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SIMONE ROSSINETII RUFINONI

TERClO REDONDO
(ORGANIZADORES)

AMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

li
UNtcAMP ,
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
Bt8L10TECA
Copyright © 2013 dos áutores

Coordenação editorial: Valentim Facioli


Projeto gráfico do miolo: Antônio do Amaral Rocha
Lay-out da capa: Antônio do Amaral Rocha e Simone Rossinetti Rufinoni
Capa: foto de Cristiano Mascaro
Revisão: Thiago Valentim Janeiro, Simone Rossinetti Rufinoni e Tercio Redondo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C191
Caminhos da lírica brasileira contemporânea: ensaios 1 organização Simone Rossinetti
Rufinoni, Tercio Reqondo. - 1. ed. - São Paulo: Nankin, 2013.
200 p.; 23 cIf
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7751-084-9

1. Poesia brasileira. I. Rufinoni, Simone Rossinetti. lI. Redondo, Tercio.

13-06642 CDD: 869.91


CDU: 821.134.3(81)-1

29/1012013 3 li 10/20 13

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2013
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

,:

. • '. \ .; ."'1 ~.
UMÁRIO

Apresentação 7

Brasil, urubus e o trabalho do informe: Ó e O mau vidraceiro


de Nuno Ramos...................................................... 17
PÁDUA FERNANDES

. ,

Cadáveres, vagalumes, fogos-fátuos :: 37


EDUARDO STERZI

Desvalimento e suicídio: aspectos da lírica de


Fabio Weintraub 51
SIMONE ROSSlNElTI RUFINONI

Mateus, de Priscila Figueiredo 67


VILMA~AS

o pião e o ponto final 77


PRlSCILA FIGUEIREDO

o sujeito-pedra: tornar-se coisa 89


VIVIANA BOSI
Poesia em desenvolvimento 109
RENAN NUERNBERGER

Poética do desabrigo: imagens do habitar em crise na poesia


brasileira contemporânea : 135
FABIO WEINTRAUB

Situação de Sitio 177


IUMNA MARIA SIMON

Nota biográfica 195

"
PRESENTAÇÃO

D iante da produção poética contemporânea e da sua crítica especializa-


da, a organização da presente antologia de ensaios oferece, em vez da
escolha pelo panorama extensivo, uma amostragem da crítica da lírica
atual pautada pela óptica da aproximação entre literatura e sociedade.
Desse modo, as abordagens aqui reunidas inclinam-se ao olhar atento às
formulações poéticas aptas a apreender a especificidade da crise social e
do sujeito histórico contemporâneo. O intento foi ~de reunir poetas cuja
produção comportasse uma discussão consequentelobre o legado da tra-
dição, moldado pelas inflexões formais do momento, em constante diálogo
com os imperativos sociais. A fim de atingir tal objetivo, os ensaístas elen-
cados se propuseram, a partir de escolhas pessoais e operadores de leitura
diversos, aproximar questão estética e questão social, discutindo a comple-
xidade do papel da arte e do artista em face da dinâmica do mercado, da
sociedade de massas e do contexto sociopolítico local.
A crise social brasileira, elemento cada vez mais complexo da crise
global do capitalismo, apresenta no plano da literatura dois aspectos cen-
trais e complementares: de um lado, observam-se as dificuldades imensas,
por vezes semelhando uma impossibilidade, de se configurar artisticamen-
te seu processo geral; de outro, despontam os obstáculos não menos inti-
midadores que a crítica literária defronta quando procura se furtar ao tra-
balho meramente culinário de conferir o ajuste formal das obras à luz de
determinados padrões de estilo.
8 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

A especialização do trabalho atingiu um ponto de máxima atomização


na elaboração artística e, de modo correspondente, ela esgarça de maneira
quase irremediável os fios que até há pouco ainda sustentavam os esforços
da crítica. Uma espécie de salvo-conduto propiciado pela anulação de
qualquer compromisso estético-político teria tomado a obra de arte, no
limite, infensa ao juízo. Configurando para muitos uma espécie de emana-
ção do desejo individual do escritor, apto a selecionar de modo aleatório o
material a ser trabalhado, nada restaria para a análise senão a constatação
de que a elaboração do te~a foi, eventualmente, executada com talento e
imaginação. A própria ideia de comparação entre as obras teria perdido
seu fundo de validade, tal o grau de autonomia logrado por essa subjetiva-
ção, que impede qualquer tipo de aproximação ou contraste objetivos.
Isso implica evidentemente a ideia de que não (mais) existe lastro social
para a experiência artística. Essa constatação, porém, não se baseia no prin-
cípio da arte pela arte, pois não constitui propriamente um campo de progra-
mático afastamento., da Ifalidade social; trata-se antes, da impossibilidade
ideologicamente orquestrada de se indagar pela totalidade do processo. A
reversão desse processo só pode ser alcançada à custa de um procedimento
investigativo que exige do escritor (e do crítico) formação estética sólida,
percepção histórica e alguma forma de engajamento político.
A presente coletânea de ensaios sobre poesia brasileira contemporânea
não poderia identificar tout court a superação desses entraves, até porque
seu correto diagnóstico se encontra, por assim dizer, em estágio de anam-
nese, num momento em que os sinais e sintomas da crise não manifesta-
ram ainda seus contornos definitivos. Mas a consciência da precariedade
dos dados que se pode coletar não impede que se arrisquem hipóteses,
baseadas naquilo que a observação a olho nu é capaz de captar. Trata-se
de um olhar em princípio desarmado, mas engajado em registrar detalhes
que eventualmente podem remeter à configuração de uma estrutura maior,
que é sistematicamente escamoteada pela linguagem comunicativa. Nesse
caso - parafraseando Hans Mayer ao comentar a lírica de Brecht - a poe-
sia se apresenta como "relato", como fruto, amadurecido ou não, de uma
observação atenta e interessada do cotidiano.
A antologia reúne o trabalho de nove críticos - Eduardo Sterzi, Fabio
Weintraub, Iumna Maria Simon, Pádua Fernandes, Priscila Figueiredo,
Renan Nuernberger, Simone Rossinetti Rufinoni, Viviana Bosi e Vilma
Arêas - cujos estudos abordam 15 poetas, quais sejam: Airton Paschoa,
Angélica Freitas, Carlito Azevedo, Chico Alvim, Claudia Roquette-Pinto,
Fabio Weintraub, Man1ia Garcia, Nuno Ramos, Pádua Fernandes, Priscila
Figueiredo, Régis Bonvicino, Ricardo Domeneck, Rubens Rodrigues Tor-
res Filho, Sebastião Uchoa Leite e Tarso de Melo.
APRESENTAÇÃO 9

A variedade dos escritos e dos poetas abordados expressa a complexi-


dade e diferenciação da poesia contemporânea. No entanto, apesar dessa
diversidade de escolhas estéticas e temáticas, a antologia de textos críticos
permite identificar uma série de confluências que dão a ver a presença de
uma verdade social por trás dos caminhos trilhados. O confronto entre as
leituras e seus objetos proporciona a entrevisão de certo traçado da histó-
ria brasileira contemporânea delineado pelos vários modos de formaliza-
ção do complexo conteúdo da vida social,
No que respeita às tendências formais na contemporaneidade, o legado
modernista do "direito permanente à pesquisa estétical" pressupõe a tradi-
ção - cuja influência assume matizes que vão do diálogo crítico à adesão
irrefletida - além da presença das diversas manifestações da cultura de
massa. Entre ambos, a presença do eu na lírica encampa a crise do sujeito
contemporâneo sob a forma do sujeito poético que tende a comparecer ora
atrofiado, ora desconfortável, o que não impedirá a emergência, conforme
formulação de Viviana Bosi, de uma "nova subjetividade lírica" que, mes-
mo suspicaz, comparece revestida de autocrítica: seus modos de figuração
irão do esfacelamento (presente, por exemplo, na análise de Pádua Fer-
nandes sobre Nuno Ramos) ao aniquilamento (figurado pela tendência ao
suicídio apontada por Simone Rossinetti Rufinoni na poesia de Fabio Wein-
traub) ou à petrificação (de acordo com o argumento de Viviana Bosi). A
dialética entre sujeito e objeto incide sobre o eu da poesia reverberando o
conflito do público e do privado em tempos de hostilidade à introspecção
e de cerceamento do espaço público.
A fragilidade da potência poética diante da luVt c~tidiana encontra
imagem gritante nas diversas figurações do espaç~público. O_topos da
cidade hostil, cuja recorrência comparece acrescida da crise da habitação
e da situação de mendicância contemporâneas, encontra ressonâncias pre-
cisas nessa poesia das últimas décadas do século XX até 2012 - período
abordado pela antologia. Em cena, o sujeito acachapado pelo peso da ur-
banidade excludente e opressora, condenado ao anonimato e à desumani-
zação, exposto à concretude da barbárie social - é o que se observa nos
excluídos que atravessam a poesia de Fabio Weintraub em "Desvalimento
e suicídio", de Simone Rossinetti Rufmoni -, no desabrigo e nos morado-

J Referência a um dos três princípios modernistas elencados por Mário de Andrade


em "O Movimento Modernista": "o que caracteriza esta realidade que o movi-
mento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o
direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência crítica bra-
sileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional". In: Aspectos da
literatura brasileira. 5. ed. São Paulo, Martins, 1974, p: 242.
10 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

res de rua - na poesia de Régis Bonvicino e Tarso de Melo, em "Poética


do desabrigo", de Fabio Weintraub -, no cenário da violência urbana -
presente na formulação poética em tomo da bala perdida no poema de
Claudia Roquette-Pinto, em "Situação de Sítio", de Iumna Maria Simon. O
processo avassalador da urbanização brasileira, aliado à "inoperância" das
políticas sociais e ao crescimento do consumismo, encontra expressão
veemente nessa poesia. Nesse sentido, o estudo de Weintraub aborda a
problemática do ponto de vista da lírica diante da "tragédia urbana" brasi-
leira, marcada pelas consequências desumanizadoras da "urbanização se-
gregacionista", índice da herança patrimonialista das políticas habitacio-
nais. É nesse contexto que as vozes líricas minadas pela autocrítica são
perpassadas pela alteridade que enfeixa a polifonia da metrópole; pelos
refolhos do dialogismo acorrem ambiguidades agudas marcadas por per-
versidades, frustrações, recalques coletivos, flagrantes de adesão à ideolo-
gia. A especificidade d~onfecção dessas vozes de classe será objeto de
análise da obra d~ Airton Paschoa, Pádua Fernandes, Fabio Weintraub e
Cláudia Roquette-Pinto. Priscila Figueiredo, por sua vez, identifica na pro-
sa poética de Airton Paschoa as consequências psíquicas do caráter perse-
cutório da cidade que, ao lado do "marasmo político das democracias
atuais" formaliza modos patológicos de inadequação, retração que compri-
me o sujeito deformando-o ou imobilizando-o de todo. A violência tam-
bém não deixa de comparecer como máscara de classe, ao encobrir a irra-
cionalidade da lógica burguesa ancorada na autoconservação, como ocorre
no traçado dialógico da lírica de Weintraub.
Desdobramentos da recorrência do espaço público como elemento fun-
damental do corpo social opressor são as diversas figurações do corpo fí-
sico em contato e confronto com a metrópole expulsiva. Observa-se nas
análises a recorrência de imagens orgânicas dilaceradas (e dilaceradoras):
corpos doentes, deformados, desumanizados, órgãos humanos confundi-
dos com outras matérias orgânicas e inorgânicas, cadáveres - são imagens
captadas pelos críticos nos poemas de Tarso de Melo, Fabio Weintraub,
Carlito Azevedo, Nuno Ramos. O repto do espaço coletivo, aliado à coisi-
ficação e à difícil sobrevivência ecoam em cenas de violência urbana, cuja
situação metonímica apreende o país; temática explorada pelos ensaios de
Sterzi, Weintraub e Rufinoni.
Nota-se a elisão da dicotomia localismo/cosmopolitismo - observada
sobretudo no anacronismo atual de um de seus desdobramentos clássicos:
campo e cidade - que comparece com nova roupagem, essa marcada pela
proeminência dos conflitos na arena pública. Contudo, como se sabe, não
é possível dissociar as novas tendências temáticas de seu invólucro formal;
APRESENTAÇÃO 11

como nos lembra o estudo "Poesia em desenvolvimento", de Renan


Nuernberger, a desilusão frente aos projetos de nação comparte também
de uma nova forma de entrever o país, que passa pela crítica de suas for-
mulações poéticas.
A esse propósito quadram bem as palavras de Roberto Schwarz em
citação de Nuernberger: "Se for assim, o que está na ordem do dia não é o
abandono das ilusões nacionais, mas sim a sua crítica especificada, o
acompanhamento de sua desintegração, a qual é um dos conteúdos reais e
momentosos de nosso tempo ".2
Assim, de um lado a fatura que dialoga com a tradição, reformulando
os conteúdos cristalizados do fracasso dos projetos de nação; de outro a
urgência em apreender a experiência do presente. Conforme Iurnna Maria
Simon, a "retradicionalização pós-moderna" - espécie de retomada frívola
da tradição - marcante no panorama da lírica dos anos 80, perderá força
no final do decênio de 1990 tomando o rumo de uma poesia que, de mo-
dos diversos e premida pela avassaladora presença das forças mutiladoras
do sujeito e da experiência, ensaia o retomo ao real3. A autora identifica o
impasse em jogo e indaga: "por que uma poética ancorada na rarefação,
ou então na dissolução da referência, quer agora contextualizar a referên-
cia? É possível dentro da poesia feita de poesia essa volta?4". A pergunta
tem toda relevância face aos textos aqui reunidos: como a tendência à "ra-
refação referencial" atuará diante da urgência em lidar com a vida bruta?
Como na análise empreendida do poema "Sítio", cabe ao poeta formalizar
a violência que incide sobre a intimidade, mobilizando recursos comple-
xos de apreensão lírica do drama cotidiano. De mopos diversos, os estu-
diosos enfrentaram tais impasses encenados nas ob1\s de Airton Paschoa,
Tarso de Melo, Régis Bonvicino, Fabio Weintraub e Pádua Fernandes.

