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INSTITUTO DASEIN DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-HERMENÊUTICA

ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA E HERMENÊUTICA

ANDRÉ LUÍS FONSECA MACEDO (ANDRÉ FONCK)

ENSAIO INTRODUTÓRIO DE PSICOPATOLOGIA ECOFENOMENOLÓGICA DECOLONIAL:


DOS SABERES E PRÁTICAS DE CURA DOS POVOS ORIGINÁRIOS DA TERRA

SÃO PAULO
2022
ANDRÉ LUÍS FONSECA MACEDO (ANDRÉ FONCK)

ENSAIO INTRODUTÓRIO DE PSICOPATOLOGIA ECOFENOMENOLÓGICA DECOLONIAL:


DOS SABERES E PRÁTICAS DE CURA DOS POVOS ORIGINÁRIOS DA TERRA

Monografia realizada como exigência parcial para a


obtenção do título de Especialista em Psicologia
Fenomenológica e Hermenêutica do Instituto
Dasein, sob orientação do Prof. Dr. Alexandre
Marques Cabral.

SÃO PAULO
2022
Às Marias que iluminam meu Caminho, minha mãe Rita,
minhas afilhadas Maju e Cayari, dedico o presente trabalho,
em sinal de agradecimento pelo gratuito amor destinado a
mim e o eterno saber que me doam.

In memoriam Vanessa Augusto de Santa Barbara.


AGRADECIMENTOS
Agradeço às(aos) companheiras(os) de Instituto Dasein, por me permitir dar
contorno ao que mobiliza minha vida e acreditarem em meu caminho;
À Isabella Martins, pensadora urgentemente necessária em nossos tempos,
exemplo de pessoa íntegra e incansável, confidente e companheira de admiração frente
à Vida;
Ao professor e amigo Alê Cabral, por me orientar no processo de dar nome ao
que me toca;
À Letícia Feltrin, pela companhia e ensinamentos amorosamente inestimáveis;
Às companheiras e companheiros do Coletivo Outro Pensar e outros coletivos
que me ensinaram a verdadeira postura pedagógica de aprendizagem-ensino;
À todas(os) pensadoras(es) que se dedicam ao estudo da fenomenologia,
ecofenomenologia e decolonialidade, que indiretamente tornaram esse trabalho
possível, mesmo quando não diretamente citadas(os);
Às(aos) companheiras(os) do Círculo Xamânico Lua Nova, por nutrir a Vida em
mim;
À minha família, por todo amparo em forma de amor durante este processo, em
especial minha mãe Rita, que me ensinou sobre ancestralidade, como diz Djonga, “olhe
pra sua nega véia e entenda, que num é em blog de hippie boy, que se aprende sobre
ancestralidade”.
I know you been havin’ a lot on yo mind lately and I know you feel like ya know

People ain't been prayin' for you, but you have to understand this, man, that we are a cursed people

Deuteronomy 28:28 says: The Lord shall smite thee with madness, and blindness, and astonishment of
heart

See family, that's why you feel like you feel, like you got a chip on your shoulder

Until you finally get the memo, you will always feel that way

(...)

I've been hungry all my life

(...)

Why God, why God, do I gotta suffer?

Pain in my heart carry burdens full of struggle

Why God, why God, do I gotta bleed?

Every stone thrown at you restin' at my feet

Why God, why God, do I gotta suffer?

Earth is no more, why don't you burn this motherfucker?

(...)

So until we come back to these commandments, until you come back to these commandments, we're
gonna be in this place, we're gonna be under this curse

Because he said he's gonna punish us, the so-called Blacks, Hispanics, and Native American Indians, are
the true children of Israel. We are the Israelites according to the Bible

The children of Israel, he's gonna punish us for our iniquities

For our disobedience because we chose to follow other gods that aren't his son, so the Lord thy God
chasten you

So just like your children, your own son, he's gonna chastise you because he loves you

So that's why we get chastised, that's why we're in the position we're in

Until we come back to these laws, statutes and commandments, and do what the Lord said, these
curses are gonna be upon us

We're gonna be at a lower state in this life that we live here in today, in the United States of America. I
love you, son, and I pray for you

God bless you, shalom.

