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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA


#11
CURSO
“EDUCAÇÃO LITERÁRIA”
COM PROFESSOR CLÍSTENES FERNANDES

AULA 01 - SINOPSE
Neste breve curso, os alunos terão contato com obras de caráter épico

que constituem os fundamentos mito-poéticos de nossa civilização. São

fundamentos em sentido estrito; estas obras fundam a cultura, a cosmo-

visão e a linguagem sem as quais não é possível estabelecerem-se in-

stituições políticas que organizem a vida em sociedade. Admitindo que

a civilização ocidental se sustenta sobre os pilares da filosofia grega, do

direito romano e da moral judaico-cristã, as obras escolhidas dão ao alu-

no um entendimento aprofundado do processo pelo qual as civilizações

nascem, avançam e declinam ou fundem-se com outras sem nunca

deixarem de exercer certa influência através daquilo que de perene elas

souberam cultivar, e isso é sempre a palavra escrita. Dito de outra forma,

o que permanece como força civilizacional através dos séculos é a litera-

tura. Verba volant, scripta manent.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que é literatura; como

devemos entender uma obra; qual o primeiro passo para povoar o

imaginário; o que torna uma obra universal; os quatros níveis de análise

de Mortimer Adler; quais os três passos para o conhecimento de acordo

com Hugo de São Vitor; como explicamos o que algo é; quais os quatro

níveis para entendermos um texto de acordo com Dante Alighieri; para

que serve a literatura.


BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO

Olá a todos, meu nome é Clístenes Hafner Fernandes, eu sou pro-

fessor no Instituto Hugo de São Vitor em Porto Alegre, que é um instituto de

artes liberais. Ao longo da nossa conversa, também falaremos destas e da

educação clássica, mas o tema principal de nossos encontros é a educação

literária.

2. A LITERATURA

Quero começar com um olhar para estas duas palavras mesmo

“literário” e “literatura”. Littera, em latim, é letra. Em grego, dizemos gramma.

Literatura foi uma forma que os latinos encontraram para dizer gramática.

Grammatiké, que em grego significa gramática, foi traduzido para o latim

por literatura, por um sujeito extremamente erudito chamado Varrão.

Até então, tudo que envolvia o estudo do

que nós chamamos hoje de letras, era conhecido

no mundo romano como literatura e, no mundo

grego, como gramática. No mundo romano, a

palavra gramática também era usada para se

referir a todos esses estudos de letras. A pessoa

que tinha a capacidade de ler e escrever era for-

mada na arte gramática, na Hé Tékhne Gramma-

tiké, ou ars litteraria, ou ars grammatica, ou ars


Marco Terêncio Varrão, Filósofo litteratura e assim por diante.
(116 a.C. - 27 a.C.)

Portanto, em geral, literatura e gramática são a mesma coisa. Entre-

tanto, hoje, pensamos que gramática são aquelas regrinhas que tratam

da fonologia, dos ditongos, tritongos, dos dígrafos, de quais são as vogais

e quais são as consoantes. Nós temos a noção de que gramática é isso.

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Inclusive, na escola, literatura é uma outra matéria e a redação, ainda outra.

Segundo a educação clássica e toda a tradição educacional ocidental, essas

coisas estavam perfeitamente unidas. Um professor nunca iria ensinar o

que é um advérbio sem dar um exemplo literário, sem expor isso de um

autor, porque a autoridade contava muito mais. Por outro lado, também

nunca daria o exemplo de um autor sem fazer a análise sintática daquele

período, verso ou estrofe. Exercia-se um ir e vir muito natural, pois não havia

essa separação entre as duas coisas.

Quando falamos de qualquer tipo de conhecimento, todas essas

separações podem ajudar para que foquemos em um tópico específico,

fazendo com que nos dediquemos àquilo durante um certo período. Con-

tudo, depois, é preciso fazer a expansão também e me questionar: para que

serve tudo isso? No que isto me ajuda? O contrário também é verdadeiro.

Se eu for ler Camões, por exemplo, não preciso ficar o tempo todo fazendo

a análise sintática da obra, inclusive, nem devo, mas, muitas vezes, quando

não compreendemos algo, é um recurso válido parar para pensar qual é o

sujeito, qual é o objeto direto, qual é o verbo. Depois dessa análise, o texto se

torna compreensível. Portanto, é sempre essa via de mão dupla ou até tripla

que nos ajuda a compreender qualquer texto.

2.1. SOBRE OS PERÍODOS

Dito isso, toda vez que eu disser a palavra

“literatura”, ou arte gramática, ou qualquer coisa

assim, não estou me referindo somente àquela

literatura que estudamos na escola, em que

normalmente aprendemos os períodos da liter-

atura, os quais são estipulados posteriormente.

Gregório de Matos Guerra, por exemplo, não se


Gregório de Matos, Advogado e
declarava um poeta barroco. Ele era só um poeta. Poeta (1636 - 1696)

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Da mesma forma, um escritor de hoje em dia não vai declarar que

pertence a uma escola x, vai apenas dizer que é escritor. A contextualização

acontece depois. Na época da Renascença, embora esta palavra já existisse,

os artistas não se diziam renascentistas ou “eu faço arte renascentista”. Eles

simplesmente faziam arte e diziam ser inspirados pelos clássicos da arte

greco-romana. Naquele período, ninguém dizia “Nós que vivemos na Rena-

scença”, pois, para eles, era tudo contemporâneo.

Na aula de literatura, temos a mania de estipular os estilos e os

períodos, estudando dessa forma estanque, como se períodos da arte e da

literatura realmente existissem. É preciso ter em mente que estudamos

esses períodos para ter uma consciência um pouco maior disso, mas o

melhor é que entendamos um texto, uma poesia, um romance, enfim,

aquela obra de arte, em si mesma. Devemos entender aquilo por si só,

sabendo que um escritor sempre conversa com outro e que tudo aquilo

que leio vai influenciar no que escrevo, algo que aconteceu muitas vezes

ao longo da história.

2.2. A COMPREENSÃO DO TEXTO

Eu usei um verbo: eu leio. Aqui, existe um grave problema. Nós temos

a consciência de que existe o analfabeto e o alfabetizado e que, depois de

aprender a ler, eu já consigo ler qualquer coisa, pois sei juntar letras para

formar uma sílaba e sei juntar sílabas para formar uma palavra. E assim,

sucessivamente, juntando frases e parágrafos, eu consigo ler. Conseguir

fazer essa junção é um nível de leitura. Isso é o que define o alfabetizado.

Depois que junta as letras, as sílabas, as palavras e lê em voz alta, consider-

amos que uma criança já sabe ler. Mas é aqui que termina a formação de

um leitor? Quero saber de vocês se isso é o suficiente.

Aluno: acho que é preciso compreender.

Compreender.

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Aluno: compreensão do texto, porque você sabe ler, mas não sabe o

que está sendo dito.

Exatamente. É disso que nós vamos falar aqui. Compreensão. Tem

mais alguma coisa?

Aluno: acho que precisa povoar o imaginário com experiências.

Exatamente. Se eu nunca vi o mar, é muito difícil que consiga imag-

iná-lo. E eu preciso ter padrões de comparação. Como se explica para alguém

que nunca viu o mar o que este é. O que passa na cabeça de um escritor?

Aluno: mais uma criança né…

Ou até mesmo um adulto. No Brasil, há muitas pessoas que nunca

viram o mar, mesmo sendo adultas. Claro que, hoje em dia, a pessoa pode

tê-lo visto pela televisão, mas, vendo na televisão, a pessoa tem a real

dimensão do que seja o mar? E nós, que já fomos muitas vezes à praia e

ficamos com a água batendo na nossa cintura, temos a mesma dimensão

do que seja o mar do que alguém como Amyr Klink, que foi até a África

remando? Quando falamos a palavra “mar”, estamos nos referindo à mesma

coisa que o Amyr Klink?

Aluno: provavelmente não.

É aquela história do esquimó, que tem não sei quantas palavras

para dizer neve. Nós dizemos só neve. Inclusive, se esfregamos um isopor,

chamamos isso de neve também, porque, no geral, aqui no Brasil, a única

referência que temos é por assistir na televisão e coisas assim. A pessoa que

nasce e vivi aqui nunca vê neve. Até pode existir uma palavra para isso, mas

é difícil de explicar.