2 Roberto Schwarz em citação de Renan Nuernberger no texto "Poesia em desen-


volvimento", p. 112.
Em artigo ainda mais recente ("Condenados à tradição", revista Piauí, edição 64,
outubro de 2011) Iumna Maria Simon considera, de modo mais imperioso, a
presença da retradicionalização no cenário da poesia contemporânea tornada
prática distante da autoconsciência crítica ou histórica face ao legado da tradição.
As considerações dessa apresentação, contudo, restringem-se ao texto que parti-
cipa da antologia (aqui republicado, datado de 2008) e não aos desdobramentos
possíveis dessa problemática.
4 "Situação de Sítio", p. 181. A questão proposta será contemplada pela análise do
poema de Claudia Roquette-Pinto: '''Sítio' se estrutura portanto a partir de um
complicador: a dificuldade em lidar com a referência, porque Claudia participa
daquela tendência contemporânea dominante que cultiva a desrealização do refe-
rente, o lacunar, imagens obscuras e autônomas, a pura textualidade das designa-
ções em cadeia, cuja prática poética não se disciplinou na relação com o dado
imediato da realidade", p. 183.
12 CAMINHOS DA lÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

Desse modo, dialogando com Renan Nuernberger, se a crítica à tradi-


ção traz a reboque a crítica aos projetos de país que lhe deram legitimida-
de, a ruína das utopias também compõe o sedimento desse legado e sua
desconstrução contém o eco do novo tempo. Daí podermos alinhavar a
reflexão sobre forma e tradição com a pergunta sobre os desafios da atual
expressão lírica da experiência. Questões estéticas que perpassam os escri-
tos aqui reunidos: seja na identificação da tendência à apreensão do real
no argumento de Iumna Maria Simon, seja na análise da releitura um tanto
antropofágica da poesia de Angélica Freitas ou, ainda, na intromissão do
sujeito, mesmo que tomado pedra, na análise de Viviana Bosi. Entre a pro-
dução poética e a realidade expressa, os textos da antologia permitem a
discussão sobre os caminhos da representação, palco onde se encontram a
herança da tradição, a possível volta à referencialidade e a complexa cons-
trução do ponto de vista do sujeito da lírica.
Salta à vista, nos es'fitos aqui reunidos, a recorrência à ideia de resistên-
cia como platafQmía para se pensar o estatuto da poesia na atualidade. As-
sim ocorre com os argumentos de Viviana Bosi a respeito da emergência do
sujeito-pedra, desafio da subjetividade em meio à impessoalidade lírica,
estratégia de consolidação de um eu esvaziado que, ao adotar as formas da
rnineralização, assume o estatuto de coisa para, com e contra ele, discutir
sua posição como ser em situação. Nesse sentido, Eduardo Sterzi destaca o
poder de resistência política presente nas imagens ou palavras que contêm
em germe o "operador dialético" que ecoa o Eu sei de Pasolini: espaço
que guarda "o intervalo trágico entre conhecimento e ação" metaforizado
pela figura dos vagalumes que, semelhando uma assombração, fazem ful-
gurar uma "poética da sobrevivência". O método autocrítico, expresso
pelas chamadas metástases e poemas-processo de Ricardo Domeneck, é
interpretado por Renan Nuernberger como modo de aniquilação da tradi-
ção: por meio de "disjunções metonímicas" e "fracionamentos" produz
um espaço de resistência minando o sistema por dentro. Na poesia de Fa-
bio Weintraub flagra-se a figuração do suicídio que une o poeta à alterida-
de miserável, num ato paradoxalmente heroico e impossível.
Diante da riqueza dos procedimentos formais abordados, é possível tam-
bém destacar uma tendência que, sob formulações críticas diferentes, ganha
relevo: trata-se da formalização do indeterminado, do dissolvente ou do in-
forme. Em todos esses casos, a visada crítica apanhou os contornos específi-
cos por meio dos quais a palavra poética tece homologias estruturais com o
processo histórico. Vejamos: Renan Nuemberger aponta em Man1ia Garcia
os descrições e espaços indeterminados e em Ricardo Domeneck, desco-
lamentos metonímicos, fragmentações da linguagem. Pádua Fernandes
APRESENTAÇÃO 13

tece longa análise a respeito das metamorfoses em Nuno Ramos e finaliza


suas considerações com uma possível aproximação entre o informe traba-
lhado pelo artista e o sentido de amorfia da sociedade brasileira marcada
pela "permanência das formas privadas de dominação, que subsistem por
meio do 'mundo sem forma' , que Sérgio Buarque de Holanda verificou na
insuficiente ou frágil institucionalização da esfera pública no Brasil". As-
sim também Priscila Figueiredo considera certa "configuração expressio-
nista" no narrador ora canhestro, ora irônico de Airton Paschoa. Já o
enfoque de Viviana Bosi recai sobre a tendência ao inanimado que subjaz
na lírica representada pelo "sujeito-pedra", como estratégia daquele que
procura resistir "impermeável ao movimento agressivo do mundo". Há
que se notar, ainda, que o próprio gênero lírico comparece contaminado
por certo caráter indeterminado no uso dasfarmas hfbridas, misto de poe-
sia e prosa, nas obras de Airton Paschoa e Nuno Ramos.
Poderíamos também apontar, como querem os críticos Renan Nuern-
berger e Vilma Arêas diante da poesia de Angélica Freitas e Priscila Fi-
gueiredo, a tendência a certo humor corrosivo, misto de sátira, blague e
reconfecção dialógica de vozes culturalmente instituídas como as da cul-
tura de massa ou dos contos de fadas: unem essas experiências certo
exorcismo formal que, por meio da sofisticada trama poética, visa a des-
construção crítica de conflitos cristalizados em formas consagradas.
Desse ponto de vista, pode-se aproximar o procedimento diante dos dis-
cursos da tradição, que vão dos provérbios bíblicos aos contos popula-
res, na poesia de Priscila Figueiredo, bem como o trabalho fortemente
destrutivo com o molde publicitário ou o fetichismp qQe transforma em
griffe a figura do poeta, como ocorre em Angélica~reitas. Em caminho ':
semelhante estão as considerações de Priscila Figueiredo sobre o para-
doxo no uso do chiste e do trocadilho em Airton Paschoa; nesse caso, a
discussão sobre o risco da indistinção entre crítica e conformismo repõe
a problemática do ponto de vista.
O leitor identificará a presença de críticos-autores que compõem este
volume. É o caso de Pádua Fernandes, Fabio Weintraub e Priscila Figuei-
redo que comparecem no duplo papel de ensaístas e criadores, analistas e
analisados5. A esse título remetemos o leitor ao texto de Renan Nuernber-
ger que considera uma marca de nosso tempo a natureza acadêmica dos
artistas do verso e caberia acrescentar o fato como consequência da divi-
são do trabalho e do caráter fortemente autorreflexivo, intertextual e críti-
co da criação poética contemporânea.

5 Cabe mencionar que Eduardo Sterzi e Renan Nuernberger também são poetas e
Vilma Arêas é ficcionista.
14 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

Este livro deve sua realização a várias pessoas. Primeiramente a Paulo


Arantes, idealizador do projeto, pelo convite à discussão e pela generosi-
dade; aos autores dos ensaios que tornaram possível esta empreitada; ao
Programa de pós-graduação em Literatura Brasileira (FFLCH-USP), coor-
denado por Vaguer Carnilo, pelo financiamento concedido; a Fabio Wein-
traub, pelas valiosas sugestões e apoio; a Cristiano Mascaro, pela conces-
são dos direitos de imagem da capa.
A recolha dos textos traz um propósito e uma proposta: pretende ofere-
cer ao leitor uma ~ostragem da lírica contemporânea, ressalvando-se a
modéstia quantitativa do corpus oferecido, e aposta no recorte crítico que
aproxima sujeito e vida social, em busca do conteúdo político da poesia.

Os ORGANIZADORES
ADÁVERES, VAGALUMES,
FOGOS- FÁTUOS

EDUARDO STERZI

Pier Paolo Pasolini se convertirá en el Santo Patrón de la Fuga en


el afio 2100.
ROBERTOBOLANo, Amuleto (1999)

Pasolini passou aqui.


GABRIEL KERHART, pichação na fachada do cinema Belas Artes, em
São Paulo, fechado em março de 2011

1 Duas obras cruciais da literatura contemporânea - de um lado, um vo-


lume de gênero indeterminado, situado entre o romance e o ensaio, en-
tre a memória e a reportagem, escrito por um jovem italiano; de outro, o
mais recente livro de um dos principais poetas brasileiros da atualidade -
fazem coincidir momentos decisivos de suas tessituras com invocações ex-
plícitas das palavras, das imagens e sobretudo da figura do escritor e ci-
neasta Pier Paolo Pasolini.
A primeira invocação a que me refiro encontra-st4-nas'páginas iniciais
da segunda das duas partes de Gomorm, de Roberto Saviano, publicado
em 2006. Recordam-se, ali, as circunstâncias da morte, num acidente de
trabalho, de Francesco Iacomino, operário da construção civil de Ercola-
no. Como os canteiros de obras da região são controlados pela Camorra, a
organização criminosa que domina Nápoles e arredores, os companheiros
de Iacomino fugiram do local do acidente sem nem mesmo chamar o so-
corro médico. O corpo foi deixado no meio da rua, agonizante, expelindo
sangue dos pulmões. Estava longe de ser uma morte excepcional: como
observa Saviano, era apenas mais "um dos trezentos operários que se arre-
bentavam todo ano nos canteiros da Itália". Mas, para a sensibilidade po-
lítica e ética do escritor, um limite fora u trapassado:

Com a morte de Iacomino, desencadeou-se em mim uma raiva daque-


las que se assemelham mais a um ataque de asma do que a uma crise
nervosa. Gostaria de fazer como o protagonista de A vida acre [La Vita
38 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

Agra] de Luciano Bianciardi que chega a Milão com a vontade de ex-


plodir o Pirellone [à época, edifício-sede da Pirelli; desde 1978, sede
da administração regional da Lombardia] para vingar os quarenta e
oito mineiros de Ribolla. massacrados por uma explosão, em maio de
1954, no poço Camorra. Chamado assim pelas infames condições de
trabalho. Também eu devia, talvez, escolher um prédio, o Prédio, para
explodir, mas ainda antes de enfiar-me na esquizofrenia do terrorista
[attentatore], logo que entrei na crise asmática de raiva retumbou nos
meus ouvidos o Eu sei [lo so] de Pasolini como umjingle musical que
se repetia até a obsessão [sino all'assillo). E assim, em vez de esmiuçar
prédios a explodir, fui a Casarsa, até o túmulo de Pasolini.1

"Eu sei" - a fórmula pasoliniana evocada por Saviano - é a primeira


frase, logo repetida anaforicamente na abertura dos onze seguintes pará-
grafos, de um artig? puWicado no (i;orrieredella Sera em 14 de novembro
de 1974, um ano aótes de Pasolini ser assassinado. Neste texto, que se in-
titulou originalmente "O que é este golpe?" ("Che cos'e questo golpe?") e
hoje é conhecido pelo título que ganhou nos Escritos corsários, "O roman-
ce das matanças" ("TI romanzq delle stragi"), Pasolini, em tom profético,
dizia saber "os nomes dos responsáveis" pela violenta instabilidade polí-
tica na Itália daqueles últimos anos, a começar pelos atentados cometidos
em 1969 e em 1974, por meio dos quais se buscava gerar medo na popula-
ção e justificar a adoção de medidas de exceção:

Eu sei os nomes dos responsáveis pela matança de Milão em 12 de


dezembrQ de 1969.
Eu sei os nomes dos responsáveis pelas matanças de Bréscia e de Bo-
lonha nos primeiros meses de 1974.
Eu sei os nomes da "cúpula" ["vertice"] que manobrou, sejam os ve-
lhos fascistas idealizadores de golpes, sejam os neofascistas autores
materiais das primeiras matanças, sejam, enfim, os "desconhecidos"
autores materiais das matanças mais recentes.2

Pasolini dizia saber "os nomes do grupo de poderosos" que, com a


colaboração da CIA, dos coronéis gregos e da máfia, manipulavam e

I SAVIANO,Roberto. Comorra. Viaggio nell'lmpero Economico e nel Sogno di


Dominio della Camorra. Milão: Mondadori, 2006, p. 232.
2 PASOLINI,Pier Paolo, "D romanzo delle stragi" (1974), em Scritti corsari (1975),
hoje em Saggi sulla politica e sulla società (1999), org. Walter Siti e Silvia De
Laude, Milão: Mondadori, 2009, p. 362.
CADÁVERES, VAGALUMES, FOGOS-FÁTUOS 39

acobertavam, "entre uma missa e outra" (alusão aos democratas-cristãos),


"velhos generais", "jovens neofascistas, ou antes neonazistas" e até mes-
mo "criminosos comuns" - todos convertidos em peças de um grande e
intrincado xadrez político-criminal. Este conhecimento que Pasolini cris-
taliza na fórmula relembrada por Saviano revela-se trágico, em certo sen-
tido, na medida em que não pode se transformar em ação, a não ser no
âmbito, restrito mas por isso mesmo potente, da escrita, da literatura:

