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z

Tradução
\Vlaclir Dupont

...
EDITORA 'SICILIANO
ma de três ou quatro linhas perfura com freqüência o
muro do tempo. Mas os poemas longos - os de Eliot,
Perse e Jiménez, para citar três exemplos notáveis -
têm sido uma expressão de nossa época e nela têm dei-
xado marcas. O segundo ensaio trata da poesia moder-
na e do fim da tradição da ruptura. O terceiro é uma
breve reflexão sobre as ambíguas e quase sempre infe-
lizes relações entre a poesia e o mito revolucionário. A
segunda parte, a mais extensa, examina a função da
poesia na sociedade contemporânea. Termina com uma POESIA
pergunta e uma tentativa de resposta: qual será o lugar
da poesia nos tempos que vêm pela frente? Mais que
uma descrição e menos que uma profecia, minha res- e
posta é uma profissão de fé. Estas páginas não são se-
não uma variação, mais uma, dessa Defesa da Poesia
que, há séculos, escrevem incansavelmente os poetas
MODERNIDADE
modernos.

ÜCTAVIO PAZ

México, 31 de janeiro de 1990

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1

Contar e cantar
(sobre o poema longo)
Se canta una viva historia
contando su melodía.
ANTONIO MACHADO

O que é um poema longo? O dicionário diz que alon-


gar é fazer com que uma coisa aumente sua supetfície e
assim ocupe mais espaço. Alongar também significa espar-
gir, desenvolver, desdobrar e ocupar ce11a extensão de ter-
reno. No seu sentido original e primário alongar é um con-
ceito espacial. Assim, um poema longo é um poema
grande. Como na linguagem as palavras vão umas atrás
das outras, em fileira, um poema longo é aquele que tem
muitas linhas e cuja leitura é prolongada. Espaço é tempo.
Mas quão grande eleve ser um poema para ser considera-
do um poema longo? Quantas linhas?
O Mahabharata tem mais ele 200 mil versos; e um
uta, qualificado pelos japoneses como poema grande,
tem uns 30 ou 40 versos. As Soledades têm pouco mais
ele 2 mil versos, Primero sueíio pe110 de mil e a Divina
comédia uns 15 mil. Enquanto isso, Tbe waste land tem
somente 434 versos, Um lance de dados menos de 300
linhas e 1l1ue11e sin fin pouco mais de 600 linhas. Longo

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princípio de variedade dentro unidade: a surpresa e
ou curto são termos relativos, variáveis. O número de a recorrência. Em todos os poemas a recorrência é um
versos não é um critério: um poema grande para um ja- princípio cardeal. O metro e seus acentos, a rima, os
ponês é um poema curto para um hindu; um poema epítetos em Homero e outros poetas, as frases e inci-
grande para um homem do século XX é um poema cur- dentes que se repetem corno motivos e temas musicais
to para um homem da Idade Barroca. É preciso buscar são como signos ou marcas que enfatizam a continuida-
outros elementos ele definição. de. No outro extremo estão as rupturas, as mudanças,
Valéry disse que o poema é o desenvolvimento de as invenções e, no fim, o inesperado: o campo da sur-
uma exclamação. Fórmula lúcida mas que, por sua vez, presa. O que chamamos ele desenvolvimento nada mais
necessita ser esclarecida. No poema curto o fim e o co- é do que a aliança entre surpresa e recorrência, inven-
meço se confundem: há quase um princípio de desen- ção e repetição, ruptura e continuidade.
volvimento. No poema ele extensão média sim, são dis- Reduzido à sua forma mais simples e essencial, o
cerníveis o começo e o fim; ao mesmo tempo, embora poema é uma canção. O canto não é discurso nem
diferentes, são inseparáveis, cada um com sua fisiono- explicação. No poema curto - jarcha, hai-kai, epi-
mia própria. Lemos os poemas de extensão média da grama, chüeh-chü, copla - se omitem os anteceden-
primeira à última linha, não só o começo ou só o fim. tes e a maioria das circunstâncias que são a causa ou
Não podemos isolar as partes. No poema grande as par- objeto elo canto. Mas para cantar a cólera ele Aquiles
tes tampouco têm existência autônoma completa mas e suas conseqüências, Homero eleve contar suas fa-
cada uma existe como parte. Não podemos ler uma par- çanhas e as dos outros aqueus e troianos. O canto se
te isolada de um poema de extensão média porque essa torna conto e, por sua vez, o conto vira canto. Na sua
parte não faz sentido por si própria; mas no poema lon- forma mais imediata, o conto é o relato de um fato ou
go cada parte tem vida própria. Exemplos: o episódio uma história. O poema nos conta alguma coisa: as
de Paolo e Francesca no 11 Infemo 11 , o do encontro com histórias dos heróis. O poema extenso é, na sua ori-
Matelda no 11 Paraíso terrestre 11 ou o 11 Canto ela usura" no gem, épico. Mas as histórias dos heróis são também
poema de Pouncl. as dos deuses e das relações entre os dois mundos, o
A poesia é regida pelo duplo princípio da variedade heróico e o divino. Ulisses, Ájax, Gilgamesh, Enéias:
dentro da unidade. No poema curto, a variedade é sa- encontros, amores e combates com deusas e deuses.
crificada à custa ela unidade; no poema grande, a varie- O mítico e o heróico se confundem: a matéria épica
dade atinge sua plenitude sem romper a unidade. As- é o berço dos heróis que são seres sernidivinos. Exis-
sim, no poema grande encontramos não só a extensão, tiria urna épica puramente terrestre, não contaminada
que é urna medida mutável, mas também máxima varie- pelas intervenções sobrenaturais e pelas genealogias
dade na unidade. No poema longo aparece, além disso, divinas? Dizem que o Cantar de mio Cid é um poema
outra dupla exigência, que tem estreita relação com o
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realista. Não: o realismo é um conceito moderno e o sível porque a Divina comédia é um poema alegórico e
poema do Cid é um texto medieval, quer dizer, de uma nesse aspecto consiste a segunda grande novidade elo
época na qual era constante a interpenetração entre o poema cristão. O relato da viagem de Gilgamesh ao ou-
que chamamos a realidade real e a sobrenatural e mara- tro mundo é um dos textos mais belos e desoladores da
vilhosa. A épica esbarra, num extremo, coin a história e, literatura universal - é o canto da consciência da morte
no outro, com a mitologia. Épica, mitologia e cosmogo- - mas em nenhum momento o episódio pode ser visto
nia se interpenetram constantemente. O poema épico é como uma alegoria: a viagem interior do herói ao país
primo irmão do poema religioso. Por sua vez, o poema dos imortais, por mais fantástica que possa parecer, se
religioso não demora em se transformar em filosófico. apresenta como um fato real, absolutamente real. Tam-
Os -exemplos são muitos, do poema de Parmênides ao pouco são alegóricos os cantos nos quais Homero e Vir-
de Lucrécio. gílio nos contam as entrevistas de Ulisses e Enéias com
O Ocidente cristão introduz uma dupla e grande no- os mortos. Por outro lado, a viagem de Dante aos três
vidade. O poema longo da Antiguidade greco-romana mundos é uma tripla alegoria: da história de Israel, que
- seja épico, filosófico ou religioso - é sempre objeti- é o resumo da história do gênero humano; da história
vo e nele não aparece o autor. Virgílio nos relata ostra- da redenção dos homens; e da história de Dante, que é
balhos e os amores de Enéias, Parmênides nos diz o uma alegoria da de todos os pecadores ... Alegoria da
que é o ser e o não-ser, Hesíodo nos conta das quatro história da salvação pelo amor: o cristianismo.
idades ela terra. Em todos estes poemas não se rompe a Em muitos trechos da Vita nuova Dante emprega
objetividade do relato nem o tema elo canto é a pessoa expressões como está: Amor nie disse, Vi chegar o
elo poeta. Na poesia cristã aparece um elemento novo: Amor... Ou seja, vê o Amor e ouve-o; fala dele não
o próprio poeta como herói. A Divina comédia é um como se fosse uma paixão e sim uma pessoa. Apesar
poema no qual se reúnem todos os gêneros anteriores disso, no mesmo livro, ao comentar um de seus poe-
- épicos, míticos, filosóficos - e no qual se conta uma mas, escreve: "Alguém poderá se surpreender ele que
história. O tema elo poema não é o regresso de Ulisses eu falo do Amor não somente como se fosse uma coisa
a Ítaca ou as aventuras de Enéias: relata a história ela em si ou como uma substância inteligente, também
viagem ele um homem ao outro mundo. Esse homem como se fosse uma substância corporal, o que, na ver-
não é um herói, como Gilgamesh, e sim um pecador - dade, é falso. Amor não existe em si como substância e
e mais: esse pecador é o próprio poeta, o florentino sim como um acidente de uma substância". Para melhor
Dante. O poema antigo era impessoal; com Dante apa- compreensão deste trecho, deve-se lembrar que, segun-
rece o eu. do a doutrina medieval, existem substâncias inteligen-
Grande mudança: a primeira pessoa do singular se tes e incorpóreas como os anjos, substâncias sem inteli-
converte no protagonista do poema longo. Isso foi pos- gência como os elementos materiais, substâncias

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animadas por uma alma vegetal ou animal mas irracio- forma e pode se reduzir a urna proporção geométrica e
nal e, enfim, substâncias que são corporais e inteligen- matemática; o triângulo que vemos pintado numa igreja
tes: os homens.2 Embora Amor não seja nem espírito medieval nada mais é do que urna forma: é o signo da di-
angelical nem demônio nem matéria .bruta, tampouco é vindade. Na alegoria desaparece a distância entre o ser e o
uma pessoa. O que é então? É um acidente de uma sentido: o signo devora o ser. Cada elemento da alegoria
substância corpórea e inteligente; não uma pessoa, mas - rosto e corpo, gesto e roupas - é um atributo e cada
sim alguma coisa que acontece a uma pessoa: uma pai- atributo é um signo. Mas a alegoria nos oculta a pró-
xão, um sentimento. Mas Dante descreve este acidente pria coisa que nos apresenta. Não é urna presença,
que carece de uma forma - embora nasça da visão de embora assuma uma forma corpórea, nem é alguma
uma forma - corno se fosse realmente uma pessoa; coisa que se apreende com os olhos e rapidamente,
quero dizer, faz do amor uma personificação. mas lentamente e com o entendimento: ver urna ale-
Mais adiante explica que revestir o amor com os atri- goria é interpretá-la. Contemplamos as formas do
butos do ser humano é um privilégio conferido aos mundo, deciframos as alegorias. .
poetas. Desde a Antiguidade, diz, os poetas usam "figu- A natureza intelectual da alegoria, que reduz o ser ao
ras e cores retóricas para falar das coisas inanimadas signo, se manifesta também na atitude do poeta diante de
como se elas tivessem sentido e razão ... " Amor é uma fi- sua obra. Ao contrário do poeta romântico, possuído pela
inspiração, o poeta alegórico, sim, sabe do que fala. Dante
gura de linguagem.
Por meio da personificação o poeta traça uma ponte declara com simplicidade: "Seria urna grande vergonha
entre o invisível e o visível, a idéia e a coisa, a abstração que um rimador que reveste suas idéias com figuras ou
e o objeto. O amor, a inveja e a cólera são paixões que, com as cores da retórica não pudesse, quando o interro-
por meio de uma operação da linguagem, se transfor- gam, desvesti-la de maneira que se veja que elas escon-
mam em pessoas, não de carne e osso mas imaginárias. dem um sentido verdadeiro". O corpo da analogia é seu
significado. Assim, embora se apresentem corno imagens,
A personificação é um momento da alegoria. As distin-
as alegorias são realmente escrituras. Como as Sagradas
tas personificações - Amor, Inveja, Castidade, Justiça,
Escrituras, modelo de todas as outras, as alegolias escon-
Cólera, Temperança - falam entre si como falam os
dem uma pluralidade de significados. Em Il convivia (II, 1),
homens e as mulheres; como eles, se unem e se sepa-
Dante chama seus poemas de escrituras e enumera os
ram, fazem pactos e brigam. Há contudo uma diferença:
quatro sentidos que podem ser extraídos delas: o literal, o
seja qual for a forma que adotem, as figuras alegóricas
alegórico ("a verdade encoberta por uma bela mentira"), o
não são realmente formas, e sim configurações de sig-
moral e o anagógico ou sobrenatural. O corpo da alegoria
nos. Seu ser é ser signo. A essência do triângulo é sua
é quádruplo e, ao r1esmo tempo, inacessível. Cada signi-
2. Cf. a nota de André Pézard sobre Vita mtova XXV, Nagel, Paris, 1953.
ficado nos leva a outro, mais alto, até que o último nos