Eu vivo em Porto Alegre, mas a minha família por parte de pai vive

no norte, no Maranhão. Muitas vezes, esses parentes foram nos visitar para

que seus filhos conhecessem o frio. As crianças viam na televisão filmes

em que fazia frio, ouviam falar do frio e questionavam os pais sobre. Eles

decidiram fazer uma viagem para o Rio Grande do Sul em julho, para que

conhecessem o frio. Antes disso, quando as crianças perguntavam sobre o

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frio, eles diziam: “Imagina que você entrou dentro da geladeira, é mais ou

menos isso”. Não podemos fazer isso, pois não tem ar, não conseguimos

respirar dentro da geladeira. Os pais explicavam para os filhos que, no caso

do frio há ar.

Com isso, surge um outro problema. Qual é o problema de dizer que

o frio é como entrar em uma geladeira? Quem explica o frio assim, fá-lo

porque não é escritor. O bom escritor dá um exemplo um pouco melhor do

que esse da geladeira. Para explicar o frio, o escritor não diz “entra numa

geladeira”, porque, embora seja realmente frio na geladeira, há vários outros

elementos que não tem qualquer relação como, por exemplo, a falta de ar. O

escritor é alguém que sabe contar as experiências e descrever as coisas

de uma forma admirável, de uma forma que seja fácil de memorizar.

Digamos que eu conte para vocês a história sobre meu dia de hoje

até aqui. Como eu disse, eu saí de casa às quatro da manhã, fui para o aero-

porto, cheguei lá, fiz o check-in, fiquei esperando na sala de embarque,

entrei no avião, dormi durante o voo, desci em Guarulhos e peguei um táxi

até aqui. Muito bem. Amanhã, se eu perguntar para vocês como foi a minha

viagem, só por este relato, você vai se lembrar. Daqui uma semana, nin-

guém mais se lembra, porque isso não tem importância nenhuma para a

vida de ninguém, nem mesmo para a minha.

E não é assim muitas vezes quando estamos ouvindo alguém contar

episódios de sua vida? Há dois tipos de pessoas. Há aquelas que ouvimos

contares histórias com muito prazer. Pode até ser esses mesmos fatos que

eu narrei, mas a pessoa tem todo um jeito de contar que torna a história

interessante. Ela insere exemplos como “Daí, logo que desci no aeroporto,

estava ali na esquina fumando um senhor com uma chapelão e um grande

bigode enrolado”. A pessoa presta atenção nesses detalhes e enfoca sua

narrativa nesses aspectos extraordinários. Por outro lado, há aquelas pes-

soas objetivas. Quando contam suas histórias, nunca são lembradas, justa-

mente por isso. Essa pessoa não diz nem que desceu do táxi, diz que desceu

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do automóvel, usando palavras de caráter mais geral. O específico diz: “Eu

desci de um táxi fedendo a cigarro com um motorista que usava um moi-

cano”. Aquele que sabe contar histórias vai nos dando detalhes. E o que

acontece? Nós vamos imaginando aquilo.

É o que comentaram sobre povoar o imaginário. Nós começamos a

imaginar o cheiro do cigarro e, se gostamos ou não do cheiro, teremos uma

reação diferente em relação a isso. E você realmente é envolvido por aquilo.

Assim, o sujeito faz com que você nunca mais esqueça de algo tão trivial

como uma viagem de uma hora de duração. E aquilo fica na memória das

pessoas, fica imortalizado.

Não é à toa que chamamos os membros da Academia Brasileira de

Letras (ABL) de imortais. Isso parece um exagero, porque se trata de Sarney,

de Jô Soares, de Paulo Coelho. Então, por que imortais? Eles são imortais

porque conseguiram contar uma história que, uma vez lida, não morre mais

da minha memória, aquilo ainda vive e está sempre presente.

Então, sim, temos que compreender o texto, porque se em vez de

dizer que o taxista tinha cabelo moicano, tivesse dito iroquês, que significa

exatamente a mesma coisa, e você não soubesse o que é isso, não adiantaria

nada. Por isso, é preciso compreender. Para poder imaginar, para povoar o

imaginário, antes, tenho que compreender. E essa é uma dificuldade que

se apresenta. Muitas vezes, lemos um texto e não o compreendemos. Lá no

Rio Grande do Sul, essa é a dificuldade que temos para que a nossa arte

folclórica mais popular saía daquele contexto. Quando conta uma história,

o gaúcho diz:

Bochincho, de Jayme Caetano Braun

A um bochincho certa feita

Fui chegando de curioso

Que o vício é que nem sarnoso

Nunca para nem se ajeita

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Baile de gente direita

Eu vi, de pronto, que não era

Na noite de primavera

Gaguejava a voz dum tango

E que eu sou louco por fandango

Que nem pinto por quirera

Atei meu baio longito

Num galho de guamirim

Desde guri eu fui assim

Não brinco nem facilito

Em bruxas não acredito

Pero que las, las hay

Eu sou da costa do Uruguai

Meu velho pago querido

E por andar desprevenido

Há tanto guri sem pai

No rancho de Santa Fé

De pau-a-pique barreado

Num trancão de convidado

Eu me entreverei no banzé

O chinaredo à bola-pé

No ambiente fumacento

O candieiro, bem no centro

Num lusco-fusco de aurora

Pra quem chegava de fora

Pouco enxergava ali dentro!

Dei de mão numa tiangaça

Que me cruzou no costado

E já sai entreverado

Entre a poeira e a fumaça

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Oigalé China lindaça

Morena de toda a crina

Dessas da venta brasina

Com cheiro de lechiguana

Que quando ergue uma pestana

Até a noite se ilumina

Misto de diaba e de santa

Com ares de quem é dona

E um gosto de temporona

Que traz água na garganta

Eu me grudei na percanta

O mesmo que um carrapato

E o gaiteiro era um mulato

Que até dormindo tocava

E a gaita choramingava

Como namoro de gato!

A gaita velha gemia

Às vezes quase parava

De repente se acordava

E num vanerão se perdia

E eu contra a pele macia

Daquele corpo moreno

Sentia o mundo pequeno

Bombeando cheio de enlevo

Dois olhos flores de trevo

Com respingos de sereno!

Mas o que é bom se termina

Cumpriu-se o velho ditado

Eu que dançava, embalado

Nos braços doces da China

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Escutei de relancina

Uma espécie de relincho

Era o dono do bochincho

Meio oitavado num canto

Que me olhava - com espanto

Mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio

Pois era dele a pinguancha

Bufando e abrindo cancha

Como dono de rodeio

Quis me partir pelo meio

Num talonaço de adaga

Que se me pega, me estraga

Chegou levantar um cisco

Mas não é à toa chomisco!

Que sou de São Luiz Gonzaga!

Meio na curva do braço

Eu consegui tirar o talho

Mas quase que me atrapalho

Porque havia pouco espaço

Mas senti o calor do aço

E o calor do aço arde

Me levantei sem alarde

Por causa do desaforo

E soltei meu marca touro

Num medonho buenas-tarde!

Eu tenho visto coisa feia

Tenho visto judiaria

Mas hoje ainda me arrepia

Lembrar aquela peleia

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Talvez quem ouça - não creia

Mas vi nascer no pescoço

Do índio do berro grosso

Como uma cinta vermelha

E desde o beiço até a orelha

Ficou relampeando o osso!

O índio era um índio touro

Mas até touro se ajoelha

Cortado do beiço a orelha

Amontoou-se como um couro

E amigos foi um estouro

Daqueles que dava medo

Espantou-se o chinaredo

E aquilo foi uma zoada

Parecia até uma eguada

Disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato

Dum bochincho quando estoura

Tinidos de adaga espora

E gritos de desacato

Berros de quarenta e quatro

De cada canto da sala

E a velha gaita baguala

Num vanerão pacholento

Fazendo acompanhamento

Do turumbamba de bala!

É China que se escabela

Redemoinhando na porta

E chiru da guampa torta

Que vem direito à janela

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Num grito de toda guela

Num berreiro alucinante

O índio que não se garante

Vendo sangue se apavora

E se manda campo fora

Levando tudo por diante!