Eu sei. Mas não tenho as provas. Não tenho nem ao menos indícios.
Eu sei porque sou um intelectual, um escritor, que busca acompanhar
tudo o que acontece, conhecer tudo o que se escreve, imaginar tudo o
que não se sabe ou que se cala; que coordena fatos mesmo distantes,
que põe juntos os pedaços desorganizados e fragmentários de um intei-
ro e coerente quadro político, que restabelece a lógica lá onde parecem
reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério.3

Podemos dizer, então, que, para Pasolini - mas também para Saviano -,
Eu sei é o nome de um intervalo trágico entre conhecimento e ação (inter-
valo propício para a imaginação, que pode saber "tudo o que não se sabe"
e pode falar tudo o "que se cala"); Eu sei é, pois, a senha de um saber que
tenta extrair alguma potência de sua própria impotência (o que talvez seja
o paradoxo fundamental de toda arte frente ao real).4 Saviano também
sabe "os nomes dos responsáveis" pela morte de Francesco Iacomino e de
todas as outras vítimas da Camorra - e escreve seu livro precisamente para
decliná-los, coordenando "fatos [...] distantes" (os negócios da Camorra,
como ele demonstra com relatos exemplares, emtora enraizados em Ná-
poles ou Casal di Principe, acabam por se estender a todos os continentes),
pondo juntos "pedaços desorganizados e fragmentários" de modo a formar
um quadro complexo mas coeso, restabelecendo "a lógica lá onde pare-
cem reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério". O próprio Saviano
explica em termos de uma conquista da "possibilidade de escrever" a sua
viagem a Casarsa:

3 Idem, p. 363.
4 Como exemplo dessa potência extraída da impotência, podemos lembrar que "a
reconstrução da verdade a propósito do que aconteceu na Itália depois de 1968"
- reconstrução que, frisa Pasolini, "não é tão difícil", pelo menos quando se con-
ta com a imaginação - estava na base de Petróleo (Petrolio), romance que ele
vinha escrevendo por aqueles dias e que a sua morte deixaria incompleto (só ten-
do sido publicado, postumamente, em 1992).
40 CAMINHOS DA LÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

Fui ao túmulo de Pasolini não para uma homenagem, tampouco para


uma celebração. (...] Fui para encontrar um lugar. Um lugar onde fosse
ainda possível refletir sem vergonha sobre a possibilidade da palavra.
A possibilidade de escrever sobre os mecanismos do poder, para além
das histórias, além dos detalhes. Refletir se era ainda possível dar os
nomes [{are i nomi], um a uI\l, indicar as faces, despir os corpos dos
delitos e devolvê-los à condição de elementos da arquitetura da autori-
dade. Se era ainda possível seguir como porcos atrás de tartufo as dinâ-
micas do real, a afIrmação dos poderes, sem metáforas, sem media-
ções, com a lâmina única da escrita.5

2 A segunda invocação a Pasolini que tenho em mente aparece na última


página do livro Monodrama, de Carlito Azevedo, publicado em 2009 -
mais precisamente, no parágrafo fInal do estupendo poema em prosa "H.",
no qual o poeta, rel~mbra os últimos dias e a morte de sua mãe, assim
como as suas prinleiras reações à ausência dela. Neste parágrafo derradei-
ro, Carlito tenta imaginar o que lhe diria sua mãe se indagada se "lhe cou-
be a morte boa ou a morte má". A resposta que a imaginação lhe oferece
não é exatamente reconfortante, mas tampouco desesperadora:

- Comparada com a larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada


tocar, ver e ouvir que nos espera, a morte no sono, como dizem que
coube a Chaplin, vale o que valem as dez costelas partidas, as orelhas
arrancadas, os dedos decepados, lalaceração horrível entre o pescoço e
a nuca, a equimose larga e profunda nos testículos, o fígado lacerado,
o coração lacerado, o rosto inchado irreconhecível, os hematomas, úl-
tima forma física assumida por Pasolini nesse louco planeta que agora,
para você, gira também sem mim.6

Numa primeira leitura, talvez não se veja aí mais do que uma afIrma-
ção desencantada da profunda indiferença entre todas as modalidades de
morte, uma vez que a qualquer delas se segue o mesmo nada devastador.
Porém, esta não seria uma interpretação condizente com a complexidade

5 SAVIANO, Roberto, op. cit, p. 233.


6 AzEVEDO, Carlito. "H.". In: Monodrama, Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 152. O
nome de Pasolini também aparece em outro poema do mesmo livro: "A foto do
santuário de Delfos/ no Édipo de Pasolini/ colada no painel do seu carro/ no es-
pelho do banheiro/ e na caixa de remédios/ me repete/ que você não é mais triste/
do que qualquer pessoa! que eu conheça! nesta cidade/ de imigrantes/ fantasmas/
à sombra! do obsessor" ("Monodrama", idem, p. 99).
CADÁVERES, VAGALUMES, FOGOS·FÁTUOS 41

retórica do poema. É preciso notar sobretudo, numa segunda leitura, que


aqui estamos perante uma voz que, pelo menos na imaginação, desgarra-
se da morte para dirigir-se a um vivo (aquele "você" enfatizado pela me-
lodia e pela sintaxe, próximo ao final da longa frase), cobrando-lhe tacita-
mente, antes de tudo, o reconhecimento dessa sobrevivência espectral. Só
assim se pode apreender o significado da invocação de Pasolini neste tex-
to. Do ponto de vista estabelecido por Carlito7, Pasolini parece ser - mais
que uma vítima da "morte má", a qual, enfim, pelo menos do ponto de
vista dos mortos, termina por equivaler à "morte boa" - o nome de uma
forma de potência que não apenas consegue vencer a própria impotência,
mas que, na memória e na imaginação dos vivos, resiste mesmo à mais do-
lorosa destruição.8 Afinal, como sugere a comparação proposta no poema,
mesmo a morte (boa ou má, tranquila ou dolorosa) é uma forma - extre-
ma, é certo - de experiência: isto é, uma forma de ainda (mesmo que pela
última vez) sentir, provar, tocar, ver, ouvir. Neste sentido, pode-se dizer
que a imagem de Pasolini morto "vale o que valem" todas as imagens de
imigrantes e manifestantes que pontuam este livro proeminentemente po-
lítico de Carlito Azevedo, como figurações de experiências limítrofes,
marcadas pelo risco.9 Mas sobretudo, pela comunhão na violência física,
na agressão ao corpo, parece se aproximar especialmente da imagem da
"jovem! que se picava junto/ à mureta do Aterro,! camiseta salpicada,! a
seringa suja" (também ela, como se saberá depois, uma irnigrante10), de
outro poema de Monodrama, imagem desoladora que suscita a asserção
criticamente certeira, atribuída por Carlito a uma interlocutora não-identi-
ficada, de que "Nenhum poema! é mais difícil! do que"sua época". O que
é ainda uma maneira de djzer, com Pasolini, "Eu sei": com todas as difi-
culdades ("Eu sei. Mas não tenho as provas"), mas também todas as pos-
sibilidades ("Eu sei porque sou um intelectual, um escritor, que busca [...]
imaginar tudo o que não se sabe ou que se cala"), que esse saber, operador
dialético entre a experiência e a escrita, implica, para o poeta não menos

---
7 Que, sutilmente (consciente ou inconscientemente, o que não importa), parece
cifrar o desejo de uma "morte boa" para si mesmo na alusão a Chaplin, cujo
personagem mais notório, como se sabe, é conhecido no Brasil como Carlitos -
portanto, um quase homônimo do poeta.
Cf. AzEVEDO, Carlito. "O anjo boxeador tenta descrever uma cena", in: Monodra-
ma, op. cit., pp. 118-119.
9 Cf. idem, pp. 11-29 ("Emblemas"), 73-85 ("Dois estrangeiros"), 86-88 ("Limpe-
za do aparelho"), 91-108 ("Monodrama").
10 Idem, p. 47: "Você a reconheéeu/ como sendo a menina! coreana da Central! de
Fotocópias do Catete/ aquela comi camiseta salpicada! presilhas fluo/ mureta! e
hipodérmica pendente/ do braço".
42 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

que para O leitor. A circunstância de fundo, em Carlito como em Saviano,


é a de uma guerra civil, nunca de todo declarada, que acaba por se confun-
dir com a própria vida e da qual ninguém sai completamente ileso: "eu
disse: e é sempre! como um país! se dando contai de que entroul em guer-
ra, um dia! um país se dá conta de que a guerra! de que todos falam él a
sua guerra, oi país é o seul país, e o que chamam! de a guerra é a! sua
vida".ll Daí - porque estamos em meio à conflagração, porque ainda não
há como se saber com clareza quem são os vencedores e quem são os ven-
cidos, e menos ainda se estamos entre os vencedores ou entre os vencidos
- que às vezes não reste muito mais ao poeta, sobretudo quando confron-
tado com as "ruínas" de "nossas mentes estropiadas" e de "certas casas e
ruas I suburbanas", que se deitar "sobre a grama" e se pôr "a escutar a!
desconexão absoluta dei todas as falas do mundo, dei todos os sonhos do
mundo"12. O desafio que se coloca para ele, tanto quanto para qualquer
um que se disponha a q\carar e dizer seu próprio tempo, é o de conseguir
transformar essa réalidade hostil (essa vida que se dá a perceber como
uma guerra, e que, precisamente por ser hostil, é atravessada dialeticamen-
te pelo desejo, pelo sonho e pela utopia) em experiência: isto é, em maté-
ria genuinamente vivida e potencialmente transmissível. Não por acaso, a
mesma interlocutora que esclareceu o poeta sobre a relação entre a poesia
e a sua época dirá, pouco adiante, "qualquerl coisa assim": "como não
tenhol mais questão alguma! com a metafísica, eul não fico esperando porl
alguma presença para! experimentar o quel experimento, experimentol
todos os dias"13.

3 NãOpor acaso, também, um dos mais recentes livros do historiador e


filósofo da arte Georges Didi-Huberman, Survivance des Lucioles14, o
qual constitui uma espécie de vindicação do poder de resistência política

11 Idem, pp. 35-36; cf. idem, pp. 53-54, 57 ("É a guerra. É a guerra. É essa maldita
guerra ...", ele entoava bem baixinho, resignado, tomando o rumo de volta para
casa [00.]")' 68-69, 71-72, 89-90, 121-134. Cf. Roberto Saviano, Gomorra, op.
cit., p. 134: "Como na Bósnia, como na Argélia, como na Somália, como em
qualquer confusa guerra interna, quando é difícil entender a que lado pertences,
basta matar o teu vizinho, o cão, o amigo, ou um teu familiar. Um boato de pa-
rentesco [Una voce di parentela], uma semelhança é condição suficiente para se
tomar alvo. Basta que passes por uma rua para receber de pronto uma identidade
de chumbo". Sobre as imagens de guerra na poesia brasileira contemporânea, cf.
VVEUITRAUB,2012;LINS, 2012.
12 AzEVEDO,Carlito. "Pálido céu abissal". In: Monodrama, op. cit, p. 55.
13 Idem, "O tubo", pp. 33 e 42.
14 DIDI-HuBERMAN,Georges. Survivance des Lucioles, Paris: Minuit, 2009.
43

de certas imagens e certas palavras, parte de uma premissa semelhante: re-


futa-se a noção, que se acha, por exemplo, em alguns textos de Giorgio
Agamben, de que a possibilidade da experiência encontra-se destruída
para o homem contemporâneo.!5 E é significativo que Didi-Huberman
comece seu livro pela releitura - francamente antitética e problematizado-
ra - de um célebre ensaio de Pasolini, publicado, no mesmo Corriere de/la
Sera, poucas semanas depois do já mencionado "TI romanzo del1e stragi".
Trata-se do ensaio que ficou conhecido como "L' articolo del1e lucciole"
(com este título foi recuperado nos Scritti corsari, embora, em sua forma
primeira, de 12 de fevereiro de 1975, se intitulasse, mais prosaicamente,
"TI vuoto deI potere in Italia"!6). Didi-Huberman busca pensar com
Pasolini, sem se furtar, quando necessário, a pensar contra Pasolini (ado-
tando postura semelhante frente a Agamben).
No seu texto - cujo título pode ser traduzido por "O artigo dos vagalu-
mes"!? -, Pasolini faz um diagnóstico extremamente desesperançado da
sociedade italiana de sua época, a qual estaria sucumbindo a uma nova e,
até há pouco, imprevisível forma de fascismo, de consequências talvez
mais nocivas que o fascismo histórico (ou "fascismo fascista", para falar
como o autor). Este "fascismo radicalmente, totalmente, imprevisivelmen-
te novo" teria resultado de um "fenômeno" ocorrido na Itália dez anos an-
tes, conforme data Pasolini. Em vez de simplesmente descrever tal fenô-

