pai Pops Racer.
O meu pai, numa manhã que saía pra trabalhar, ao nos ver assistindo a esse
desenho, falou:
– Já sei que nome artístico vou adotar: Speed Luiz.
Pois ele se chamava Luiz Carlos, com z.
E Speed Luiz o descrevia bem, porque ele era rápido pra falar, fazer as perguntas,
dar os informes do trânsito etc.
Na época de Botafogo, os colegas de escola não me hostilizavam, porque vinham
de famílias que tinham grana, e achavam que eu também vinha.
Quando fui estudar no Olímpia do Couto tudo foi diferente.
A maioria dos alunos era pobre e com uma semiótica muito diferente da minha,
isto é, achavam meu jeito educado demais.
Além disso, alguns dos bagunceiros implicaram de cara comigo, quando falei meu
nome Luís Carlos (até os anos noventa escrevi Luís com s, depois comecei a usar Luis,
escrito assim), sibilando o s. Isso porque meus pais eram gaúchos, e muitas vezes eu e
meu irmão fomos com eles passar as férias no Rio Grande do Sul, onde, em quiasma,
outro garoto imbecil lá implicou comigo porque falava o s chiado, como carioca.
Meu sotaque eu acho que era uma mistura de carioquês com gauchês; na verdade
eu tentava em cada lugar me adaptar, tipo, imitava o melhor que podia a pronúncia da
região, pra não encherem meu saco.
Em parte pelo exemplo corajoso do meu pai, em parte pelo modo digno que
minha mãe me transmitiu, e em parte por causa de alguma característica mística minha,
não tinha medo de enfrentar física/mente os outros garotos, mas odiava bater em
alguém, mesmo falar agressiva/mente me fazia mal depois, e ainda tinha uma timidez de
entrar numa discussão ou controvérsia, como se aquilo fosse muito, muito vulgar.
Ainda mais com a mudança das escolas, não tinha nenhuma vontade de brigar
com eles. Não que eu fosse besta, eu falava igual com todo mundo, e era amigável; não
que todos me hostilizassem, era uma minoria, tipo uns caras maiores que eu, da outra
série, que umas duas vezes fizeram uma roda à minha volta de botavam um pobre
coitado ali pra me provocar; eu sabia que ganharia dele, se brigasse, mas enfrentava na
fala, e não brigava.

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No dia em que os meninos da minha turma inteira combinaram de lutar com os da
outra turma, atrás (na verdade do lado, que não dava pra ver da quadra, onde todos
ficavam no recreio) do palquinho tipo teatro, eu sentei na escada lateral do palco e
fiquei olhando: aquilo era tão idiota, todos eles brigando sem motivo. Um aluno da
turma adversária sentou do meu lado, e comentamos: que besteira. E ficamos ali,
observando, até que a briga acabou, quando tocou o sinal e a gente foi prà aula.
Mas eu não tinha medo.
Uma vez um colega da minha turma, que era faixa não sei que lá em judô, e de
vez em quando era homenageado antes das aulas, na frente de toda escola, por ganhar
algum campeonato, ficou implicando comigo, sem parar.
Eu fui ficando com raiva.
A aula acabou, ele veio atrás, enchendo.
Eu me virei, olhei bem na cara dele e dei-lhe um soco, um só, e continuei
encarando-o. Ele ficou parado sem reação um rápido instante, depois começou a chorar,
e saiu correndo.
Estava acostumado com coisas assim acontecerem, achava que tinha poderes
místicos (como via em filmes e novelas), como quando, aos cinco anos de idade, estava
com minha mãe numa loja, e ela perguntou para o vendedor qual era o tamanho de uma
peça de roupa, e eu, sem olhar (estava acima do meu campo de visão) e nem saber por
quê falei o número exato, e ele olhou espantado e confirmou.
Eu brincava de alquimista também, desde os quatro anos de idade ou antes, mas
não conhecia essa palavra ou o conceito, do qual só tomei conhecimento na
adolescência, uns dez anos depois.
A minha fantasia era ser “cientista louco”, personagem que conhecia dos desenhos
animados. Colecionava frascos, fingia que estava fazendo combinações, imaginava
fórmulas e invenções. Misturava várias substâncias num frasco grande, e aquilo ficava
dias ali, uma adquiriu um aspecto furta-cor, granulado líquido e semovente.
Inventei uma “pomada” para queimadura, num dia que me queimei, que era feita
de cola e água, e que se colocava sobre o local, e a dor passava e ficava menos feio o
aspecto. Deduzi que era porque isolava a pele do oxigênio no ar.
(Não era muito “científico”, minha visão da ciência era mesclada de artimanha e
fantástico; mas eu achava que aquilo era ciência.)