Eu sou crente na divindade

Morro quando Deus quiser

Mas amigos se eu disser

Até periga a verdade

Naquela barbaridade

De chinaredo fugindo

De grito e bala zunindo

O gaiteiro alheio a tudo

Tocava um xotes clinudo

Já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim

Balanceei a situação

Já quase sem munição

Todos atirando em mim

Qual ia ser o meu fim

Me dei conta de repente

Não vou ficar pra semente

Mas gosto de andar no mundo

Me esperavam nas do fundo

Eu aí na Porta da frente

E dali ganhei o mato

Abaixo de tiroteio

E inda escutava o floreio

Da cordeona do mulato

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E, pra encurtar o relato

Me bandeei pra o outro lado

Cruzei o Uruguai, a nado

Que o meu zaino era um capincho

E a história desse bochincho

Faz parte do meu passado!

E a China essa pergunta me é feita

A cada vez que declamo

É uma coisa que reclamo

Porque não acho direita

Considero uma desfeita

Que compreender não consigo

Eu, no medonho perigo

Duma situação brasina

Todos perguntam da China

E ninguém se importa comigo!

E a China eu nunca mais vi

No meu gauderiar andejo

Somente em sonhos a vejo

Em bárbaro frenesi

Talvez ande por aí

No rodeio das alçadas

Ou talvez nas madrugadas

Seja uma estrela chirua

Dessas que se banha nua

No espelho das aguadas!

Nesta poesia, é uma história que está contada. Concordamos que

é preciso compreender. Para isto, é importante conhecer a língua portu-

guesa. Excetuando-se uma palavra ou outra de espanhol, há um aspecto

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muito regional que realmente não é obrigatório que todas as pessoas con-

heçam. No entanto, nunca é obrigação de um escritor ser universal no seu

vocabulário.

2.3. O CARÁTER UNIVERSAL

Vamos sair do Rio Grande do Sul e ir para a maior obra da literatura

italiana. Em “Divina Comédia”, Dante Alighieri empregou uma língua falada

pelos povos ao redor de Florença. Era uma língua que ninguém aprendia

na escola e na qual ninguém sabia escrever. Na época, se era alfabetizada,

a pessoa utilizava o latim para escrever. O italiano não era para ser escrito.

Dante é um dos primeiros que realmente começa a fazer isso e o faz de forma

regional mesmo. No livro, ele menciona picuinhas da cidade, sobre quem

roubava, sobre quem havia sido pego em adultério. Então, ainda que faça

referência a papas, a reis, a figuras mitológicas,

insere, no meio destes, essas pessoas. No Inferno,

ao lado de Ulisses da “Odisseia”, está um sujeito

de Florença que tinha seus pecados e que Dante

coloca ali como o exemplo do grande pecador.

Apesar disto, é o livro mais universal de todos.

Uma vez perguntaram a Chesterton, um

escritor inglês, o que uma obra precisa para ser

universal. Chesterton respondeu que um escritor

deve cantar sua própria aldeia, deve cantar o


G. K. Chesterton, Escritor (1874 - 1936)
entorno no qual vive e daí será uma obra universal.

Agora, cabe a pergunta: como nós fazemos para entender isso se

nós não nascemos naquela mesma aldeia? A questão é que há obras que

são tão fortes, há escritores que realmente cantam a sua própria aldeia, tal

como Dante, que nos esforçamos para imitá-los. Nós declaramos que quer-

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emos participar dessa aldeia, que queremos viver ali onde o escritor vivia,

queremos falar essa mesma língua. E, a partir de Dante e de alguns outros,

como Petrarca e Boccaccio, mas principalmente de Dante mesmo, é que

temos a língua italiana. Dante é o fundador da língua italiana.

Assim, vemos como um sujeito contando uma história cheia de

regionalismos consegue fazer a história mais universal de todos, que toca

na alma de cada um, porque aborda todos os pecados e todas as virtudes.

Ao lermos os personagens de Dante, conseguimos analisar nossas próprias

tendências, virtudes e vícios. Podemos pensar “Eu não fiz exatamente como

o Beltrano, mas eu tenho essa tendência. Bem que eu poderia estar no

Inferno. Neste outro aspecto, retratado num outro personagem, eu mereço

um purgatório. Pelo menos essa virtude do Céu, dos bem-aventurados, eu

tenho tentado desenvolver”.

Nós ainda estamos nesse primeiro aspecto: entender. Estamos

falando de entender para, aí sim, podermos imaginar, porque se não enten-

demos, não conseguimos imaginar. Havia quem entendesse Dante? Sim,

mas eram muito poucos. Havia quem entendesse apenas uma pequena

parte. Mas, se quero ler tudo, vou ler mais, vou

memorizar. Tocadas pelo texto, as pessoas com-

partilham a obra e, partir de então, forma-se

uma língua, a qual será, futuramente, a língua

nacional italiana. Hoje, claro, o italiano não é o

mesmo que está presente em “ Divina Comédia”.

Há diferenças, porque a língua viva sempre se

modifica. No entanto, Dante é o pai fundador da


Martinho Lutero, Reformador
língua italiana, assim como Lutero é o fundador Protestante (1483 - 1546)

da língua alemã.

Lutero era um gênio linguístico. Ele conhecia grego, hebraico e latim

muito bem. Grande tradutor, coordenou uma equipe responsável pela

tradução da Bíblia. A primeira vez que essa edição foi lida em um culto, nin-

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guém entendeu nada. Alguém pode objetar que era a língua do povo, mas,

na verdade, era baseado na língua do povo. Normalmente, sem um Dante,

sem um Lutero, sem um Camões, a língua do povo não serve para tratar

desses assuntos, porque é preciso um vocabulário muito mais elevado. As

frases são formadas por períodos muito mais complexos para que se possa

dizer aquilo que se quer e aquilo que realmente está ali.

Reflita. Nós conseguíriamos tratar de todos os assuntos elevados

presentes na Bíblia, nas obras de Aristóteles e etc., se usássemos a língua do

nosso dia a dia em casa? Não conseguiríamos. Nós não usamos um vocab-

ulário rebuscado para tratar de coisas cotidianas. A matéria e a forma, que é o

vocabulário, que é a gramática, que é a literatura toda, são parelhas. Quando

temos uma matéria simples, tal como é nossa vida em casa, usamos uma

língua simples. Por outro lado, quando tratamos de matérias mais elevadas,

como o destino da alma post mortem, usamos uma linguagem como a da

“Divina Comédia”.

O que esses autores fazem? Esses autores conseguem elevar a língua

popular, a língua falada em casa, para tratar de matérias elevadas. E é isso

que torna sua leitura e compreensão difíceis, porque utiliza um vocabulário

que me é desconhecido. Se eu aprendi a ler em Santa Catarina e escuto

esse poema gaudério que declamei, já não me é suficiente, porque é um

outro vocabulário. Por mais que seja a mesma língua e essas palavras todas

estejam contidas no dicionário da língua portuguesa.

Isso significa que saber o significado dicionarizado das palavras ou,

ainda, antes disso, ter um vocabulário do dia a dia, é insuficiente para con-

seguir entender tudo. O primeiro ponto é o vocabulário, as palavras. Nas

primeiras vezes em que ouviram Lutero ler a Bíblia, as pessoas entenderam

apenas parcialmente o que havia sido dito. Depois, na Homilia, no sermão,

Lutero teve de explicar aquilo que foi lido, tal como era feito antes, porque

se lia em latim e, obviamente, as pessoas não falavam latim. Havia uma

explicação de versículo por versículo, com a tradução de várias palavras. Era

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uma explicação de ordem espiritual e teológica, mas era uma explicação.

Hoje em dia, nos cultos e missas, os textos não são lidos em portu-

guês e mesmo assim explicados depois? Porque não faz diferença nen-

huma em que língua o texto é lido, é preciso de explicação. E assim como é

com a Bíblia na realidade religiosa, assim é com toda a literatura. No fundo,

nós precisamos de algum tipo de explicação, ou dada por outrem, ou por

nós mesmos. Nós mesmos temos que parar e nos explicar aquilo. Com isso,

percebemos que não estamos entendendo algo. Digamos que eu resolva

ler Camões. Eu vou até a metade do primeiro canto e não consigo, não

entendo. Camões fala de Taprobana, de Hipocrene e eu não sei o que são

esses lugares.

2.4. OS NÍVEIS DE LEITURA

A questão é que existe esse nível de entender aquilo que se lê. É aquilo

que Mortimer Adler chama de leitura elementar. Em “Como ler livros” (1940,

Adler expõe que existem quatro níveis de leitura.

1) Nível Elementar: saber ler e entender.