Kendrick Lamar- Fear (grifo nosso)


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo abrir um caminho de pensamento para


compreensão da importância dos saberes e práticas de cuidado dos povos originários
da terra em nossos tempos, em específico aqui, principalmente para a psicologia e as
ciências da saúde como um todo. Buscamos introduzir e enfatizar a necessidade de
repensarmos a própria ciência psicológica ouvindo esses saberes, e se orientando
duplamente através dos cuidados que são possíveis fundados nesses saberes originários
da terra: tanto o cuidado ôntico, enquanto a acolhida de alguém em sofrimento, quanto
o cuidado ontológico, aquele cuidado com o Ser. Também buscamos abrir compreensão
do modo como esses saberes, longe de serem apenas informações a respeito da
realidade, abrem modos possíveis de presença na Terra, possibilidades de habitação no
mundo e da própria manifestabilidade da realidade (ontologia). Por fim, é traçada a
possibilidade de compreensão do sofrimento do ser humano estar conectado com o
sofrimento da mãe terra, assim como um nexo vital entre a cura de ambos.

Palavras-chaves: Ecofenomenologia, Sofrimento Existencial, Hermenêutica


Contracolonial, Saberes dos Povos Originários da Terra, Cuidado.
Sumário

1. Introdução 8
a. Posicionamento prévio da problemática em questão: sofrimento, filosofia e
saberes dos povos originários da terra .......................................................................... 10
b. Do possível diálogo entre Filosofia, Saberes dos Povos Originários da Terra e
Práticas de Cura .............................................................................................................. 14
c. Decolonização, saber e poder(-ser) ............................................................................ 15
2. Sofrimento enquanto índice de Separatividade com a Vida 19
a. Da Fuga dos Deuses: Apontamentos iniciais para a preparação do caminho de
pensamento sobre a niilização da Vida como indicativo do modo de presença da
Separatividade ................................................................................................................ 20
b. A Hermenêutica Contemporânea do Sagrado e o Sofrimento na Fuga dos
Deuses na obra de Kendrick Lamar ................................................................................ 22
3. A Identificação do modo de presença da angústia como indicativo da espiritual
condição humana: abertura para o silêncio, rearticulação possível em Vida Harmoniosa como
Modo de Presença Próprio 25
a. Da Espiritual Condição Humana: angústia e espiritualidade ............................. 26
b. Angústia e Liberdade ......................................................................................... 27
c. Modo de Presença Próprio em Heidegger ........................................................ 29
d. A Imensidão Íntima da Presença Humana: Cuidado como capacidade de
harmonizar a vida ........................................................................................................... 30
4. Do Silêncio, Da Cura e do Habitat de Deus 34
a. Afinação e Cuidado em Heidegger .................................................................... 36
5. Do Sofrimento da Separatividade à sua Cura: Intimidade como Método Clínico 40
6. Conclusão: Ecofenomenologia dos Povos Originários da Terra (Ontologia, Natureza,
Ciência-Técnica: Da Colonialidade do Ser ao Movimento Contracolonial) 42
7. Indicativos futuros 45
8. Bibliografia 46
Fragmentos do Caminho 51
a. Introdução Parabólica às Meditações Filosóficas: Ciência-Técnica como
Destinatório da Humanidade e da Mãe Terra ............................................................... 51
1. Introdução

Mantido o rumo atual da vida na Terra, o futuro é impossível.

Sidarta Ribeiro

O presente trabalho é uma tentativa de introduzir a compreensão de possíveis nexos


vitais que prepare um caminho de pensamento da conexão entre sofrimento humano e
o sofrimento do Todo1.

Das várias formas possíveis de levar este empreendimento a cabo, aqui teremos
como fio condutor a noção de Separatividade apreendida pela filosofia tibetana2, e em
ressonância a esta, dialogaremos com alguns autores da tradição filosófica buscando
compreender como a Separatividade é fundamento dos fenômenos da subjetividade
humana exploratória atual. Para isso, iremos usar como indicativos as noções de Era da
Técnica e Colonialidade, como paradigmas epocais de radicalização da Separatividade,
fundando uma ontologia específica de desrespeito e desarmonia frente às outras formas
de Vida.

Considerando a condição da Separatividade como fonte do sofrimento humano,


buscaremos compreender essa interlocução e a consequente postura de cuidado frente
o sofrimento exposto nestes termos.