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coloca diante daquilo que é indizível e que está mais Contudo, embora Dante veja seu poema como uma ver-
além do sentido. dadeira alegoria, a Divina comédia é, por sorte, algo mais
No livro sábio e inteligente que dedicou a este tema e, sobretudo, alguma coisa irredutível à geometria, ao
(17Je allegOJy of lave), C. S. Lewis nos adverte sobre uma mesmo tempo obsessiva e árida, do gênero. O declínio da
confusão freqüente: ler uma alegoria medieval como um alegoria começa no Renascimento. Aparece o poema épi-
símbolo. 3 A alegoria e o símbolo são im1ãos mas os dois co fantástico, quero dizer, no qual as circunstâncias e os
são também manifestações do pensamento analógico; tan- heróis são plenamente ficções. A obra-prima do gênero é
to a alegoria como o símbolo postulam uma relação secre- Orlando furioso, de Ariosto, um poema que poucos lêem
ta entre isto e aquilo, o mundo elas idéias e o das coisas. hoje, embora seja por seu brio, seu ritmo, a mistura de alta
Mas Lewis introduz uma distinção funcbmental: 11 a equiva- poesia e l)umor, extravagância e bom senso, um livro ex-
lência entre o material e o imate1ial pode ser usada pela traordinariamente moderno. Um livro vivo. Com a épica
mente ele duas formas (. .. ) Diante ele um fato imaterial, burlesca italiana - Boiardo e Ariosto - se rompe a alego-
como a paLxão que sentimos, se inventa visibilia para ex- ria e abre-se o caminho ao novo romance e a Cervantes.
pressá-la (. .. ) Sentimos cólera e imaginamos a Ira, com o No romance funciona um princípio oposto ao poema ale-
rosto desfigurado e uma tocha na mão. Isto é o que se cha- górico: a ironia. A primeira revelou a correspondência en-
ma alegoria 11 • Por outro lado, também podemos ver nossas tre o mundo daqui e o de lá; a segunda destaca a distância
paixões como uma cópia ou reflexo de um mundo imate- entre o real e o imaginário. 4 Também é italiano outro gran-
rial. Esta foi a idéia ele Platão; é uma idéia implícita - em-
de poema extenso do H.enascimento: jerusalém. libe11ada.
bora poucas vezes consciente- em todo simbolismo. Ver
É uma obra menos veloz e solta do que Orlando, porém
através ela cópia o arquétipo, vislumbrar no mundo daqui
mais grave e nobre. O humor se evapora e se transfom1a
o de lá, diz Lewis, 11 é o que chamo simbolismo ou sacra-
numa névoa irisada: a melancolia.
mentalismd'. Para o simbolista, a realidade que vemos não
Nem a poesia épica italiana, apesar de ser uma das
é inteiramente real; é um símbolo ela outra realidade, a
mais altas criações literárias européias, nem os outros
verdadeira: a idéia, a essência.
grandes poemas do Renascimento e da Idade Barroca
- Os lusíadas, 1he fairie queen, Paraíso perdido -
* exerceram tanta influência sobre a poesia moderna. Por
outro lado, os poetas românticos leram tudo isso, prin-
A alegoria foi a fom1a predileta dos poetas medievais e cipalmente Milton. Além disso, veneraram suas figuras,
a ela devemos,· entre outras obras, O romance da rosa. 4. Tratei o tema das relações contraditórias entre analogia e ironia em O
3. Me confesso culpado por esta confusão nas páginas que, há mais de arco e a lira (no capítulo "Ambigüidade de romance"), México, 1956; em
30 anos, dediquei a Dante e a Vita nuoua ("A inspiração'', em O arco e a El signo y el garabato ("La nueva analogía"), México, 1973, e em Os filhos
lira). do barro ("Analogia e ironia"). Barcelona, 1974.

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que pareciam emblemas do destino do poeta: Milton, ropéia podia se resumir em dois nomes: Roma e Dante,
cego e rebelde; Tasso, apaixonado, louco e perseguido. quer dizer, a ordem cristã medieval; para Milton, Euro-
A indiferença dos modernos diante da épica renascen- pa era antes de tudo o passado greco-romano, as huma-
tista e barroca se deve, talvez, ao fato de que com esses nidades renascentistas, o cristianismo reformado e o
poemas culmina a tradição do humanisrno greco-latino novo pensamento. Durante sua viagem à Itália visitou
enquanto a Idade Moderna foi a do rom- Galileu, que vivia recluso. A Europa de Milton é aquela
cânones estéticos. É uma pena. Os Mu- que dividiu a Europa de Eliot. O equívoco entre a gera-
tability cantos de Spenser, por exemplo merecem ser li- ção de Eliot e Milton é da mesma índole da que separa
dos não com os olhos da arqueologia literária e sim Michelangelo de pintores como Matisse e Picasso. Em-
com os da poesia de hoje. São modernos, apesar do ar- bora Milton tenha nascido 40 anos depois da morte de
caísmo de sua linguagem, tanto por seu tema - o diá- Michelangelo, há em suas figuras heróicas alguma coisa
logo entre mutação e identidade, mudança e continui- parecida: são encarnações do conflito entre o cristianis-
dade - como vitalidade de seus movimentos, mo e a beleza ideal do humanismo pagão. Nas obras
imagens e expressões. A máxima abstração vertida em dos dois artistas triunfa o arquétipo renascentista do ho-
termos particulares e concretos. A natureza, mãe de to- mem e da natureza: idealismo naturalista. Contudo, em-
das as criaturas, "sempre jovem e sempre velha,/ imó- bora seus personagens tenham as proporções sobre-hu-
vel sempre e sempre em movimento, / ninguém a vê e manas dos heróis da Antiguidade, estão possuídos por
todos a contemplam ... 11 Camões é menos inclinado aos um dinamismo ausente nos modelos clássicos e nas
paradoxos e às filosofias mas sua linguagem não é me- obras dos pintores e poetas do primeiro Renascimento.
nos concreta que a de Spenser e seu relato é mais sim- O dinamismo das figuras de Michelangelo e de Milton é
ples. Economia em ação e opulência nas digressões. trágico, pois é uma visão da queda do herói num espa-
Embora Camões esteja longe de nós, alguns trechos não ço sem fim. Quero dizer: é uma versão, ao mesmo tem-
perderam seus poderes de encantamento, como a des- po cristã e olímpica, do mistério do pecado original.
crição de Malabar e sua gente, a aparição do gigante O Satã de Milton despenca incessantemente e, o
Adamastor convertido em cabo da Boa Esperança (que mais terrível, ao cair num espaço sem fim, cai em si pró-
o poeta chama, com maior realismo, Tormentário) e, no prio. A modernidade começa com o descobrimento do
fim, o delicioso episódio da ilha dos Amores. duplo infinito: o cósmico e o psíquico. O homem sentiu
Eliot criticou Milton por suas escolhas latinizantes e logo que lhe faltava, literalmente, chão. A nova ciência
sua eloqüência; crítica surpreendente pois, no fundo, abrira o espaço e por essa fenda o olho humano desco-
equivalia a criticar aquilo mesmo que Eliot sempre exal- briu alguma coisa rebelde ao pensamento: o infinito.
tou: o europeísmo. Inconsistência? Talvez, na verdade, Assim, a modernidade nascente, por meio de seus poe-
duas visões opostas da Europa. Para Eliot, a tradição eu- tas e artistas, descobriu um novo vértice. O mundo de

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Dante era finito e por isso pôde traçar a geografia do in- moral poética, sobretudo em nossa época vil, que cos-
ferno, do purgatório e do paraíso. Mas esse mundo limi- tuma desonrar os vencidos.
tado era eterno: os homens estavam destinados a viver As fábulas, abundantes nesses séculos, poderiam ser
por séculos e séculos e, depois do Juízo Final, sem ne- consideradas poemas longos. Contudo, por sua própria
nhuma mudança. A eternidade dissipa o tempo e a su- natureza, são episódios desprendidos elo grande livro
cessão: seremos para sempre o que somos. Nisso con- ela mitologia. Quase todas estão inspiradas nas Meta-
siste a diferença radical entre o mundo medieval e o mo1foses de Ovídio. A mais famosa de todas, a Fábula
moderno. O cristianismo medieval vivia num espaço fi- de Polife1no y Ga!atea, é um dos poemas mais perfeitos
nito e estava destinado à eternidade dos bem-aventura- da poesia européia, mas será um poema longo? Tem
dos ou dos condenados: nós vivemos num universo in- 504 versos: longo para nós, não para sua época. Tam-
finito e estamos destinados a desaparecer para sempre. pouco me parece que as Soledades se ajustam às carac-
Nossa condição é trágica em um sentido sequer imagi- terísticas elo poema longo. A diferença não está somen-
nado pelos pagãos da Antiguidade e muito menos pelos te no número ele linhas mas no desenvolvimento: as
cristãos ela Idade Média. divisões entre as diferentes partes e os elos e articula-
Nenhuma das epopéias espanholas dos séculos XVI e ções entre elas. O poema longo eleve satisfazer uma du-
XVII pode se comparar às aqui citadas. Lope de Vega, imi- pla exigência: a ela variedade dentro da unidade e a ela
tando Ariosto, escreveu La hermosura de Angélica e anos combinação entre recorrência e surpresa. Não vejo nas
mais tarde rivalizou com Tasso ao publicar jesusalén con- Soledades desenvolvimento e sim acumulação - às ve-
quistada. Com justiça, são poemas esquecidos. Lope tam- zes deslumbrante, outras vezes cansativa e sempre pro-
bém escreveu uma Gatomaquia, poema épico burlesco lixa - de fragmentos e detalhes. Há muito tempo quero
que conta as batalhas e os amoricos de gatos e gatas nos dizer isso e agora me atrevo: as Soledades são uma peça
telhados de Madri. Seus gatos são demasiado humanos e ele marcheteria sublime e vã. É um poema sem ação e
seus humanos demasiado estereotipados. E Alonso de Er- sem história, recheado de amplificações e rodeios diva-
cilla? Faz muitos anos, Nemda, quando se dispunha a es- gantes; as contínuas digressões são às vezes mágicas,
crever seu Canto geral, insistiu em que eu lesse alguns tre- como um passeio por um jardim encantado, mas a re-
chos que ele admirava. Leitura ao mesmo tempo petição ele maravilhas acaba por resultar tediosa. Há vi-
cansativa e comovente. O estilo de Ercilla é como o sões fascinantes e charadas fúteis: qual é o perfume que
trote de um esquadrão de cavalaria em uma planície. "traduzido mal por Egito, / tarde o encomendou o Nilo
Mas essa monotonia tem suas compensações: a so- a suas bocas"? Enfim, pode-se ler as Soledades com en-
briedade, o realismo e certa nobreza viril. A exalta- tusiasmo? Entusiasmo: a marca ela poesia, seu sinal de
ção elo inimigo, o cacique Caupolicán, é uma lição ele nascimento, o furor divino.

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A composição das Soledades é nula. Composição no Foi muito imitado e, apesar essa influência não
sentido em que a Eneida e a Divina comédia, Coplas a produziu nenhuma obra considerável, exceto "Primero
la mue11e del maestro de Santiago e O prelúdio, o "Can- sueno 11 de sóror Juana Inês de la Cruz. O poema da poe-
to a mim mesmo" e 11 Um lance de dados 11 são obras com.- ta mexicana é gongoriano e, ao mesmo tempo, é a ne-
postas, qualquer que seja seu gênero. O Polifenio, para gação de Gôngora e sua estética: é uma visão do mun-
mim o melhor poema ele Gôngora, é concebido com do e do espírito humano perdido na vastidão universal.
mais felicidade; talvez porque neste caso o poeta cor- É um verdadeiro poema longo, com começo, um de-
dovês seguiu fielmente Ovídio. A ação é condensada e senvolvimento completo e um final súbito, inesperado.
rápida como no poema latino mas a verdadeira origina- Não há nada semelhante a ele na poesia ele nossos sé-
lidade de Gôngora está na linguagem, prodigiosa, e em culos XVI e XVII. Na poesia espanhola de sua época,
sua visão paradisíaca do mundo natural. Os persona-
11
Primero suefío" é um monumento solitário. Poema do
gens ele Gôngora nos impressionam por suas dimen- ato de conhecer e dos limites de todo conhecer; para en-
sões sobre-humanas mas seu Polifemo não nos faz rir contrar visões e obsessões parecidas é predso ir ao poema
como o ele Teócrito nem nos comove como o ele Oví- de Mallam1é, 11 Um lance de clados 11 , e a sua descendência
dio: nos assombra. O mesmo podemos dizer de Acis e em nosso século.
seu fim infeliz ou ela bela Gabtéia e sua paixão: nos dei-
xam maravilhados sem conquistar nossa cumplicidade
*
sentimental ou emocional como os outros heróis da li-
teratura. Não são pessoas nem personagens: são figu- Embora em n1ais de um sentido sejamos seus her-
ras. O mundo ele Gôngora não é o teatro elas paixões deiros e continuadores (nem sempre fiéis: esquecemos
humanas ou o das batalhas e amores elos deuses. É um sua tolerância e boas maneiras intelectuais), o século
mundo estético e suas criaturas, tecidas pelas palavras, XVIII está mais longe de nós, poeticamente, que o sé-
são reflexos, sombras, centelhas, enganos adoráveis e culo XVI ou XVII. No século XVIII nasce já plenamente
efêmeros. O que fica depois ela leitura? Uma natureza a modernidade mas não a poesia moderna. Na verdade
transfigurada em linguagem. Fica a beleza ... pode-se dizer o contrário: a poesia romântica foi uma
A influência de Gôngora foi imensa. Enriqueceu o reação diante da do século XVIII. As qualidades dos
vocabulário e nos ensinou a ver e a combinar o que poemas longos desse século são opostas àquelas que
percebemos ele uma maneira ao mesmo tempo inusita- amamos nos poemas dos românticos e dos simbolistas.
da e sensual; por outro lado, não nos deu uma visão elo O Essay on inan, por exemplo, é um verdadeiro ensaio
ser humano nem deste mundo e seus transmunclos. - lúcido, inteligente, elegante e de composição esme-
Muito menos nos ensinou a compor, na acepção ime- rada - mas me pergunto se, apesar da versificação ad-
diata ela palavra: formar um todo com coisas diversas. mirável, não poderia ter sido escrito em prosa. A elo-