2) Nível Inspecional: começamos a imaginar e a povoar o imaginário


com aquilo que estamos lendo.

3) Nível Analítico: é mais reflexivo, é uma leitura que fazemos de

olhos fechados.

Por exemplo: eu leio o verso: “Mas, ao chegar a distância de grito,

somente, da praia, bem claro ouviu o barulho do mar ao quebrar-se nas

pedras;”. “[...] bem claro ouviu o barulho do mar ao quebrar-se nas pedras;”.

Eu estou conseguindo imaginar isso? Uma coisa é ouvir claramente o

barulho do mar quebrando-se nas pedras, outro, é ouvir de longe. É pre-

ciso fazer isso, de ficar pensando verso por verso, com todo texto? Não, nós

nos acostumamos aos poucos com isso. Se o fazemos duas ou três vezes,

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percebemos que nossa leitura melhora muito, que isso vai ser automático.

Vamos fazer isso, dessa profundidade, rapidamente, sem precisar verbalizar.

Se no texto diz “[...] barulho do mar ao quebrar-se nas pedras;”, que eu real-

mente remeta a minha imaginação ao barulho do mar quebrando-se nas

pedras. E não algo vago, como ter lido algo sobre o mar. Não, é o barulho do

mar quebrando-se nas pedras.

Aí sim, eu posso pensar: mas o que o autor quer dizer com barulho

do mar? Normalmente, é isso que vemos nas aulas de literatura. O que o

autor quis dizer não interessa, pois, se quis dizer e não conseguiu, é um mau

autor. O importante é o que realmente disse e o que aquilo pode significar.

Pode-se objetar: “Ah, mas talvez ele não tenha escrito exatamente isso. Foi

só o meio que ele tinha para escrever”. E é assim, bem-vindos à literatura.

Às vezes, o autor quer dizer algo, não consegue e acaba dizendo outra coisa.

As interpretações que surgem e a forma como aquele texto toca nas pes-

soas é diferente e não tem relação com a ideia originária. Às vezes, chega-se

a sentidos mais ricos do que aquilo que o autor realmente disse.

As palavras que o autor usa e a própria realidade são uma só. Se o

autor escreve em grego, é a língua grega. Se trata de guerras, de viagens de

amores, todos esses elementos são sempre os mesmos. Há situações difer-

entes, mas o amor é um só, a guerra é uma só, a viagem é uma só. Então,

o importante é o que o autor diz. Cada um pode interpretar do seu jeito.

Ninguém vai forçar a barra e dizer que com a palavra “mar”, na verdade, o

autor está falando das emoções que surgem como o mar que lava, porque

as lágrimas são emoções. Não, existe um limite para essa interpretação.

2.5. OS PASSOS PARA O CONHECIMENTO

Para resolver isso, não ficamos restritos a Mortimer Adler. Depois,

voltaremos a ele e ao seu quatro nível de leitura. Mortimer Adler é do século

XX. Nós temos um outro autor chamado Hugo de São Vitor.

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Hugo de São Vitor nos ensina a ler. Em um

texto bem curto chamado “Opúsculo sobre o modo

de aprender e meditar”, Hugo de São Vitor afirma

que todo conhecimento apresenta três passos. O

primeiro passo é a leitura, o segundo, a meditação

e o terceiro, a contemplação. Podemos entender que

essa é uma afirmação muito forte. Afinal, como São

Vitor pode nos dizer que todo conhecimento começa

com a leitura se conhecemos várias coisas sem pre-


Hugo de São Vitor, Filósofo
(1096 - 1141)
cisar ler? Isso é verdade. Eu conheço meu filho, meus

pais, minha esposa e nunca li nada para conhecê-los.

Além disso, eu conheço a cidade onde moro e nunca li nada sobre ela. Eu

conheço o jeito das pessoas, as ruas, tudo isso, sem nunca ler nada. Como,

então, Hugo de São Vitor pode dizer que o conhecimento começa com a

leitura?

Hugo de São Vitor é um autor do século XII. Nessa época, e desde

o século IX, havia uma analogia que serviu para que a ciência e o conhe-

cimento em si, tal como o compreender atualmente na Modernidade, se

desenvolvesse. Neste período, havia dois tipos de livros: o codex, uma bro-

chura, uma encadernação em páginas, e o volumen, que é um rolinho, um

pergaminho, um papiro. O codex é um livro que abrimos, lemos, meditamos,

contemplamos e assim entendemos. No entanto, existe um livro que não é

um livro, mas é como se fosse. Guardem bem esse “como se fosse”, porque

ainda vamos falar bastante disso. Esse outro livro que não é um livro, mas é

como se fosse, é a natureza inteira, é a própria Criação.

Nós estamos em um contexto altamente cristão. Aqui, o cristianismo

já tem mais de mil e cem anos. A Criação inteira é como um livro. Se não

abri-lo e começar a lê-lo, não entendo nada, nem sei do que se trata. Eu

tenho que ler o título, o autor, em que época foi escrito ou, se não sei em

que época foi escrito, olho para a própria Criação, assim como olho para um

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
autor e percebo se parece antigo ou não através das dicas que este me dá.

Se eu leio Machado de Assis, por exemplo, vejo que deu algumas dicas de

que viveu no século XIX.

Conforme vou me tornando um leitor melhor, consigo identificar

com mais facilidade essas informações de cada obra. A leitura é como

escutar uma música. Ao ouvir uma obra, percebo que se trata de uma

sonoridade barroca. Depois, tento identificar se é Bach, Vivaldi, Corelli ou

Telemann. Escuto mais um pouco e identifico com certeza que é uma obra

de aproximadamente 1710. Eu consigo fazer isso conforme for escutando

música, conforme entender da música, conforme for a mais concertos e

tiver experiência daquilo.

Se consigo escutar música, abrir um livro qualquer e identificar que

é contemporâneo de Machado de Assis, com a natureza, é a mesma coisa.

Eu contemplo uma árvore de tronco muito grosso e sei que é muito antiga.

Se você falar para uma criança pequena, que pouco leu o livro da natureza,

que aquela árvore grossa tem a mesma idade que ela, ela acredita, porque

não lê a natureza.

Você pode achar que isso é infantil, mas nós somos infantis quando

lemos os livros. A nossa formação literária é infantil. Na escola, convence-

ram-nos de que abrir um livro e ler: “Alça-se Aurora do leito”, é ler. E que,

quando não sei o significado de uma palavra, basta conferi-lo no dicionário.

Mas, e quando a palavra não está no dicionário? Digamos que li “Onde

estava o preclaro titono”, e eu não sei o que é titono e essa palavra não está

no dicionário. E agora, o que faço?

Isso não se resolve assim. Então, como eu ensino para uma criança

que aquela árvore não tem apenas a idade dela? Se eu digo que aquela

árvore é mais velha do que ela e ela me pergunta por que, eu respondo:

“Porque se você cortar a árvore, dentro dela, haverá vários anéis e cada anel

corresponde a um ano de vida da árvore”. A criança pode querer cortar a

árvore para verificar se isso é verdade. Você lhe explica que não precisa.

21
E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Então, ela quer saber como nós sabemos isso sem cortá-la. Como lidamos

com isso? Eu não posso focar naquela árvore e tentar explicar a árvore pela

árvore. Eu tenho que sair dali. Eu vou mostrar para ela uma árvore bem

pequena, explicar que é uma árvore jovem, que é como se fosse um bebê. E

complemento: “Sabe o bebê? Você também era bem pequenina. Só que a

árvore não para de crescer. Enquanto estiver viva, ela cresce. Há árvores que

eram bebês antes mesmo de você, eu ou até mesmo a sua avó nascermos. E

são muito, muito velhas. É por isso que crescem, crescem, crescem e ficam

muito, muito grandes. Portanto, se a árvore é muito grande, é muito mais

velha. Muito mais velha que o papai, muito mais velha que a mamãe”.

Percebam o que fizemos. Nós falamos que a árvore é um bebê. Nós

fomos lá e mostramos uma árvore bem pequena. Para explicar o que é

algo, temos que usar algo diferente daquilo. Este é o grande segredo da

literatura. É preciso comparar uma coisa com outra para que eu entenda

essa uma. Não tem como fugir disso. Eu não posso focar em uma única

coisa e ficar “eu tenho que entender isso aqui. Olha no dicionário, olha na

enciclopédia”. Não é assim, até porque, a literatura lida com palavras, com

letras, littera, e a própria letra é só um símbolo, é uma coisa que não é.

