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TERClO REDONDO
(ORGANIZADORES)
li
UNtcAMP ,
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
Bt8L10TECA
Copyright © 2013 dos áutores
C191
Caminhos da lírica brasileira contemporânea: ensaios 1 organização Simone Rossinetti
Rufinoni, Tercio Reqondo. - 1. ed. - São Paulo: Nankin, 2013.
200 p.; 23 cIf
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7751-084-9
29/1012013 3 li 10/20 13
Direitos reservados a:
Nankin Editorial
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2013
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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UMÁRIO
Apresentação 7
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PRESENTAÇÃO
5 Cabe mencionar que Eduardo Sterzi e Renan Nuernberger também são poetas e
Vilma Arêas é ficcionista.
14 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
Os ORGANIZADORES
ADÁVERES, VAGALUMES,
FOGOS- FÁTUOS
EDUARDO STERZI
Eu sei. Mas não tenho as provas. Não tenho nem ao menos indícios.
Eu sei porque sou um intelectual, um escritor, que busca acompanhar
tudo o que acontece, conhecer tudo o que se escreve, imaginar tudo o
que não se sabe ou que se cala; que coordena fatos mesmo distantes,
que põe juntos os pedaços desorganizados e fragmentários de um intei-
ro e coerente quadro político, que restabelece a lógica lá onde parecem
reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério.3
Podemos dizer, então, que, para Pasolini - mas também para Saviano -,
Eu sei é o nome de um intervalo trágico entre conhecimento e ação (inter-
valo propício para a imaginação, que pode saber "tudo o que não se sabe"
e pode falar tudo o "que se cala"); Eu sei é, pois, a senha de um saber que
tenta extrair alguma potência de sua própria impotência (o que talvez seja
o paradoxo fundamental de toda arte frente ao real).4 Saviano também
sabe "os nomes dos responsáveis" pela morte de Francesco Iacomino e de
todas as outras vítimas da Camorra - e escreve seu livro precisamente para
decliná-los, coordenando "fatos [...] distantes" (os negócios da Camorra,
como ele demonstra com relatos exemplares, emtora enraizados em Ná-
poles ou Casal di Principe, acabam por se estender a todos os continentes),
pondo juntos "pedaços desorganizados e fragmentários" de modo a formar
um quadro complexo mas coeso, restabelecendo "a lógica lá onde pare-
cem reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério". O próprio Saviano
explica em termos de uma conquista da "possibilidade de escrever" a sua
viagem a Casarsa:
3 Idem, p. 363.
4 Como exemplo dessa potência extraída da impotência, podemos lembrar que "a
reconstrução da verdade a propósito do que aconteceu na Itália depois de 1968"
- reconstrução que, frisa Pasolini, "não é tão difícil", pelo menos quando se con-
ta com a imaginação - estava na base de Petróleo (Petrolio), romance que ele
vinha escrevendo por aqueles dias e que a sua morte deixaria incompleto (só ten-
do sido publicado, postumamente, em 1992).
40 CAMINHOS DA LÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
Numa primeira leitura, talvez não se veja aí mais do que uma afIrma-
ção desencantada da profunda indiferença entre todas as modalidades de
morte, uma vez que a qualquer delas se segue o mesmo nada devastador.
Porém, esta não seria uma interpretação condizente com a complexidade
---
7 Que, sutilmente (consciente ou inconscientemente, o que não importa), parece
cifrar o desejo de uma "morte boa" para si mesmo na alusão a Chaplin, cujo
personagem mais notório, como se sabe, é conhecido no Brasil como Carlitos -
portanto, um quase homônimo do poeta.
Cf. AzEVEDO, Carlito. "O anjo boxeador tenta descrever uma cena", in: Monodra-
ma, op. cit., pp. 118-119.
9 Cf. idem, pp. 11-29 ("Emblemas"), 73-85 ("Dois estrangeiros"), 86-88 ("Limpe-
za do aparelho"), 91-108 ("Monodrama").