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Aos nove, tinha mania de derreter chumbo numa panela (o que é perigoso, pelos
gases que exala), para observar a mudança de fase. Depois comecei a fazer “joias” com
o chumbo derretido servindo de engaste para contas coloridas.
Falei para minha professora que o fazia, e ela ficou curiosa, pediu pra ver. Minha
mãe não me deixou levar meu trabalho pra ela, falou que era coisa boba, que ia fazer
papel ridículo mostrando aquilo.
Era ávido por livros. Amava A mágica do saber, o didático que usávamos, um
volume em cada série, nessa época; uma brincadeira frequente era um aluno falar pro
outro: “Quer ver uma mágica?”, e, diante da resposta afirmativa, puxar o nosso livro de
estudo da pasta e exibi-lo.
Li no Sítio do Lobato que a pólvora é feita de enxofre, salitre e carvão; Dona
Benta só não revelou, a despeito da insistência de Pedrinho, as quantidades da fórmula.
Minha professora era casada com um químico. Falei pra ela que sabia de que
substâncias era feita a pólvora, e as nomeei; lamentei que não sabia as proporções. No
dia seguinte ela me trouxe a informação, num papel.
Nessa época gostava de brincar com fogo também, o que fazia no sítio do meu
pai, ao qual íamos num dos carros dele (em Vila Isabel ele possuía dois ao mesmo
tempo, um Fuscão e um TL), e no qual construiu uma casa, que não tinha luz elétrica
(usávamos lampiões), nem água encanada (tínhamos um poço, de água meio salobra).
Um dos grandes prazeres da nossa infância era ir ao sítio, ouvindo música antiga
(tipo Sílvio Caldas, que ele adorava, Noel Rosa, que ele amava, e tantos outros coevos,
os quais tanto admirava) no rádio do carro. Minha mãe e meu irmão achavam essas
músicas chatas. Eu amava também. Foi numa dessas viagens de ida, havia programas
que tocavam essas canções nos sábados pela manhã, que eu ouvi extasiado Mário Reis,
e me tornei seu fã incondicional (ainda não conhecia João Gilberto, quando ouvi
também fiquei louco por ele; são dois gênios, nada parecidos, mas iguais em tamanho).
Ah, e Orlando Silva, é claro. A primeira vez que ouvi “Carinhoso” de Pixinguinha na
gravação original de Orlando fique total/mente em êxtase; foi num sábado de manhã,
em casa, um long play na vitrola, e falei para meu pai: “Que música é essa? Eu conheço
essa música!!” Parecia uma melodia divina, eterna.
Achávamos o sítio chato, principal/mente porque não tinha televisão, só rádio; eu
e meu irmão.
O outro grande prazer relacionado ao sítio era a volta, domingo de noite, quando
parávamos no Ramon o Rei do Frango Assado, que tinha um brinquedo de carrinho que