2.6. O QUE É A LITERATURA?

A língua é o som. A letra é algo acidental, que represento. Eu

escrevo “Eneida”, mas o nome disso é a pronunciação Eneida, não são as

letras “E-n-e-i-d-a”. O que está escrito é só o símbolo. Há outro ponto: o som

que faço também é um símbolo, mas, daí sim, é um símbolo da reali-

dade, símbolo do livro da natureza, símbolo do livro da Criação. E nós só

conseguimos alcançar esse livro da Criação como realmente é por meio de

algo que não é, que é o nosso discurso, a nossa fala. São as nossas histórias,

caso contrário, não conseguimos. Não conseguimos raciocinar.

A linguagem não é o único meio de raciocinar, mas é o principal

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
meio que usamos para entender as coisas. O que é o universo? O universo é

o conjunto de todas as coisas mais a linguagem humana, que é algo único.

Todo resto é muito parecido e parece pertencer à mesma esfera dos seres.

É tudo igual. Se olhamos nosso corpo e observamos outros animais, os veg-

etais, é tudo muito parecido. Agora, existe uma única coisa que não tem

relação com o resto, que é a palavra. Se olhamos para o resto da realidade,

para as estrelas, para o mar, para o vento, para as árvores e tudo mais, tudo

mais ou menos pertence ao mesmo mundo. Tudo parece ser harmonioso.

Agora, nossa linguagem não parece. Nossa linguagem não guarda relação

com o resto das coisas que existem e nem é parecida com a linguagem dos

animais.

Um leão apresenta um rugido específico para avisar aos outros ou

avisar à leoa que tem comida. As abelhas apresentam um tipo de voo espe-

cífico com o qual avisam às demais quando há flores. Se não houver flores,

não conseguem fazer aquele voo. As abelhas não conseguem se remeter

aquilo. A abelha não consegue comunicar que viu flores ontem e que hoje

não sabe se será possível encontrá-las ou, ainda, dizer que tem a impressão

de que por tal caminho encontrarão flores. Portanto, não podemos nem

chamar de linguagem animal.

Voltemos à linguagem humana. O que existe é o mundo. O mundo,

em latim, diz-se mundus e significa “tudo”. O planeta Terra não é o mundo,

o planeta Terra é orbis terrarum, que significa o conjunto das terras. O

mundus é o cosmos. Cosmos, em grego, é o mundo. E o mundo é isso: a

linguagem humana e o resto todo. E aí temos a literatura, algo que só serve

para nos divertimos, algo que está presente naqueles salões de pessoas

chiques, em que estas se reúnem para declamar poemas e conversar sobre

crítica literária enquanto fumam charutos. É para isso que serve a litera-

tura? Obviamente que não. A literatura é uma necessidade absoluta do

homem de entender as coisas. Nós só conseguimos desenvolver a ciência

depois que tivemos um livro e entendemos como entender o livro. Eu abro,

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
leio, medito, contemplo. Aí, eu olho para o mar, medito, comparo uma coisa

com a outra, contemplo, chego a uma conclusão e passo a viver a partir

dela.

O que acontece nessa meditação? Como vimos, a leitura é entender

o que se lê e conseguir imaginar o que se está lendo. E, a partir deste ponto,

trabalhar para chegar realmente na contemplação, que é a visão dentro do

templo. Imaginem que vocês entraram dentro de um templo em formato

de abóbada, seja de qual religião for. Vocês estão no centro, no ar. Ponham

a visão ali. E esse templo está todo ornado. Ele tem esculturas, pinturas

e você consegue ter uma visão esférica, de olhar para todos os lados ao

mesmo tempo. O teu olho está solto dentro desse templo. Isso significa o

verbo “contemplar”, é estar com o templo, é estar ali presente no próprio

templo. Considerar, por sua vez, é olhar as coisas aqui debaixo de acordo

com o sidera, de acordo com as estrelas. Portanto, é ver o que está em cima

e a relação que essas coisas têm com aquilo que está embaixo. É mais ou

menos a mesma coisa que contemplar. É ver que uma coisa está ali (pro-

fessor aponta para cima) e outra está aqui (professor aponta para baixo).

Parece que não há nenhuma relação entre elas, mas eu consigo ver uma

relação. E todo mundo consegue.

Por exemplo: como sabemos que daqui a dois meses vai estar muito

mais calor do que agora? Porque vai mudar a estação do ano. E como

sabemos que as estações do ano mudam? Porque passam-se os dias e

meses. E como passam os dias e os meses? Um dia é um giro da Terra em

torno de si mesma. E o que acontece? Às vezes, a Terra muda sua inclinação

e fica mais próxima do Sol. Quando o Hemisfério Sul está mais próximo

do Sol, é verão neste hemisfério e inverno no Hemisfério Norte. Mas como

sabemos isso? Sabemos isso porque olhamos para o céu. Consideramos as

coisas e vemos que aqui fica mais quente. No Sol, está quente igual. No

espaço, está sempre quente igual. No entanto, aqui fica quente só em certas

épocas do ano e não em outras. Sabemos disso porque ficamos olhando

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
para o céu, para a Terra, para o céu e para Terra novamente, e criamos, a

partir disso, um discurso todo próprio.

Isso é contemplar, isso é considerar. Meditamos sobre um ponto e

conseguimos perceber dois, três, quatro, cinco que estão relacionados com

esse.

É mais ou menos disso que Mortimer Adler trata no quarto nível de

leitura, a leitura sintópica. Quando Mortimer Adler fala em leitura, está real-

mente falando da leitura em stricto sensu, em senso estrito. É a leitura de

livros, portanto. Hugo de São Vitor, por outro lado, está falando da leitura da

realidade inteira.

2.7. OS NÍVEIS DE LEITURA DE DANTE

Da mesma forma, Dante, que escreveu “Divina Comédia”, explica

como funciona a interpretação dos textos stricto sensu, a qual tinha de

servir como explicação para o livro da própria realidade, da própria natureza.

Dante especifica bem como se dá essa meditação, que é esse meio do

caminho de Hugo de São Vitor. Hugo de São Vitor afirma: leitura, meditação

e contemplação.
De acordo com a tradição de interpretação do Antigo Testamento

que vinha desde o povo hebreu, Dante Alighieri afirma que existem quatro

níveis para entendermos um mesmo texto.

1) Nível Literal: se leio “mar”, aquilo significa “mar”. É o significado

dicionarizado da palavra. Eu tenho que entender o que eu li. Mar significa,

imagino, oceano. Tanto que, quando olhamos para o oceano, dizemos “olha

como o mar está bonito”.

2) Nível Alegórico/Simbólico/Analógico/Figurado: embora analogia

e alegoria sejam coisas diferentes, cabem igualmente aqui. Neste nível,

mar não significa somente aquilo que está no dicionário, a não ser que este

contenha o significado figurado da palavra. Aqui, eu posso dizer “o mar de

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
amor”, posso dizer que a relação entre duas pessoas é um mar tempes-

tuoso. Eu posso dizer que meu ódio não cabe no mar. Posso ousar ainda

mais e dizer que “o mar e a Terra estavam conversando” e começar um

diálogo entre estes dois. Isso existe? Não, mas há situações que só vamos

entender por analogia.

Por exemplo, se eu narrar a seguinte história: “Era uma vez um lobo

e um cordeiro que foram até um riacho beber água. Ao avistar o cordeiro,

o lobo lhe ordenou que retirasse suas patas de dentro da água, pois estava

sujando a água dele. O cordeiro então retrucou que não poderia estar

sujando a água do lobo, pois estava em uma parte mais baixa do riacho.

Assim, a correnteza vinha do lobo para ele e não

o contrário. A sujeira não teria como subir. O lobo,

arguto, replicou que na semana anterior o cord-

eiro havia lhe ofendido ao acusá-lo de ser corrupto

e mau caráter. Mais uma vez, o cordeiro refutou

o lobo, dizendo que a recém tinha completado

três dias de vida e não poderia tê-lo ofendido

na semana anterior. O lobo retorquiu que o pai

ou tio do cordeiro deveria ser o responsável pela

acusação. Assim, o lobo caminhou em direção ao

cordeiro e o comeu”.

Isso é uma fábula de Esopo.