Mais do que a sistematização e pormenorização incessante de Saberes Ancestrais e


suas aberturas para práticas curativas e ressonâncias com a tradição filosófica, o que

1
Há uma interessante ressonância em toda a história humana entre: Todo, Unidade, Ser (seer, seyn), Pachamama, Mãe
Terra, Gaia, Um, Natureza, Deus, Vida. Iremos brincar um pouco com essa misteriosa correlação ao decorrer do texto,
sem necessariamente apontar em notas de rodapé as correlações, buscando, a cada vez, ressaltar um aspecto importante
que a nomeação em questão nos conecta e descreve em cada contexto presente.

2
Helena Blavatsky é uma pensadora importante para o que está presente aqui, mas essa escolha se trata apenas de uma
pessoa com quem conseguimos dialogar no momento sobre o que vemos na Vida, mas outras sabedorias dos Povos
Originários da Terra poderiam ser utilizadas aqui como base e sem grandes dissonâncias, como a Sabedoria Ancestral
Xamânica, que ressoa indiretamente e por vezes diretamente por todo o trabalho. Como a própria Helena descreve, isto
que aqui chamamos de Saber Originário da Terra, necessariamente aponta para o Um, para o Todo, para o Ser. Sobre
o que é nomeado como Saber dos Povos Originários da Terra, consultar a continuidade do trabalho. Ao mérito
específico de Blavatsky, a pensadora consegue reunir diversas Sabedorias Ancestrais para nortear o Caminho humano.

8
aqui se encontra como questão fundamental é o traçar de um estilo, a polinização de
um diálogo frutífero vindouro.

Assim como concebemos que a sabedoria periférica resguarda uma importante


chave de mudança para nosso mundo (FONCK & MARTINS, 2020), também constatamos
a urgência de pôr em diálogo nossas ciências atuais com os Saberes Originários
Ancestrais por entender que nestes há a retenção de um modo de presença humano na
terra que abre a vida de maneira densa e pujante, modo este que, a movimentos
paulatinos e acachapantes, vem se perdendo em meio ao processo capitalista-técnico-
colonial da civilização global nos dias de hoje.

Traçar uma linha, um diálogo, uma conversa possível entre personalidades


relevantes que não puderam se conhecer, mas que poderiam rascunhar em uma prosa
uma rota de fuga para o dilema humanitário (e da Vida como um todo) em que nos
encontramos: Mano Brown, Deleuze e Heidegger conversando sobre nossa Era Técnica
em uma mesa de bar; Krenak, Guattari e Nietzsche consagrando um chá e proseando
acerca do esvaziamento do Sagrado na Terra; Ponto de Equilíbrio, Buber e Levinas ao
redor de uma fogueira discutindo sobre o amor e a comunidade de seres vivos. Diálogos
impossíveis pela linha temporal, mas que através de terceiros como nós, são possíveis
de serem sonhados.

Nisso reside um caráter interessante em particular na Daseinsanálise e


Fenomenologia Hermenêutica como um todo: por vezes, para se fazer-ver é necessário
instaurar diálogos impossíveis; através de diálogos impensáveis abrimos cortinas para o
novo, para a Vida se revigorar em seus pontos decisivos. A esse respeito, Merleau-Ponty
nos diz que

O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas


a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia,
mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade [...] A
verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma
história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’
quanto um tratado de filosofia (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 19).

Fazer-ver através de um diálogo entre a Daseinsanálise e os saberes ancestrais,


por entendermos que os saberes originários dos povos da terra abrem um modo de
presença que cuida do ser e cura de um modo contraposto ao que nos lega a Era Técnica

9
científica, a era da radicalização da Separação, bem como também estes saberes nos
abrem compreensões originárias do próprio sofrimento humano e sua íntima relação
com a mãe terra.

A estrutura do trabalho é composta por 7 estações principais, divididas em


subestações, buscando: 1) Introduzir o horizonte primeiro que direciona este trabalho
com as principais noções envolvidas neste diálogo; 2) Apontamento da intersecção
entre sofrimento e Separatividade; 3) Identificação da espiritual condição humana e os
aspectos relevantes para o desenvolvimento do trabalho; 4) Primeiros apontamentos
do que ressoa como possibilidade de indicativo para fundamentação do processo de
cura frente a Separatividade; 5) Realces dos indicativos fundamentais da estação
anterior para o processo de cuidado em psicoterapia; 6) Conclusão, que visa a partilha
do que de fundamental podemos reter do presente ensaio como um todo; 7) Tendo em
vista o caráter restrito das reflexões deste ensaio, indicamos aspectos importante a
serem investigados a partir do que aqui está exposto.