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qüência de Milton nos cansa e seus períodos longos e Divina com.édia o herói não é um semideus e sim um
complexos nos dão tonturas; contudo, no momento em pecador: o poeta florentino Dante Alighieri, que é um
que estamos prontos para fechar o livro, nos fascina ser real e, ao mesmo tempo, uma alegoria do homem
uma súbita perspectiva espiritual que logo se abre dian- caído. O tema do don]uan de Byron não é o libertino da
te dos nossos olhos. É como se a tela da realidade arre- lenda sevilhana mas sim o próp1io poeta. Don Juan não é
bentasse e pudéssemos ver o outro lado. Blake disse uma alegoria de Byron: é uma máscara simbólica, uma
que Milton, como verdadeiro poeta, tinha parte com o persona. Byron é Byron e é o reflexo que o transcende: o
diabo, embora não soubesse disso. Desde então Satã se poeta rebelde e livre. O reflexo terrestre, a cópia corporal
transformou em uma figura que participa do heroísmo e espiritual de um arquétipo: Satã, o anjo da liberdade.
altruísta de Prometeu, da ousadia de Ícaro e do amor à O símbolo opera em direção oposta à alegoria. Bla-
liberdade. Satã: subversão e ironia, queda e melancolia. ke já escrevera um poema épico-simbólico que tem Mil-
Também promessa de redenção. O príncipe caído, Lú- ton como personagem, mas o Milton de Blake é real-
cifer, luz da madrugada, portador da tocha que rompe mente o mesmo Blake que, por sua vez, não é senão a
a escuridão, fascinou os românticos e seus sucessores. manifestação humana da imaginação poética. Segundo
No poema ele Hugo, 11 0 fim de Satã", o anjo rebelde em Blake, a imaginação tem a missão, por meio do poeta,
sua infinita queda abandona uma pena. Tocada pelo de converter 'os filhos da Memória', ou seja, a poesia
olho ele Deus, essa pena se converte no anjo Liberdade. greco-romana, nos 'filhos da inspiração': a poesia da
O Romantismo alterou profundamente o poema nova era. O Milton de Blake, encarnação da 'eterna
longo, tanto em sua arquitetura e em seus temas como energia' (Satã), não é uma alegoria: é o símbolo do
em seus fundamentos. Foi uma mudança não menos novo poeta. A nova poesia se propõe a acabar com a
profunda que a da alegoria. Em primeiro lugar, introdu- imitação dos "pervertidos escritos de Virgílio, Ovídio e
ziu um elemento subjetivo como tema do poema: o eu os outros pagãos, escravos da espada". No Milton de
do poeta, sua própria pessoa; em segundo lugar, fez do Blake se conjugam o poema do poeta e o poema da
canto o próprio conto. Quero dizer: o conto do canto poesia.
foi o canto, o tema do poema foi a própria poesia. Ou Não é difícil encontrar as duas notas, sempre de for-
como disse o sentencioso Antonio Machado: "se canta ma simbólica, em quase todos os grandes poetas ro-
una historia y así se cuenta una melodía 11 • Contar é, si- mânticos: no Hzperion de Hólderlin, no 11 Adonais 11 de
multaneamente, relatar uma história e escandir o verso: Shelley ou em The ancient niariner de Coleridge. No
conto que se torna canto e canto que, ao contar o con- Prelúdio os elementos aparecem ele modo explícito e
to, canta a si próprio - o ato de cantar. O poema ro- direto. Wordsworth nos fala ela formação do poeta
mântico teve como tema do canto o próprio canto ou Worclsworth, desde a infância visionária até a maturida-
seu cantor: poema da poesia ou poema do poeta. Na de. Mas não é uma biografia, embora não se omitam os

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episódios reais; o verdadeiro herói de O prelúdio é a metáforas e os símbolos enquanto se omitem as descri-
imaginação poética: como nasce numa criança, como ções e a narração. Encontro entre o extenso e o intenso:
se enfraquece e quase desaparece e como, pela con- o poema longo se torna uma sucessão de momentos in-
templação da natureza e da sociedade .humana, o poeta tensos.
maduro consegue recuperá-la. É um poema animado O melhor exemplo da nova poética foi "Um lance de
por um movimento duplo: o trânsito até o amadureci- dados": um estranho poema que tem como tema o ato
mento é também uma volta à infância. O assunto do de escrever um poema. Mas um poema nunca antes
poema é psicológico, filosófico e, sobretudo, poético e tentado: um poema absoluto. Não um poema do poe-
religioso: recobrar o olhar da criança. A recuperação do ma, e sim o poema do poema. O tema de sóror Juana
~saber inocente. O poema do poeta se funde no poema Inês de la Cruz - o poema do ato de conhecer- rea-
do poema. parece levado a um limite extremo. A resposta foi igual-
O Simbolismo recolheu os dois grandes temas da poe- mente negativa: o poema do poema foi um poema. Não
sia romântica: a poesia do poeta e a poesia do poema. En- existe poema mais absoluto que este que agora escrevo
tre estes dois extremos surgiu - outra herança romântica numa língua destinada a desaparecer. Assim o poema
- o diálogo entre a ironia e a analogia: a consciência do do poema de Hólderlin e os outros românticos culmina
tempo e a visão da correspondência universal. Diálogo em sua crítica e em sua negação: estamos condenados
que se resolve na discórdia, como em Baudelaire. A poesia a escrever o mesmo poema e cada versão desse poema
simbolista introduziu outra mudança, esta sim radical: apli- universal é particular e relativa. É conhecida a emoção
cou ao poema extenso a estética do poema breve. O poe- com que, em 1866, Mallarmé descobriu o pensamento
ma simbolista dispensa explicações; nem conta nem diz: de Hegel. Há uma indiscutível semelhança: os dois, o
sugere. Seu canto faz fronteira com o silêncio. Um dos ele- filósofo e o poeta, partem da identidade final entre o
mentos do poema longo era a continuidade no desenvol- ser e o nada. 5 A dialética está destinada, segundo He-
vimento, quer dizer, a natureza linear da composição: um gel, a mediar entre as distintas formas do ser até a
episódio sucedia ao outro e cada um estava ligado ao an- afirmação final e plena do ser: a esta idéia correspon-
terior e ao seguinte. Não havia intenupção nem ruptura. O de a ambição de Mallarmé: resolver o acaso (a lingua-
poeta simbolista rompe a continuidade: acredita no valor gem) em um número absoluto (o poema). Ao contrá-
da pausa e do espaço em branco. Um poema simbolista é rio do orgulhoso Hegel - e nisso sua humildade foi
um arquipélago de fragmentos. O desenvolvimento se também sabedoria - , Mallarmé termina por dizer
atomiza. Diferentemente do poema romântico, os frag- a penas um 'talvez'. O jogo poético não anula a casuali-
mentos não estão unidos por uma cadeia verbal e sim por dade: não há um número absoluto. Se houvesse, seria
silêncios, afinidades, cores. A sucessão não é explícita e sim 5. Uma idéia que se encontra também no pensamento da Índia, especial-
mente no budismo de Nagarjuna.
tácita. Por último, no poema simbolista abundam as

28 29
irreconhecível e indizível. Cada poema, cada número, é man recupera o caráter arquetípico do tempo não por
um absoluto instantâneo. Lição de sobriedade e heroís- meio de um passado lendário mas sim por imersão no
mo. Foi uma volta implícita a Kant, embora Mallarmé agora. O que acontece agora está acontecendo sempre.
talvez não soubesse disso. A Kant, o (undador da mo- A forma elo poema também está em oposição à de
dernidade verdadeira e o primeiro que nos alertou con- Mallarmé. Ambos prescindem da rima mas enquanto o
tra os delírios da dialética, que ele chamava, com razão, ritmo de Mallarmé é primordialmente visual - a dispo-
de 'filosofia da ilusão'. sição das linhas sobre as páginas, os brancos e os dife-
No outro extremo: Walt Whitman. Para perceber- rentes caracteres - o de Whitman é oral: não alguma
mos sua extraordinária modernidade é preciso lem- coisa que vemos, mas sim que ouvimos. Volta à origem
brar a data de publicação de "Canto a mim mesmo": da poesia: a palavra falada. Mallarmé exalta a reticência,
1855. O que se escrevia então na Europa e na Améri- o silêncio, os brancos; sua linguagem vem da escritura
ca? O poema de Mallarmé apareceu cerca de meio sé- e é 'esquisita'. A linguagem de Whitman é falada e não
culo depois, em 1897. Mas não é só uma data que se- peca por preciosismo, se inclinando mais para o lado
para os dois poetas: suas obras anunciam as vias ela oratória e da gesticulação. Arrebatado pelo entusias-
opostas, embora complementares, que seguiu a poe- mo, quer dizer tudo, se perde e se ganha em interminá~
sia do século XX. Whitman recolhe o tema romântico veis enumerações com uma delícia ao mesmo tempo
do poeta como assunto do poema. Ao mesmo tempo, infantil e cósmica, indo da confidência à exclamação e
muda radicalmente essa tradição. Whitman não nos desta à profecia. Ao exaltar o eu exalta a nós. Sua de-
conta a história de um herói lendário, por trás de cu- mocracia é libertária, igualitária e cósmica. Poema da
reconciliação das potências inimigas: o corpo e a alma,
jos traços se esconde o poeta, como o Hiperion de
o presente e o passado, o eu e o tu, o branco e o negro,
Hõlderlin ou o Childe Harold de Byron. Tampouco
o homem e a mulher, o alto e o baixo. O "Canto a mim
escreve uma biografia poética como a de O prelúdio
mesmo" se resolve no canto da fundação de uma comu-
de Wordsworth. O "Canto a mim mesmo" não é um
nidade livre, uma fraternidade entre os homens os se-
relato e sim uma expansão poética. Whitman não fala '
res e as coisas, sejam astros ou ratos, tigres ou locomo-
das vicissitudes de sua vida, fala de seu próprio ser.
tivas, árvores ou sonatas ... Mallarmé: o canto elo poeta
O poeta canta um eu que é um tu e um ele e um nós.
solitário diante do universo; Whitman: o canto ele fun-
É um entre tantos e é um ser único: um pedestre e um
dação da comunidade livre dos iguais. Com estes dois
cosmo. O tempo do canto também é diferente daque- poetas ten11ina certa modernidade - a poesia romântica,
le dos antigos poemas. Não é um passado mítico nem o Simbolismo - e começa outra: a nossa.
um presente atemporal. É um presente fechado: 1855; e
é um presente sem datas: o agora mesmo que acontece
todos os dias desde que os homens são homens. Whit- México, 1976

30 31
2

e
You say I am repeating
Sornething I have said before.
I shall say it again.
Shall I say it again?
T.S.ELIOT

I. Jlllodem idade e Rornantismo

O tema que me proponho a explorar - poesia e


modernidade - é formado por dois elementos cuja re-
lação não é inteiramente clara. A poesia deste final ele
século é, ao mesmo tempo, a herdeira dos movimentos
poéticos ela moclerniclacle, elo Romantismo às vanguar-
das, e sua negação. Tampouco fica claro o que se en-
tende por 'moderno'. A primeira dificuldade que en-
frentamos é a natureza esquiva e mutável ela palavra: o
moderno é por natureza transitório e o contemporâneo
é uma qualidade que se desvanece tão logo a enuncia-
mos. Existem tantas modernidades e antiguidades como
épocas e sociedades: um asteca era moderno diante de
um olmeca e Alexandre diante ele Amenófis IV. A poe-
6. Este texto foi lido nos cursos de verão da Universidade Menéndez Pe-
layo (Santander) em 1986, e posteriormente, 1989, no Colégio de França e
na Universidade de Utah (Tanner Lectures).