Isso aconteceu? Não teria sido mais fácil

usar o encontro entre um policial e um “mano”

na rua? O que é mais fácil de entender, não só


Esopo, Escritor (620 a.C. - 564 a.C.) para crianças, mas para os adultos também? As

fábulas de Esopo não foram escritas para crianças.

O que fica mais na sua mente, a história do lobo e do cordeiro ou aquelas

presentes nos programas policiais da televisão brasileira? Estas últimas

nós nos esquecemos. Acabamos retendo somente as frases de efeito ditas

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
pelos policiais. Na fábula de Esopo, um sujeito é mais forte que o outro, mas

entende que, por mais que possa fazer o que quiser, precisa inventar uma

desculpa. Além do policial, o lobo também poderia ser um traficante que

interpela um pobre pai de família que está voltando para casa ao fim do dia.

O lobo pode ser qualquer um, só precisa existir essa relação de força.

O lobo é forte e o cordeiro, fraco. Quem está com a razão? O fraco. E por que

o lobo não vai lá e o come logo? Assim, a história não teria graça. “O lobo viu

o cordeiro e o comeu” sequer seria uma história. Eu até posso narrar essa

cena se a ver, mas ninguém se lembrará dela. Agora, esse “Você está sujando

minha água” traz um outro significado para a história. Quantas vezes nós

mesmos não fazemos isso? Às vezes, eu quero tomar uma decisão, mas

tenho um freio moral. Por vezes, não é nem mal para outra pessoa, é para

nós mesmos. Digamos que eu esteja bebendo um vinho e quero continuar

bebendo. Na minha cabeça, tem início o seguinte diálogo: “Ah, agora que já

tomei uma taça de vinho, vou tomar essa garrafa toda. Porque essa semana

eu trabalhei, trabalhei bastante. Amanhã eu não tenho que acordar cedo,

e o vinho está barato, paguei pouco na promoção”. Esse é o lobo. Pode ser

uma coisa simples. Eu já vi o nível alegórico, figurado. Existe a força, e eu

tenho a força de pegar e tomar o vinho, é só fazer, entendem? Eu não faço

por um outro motivo, um motivo moral. E esse é o outro nível de qualquer

história, o nível moral.

3) Nível Moral: qualquer história, seja boa, seja ruim, sempre apre-

senta um nível moral, porque há personagens. Os personagens podem

até ser robôs, não importa. É preciso que eu entenda: “Na minha vida, esse

personagem sou eu ou é alguém que conheço? Eu não seria bem capaz de

fazer isso que esse personagem fez?”.

Por exemplo, em Dostoiévski, Raskolnikov mata uma agiota. “Será

que eu nunca seria capaz de fazer isso? Sim ou não? Bom, depende.

Depende do agiota, das leis do meu país, da minha punição, depende do

mal”. Isso aí é meditar. Tudo isso que nós estamos fazendo aqui é meditar, é

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
o nível de meditação. Depois, há o nível moral. Primeiro, eu entendo o que

é. Raskolnikov é só a história de um sujeito específico, histórico, que viveu

naquele momento, matou uma agiota e é uma reportagem de jornal? Não.

Até a reportagem de jornal pode ser meditada, mas não é a questão. Não é

informação, é formação. Um jornal até pode contar que um jovem chamado

Raskolnikov assassinou uma agiota, mas isso é informação.

Dostoiévski não era jornalista, não era cronista policial, era um escritor

e ele contou a história do Raskolnikov, o que se passou na cabeça dele, o

que a velha agiota fazia, quem eram os amigos e a família de Raskolnikov

e por aí vai. E isso nós temos que fazer. Ler é ficar pensando sobre o livro

que lemos. Ler as palavras é o primeiro nível. Entendeu o que é ler? Sim.

Imaginou? Sim, eu consegui imaginar Raskolnikov dando uma machadada

na agiota. Eu sei o que é um machado, eu sei o que é uma velha, sei o que é

sangue, sei o que é agiota. E agora? Eu continuo a leitura. Qual é o sentido

figurado, alegórico? Qual é o sentido moral? Depois, há um quarto sentido,

que é o sentido anagógico.

4) Nível Anagógico: o nível ainda está dentro da leitura, mas se asse-

melha à contemplação proposta por Hugo de São Vitor. No entanto, o nível

anagógico é mais do que a contemplação. Para usar uma frase de São Paulo,

o sentido anagógico é quando já não sou eu que vivo, é o Raskolnikov

que vive em mim. O coelho, quando come cenoura, não se transforma nela.

É a cenoura que se transforma em coelho. Quando leio a “Odisseia”, não me

transformo em Ulisses, mas é Ulisses quem se transforma em mim. Trata-se

de um processo digestivo, em que vou terminar a leitura um pouco mais

astuto, tal como Ulisses. Eu não vou precisar matar ninguém para saber o

sofrimento que Raskolnikov, porque sofri junto com ele. Eu também terei

viajado pelo Inferno, Purgatório e Paraíso junto com Dante.

O sentido anagógico é bastante difícil de compreender. Há muitas

leituras que, ao terminarmos o livro, não compreendemos. Não não vivemos

isso. Mas há diversos momentos na vida em que isso acontece. Nós sempre

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
conseguimos os três primeiros níveis: literal, que é entender o texto; figu-

rado, que é saber do que se trata, que não é um lobo nem um cordeiro, é só

uma relação de força e fraqueza; moral, que é ponderar, diante da minha

própria vida, quando eu vivo aquela situação e o que eu faria naturalmente

e o que faria refletidamente. Esses três, nós sempre conseguimos. O outro,

às vezes acontece, às vezes, não.

Aluno: pode-se dizer que seria uma forma de empatia com o person-

agem? Mais ou menos isso? Você entrar naquele papel, se colocar naquele

lugar?

Sim, mas é o contrário. É o personagem que vai entrar em ti. Você

realmente se coloca naquele papel, mas sem medo. Sempre deve ser

uma entrega total. Enquanto a leitura acontece, enquanto a meditação

acontece, é preciso uma entrega total, assim como me entrego totalmente

a um tomate com sal que eu coma. Eu não vou comer um tomate e digerir

somente a vitamina C. Se você comer um tomate, será feita a digestão

de todo ele e tudo que for bom, fica. O que não for bom, o corpo expele.

Às vezes, há diarreias literárias, que é quando lemos algo, analisamos os

três primeiros níveis, mas acabamos não contemplando, não tendo o nível

anagógico.

Em grego, “ana” significa para cima. Esse goge, tal como em peda-

gogia, é condução para. Portanto, é uma condução para cima. Muitas vezes,

não há esse nível anagógico, mas acho que todo mundo, por mais rasa que

tenha sido a vida de leitor, consegue provar isso. Há momentos em que sof-

remos com o personagem, não no sentido de ficarmos deprimidos como

ele, embora isso também aconteça. Como foi o caso do livro “Os sofrimentos

do jovem Werther” de Göethe. Anagógico é para cima. Eu sinto mais força

de viver. Você poderia perguntar: “Então é uma autoajuda, porque a pessoa

fica mais motivada?”. Não. A questão é que eu não vou mais conseguir viver

sem ponderar Werther na minha vida.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
2.8. PARA QUE SERVE A LITERATURA?

Isso dá mais trabalho. A leitura é um

movimento intelectual e a vida intelectual é

algo que dá trabalho. Depois que leio, minha

vida não fica mais fácil, porque isso não é para

facilitar a vida, na verdade, é para complicá-la.

Alcuíno de Iorque, um pedagogo do século IX,

era mais ou menos o Paulo Freire do Carlos


Alcuíno de Iorque, Pedagogo
Magno. (735 - 804)

Alcuíno foi o organizador de toda a educação na formação do Império

Carolíngio, então, a influência dele se espalhou para a Europa inteira, tendo

em vista que Carlos Magno é um dos fundadores da Europa Moderna, jun-

tamente com São Bento. Alcuíno era beneditino. São Bento é bem mais

velho que Carlos Magno.

A obra de Alcuíno é bem pequena, mas há três passagens em que

diz que as raízes são amargas, mas os frutos são doces. Radices litterarum

sunt amarae. As raízes das letras são amargas, mas os frutos são doces.

Quais são as raízes das letras? É o aprender a ler nesses três níveis e um dia

alcançar o quarto? Sim, mas a má notícia é que isso dura mais ou menos a

vida toda. Os frutos vão ser doces algum dia, mas ninguém sabe quando.

