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AULA 01 - SINOPSE
Neste breve curso, os alunos terão contato com obras de caráter épico
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que é literatura; como
com Hugo de São Vitor; como explicamos o que algo é; quais os quatro
literária.
2. A LITERATURA
Literatura foi uma forma que os latinos encontraram para dizer gramática.
tanto, hoje, pensamos que gramática são aquelas regrinhas que tratam
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Inclusive, na escola, literatura é uma outra matéria e a redação, ainda outra.
autor, porque a autoridade contava muito mais. Por outro lado, também
período, verso ou estrofe. Exercia-se um ir e vir muito natural, pois não havia
fazendo com que nos dediquemos àquilo durante um certo período. Con-
Se eu for ler Camões, por exemplo, não preciso ficar o tempo todo fazendo
a análise sintática da obra, inclusive, nem devo, mas, muitas vezes, quando
sujeito, qual é o objeto direto, qual é o verbo. Depois dessa análise, o texto se
torna compreensível. Portanto, é sempre essa via de mão dupla ou até tripla
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Da mesma forma, um escritor de hoje em dia não vai declarar que
esses períodos para ter uma consciência um pouco maior disso, mas o
sabendo que um escritor sempre conversa com outro e que tudo aquilo
que leio vai influenciar no que escrevo, algo que aconteceu muitas vezes
ao longo da história.
aprender a ler, eu já consigo ler qualquer coisa, pois sei juntar letras para
formar uma sílaba e sei juntar sílabas para formar uma palavra. E assim,
amos que uma criança já sabe ler. Mas é aqui que termina a formação de
Compreender.
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Aluno: compreensão do texto, porque você sabe ler, mas não sabe o
que nunca viu o mar o que este é. O que passa na cabeça de um escritor?
viram o mar, mesmo sendo adultas. Claro que, hoje em dia, a pessoa pode
tê-lo visto pela televisão, mas, vendo na televisão, a pessoa tem a real
dimensão do que seja o mar? E nós, que já fomos muitas vezes à praia e
do que seja o mar do que alguém como Amyr Klink, que foi até a África
referência que temos é por assistir na televisão e coisas assim. A pessoa que
nasce e vivi aqui nunca vê neve. Até pode existir uma palavra para isso, mas
é difícil de explicar.
Eu vivo em Porto Alegre, mas a minha família por parte de pai vive
no norte, no Maranhão. Muitas vezes, esses parentes foram nos visitar para
em que fazia frio, ouviam falar do frio e questionavam os pais sobre. Eles
decidiram fazer uma viagem para o Rio Grande do Sul em julho, para que
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frio, eles diziam: “Imagina que você entrou dentro da geladeira, é mais ou
menos isso”. Não podemos fazer isso, pois não tem ar, não conseguimos
do frio há ar.
o frio é como entrar em uma geladeira? Quem explica o frio assim, fá-lo
que esse da geladeira. Para explicar o frio, o escritor não diz “entra numa
elementos que não tem qualquer relação como, por exemplo, a falta de ar. O
Digamos que eu conte para vocês a história sobre meu dia de hoje
até aqui. Como eu disse, eu saí de casa às quatro da manhã, fui para o aero-
até aqui. Muito bem. Amanhã, se eu perguntar para vocês como foi a minha
viagem, só por este relato, você vai se lembrar. Daqui uma semana, nin-
guém mais se lembra, porque isso não tem importância nenhuma para a
contares histórias com muito prazer. Pode até ser esses mesmos fatos que
eu narrei, mas a pessoa tem todo um jeito de contar que torna a história
interessante. Ela insere exemplos como “Daí, logo que desci no aeroporto,
soas objetivas. Quando contam suas histórias, nunca são lembradas, justa-
mente por isso. Essa pessoa não diz nem que desceu do táxi, diz que desceu
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do automóvel, usando palavras de caráter mais geral. O específico diz: “Eu
cano”. Aquele que sabe contar histórias vai nos dando detalhes. E o que
Assim, o sujeito faz com que você nunca mais esqueça de algo tão trivial
como uma viagem de uma hora de duração. E aquilo fica na memória das
de Jô Soares, de Paulo Coelho. Então, por que imortais? Eles são imortais
porque conseguiram contar uma história que, uma vez lida, não morre mais
dizer que o taxista tinha cabelo moicano, tivesse dito iroquês, que significa
exatamente a mesma coisa, e você não soubesse o que é isso, não adiantaria
nada. Por isso, é preciso compreender. Para poder imaginar, para povoar o
Rio Grande do Sul, essa é a dificuldade que temos para que a nossa arte
folclórica mais popular saía daquele contexto. Quando conta uma história,
o gaúcho diz:
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Baile de gente direita
Na noite de primavera
No rancho de Santa Fé
De pau-a-pique barreado
Eu me entreverei no banzé
O chinaredo à bola-pé
No ambiente fumacento
E já sai entreverado
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Oigalé China lindaça
E um gosto de temporona
Eu me grudei na percanta
E a gaita choramingava
De repente se acordava
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Escutei de relancina
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Talvez quem ouça - não creia
Espantou-se o chinaredo
E gritos de desacato
Fazendo acompanhamento
Do turumbamba de bala!