15 Escreve Agamben, nas primeiras linhas do ensaio que dá título ao livro lnfanzia
e storia, citadas por Didi-Huberman: ''Todo discurso sobre a experiência deve
hoje partir da constatação de que esta não é mais algo qué'nos seja ainda dado fa-
zer. Porque, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo
foi expropriado da sua experiência: antes, a incapacidade de fazer e transmitir ex-
periências é, talvez, um dos poucos dados certos de que ele dispõe sobre si mes-
mo". AGAMBEN,Giorgio, "lnfanzia e storia. Saggio sulla distruzione dell'espe-
rienza". In: lnfanzia e storia. Distruzione dell'esperienza e origine della storia
(1978), nuova edizione accresciuta, Turim: Einaudi, 2001, p. 5.
16 PASOLINI,Pier Paolo. "L'articolo delle lucciole" (1975). In: Scritti corsari, op.
cit., pp. 404-411.
17 Há uma tradução do texto, com o título de "O artigo dos pirilampos", em Pier
Paolo Pasolini, Os jovens infelizes. Antologia de ensaios corsários, org. Michel
Lahud, trad. Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso, São Paulo: Brasiliense,
1990. Vagalume me parece preferível a pirilampo porque, embora tenha surgido
como eufemismo para caga-lume, sugere algo como luzes vagantes. Mas deve-
mos lembrar que também temos em português a palavra lucíola (proveniente
justo do italiano lucciola), a qual, embora não registrada nem no Aurélio nem no
Houaiss, encontra-se no Caldas Aulete ("gênero de insetos coleópteros teleforí-
deos das regiões quentes da Europa; são brilhantes de noite"), com uma abona-
ção extraída de Fagundes Varela: "As mil constelações se tresmalham quais er-
rantes lucíolas". Vale lembrar que a palavra também aparece no título do célebre
romance de José de Alencar.
44 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

meno com o léxico da política ou da sociologia, Pasolini (justificando as-


sim fazê-lo por ser "um escritor, e escrev[er] em polêmica") busca cir-
cunscrevê-lo por meio de "uma definição de caráter poético-literário" - ou
seja, por meio de uma imagem:

Nos primeiros anos Sessenta, por causa da poluição do ar, e, sobretudo,


no campo, por causa da poluição da água (os rios azuis e os canais trans-
parentes), começaram a desaparecer os vagalumes. O fenômeno foi ful-
minante e fulgurante. Depois de poucos anos os vagalumes não existiam
mais. (São agora uma recordação, bastante aflitiva, do passado: e um
homem velho que tenha uma tal recordação não pode reconhecer, nos
novos jovens, a si mesmo quando jovem, e portanto não pode mais ter as
belas saudades de um dia.) 18

Como nota Didi-HuQGrman, Pasolini não recorre a esta "imagem poé-


tico-ecológica" pará "suavizar a violência do fenômeno" que diagnosti-
cou, mas, sim, para "insistir na dimensão antropológica - a seus olhos a
mais profunda, a mais radical - do processo político em questão": o desa-
parecimento dos vagalumes (la scomparsa delle luccíole) corresponderia,
no plano cultural, a nada menos que (a hipérbole é pasoliniana) um "geno-
cídio"19. Pasolini descreve esse processo em três fases. Antes do desapare-
cimento dos vagalumes, era "completa e absoluta" a "continuidade entre
fascismo fascista e fascismo democrata-cristão". "A democracia que os
antifascistas democrata-cristãos opunham à ditadura fascista era despudo-
radamente formal": os mesmos "códigos" continuavam ativos, a mesma
"violência policial", o mesmo "desprezo pela Constituição,,2o. O regime
sustentava-se numa maioria absoluta que congregava amplos estratos das
classes médias e das massas camponesas, sob a tutela do Vaticano. Os
"valores que contavam" permaneciam os mesmos da época fascista: "a
Igreja, a pátria, a família, a obediência, a disciplina, a ordem, a poupança,
a moralidade". Eram "valores", frisa Pasolini, "também reais", isto é,
"pertenciam às culturas particulares e concretas que constituíam a Itália
arcaicamente agrícola e paleoindustrial"; porém, "no momento em que
eram assumidos como "valores" nacionais não podiam senão perder toda
realidade", tomando-se um "atroz, estúpido, repressivo conformismo de

18 PASOLlNI,Pier Paolo. "L'articolo delle Lucciole", op. cit., pp. 404-405.


19 DIDI-HuBERMAN,Georges. Survivance des Lucioles, op. cit., p. 23. PASOLINI,
"L' articollo delle Lucciole", op. cit., p. 407.
20 PASOLINI, Pier Paolo. "L'articolo delle Lucciole", op. cit., p. 405.
CADÁVERES, VAGALUMES, FOGOS-FÁTUOS 45

Estado". Diante desse quadro, mesmo os "intelectuais" e os "opositores"


nutriam "insensatas esperanças": "Esperava-se que tudo aquilo não fosse
completamente verdadeiro, e que a democracia formal contasse no fundo
alguma coisa"21. Pasolini passa então à descrição da segunda fase, simul-
tânea ao desaparecimento dos vagalumes. Neste período, "o grande país
que estava se formando dentro do país - isto é, a massa operária e campo-
nesa organizada pelo PCI [Partido Comunista Italiano] - [tanto quanto] os
intelectuais, mesmo os mais avançados e críticos, não se aperceberam que
"os vagalumes estavam desaparecendo"22. Este desconhecimento, segundo
Pasolini, poderia se atribuir ao fato de se dispor, então, apenas de informa-
ções fornecidas pela investigação sociológica, que "eram informações ain-
da não vividas, em substância formalistas" (volta-se, pois, à questão da ex-
periência como fundamento de um saber radical): "Ninguém podia suspei-
tar a realidade histórica que seria o imediato futuro [...]23".Por fim, advém
a terceira fase, "após o desaparecimento dos vagalumes", na qual é impos-
sível fechar os olhos para a realidade hostil: agora, os "valores" naciona-
lizados e, portanto, falsificados, provenientes do "velho universo agrícola
e paleocapitalista", já não contam - "e não servem mais nem mesmo en-
quanto falsos". "A substituir-lhes, estão os 'valores' de um novo tipo de ci-
vilização, totalmente 'outra' em relação à civilização camponesa e paleo-
industrial. [...] trata-se da primeira 'unificação' real sofrida pelo nosso país
[...f4". Enquanto em outros países houve uma passagem gradual de um
modelo civilizacional a outro, na Itália o processo foi abrupto e extrema-
mente destrutivo. "O trauma italiano do contato entre a 'arcaicidade'
pluralista e o nivelamento industrial tem talve~ um único precedente: a
Alemanha antes de Hitler. Também aqui os valores das diversas culturas
particulares [culture particolaristiche] foram destruídos pela violenta ho-
mologação da industrialização: com a consequente formação daquelas
enormes massas, não mais antigas (camponesas, artesãs) e não ainda mo-
dernas (burguesas), que constituíram o selvagem, aberrante, imponderável
corpo das tropas nazistas.25" O prognóstico não poderia ser mais desani-
mador e mesmo apocalíptico: "Na Itália está acontecendo algo semelhan-
te: e com ainda maior violência, dado que a industrialização dos anos se-
tenta constitui uma 'mutação' decisiva mesmo com relação àquela alemã

21 Idem, pp. 405-406.


22 Idem, p. 406.
23 Idem, pp. 406-407.
24 Idem, p. 407.
25 Idem, ibidem.
CAMINHOS DA LiRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

de cinquenta anos antes. Não estamos mais defronte, como todos já sa-
bem, a 'tempos novos', mas a uma nova época da história humana: daque-
la história humana cujos prazos são milenares [le cui scadenze sono
millenaristiche]. Era impossível que os italianos reagissem pior que assim
a tal trauma histórico. Estes se tomaram em poucos anos (especialmente
no Centro-sul) um povo degenerado, ridículo, monstruoso, criminoso"26.
Esta "mutação" sociopolítica, e mesmo antropológica, e o "trauma" dela
decorrente são particularmente sensíveis para quem sempre enxergou nas
tradições e práticas do povo da velha Itália camponesa formas de resistên-
cia ao progresso uniformizador e totalitário. Um homem imbuído de tal
"amor" por seu povo não podia senão interpretar a vertiginosa conversão
dos italianos em massa consumidora como uma catástrofe ou um "genocí-
dio": "Vi, portanto, 'com os meus sentidos' [coi miei sensi] o comporta-
mento imposto pelo poder dos consumos recriar e deformar a consciência
do povo italiano, at~ Urrftl irreversível degradação. O que não acontecera
durante o fascisnio fascista, período em que o comportamento era comple-
tamente dissociado da consciência. Infrutiferamente o poder 'totalitário'
iterava e reiterava as suas imposições comportamentais: a consciência não
estava implicada aí. Os 'modelos' fascistas não eram senão máscaras, a se
colocar e tirar. Quando o fascismo fascista caiu, tudo voltou a ser como
era,,27. Daí que Pasolini assevere drasticamente que "a distinção entre o
fascismo fascista e o fascismo desta segunda fase do poder democrata-
cristão não só não tem comparações na nossa história, mas provavelmente
em toda a história"28.
E daí também que, levando ao extremo as reflexões já ensaiadas em
textos anteriores igualmente lembrados por Didi-Huberman29, desenvol-
vesse os temas do "verdadeiro fascismo" e do "genocídio" até chegar,
pouco depois da publicação do artigo sobre o desaparecimento dos vaga-
lumes, à conclusão radical de que foi antes de tudo o próprio ser humano
que desapareceu na sociedade contemporânea. Numa entrevista publicada
seis dias depois de seu assassinato, Pasolini dizia ao jornalista: "Pretendo
que você olhe em tomo e se dê conta da tragédia. Qual é a tragédia? A tra-
gédia é que não existem mais seres humanos, existem estranhas máquinas

26 Idem, pp. 407-408.


1:1 Idem, p. 408.
28 Idem, ibidem.
29 Idem. "Acculturazione e acculturazione" (1973), "TI vero fascismo e quindi il
vero antifascismo" (1974) e "TI genocidio" (1974). In: Scritti Corsari. op. cit.,
pp. 290-293, 313-318 e 511-517.
CADÁVERES, VAGAlUMES, FOGOS-FÁTUOS 47

que se batem umas contra as outras"30. Didi-Huberman sintetiza muito


bem o que está em jogo nessa justaposição de figuras em desaparição:

É preciso então compreender que o improvável e minúsculo esplendor


dos vagalumes, aos olhos de Pasolini - esses olhos que sabiam tão bem
contemplar um rosto ou deixar se manifestar [déployer] o gesto justo
no corpo de seus amigos, de seus atores -, não metaforiza nada mais
do que a humanidade por excelência, a humanidade reduzida à sua
mais simples potência de nos fazer sinais dentro da noite [l'humanité
réduite à sa plus simple puissance de nous faire signe dans la nuit]31.

4 contra a noção de uma absoluta aniquilação da humanidade, conden-


sada poeticamente na imagem do desaparecimento dos vagalumes,
Didi-Huberman afirma que "uma coisa é indicar a máquina totalitária,
uma outra é lhe conceder tão rapidamente uma vitória definitiva e sem
volta"32. Ou seja, ainda que estejamos envolvidos e dominados pelas-tre-
vas do totalitarismo mais insidioso (porque não se mostra imediatamente
como tal) ou, sobretudo, pelos complementares clarões do espetáculo
triunfante, a humanidade ou, para usar uma expressão cara ao autor, os
"povos" (peuples)33 preservaram a capacidade de emitir seus sinais de re-
sistência e esperança. E é, antes de mais, no próprio Pasolini que Didi-
Huberman descobre uma abertura a estes sinais: "toda a obra literária, ci-
nematográfica e mesmo política de Pasolini parece atra~essada [semble
bien traversée] por tais momentos de exceção o~de ós seres humanos se
tornam vagalumes - seres luminescentes, dançantes, erráticos, ínapreensí-
veis e, como tais, resistentes - sob nosso olhar maravilhado"34.
Os próprios vagalumes, afinal, não desapareceram de todo. Eles reapa-
recem, por exemplo, para o poeta e fotógrafo Denis Roche, que, num livro
intitulado, certamente em homenagem a Pasolini, La Disparition des

30 Idem. "Siamo tutti in pericolo" (1975), em Saggi sulla Politica e sulla Società,
op. cit., p. 1724.
31 DIDI-HuBERMAN, Georges. Survivance des Lucioles, op. cit., p. 25.
32 Idem, p. 35.
33 É o título do quarto capítulo de Survivance des Lucioles, op. cit., p. 77-97. Cf.
também idem, "Peuples exposés (à disparaitre)", Chimeres, 66-67 (2008) [Morts
ou vifs), pp. 21-42; idem, "Pasolini ou la recherche des peuples perdus", Les
Cahiers du Musée Nationale d'Art Moderne, 108 (été 2009), pp. 86-115; idem,
"Peup1es exposés, peup1esfigurants", De(s)générations, 9 (septembre 2009) [Fi-
gure, figurants), pp. 7-17.
34 Idem, Survivance des Lucioles, op. cit., p. 19.
48 CAMINHOS DA lÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