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corria nuns trilhos e quase caía na borda bem alta (isso era a despeito da vontade deles),
e tinha o frango assado que a gente achava o máximo, sempre uma coxa e sobrecoxa pra
mim, outra por meu irmão, o peito pro meu pai e a minha mãe ficava com o resto, que
ele mandava embrulhar pra viagem, e a gente comia no jantar, em casa.
Meu pai sempre, desde que eu e meu irmão nascemos, falava entusiástica/mente
do Vasco da Gama, seu clube do coração. Me levou pra ver o jogo no Maracanã, e eu
torci com ele, nos anos 60, mesmo não entendendo muito bem aquilo, torci pra imitá-lo
e alegrá-lo, ele estava tão feliz ali, torcendo.
Mas, meses depois que fomos morar na casa 7 da Vila Isabel, começou a Copa do
Mundo de Futebol de 1970. E aí a coisa emplacou.
Eu tinha me tornado Fluminense, desde que entrei prà escola, pra contrariar meu
pai, pra me afirmar, e porque gostava das cores do Flu, e me parecia um time mais
chique, menos popular.
A Copa do Mundo trouxe o entusiasmo. Ver Pelé, suas jogadas geniais (Pelé era
meu e nosso ídolo, o desenho dele fazendo um gol de bicicleta era colado como adesivo
plástico nos carros e nos cadernos, e não cansávamos de comentar), e o Rivelino e o
goleiro Félix, que eram do Flusão, e ficar torcendo na frente da tv, assistindo à
transmissão do jogo no México, e berrar, e sair gritando e correndo pela Vila quando
fazíamos um gol. No final do jogo todo mundo pegava seus carros e dirigia sem rumo
pela cidade, buzinando alto. Não engarrafava.
Quase fui atropelado nessa época, porque havia uma promoção de juntar tantas
tampinhas de um refrigerante e trocar por bonequinhos desse tamanho monocromático
azuis de plástico dos jogadores da Seleção Brasileira. Eu fui na padaria, na esquina da
oito, e voltei com o boneco, na frente da minha vila fui atravessar sem olhar e um
caminhão enorme freou em cima, por um triz. Um vizinho viu e foi contar pra minha
mãe, que me deu bronca.
Acho que em 1970 nossa tv ainda era preto e branco, mas em 72 meu pai comprou
uma tv colorida. Fomos dos primeiros no Rio a ter uma, era o máximo ver os filmes e
desenhos com cores berrantes, no início as cores estavam desreguladas no Brasil,
adotamos o sistema alemão e a maioria das produções era norte-americana, o Batman
era um show de cores exageradas e psicodélicas, mesmo se não estivessem saturadas,
nos programas brasileiros às vezes alguém usava roupa branca, e ela emanava mil
flamas de todas as cores, não sabiam ainda usar o branco nas nossas transmissões.

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Engraçado que, antes da tv a cores chegar ao Brasil, muitas famílias compravam e
colocam um plástico com listras vermelha, amarela, verde e azul, pra se iludir ou fingir
ou brincar que estavam vendo a tv a cores – não se iludiam de verdade, era uma
compensação, algo assim.
Quando mudamos pra Vila Isabel preencher álbuns e comprar figurinhas virou
uma mania, eu gostava muito dos álbuns.
Havia um cujas estampas eram redondas e feitas de metal!!!! E a gente as colava
nas páginas do álbum.
Aos poucos esse apego por comprar figurinhas e álbuns evoluiu para as coleções,
a maioria da editora Abril Cultural.
Eu adorava colecionar Mitologia e O mundo em que vivemos, comprando
fascículo por fascículo toda semana, e depois, quando a coleção estava completa,
mandando encadernas os volumes nas capas grandes que eram vendidas na banca de
jornal, também.
Ah, entre as figurinhas e as coleções, houve a revista Recreio, infantil, que trazia
desenhos, historinhas e um encarte pra recortar, colar e montar, e que eu adorava
também.
Então, na vila eu já não era reprimido quando corria ou me esforçava, estava
curado da hérnia. Até ganhei uma bicicleta, eu e meu irmão ganhamos uma cada, e
passava as tardes correndo e bicicleta pela vila, jogando futebol e muitos outros jogos e
brincadeiras, inclusive bolinha de gude, na qual fui campeão e ganhei as bolinhas de
todo mundo (sempre que acertava a bolinha do outro com a minha, ganhava a dele),
então tinha que devolver pra poder voltar a jogar.
A vila tinha dez casas, mas eu não lembro quem morava na casa um. Na casa dois
era a Dona Gertrube, com seu sobrinho Dario, que tinha tido paralisia infantil, e andava
com muita dificuldade, segurando a perna mais magra que a outra, que não se dobrava.
Dona Gertrube era idosa, pobre e cuidava sozinha do sozinho aleijado. Ela
colocava milho picado todo dia em frente à sua casa, para as rolinhas virem comer, na
mesma hora, no meio da tarde. Havia mesmo uma marca redonda no chão, onde as
rolinhas bicavam.
Dario era revoltado com razão.
Os meninos da rua, nós, tínhamos antipatia pela Dona Gertrube, porque ela
reclamava se a gente com os jogos e as corridas de bicicleta espantava as rolinhas que
vinham de manhã e à tarde comer o milho picado que ela espalhava no chão.