Redemoinhando na porta
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Num grito de toda guela
Naquela barbaridade
De chinaredo fugindo
Balanceei a situação
Eu aí na Porta da frente
Abaixo de tiroteio
Da cordeona do mulato
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E, pra encurtar o relato
Em bárbaro frenesi
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muito regional que realmente não é obrigatório que todas as pessoas con-
vocabulário.
pelos povos ao redor de Florença. Era uma língua que ninguém aprendia
a pessoa utilizava o latim para escrever. O italiano não era para ser escrito.
Dante é um dos primeiros que realmente começa a fazer isso e o faz de forma
roubava, sobre quem havia sido pego em adultério. Então, ainda que faça
nós não nascemos naquela mesma aldeia? A questão é que há obras que
são tão fortes, há escritores que realmente cantam a sua própria aldeia, tal
como Dante, que nos esforçamos para imitá-los. Nós declaramos que quer-
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emos participar dessa aldeia, que queremos viver ali onde o escritor vivia,
tendências, virtudes e vícios. Podemos pensar “Eu não fiz exatamente como
mas eram muito poucos. Havia quem entendesse apenas uma pequena
da língua alemã.
tradução da Bíblia. A primeira vez que essa edição foi lida em um culto, nin-
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guém entendeu nada. Alguém pode objetar que era a língua do povo, mas,
sem um Lutero, sem um Camões, a língua do povo não serve para tratar
frases são formadas por períodos muito mais complexos para que se possa
nosso dia a dia em casa? Não conseguiríamos. Nós não usamos um vocab-
temos uma matéria simples, tal como é nossa vida em casa, usamos uma
língua simples. Por outro lado, quando tratamos de matérias mais elevadas,
“Divina Comédia”.
outro vocabulário. Por mais que seja a mesma língua e essas palavras todas
ainda, antes disso, ter um vocabulário do dia a dia, é insuficiente para con-
Lutero teve de explicar aquilo que foi lido, tal como era feito antes, porque
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uma explicação de ordem espiritual e teológica, mas era uma explicação.
Hoje em dia, nos cultos e missas, os textos não são lidos em portu-
guês e mesmo assim explicados depois? Porque não faz diferença nen-
nós mesmos. Nós mesmos temos que parar e nos explicar aquilo. Com isso,
ler Camões. Eu vou até a metade do primeiro canto e não consigo, não
esses lugares.
A questão é que existe esse nível de entender aquilo que se lê. É aquilo
que Mortimer Adler chama de leitura elementar. Em “Como ler livros” (1940,
olhos fechados.
pedras;”. “[...] bem claro ouviu o barulho do mar ao quebrar-se nas pedras;”.
ciso fazer isso, de ficar pensando verso por verso, com todo texto? Não, nós
nos acostumamos aos poucos com isso. Se o fazemos duas ou três vezes,
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percebemos que nossa leitura melhora muito, que isso vai ser automático.