33
sia 'modernista' ele Darío era uma coisa antiga para os ção, liberdade, democracia, ciência, técnica - nasce-
ultraístas e o Futurismo hoje nos parece, mais que uma ram da crítica. No século XVIII a razão fez a crítica do
estética, uma relíquia. A Idade Moderna não tardará em mundo e ele si própria; assim transformou pela raiz o
ser a Antiguidade ele amanhã. Mas, por agora, temos antigo racionalismo e as suas geometrias intemporais.
que nos resignar e aceitar que vivemos na Idade Moder- Crítica de si mesma: a razão renunciou às construções
na, conscientes ele que se trata ele uma designação equi- grandiosas que a identificavam com o Ser, o Bem e a
vocada e provisória. Verdade; deixou de ser a Casa da Idéia e se converteu
O que queremos dizer com esta palavra: moderni- em caminho: foi um método de exploração. Crítica da
dade? Quando começou? Alguns pensam que se ini- metafísica e suas verdades impermeáveis às mudanças:
ciou com o Renascimento, a Eeforma e o descobri- Hume e Kant. Crítica do mundo, do presente e dopas-
mento ela América; outros imaginam que começou sado; crítica elas certezas e valores tradicionais; crítica
com o nascimento elos Estados nacionais, a instituição das instituições e das crenças, o Trono e o Altar; crítica
bancária, o nascimento elo capitalismo mercantil e o dos costumes, reflexão sobre as paixões, a sensibilidade
surgimento ela burguesia; uns poucos insistem em que e a sexualidade: Rousseau, Diderot, Lados, Sacie; crítica
o fator decisivo foi a revolução científica e filosófica histórica de Gibbon e Montesquieu; descobrimento do
do século XVIII, sem a qual não teríamos nem técnica outro: o chinês, o persa, o índio americano; mudanças
nem indústria. Todas estas opiniões são admissíveis. de perspectiva na astronomia, geografia, física, biolo-
Isoladas são insuficientes; unidas, oferecem uma ex- gia ... Ao final, a crítica encarna na história: a Revolução
plicação coerente. Por isso, talvez, a maioria se incline da Independência dos Estados Unidos, a Revolução
pelo século XVIII: não só é o herdeiro destas mudan- Francesa e o movimento de Independência dos domí-
ças e inovações como é o ponto em que se percebem nios americanos da Espanha e Portugal. Por razões que
já muitos elos traços que seriam nossos. Essa época foi já demonstrei em outros textos, a Revolução da Inde-
uma pré-figuração ela que vivemos hoje? Sim e não. pendência na América espanhola e portuguesa fracas-
Mais exato seria dizer que a nossa foi a desfiguração sou no plano político e social. Nossa modernidade é in-
das idéias e projetos desse grande século. completa ou, melhor dizendo, é um híbrido histórico.
A modernidade começa como uma crítica da reli- Não é por acidente que estas grandes revoluções,
gião, ela filosofia, ela moral, do direito, ela história, da fundadoras ela história moderna, tenham se inspirado
economia e ela política. A crítica é seu traço diferencial, no pensamento do século XVIII. Foi um século rico em
seu sinal ele nascimento. Tudo o que foi a Idade Moder- projetos de reforma social e em utopias. Costuma-se di-
na tem sido obra ela crítica, entendida esta como um zer que essas utopias são a parte menos feliz de seu le-
método ele pesquisa, criação e ação. Os conceitos e gado; contudo, não podemos desdenhá-las nem conde-
idéias cardeais ela Idade Moderna - progresso, evolu- ná-las; se por um lado muitos horrores foram cometidos

34 35
em seu nome, por outro lhes devemos quase todas as ço e um fim, se converte no quase infinito da
ações e os sonhos generosos da Idade Moderna. As uto- evolução natural e da história, aberto em direção ao fu-
pias foram o grande fermento que pôs turo. De outro lado, a modernidade desvaloriza a Eter-
em movimento a história dos séculos .seguintes. Auto- nidade: a perfeição se traslada para o futuro, não no ou-
pia é a outra cara e uma idade crítica pode tro mundo, mas neste. Basta lembrar a célebre
ser inventora de utopias: o buraco deixado pelas demo- de Hegel: a rosa da razão está no presente.
do espírito crítico é sempre ocupado pelas cons- A história, disse, é um Calvário: transposição do misté-
truções utópicas. As utopias são os sonhos da razão. So- rio cristão em ação histórica. O caminho em direção ao
- nhos ativos que se transformam em revoluções e absoluto passou pelo tempo, foi tempo. Por sua vez,
reformas. A proeminência das utopias é outro traço ori- entre os diversos modos do tempo, a sempre diferida
ginal e característico ela Idade Moderna. Cada época se perfeição residiu no futuro. As mudanças e as revolu-
identifica com uma visão do tempo e na nossa a presen- ções foram encarnações cio movimento dos homens em
ça constante das utopias revolucionárias denuncia o lu- direção ao futuro e seus paraísos.
gar privilegiado que tem o futuro para nós. O passado A relação do Romantismo com a modernidade é ao
não é melhor que o presente: a perfeição não está atrás mesmo tempo filial e polêmica. Filho da idade crítica,
de nós, e sim na frente, não é um paraíso abandonado, seu fundamento, sua certidão de nascimento e sua defi-
mas um território que devemos colonizar, uma cidade nição são a mudança. O Romantismo foi a grande mu-
que precisa ser construída. dança não só no domínio das letras e das artes como na
O cristianismo opôs à visão do tempo cíclico da An- imaginação, na sensibilidade, no gosto, nas idéias. Foi
tiguidade greco-romana um tempo linear, sucessivo e uma moral, uma erótica, uma política, uma maneira de
irreversível, com um começo, um fim, da queda de se vestir e de amar, uma maneira de viver e de morrer.
e Eva ao Final. Diante desse tempo histórico Filho rebelde, o Romantismo faz a crítica da razão críti-
e mortal houve outro tempo sobrenatural, invulnerável ca e opõe ao tempo da história sucessiva o tempo da
diante da morte e ela sucessão: a Eternidade. Por isso o origem antes da história, ao tempo futuro das utopias o
único episódio decisivo da história terrestre foi o da Re- tempo instantâneo das paixões, do amor e do sangue.
denção: o clescenso de Cristo e seu sacrifício represen- O Romantismo é a grande negação da modernidade tal
tam a interseção entre a Eternidade e a temporalidade, como fora concebida pelo século XVIII e pela razão críti-
o tempo sucessivo e moral dos homens e o tempo do ca, utópica e revolucionária. Mas é uma negação moderna,
mais além, que não muda nem sucede, idêntico a si quero dizer: uma negação dentro da modernidade. Só a
próprio sempre. A Idade Moderna começa com a crítica idade crítica podia gerar uma negação assim tão total.
à Eternidade cristã e com a aparição de outro tempo. De O Romantismo convive com a modernidade e a ela
um lado, o tempo finito do cristianismo, com um come- se funde só para, uma e outra vez, transgredi-la. Essas

36 37
transgressões assumem muitas formas mas se manifes- .ele Deus a parece na consciência moderna com os pri-
tam sempre de duas maneiras: a analogia e a ironia. meiros textos dos românticos.) 8 Dupla transgressão: a
Pela primeira entendo 11 a visão do universo como um analogia opõe ao tempo sucessivo da história e da bea-
sistema de correspondências e a visão da linguagem tificação elo futuro utópico o tempo cíclico do mito; por
sua vez, a ironia afasta o tempo mítico ao afirmar a que-
como o duplo do universo 11 •7 É uma tradição antiquíssi-
da na contingência, na pluralidade de deuses e de mi-
ma, reelaborada e transmitida pelo neoplatonismo re-
tos, na morte de Deus e de suas criaturas. Dupla ambi-
nascentista a diversas correntes herméticas dos séculos
güidacle ela poesia romântica: é revolucionária, não com
XVI e XVII e que, depois de alimentar as seitas filosófi-
e sim diante elas revoluções elo século: ao mesmo tem-
-cas e libertinas do século XVIII, é recolhida pelos ro- po, sua religiosidade é uma transgressão das religiões
mânticos e seus herdeiros até nossos dias. É a tradição cristãs. 9 A história ela poesia moderna, elo Romantismo
central, embora subterrânea, da poesia moderna, desde ao Simbolismo, é a história elas diferentes manifestações
os primeiros românticos até Yeats, Rilke e os surrealis- dos dois princípios que a constituem desde seu nasci-
tas. Ao mesmo tempo que a visão da correspondência mento: a analogia e a ironia.
universal aparece, gêmea adversária, a ironia. É o furo
no tecido das analogias, a exceção que interrompe as
correspondências. Se a analogia pode ser concebida II. JVfodernidade e vanguarda
como um leque que, ao se abrir, mostra as semelhanças
O século XIX pode ser visto como o apogeu da mo-
entre isto e aquilo, o macrocosmo e o microcosmo, os
dernidade. Idéias nascidas ela crítica e que tinham um
astros, os homens e os vermes, a ironia arrebenta o le-
valor polêmico no século XVIII - democracia, separa-
que. A ironia é a dissonância que rompe o concerto das ção entre Igreja e Estado, desaparecimento dos privilé-
correspondências e o transforma em galimatias. A ironia gios nobiliários, liberdade de crenças, opiniões e associ-
tem vários nomes: é a exceção, o irregular, o bizarro, ações - se converteram em princípios compartilhados
como dizia Baudelaire, e, numa palavra, o grande aci- por quase todas as nações européias e pelos Estados
dente: a morte. Unidos. O Ocidente cresceu, se estendeu e se afirmou.
A analogia se insere no mito; sua essência é o ritmo, No fim elo século passado, contudo, começou nos gran-
quer dizer, o tempo cíclico feito de aparições e desapa- des centros ela nossa civilização um profundo mal-estar
rições, mortes e ressurreições; a ironia é a manifestação que afetou tanto as instituições sociais, políticas e
da crítica no reino da imaginação e da sensibilidade; econômicas como o sistema de crenças e valores. As-
sua essência é o tempo sucessivo que desemboca na sim, pode-se chamar ele Idade Moderna o ciclo que
morte. A dos homens e a dos deuses. (O tema da morte 8. Jean-Paul. Veja Osfil/Jos do barro, capítulo III.
9. Obra citada.
7. Cf. Osfilbos do barro.

38 39
compreende o nascimento, o apogeu e a crise ela mo- tas - denunciaram a natureza opressora elo Estado e
clemiclacle; por sua vez, a última etapa, a ela crise, pocle- das instituições sociais: a família, o direito, a proprieda-
se chamar Idade Contemporânea. Apesar disso, sua du- de. Na primeira etapa ela crise, o socialismo marxista foi
ração - tem já cerca ele um século - me faz duvidar crítico mas não subversivo; embora a Segunda Interna-
que esse termo seja apropriado. Tampouco a ela se cional tenha contribuído poderosamente para melhorar
ajustam essas palavras que aparecem ao se falar deste a viela dos trabalhadores, se manteve associada ao statu
tema: decadência, crepúsculo. A palavra crise, sem ser quo elas nações industrializadas.
inexata, desgastou-se de tão repetida. Enfim, qualquer Na segunda década do século XX a crise das institui-
_que seja seu nome, o período que começa em princí- ções se transformou na crise da sociedade política inter-
pios deste século se distingue dos outros pela incerteza nacional e estourou a Primeira Guerra Mundial. As re-
diante elos valores e idéias que fundaram a modernida- voluções que vieram depois mudaram a face do
de. Os primeiros sinais dessa crise universal aparecem planeta. O marxismo - na verdade sua versão autoritá-
em fins elo século passado e por volta ele 1910 já se ma- ria, o leninismo - se converteu em poder mundial. Na
nifestam com brutal clareza. Não vou descrevê-los. Há terceira década, com nomes diferentes e ideologias
muito tempo são o tema preferido ele sociólogos, sacer- contrárias, perfilou-se claramente a nova realidade his-
dotes, economistas, profetas, psicanalistas, jornalistas e tórica: o Estado burocrático totalitário. O processo con-
outros curandeiros elos males ele nossa sociedade. Vou tinua até esta altura do século. Mesmo entre as nações
me limitar a enumerar as zonas tocadas por esta doença que conservam o sistema democrático, é visível a ten-
histórica. dência em reproduzir o modelo de dominação burocrá-
Desde o nascimento da Idade Moderna brota, gran- tica, seja nos grandes consórcios capitalistas, nos sindi-
de fermento e grande extravio, o nacionalismo. Conver- catos de trabalhadores ou na tecnocracia estatal. Pouca
tido na religião elo Estado nacional, ganha grande virn- gente desconfiou, no começo elo século, que as genero-
lência durante o século passado. A crítica reacionária sas aspirações libertárias e revolucionárias daqueles
contra a democracia burguesa - quer dizer, contra o anos, degenerariam, 50 anos depois, em um novo abso-
racionalismo, o cosmopolitismo, o ceticismo e o hedo- lutismo.
nismo - se aliou à nostalgia por uma sociedade pré-ca- A crise da vida pública foi também a das consciên-
pitalista e suas 'relações idílicas', como as denominou cias. Crítica ela família e ela supremacia masculina, críti-
Marx com ironia. Nas prédicas contra o progresso desal- ca da moral sexual, crítica da escola, das Igrejas, das
mado havia ecos elo antigo horror cristão diante de Satã, crenças, elos valores. Apesar das imensas conquistas ela
o cético e inteligente Mamon, amante ela indústria, elo técnica, começou-se a se duvidar do progresso, a gran-
prazer e elas artes. No outro extremo e com paixão se- de idéia condutora elo Ocidente e seu mito intelectual.
melhante, os revolucionários - sobretudo os anarquis- A descrição elo estado ele espírito prevalecente durante