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Nessa época havia seis séries do primário, depois vinha o ginásio, com quatro
séries, depois o científico, com três. A sexta do primário era a admissão, eu fiz a prova
pro Pedro II quando antes de começar a sexta série, o que queria dizer que eu pulei a
admissão. Mas, no ano em que entrei pro ginásio, o ginásio deixou de ser ginásio, e o
primeiro ano que eu estava cursando se tornou a quinta série do primeiro grau, que fico
tendo, então, oito séries.

31/1

Hoje estou escrevendo este poema na Remington 25


Que é a segunda máquina de escrever que tive
Como é gostoso poder datilografar de novo
Quando o faço a poesia está na ponta dos meus dedos
Dirá você: você parece que tem mania de poesia
Sabia que existem outras coisas nesse mundo
Assim me pergunta o iracundo interlocutor
Enfastiado e invejoso de ver a minha insistência
Em bater sempre na tecla do amor
Bem
Meus amigos
Essa é a minha experiência
Faço o que eu posso
E afirmo o que
Consigo
E comigo
Esta Remington 25 cor de caramelo lindo
É real/mente importantíssima pro pensamento brasileiro
Nela escrevi e passei a limpo inúmeros poemas romances estudos e contos
Como por exemplo Proteu
E O Homem Secreto

03/02

Buscar incentivo na vitória

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Que tivemos já algum dia
Buscar a vitória em nossa constituição
Nossos genes
Nossa alma
Quem diria que o mundo ia ficar mais maluco
E que o nosso país ia ficar ainda mais maluco
Que o mundo
Crescemos num lago de confiança
Agora os anjos
E todos os ajudantes
Precisam trabalhar
Pra resgatar a gente
A humanidade inteira
E acreditar que ainda há
Mundo pra nós
Vitória em nós.
Esse é o começo
Da história

A questão que se coloca é: por que fico eu tantas horas por dia lendo telas de lap
top computador e tablete se eu mesmo critiquei com força num poema recente os
leitores de tela e os acusei de não serem sujeitos da história?
A resposta é: a crítica expressa no poema visa a atacar um modo passivo de pensar
que se conjuga com uma maneira também passiva de agir. Não é uma crítica
direcionada às exterioridades, às modas e modos das pessoas. Mas sim ao modo como a
situação da sociedade capitalista globalizada envolve as pessoas e aos modos de
subjetivação que trazem mais que conformismo, uma ativa proposição anticriativa e
antiindividual, essa época mostra a humanidade mais que nunca valorizando o jeito de
ser do rebanho, e querendo e lutando pra ser igual e nem pensar.
Em termos genealógicos, as telas estão na confluência da formação da mais
passiva e submissa humanidade que conhecemos, associada ao estabelecimento de um
sistema que traduz em todas suas práticas o horror à criatividade e à expressão da
individualidade.

