Você está na página 1de 8

Boris Cyrulnik

O MURMÚRIO
DOS FANTASMAS

Tradução SÓNIA SAMPAIO


Revisão da tradução MARlNA APPENZELLER

Martins Fontes
São Paulo 2005
f:.;Ia oIbl'll foi pu"'icada ori.'~i'lIJlm,·nlt' rm jrr/l/'I's (\Im •.• ,,1 •• 10

LE MURMURI::: DE5 FANTóMES 1"" t.filions o."'t jJm>I>, P",k


Copy,iXhl Cl {,filioms Odi!~ IlIroI>. jtlllfiro 1003.
Copy~'!.:hI C 1005, Lit'mr~1 M''Iflms F,m/,',; Ed'/om Lldll.,
54" Palllo. par" ri pr('S('Hle l'I1i\·M.

l' edição
mai" de 211()5

Teaduçio
5ÓN/A SAMPAIO

Revisio da InduçJ.o
A1aril>ll Al'l't'Jlulltr
Acomp<lnh;llIlenlo editorial
Luzia Af/flr«iíLl dos $Q'Ilos
Prep.1r.•••,io do origin.ll
A'rdrm S/11M M. di! 5,h",
Revisaa gr.ílku
MRriQ Rt-srl1# Ríbriro Madlado
Marisa Rosa l"i;ui,a
Diltllrtt Zor.JIMlli dlI Sill'll
Pmduç,io gdfiC.l
CnaldoAlt'o'S
PaginaçJ.o
MrJoUi. lVi/slImi Mil/s"$Dk/

Ooldo:slnlem.lrionais de Cltalogaçio nOl Publiação (CIP)


(CimMa Brasilein do Livro, Sp, 8rasiIJ
Cyrulnik, Bons
o munnurio dos fantasmas I I30ris Cynilnik ; traduç"o
Sônia s"mpaio; rt'visào da traduç3<, Milnlla ApP'.'nzeller. _
São Paulo: Martins Fontes, 2005. - <Pskolc1,rll e po!dal;Of;ial

TItulo ori.,inal: Le murmure des (anl6mo.'S.


Bibliografia.
ISBN 85-3.16-2117-2

1. PsicanJlise 2. Psicologia I. TItulo. 11. Série.

_05-_'_"_'__ -;-,,- __ ---c._--,--_.,-,-_:.CD:.:[)..150.195


indic" pUl nt..ílogo sislern.ítico:
I. I'sic,lnilise : Psiool~ia 150, Jqs

Tod,>s
dirritos df'Sfa edIçãoparo O Bmsif /'CS('romfos li
(1$

Livrllria Martins fontl'S Editora Ltda.


RI/a COllselhâro Ramalho, 330 01325-000 sm., Paulo SP Brasil
TeI. (11) 32413677 Fax (11, 3101.1042
I.-mai!: illfo@marNllslollltos.com.brhffp:l!T(I.Wll.i.marti/lsftmtes.com.br
Introdução

Ninguém imaginaria que era um fantasma. Porque ela era


bonita demais, suave demais, resplandescente. Uma aparição
não tem calor, é um lençol frio, um tecido, uma sombra in-
quietante. Ela, no entanto, nos deslumbrava. Deveríamos ter
desconfiado. Que poder tinha para nos encantar tanto, nos ar-
rebatar, nos dar tanto prazer? Tínhamos caído numa armadi-
lha, a ponto de não percebermos que ela estava morta havia
muito tempo.
Na verdade, Marilyn Monroe não estava completamente
morta, só um pouco, em alguns momentos um pouco mais. Fa-
zendo nascer em nós um sentimento delicioso, seu charme im-
pedia-nos de compreender que não é necessário estar morto
para não viver. Ela já não estava viva quando nasceu. Sua mãe,
profundamente infeliz, expulsa da humanidade por ter trazido
ao mundo uma menininha ilegítima, ficara embrutecida de
tanta infelicidade. Um bebê só pode se desenvolver em meio às
leis inventadas pelos homens, e a pequena Norma Jean Baker,
mesmo antes de nascer, já estava fora da lei. Sua mãe não teve
forças para lhe oferecer braços que dariam segurança, tanto sua
melancolia preenchia seu mundo. Foi necessário colocar a fu-
tura Marilyn em orfanatos frios e confiá-la a uma sucessão de
familias adotivas onde era difícil aprender a amar.
As crianças sem familia valem menos do que as outras. O
fato de explorá-las sexual ou socialmente não é um crime tão
2 ____ Boris Cymlnik