Lucioles, reproduz um fragmento de diário, datado de 3 de julho de 1981,


no qual registra uma noite passada entre amigos nos campos da Itália: cer-
ca de vinte vagalumes iluminam-se junto às folhagens, provocando excla-
mações dos convivas, para logo mais desaparecerem novamente na escu-
ridão35.E os vagalumes aparecem também para o próprio Didi-Huberman,
que rememora a época em que viveu em Roma, dez anos depois da morte
de Pasolini, quando, na colina do Pincio, mais precisamente num local co-
nhecido como "bosque dos bambus", havia "uma verdadeira comunidade
de vagalumes" a fascinar os passantes: "os vagalumes não tinham desapa-
recido entre 1984 e 1986, mesmo em Roma, mesmo no coração urbano do
poder centralizado"36. No entanto, conta Didi-Huberman que, mais recen-
temente, retomou ao Pincio e constatou que os bambus haviam sido corta-
dos e que os vagalumes haviam, outra vez, desaparecid03? Porém, segura-
mente para voltar a aparecer em outro lugar. Se queremos ver de novo os
vagalumes, num te!Upooemque a sua sobrevivência toma a forma de "uma
comunidade anacrônica e atópica", precisamos saber a hora de nos deslo-
car, de mudar de posição: trata-se, afinal, de uma "iluminação intermiten-
te" (éclairage intermittent) que é também uma "iluminação em movimen-
to" (éclairage en mouvement), uma iluminação fugidia no tempo e no es-
paço38. Se há, segundo Deleuze e Guattari, uma "literatura menor" (repre-
sentada por Kafka), haveria também, propõe Didi-Huberman, uma "luz
menor" (lumiere mineure) que possui "as mesmas características filosófi-
cas" daquela: do "forte coeficiente de desterritorialização" às premissas de
que "tudo aí é político" e "tudo adquire um valor coletivo", falando do
povo e das "condições revolucionárias" inerentes à sua marginalização39.
Podemos nos perguntar se não é precisamente esta "luz menor" que
Roberto Saviano e Carlito Azevedo foram buscar nas palavras, nas ima-
gens e sobretudo na figura de Pasolini? Se não a luz dos vagalumes, a luz
dos fogos-fátuos que, em certas noites do campo, desprendem-se dos ca-
dáveres e fazem pensar em fantasmas, em aparições. Afinal, qualquer exa-
me atento das artes de nossa "época", pelo menos em suas mais interes-

35 RocHE, Denis. La Disparition des Lucioles (Réflexions sur l'Acte Photographi-


que). Paris: Éditions de I'Étoile, 1982. Citado por DIDI-HuBERMAN, Georges.
Survivance des Lucioles, op. cit., pp. 37-40.
36 DIDI-HuBERMAN, Georges. Survivance des Lucioles, op. cit., p. 40.
37 Idem, ibidem.
38 Idem, pp. 42 e 39.
39 DELEUZE, Gilles e GUATIARI, Félix. Kafka. Pour une Littérature Mineure, Paris:
Minuit, 1975, pp. 29-33. Cf. DIDI-HuBERMAN, Georges. Survivance des Lucioles,
op. cit., p. 44.
CADÁVERES, VAGALUMES, FOGOS·FÁTUOS 49

santes realizações, demonstra que nelas a crítica da contemporaneidade


não se dissocia do que poderíamos chamar de uma estética, que é também
uma política, da assombração. Que é igualmente, antes de tudo, uma poé-
tica da sobrevivência, se por "sobrevivência" compreendemos a forma ex-
trema de comunicação e indeterminação entre vivos e mortos - mas tam-
bém, em analogia com esta, a dinâmica trans-hístórica intrínseca às artes,
e, antes que a elas, a todas as imagens, artísticas e não-artísticas4o. Sobre-
vive-se a um morto ou sobrevive-se à própria morte: em ambos os casos,
é toda uma vida espectral, tão afim à "condição póstuma da literatura"41
(e das artes em geral), que aí se inicia. Não por acaso, já num de seus
primeiros poemas, Carlito Azevedo confrontava o leitor com a figura
ambígua ou limítrofe do "vivente morrente"42. Isto é: do sobrevivente.
Isto é: do resistente - da resistência.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. "Infanzia e Storia. Saggio sulla Distruzione dell'Esperien-


za". In Infanúa e Storia. Distruzione dell'Esperienza e Origine deLla Storia
(1978). Nuova edizione accresciuta. Turim: Einaudi, 2001. pp. 3-66.
AZEVEDO,Carlito. CoLlapsus iinguae. Rio de Janeiro: Lynx, 1991.
___ Monodrama. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
o

GELEUZE,Gilles e GUATIARJ, Félix. Kafka. Pour une Littérature Mineure. Paris:


Minuit, 1975.
DIDI-HuBERMAN, Georges. L'Image Survivante. Histoire de,.i'Art et Temps des
Fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002:
___ "Paso1ini ou la Recherche des Peup1es Perdus", Les Cahiers du
o

Musée Nationaie d'Art Moderne, 108 (été 2009), pp. 86-115.


__ "Peuples exposés (à disparaitre)", Chimeres, 66-67 (2008) [Morts ou
o

vifs], pp. 21-42


___ "Peuples exposés, peuples figurants", De(s)générations, 9 (septembre
o

2009) [Figure, Figurants], pp. 7-17.


DIDI-HuBERMAN, Georges. Survivance des Lucioies. Paris: Minuit, 2009.

40 Cf. DIDI-HuBERMAN,Georges. L'lmage Survivante. Histoire de l'Art et Temps des


Fantômes selon Aby Warburg, Paris: Minuit, 2002.
41 Cf. FERRONI,Giuliu. Dopo la Fine. Sulla Condizione Postuma della Letteratura,
Torino: Einaudi, 1996.
42 AzEVEDO,Carlito "A dúvida de Carnilo Pessanha". In: Collapsus Linguae, p. 40. Cf.
Camilo Pessanha, "Água morrente" [título atribuído por João de Castro Osório]
(1895), In: Clepsydra, ed. Paulo Franchetti, Campinas: Editora da Unicamp, 1994,
p.lOO.
50 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

FERRONI,Giulio. Dopo la Fine. Sulla Condizione Postuma de lia Letteratura.


Torino: Einaudi, 1996.
LINs, Vera. "A poesia em tempos de guerra: uma tentativa de ler a poesia con-
temporânea no contexto da violência". In: SELIGMANNSILVA,Márcio,
GINZBURG, Jaime e FOOTHARDMAN, Francisco (org.). Escritas da violência.
V. 1: O testemunho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. pp. 254-262
PASOLINI,Pier Paolo. "Acculturazione e acculturazione" (1973). In: Scritti
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__ o "11romanzo delle stragi" (1974). In: Scritti Corsari (1975), hoje em
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Laude. Milão:' Mondadori, 2009. pp. 362-367.
__ o "L' Articolo delle Lucciole" (1975). In: Scritti Corsari (1975), hoje
em Saggi sulla Politica e sulla Società (1999), org. Wa1ter Siti e Silvia De
Laude. Milão: Mondadori, 2009. pp. 404-411.
___ o "11 vero fascismo e quindi il vero antifascismo" (1974). In: Scritti
Corsari (1975)(,hoje'em Saggi sulla Politica e sulla Società (1999), org.
Walter Siti é Silvia-De Laude. Milão: Mondadori, 2009. pp. 313-318.
__ o "11genocidio" (1974). In: Scritti Corsari (1975), hoje em Saggi sulla
Politica e sulla Società (1999), org. Waiter Siti e Silvia De Laude. Milão:
Mondadori, 2009. pp. 511-517.
___ o "Siamo tutti in pericolo" (1975). Saggi sulla Politica e sulla Società
(1999), org. Waiter Siti e Silvia De Laude. Milão: Mondadori, 2009. pp.
1723-1730.
PESSANHA,Carnilo. "Água morrente" [título atribuído por João de Castro
Osório] (1895). In: Clepsydra. Ed. Paulo Franchetti. Campinas: Editora da
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ROCHE,Denis. La Disparition des Lucioles (Réflexions sur l'Acte Photogra-
phique). Paris: Éditions de l'Étoile, 1982.
SAVIANO, Roberto. Gomorra. Viaggio nell'Impero Economico e nel Sogno di
Dominio della Camorra. Milão: Mondadori, 2006.
WEINTRAUB, Fabio. "Meu primeiro bunker: imaginário bélico em Terminal, de
Ronald Polito", Literatura e autoritarismo, dossiê Imagens de devastação,
no prelo.
ITUAÇÃO DE SíTIO·
IUMNA MARIA SIMON

eu escuto o que tem que ser dito.

"no jardim" em Os dias gagos.


CLAUDIAROQUETIE-PINTO,

N o curso da mais vertiginosa transformação da sociedade brasileira,


marcada pelo fim das políticas de desenvolvimento, pela estagnação
econômica com aumento da concentração de renda, período em que o
cosmopolitismo financeiro e a desfaçatez ideológica dos neoconservado-
res andaram de rédeas soltas, esperávamos tudo - tudo mesmo -, menos
que coincidisse com esses anos um novo ciclo de retradicionalização da
poesia. Retradicionalizar significa incorporar as."p-adfçõesmodernas, tra-
duzir o teor originariamente crítico delas em formas convencionais e au-
torreferidas, mediante o trabalho de linguagem e sob o amparo do "rigor
de construção", paradoxalmente assumidos como princípios capazes de
preservar a autonomia poética e o ofício do verso. Como se vê, fundem-se
aí vários horizontes da experiência moderna: a abertura historicista trazida
pela existência de um museu da poesia moderna, a consciência formal do
poema como artefato linguístico, o teor construtivo das vanguardas dos

* Este texto foi inicialmente apresentado no Seminário Internacional "Poesia con-


temporânea: identidades e subjetividades em devir", realizado em Niterói na
Universidade Federal Fluminense em dezembro de 2007. Uma versão completa
saiu em PEDROSA,Célia e ALVES,Ida (orgs.). Subjetividades em devir: estudos de
poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. A análise do
poema, com o título "Poema e bala perdida", foi publicada na revista Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea, n. 32. Brasília, julho-dezembro de 2008,
pp. 145-159. .
178 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

anos 1950, a antiga autoriomia esteticista e até, quem diria, o gosto provin-
ciano pelo artesanato do verso. De imediato, esse movimento sem progra-
ma parecia reagir à desqualificação formal e à baixa mímese a que os poe-
tas marginais haviam submetido a poesia brasileira nos anos 1970, embora
tendesse a escapar ao compromisso 'dos confrontos. Sob a fiança de linha-
gens prestigiosas da tradição moderna e já sem propósito radical, a inven-
ção poética se desloca da experimentação dos procedimentos (como no
tempo da vanguarda) para a conceitualização dos conteúdos, tratados fri-
volamente como matéria de variações. O que mudou nesse quadro foi o
peso e o sentido da tradição, que não parece incompleta, nem é considera-
da obstáculo, sequer precisa ser superada ou transformada - agora todas
as tradições estão franqueadas, conquanto o poema desarme a inquietação
autoproblematizadora, caracteristicamente moderna, à procura de dicções
elevadas e pluralistas que desrea1izem sua matéria ao mesmo tempo que a
ornamentem 1. Pensando ,bem, uma retradicionalização desse tipo, que re-
afirma linguagens já/testadas e reassegura a soberania do poético, só pode-
ria mesmo se converter numa proposta de renovação, ou reação às poéti-
cas existentes, num período de regressão social e econômica, como o que
ocorreu simultaneamente ao auge do pós-modernismo internacional, na
segunda metade dos anos 1980. Por estranho que pareça, ou por tudo isso,
uma época de tamanhas transformações e consequências sociais, como as
das duas últimas décadas do século passado, não contou no Brasil com um
ponto de vista artístico relevante da parte da produção poética. A poesia
deixou de ser companheira de viagem do presente, deu as costas aos acon-
tecimentos, os quais no entanto a afetavam no mais íntimo de sua capaci-
dade criativa.
Mais do que uma simples volta antivanguardista ao literário, essa retra-
dicionalização bastante frívola foi uma forma de acomodar a crise da re-
presentação em moldes aliteratados e poetizantes. Em tais circunstâncias,
restou aos jovens criadores - e a outros já não tão jovens - a recombina-
ção desencantada de erudição, o jogo de referências literárias e artísticas,

---
I "Tudo hoje é campo de experimentação ao mesmo tempo: das formas fixas aos
suportes e gêneros absolutamente mesclados, o que pressupõe uma estratégia
que, a princípio, não recusa nada, e de alto risco porque exige jogadores cada vez
mais treinados em quaisquer regras de jogos. [...] Mas o interessante é a convi-
vência civil desses registros, momentaneamente possível." (POLlTO, Ronald. "No-
tas sobre a poesia no Brasil a partir dos anos 70". Cacto. Poesia & Crítica, São
Paulo: n. 2, 2003, pp. 70-71). Como se vê, a simples constatação vai se tornando
uma justificação, que converte o ponto de chegada do contemporâneo num con-
graçamento geral.
SITUAÇÃO DE síTiO 179

dentro do espírito genérico da intertextualidade pós-moderna, que no caso


brasileiro veio auratizar o poema e sublimar o presente. A escrita abstrata
e descarnada precisou se "poetizar", disfarçando a rarefação referencial e
a indeterminação discursiva, ainda que subsistissem nela muitas manchas
de divagação lírica, confessionalismo e alguma reflexão existencial. De
outro ângulo, pode-se dizer também que, com a rotinização e o esgota-
mento da vanguarda, o que sobreviveu desta no período deixou de ser ma-
triz de experimentação para se tornar um ideal de alta cultura, depuração
e refinamento poéticos e, acima de tudo, intérprete da tradição literária
mundial. Todos esses elementos convivem, como se sabe, contraditoria-
mente, na poesia concreta desde os seus primórdios e, por essa razão, ela
pôde atravessar os decênios de 1980 e 1990 ainda como um padrão válido,
suprindo com suas posições mais recentes a falta geral de debate estético
ou programa poético.
A partir dos últimos anos de 1990 surgiram indícios de mudança no
panorama, sinalizando talvez que a retradicionalização pós-moderna per-
dia fôlego. Sinais esparsos mas indicadores de que algo entrava em movi-
mento e poderia alterar os termos que possibilitaram o chamado boom
produtivo da poesia. Pouco a pouco, a sintaxe deixa de ser um recurso de
obscurecimento do assunto, cuja dissolução se convertia em espetáculo,
como é recorrente na obra 'de Carlito Azevedo. Ou seja: o poema que
espetaculariza a proliferação e a desmontagem de suas imagens perde es-
paço para uma poesia de horizonte oprimido e desanimado, de rotina de
ninharias, como se lê nos livros de Tarso de Melo e Ronald . ,
Polit02. Redes-
cobre-se o tom menor associado a contextualiza~ões .maís densas e pesso-
ais, que pode se conciliar com algum experimentalismo da linha gráfica e
do arranjo em blocos fora de sincronia com o ritmo e a enunciação - como
nos poemas de Ricardo Domeneck3. Ressurge o interesse pelo poema em
prosa e certos impulsos de narratividade como os que percorrem, entreme-
ados à rarefação, os Planos de fuga e outros poemas, de Tarso de Melo ou
Louco no oco sem beiras, de Frederico Barbosa, uma composição feita de
poemas breves que se reestruturam no corpo narrativo de um livr04• Tam-
bém é curioso que a poesia concreta tenha gerado, nessa altura, em autores
mais ou menos tocados por ela, ou em crise com, uma poesia de protesto,