10 Idem, p. 47: "Você a reconheéeu/ como sendo a menina! coreana da Central! de
Fotocópias do Catete/ aquela comi camiseta salpicada! presilhas fluo/ mureta! e
hipodérmica pendente/ do braço".
42 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
11 Idem, pp. 35-36; cf. idem, pp. 53-54, 57 ("É a guerra. É a guerra. É essa maldita
guerra ...", ele entoava bem baixinho, resignado, tomando o rumo de volta para
casa [00.]")' 68-69, 71-72, 89-90, 121-134. Cf. Roberto Saviano, Gomorra, op.
cit., p. 134: "Como na Bósnia, como na Argélia, como na Somália, como em
qualquer confusa guerra interna, quando é difícil entender a que lado pertences,
basta matar o teu vizinho, o cão, o amigo, ou um teu familiar. Um boato de pa-
rentesco [Una voce di parentela], uma semelhança é condição suficiente para se
tomar alvo. Basta que passes por uma rua para receber de pronto uma identidade
de chumbo". Sobre as imagens de guerra na poesia brasileira contemporânea, cf.
VVEUITRAUB,2012;LINS, 2012.
12 AzEVEDO,Carlito. "Pálido céu abissal". In: Monodrama, op. cit, p. 55.
13 Idem, "O tubo", pp. 33 e 42.
14 DIDI-HuBERMAN,Georges. Survivance des Lucioles, Paris: Minuit, 2009.
43
15 Escreve Agamben, nas primeiras linhas do ensaio que dá título ao livro lnfanzia
e storia, citadas por Didi-Huberman: ''Todo discurso sobre a experiência deve
hoje partir da constatação de que esta não é mais algo qué'nos seja ainda dado fa-
zer. Porque, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo
foi expropriado da sua experiência: antes, a incapacidade de fazer e transmitir ex-
periências é, talvez, um dos poucos dados certos de que ele dispõe sobre si mes-
mo". AGAMBEN,Giorgio, "lnfanzia e storia. Saggio sulla distruzione dell'espe-
rienza". In: lnfanzia e storia. Distruzione dell'esperienza e origine della storia
(1978), nuova edizione accresciuta, Turim: Einaudi, 2001, p. 5.
16 PASOLINI,Pier Paolo. "L'articolo delle lucciole" (1975). In: Scritti corsari, op.
cit., pp. 404-411.
17 Há uma tradução do texto, com o título de "O artigo dos pirilampos", em Pier
Paolo Pasolini, Os jovens infelizes. Antologia de ensaios corsários, org. Michel
Lahud, trad. Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso, São Paulo: Brasiliense,
1990. Vagalume me parece preferível a pirilampo porque, embora tenha surgido
como eufemismo para caga-lume, sugere algo como luzes vagantes. Mas deve-
mos lembrar que também temos em português a palavra lucíola (proveniente
justo do italiano lucciola), a qual, embora não registrada nem no Aurélio nem no
Houaiss, encontra-se no Caldas Aulete ("gênero de insetos coleópteros teleforí-
deos das regiões quentes da Europa; são brilhantes de noite"), com uma abona-
ção extraída de Fagundes Varela: "As mil constelações se tresmalham quais er-
rantes lucíolas". Vale lembrar que a palavra também aparece no título do célebre
romance de José de Alencar.
44 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
de cinquenta anos antes. Não estamos mais defronte, como todos já sa-
bem, a 'tempos novos', mas a uma nova época da história humana: daque-
la história humana cujos prazos são milenares [le cui scadenze sono
millenaristiche]. Era impossível que os italianos reagissem pior que assim
a tal trauma histórico. Estes se tomaram em poucos anos (especialmente
no Centro-sul) um povo degenerado, ridículo, monstruoso, criminoso"26.