É necessário, de saída, compreendermos o que o título deste ensaio nos diz.

a. Posicionamento prévio da problemática em questão:


sofrimento, filosofia e saberes dos povos originários da
terra

Enquanto ensaio introdutório de psicopatologia, o presente trabalho busca


compreender e introduzir a problemática do sofrimento humano a partir de uma
determinada ótica; a partir de um posicionamento através das Sabedorias dos Povos
Originários da Terra, este sofrimento não pode ser compreendido e tratado se não
compreendida a Ilusão da Separatividade, pois, “se queres alcançar o Vale da Bem-
Aventurança através do Salão da Sabedoria, Discípulo, fecha com força os teus sentidos
contra a terrível heresia da Separatividade que te afasta do resto” (BLAVATSKY, 2016, p.
9), sendo assim, a via de descrição do acontecimento do sofrimento humano precisa ser
reconectada a seu nexo vital, à própria Vida e seu caráter de Unidade, de Todo. O
sofrimento aqui é compreendido enquanto a própria cisão com o Ser, uma cisão causada

10
pela paulatina instauração histórica do Ego, do Eu3, onde nos vemos enquanto entes
separados da Natureza45.

A partir disto, a ecofenomenologia nos oferece estrutura de compreensão do


sofrimento humano estar atrelado ao sofrimento do Todo e a desarmonia entre parte-
Todo, humanidade-Gaia6, ou humanidade-Natureza. Eco-fenomenologia, enquanto
compreensão da indivisibilidade do manifesto (fenômeno) com o seu todo estrutural
(eco)7, mas, principalmente, ecofenomenologia enquanto estudo da ontologia em jogo
numa Fundamentação dos Povos Originários da Terra8 frente a Era Exploratória Técnica
da radicalização da Separatividade.

Partiremos dos Saberes Originários dos Povos da Terra para uma compreensão
ecofenomenológica dos fenômenos: a vida humana não só é possível a partir da Mãe
Terra, como a própria humanidade é uma parte deste todo; a vida humana é impensável
em qualquer uma de suas possibilidades de ser sem esta conexão.

3
A noção de Ego na sabedoria tibetana também pode ser compreendida a partir da problemática da identidade na
filosofia contemporânea. A questão se apresenta nesta, principalmente a partir da identificação da separatividade na
obra de Nietzsche, como binômios. A esse respeito, consultar a obra Psicologia Pós-Identitária, de Alexandre M.
Cabral.

4Este trabalho visa o realce de aspectos existenciais frente o dilema da Separatividade, mas é incontestável que o caráter
histórico-hermenêutico deste sofrimento é condição inseparável para sua compreensão. Como nos estudos de Nietzsche
e Heidegger trazidos aqui, a perda do fundamento histórico é condição fundamental para a Morte e Fuga dos Deuses,
entretanto, pelo caráter “introdutório” deste estudo, a medida epocal e a historicidade aqui em jogo estão em segundo
plano. Um trabalho complementar para elucidar esta questão, a título de exemplo: Cristine Mattar – “Depressão:
Doença ou Fenômeno Epocal?”, 2021, Via Verita.

5
Como para Espinosa (2015): Deus sive natura (Deus, ou seja, a Natureza).

6
Neste presente trabalho não será possível detalhar a Hipótese Gaia, mas uma rápida busca pode suprir este
conhecimento, caso falte ao leitor. Indicativos desta questão podem ser encontrados nos ricos estudos de Bruno Latour,
bem como no Saber Ancestral resguardado pelo Candomblé ou na Mito-Teo-Ontologia Xamânica presente nos Povos
Originários da Nossa Terra (tendo como representantes exemplares na interface com o mundo acadêmico, Ailton
Krenak e Kaká Werá).
7A inquietação que guia a noção de ecofenomenologia aqui presente reside no horizonte em descobrir o que aconteceria
no Planeta Terra se vivêssemos amando/respeitando as outras formas de Vida incondicionalmente. Para alguns, isto se
chama paz.
8 Compreendemos que, a fenomenologia hermenêutica, assim como Heidegger nos lega, se torna ferramenta
imprescindível para o que aqui nos importa, pois esses paradigmas históricos que fundam modos de presença, ao mesmo
tempo fundamentam modos de ser. Do paradigma da Separatividade, radicalizado pela Era da Técnica científico-
colonial, ao paradigma de Ser dos Povos Originários da Terra, temos na ecofenomenologia um modo de compreensão
do que se altera no modo de apreensão da própria Realidade, do Todo, de nós mesmos. O que se altera aqui? O que é
diferente nessas Formas de Vida? A fenomenologia é o método aqui necessário para este tipo de investigação. A
ecofenomenologia nos ajuda a nomear com maior exatidão ao que está sendo buscado: uma compreensão ontológica
do dar-se da Natureza.