2 MELO,Tarso de. Planos defuga e outros poemas. São Paulo: CosacNaify / Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2005 e Ronald Polito. Terminal. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
DOMENECK,Ricardo. Carta aos anfíbios. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005 e a
cadela sem Logos. São Paulo: CosacNaify / Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
4 BARBOSA,Frederico. Louco no oco sem beiras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
180 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

reclamação, indignação e desespero existencial como se vê neste último


título e em Contracorrente, do mesmo autor, assim como na produção de
Régis Bonvicino a partir de Ossos de borboleta, culminando com a crítica
feroz de Página órfã, que a mais de um resenhista pareceu poesia políti-
ca5. O assunto volta a ser relevante (sic), exigindo a precisão no seu trata-
mento, o que pode ter as consequências de um retomo ao real, se não for
uma demasia a expressão. Esse retomo, narrado com um timbre claro e
sereno que provoca desconforto, aparece igualmente em Novo endereço,
de Fabio Weintraub, que se detém em situações de sofrimento da intersub-
jetividade em meio a destroços de corpos, fábricas e do mundo do traba-
lho, em que fragmentos de gente (dentes, unhas, pés) se misturam à ruína
da cidade6. Evidências dessa alteração são a volta da referencialidade con-
creta, do país real, dos problemas sociais, da decadência urbana, por vezes
mesclados ao padrão impositivo da intertextualidade. Em Cais, de Alberto
Martins, a descrição da ,cidade-porto (Santos e cercanias), incrustada na
paisagem de lo~o e luto, quer desfazer a euforia culturalista do modernis-
mo que valorizou a informalidade popular e a miscigenação geral, as quais
já não podem ter lugar na elegia de um país que não passa de uma triste e
permanente infecção colonial?
De lá para cá, o índice de insatisfação cresceu muito, a ponto de a crí-
tica jornalística com falta de jeito apressar-se em rotular alguns exempla-
res dessa linha como "neoparticipante" ou como uma "retomada da poesia
engajada".8 Hoje lemos poemas e livros inteiro; que abordam a desagrega-
ção da sociedade brasileira, nome mais específico para o contemporâneo,
cuja matéria inclui obviamente pobreza, marginalidade, mendicância,
crianças de rua, catadores de lixo, classe média empobrecida, violência ur-
bana, tráfico de drogas, criminalidade. Tudo isso pede uma reformulação
das questões que o ciclo da retradicionalização antes nos propunha, embo-

5 BARBOSA,Frederico. Contracorrente. São Paulo: Iluminuras, 2000. De Régis


Bonvicino: Ossos de borboleta. São Paulo: Editora 34, 1996 e Página 6rfã. São
Paulo: Martins, 2007.
6 WEINTRAUB,Fabio. Novo endereço. São Paulo: Nankin Editorial 1 Juiz de Fora:
Funalfa, 2002.
7 MARTINS,Alberto. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.
8 Numa resenha de três livros de poesia lançados em 2007, Fabrício Carpinejar
diz: "A principal força da tripla aparição é a retomada da poesia engajada. Ela se
torna possível, desde que feita sem partido e finalidade. E distinta poesia políti-
ca, fundada na ironia inteligente, numa cadeia imaginária e solidária entre os
amigos e na readequação do verso à síncope urbana. Abruptos quando necessário,
mas sem sacrificar o lirismo". ("Livros retratam a pulsão da capital paulista".
Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 27/0112008, p. D2).
SITUAÇÃO DE síTiO 181

ra esta ainda continue em vigência, ou continuará por bom tempo como


coadjuvante. Mas a questão que me interessa aqui é saber por que uma
poética ancorada na rarefação, ou então na dissolução da referência, quer
agora contextualizar a referência? É possível dentro da poesia feita de
poesia essa volta?
Que surpresa não foi para os leitores o aparecimento de "Sítio"9 da
parte de Claudia Roquette-Pinto, a poeta contemporânea que parecia até
então trancada no seu universo privado e burguês, alinhada a uma poesia
delicada, erótica e feminina. É bom lembrar que ela começou a escrever
nos anos 1980, mas nunca adotou o tom confessional nem usou a imagina-
ção poética, como fazia a poesia liberada daqueles tempos, para apresentar
a mulher como sujeito, como polo ativo e manipulador (recuperando invo-
luntariamente o imaginário patriarcal do ângulo feminista). Ao contrário,
retomou certa expressividade, tons e tópicas tradicionais do lírico para
escapar aos clichês do feminismo, reconhecendo quem sabe que a "libera-
ção" deu problema e o quanto tal emancipação tinha de insatisfatória. A
melhor definição dessa estratégia chegou com o livro cujo título é justa-
mente Corola 10, publicado em 2000, em que seu jardim imaginário assina-
lava com um quê perverso tal dissidência. Quase ninguém viu a provoca-
ção desse jardim que não conhecia ruptura alguma entre público e privado.
Apontada muitas vezes como intimista, metaforizante, fechada em si mes-
ma e fora da vida, Claudia certamente escreveu "Sítio" para responder à
incompreensão que cercava o seu trabalho.
. .
/
SITIO

o morro está pegando fogo.


O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopeia:
olhos acesos, suor de diesel,

9 Publicado pela primeira vez na revista Inimigo Rumor (Rio de Janeiro: Viveiros
de Castro Editora, n. 10, maio de 2001, p. 54). Republicado em outras revistas de
poesia, em versões modificadas, foi incluído como poema de abertura do livro
Margem de manobra (Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005, p. 11-12)
\O ROQuETIE-PINTo,Claudia. Corola. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
182 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

ruído motor, desespero surdo.


O sol devia estar se pondo, agora
- mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugaqa, ~.
muda na 'caiia refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras: .
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: "Pai!
acho que um bicho me mordeu!" assim
que a bala varou sua cabeça?

É um poema construído por incertezas, desde o primeiro verso, pela


hesitação entre o.que se sabe e o que não se sabe, ou pela indecidibilidade,
para usarmos um termo da moda, mas indecidibilidade aqui estranhamente
ligada a recursos da descrição. Tem o poeta condições de ver e descrever
o que ele vive, se nem sabe que acontecimento é esse? A construção colo-
quial "[O morro] está pegando fogo" funde planos de sentido que vão do
referencial imediato (incêndio), à locução popular corrente (tem briga, tem
complicação, tem bafafá), à transposição metafórica: atmosfera de medo e
desespero com chamas, fumaça, fuligem, reais ou não. Assim como o títu-
lo admite muitos significados (lugar definido, terreno, pequena fazenda,
assalto, ataque, estado de sítio).!l O horizonte está nublado, empoeirado,

11 Ver a análise de Marcelo Sandmann, "Poesia em estado de sítio", que faz um le-
vantamento exaustivo das possibilidades referenciais do poema (Sebastião, São
Paulo: n. 2, 2002, pp. 82-87).
SITUAÇÃO DE síno 183

enfumaçado, irrespirável, não se enxerga nada, não se pode sequer saber


se o sol está se pondo - um clima de sufocação que culmina na imagem do
"céu invertido", equivalente à tópica do "mundo às avessas", figura clás-
sica de catástrofe, de mundo fora-de-ordem. O poema está centrado numa
natureza hostil, convulsionada por uma corrente opressora, contra a qual
não há consolo, não há saídas. Mas que conflagração é essa que altera
tudo, o ar, o movimento do corpo, o trânsito e os elementos da natureza? E
que transtorna as imagens, expandidas em metamorfoses sucessivas que
conferem atributos animais ou humanos aos carros, ao engarrafamento, à
beira de uma espécie de desespero autista ("desespero surdo" contrapos-
to a "ruído motor").
A metamorfose do dado objetivo em digressão metafórica é construída
pela sequência de sete blocos oracionais delimitados por ponto, exceto o
último em que dois pontos anunciam a citação de uma notícia, escrita ou
falada, aparentemente elucidativa. Todos os blocos são compostos para
explicar o verso inicial, cuja condensação de sentido merece ser desdobra-
da e parafraseada, embora nada se esclareça suficientemente, ou melhor,
nem o fato bruto oferece a referência que falta para completar a contextua-
lização. Nessa atmosfera de distinção difícil, criada pela indecidibilidade
e pelos deslizamentos de sentido, não há causas nítidas ou determinantes
- até a bala é um bicho, a fala da vítima um equívoco.
Claudia Roquette-Pinto é poeta que manteve interlocução por assim
dizer sistemática com várias frentes da poesia contemporânea (Poesia
Concreta, Sylvia Plath, Paul Celan, Language Poetry, entre outros), além
de uma experiência comum ou geracional afina~ coÍn poetas brasileiros
de tendências diferentes, como Carlito Azevedo, Régis Bonvicino e Anto-
nio Cícero. Mas desde o início ela, que não se fechou numa tendência só,
fundiu experiências internacionais e nacionais preferidas, incluída a van-
guardista, e vinculou sua mescla a uma tremenda carência lírica. É o que
cria o curto-circuito da força artística do poema de que tratamos.
"Sítio" se estrutura portanto a partir de um complicador: a dificuldade
em lidar com a referência, porque Claudia participa daquela tendência
contemporânea dominante que cultiva a desrealização do referente, o
lacunar, imagens obscuras e autônomas, a pura textualidade das designa-
ções em cadeia, cuja prática poética não se disciplinou na relação com o
dado imediato da realidade. Daí a ousadia de um poema como esse, que
está experimentando a partir de uma poesia referencialmente rarefeita a
explicitação referencial, sem abrir mão da imagética introspectiva que é
própria da autora. E como ela faz isso? Mostrando ou criando afinidades
entre o seu mundo mais privado e a situação soci&ldo Rio de Janeiro, do
184 CAMINHOS DA lÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

morro, da violência urbana, entre as suas imagens secretas e prediletas e


esse mundo lá fora. "Sítio" generaliza para o espaço urbano sentimentos e
sensações que a poeta desenvolveu no âmbito de sua própria insatisfação,
explicando desse modo a psicologia aparentemente reclusa de Corola.
Pois foi a partir deste livro que seus poemas passaram a tratar do medo e
da violência por meio de dilemas perceptivos e sensoriais: "Suspenso na
rede do sono na tarde indecisa! em ser, ainda, tarde, ou ver-se noite/ o
corpo, em seu torpor, não acredita! sequer na hipótese de um corpo/ (em
morte, em vida, e/ o que dizer do encontro).,,12 Ou: "Dentro do pescoço/ o
poço, vazio,! caindo intempestivamente/ até que o fio/ da expiração se es-
tique/ o ar arrebente o dique/ do que insiste em ser/ oco [...]".13 Neste con-
junto de poemas inquietantes, que fogem ao ramerrão da produção con-
temporânea, existe um estudo obsessivo de processos de introspecção
e descontrole, muitos deles traduzidos em situações incessantes de verti-
gem e queda. Tais pr~cesllOscompõem uma estrutura radical de insatisfa-
ção, cujas figurações' imagéticas, por vezes perversas e até masoquistas,
revelam o quanto o ensimesmamento está tomado pela sociedade presente;
o jardim, ou seja, o mundo privado, já fora invadido pela conturbação ex-
terna (a mesma de "Sítio"?) e o sujeito poético dilacerado pela violência
de sua imaginação e de suas emoções - em Corola são os próprios senti-
mentos que estão em estado de guerral4. Digamos que aí a poeta estives-
se buscando técnicas para expor o custo físico e emocional de sobreviver
no inferno da violência urbana, que não é diretamente nomeado, mas figu-
rado em muitas variações de aflição, pânico, insegurança e asfixia, sempre
dentro do pequeno território de um jardim, quase um mundinho dickinso-
Diano de flores, bichinhos, vida e afazeres caseiros. 15

12 ROQUETIE-PINTO, Claudia. Corola, p. 19.


13 Idem, p. 49.
14 Em depoimento na mesa-redonda "Poesia tem sexo, sexo tem poesia?" (Itaú Cul-
tural, São Paulo, 22/111 2004) Claudia Roquette-Pinto declarou que os temas bá-
sicos de sua poesia são amor e guerra.
15 Não foi a impressão que na época teve Carlito Azevedo ao resenhar o livro: "A
metáfora é um instrumento perigoso, tanto pode ser nociva, ao transformar qual-
quer coisa em qualquer coisa, anulando a diferença e especificidade de cada coisa,
como pode ser 'revelação', como se pela metáfora o que falasse fosse justamente
a voz da diferença. Felizmente, em Corola, há uma predorninâcia deste segundo
tipo de metáfora, como no caso da estranha e forte 'árvore de fogo', ou do 'buquê
de ruídos' que as abelhas inauguram sobre uma flor de cerejeira. Mas há também
metáforas meramente retóricas, nada distantes do omamentalismo retórico da ge-
ração de 60: 'despir a esperança' 1 como uma mortalha'. Arrisco aqui que essa
ultrametaforização do mundo tem relação absoluta com o fato da autora colocar
entre parênteses a experiência urbana." ("A vida como metáfora", no.com.br, 16 de
novembro de 2000, no site www.no.com.br/revista. acessado em 14/0312004).
SITUAÇÃO DE síTIO 185