Não há como dizer: faça isso, isso e isso e aí vai dar certo.

Tudo isso que transmiti a vocês, nos encaminhando para o final, é a

tradição, eu não inventei nada. Isso é Hugo de São Vitor, Mortimer Adler e

Dante Alighieri. Na obra “Convívio”, Dante fala disso. Essa é uma obra em

que ele mesmo interpreta seus próprios poemas de acordo com esses níveis

de leitura. Nós faremos isso nas próximas aulas, lendo alguns livros. O que

transmiti até aqui é a mais pura tradição de algo que não é ler para poder

citar enquanto fumo charuto e bebo uísque. Não é para isso que a literatura

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
serve. Imagine o esforço que o sujeito teve para escrever um livro. As pessoas

que escrevem para o entretenimento, sejam as novelas atuais ou aqueles

livros de antigamente que cumpriam o mesmo fim que estas, talvez sim, e

não é indigno o que fizeram. A alta literatura imortal, entretanto, não tem

essa finalidade. O sujeito não pensou “Tomara que alguém um dia fique

me citando numa rodinha de amigos, citando umas frasezinhas de efeito

que tirou das minhas obras”. Não foi para isso e não é isso que podemos

tirar dessas obras. A literatura não serve para isso. A literatura é mesmo

um alimento e, veja só, temos que comer a vida toda. Se não comermos,

morreremos. A alma também tem essa vida e precisa de alimento. É só

a literatura? Não, há outras artes também, mas a literatura é a principal,

sempre foi. É a mais acessível, a mais barato, que depende só de nós e que

está aí à nossa disposição para que nós comamos e nos alimentemos para

o resto da vida.

3. PERGUNTAS

1) Uma dúvida que sempre me surge quando falam sobre formação

do imaginário e sobre imaginação é se assistir vários filmes é algo que


atrapalha ou ajuda nisso? Eu tenho essa dúvida porque, de uma certa

forma, parece-me que, quando assistimos a filmes, não estamos fazendo

de fato o exercício de imaginar, mas só estamos roubando referentes.

Essa pergunta é excelente. Claro que nós temos que formar o imag-

inário, mas não apenas para ficar com o imaginário bem formado. Primeiro,

a imaginação é uma das potências da nossa alma. Temos inteligência, von-

tade e imaginação. Quando pensamos em todos os nossos movimentos

interiores ou são movimentos da inteligência ou movimentos da nossa

vontade. Eu vou ler, eu me convenço e tenho um argumento específico de

que a leitura é importante. Eu assisti a uma aula ou alguém me convenceu.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Tem um movimento da inteligência, mas eu também preciso ter um mov-

imento da minha vontade. Só que uma coisa não é ligada à outra a não ser

pela imaginação, porque eu só vou conseguir ter a vontade se eu conseguir

imaginar que aquilo vai ser bom e que eu vou ter frutos daquilo. Pensar que

vai ser tão legal já ter lido isso, e conhecer a história, e poder iluminar, com

essa própria história, com essa própria narrativa, a minha narrativa de vida.

E é por isso que é importante a formação da imaginação, assim como é

importante a formação da vontade e da inteligência. Essas três artes entram

no Trivium.

O trivium é o início do currículo das Artes Liberais, que começam

com gramática e literatura, isso que estamos fazendo, depois vai para

retórica e depois, para a lógica. A gramática é a imaginação. A retórica é a

vontade. Eu preciso estar ali focado naquilo, estar plenamente convencido,

pronto e movido. Um dos fins da retórica é mover. Hoje em dia, dizemos

motivar e aí fica meio feio. Não é uma coisa muito erudita dizer motivar,

mas, enfim, motivar. E a outra é lógica. Gramática, retórica e lógica lidam

com a inteligência e fazem com que realmente nossa inteligência aja sobre

a nossa imaginação e a nossa vontade, a vontade sobre a imaginação e a

inteligência, todas elas assim. É daí que vem isso.

Você pergunta se o cinema atrapalha a imaginação. Acho que não

atrapalha, mas tem certas vantagens que são inumeráveis. Por exemplo,

nós conseguimos aprender em um curto espaço de tempo. Para ler um

canto dos “Lusíadas” devagarinho, demora cerca de uma hora. São dez

cantos ao todo. Para ler bem, é preciso ler umas três vezes cada um. Não é

ruim trinta horas de leitura por uma história tão complexa, gastamos esse

tempo com outras porcarias. No filme, temos um resumão em duas horas.

Há dois aspectos: acho que a velocidade com que o cinema acontece

na maioria dos filmes pode ser um pouco problemática, porque não tenho

tempo de perfazer essa meditação e esses níveis todos que comentamos. A

coisa acaba supreendemente. Quando eu revejo o filme, percebo que não

32
E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
tinha prestado atenção em vários pontos. Muitas vezes, não entendemos o

filme e não temos muita paciência de revê-lo.

Agora, eu vou dar um exemplo aqui. A “Ilíada” conta algumas sem-

anas do último ano dos dez que teve a Guerra de Troia. Na “Ilíada”, conta-se

quando Aquiles briga com Agamenon, que é o chefe da expedição. A guerra

toda foi causada pelo rapto de Helena, que é a mais bela das mulheres. E

agora eu digo para vocês: Helena é a mais bela das mulheres. Alguém dis-

corda? Todo mundo consegue imaginar a mais bela das mulheres? Eu vou

contando agora a história de Helena e todo mundo vai imaginando, cada

um com a sua Helena. E o conceito aqui de a mais bela das mulheres está

muito bem, ninguém vai discordar. Agora, fazemos um filme da Helena.

Aluno: isso que eu ia colocar. É o ângulo, o enfoque que talvez não

fosse o meu.

Exatamente. E aí já acontece aquilo “mas essa aí não é a mais bela

das mulheres”. Então, no cinema, ele não pode dizer a mais bela das mul-

heres, vai dizer que era uma mulher muito bela porque, se chamá-la de

a mais bela, vai causar revolta em quem não achar. Pode ser que 5% do

público discorde dele e diga que aquela não é a mais bela. Essa parte do

público acha que o papel deveria ter sido interpretado por outra atriz. E

assim vai. Isso só vai gerar um debate sobre a atriz e, normalmente, é isso

que acontece no cinema, as pessoas ficam falando da atuação e não se vai

para questões de pensar na narrativa, de que causar uma guerra devido ao

rapto de uma mulher é algo meio engraçado. Isso aí não se faz em crítica

de cinema. E nós normalmente não prestamos atenção nesse tipo de coisa.

Quando trabalhamos a partir de conceitos, a imaginação é muito

mais bem formada, porque você todo mundo tem uma ideia de beleza. E

aí, quando eu digo que Helena é bela, nós conseguimos conversar uns com

os outros sobre Helena. Quando eu mostro uma foto, não vamos conseguir

aprofundar muito isso. Quando eu mostro uma escultura, pode ser uma das

Belas Artes da Antiguidade, uma escultura de Helena, vamos falar da forma,

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
da proporção dos olhos. Ficamos nisso. E é por isso que a literatura é a mais

profunda de todas as artes, porque conseguimos realmente tratar as coisas

a partir da nossa imaginação, que é comum. Nós conseguimos imaginar

todos a mesma coisa, pois, embora haja diferentes estéticas, todo mundo

imagina a mais bela das mulheres. É só Homero dizer “Helena é a mais bela

das mulheres”.

2) Essas colocações que você acabou de fazer em relação à litera-

tura, citando um exemplo de um livro transplantado para o cinema, ali

também terá a visão do roteirista, do diretor, das pessoas que fazem o

filme que, às vezes, não será a minha quando eu leio.

É porque é outra arte.

3) Eu assisti aos filmes do “Senhor dos Anéis” ao longo dessa

semana. E, obviamente, Tolkien usa elementos que existem, mas

também cria todo um universo inexistente. Eu queria saber se a imag-

inação nesse sentido não exige um tempo de reflexão particular, porque

muitas pessoas pensam em ver filmes para formar o imaginário, porque

tu consegue pegar muitas formas pré-prontas, mas não há esse trabalho

de formar alguma coisa.

Isso aí com certeza. Acho que mesmo os grandes cinéfilos vão con-

cordar que a literatura tem um poder maior de formar o imaginário. Agora,

por incrível que pareça, o ápice da formação do imaginário é o estudo da

geometria. Depois que eu li bastante e estou acostumado a interpretar

textos, engolir os textos, estou contemplando, passei pelos degraus todos

dos níveis de leitura, aí eu sou capaz de estudar geometria. Uma coisa é

estudar desenho geométrico. Isso eu posso ensinar qualquer pessoa a fazer.