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Usar as telas contribui em muito para que a maioria das pessoas viva plena/mente
envolvida com esse modo de subjetivação hiperfascista que agora vigora na sociedade
ocidental globalizada.
Como no caso do pharmakon, dependendo da dose e do modo de usar, o veneno
pode ser seu próprio antídoto, ou um remédio. Tudo em função dessa palavra que se
repete obstinada e propositada/mente neste texto: o modo.
Uso as telas como as ferramentas e as armas e os campos de luta por um ser
humano não imbecil e retrógrado, por pessoas saudáveis, felizes e fortes – livres.
Países com guerras ou cataclismas talvez apresentem esse comportamento das
suas populações, talvez não.
O Brasil é riquíssimo, tem uma elite cultural, política e financeira pafúncia, que
compactua com a sempre reposta imbecilização do povo e tem um povo alienado, que
basta uma greve ou outro grave evento político ou social pra tocar o terror, roubar,
saquear, fazer tiroteio etc. Os policiais com seu justo direito de greve, os governos
estatudais e federal tocando o terror em cima da população, atrasando salários e
querendo reduzir os mesmos (isso foi em 2017), em função do crime do roubo e
corrupção desses mesmos políticos.
Desde a semana passada que a greve da Pm desencadeou uma onda de saque e
outras barbaridades no estado vizinho, hoje tinha corrido o boato de que seria a mesma
coisa no Rio, mas graças a Deus não houve nenhum problema.
Esposas de soldados da polícia militar fizeram manifestações pacíficas na frente
de 22 corporações do estado, quase todas na cidade do Rio de Janeiro, sem tumulto.
Claro que aqui e no Espírito Santo os policiais militares e suas famílias estão
cobertos de razão, reivindicando o super básico, que o governo pague os nossos salários,
tanto o atrasado desse mês quanto o décimo terceiro do ano passado. Sendo que as
polícias ainda recebem tudo de uma vez, perto do décimo dia útil. Nós, da Scretaria de
Ciência e Tecnologia, bem como a maioria dos funcionários estaduais, estamos
recebendo parcelado e atrasado, sendo que nem o calendário de pagamento se divulga
pra que possamos nos planejar, o que acarreta dificuldade pra comprar as coisas básicas
que toda família precisa e pra pagar as contas. Não permita Deus que o governo estadual
consiga fazer aprovar na Assembleia a proposta do governo federal de aumentar a
contribuição previndenciária de onze pra vinte e dois por cento.

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Sentei no bar e pedi um whisky. Os bares não me atraem, e a embriagues é a coisa
mais idiota do mundo. Nossa sociedade parasita as consciências da pessoas, nada de
classe dominante ou capitalismo, isso é efeito dérmico, por baixo o jogo é muito mais
pesado, ou, pense assim, quem parasita a classe dominante, os governantes, os
políticos?

ABC da bibliografia

ANDRADE, Oswald de e GALVÃO, Patrícia (Pagu). O Homem do Povo; coleção


completa fac-similar do jornal criado e dirigido por. Março/Abril de 1931. 3 ed. São
Paulo: Globo, Museu Lasal Segall, Imprensa Oficial, 2009.
BUKOWSKI, Charles. Factótum. Trad. Pedro Gonzaga. Porto Alegre: L&PM,
2012.
COLCHETE, Eliane. Riqueza e Poder: a Geoegologia. Rio de Janeiro: Quártica,
2018.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille Plateaux: Capitalisme et
Schizophrênie 2. Paris: Minuit, 1980.
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ECO, Umberto. Obra Aberta. Trad. Giovanni Cutolo. 2 ed. São Paulo,
Perspectiva, 1971.
FULCANELLI. As Mansões Filosofais. Trad. António Last e António Lopes
Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1977.

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