Se no texto diz “[...] barulho do mar ao quebrar-se nas pedras;”, que eu real-
pedras. E não algo vago, como ter lido algo sobre o mar. Não, é o barulho do
Aí sim, eu posso pensar: mas o que o autor quer dizer com barulho
autor quis dizer não interessa, pois, se quis dizer e não conseguiu, é um mau
Pode-se objetar: “Ah, mas talvez ele não tenha escrito exatamente isso. Foi
Às vezes, o autor quer dizer algo, não consegue e acaba dizendo outra coisa.
As interpretações que surgem e a forma como aquele texto toca nas pes-
soas é diferente e não tem relação com a ideia originária. Às vezes, chega-se
entes, mas o amor é um só, a guerra é uma só, a viagem é uma só. Então,
Ninguém vai forçar a barra e dizer que com a palavra “mar”, na verdade, o
autor está falando das emoções que surgem como o mar que lava, porque
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Hugo de São Vitor nos ensina a ler. Em um
Além disso, eu conheço a cidade onde moro e nunca li nada sobre ela. Eu
conheço o jeito das pessoas, as ruas, tudo isso, sem nunca ler nada. Como,
então, Hugo de São Vitor pode dizer que o conhecimento começa com a
leitura?
o século IX, havia uma analogia que serviu para que a ciência e o conhe-
desenvolvesse. Neste período, havia dois tipos de livros: o codex, uma bro-
um livro, mas é como se fosse. Guardem bem esse “como se fosse”, porque
ainda vamos falar bastante disso. Esse outro livro que não é um livro, mas é
já tem mais de mil e cem anos. A Criação inteira é como um livro. Se não
abri-lo e começar a lê-lo, não entendo nada, nem sei do que se trata. Eu
tenho que ler o título, o autor, em que época foi escrito ou, se não sei em
que época foi escrito, olho para a própria Criação, assim como olho para um
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autor e percebo se parece antigo ou não através das dicas que este me dá.
Se eu leio Machado de Assis, por exemplo, vejo que deu algumas dicas de
escutar uma música. Ao ouvir uma obra, percebo que se trata de uma
Telemann. Escuto mais um pouco e identifico com certeza que é uma obra
Eu contemplo uma árvore de tronco muito grosso e sei que é muito antiga.
Se você falar para uma criança pequena, que pouco leu o livro da natureza,
que aquela árvore grossa tem a mesma idade que ela, ela acredita, porque
não lê a natureza.
Você pode achar que isso é infantil, mas nós somos infantis quando
ram-nos de que abrir um livro e ler: “Alça-se Aurora do leito”, é ler. E que,
estava o preclaro titono”, e eu não sei o que é titono e essa palavra não está
Isso não se resolve assim. Então, como eu ensino para uma criança
que aquela árvore não tem apenas a idade dela? Se eu digo que aquela
árvore é mais velha do que ela e ela me pergunta por que, eu respondo:
“Porque se você cortar a árvore, dentro dela, haverá vários anéis e cada anel
árvore para verificar se isso é verdade. Você lhe explica que não precisa.
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Então, ela quer saber como nós sabemos isso sem cortá-la. Como lidamos
com isso? Eu não posso focar naquela árvore e tentar explicar a árvore pela
árvore. Eu tenho que sair dali. Eu vou mostrar para ela uma árvore bem
pequena, explicar que é uma árvore jovem, que é como se fosse um bebê. E
árvore não para de crescer. Enquanto estiver viva, ela cresce. Há árvores que
eram bebês antes mesmo de você, eu ou até mesmo a sua avó nascermos. E
são muito, muito velhas. É por isso que crescem, crescem, crescem e ficam
velha. Muito mais velha que o papai, muito mais velha que a mamãe”.
algo, temos que usar algo diferente daquilo. Este é o grande segredo da
literatura. É preciso comparar uma coisa com outra para que eu entenda
essa uma. Não tem como fugir disso. Eu não posso focar em uma única
coisa e ficar “eu tenho que entender isso aqui. Olha no dicionário, olha na
enciclopédia”. Não é assim, até porque, a literatura lida com palavras, com
algo que não é, que é o nosso discurso, a nossa fala. São as nossas histórias,
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meio que usamos para entender as coisas. O que é o universo? O universo é
Todo resto é muito parecido e parece pertencer à mesma esfera dos seres.