11
Para esta Psicopatologia (enquanto compreensão dos sofrimentos) se fazer fiel
ao ser humano, seu enquadre descritivo é ecofenomenológico, ou seja, busca uma visão
holística da Vida (da qual somos debitários e parte constituinte).

O acesso à um saber ecofenomenológico que supere a ilusão da separatividade,


só pode ser feito a partir de conhecimentos que partam justamente da não
separatividade. A matriz deste conhecimento é principalmente debitaria da relação com
a Vida em épocas pré-coloniais, deste modo, a ecofenomenologia decolonial9 aqui
proposta não se propõe apenas ao resgate das ricas “Sabedorias do Sul”, como
identificadas a partir da leitura de Maldonado-Torres acerca das consequências da
Colonialidade do Ser10 (2008) posicionar a vida em uma constituição de falta de
densidade de Ser11, buscamos mais um resgate de toda e qualquer sabedoria que
resguardou em seu âmago conhecimentos originários de uma harmonia na Terra,
justamente por isso, chamaremos aqui estas de Sabedoria dos Povos Originários da
Terra. Sejam povos xamãs, bruxas, sambistas, rappers, tibetanas, místicos germânicos,
pensadoras da diáspora africana, filósofas etc. Como bem nos demonstra vida e obra de
Helena Blavatsky, o que se faz crucial é beber na fonte de quem levou o copo que é o
pensamento às sabedorias da fonte da vida (justamente por isso: Originários).

Um Saber Originário da Terra, para a presente reflexão, diz respeito de um Saber


que não perdeu a vinculação (raiz) com o que é sabido da própria Vida, ou seja, não caiu
no esquecimento de Ser, como aparece para Heidegger a separatividade. Não se trata
aqui, pois, de dizer que determinado pensador posto em diálogo está plenamente em

9
Ao nosso ver, ecofenomenologia decolonial tende a ser um pleonasmo, mas só para aqueles que se enraízam nessas
duas concepções de uma maneira alinhada com a visão do presente trabalho, por isso não ser uma regra, achamos
importante utilizar os dois termos para realçar diferentes aspectos do fenômeno das Sabedorias Ancestrais da Terra.

10
Por mais que, justamente o próprio Maldonado Torres, aponte para a problemática de uma ontologia única a partir
da visão europeia e colonial acerca do Ser. A respeito desse importante posicionamento crítico para a discussão deste
trabalho, consultar MALDONADO-TORRES, 2008.

11
Aqui buscamos nos aproximar da pergunta sobre o Ser possíveis indicativos, não só presente na vida humana, mas
em todos os modos de vida. Como aponta Heidegger, “ser, aqui, não só como ser do homem (existência), o que também
ficará claro pelo que se segue. O ser-no-mundo contém em si a relação da existência com o ser em seu todo:
entendimento-do-ser” (2012, p. 59).

12
consonância com a Verdade do Ser12, mas identificar em seu caminho de pensamento,
o que ainda ecoa da Sabedoria Originária da Terra: “vislumbres de olhar Deus nos olhos”,
a partir do contato com a Sua extensão através da criação. Refazer a conexão entre nós
e Deus, em outros termos, trazer a presença de Deus para habitação da terra, não
visando um plano transcendente. A importância de Deus neste trabalho não é a de
identificação de um ente criador, mas sim da compreensão de um modo possível de se
afinar com a Vida de forma harmoniosa, pacífica e, consequentemente, sem sofrimento
para nenhum de seus componentes: Deus é um estado de presença relacional possível.

Como veremos adiante, é na ressonância com os saberes originários da terra que


podemos pensar em modos de presença da vida humana para instaurar modos de
existências outros, mais harmônicos/pacíficos. Sem retomar cegamente a tradição, o
que se põe em questão é o que podemos apreender na sintonia com a Mãe Terra dos
Povos Ancestrais, e em específico, para práticas de cura, seja aprendendo sobre cura
meditando acerca do caráter curador do rito de um banho de ervas ou consagração de
um chá, mas visando para o presente trabalho o que aqui é sintonizado na presença
humana e como pode nos trazer indicativos para uma postura clínica de um
psicoterapeuta (entendendo aqui a clínica em sua ação ampliada, para além dos
consultórios individualizantes, pois esta postura, se levada à cabo, abre toda uma ética
de como habitar o planeta a cada instante em conjunto com os outros seres vivos).