Em resumo, Claudia traz para "Sítio" os símbolos desse universo reclu-


so e joga-os para o plano explícito da realidade, usando todavia os mes-
mos recursos poéticos anteriores, a par do descontrole expressivo que lhe
é próprio, para incluir no poema a circunstância do dia a dia do Rio de Ja-
neiro, ainda que não a domine por inteiro e deixe expostas as dificuldades
e limites dessa inclusão. Observe-se a recorrência de imagens caracterís-
ticas de toda a sua poesia, geradas por referências domésticas (panos
úmidos, caldo sujo de claras em neve), amorosas (coração das rosas), ar-
quitetônicas (cúpula), florais (crisântemos, margaridas, rosas), as quais ela
agora pretende remeter ao contexto da violência urbana. Para aumentar a
estranheza, o acontecimento é narrado como um fenômeno natural, atmos-
férico ou climático, inclusive pelo uso de prosopopeias alucinadas de pre-
dileção da autora, como se lê no quinto bloco: o mar, que aí não se abre
para horizonte algum, é representado como um cachorro hidrófobo em
convulsões de espuma, sempre à beira da morte. A desordem é acompa-
nhada pela natureza, como se a premonição de morte fosse aos poucos
engendrada pela própria paisagem, naquele sítio. Esta opção descritiva,
por sua vez, prepara e acentua a quebra do bloco final.
De um foco aparentemente centralizado, o poema apresenta diferentes
tomadas da zona do conflito (o morro, o ar, os carros, o sol e o céu, o mar,
o fuliginoso jardim, a caixa refrigerada, o menino na varanda), as quais,
por assim dizer, deslizam ou se alternam da angulação objetiva para a sub-
jetiva. Os versos mais denotativos, como "Os carros, no viaduto", logo se
transformam numa metaforização irritada até chegar ao auge do desespero
anônimo. A autora joga sistematicamente, desde.,.. a gt:iméira linha, com a
possibilidade de a informação denotada ser corroída e modificada pela
gratuidade da imagem poética. Outro recurso influente para o deslocamen-
to do sentido, num fluxo contínuo até os dois pontos fatais, é o reforço de
tonicidade (assim Antonio Candido designa a tendência a extrapolar o es-
quema rítmico convencional do verso medido pela multiplicação de tôni-
cas intermediárias), que sobrecarrega o verso com acentuações fortes,
espelhadas pelas rimas toantes, gerando um efeito de suspensão, opressão
e lerdeza que subjetiviza a denotação: "[o] mOrro estÁ pegAndo fOgo.!
[o] Ar incÔmodo, grOsso, /fAz do menOr movimEnto um esfOrço,". Esse
modo de trabalhar os planos objetivo e subjetivo assinala a dificuldade de
separá-los em meio à conflagração e o quanto o acontecimento externo
contamina a intimidade.
São vários os fatos e acontecimentos que ocorrem em momentos dife-
rentes do dia: no entardecer (meio indeterminado) e na madrugada (mais
definida). Entre eles há uma indicação temporal no pretérito perfeito
186 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

("deitou") que quebra a descrição do presente imediato e introduz a dura-


ção temporal (pela locução gerundiva "vai escurecendo") na rotina ininter-
rupta de fumaça, fuligem e sufocação - "penugem antagonista" - que con-
tamina "dia a dia" as flores do jardim privado como uma espécie de
floração nova e ecológica do medo. O episódio do menino e da bala perdi-
da é um desses fatos, porém acrescentado à composição sob a forma explí-
cita de colagem de notícia ou relato oral - fecha o poema em chave
ultrarrealista que, em retrospecto, transforma o que veio antes. Usuais na
poesia de Cláudia, colagens de materiais externos, na forma de excertos ti-
rados de outros textos ou de empréstimos de passagens, partes de frase ou
palavras, aparecem frequentemente destacados pelo itálico, expondo a
convergência entre a circunstância do poema e as leituras da autora, mui-
tas casuais como ela mesma assume. A inserção arbitrária, muitas vezes
prosaica, comenta de outro espaço a carência lírica que se formulava por
introspecção, para ressal,tar, salvo engano,'que esta é dessacralizada e não
dispensa o dado ,objetivo mesmo que colhido em leituras passageiras. Ou
então para ressaltar que a impureza do lirismo admite a situação parafrás-
tica, a glosa infinita, certa intertextualidade ou ironia despistadora. Em
"Sítio" não há gratuidade, a citação em itálico cola no texto um pedaço de
notícia que desvenda (em parte) o significado das cadeias imagéticas an-
teriores, lançando a opacidade destas noutro patamar, menos cifrado ou
alusivo. Estranha à empostação e ao padrão imagético dominante no poe-
ma, a aposição realista do episódio da bala perdida tem sua dose de inde-
terminação, melhor, de incerteza, análoga às digressões metafóricas e pro-
sopopeias. Tanto que, no coração da notícia, a fala do menino vem trans-
crita em tipo redondo, como se já estivesse incorporada ao texto e fosse
justamente ela também uma fala da poeta.
Até onde posso ver, o poema confronta uma situação protegida de medo
(no abrigo de um sítio, um apartamento, uma casa, o que for) com a cena
da criança exposta a uma bala perdida numa varanda (quando?). É este o
instante de rompimento da condição protegida nessa varanda vulnerável,
momento em que a vítima perde por assim dizer a proteção imaginária de
seus medos. O arranjo formal atesta que a poesia que oferece proteção por
imagens falha diante da bala perdida e precisa empreender uma volta à
referência, mesmo que com isso se rompa o ritmo, a imagética e o timbre
da escrita. Por ser o poema meio desconjuntado, na alternância de regis-
tros descritivos e expressivos, o achado poético é notável, ao reproduzir o
mesmo desconhecimento da criança sobre o que se passa - vide a fala ina-
dequada do menino num momento grave: "Pai! acho que um bicho me
mordeu!". Vejo aí a sugestão de similaridade entre a criança baleada e
SITUAÇÃO DE siTIO 187

o ponto de vista do poeta, cuja posição é equivalente à do menino que


morre sem saber o que está acontecendo e pronunciando uma fala também
imagética (mordida de um bicho pateticamente metafórico).
Uma onda de perplexidade retroage pelo poema todo. Nesse sentido, a
grande fala que o poeta poderia enunciar seria com toda probabilidade
uma expressão errada numa hora errada - de quem morre por acaso ou
por engano por uma bala perdida (sugestão reforçada pela tipologia)16.
Esta pode ser uma alegoria do que é fazer poesia hoje numa sociedade
como a brasileira: o testemunho que o poeta pode dar está aquém dos
acontecimentos, ele não tem uma visão clara do que está se passando, sua
solidariedade é restrita e seu alcance político nulo. Aqui a indecidibilidade
se torna fator de agonia, medo, desespero e cria um clima de aberração e
emudecimento, pois a voz que o poema acolhe como sua é a voz de um
morto. A fala da criança, apesar do engano, tem uma espécie de clareza
inútil e terminal sobre a psicologia do estar em sítio.
Lembro que a palavra que indicia presença humana está situada em
posição sintaticamente indeterminada nas duas ocorrências: "entre panos
úmidos, mudos" e "De madrugada,! muda na caixa refrigerada," (além do
possessivo de "e vem acabar na nossa porta"). A mudez dá pista de que o
humano está intimidado, deixando ver na referência cifrada uma intenção
generalizante. A mesma intenção de "tímpanos, pálpebras:", perdidos no
meio do tiroteio, sem ouvir e enxergar, mas destacados pelo corte do ver-
so. Todos estão mudos em "Sítio", menos o menino que solta suas últimas
palavras em meio a um mar de ruídos, fumaça e tiros:
Apesar dos dêiticos de proximidade (agora,4está, este, nossa) e dos
verbos no presente, que organizam as relações espaciais e temporais do
discurso, a ausência de marcas explícitas da subjetividade tem sentido for-
te, a indicar o estatuto instável do sujeito na figuração da cena e sobretudo
que a circunstância individual conta pouco para entendê-la e explicá-la.
Ainda assim, a poeta cria imagens e sonoridades para algo de que não
sabe a extensão nem o teor real, todas marcadas, como vimos, pela inde-
terminação do que é objetivo e subjetivo: a atmosfera de fora é sentida por
um corpo caseiro como andar .em claras em neve, assim como o sol não
pode ser avistado sob a poeira. A própria existência do mar que traz con-
forto interior, vem agora, em movimento contrário que anula a quietude da

16 Ou como sugere Marcelo Sandmann: "A bala terá certamente sido disparada no
primeiro verso, para chegar a seu alvo no verso derradeiro, depois de uma
distensãô temporal impressionante e uma trajetória que agrega/desagrega todo o
complexo de espaços (naturais e sociais) da grande metrópole."(Op. cit., p. 86).
188 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

contemplação, morrer ao mesmo tempo como imagem e realidade. Desse


modo, o sujeito vai assumindo que não domina nem temporal nem espa-
cialmente o problema que está abordando, sempre em busca de algo maior
que transcende a experiência pessoal e coletiva, mas que não se sabe o que
é e pode ser uma experiência traumática. A imagética sensorial e percep-
tiva está ao longo do poema associada às limitações do corpo, que não
alcança a cena. O corpo está emperrado, travado; mesmo os corpos dentro
dos carros também não conseguem atravessar esta "cúpula de pó". Os
objetos perdem nitidez até que a enigmática "carga de agulhas cai quei-
mando / tímpanos, pálpebras:", como se fosse o fogo anunciado na abertu-
ra. A violência banalizada está patente nos objetos, utensílios e tarefas
diárias, ou no jardim, cada coisa transmutada pelo medo em metáforas
vagamente autônomas, cuja aparência ameaçadora rnimetiza a percepção
de quem tudo experimenta como espectador aterrorizado (testemunha que
não enxerga). O corpo vtri sendo arrastado a seu limite, testado na sua ca-
pacidade de agúentár a pressão, que pode ser tão concreta quanto o pró-
prio medo. Enfim, tudo o que diz respeito ao corpo está marcado por len-
tidão, mudez, intransparência, paralisia, enquan'to a notícia proveniente de
uma fonte externa (rádio? televisão? voz?) é clara, nítida, objetiva. É a si-
nopse esclarecedora que chega para situar toda a cena. Contudo, a carga
estetizante dos versos anteriores era aflitivamente opaca, ao passo que a
informação externa e em itálico, que oferece uma verdade simples e dire-
ta, a chave dos acontecimentos descritos, capta muito pouco da experiên-
cia do poema. A sucessão de imagens fragmentadas e poetizantes registra-
va a miséria do corpo, com sua imaginação reduzida a paranoia e medo,
sem discernimento maior e sem reação crítica. Mas se o factual da notícia
rompe aquela cadeia imagética, a poetização não exclui o factual, ganha
com sua inserção. Eis o alcance desta construção formal que, entre outros
acertos, é também uma maneira de mostrar que um poema difícil, enigmáti-
co, sobre uma situação já corriqueira nas grandes cidades brasileiras, rebate
a urgência da mídia, que naturalizou e banalizou a violência, tanto quanto se
subtrai às exibições de denúncia ou compaixão literárias, que por sinal são
mesmo inúteis diante do tamanho e da irresolução do problema.
A propósito, com finalidade de comparação, vale a pena mencionar
aqui o último livro de Régis Bonvicino, Página órfã, que surpreendeu por
acentuar e expandir, em larga escala em relação a seus livros anteriores, a
precisão da referência para dar conta da conjuntura de guerra e luta social
que atravessamos. Nele se encontra a mesma matéria do poema de Clau-
dia, embora seu registro direto seja agressivo, os elementos líricos perma-
neçam intocados, os materiais de colagem e o zapping de linhas, marcados
SITUAÇÃO DE sino 189

pelo realismo incisivo, pareçam anunciar uma enérgica resposta política.