40 41
a primeira metade do século, com suas violentas oscila- necer; apareceu com os atributos do imaginário, virou
ções entre passividade e violência, ceticismo radical e fé ameaçadora ou irrisória, inconsistente ou fantástica. A
no instinto, intelectualismo extremado e culto ao san- cadeira deixou de ser o objeto que vemos e se transfor-
gue, foi feita várias vezes e não é necessário repeti-la. mou numa arquitetura de forças, átomos e partículas in-
Observo unicamente que estes vaivéns coincidiram visíveis. Não somente a nova física atacou a presumida
com descobrimentos fundamentais das ciências que, solidez dos objetos materiais; as geometrias não-eucli-
por sua vez, colocaram em xeque as antigas certezas. dianas abriram a possibilidade de outros espaços, dota-
Basta mencionar estas mudanças: as geometrias não- dos de propriedades diferentes das do espaço tradicio-
euclidianas, a física quântica, a relatividade e a quarta nal. Surgiu a nova entidade, tema das elocubrações dos
dimensão. Depois destes avanços, vieram, mais recen- escritores e pintores, mito da primeira vanguarda: o es-
temente, os da biologia molecular, sobretudo no campo paço-tempo. Embora só mais tarde, na geração seguin-
ela herança genética. Se o antigo espírito se evaporou, te, a cios surrealistas, a psicanálise influiria nos poetas e
convertido numa reação química, a antiga matéria, por nos pintores, já desde então a visão cio eu e da pessoa
sua vez, perdeu consistência e foi energia, espaço-tem- sofreu profundas alterações. E com ela a linguagem dos
po, realidade que se dissemina sem cessar e sem parar artistas, empenhados em expressar as clescontinuiclacles
se reúne consigo própria. Se a matéria se cindiu em áto- e intermitências da consciência e cios sentimentos.
mos e em partículas de partículas, que dizer da cons- O Simbolismo se identificara com uma linguagem
ciência? Deixou de ser a pedra de fundação da pessoa esotérica. Culto ao mi.stério cio universo e ao poeta
e se dispersou. Para alguns foi o teatro de combate de como sacerdote dessa religião secreta. Os novos poetas
novas entidades, talvez não menos ilusórias que as da opuseram a esta linguagem a ironia e o prosaísmo. O
psicologia renascentista: o subconsciente, o inconscien- Simbolismo exaltara o claro-escuro e fora uma arte de
te, a libido, o superego. Para outros, o pensamento e as portas adentro na qual o matiz era o valor supremo; a
emoções não foram senão o resultado de combinações arte nova saiu às ruas e praças: poesia de oposições pu-
físico-químicas. A família se converteu em um fazedor ras e contrastes brutais. O Simbolismo descrevera as
de fantasmas e o crime de Édipo alcançou a dignidade nostalgias de um mais além, às vezes situado num pas-
universal que até então tivera o pecado original: ser o sado impossível e, outras, num não menos impossível
signo constitutivo da espécie humana, o traço que a dis- nowhere; a poesia nova exaltou o instante, o presente:
tingue de todas as outras espécies. o que os olhos vêem e as mãos tocam. A cidade de Bau-
A a11e e a literatura são formas de representação da delaire era a urbe noturna, na qual a luz de gás e seus
realidade. Representações que são, não é preciso lem- reflexos - ambíguos como a consciência humana -
brar, também invenções: representações imaginárias. iluminavam, em ruas como fericlas, o desfile da prosti-
Mas a realidade logo começou a se desagregar e clesva- tuição, cio crime e cio desespero solitário. A cidade dos

42 43
poetas modernos é a da multidão, a cidade de anúncios tava que falava: se não era o interlocutor, era seu espe-
luminosos, dos bondes e dos automóveis, que cada noi- lho. No século XX, o interlocutor mítico e suas vozes
te se transforma num jardim elétrico. Mas a cidade mo- misteriosas se evaporam. O homem ficou sozinho na ci-
derna não é menos terrível que a de Baudelaire: "En- dade imensa e sua solidão é a ele milhões como ele. O
quanto, sozinho entre o gentio, caminhas em Paris/ e te herói da nova poesia é um solitário na multidão ou, me-
cercam manadas de ônibus que mugem/ a angústia do lhor dizendo, uma multidão ele solitários. É o H.C.E.
amor te sufoca 11 • 10 (Here Conzes Eve1ybody) de Joyce. Descobrimos que es-
O herói romântico era o aventureiro, o pirata, o poe- tamos sozinhos no universo. Sozinhos com nossas má-
ta convertido em guerreiro da liberdade ou o solitário quinas. Os industriosos diabos ele Milton elevem ter es-
que passeia à margem de um lago deserto, perdido fregado as mãos. Foi o começo do grande solipsismo.
numa meditação sublime. O herói de Baudelaire era o Os antigos veneravam o cavalo e o barco a vela· a
'
anjo caído na cidade; se vestia de negro e em seu traje nova idade, a locomotiva e o navio. Provavelmente o
elegante e puíclo havia manchas ele vinho, óleo e lama. poema de Whitman que mais impressionou seus segui-
O personagem ele Apollinaire é um vagabundo urbano, dores foi o cleclicaclo a uma locomotiva. Valéry Larbaud
quase um clochard, ridículo e patético, perdido na mul- escreveu uma ode memorável ao Orient-Express, 'o
tidão. É a figura que mais tarde encarnaria Charles Cha- trem dos milionários'; Cendrars, sua não menos memo-
plin, o protagonista ele "A nuvem ele calças" de Maia- rável Prosa do Transiberiano, primeiras núpcias da
kovski e o de "Tabacaria" de Pessoa. Um pobre-diabo e poesia e do cinema. Os futuristas cantaram o automóvel
um ser dotado ele poderes ocultos, um palhaço e um e mais tarde se multiplicam os poemas ao avião, ao sub-
mágico. É clara a filiação romântica do personagem e marino e a outros veículos modernos. Nenhum desses
de suas atitudes; e também o é sua novidade. textos esforçados pode se comparar ao poema de Whit-
Embora a aventura humana - suas paixões, loucu- man, o fundador. Também os transantlânticos excita-
ras, iluminações - continue na nova poesia, os interlo- ram as imaginações. Basta lembrar a "Ode marítima" de
cutores mudaram. A antiga natureza desaparece e com Álvaro de Campos - não uma alegoria nem um símbo-
ela suas selvas, vales, oceanos e montes povoados de lo de Pessoa: seu duplo e seu inimigo - escrita nos cais
monstros, deuses, demônios e outras maravilhas; em de Lisboa mas também em Liverpool, Cingapura, Yoko-
seu lugar, a cidade abstrata e, entre os velhos monu- hama, Harbin. O navio está associado, na poesia dessa
mentos e as praças veneráveis, a terrível novidade das época, mais à Asia que à América. O primeiro ato de
máquinas. Mudança ele realidade: mudança ele mitolo- Partage de midi transcorre num navio que navega in-
gias. Antes, o homem falava com o universo; ou acredi- cessantemente sobre o Oceano Índico. A poesia do
10. Guillaume Apollinaire: Zone, 1912.
mar, nos romances e poemas daqueles tempos, foi uma
poesia do mais além: os mares e as terras desconheci-

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das mas, sobretudo, as civilizações outras: a Índia de Ki- ticos, simbolistas e impressionistas - pelos das culturas
pling, a África e o Sudeste Asiático de Conrad, o Extre- e civilizações estranhas e sim a busca ele outra beleza.
mo Oriente de Claudel e Saint-John Perse. For isso não falei unicamente da autonegação mas tam-
A presença de paisagens e formas artísticas do bém ela metamorfose. A mudança estética foi tão pro-
Oriente, África e da América pré-colombiana é um traço funda quanto aquela introduzida pelas ciências na visão
geral da poesia e da arte de vanguarda. Os poetas ado- tradicional ela realidade. A física mostrara que a realida-
taram o bai-kai e o teatro nô impressionou Yeats e ou- de visível se apóia numa estrutura que é a relação de
tros poetas dramáticos. As traduções de poesia chinesa forças em equilíbrio instável. Os artistas também quise-
de Pound contribuíram vigorosamente para essas mu- ram desmontar a aparência dos objetos cotidianos e os
danças. Assim, o primeiro terço do século XX culmina cubistas conceberam o quadro como um sistema de re-
um longo processo de descobrimento das civilizações lações. Existia um tipo ele neoplatonismo nessa concep-
outras e suas diferentes visões da realidade e do ho- ção: o pintor se propunha representar a estrutura - ou
mem. Este processo, iniciado no século XVI com are- melhor: o arquétipo, a idéia - da cafeteira e elo ca-
velação elo continente americano, se manifestou em chimbo. Daí a necessidade de pintar o exterior e o inte-
nossa época pela adoção de formas artísticas não só rior elos objetos. O exemplo das máscaras negras, que
alheias como contrárias à tradição central do Ocidente. mostram no mesmo plano a parte da frente e posterior
Foi uma mudança tão profunda que ainda nos afeta e elo objeto, abriu um caminho. Por sua vez, os futuristas
que, sem dúvida, afetará a arte e a sensibilidade de nos- queriam pintar o movimento, coisa que a fotografia faz
sos descendentes. A mudança foi, por um lado, o resul- melhor que a pintura. Naquela época era popular a cro-
tado natural ela revolução estética iniciada pelo Roman- nofotografia: sucessão ele instantâneos ele um objeto ou
tismo, sua conseqüência extrema; por outro lado, foi a ele uma figura em movimento, um cavalo que corre,
mudança final, a mudança elas mudanças: com ela aca- uma mulher que anela ele maneira bem ritmada um ci-
ba uma tradição que começou no Renascimento. Os dista. O exemplo mais notável foi Nu descendo uma ' es-
modelos dessa tradição eram as obras da Antiguidade cada ele Marcel Duchamp.
greco-romana, de modo que, ao negá-las, a arte moder- Todas essas obras e tentativas sofreram influência
na rompeu a continuidade do Ocidente. Assim, a mu- elos novos meios ele reprodução ela realidade. A atração
dança foi uma autonegação e, simultaneamente, uma maior, sobretudo para os poetas, foi a fotografia em
metamorfose. Fim do idealismo naturalista, fim da pers- movimento: o cinema. O grande teórico ela montagem,
pectiva e da seção de ouro, fim das representações que Sergei Eisenstein, observa em um ele seus textos que a
pretendem dar ilusão da realidade. ausência ele regras ele sintaxe e ele sinais ele pontuação no
O fator decisivo não foi a substituição dos cânones cinema lhe haviam revelado, por omissão, a verdadeira
tradicionais - incluindo as variantes e desvios român- natureza dessa a1te: a justaposição e a simultaneidade. Ou