grave, porque esses pequenos seres abandonados não são


realmente crianças. Algumas pessoas pensam assim. Para so-
breviver apesar das agressões, a pequena "Marilyn foi obriga-
da a fantasiar, a nutrir-se da própria dor, antes de naufragar na
melancolia e na loucura da mãe"'. Então, ela declarou que
Clark Gable era seu verdadeiro pai e que ela pertencia a uma fa-
mília real. Só isso! Dessa forma, ela constituía para si uma
identidade vaga, pois, sem sonhos loucos, teria de viver num
mundo de lama. Quando o real morre, o delírio propicia um so-
bressalto de felicidade. Então ela se casou com um campeão
de futebol para quem cozinhava todas as noites cenouras e er-
vilhas cujas cores tanto lhe agradavam.
Em Manhattan, onde fez cursos de teatro, tornou -se a
aluna favorita de Lee Strasberg, fascinado por sua graça estra-
nha. Ela já estivera morta muitas vezes. Era necessário estimu-
lá-la bastante para que ela não se entregasse à não-vida. Ela se
entorpecia, não saía da cama e já não tomava banho. Quando
um beijo a despertava, o de Arthur Miller, por quem se tornara
judia, o de John Kennedy ou o de Yves Montand, ela se reani-
mava' deslumbrante e calorosa, e ninguém percebia que esta-
va encantado por um fantasma. Entretanto, ela o dizia quando
cantava l'm Throllgh With Lave, mas, já no fim da linha, res-
plandecente em plena glória, sabia que não lhe restavam mais
do que três anos de vida antes de dar a si mesma um último
presente: a morte.
Marilyn nunca esteve completamente viva, mas não era
possível saber, tanto seu maravilhoso fantasma nos enfeitiçava.
A última biografia de Hans Christian Andersen começa
com a seguinte frase: "Minha vida é um belo conto de fadas
rico e feliz.'" Deve-se sempre acreditar no que os autores es-
crevem. Em todo caso, a primeira linha de um livro costuma
ser carregada de sentido. Quando o pequeno Hans Christian
chegou ao mundo, na Dinamarca de 1805, sua mãe fora obri-

1. J. Charyn, "Sugar Kane et la princesse Rita", Rt'Vucdes Deux Mondes,


julho-agosto de 2000, p. 17.
2. J. Luquet, Hans Christiall Alldrnl'1I 0805-1875). Li' vilain pctit canard.
Société française de psychologie adlériennc, boletim n': 85, abril de 1996.
o I1lllnllúrio dos Jalltasmas -=-3