Esta "mutação" sociopolítica, e mesmo antropológica, e o "trauma" dela
decorrente são particularmente sensíveis para quem sempre enxergou nas
tradições e práticas do povo da velha Itália camponesa formas de resistên-
cia ao progresso uniformizador e totalitário. Um homem imbuído de tal
"amor" por seu povo não podia senão interpretar a vertiginosa conversão
dos italianos em massa consumidora como uma catástrofe ou um "genocí-
dio": "Vi, portanto, 'com os meus sentidos' [coi miei sensi] o comporta-
mento imposto pelo poder dos consumos recriar e deformar a consciência
do povo italiano, at~ Urrftl irreversível degradação. O que não acontecera
durante o fascisnio fascista, período em que o comportamento era comple-
tamente dissociado da consciência. Infrutiferamente o poder 'totalitário'
iterava e reiterava as suas imposições comportamentais: a consciência não
estava implicada aí. Os 'modelos' fascistas não eram senão máscaras, a se
colocar e tirar. Quando o fascismo fascista caiu, tudo voltou a ser como
era,,27. Daí que Pasolini assevere drasticamente que "a distinção entre o
fascismo fascista e o fascismo desta segunda fase do poder democrata-
cristão não só não tem comparações na nossa história, mas provavelmente
em toda a história"28.
E daí também que, levando ao extremo as reflexões já ensaiadas em
textos anteriores igualmente lembrados por Didi-Huberman29, desenvol-
vesse os temas do "verdadeiro fascismo" e do "genocídio" até chegar,
pouco depois da publicação do artigo sobre o desaparecimento dos vaga-
lumes, à conclusão radical de que foi antes de tudo o próprio ser humano
que desapareceu na sociedade contemporânea. Numa entrevista publicada
seis dias depois de seu assassinato, Pasolini dizia ao jornalista: "Pretendo
que você olhe em tomo e se dê conta da tragédia. Qual é a tragédia? A tra-
gédia é que não existem mais seres humanos, existem estranhas máquinas
30 Idem. "Siamo tutti in pericolo" (1975), em Saggi sulla Politica e sulla Società,
op. cit., p. 1724.
31 DIDI-HuBERMAN, Georges. Survivance des Lucioles, op. cit., p. 25.
32 Idem, p. 35.
33 É o título do quarto capítulo de Survivance des Lucioles, op. cit., p. 77-97. Cf.
também idem, "Peuples exposés (à disparaitre)", Chimeres, 66-67 (2008) [Morts
ou vifs), pp. 21-42; idem, "Pasolini ou la recherche des peuples perdus", Les
Cahiers du Musée Nationale d'Art Moderne, 108 (été 2009), pp. 86-115; idem,
"Peup1es exposés, peup1esfigurants", De(s)générations, 9 (septembre 2009) [Fi-
gure, figurants), pp. 7-17.
34 Idem, Survivance des Lucioles, op. cit., p. 19.
48 CAMINHOS DA lÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
Referências bibliográficas
anos 1950, a antiga autoriomia esteticista e até, quem diria, o gosto provin-
ciano pelo artesanato do verso. De imediato, esse movimento sem progra-
ma parecia reagir à desqualificação formal e à baixa mímese a que os poe-
tas marginais haviam submetido a poesia brasileira nos anos 1970, embora
tendesse a escapar ao compromisso 'dos confrontos. Sob a fiança de linha-
gens prestigiosas da tradição moderna e já sem propósito radical, a inven-
ção poética se desloca da experimentação dos procedimentos (como no
tempo da vanguarda) para a conceitualização dos conteúdos, tratados fri-
volamente como matéria de variações. O que mudou nesse quadro foi o
peso e o sentido da tradição, que não parece incompleta, nem é considera-
da obstáculo, sequer precisa ser superada ou transformada - agora todas
as tradições estão franqueadas, conquanto o poema desarme a inquietação
autoproblematizadora, caracteristicamente moderna, à procura de dicções
elevadas e pluralistas que desrea1izem sua matéria ao mesmo tempo que a
ornamentem 1. Pensando ,bem, uma retradicionalização desse tipo, que re-
afirma linguagens já/testadas e reassegura a soberania do poético, só pode-
ria mesmo se converter numa proposta de renovação, ou reação às poéti-
cas existentes, num período de regressão social e econômica, como o que
ocorreu simultaneamente ao auge do pós-modernismo internacional, na
segunda metade dos anos 1980. Por estranho que pareça, ou por tudo isso,
uma época de tamanhas transformações e consequências sociais, como as
das duas últimas décadas do século passado, não contou no Brasil com um
ponto de vista artístico relevante da parte da produção poética. A poesia
deixou de ser companheira de viagem do presente, deu as costas aos acon-
tecimentos, os quais no entanto a afetavam no mais íntimo de sua capaci-
dade criativa.