etais, é tudo muito parecido. Agora, existe uma única coisa que não tem
para as estrelas, para o mar, para o vento, para as árvores e tudo mais, tudo
Agora, nossa linguagem não parece. Nossa linguagem não guarda relação
com o resto das coisas que existem e nem é parecida com a linguagem dos
animais.
avisar à leoa que tem comida. As abelhas apresentam um tipo de voo espe-
cífico com o qual avisam às demais quando há flores. Se não houver flores,
aquilo. A abelha não consegue comunicar que viu flores ontem e que hoje
não sabe se será possível encontrá-las ou, ainda, dizer que tem a impressão
de que por tal caminho encontrarão flores. Portanto, não podemos nem
para nos divertimos, algo que está presente naqueles salões de pessoas
crítica literária enquanto fumam charutos. É para isso que serve a litera-
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leio, medito, contemplo. Aí, eu olho para o mar, medito, comparo uma coisa
dela.
de abóbada, seja de qual religião for. Vocês estão no centro, no ar. Ponham
a visão ali. E esse templo está todo ornado. Ele tem esculturas, pinturas
e você consegue ter uma visão esférica, de olhar para todos os lados ao
mesmo tempo. O teu olho está solto dentro desse templo. Isso significa o
templo. Considerar, por sua vez, é olhar as coisas aqui debaixo de acordo
com o sidera, de acordo com as estrelas. Portanto, é ver o que está em cima
e a relação que essas coisas têm com aquilo que está embaixo. É mais ou
menos a mesma coisa que contemplar. É ver que uma coisa está ali (pro-
fessor aponta para cima) e outra está aqui (professor aponta para baixo).
Parece que não há nenhuma relação entre elas, mas eu consigo ver uma
Por exemplo: como sabemos que daqui a dois meses vai estar muito
mais calor do que agora? Porque vai mudar a estação do ano. E como
e fica mais próxima do Sol. Quando o Hemisfério Sul está mais próximo
coisas e vemos que aqui fica mais quente. No Sol, está quente igual. No
espaço, está sempre quente igual. No entanto, aqui fica quente só em certas
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para o céu, para a Terra, para o céu e para Terra novamente, e criamos, a
conseguimos perceber dois, três, quatro, cinco que estão relacionados com
esse.
leitura, a leitura sintópica. Quando Mortimer Adler fala em leitura, está real-
livros, portanto. Hugo de São Vitor, por outro lado, está falando da leitura da
realidade inteira.
caminho de Hugo de São Vitor. Hugo de São Vitor afirma: leitura, meditação
e contemplação.
De acordo com a tradição de interpretação do Antigo Testamento
que vinha desde o povo hebreu, Dante Alighieri afirma que existem quatro
imagino, oceano. Tanto que, quando olhamos para o oceano, dizemos “olha
mar não significa somente aquilo que está no dicionário, a não ser que este
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amor”, posso dizer que a relação entre duas pessoas é um mar tempes-
tuoso. Eu posso dizer que meu ódio não cabe no mar. Posso ousar ainda
diálogo entre estes dois. Isso existe? Não, mas há situações que só vamos
o lobo lhe ordenou que retirasse suas patas de dentro da água, pois estava
sujando a água dele. O cordeiro então retrucou que não poderia estar
sujando a água do lobo, pois estava em uma parte mais baixa do riacho.
cordeiro e o comeu”.
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pelos policiais. Na fábula de Esopo, um sujeito é mais forte que o outro, mas
entende que, por mais que possa fazer o que quiser, precisa inventar uma
interpela um pobre pai de família que está voltando para casa ao fim do dia.
O lobo pode ser qualquer um, só precisa existir essa relação de força.