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seja: a ruptura da natureza linear do relato. Eisenstein Um som segue o outro, uma palavra vai depois ou antes
encontrou antecedentes da simultaneidade nas artes do de outra. O princípio orientador não é a contigüidade e
Oriente, especialmente no teatro japonês e na escrita sim a sucessão. Mas há uma diferença essencial entre mú-
chinesa. Anos mais tarde Jung, no .prefácio a uma edi- sica e poesia. Na primeira, a sincronicidade é constante:
ção do clássico chinês J Ching, afirmou que o ptincípio o contraponto, a fuga, a harmonia. A poesia está feita
que rege a combinação dos hexagramas não é senão o si- de palavras: sons que são sentidos. Cada som deve ser
nal de confluência. Confon11e a causalidade, uma coisa vai ouvido com clareza para que o ouvinte possa perceber
depois ela outra, um fato é a causa ele outro. No I Ching o sentido. A harmonia está na essência da música· na
funciona a presença simultânea de várias cadeias de cau- poesia, só produz confusão. A poesia não pode ser 'sin-
sas. Jung chama esta coincidência ele sincroniciclade, con- crónica sem desnaturalizar-se e sem renunciar aos po-
junção ele tempos. Também conjunção ele espaços. Em re- deres significantes da palavra. Ao mesmo tempo, a si-
sumo, na segunda década elo século XX surgiu na pintura, multaneidade não só é um recurso muito poderoso mas
na poesia e no romance uma a1te feita ele conjunções tem- também está presente nas formas básicas do poema. A
porais e espaciais que tende a dissolver e a justapor as di- comparação, a metáfora, o ritmo e a rima são conjun-
visões elo antes e elo depois, elo antedor e do posterior, do ções e repetições que obedecem à mesma lei de apre-
interno e elo externo. Esta a1te teve muitos nomes. O me- sentação simultânea. Este foi o desafio que enfren.r:1ram
lhor, o mais descritivo: simultaneísmo. os poetas até 1910: como adaptar a simultaneidade es-
Os pintores decidiram que o quadro seria a represen- pacial a uma a1te regida pela sucessão temporal?
tação simultânea das diferentes facetas ele um objeto. Um Em 1911 surgiu em Paris o dramatisnie, que depois
quadro cubista mostrava o interior e o exterior do objeto, se chamou simultanéisme. Tanto a palavra como o con-
a face anterior e posterior ela realicbcle; um quadro futuris- ceito tinham sido usados um pouco antes pelos futuris-
ta mostrava o antes e o depois: um cachorro correndo ou tas. O procedimento não podia ser mais simples: dizer
um bonde crnzando uma praça. A pintura é uma arte es- ao mesmo tempo as diferentes partes de um poema. A
pacial e o olho pode ver ao mesmo tempo sobre uma su- solução futurista foi mais brutal: deram 'concertos' nos
perfície diferentes representações e formas. A visão do quais a voz humana, reduzida a seus elementos sono-
olho é simultânea. A justaposição se resolvia em uma or- ros, da interjeição ao suspiro, se misturava a outros
dem plástica que era um sistema ele relações visuais. O ruídos urbanos, como o das teclas nas máquinas de es-
p1incípio que rege esse tipo de representação é a contigüi- crever. Mais tarde, durante a guerra, em Zurique, o da-
dade: as coisas estão umas ao lado das outras e são perce- daísta Hugo Ball redescobriu o 'falar em línguas' dos
bidas simultaneamente pelo espectador. Nas artes tempo- cristãos primitivos, dos agnósticos e de outras religiões;
rais, como a música e a poesia, as coisas estão umas atrás também em Moscou e Petrogrado, na mesma época, os
das outras. Na verdade, as coisas não estão: se sucedem. cubofuturistas exploraram as possibilidades da glosso-

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lália, que chamaram 'linguagem transracional'. Mas a de língua inglesa, com exceção de Roger Shattuck, nun-
tradução da linguagem em meros ritmos emissores de ca se referem às origens francesas do simultaneísmo e
sentido difuso, embora permita a justaposição e a si- se empenham em repetir a temerária afirmação de
multaneidade, reduz ao mínimo a. significação. É um Pound: o método ele apresentação - como ele chama
empobrecimento e, quase sempre, uma mutilação. a esta modalidade - nasceu da leitura de Fenollosa e
- O Cubismo e sobretudo o Orfismo de Delaunay inspi- suas traduções ele poesia chinesa. Embora mais de uma
raram as primeiras tentativas de Cendrars e Apollinaire. vez eu tenha tentado colocar as coisas em seu devido
Com estes dois poetas começa realmente o simultaneísmo. lugar, confesso que não só não consegui como hoje,
No caso do primeiro foi também decisiva a influência do devido à extraordinária irradiação da cultura anglo-
cinema: a montagem e o flash-back. O emprego destes re- americana, os críticos ele outras línguas repetem a ver-
cursos cinematográficos quebrou a sintaxe e a natureza li- são canônica. Entre eles, muitos da América Latina ... e
near e sucessiva do poema tradicional. Apollinaire foi ain- da França. Ninguém quer ver nos Cantos e The waste
da mais longe: suplimiu quase inteiramente os conectivos land uma conseqüência extrema do simultaneísmo ini-
e os nexos sintáticos - um ato de conseqüências seme- ciado dez anos antes por Apollinaire e Cendrars. Basta
lhantes à eliminação da perspectiva na pintura -, aplicou acrescentar que essa conseqüência extrema do simulta-
a técnica do collage pela inserção de frases colocadas no neísmo, além de ser feliz, foi uma criação. Não uma imi-
texto e, finalmente, se serviu da justaposição de diferentes tação, e sim um enxerto; o resultado foi uma planta
blocos verbais. Conseguiu assim a conjunção de espaços nova, mais vasta, complexa e poderosa que a original.
e tempos num texto. Ao contrá1io dos quadros cubistas, os O simultaneísmo - às vezes chamado cubismo poéti-
poemas de Apollinaire se movem, quero dizer, não só têm co - foi outra manifestação, às vezes bmtal e quase sem-
um começo e um fim como transcorrem. O Futulismo ten- pre eficaz, do princípio cardeal da poesia romântica e sim-
tara representar o movimento; a nova poesia foi movimen- bolista: a analogia. O poema é uma totalidade movida -
to. Outros poetas franceses seguiram Apollinaire nesse ca- comovida - pela ação complementar da afinidade e da
minho. Penso ptincipalmente em PielTe Reverdy. oposição entre as pa11es. Ttiunfo da contigüidade sobre a
Um pouco depois Ezra Pound e T.S. Eliot adotaram o sucessão. Ou melhor, já que o poema é linguagem em
simultaneísmo. Ao adotá-lo, transfon11aram-no e expandi- movimento: fusão da contigüidade e da sucessão elo espa-
ram-no. Assim criaram uma nova modalidade ele poema cial e do temporal. Um pouco depois, no outro extremo da
longo e exploraram um tenitótio não tocado pelos poetas poesia ele vanguarda - o SrnTealismo - reapareceram a
franceses: a história espiritual e social do Ocidente. Na lín- analogia e o humor ele maneira ainda mais direta, ostensi-
gua espanhola o simultaneísmo, salvo num breve e pe1fei- va e desnuda. Todos os grandes temas poéticos, eróticos e
to poema de José Juan Tablada, só foi cultivado na minha metafísicos do Romantismo foram recolhidos pelos surrea-
geração. Vale a pena reiterar aqui uma queixa: os ctiticos listas e levados aos seus últimos limites. O eixo dos gran-

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des movimentos poéticos da pdmeira metade do século outros ainda a petrificação histórica pela instauração
- o simultaneísmo e o Surrealismo - foi o mesmo do Universal de icleocracias totalitárias, outros finalmente
Romantismo: a visão ela corresponclêcia universal e a as chamas atômicas. De fato, o equilíbrio nuclear nos
consciência ela ruptura - a consci~ncia da morte. A re- salvou de uma terceira guerra mundial, mas por quanto
lação ambígua do Romantismo com a tradição religiosa tempo? Ainda assim, mesmo que consigamos evitar a
do Ocidente e com os movimentos revolucionários - catástrofe, a simples existência das armas atômicas vo-
afinidade e transgress:'lo - também reaparece em qua- latiliza literalmente nossa idéia de progresso, seja como
se todos os grandes poetas do nosso século. A poesia evolução gradual ou como salto revolucionário. Se a
moderna, desde seu nascimento, tem sido simultânea bomba não destruiu o mundo, destruiu nossa idéia de
afim1ação e negação ela modernidade. mundo. A modernidade está ferida de morte: o sol do
progresso desaparece no horizonte e ainda não vislum-
bramos a nova estrela intelectual que há de guiar os ho-
III. Poesia de convergência mens. Não sabemos sequer se vivemos um crepúsculo
Vozes que nos avisam sobre a proximidade do fim ou um despertar.
elas nossas sociedades surgem sempre. Parece que a A modernidade se identificou. com a mudança, conce-
modernidade se alimenta elas sucessivas negações que beu a crítica como o instrnmento desta mudança e identi-
gera, ele Chateaubriancl a Nietzsche e ele Nietzsche a Va- ficou ambas com o progresso. Para Marx a insurreição re-
lé1y. Nos últimos 25 anos as vozes que anunciam cala- volucionália era crítica em ação. No campo da literatura e
midades e catástrofes se multiplicaram. Não são mais a das a1tes a estética da modernidade, desde o Romantismo
expressão elo desespero de um solitário ou da angústia até nossos dias, tem sido a da mudança. A tradição moder-
de uma minoria de inconformados: são opiniões popu- na é a da rnptura, uma tradição que nega a si própria e as-
lares e revelam um estado ele espírito coletivo. O clima sim se perpetua. O descobrimento elas artes de outras civi-
deste século às vezes faz pensar nos terrores do ano lizações - Índia e Extremo Oriente, África e Oceania, a
1 000 ou na sombria visão dos astecas que conviviam América pré-colombiana - também foi considerado e vi-
com a ameaça do fim cíclico do universo. A modernida- vido como rnpturas da tradição central elo Ocidente. Hoje
de nasceu com a afirmação elo futuro como terra pro- assistimos ao crespúscülo da estética da mudança. A arte e
metida que nos espera e muitos se perguntam: sairá o a literatura deste fim de século perderam paulatinamente
sol amanhã para os homens? São tantas as formas em seus poderes de negação; há muito tempo suas negações
que se manifesta o descrédito elo futuro, que qualquer são repetições rituais, fónnulas suas rebeldias, cerimônias
enumeração acaba incompleta: uns prevêem o esgota- suas transgressões. Não é o fim da arte: é o fim da idéia da
mento dos recursos naturais, outros a contaminação do a1te moderna. Ou seja: o fim da estética fundada no culto
globo terrestre, alguns outros a multiplicação da fome, à mudança e à ruptura.

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A crítica, com certo atraso, vem advertindo que há obras e autores que os anglo-americanos englobam sob
mais de um quarto de século entramos em outro perío- o termo 'modernismo' foram sempre chamadas, na
do histórico e em outra arte. Muito se fala da crise da França e no resto da Europa assim como na América
vanguarda e por isso se popularizou, para designar nos- hispânica, com um nome não menos genérico: van-
sa época, a expressão 'a era pós-moderna'. Denomina- guarda.11 Desconhecer tudo isso e chamar de modernís-
ção equivocada e contraditória, como a própria idéia de 1no um movimento de língua inglesa posterior 30 anos
modernidade. Aquilo que está depois do moderno não ao nosso, revela arrogância cultural, etnocentrismo e in-
pode ser senão o ultramoderno: uma modernidade ain- sensibilidade histórica. A mesma coisa acontece com o
da mais moderna que a de ontem. Os homens nunca vocábulo pós-modernisnw para designar a arte e a lite-
souberam o nome do tempo em que vivem e nós não ratura contemporâneas dos Estados Unidos e ele outras
somos uma exceção a essa regra universal. Dizer pós- partes. O mais triste - o mais cômico - é que estes ter-
moderno é uma maneira na verdade ingênua de afirmar mos, com a significação particular que lhes é dada pe-
que somos muito modernos. Muito bem, o que está em los anglo-americanos, não só começam a ser usados em
jogo é a concepção linear do tempo e sua identificação vários países europeus como na América hispânica e na
com a crítica, a mudança e o progresso - o tempo Espanha. Este esclarecimento não é ocioso nem reflete
aberto em direção ao futuro como terra prometida. In- qualquer resquício nacionalista: a polêmica do moder-
sistir no pós-moderno é continuar sendo prisioneiro do nismo não é de palavras e sim ele significados, concei-
tempo sucessivo, linear e progressivo. tos e história. O mundo começa por ser um conjunto
Se o termo pós-moderno é, mais do que um nome, ele homens. Mais exatamente: o mundo é um mundo
uma máscara, que dizer da expressão que usam os crí- de homens. Se nos tiram os homens, nos tiram nosso
ticos anglo-americanos para chamar a arte atual: pós- mundo.
nwdernisnw? Para eles a palavra modernismo designa Para os antigos o prestígio do passado era o da Ida-
o conjunto de obras, autores e tendências que evocam de de Ouro, paraíso natal que um dia abandonamos;
os nomes de Joyce, Pouncl, Eliot, William Carlos Wil- para os modernos, o futuro foi o lugar de escolha, a ter-
liams, Hemingway e outros. Apesar disso, ninguém ig- ra prometida. Mas o agora sempre foi o tempo dos poe-
nora que na língua espanhola chamamos nwdernisnw tas e dos apaixonados, dos epicuristas e de alguns mís-
ao primeiro movimento literário ela América espanhola ticos. O instante é o tempo do prazer mas também o da
e ela Espanha. Foram modernistas Rubén Dario e Valle morte, o dos sentidos e o da revelação cio mais além.
Inclán, Juan Ramón Jiménez e Leopoldo Lugones, José Acredito que a nova estrela - essa que ainda não des-
Martí e Antonio Machado: com eles começa nossa tradi- ponta no horizonte histórico mas 'que já se anuncia de
ção moderna e sem eles não existiria nossa literatura 11. Um exemplo entre mil: o livro de Guillermo de la Torre, Literaturas eu-
ropeas de vanguardía, publicado em 1925.
contemporânea. Na verdade, as diferentes tendências,