Mais do que uma simples volta antivanguardista ao literário, essa retra-
dicionalização bastante frívola foi uma forma de acomodar a crise da re-
presentação em moldes aliteratados e poetizantes. Em tais circunstâncias,
restou aos jovens criadores - e a outros já não tão jovens - a recombina-
ção desencantada de erudição, o jogo de referências literárias e artísticas,
---
I "Tudo hoje é campo de experimentação ao mesmo tempo: das formas fixas aos
suportes e gêneros absolutamente mesclados, o que pressupõe uma estratégia
que, a princípio, não recusa nada, e de alto risco porque exige jogadores cada vez
mais treinados em quaisquer regras de jogos. [...] Mas o interessante é a convi-
vência civil desses registros, momentaneamente possível." (POLlTO, Ronald. "No-
tas sobre a poesia no Brasil a partir dos anos 70". Cacto. Poesia & Crítica, São
Paulo: n. 2, 2003, pp. 70-71). Como se vê, a simples constatação vai se tornando
uma justificação, que converte o ponto de chegada do contemporâneo num con-
graçamento geral.
SITUAÇÃO DE síTiO 179
2 MELO,Tarso de. Planos defuga e outros poemas. São Paulo: CosacNaify / Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2005 e Ronald Polito. Terminal. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
DOMENECK,Ricardo. Carta aos anfíbios. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005 e a
cadela sem Logos. São Paulo: CosacNaify / Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
4 BARBOSA,Frederico. Louco no oco sem beiras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
180 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
9 Publicado pela primeira vez na revista Inimigo Rumor (Rio de Janeiro: Viveiros
de Castro Editora, n. 10, maio de 2001, p. 54). Republicado em outras revistas de
poesia, em versões modificadas, foi incluído como poema de abertura do livro
Margem de manobra (Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005, p. 11-12)
\O ROQuETIE-PINTo,Claudia. Corola. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
182 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
11 Ver a análise de Marcelo Sandmann, "Poesia em estado de sítio", que faz um le-
vantamento exaustivo das possibilidades referenciais do poema (Sebastião, São
Paulo: n. 2, 2002, pp. 82-87).
SITUAÇÃO DE síno 183
16 Ou como sugere Marcelo Sandmann: "A bala terá certamente sido disparada no
primeiro verso, para chegar a seu alvo no verso derradeiro, depois de uma
distensãô temporal impressionante e uma trajetória que agrega/desagrega todo o
complexo de espaços (naturais e sociais) da grande metrópole."(Op. cit., p. 86).
188 CAMINHOS DA LfRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
18 WEINTRAUB, Fabio. "Caos moralizado". K Jornal de Crítica. São Paulo: n. 12, ju-
nho 2007, p. 7.
SITUAÇÃO DE síTiO 191
19 O que pode significar uma caixa assim, ainda por cima reforçada pela gelada e
entorpecedora rima "madrugada I refrigerada": um quarto? um apartamento? ou
uma gaveta de necrotério? ..
20 Desenvolvi esse aspecto em "Revelação e desencanto: a poesia de Valdo Motta"
(Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n. 70, novembro 2004, pp. 209-233).