O lobo é forte e o cordeiro, fraco. Quem está com a razão? O fraco. E por que
o lobo não vai lá e o come logo? Assim, a história não teria graça. “O lobo viu
o cordeiro e o comeu” sequer seria uma história. Eu até posso narrar essa
cena se a ver, mas ninguém se lembrará dela. Agora, esse “Você está sujando
minha água” traz um outro significado para a história. Quantas vezes nós
mesmos não fazemos isso? Às vezes, eu quero tomar uma decisão, mas
tenho um freio moral. Por vezes, não é nem mal para outra pessoa, é para
bebendo. Na minha cabeça, tem início o seguinte diálogo: “Ah, agora que já
tomei uma taça de vinho, vou tomar essa garrafa toda. Porque essa semana
e o vinho está barato, paguei pouco na promoção”. Esse é o lobo. Pode ser
3) Nível Moral: qualquer história, seja boa, seja ruim, sempre apre-
até ser robôs, não importa. É preciso que eu entenda: “Na minha vida, esse
que eu nunca seria capaz de fazer isso? Sim ou não? Bom, depende.
mal”. Isso aí é meditar. Tudo isso que nós estamos fazendo aqui é meditar, é
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o nível de meditação. Depois, há o nível moral. Primeiro, eu entendo o que
Até a reportagem de jornal pode ser meditada, mas não é a questão. Não é
Dostoiévski não era jornalista, não era cronista policial, era um escritor
e por aí vai. E isso nós temos que fazer. Ler é ficar pensando sobre o livro
que lemos. Ler as palavras é o primeiro nível. Entendeu o que é ler? Sim.
na agiota. Eu sei o que é um machado, eu sei o que é uma velha, sei o que é
anagógico é mais do que a contemplação. Para usar uma frase de São Paulo,
que vive em mim. O coelho, quando come cenoura, não se transforma nela.
astuto, tal como Ulisses. Eu não vou precisar matar ninguém para saber o
sofrimento que Raskolnikov, porque sofri junto com ele. Eu também terei
isso. Mas há diversos momentos na vida em que isso acontece. Nós sempre
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conseguimos os três primeiros níveis: literal, que é entender o texto; figu-
rado, que é saber do que se trata, que não é um lobo nem um cordeiro, é só
Aluno: pode-se dizer que seria uma forma de empatia com o person-
agem? Mais ou menos isso? Você entrar naquele papel, se colocar naquele
lugar?
realmente se coloca naquele papel, mas sem medo. Sempre deve ser
a um tomate com sal que eu coma. Eu não vou comer um tomate e digerir
de todo ele e tudo que for bom, fica. O que não for bom, o corpo expele.
três primeiros níveis, mas acabamos não contemplando, não tendo o nível
anagógico.
Em grego, “ana” significa para cima. Esse goge, tal como em peda-
gogia, é condução para. Portanto, é uma condução para cima. Muitas vezes,
não há esse nível anagógico, mas acho que todo mundo, por mais rasa que
tenha sido a vida de leitor, consegue provar isso. Há momentos em que sof-
ele, embora isso também aconteça. Como foi o caso do livro “Os sofrimentos
fica mais motivada?”. Não. A questão é que eu não vou mais conseguir viver
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2.8. PARA QUE SERVE A LITERATURA?
tamente com São Bento. Alcuíno era beneditino. São Bento é bem mais
diz que as raízes são amargas, mas os frutos são doces. Radices litterarum
sunt amarae. As raízes das letras são amargas, mas os frutos são doces.
Quais são as raízes das letras? É o aprender a ler nesses três níveis e um dia
alcançar o quarto? Sim, mas a má notícia é que isso dura mais ou menos a
vida toda. Os frutos vão ser doces algum dia, mas ninguém sabe quando.