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muitas maneiras indiretas - será a do agora. Os ho- tampouco volta ao ponto de partida: é um perpétuo re-
mens terão logo que edificar uma Moral, uma Política, começo e um contínuo regresso. A poesia que começa
uma Erótica e uma Poética do tempo presente. O cami- agora, sem começar, busca a interseção dos tempos, o
nho rumo ao presente passa pelo .corpo mas não deve ponto de convergência. Diz que entre o passado es-
nem pode ser confundido com o hedonismo mecânico maecido e o futuro desabitado, a poesia é o presente."
e promíscuo das sociedades modernas do Ocidente. O Escrevi estas frases faz 15 anos. Hoje acrescentaria: o
presente é o fruto no qual a vida e a morte se fundem. presente se manifesta na presença e esta é a reconcilia-
A poesia sempre foi a visão de uma presença na ção dos três tempos. Poesia da reconciliação: a imagina-
qual se reconciliam as duas metades da esfera. Pre- ção encarnada num agora sem datas.
sença plural: muitas vezes, no curso da história, mu-
dou de rosto e de nome; contudo, através de todas México, 12 de agosto de 1986
essas mudanças, é uma. Não se anula na diversidade
de suas aparições; e quando se identifica com a va-
cuidade, como ocorre na tradição budista e em al-
guns poetas modernos do Ocidente, se manifesta -
insigne paradoxo - como presença. Não é uma
idéia: é puro tempo. Tempo e não medida: este tem-
po singular, único e particular que agora mesmo está
passando e que passa sem cessar desde o princípio.
A presença é o agora encarnado.
Uma vez chamei a poesia deste tempo que começa
de arte da convergência. Assim a coloquei do lado
oposto à tradição da ruptura. "Os poetas da Idade Mo-
derna buscaram o princípio da mudança; os poetas da
idade que começa buscamos esse princípio invariável
que é o fundamento das mudanças. Nos perguntamos
se existe algo em comum entre a Odisséia e Em busca
do tempo perdido. A estética da mudança acentuou a
natureza histórica do poema; agora nos perguntamos:
não há um ponto em que o princípio da mudança se
confunde com o da permanência? ... A poesia que come-
ça neste fim de século - não começa realmente nem

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3

12
Poesia, nlito, revolução
La Révolution confirme, par
le sacrifice, la superstition.
CHARLES BAUDELAIRE

É muito difícil dizer em poucas e claras palavras o


que eu sinto: emoção, gratidão, surpresa. Mais que tudo
me comoveu, senhor presidente, que o senhor tenha
tido a bondade de me entregar pessoalmente o Prêmio
Alexis de Tocqueville. Nunca esquecerei seu gesto.
Suas palavras generosas aumentam minha emoção:
vejo nelas esse sinal de amizade, precioso, que às vezes
um escritor dirige a outro de língua distinta, embora es-
sas línguas sejam tão próximas como o espanhol e o
francês. Minha gratidão, por isso, é dupla: ao homem
de Estado e ao escritor francês, um idioma cuja literatu-
ra sempre foi minha segunda pátria espiritual.
Meu agradecimento ao júri da Fundação Alexis de
Tocqueville se mistura a uma leve e muito agradável
sensação ele irrealidade. Quando o senhor Alain Peyre-
fitte fez a gentileza ele me comunicar a decisão do júri,
12. Palavras proferidas ao receber o Prêmio Alexis de Tocqueville das
mãos do presidente François Mitterrand.

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minha primeira reação, confesso, foi de espanto e tam- contrei depois toda essa de Brutus a serviço
bém de incredulidade: por que a mim, um poeta? Logo de César e de sua polícia?]
vislumbrei a razão: uma e outra vez, movido tanto pelos
Desde minha adolescência escrevo poemas e não
acidentes da minha vida como pelqs mudanças e trans-
parei de escrevê-los. Quis ser poeta e nada mais. Nos
tornos do mundo e do meu país, participei da vida pú-
meus livros de prosa me propus servir a poesia, justifi-
blica e escrevi alguns livros sobre a história e a política
do nosso tempo. Mais além dos duvidosos méritos dos cá-la e defendê-la diante elos outros e ele mim mesmo.
meus textos, imagino que se quis premiar em mim, es- Logo descobri que a defesa ela poesia, menosprezada
critor de um continente com freqüência perdido entre a em nosso século, era inseparável da defesa da liberda-
força da imobilidade dos despotismos e as convulsões de. Daí meu interesse apaixonado pelos temas políticos
elos sectários, uma fidelidade. Com efeito, sempre pro- e sociais que têm agitado nosso tempo. Depois da Se-
curei ser fiel a essa atitude que exemplificam a obra e a gunda Guerra Mundial conheci André Breton e seus
pessoa ele Alexis ele Tocqueville e que pode se resumir amigos. Não comparto hoje de muitas de suas idéias fi-
assim: minha liberdade começa com o reconhecimento losóficas e estéticas mas conservo intacta e viva minha
ela liberdade elos outros. No despertar da Idade Moder- admiração. Em seus escritos tanto quanto em sua vida,
na, diante de um espetáculo que depois se repetiu mui- a liberdade e a poesia aparecem com o mesmo rosto
tas vezes - o tirano disfarçado de libertador - Cha- iluminado, simultaneamente sedutor e tempestuoso.
teaubriand escreveu estas palavras proféticas: Tampouco ele, como Chateubriand no outro extremo,
nunca confundiu o tirano com o libertador. A liberdade
La Révolution m 'aurait entraíné ... mais je vis la não é uma filosofia e nem sequer uma idéia: é um movi-
premiere tête portée au bout d'une pique et je recu- mento da consciência que nos leva, em cenos momentos,
lai.jam~ais le meu11re ne sera à mes yeux un argu- a pronunciar os monossílabos: sim ou não. Em sua brevi-
ment de libe11é; je ne connais rien de plus servi/e, dade instantânea, como a luz do relâmpago, se desenha o
de plus lâche, de plus banzé qu 'un ten'oriste. N'ai sinal contraditório ela natureza humana.
je pas rencontré toute cette race de Brutus au servi- Ao longo ela história e nas mais diversas circunstân-
ce de César et desa police? cias, os poetas têm participado da vida política. Não me
refiro à concepção ela poesia como uma arte a serviço
[A revolução me teria arrastado ... mas vi a primei- ele um Estado, ele uma Igreja, ou ele uma ideologia. Já
ra cabeça sobre a ponta de uma baioneta, e re- sabemos que essa concepção, tão antiga quanto os po-
cuei. Jamais verei no assassinato um argumento deres políticos e ideológicos, invariavelmente tem dado
de liberdade; não conheço nada mais servil, mais os mesmos resultados: os Estados se derrubam, as Igre-
covarde, mais obtuso que um terrorista. Não en- jas se desagregam ou se petrificam, as ideologias se dis-

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sipam - mas a poesia permanece. Não: aludo à livre isso, os delitos políticos eram julgados no tribunal divi-
participação do poeta nos assuntos da cidade. Até em no. Nas cidades gregas e na República romana foi me-
sociedades que não conheceram a liberdade política, nor a influência da religião, as questões que dividiam os
como a antiga China, não foram raros os poetas que cidadãos eram claramente políticas e não estavam im-
contribuíram para o andamento dos assuntos públicos. pregnadas de teologia. Contudo, a semelhança com a
Muitos entre eles não vacilaram em censurar os abusos Antiguidade greco-romana é enganosa; falta nela um
do Filho do Céu e não poucos sofreram prisão, desterro elemento central e que é o signo distintivo, o sinal do
e outras penas por suas opiniões. No Ocidente esta tra- nascimento ela Idade Moderna: a idéia de revolução. É
dição tem sido muito viva e basta lembrar os poetas gre- uma idéia que não podia surgir senão em nossa época
gos e os romanos. Dois dos poetas maiores de nossa pois é a herdeira da Grécia e do cristianismo, quer di-
tradição, o florentino Dante e o inglês Milton, foram zer, da filosofia e do desejo de redenção. Em nenhum
também notáveis pensadores políticos. Devemos ao outro período a idéia ele revolução teve esse poder de
primeiro o tratado De monarcbia e ao segundo ousadas atração magnética. As outras civilizações e sociedades
alegações em favor da emancipação da consciência, experimentaram mudanças imensas - tumultos, que-
como sua famosa defesa elo direito ao divórcio ou sua das de dinastias, guerras fratricidas - mas só suas gran-
crítica à censura decretada pelo Parlamento e que ele des mutações religiosas podem se comparar à nossa
teve a coragem de fazer diante do próprio Parlamento. fascinação diante da revolução. É uma idéia que, duran-
Estes precedentes históricos não devem nos ocultar te mais de dois séculos, hipnotiza muitas consciências e
uma diferença capital que existe entre estas atitudes e a várias gerações. Essa ideia tem sido a estrela polar que
situação dos poetas modernos. Os poetas chineses cen- guia nossas peregrinações e o sol secreto que ilumina e
suravam o trono mas pertenciam a unia burocracia im- aquece as vigílias de muitos solitários. Nela se conju-
perial; quase todos foram altos funcionários e a censura gam as certezas da razão e as esperanças dos movimen-
era parte da tradição moral e intelectual confuciana. tos religiosos.
Dante e Milton se viram envolvidos em controvérsias Desde o momento em que apareceu no horizonte
nas quais a política era indistinguível da religião. Para histórico, a revolução foi dupla: razão convertida em
os dois o fundamento de suas opiniões estava na teolo- ato e ato providencial, determinação racional e ação mi-
gia. Combateram neste mundo com os olhos postos no lagrosa, história e mito. Filha ela razão na sua forma
outro e com razões que vinham do mais além. Dante mais rigorosa e lúcida: a crítica, à imagem dela, revolu-
coloca no último círculo do Inferno ao lado de Judas Is- ção, é ao mesmo tempo criadora e destruidora; melhor
cariotes, o arquitraidor, dois inimigos do Império: Bru- dizendo, ao destruir, cria. A revolução é esse momento
tus e Cássio. Para Dante a realidade deste mundo era em que a crítica se transforma em utopia e esta encar-
uma cópia da realidade mais real do transmundo; por na em homens e em uma ação. A descida ela razão à

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terra foi uma verdadeira epifania e como tal foi vivida dos mitos - e assim se converteu no mito central da
por seus protagonistas e, depois, por seus intérpretes. modernidade. A história da poesia moderna, desde o
Vivida e não pensada. Para quase todos, a revolução foi Romantismo até os nossos dias, não tem sido outra coi-
uma conseqüência de certos postulados racionais e da sa senão a história de suas relações com esse mito, claro
evolução geral da sociedade; quas~ ninguém percebeu e coerente como uma demonstração de geometria, tur-
que assistiam a uma ressurreição. Certo, a novidade da bulento como as revelações do antigo caos. Relações
revolução parece absoluta: rompe com o passado e ins- inflamadas e extremas, da sedução ao horror, da devo-
taura um regime racional, justo e radicalmente diferente ção ao anátema, da idolatria à abjuração - toda a gama
do antigo. Contudo, essa novidade absoluta foi vista e das duas grandes paixões: o amor e a religião. O entu-
vivida como uma volta ao princípio do princípio. Are- siasmo de Hõlderlin diante do jovem Bonaparte e a de-
volução é a volta ao tempo da origem, antes da injusti- cepção que sente ao vê-lo convertido no imperador Na-
ça, antes desse momento em que, diz Rousseau, ao poleão, as simpatias girondinas de Wordsworth e o
marcar os limites de um pedaço de terra, um homem aborrecimento que lhe inspira Robespierre são apenas
disse: ''Isto é meu". Nesse dia começou a desigualdade dois exemplos dos vaivéns dos românticos alemães e
e, com ela, a discórdia e a opressão: a história. Em resu- ingleses ante a Revolução Francesa. Essas violentas os-
mo, a revolução é um ato eminentemente histórico e, cilações se repetem ao longo do século XIX diante de
apesar disso, é um ato negador ela história: o tempo cada movimento revolucionário e culminam no século
novo que ela instaura é uma restauração do tempo ori- XX com as imensas e sucessivas ondas de sentimentos
ginal. Filha da história e da razão, a revolução é filha do contraditórios - outra vez do fanatismo à repulsão -
tempo linear, sucessivo e irrepetível; filha do mito, are- que provocou no mundo inteiro a prolongada influên-
volução é um momento do tempo cíclico, como o mo- cia da revolução bolchevique.
vimento dos astros e o rodízio das estações. A natureza Os movimentos de adesão que suscitam todas as re-
da revolução é dupla mas nós não podemos pensar voluções podem ser explicados, em primeiro lugar,
nela senão separando seus dois elementos e descartan- pela necessidade que sentimos, nós homens, de reme-
do o mítico como um corpo estranho ... e não podemos diar e pôr fim à nossa infeliz condição. Há épocas em
vivê-la sem enlaçar seus dois elementos. Pensamos so- que essa necessidade de redenção se faz mais viva e ur-
bre a revolução como um fenômeno que responde às gente pelo desvanecimento das crenças tradicionais. As
previsões da razão; vivemos a revolução como um mis- antigas divindades, carcomidas pela superstição, avilta-
tério. Neste enigma reside o segredo de sua fascinação. das pelo fanatismo e roídas pela crítica, se desmoro-
A Idade Moderna rompeu o antigo vínculo que nam; entre os escombros brota a tribo dos fantasmas:
unia a poesia ao mito mas só para, logo em seguida, aparecem primeiro como idéias radiantes mas logo são
uni-la à idéia de revolução. Esta idéia proclamou o fim endeusadas e convertidas em ídolos espantáveis. Em-