gada a se prostituir pela própria mãe, que a espancava e lhe


impunha clientes. A garota fugiu, grávida de Hans Christian, e
se casou com o Sr. Andersen. Aquela mulher estava disposta a
tudo para que seu filho não conhecesse a miséria. Assim, tor-
nou-se lavadeira e o pai, soldado de Napoleão. Alcoólatra e
iletrada, morreu numa crise de delirium tremens, enquanto o
pai se matou num acesso de loucura. a menino precisou tra-
balhar numa fábrica de tecidos, depois numa fábrica de fumo,
onde as relações humanas eram muitas vezes violentas. Mas,
para Hans Christian, nascido na prostituição, na loucura e na
morte de seus pais, na violência e na miséria, nunca faltou
afeto. "Muito feio, doce e delicado como uma menina"', foi
impregnado, em primeiro lugar, pelo desejo da mãe de fazê-lo
feliz, e, depois, criado ternamente no colo da avó paterna com
a ajuda de uma vizinha que o ensinou a ler. A comunidade de
cinco mil almas de adense, na ilha verdejante de Fionie, era
fortemente marcada pela tradição dos contadores de história.
A poesia cadenciava os encontros nos quais se recitava a saga
islandesa e se praticavam os jogos dos esquimós da Groenlân-
dia. a artesanato, as festas e as procissões ritmavam a vida
desse grupo caloroso ao qual era bom pertencer.
Pode-se imaginar que o pequeno Hans percebeu esse seu
primeiro mundo a seu redor sob a forma de oximoro, em que
dois termos antinõmicos se associam opondo-se, como as
vigas de um telhado se sustentam porque são erigidas uma
contra a outra. Essa curiosa combinação de palavras permite
evocar, sem se contradizer, uma "claridade obscura" ou uma
"infelicidade maravilhosa". a mundo do pequeno Andersen
deveria se organizar em torno dessas duas forças, era-lhe abso-
lutamente necessário arrancar-se da lama de suas origens para
viver na claridade da afetividade e na beleza estranha dos con-
tos de sua cultura.
Esses mundos opostos eram ligados pela arte, que trans-
forma o lodo em poesia, o sofrimento em êxtase, o patinho
feio em cisne. Esse oximoro, que constituía o universo no qual
a criança crescia, foi rapidamente incorporado em sua memória

3./bid., p. 4.
_4 Boris Cymlnik

íntima. A mãe, que o aquecia por sua ternura, mergulhava no


álcool e morria entre os vômitos do delirium. Uma de suas avós
encarnava a mulher-bruxa, que não hesita em prostituir a
filha, enquanto a outra personificava a mulher-fada, que dá a
vida e convida à felicidade. Foi assim que o pequeno Hans
aprendeu muito cedo a representar um mundo feminino diva-
do que o tornaria, mais tarde, um homem intensamente atraído
pelas mulheres e aterrorizado por elas. Sua infância era cons-
tituída de humilhações incessantes e de sofrimentos reais as-
sociados, num mesmo ímpeto, às delícias cotidianas dos en-
contros afetuosos e das maravilhas da cultura. Não somente
ele conseguia suportar o horror de suas origens, como talvez
tenha sido a provação aterradora de seus primeiros anos que
destacou a ternura das mulheres e a beleza dos contos. O oxi-
moro que estruturava seu mundo também tematizaria sua
vida e governaria suas relações de adulto. Na história de uma vida,
sempre temos um só problema a resolver, aquele que dá senti-
do à nossa existência e impõe um estilo às nossas relações. O
desespero do patinho feio foi colorido de admiração pelos
grandes cisnes brancos e animado de esperança de nadar ao
lado deles a fim de proteger outras criancinhas feias.
Esse par de forças opostas que lhe fornecia energia para
"sair do pântano a fim de alcançar a luz das cortes reais'" ex-
plica também seus amores dolorosos. Hans, pássaro ferido
que caiu do ninho muito cedo, sempre se apaixonava por
pombinhas aterradoras. Todas as mulheres o atraíam, a ele, o
ferido salvo da lama pelo apego feminino, mas essa sacraliza-
ção do vínculo, essa divinização das mulheres que galvanizava
seus devaneios, inibia sua sexualidade. Ele só ousava amá-las
de longe. Ninguém se torna cisne impunemente, e o preço de
sua resiliência', que lhe custava a sexualidade, o empurrava
para uma solidão que ele preenchia com criações literárias.
Hans Christian Andersen nasceu na prostituição de sua
mãe, na loucura de seus pais, na morte, na orfandade precoce,

4.lbid., p. 20.
5. Resiliência: processo que pennite retomar algum tipo de desenvolvi-
mento apesar de um traumatismo e em circunstâncias adversas.
o murmúrio dos jantasmQs -"'S