Não há como dizer: faça isso, isso e isso e aí vai dar certo.
tradição, eu não inventei nada. Isso é Hugo de São Vitor, Mortimer Adler e
Dante Alighieri. Na obra “Convívio”, Dante fala disso. Essa é uma obra em
que ele mesmo interpreta seus próprios poemas de acordo com esses níveis
de leitura. Nós faremos isso nas próximas aulas, lendo alguns livros. O que
transmiti até aqui é a mais pura tradição de algo que não é ler para poder
citar enquanto fumo charuto e bebo uísque. Não é para isso que a literatura
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serve. Imagine o esforço que o sujeito teve para escrever um livro. As pessoas
livros de antigamente que cumpriam o mesmo fim que estas, talvez sim, e
não é indigno o que fizeram. A alta literatura imortal, entretanto, não tem
essa finalidade. O sujeito não pensou “Tomara que alguém um dia fique
que tirou das minhas obras”. Não foi para isso e não é isso que podemos
tirar dessas obras. A literatura não serve para isso. A literatura é mesmo
um alimento e, veja só, temos que comer a vida toda. Se não comermos,
sempre foi. É a mais acessível, a mais barato, que depende só de nós e que
está aí à nossa disposição para que nós comamos e nos alimentemos para
o resto da vida.
3. PERGUNTAS
Essa pergunta é excelente. Claro que nós temos que formar o imag-
inário, mas não apenas para ficar com o imaginário bem formado. Primeiro,
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Tem um movimento da inteligência, mas eu também preciso ter um mov-
imento da minha vontade. Só que uma coisa não é ligada à outra a não ser
imaginar que aquilo vai ser bom e que eu vou ter frutos daquilo. Pensar que
vai ser tão legal já ter lido isso, e conhecer a história, e poder iluminar, com
essa própria história, com essa própria narrativa, a minha narrativa de vida.
no Trivium.
com gramática e literatura, isso que estamos fazendo, depois vai para
motivar e aí fica meio feio. Não é uma coisa muito erudita dizer motivar,
com a inteligência e fazem com que realmente nossa inteligência aja sobre
atrapalha, mas tem certas vantagens que são inumeráveis. Por exemplo,
canto dos “Lusíadas” devagarinho, demora cerca de uma hora. São dez
cantos ao todo. Para ler bem, é preciso ler umas três vezes cada um. Não é
ruim trinta horas de leitura por uma história tão complexa, gastamos esse
na maioria dos filmes pode ser um pouco problemática, porque não tenho
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tinha prestado atenção em vários pontos. Muitas vezes, não entendemos o
anas do último ano dos dez que teve a Guerra de Troia. Na “Ilíada”, conta-se
toda foi causada pelo rapto de Helena, que é a mais bela das mulheres. E
agora eu digo para vocês: Helena é a mais bela das mulheres. Alguém dis-
corda? Todo mundo consegue imaginar a mais bela das mulheres? Eu vou
um com a sua Helena. E o conceito aqui de a mais bela das mulheres está
fosse o meu.
das mulheres”. Então, no cinema, ele não pode dizer a mais bela das mul-
heres, vai dizer que era uma mulher muito bela porque, se chamá-la de
a mais bela, vai causar revolta em quem não achar. Pode ser que 5% do
público discorde dele e diga que aquela não é a mais bela. Essa parte do
público acha que o papel deveria ter sido interpretado por outra atriz. E
assim vai. Isso só vai gerar um debate sobre a atriz e, normalmente, é isso
rapto de uma mulher é algo meio engraçado. Isso aí não se faz em crítica
mais bem formada, porque você todo mundo tem uma ideia de beleza. E
aí, quando eu digo que Helena é bela, nós conseguimos conversar uns com
os outros sobre Helena. Quando eu mostro uma foto, não vamos conseguir
aprofundar muito isso. Quando eu mostro uma escultura, pode ser uma das
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da proporção dos olhos. Ficamos nisso. E é por isso que a literatura é a mais
todos a mesma coisa, pois, embora haja diferentes estéticas, todo mundo
imagina a mais bela das mulheres. É só Homero dizer “Helena é a mais bela
das mulheres”.