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revolucioná- repete durante mais de dois primeiro na Euro-
políticas - todas elas, pa e depois no mundo inteiro. A palavra poética tem
essencialmente deste fato sido simultaneamente profecia, anátema e elegia das re-
voluções modernas. Embora as diferenças e oposições
entre os dois grandes protótipos revolucionários (a Re-
volução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917)
sejam maiores e mais profundas que as semelhanças, os
sentimentos que provocaram obedeciam ao mesmo rit-
mo afetivo ela atração e da repulsa. Apesar de a função
religiosa das revoluções modernas ter sido invariavel-
mente quebrada pela natureza eminentemente histórica
desses movimentos, o resultado tem sido o renascimen-
to, na geração seguinte, de aspirações e quimeras seme-
lhantes. Ou a adoção de mitologias pessoais. Aqui apa-
rece outra elas diferenças entre a poesia moderna e a de
ontem: para Dante a chave de seu poema eram as Sa-
gradas Escrituras, eixo da analogia universal; Blake, por
sua vez, inventa uma mitologia com fragmentos do ag-
mostra é que a revolução começa nosticismo e da tradição hermética. Muitos poetas re-
como promessa, se dissipa em agitações frenéticas e se correram ao mesmo remédio e basta lembrar as crenças
congela em ditaduras sangrentas que são a negação do de Nerval ou de Hugo e, já no século XX, a teosofia de
que a acendeu ao nascer. Em todos os movi- Yeats ou o ocultismo de Breton. A razão deste aparente
mentos revolucionários o tempo sagrado do mito se paradoxo reside no seguinte: a religião pública da mo-
inexoravelmente no tempo profano da his- dernidade tem sido a revolução, e a poesia, sua religião
tória. privada.
A esperança renasce depois de cada fracasso. O en- A crítica das revoluções tem sido feita pelos nostál-
tusiasmo de Shelley refuta a decepção de Coleridge e gicos da antiga ordem e pelos liberais (no sentido mais
Heine escreve Sobre a Alemanha para responder a Ma- amplo elo termo: mais que uma doutrina, um templo fi-
dame de Stael e cobrir de ridículo aos poetas da geração losófico e político). Ao contrário ela crítica reacionária,
anterior, que tinham mostrado inicialmente simpatias a liberal tem sido eficaz: desmontou as construções
pela Revolução Francesa mas que terminaram como ideológicas elas revoluções, lhes arrancou a máscara re-
seus inimigos. O ciclo de adesão-negação-adesão se ligiosa e as mostrou na sua desnudez histórica, profana.

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O liberalismo não se propôs a substituir essas constru- pre foram particularmente sensíveis a este vazio. Por
ções por outras; a própria índole desta tradição intelec- volta ele 1851, Baudelaire escrevia num caderno:
tual, essencialmente crítica, lhe proibiu propor, como as
outras grandes filosofias políticas, uma meta-história.
Este domínio fora antes das religiões; o liberalismo não Le monde va finir ... ]e ne dispas que le monde sera
ofereceu nada em troca e circunscreveu a religião à es- réduit au desordre boiiffon des républiques du Sud
Amérique ou que peut-étre naus retoumerons à l'ét
fera privada. Fundou a liberdade sobre a única base
sauvage .. Non, la mécanique naus aura tellement
que pode constituí-la: a autonomia ela consciência e o
américanisés, !e progres aura si bien atrophié en
reconhecimento ela autonomia das consciências
naus toute la partie spirituelle, que rien parmi les rê-
alheias. Foi admirável e também terrível: nos fechou veries sanguinaires des utopistes ne pourra être coni-
num solipsismo, rompeu a ponte que unia o eu ao tu e paré à ses resultats positifs ... mais ce n 'est pas par des
ambos à terceira pessoa: o outro, os outros. Entre liber- institutíons politiques que se manifestera la ruine
dade e fraternidade não há contradição e sim distância universelle (ou le progres universel, carpeu m 'impor-
- uma distância que o liberalismo não conseguiu anu- te le nomJ Ce sera par l'avilissenient des coeurs ...
lar. Qual poderia ser o fundamento ela fraternidade? Ins-
pirados nos antigos, Robespierre e Saint-Just quiseram
fundar a solidariedade elos cidadãos na virtude. Mas [O mundo vai acabar ... Não digo que será reduzido
qual pode ser o fundamento ela vittucle? Os jacobinos, à desordem bufonesca elas repúblicas da América elo
como depois seus descendentes, os bolcheviques, não Sul ou que talvez volte à selvageria ... Não: a mecâni-
se fizeram essa pergunta. Melhor dizendo, sua resposta ca nos terá americanizado tanto e o progresso terá
foi a virtude por decreto, o terror. Mas este não pode atrofiado tão completamente nossas faculdades es-
engendrar senão duas fraternidades inconciliáveis: a pirituais que nada, nem sequer as quimeras sangüi-
nárias dos utopistas, poderá se comparar com esses
elos carrascos e a elas vítimas.
O liberalismo democrático é um modo civilizado ele excelentes resultados ... A ruína universal contudo
'
(ou o progresso universal: pouco me importa o
convivência. Para mim é o melhor entre os que foram
nome), não se manifestará nas instituições políticas
concebidos pela filosofia política. Apesar disso, deixa
e sim no aviltamento das almas .. .]
sem resposta metade elas perguntas que nós, homens,
nos fazemos: a fraternidade, a questão ela origem e elo Noventa anos depois, como se continuasse as refle-
fim, a elo sentimento e o valor ela existência. A Idade xões de Baudelaire, em um de seus Quatro quartetos, Eliot
Moderna exaltou o individualismo e tem sido, assim, o vê o nosso mundo, que nós acreditamos ser movido pelo
período ela dispersão das consciências. Os poetas sem- progresso, como a interminável queda elo vazio no vazio:

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tado de espírito dos poetas mo-
O dark dark dark. They all go into the dark,
The vacant interstellar spaces, the vacant into the dernidade. As reflexões de
[uacant, Eliot são um fúnebre contraponto aos
17Je captains, merchants, bankers, e1ninent men oj macios de Whitman e
[letters, exemplos da cisão, melhor
17Je generous patrons of art, the statesmen and the poesia moderna. Essa
[rulers, renda ela poesia de outras e
Distinguisbed civil seruants, chairmen of many pensa entre as mãos do tempo, entre
[committees,
Industrial lords and petty coiztractors, all go into a poesia moderna consagra uma
[tbe dark, mais antiga que a das religiões e filosofias, uma
And dark tbe Sun and Moon, andtbe Allinanach nidacle nascida elo mesmo sentimento
[de Gotha mitivo em meio à natureza estranha e hostil. A
And tbe Stod! Ercbange Gazette, tbe Directo1y of é que agora vivemos essa solidão não
[Directors, mo como diante elos nossos vizinhos.
And cold tbe sense and lost tbe motive of action. mos, cada um em seu quarto, que não estamos
And we a!! go witb tbem, into tbe silentfuneral, mente sozinhos: fraternidade sobre o
Nobody 's funeral, for there is no one to bwy.
Depois de um longo período
[Escuro escuro escuro. Todos vão para o escuro. tico sempre à beira elo precipício,
O vazio espaço interestelar, o vazio no vazio, pectro ele uma nova guerra total e da ameaça
Capitães, comerciantes, banqueiros, eminentes mínio ela espécie humana, temos sido
[literatos. últimos 20 anos, ele uma série de
Mecenas generosos, estadistas e governantes, de uma nova era que, talvez, amanheça.
Funcionários importantes, presidentes ele tantos o ocaso do mito revolucionário no ~·-.~~-·
[comitês, nascimento, a Europa ocidental,
Barões ela indústria, empreiteiros, todos ao escuro
guerra, próspera, e com o regime liberal
E escuros o Sol e a Lua e o Almanaque ele Gotha
afiançado em cada um dos
E o Boletim da Bolsa e a Lista elos Diretores
E gelado o sentido e esquecida a razão elo ato. Logo depois, a volta à
E todos vamos com eles ao silencioso funeral, embora ainda titubeante entre os
Funeral de ninguém, porque não há a quem gia populista e o militarismo - suas
[enterrar.] des endêmicas -, trazendo ao pescoço a
Poderia acrescentar outros testemunhos mas me pa- ro da dívida. Enfim, as
rece que os dois aqui citados bastam para ilustrar o es- em outros regimes totalitários europeus.

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seja o alcance dessas reformas, é claro que significam o ética puritana. Kant nos ensinou que não se pode fun-
fim do mito do socialismo autoritário. Essas mudanças dar uma moral sobre a história: esta flui sem cessar e
são uma autocrítica e equivalem a uma confissão. Por não sabemos sequer se alguma lei ou desígnio rege seu
isso falei do fim de uma era: presenci~mos o crepúsculo caprichoso transcorrer. Sabemos também que as cons-
da idéia de revolução em sua última e desventurada en- truções meta-históricas - sejam religiosas ou metafísi-
carnação, a versão bolchevique. É uma idéia que unica- cas, conservadoras ou revolucionárias - estrangulam a
mente sobrevive em algumas regiões da periferia e en- liberdade e acabam por corromper a fraternidade. O
tre seitas enlouquecidas como a dos terroristas pensamento da era que começa - se é que realmente
peruanos. Ignoramos o que nos reserva o futuro: nado- começa uma era - terá que encontrar o ponto de con-
- nalismos vüulentos, catástrofes ecológicas, renascimen- vergência entre liberdade e fraternidade. Devemos re-
to de mitologias enterradas, novos fanatismos mas tam- pensar nossas tradições, renová-las e buscar a concilia-
bém descobertas e crenças: a história e seu cortejo de ção das duas grandes tradições políticas da
horrores e maravilhas. Tampouco sabemos se os povos modernidade - o liberalismo e o socialismo. Atrevo-
da União Soviética conhecerão novas formas de opres- me a dizer, parafraseando Ortega y Gasset, que este é
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são ou uma versão original e eslava da democracia. Seja 0 tema do nosso tempo". Parece-me que nossos dias
como for, o mito revolucionário morre. Ressuscitará? são propícios a uma iniciativa dessa envergadura: em
Não acredito. Não vai matá-lo uma Santa Aliança: morre algumas obras contemporâneas - por exemplo, na de
de morte natural. Cornelio Castoriadis - percebo já o começo de uma
Joyce disse que a história é um pesadelo. Errou: os resposta.
pesadelos se dissipam com a luz do dia enquanto a his- Qual pode ser a contribuição da poesia na reconsti-
tória só terminará com o fim de nossa espécie. Somos tuição de um novo pensamento político? Não idéias e
homens por causa dela e por ela; se deixasse de existir, sim alguma coisa mais preciosa e frágil: a memória. A
deixaríamos de ser homens. Mas o fim do mito revolu- cada geração os poetas redescobrem a terrível antigui-
cionário talvez nos permita pensar novamente nos prin- dade e a não menos terrível juventude das paixões. Nas
cípios que fundaram a nossa sociedade e suas carências escolas e faculdades onde se ensinam as chamadas
e lacunas. Aliviados ao fim da luta contra a superstição ciências políticas deveria ser obrigatória a leitura de És-
totalitária, podemos agora refletir mais livremente sobre quilo e Shakespeare. Os poetas nutriram o pensamento
nossa tradição. Assim reaparece o tema da virtude dos de Hobbes e Locke, de Marx e Tocqueville. Pela boca
cidadãos. É um tema que vem da Antiguidade clássica; do poeta fala - advirto: fala, não escreve - a outra
preocupou tanto a Maquiavel como a Montesquieu e voz. É a voz do poeta trágico e a do bufão, da solitária
hoje tem uma penosa atualidade em muitos países in- melancolia e da festa, é a risada e o suspiro, a voz do
clusive na democracia anglo-americana fundada pela abraço dos amantes e a de Hamlet diante do crânio, a

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voz do silêncio e a do tumulto, louca sabedoria e sen-
sata loucura, sussurro de confidência na alcova e cheiro
de multidão na praça. Ouvir essa voz é ouvir o próprio
tempo, o tempo que passa e que, apesar disso, volta
transformado em umas quantas sílabas cristalinas.

México, junho 1989

POESIA
e
FIM DE

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