192 CAMINHOS DA LíRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
a) Foi preciso que criadores de outra extração social (Paulo Lins, rappers,
presidiários, a subliteratura marginal de Ferréz etc.) lançassem publica-
mente esses temas, por meio de formas que a muitos pareceram toscas
e neonaturalistas?
b) Ou que o fracasso do neoliberalismo se explicitasse inteiramente, ao
longo do segundo mandato de FHC (1998-2002), com sua desmobili-
zação, inércia e agravamento das irresoluções, para que os produtores
culturais se animassem a entrar nessa realidade sociocultural próxima
e desconhecida?
c) Ou terá sido o próprio atraso da esquerda brasileira, como está se evi-
denciando no completo êxito do governo Lula, que não estava prepara-
da para pensar de modo independente e criticamente os impasses da
sociedade globalizada, sem recursos de desenvolvimento?
d) Ou então pode ter sido a massificação vertiginosa da sociedade brasi-
leira, posterior a 1964, que fez com que a literatura perdesse a sua au-
diência de classe e não tenha conseguido se articular com as mudanças
sociais vividas desde então?
e) Ou as formas construtivistas das vanguardas poéticas surgidas desde os
meados do século XX, em conjunto com as formas de nacionalismo e
SITUAÇÃO DE síTiO 193
populismo, que tanto marcaram a poesia brasileira, foram (ou são ain-
da) impedimento à invenção de experimentos poéticos avançados, ca-
pazes de formular a crise contemporânea? É isso o que poderia expli-
car por que os poetas chegaram tardiamente a esses temas num país
que já teve a antilira de João Cabral, a estética da fome de Glauber
Rocha, o Cinema Novo, a obra de Iberê Camargo do período final, a
música popular com seus casos de amor e seus casos de polícia, o ima-
ginário da violência social e do mando autoritário em Graciliano Ra-
mos e Guimarães Rosa?
f) Ou, por fim, a larga aceitação de um ponto de vista teórico e estético
que condiciona a existência de complexidade (e criatividade) literária
à desrealização referencial, à recusa da disciplina mimética, à indeter-
minação de sua matéria, não terá retardado a incorporação distanciada
e crítica da violência contemporânea? Flora Süssekind, que num texto
recente chegou à mais acabada formulação desse ponto de vista, é
taxativa: só se pode considerar uma obra complexa quando sua forma-
lização não se atém, ou não se rende, à atração mimética e à represen-
tação contextual, mas a desestabiliza, ou consegue sabotá-la, pela de-
riva, dissipação, perversão ou pelo informe (os termos são dela) para
potencializar as estratégias do oblíqu021. Ou, ao contrário, não seria
mais produtivo sugerir que tal preceito da teoria contemporânea é o
que tolhe o conhecimento da experiência pela forma da poesia?
---
21 Diferentemente do ponto de vista que esboço aqui, Flora Süssekind em "Dester-
ritorialização e forma literária. Literatura brasileira contemporânea e experiên-
cia urbana" (Literatura e Sociedade. São Paulo: n. 8, 2005, pp. 60-81) apresenta
um amplo painel de obras que desenvolvem estratégias de abordagem da violên-
cia: "... é fundamentalmente um imaginário do medo e da violência que organiza
a paisagem urbana dominante na literatura brasileira" (p. 65). Apesar da abran-
gência sociológica desse estudo, com muitos dados paralelísticos, sou de opinião
que o seu exemplário de espaços não-representacionais e operações de desterri-
torialização refere-se à violência em geral, sem considerar a particularidade his-
tórica do fenômeno que se alastrou a partir dos meados da década de 1980.
194 CAMINHOS DA lÍRICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENSAIOS
interioriza. Por último, pàra completar esse quadro, não me furtarei a dizer
que deveríamos dar o braço a torcer ao fato de que a Indústria Cultural
soube se apropriar, reelaborar e apresentar internacionalmente esta socie-
dade nova e degradada que é o Brasil, na atualidade consternadora de sua
luta de classes selvagem e desqualificada rumo a um patamar mais demo-
crático de consumo. Terá sido mais sensível aos fenômenos sociais resul-
tantes do colapso da modernização do que os profissionais exigentes da
poesia e da teoria, quer dizer nós mesmos que estudamos a poesia contem-
porânea. Para nosso espanto, tenho de perguntar: a arte exigente tem me-
nos inquietação hoje no Brasil do que a vulgaridade da Indústria Cultural?