Este livro, que se arrisca muito no enfrentamento do resultado da crise do
capitalismo contemporâneo, apanhada em múltiplas situações, países e
línguas, extravasa uma indignação aparentemente explosiva, uma gesticu-
lação exacerbada de ativismo que não articula (sobrepõe apenas) as ima-
gens do horror econômico. O poeta percorre freneticamente cenas de cida-
des apinhadas de pobres e mendigos, ruas cheias de lixo e sucata, ao lado
do exibicionismo dos ricos, da indústria da moda, dos ícones do consumo,
como se a poesia, transcrita numa objetividade ostensiva, tivesse o frescor
do grafite. Mesmo que tudo seja invariavelmente exposto em fragmentos,
citações, recortes, a plenitude literal do mundo on line a apodrecer fica
sempre preservada para assegurar a radicalidade dessa exposição vexami-
nosa. Tudo é feio, fétido, podre, obsceno, e esse pitoresco negativo é tão
espetacular quanto é exultória a violência antidiscursiva do poeta. Cenas e
imagens irrompem (ou nos atacam) esquematicamente, como numa peça
publicitária ou de agit-prop: a máquina de contrastes dos poemas está
sempre equiparando sujeira e consumo, selvageria e técnica, top models e
mendigos. Em contraponto à barbárie total surgem recorrentemente, em
espaço contíguo, instantes de lírica da natureza, flores e vegetação de no-
mes raros, assinalando o ritmo eterno e indiferente da natureza como uma
pastoral dentro do lixo. Negatividade artística para Bonvicino é o poema
deliberadamente grosso, antipoético, repleto de miséria e sujeira, mas cuja
abjeção é um termômetro da fibra de quem o escreveu.
Noutras palavras, o resultado lamentável de uma era de globalização e
neoliberalismo se converte por um reducionism<?,.,gritánteem Página órfã
na contraposição da desgraça dos pobres à obscenidade escandalosa dos
ricos e famosos, contraposição que se repete vezes sem conta - o que é
muito pouco para uma poesia política que ainda apregoa dialogar com a
Language Poetry. Nessa militância imaginária, entre indignação e fúria,
Bonvicino dispensa qualquer simpatia social, confiando apenas na heroi-
cização moralista de sua negatividade. Afinal, a sociedade contemporânea
é um mundo que não pode ser compreendido mas tão somente odiado (o
ódio é aqui alçado a reação política), e a espetacularização da catástrofe
pode ainda oferecer uma saída honrosa, ou uma construção regeneradora,
para o poema em meio a tanta degradação, da qual ele está fora. Tal como
a borboleta do poema "Página", que sabe de ramo em ramo reinventar seu
mimetismo, o poeta vê que o que existe mesmo é "a flor da azálea / o lixo
real, / e o verdadeiro / desta página"I? Fabio Weintraub, que discutiu o

17 Página órfã, p. 84.


190 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

lado moralizador da escámoteação (pós-moderna?) desse sujeito poético,


apontando o sistema de compensações que subsiste nas ambivalências da
fé última na verdade da poesia, observou certeiramente: "Sobretudo no
que tange à venalidade, o tom de reprimenda é ainda reforçado pela marca
de distinção que o eu lírico se atribui, figurando-se como um 'mau nego-
ciante de inutilidades', fabricante de algo que não se vende, portador da
redentora "praga das palavras" ("Prosa"). II Em contrapartida, nos poemas
habitados por mendigos e toda sorte de refugo humano, não há propria-
mente deslocamento ou cisão da voz lírica [... ] - ela não assume o ponto
de vista daqueles a quem retrata, nem se instabiliza radicalmente a ponto
de prescindir de pausas epifânicas."18 A poesia é aqui só exterioridade ao
que é dito e descrito, assim como cabe à sua linguagem dar proteção e
assertividade à posição de classe do poeta, que parece blindado contra a
miséria e a barbárie.
Mas como tratar a viqlência e não apenas incluí-la no poema? Claudia
Roquette-Pinto não/se furta à dureza dos fatos, interessada que está no
estudo do medo como matéria de uma poesia que tenha pertinência para o
seu tempo. Está interessada em figurar o império de uma violência indeter-
minada e disseminada, que molda o ritmo do cotidiano, colonizando a ci-
dade, deturpando o sistema emocional de seus habitantes. Tudo é neuroti-
camente normal nesse sofrimento recolhido em meio ao caos - é um ângu-
lo perplexo e rotinizado, bem diferente da objetividade assertiva e vistosa
com que Régis Bonvicino registra em Página órfã a aberração que avassa-
la uma sociedade dividida entre a miséria das ruas e o desaforo do consu-
mismo. Voltando a "Sítio": aí se valoriza a contaminação entre externo e
interno, entre o eu e o que está pegando fogo, em seu sofrimento sem dis-
tância ou escapatória, pois a desestruturação do mundo privado coincide
na sua descrição com a conflagração morro afora. Talvez seja o caso de
ressaltarmos na solução poética de "Sítio" a ousadia de uma técnica um
tanto enviesada, mas eficaz, de encostar na vida. Não há brutalismo, por-
tanto não se privilegia a excitação hedonista do consumo da violência,
com seu excesso de abjeção, por meio de imagens chocantes e abstratas -
como faz a mídia o tempo inteiro, franqueando uma ilusão de proximidade
que dessensibiliza e dessolidariza. Tanto é verdade que a colagem de um
relato não implica em "Sítio" sobrecarga factual alguma, ou valorização
do documento ou da informação prévia, visto que a referencialidade e a
literalidade são postas em dúvida pelo todo do poema, cuja contundência

18 WEINTRAUB, Fabio. "Caos moralizado". K Jornal de Crítica. São Paulo: n. 12, ju-
nho 2007, p. 7.
SITUAÇÃO DE síTiO 191

depende do confronto de imagem e realidade. Em linha contrária ao feti-


che da literalidade, a presença da violência ressalta o torpor físico num
espaço social que se estreita, confinando a atividade mental a uma profu-
são de fantasias de destruição, neuroses e fobias (a mesma que leva a in-
dústria do medo a clamar sempre por um reforço de repressão e seguran-
ça). Alastrada pelo poema, a violência se desdobra em temas conexos
como proteção imaginária, desproteção real, incomunicação, fetichismo,
terror, opressão física e psíquica, que desenham um quadro objetivo mais
complexo e nuançado da dissolução da sociabilidade, a qual se reflete no
indivíduo confinado. Mesmo fora do confronto, a vida em contato com a
violência se esteriliza, a neobarbárie da praça de guerra concerne tanto aos
protegidos quanto aos envolvidos diretamente nela: os protegidos também
vivem como miseráveis, são outros miseráveis, aqueles que habitam a
clausura da propriedade ("na nossa porta", "na caixa refrigerada"19). A
vida protegida alimenta a cultura ~o medo, produzindo mecanismos de
recalque e esquecimento, círculos viciosos de culpabilização e compaixão
ou, então, uma aceitação tolerante da desigualdade social, da segregação
dos pobres, da imposição de um modo único de vida e consumo. "Sítio" é
um raro poema sobre o custo interior dessa sobrevivência.
Dito de forma sumária, o que a poesia de Claudia Roquette-Pinto vem
experimentando é um padrão novo de resposta artística à experiência do
presente, a partir de formas de meditação que não se subtraem aos aspec-
tos destrutivos das transformações da vida urbana - o mesmo padrão que
vejo em Valdo Motta20, embora tratado de um ângulo de classe diametral-
mente oposto. Ao mesmo tempo que entram no .~onffito social, ambos pre-
ferem formas mais complexas de representação que possam captar o de-
samparo do indivíduo diante da modernidade de forças poderosas que ele
não alcança; ambos não acreditam que a verdade da poesia passe incólu-
me pela miséria contemporânea, que está onde menos se espera e não só
nos espaços em que se costuma segregá-la. São poetas que assumem a
vulnerabilidade da poesia e expõem as carências do sujeito, sempre em
correlação com a complexidade de um processo externo, que se cumpre à
distância, em cuja atualidade eles identificam situações sociais novas (e
seus figurantes) no sítio do contemporâneo, não importa se a referência é
clara ou rarefeita. Nesse quadro, o poeta pobre como Valdo Motta olha

19 O que pode significar uma caixa assim, ainda por cima reforçada pela gelada e
entorpecedora rima "madrugada I refrigerada": um quarto? um apartamento? ou
uma gaveta de necrotério? ..
20 Desenvolvi esse aspecto em "Revelação e desencanto: a poesia de Valdo Motta"
(Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n. 70, novembro 2004, pp. 209-233).
192 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

para a tradição em busca de riquezas que precisam ser expropriadas pelos


que não tiveram acesso a elas, com um prazer alegre e destemido de autos-
superação; ao passo que um poema como "Sítio", mas sobretudo um livro
como Corola, agarram-se à figuração da miséria interior dos protegidos e
de um sofrimento intérmino, a se atravessar. Enquanto Claudia acentua a
intensa e opressiva irrelevância do presente, em que sujeito e humanidade
estão acuados, sem consolo nem perspectiva de saída, Valdo Motta desen-
volve fantasiosas formas de automistificação que mostram a desproporção
entre a grandeza da missão e a precariedade de meios de um vate orgulho-
so, deblaterando contra as adversidades do mundo.
Se questões dessa ordem voltaram a frequentar a pauta atual da produ-
ção poética brasileira, e podem hoje ser verificadas num conjunto expressivo
de obras, são ainda raríssimos os momentos, salvo melhor juízo, em que
passam a interferir no processo de composição do poema e a discutir os
mecanismos de subjeüvafão, da imaginação mais privada, da imediatez lí-
rica, das formas de ~presentação do mundo contemporâneo - as exceções
merecem por esse motivo ser estudadas e debatidas. Sendo assim, não po-
deria terminar esta análise sem, a título de provocação, perguntar por que
a relação com a tão insatisfatória realidade atual demorou tanto a chegar à
poesia num país em que a violência é constitutiva da própria sociabilidade:

a) Foi preciso que criadores de outra extração social (Paulo Lins, rappers,
presidiários, a subliteratura marginal de Ferréz etc.) lançassem publica-
mente esses temas, por meio de formas que a muitos pareceram toscas
e neonaturalistas?
b) Ou que o fracasso do neoliberalismo se explicitasse inteiramente, ao
longo do segundo mandato de FHC (1998-2002), com sua desmobili-
zação, inércia e agravamento das irresoluções, para que os produtores
culturais se animassem a entrar nessa realidade sociocultural próxima
e desconhecida?
c) Ou terá sido o próprio atraso da esquerda brasileira, como está se evi-
denciando no completo êxito do governo Lula, que não estava prepara-
da para pensar de modo independente e criticamente os impasses da
sociedade globalizada, sem recursos de desenvolvimento?
d) Ou então pode ter sido a massificação vertiginosa da sociedade brasi-
leira, posterior a 1964, que fez com que a literatura perdesse a sua au-
diência de classe e não tenha conseguido se articular com as mudanças
sociais vividas desde então?
e) Ou as formas construtivistas das vanguardas poéticas surgidas desde os
meados do século XX, em conjunto com as formas de nacionalismo e
SITUAÇÃO DE síTiO 193

populismo, que tanto marcaram a poesia brasileira, foram (ou são ain-
da) impedimento à invenção de experimentos poéticos avançados, ca-
pazes de formular a crise contemporânea? É isso o que poderia expli-
car por que os poetas chegaram tardiamente a esses temas num país
que já teve a antilira de João Cabral, a estética da fome de Glauber
Rocha, o Cinema Novo, a obra de Iberê Camargo do período final, a
música popular com seus casos de amor e seus casos de polícia, o ima-
ginário da violência social e do mando autoritário em Graciliano Ra-
mos e Guimarães Rosa?
f) Ou, por fim, a larga aceitação de um ponto de vista teórico e estético
que condiciona a existência de complexidade (e criatividade) literária
à desrealização referencial, à recusa da disciplina mimética, à indeter-
minação de sua matéria, não terá retardado a incorporação distanciada
e crítica da violência contemporânea? Flora Süssekind, que num texto
recente chegou à mais acabada formulação desse ponto de vista, é
taxativa: só se pode considerar uma obra complexa quando sua forma-
lização não se atém, ou não se rende, à atração mimética e à represen-
tação contextual, mas a desestabiliza, ou consegue sabotá-la, pela de-
riva, dissipação, perversão ou pelo informe (os termos são dela) para
potencializar as estratégias do oblíqu021. Ou, ao contrário, não seria
mais produtivo sugerir que tal preceito da teoria contemporânea é o
que tolhe o conhecimento da experiência pela forma da poesia?

Sabemos que a poesia brasileira contemporânea sofre de verdadeiro


complexo de inferioridade diante do padrão é.~co-éngajado d,o rap mais
comercial, profundamente ligado à experiência da pobreza. E claro que
poemas como "Sítio" e a poética de Corola são ainda raros e certamente
não podem ser considerados uma alternativa ao simultaneísmo tosco e
ultrarrealista desse gênero musical. Porém, algo decisivo da realidade his-
tórico-social não lhes escapa, nem a poesia permanece impotente e sem
voz na circunstância dos conflitos que a afetam, os quais, como vimos, ela

---
21 Diferentemente do ponto de vista que esboço aqui, Flora Süssekind em "Dester-
ritorialização e forma literária. Literatura brasileira contemporânea e experiên-
cia urbana" (Literatura e Sociedade. São Paulo: n. 8, 2005, pp. 60-81) apresenta
um amplo painel de obras que desenvolvem estratégias de abordagem da violên-
cia: "... é fundamentalmente um imaginário do medo e da violência que organiza
a paisagem urbana dominante na literatura brasileira" (p. 65). Apesar da abran-
gência sociológica desse estudo, com muitos dados paralelísticos, sou de opinião
que o seu exemplário de espaços não-representacionais e operações de desterri-
torialização refere-se à violência em geral, sem considerar a particularidade his-
tórica do fenômeno que se alastrou a partir dos meados da década de 1980.
194 CAMINHOS DA lÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS

interioriza. Por último, pàra completar esse quadro, não me furtarei a dizer
que deveríamos dar o braço a torcer ao fato de que a Indústria Cultural
soube se apropriar, reelaborar e apresentar internacionalmente esta socie-
dade nova e degradada que é o Brasil, na atualidade consternadora de sua
luta de classes selvagem e desqualificada rumo a um patamar mais demo-
crático de consumo. Terá sido mais sensível aos fenômenos sociais resul-
tantes do colapso da modernização do que os profissionais exigentes da
poesia e da teoria, quer dizer nós mesmos que estudamos a poesia contem-
porânea. Para nosso espanto, tenho de perguntar: a arte exigente tem me-
nos inquietação hoje no Brasil do que a vulgaridade da Indústria Cultural?

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