Isso aí com certeza. Acho que mesmo os grandes cinéfilos vão con-
Outra coisa é você dizer: um círculo é uma figura formada por uma só linha
cuja distância de todos os pontos com o seu oposto é igual. A linha só tem
comprimento e não tem largura. Aí nós vamos para a realidade visual, como
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uma linha e digo: pessoal, Euclides disse duzentos anos antes de Cristo que
a linha só tem comprimento e não tem largura. Ele estava errado, porque
tem dois milímetros aqui. Mas isso não é uma linha, isso é o desenho de uma
grande e todo mundo concorda que é um ponto. Mas não é isso. A geome-
se A é igual B, B é igual a A. Você pode pensar “Que coisa óbvia”, mas não
é tão óbvio assim. Diga isso para uma criança de três, quatro anos. Ela não
vai entender ainda. Por isso que, para criança de três, quatro anos, devemos
entender o que são irmãos gêmeos, que não são a mesma pessoa. Um bebê
nem sabe que a mãe é outra coisa. Imagina agora entender que “se A é
não tem os dois ângulos retos. Dois dos seus ângulos não são retos. E não é
mais bela do mundo e que Aquiles é o mais forte dos homens, imagina.
isso, porque já estamos cansados, foi muita coisa, muito rápido. Na segunda
Mas como se fazia antes? É que literatura existe desde sempre. Toda a
por mais rudimentar que esta seja. Algum tipo de matemática tem que ter.
A música também, podem ser só três notas, mas tem. Não existe um povo
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que não canta. E não existe um povo que não conta história. De uma forma
faz isso, em maior ou menor grau. Isso é para tirarmos a prova real. Se você
quer saber se realmente entendeu uma história, você pode fazer essa prova
coisas que não são aquelas que estão ditas ali? Ou como se fosse? Isso aqui
me fez refletir sobre as minhas próprias ações, a minha própria arte de viver
a vida, assim como autor tem sua arte de escrever uma outra vida? É mais
para tirar a prova real. A boa leitura é sempre assim. Quando a gente diz:
“Eu li, entendi, foi legal, me ajudou muito”, normalmente, foi isso que acon-
pegar essa mesma técnica que o Dante especifica, e que está em outros
Por exemplo, você pega a Bíblia e escreve “No princípio, Deus criou o
Céu e a Terra”. Você pensa sobre esse “no princípio”. No princípio, no sentido
literal, significa o início das coisas. Você anota que o significado alegórico
porque, se não existia nada, não pode ter princípio. Você migra para o sig-
nificado moral. O que isso pode significar? Pode significar, por exemplo, que
cada novo minuto é um princípio de nossa vida, é uma nova criação, Deus
não para de criar as coisas na nossa vida, assim como ele criou no princípio
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o Céu e a Terra. Depois vai para “Deus” e qual seu significado literal.
porque era tanta coisa dita e tanta coisa copiada, que o pessoal raspava
para escrever outra coisa por cima, porque conseguir papel não era fácil.
Às vezes, um mosteiro ficava cem anos sem conseguir papel. Você pode
fazer isso com alguma obra que você gosta muito. Colocar nos três níveis:
se é o que o autor está dizendo; se isso está por trás daquilo que é dito, se
isso é o que reflete na minha própria vida. Quando eu tenho essa visão por
cima, não chega a ser contemplação, pois não conseguimos olhar como se
mas se trata de um livro com outro. Adler diz assim: é ler “DIvina Comédia”
e ver que fala de Virgílio. E aí você lê a “Eneida” e ver que o Virgílio e Camões
teligível por parte dos outros. Pensamos o seguinte: “Olha como é parecido.
Olha só, são iguais. Com certeza Camões leu Virgílio”. Aí a gente lê a história
Mas será que Virgílio inventou isso? Não, porque se lermos Homero,
que é oitocentos anos antes de Virgílio, percebemos que também tem uma
porâneo a Cristo, 1500 depois de Cristo. E assim a coisa vai. É um autor con-
versando com o outro. Essa é a leitura sintópica. Se você ler Homero, aí sim
tura da tradição inteira, em que vemos que o Shakespeare não pensou “Ah,
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a mesma história, só que, em vez de se passar na Grécia Antiga, se passa
ente é um do outro.
4. BIBLIOGRAFIA
BÍBLIA. Gênesis.
HESÍODO. Teogonia
HOMERO. Ilíada
HOMERO. Odisseia
OVÍDIO. As Metamorfoses
VERGÍLIO. Eneida
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