Outra coisa é você dizer: um círculo é uma figura formada por uma só linha

cuja distância de todos os pontos com o seu oposto é igual. A linha só tem

comprimento e não tem largura. Aí nós vamos para a realidade visual, como

é a realidade do cinema. Como eu faço uma linha? Ou eu risco ali no quadro

34
E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
uma linha e digo: pessoal, Euclides disse duzentos anos antes de Cristo que

a linha só tem comprimento e não tem largura. Ele estava errado, porque

tem dois milímetros aqui. Mas isso não é uma linha, isso é o desenho de uma

linha. Um ponto não tem largura e nem comprimento. Como não? Se eu

desenhar um ponto, eu posso medi-lo. Eu posso desenhar um ponto bem

grande e todo mundo concorda que é um ponto. Mas não é isso. A geome-

tria é a mais alta abstração de todas e exata. Depois Euclides dá os axiomas:

se A é igual B, B é igual a A. Você pode pensar “Que coisa óbvia”, mas não

é tão óbvio assim. Diga isso para uma criança de três, quatro anos. Ela não

vai entender ainda. Por isso que, para criança de três, quatro anos, devemos

contar a história. E a criança de três, quatro anos até tem dificuldade de

entender o que são irmãos gêmeos, que não são a mesma pessoa. Um bebê

nem sabe que a mãe é outra coisa. Imagina agora entender que “se A é

igual a B, B é igual a A”. Um romboide é uma figura que, sendo quadrilátero,

não tem os dois ângulos retos. Dois dos seus ângulos não são retos. E não é

um trapézio. Mas é isso: a pessoa acostumada a ler que Helena é a mulher

mais bela do mundo e que Aquiles é o mais forte dos homens, imagina.

No filme, se eu conseguir abstrair o roteiro, se eu conseguir abstrair a per-

sonalidade dos personagens, abstrair um pouco das imagens que eu vi ali,

aí eu consigo fazer esses níveis de leitura, mas normalmente não façamos

isso, porque já estamos cansados, foi muita coisa, muito rápido. Na segunda

vez que assisto, reflito um pouco mais e me aprofundo, mas a velocidade

com que cada um lê é diferente, porque cada um tem um momento, uma

velocidade do intelecto. Eu paro, reflito, continuo, releio. Isso aí no filme não

temos paciência de fazer.

Sim, o elemento principal da formação do imaginário é a literatura.

Mas como se fazia antes? É que literatura existe desde sempre. Toda a

sociedade tem linguagem, tem literatura, tem música e tem matemática,

por mais rudimentar que esta seja. Algum tipo de matemática tem que ter.

A música também, podem ser só três notas, mas tem. Não existe um povo

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que não canta. E não existe um povo que não conta história. De uma forma

ou de outra, temos que contar a história. Ninguém vive sem isso.

4) Se somos capazes de sempre fazer essa análise destrinchada

dessa forma, compreender e assimilar os sentidos presentes na história

e os ensinamentos que estão ali. Por exemplo, se eu penso no mito, este

traz uma série de verdades sobre como funciona a sociedade, a natureza

e caminhos rumo ao sucesso, quando pensamos na jornada do herói

e tudo mais. Eu consigo inconscientemente assimilar isso e interpretar

isso na minha vida ou eu preciso fazer essa análise?

Essa análise é a explicação de como a coisa funciona. Todo mundo

faz isso, em maior ou menor grau. Isso é para tirarmos a prova real. Se você

quer saber se realmente entendeu uma história, você pode fazer essa prova

real. Eu cheguei a uma leitura figurada do texto? Isso me remeteu a outras

coisas que não são aquelas que estão ditas ali? Ou como se fosse? Isso aqui

me fez refletir sobre as minhas próprias ações, a minha própria arte de viver

a vida, assim como autor tem sua arte de escrever uma outra vida? É mais

para tirar a prova real. A boa leitura é sempre assim. Quando a gente diz:

“Eu li, entendi, foi legal, me ajudou muito”, normalmente, foi isso que acon-

teceu. Eu não preciso fazer essa análise metodicamente. Claro, podemos

pegar essa mesma técnica que o Dante especifica, e que está em outros

autores também, e utilizá-la.

Por exemplo, você pega a Bíblia e escreve “No princípio, Deus criou o

Céu e a Terra”. Você pensa sobre esse “no princípio”. No princípio, no sentido

literal, significa o início das coisas. Você anota que o significado alegórico

de princípio. Esse “no princípio” não pode se referir ao princípio do tempo

porque, se não existia nada, não pode ter princípio. Você migra para o sig-

nificado moral. O que isso pode significar? Pode significar, por exemplo, que

cada novo minuto é um princípio de nossa vida, é uma nova criação, Deus

não para de criar as coisas na nossa vida, assim como ele criou no princípio

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o Céu e a Terra. Depois vai para “Deus” e qual seu significado literal.

Existe bastante material assim na Idade Média. A maioria foi apagado,

porque era tanta coisa dita e tanta coisa copiada, que o pessoal raspava

para escrever outra coisa por cima, porque conseguir papel não era fácil.

Às vezes, um mosteiro ficava cem anos sem conseguir papel. Você pode

fazer isso com alguma obra que você gosta muito. Colocar nos três níveis:

se é o que o autor está dizendo; se isso está por trás daquilo que é dito, se

isso é o que reflete na minha própria vida. Quando eu tenho essa visão por

cima, não chega a ser contemplação, pois não conseguimos olhar como se

estivéssemos dentro do templo, mas é mais ou menos isso.

A leitura sintópica do Mortimer Adler é uma leitura contemplativa,

mas se trata de um livro com outro. Adler diz assim: é ler “DIvina Comédia”

e ver que fala de Virgílio. E aí você lê a “Eneida” e ver que o Virgílio e Camões

apresentam similaridade. Isso é leitura sintópica. Ele teve que representar

verbalmente o que se passa na cabeça. Normalmente, é uma coisa inin-

teligível por parte dos outros. Pensamos o seguinte: “Olha como é parecido.

Olha só, são iguais. Com certeza Camões leu Virgílio”. Aí a gente lê a história

de Camões e vê que teve uma formação de artes liberais em Coimbra, onde

estudou principalmente Virgílio e Ovídio. Confirmamos essas coisas.

Mas será que Virgílio inventou isso? Não, porque se lermos Homero,

que é oitocentos anos antes de Virgílio, percebemos que também tem uma

mesma coisa. Há uma tradição aqui. Oitocentos anos de Cristo, contem-

porâneo a Cristo, 1500 depois de Cristo. E assim a coisa vai. É um autor con-

versando com o outro. Essa é a leitura sintópica. Se você ler Homero, aí sim

que Camões vai ficar legal. Eu li Shakespeare e o nome dos personagens

é o mesmo da tragédia e da comédia antigas. A leitura sintópica é a lei-

tura da tradição inteira, em que vemos que o Shakespeare não pensou “Ah,

eu vou inventar o nome os personagens, eu não vou colocar os mesmos

que Menandro ou Plauto puseram na Grécia ou Roma Antiga”. Não, ele

põe mesmo. Em homenagem, ele coloca os mesmos nomes e conta até

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a mesma história, só que, em vez de se passar na Grécia Antiga, se passa

na Inglaterra elizabetana. E é diferente, não é a mesma coisa. Você pode

perguntar: “Se eu já li o Shakespeare, eu preciso ler o Plauto ou vice-versa?”,

precisa, porque tu vai ver o quanto é parecido e o quanto totalmente difer-

ente é um do outro.

4. BIBLIOGRAFIA

ADLER, Mortimer. Como ler livros.

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia.

ALIGHIERI, Dante. O Convívio.

BÍBLIA. Gênesis.

CAMÕES, Luís Vaz de, Os Lusíadas.

HESÍODO. Teogonia

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias

HOMERO. Ilíada

HOMERO. Odisseia

MATEUS. MARCOS. LUCAS. JOÃO. Os Quatro Evangelhos.

VÍTOR, Hugo de São. Opúsculo sobre o modo de ler e meditar

OVÍDIO. As Metamorfoses

VERGÍLIO. Eneida

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