na miséria doméstica, na violência social. Como não continuar


morto quando se vive assim? Duas brasas de resiliência reavi-
varam sua alma: o apego a algumas mulheres reparou a estima
da criança prejudicada e um contexto cultural de narrativas es-
tranhas em que a língua dos pântanos fez surgir da bruma
gnomos, anôes, fadas, bruxas, elfos, guerreiros, deuses, armas,
caveiras, sereias, vendedoras de fósforos e patinhos feios dedi-
cados à mãe morta.
Marilyn Monroe jamais pôde encontrar vínculo e senti-
do', as duas palavras que permitem a resiliência. Sem vínculos
e sem história, como poderíamos nos tornar nós mesmos?
Quando a pequena Norma foi colocada num orfanato, nin-
guém poderia pensar que um dia ela se tornaria Marilyn, uma
mulher de fazer perder o fôlego. A carência afetiva fizera dela
um pintinho depenado, trêmulo, encolhido, incapaz de se
abrir para o mundo e para as pessoas. As mudanças incessan-
tes de famílias adotivas não permitiram que se organizasse
em torno dela uma permanência afetiva que lhe desse a opor-
tunidade de adquirir o sentimento de ser digna de ser amada.
Tanto que, ao chegar à idade do sexo, ela se deixou levar por
quem a aceitasse.
Quando os homens não se aproveitavam dela sexualmen-
te, exploravam-na financeiramente. Darryl Zanuck, o produ-
tor de cinema, tinha interesse em considerá-Ia uma desmiola-
da, para enriquecer alugando-a a outros estúdios. E mesmo os
que a amaram sinceramente não souberam penetrar em seu
mundo psíquico para ajudá-Ia a fazer um trabalho de historiza-
ção que teria dado sentido à sua infância desmoronada. Seus
amantes apaixonados caíram voluptuosamente na armadilha
da magnífica imagem da doce Marilyn. Ofuscados por tanta
beleza, não soubemos ver seu imenso desespero. Ela conti-
nuou sozinha na lama onde, de vez em quando, nós lhe jogá-
vamos um diamante ... até o dia em que ela se deixou ir embora.
O patinho feio Hans encontrou durante sua infância ater-
radora os dois principais tutores de resiliência: mulheres que o

6. S. Vanistendael, J. Leconte, Lc Bonheur est toujours possible, prefácio de


Michel Manciaux, Paris, Bayard, 2000.
_6 . . BorisCyrulnik

amaram e homens que organizaram um ambiente cultural em


que os contos permitiam transformar os sapos em príncipes, a
lama em ouro, o sofrimento em obra de arte.
A doce e linda Norma não foi mais agredida do que o pe-
queno Hans. Muitas famuias adotivas sabem aquecer essas
crianças. Mas a menina, comportada demais devido à sua me-
lancolia, não encontrou a estabilidade afetiva que poderia es-
truturá-la, nem as narrativas de que precisava para compreen-
der como deveria viver para sair do lodo.
O pequeno Hans que fugiu do inferno retomou o gosto
pela vida. Freqüentou os cisnes, escreveu contos e fez com que
se votassem leis para proteger outros patinhos feios. Mas sua
personalidade clivada apagou sua sexualidade, pois ele tinha
medo demais das mulheres que adorava. Essa renúncia ofere-
ceu-lhe uma compensação quando inventou os heróis com os
quais muitas crianças feridas se identificaram'.
A comovente Marilyn não voltou à vida. Continuou morta.
Era seu fantasma que adorávamos. Ela não teceu sua resiliên-
cia porque seu ambiente jamais lhe ofereceu estabilidade afe-
tiva e não a ajudou a dar sentido à sua aflição. Já o pequeno
Hans encontrou os dois pilares da resiliência que lhe permiti-
ram construir uma vida apaixonante, apesar de tudo. Sua eva-
são do inferno custou-lhe a sexualidade, mas ninguém pre-
tende que a resiliência seja uma receita de felicidade. É uma
estratégia de luta contra a infelicidade que permite obter pra-
zer em viver, apesar do murmúrio dos fantasmas no fundo da
memória.

7. Charles Dickcns seguiu exatamente o mesmo proce~so.Inicialmente


uma criança ferida pelo encarceramento de seu pai que levou a (amilia à mi-
séria totaL o pequeno Charles teve de trabalhar numa fábrica de graxa desde
os doze anos de idade. Recuperou-se psiquicamente graças aos contos. De-
pois. quando adulto, abandonou-os para escrever romances de educação c se
engajar socialmente. retcr Ackroyd, Dickcrls, Londres, Vintage, 1999.

Você também pode gostar