Ancestralidade nada mais é que o retomar do que a tradição lega de Sabedoria


para a reconexão com a Vida, neste sentido, confunde-se nesse trabalho, sem indicativo
necessário em nota de rodapé, as noções de Sabedorias Originárias da Terra e
Sabedorias Ancestrais.

Este ensaio está enquadrado como Psicopatologia Ecofenomenológica


Decolonial por serem os termos mais próximos de enquadrar o que nos atravessa com
o presente trabalho, mas temos em vista o quão a palavra Psico-Patologia, assim como

12
Este Saber Originário que ressoa a Verdade do Ser, nas palavras de Heidegger, é aquele que “só se encontra na
verdade como algo criador. Criar – no sentido mais amplo aqui visado – significa todo abrigo da verdade no ente."
(2015, p. 39).

13
definida em nossa “ciência psicológica”, potencialmente perderia seu sentido em meio
ao horizonte deste escrito13.

Em um primeiro momento, nosso desespero em compreender pelo quê


sofremos desaguou na “Analítica do Sentido do Sofrimento” (FONCK, 2019), onde, a
partir da tradição daseinsanalítica foi possível compreender que o sofrimento humano
está atrelado à uma abertura privativa de nossa existência. Faltava bases na época para
compreender frente o que essa abertura se dá e qualitativamente o que a distingue. O
presente trabalho deve ser compreendido na esteira desta analítica, uma
complementação da Analítica do Sofrimento Existencial. A falta de conceitos
daseinsanalíticos no presente trabalho não atesta contra uma fundamentação na
mesma, é apenas um caminho escolhido a ser percorrido de melhor compreensão do
público em geral, mas aos atentos, a tradição daseinsanalítica ressoa aqui em todos os
momentos.

b. Do possível diálogo entre Filosofia, Saberes dos Povos


Originários da Terra e Práticas de Cura

Qual o nexo vital entre filosofia, vida, sofrimento, Saberes Ancestrais e práticas
de cura? É possível e até mesmo desejável reconduzir as Ciências da Área da Saúde à
Filosofia e aos Saberes Originários?

Ao buscar compreender a Daseinsanálise médica, Dastur e Cabestan nos


apontam caminhos para compreendermos essas indagações, nos dizendo que,

aquilo com o que a psiquiatria se vê confrontada é o que há de


incompreensível no homem, o qual é, enquanto pessoa, um enigma
tanto para os outros quanto para si mesmo. É justamente aqui que a
medicina encontra necessariamente a filosofia, pois ela também
consiste em saber compreender o incompreensível, e aliado a isso, ela
toma como tarefa retomar por sua conta as grandes questões
insolúveis que a humanidade se põe nos mitos, nas religiões, na arte e
na cultura em geral. (2015, p. 252)

Aliada a esta comum tarefa de compreensão, a filosofia em seu modo mais


originário também se encontra com a psicoterapia (e demais áreas da saúde) em seu
modo de Exercício Espiritual, a saber, o viver filosófico enquanto a concepção da filosofia

13
Da ilusão da separatividade e a implosão da noção de sujeito-objeto advinda da superação desta ilusão.

14
como “uma metamorfose total da maneira de ver o mundo e de estar nele” (HADOT,
2014, p. 15), em outras palavras, há na filosofia um caráter fundamentalmente
existencial (DASTUR & CABESTAN, 2015, p. 7), que diz respeito à própria condição do
filosofar enquanto um trabalho sobre si, uma “escolha de vida que supõe que o ser
humano ao mesmo tempo se liberte e cure os males que o perturbam” (ibid.).

A condição existencial do filosofar abre caminhos para um “combate contra as


perturbações e as doenças da alma” (ibid.), onde se busca abrir a “possibilidade de outro
modo de existência14” (ibid.).

Compreendendo que os Saberes Originários da Terra são filosofias que não só


nos ajudam a compreender a Vida, mas também abrem modos de Vida, a trança
compreensiva que se dará daqui em diante versará sobre o Sofrimento e possibilidades
de cura a partir do diálogo entre a Filosofia que se reteve na academia por dois séculos,
mas também acenando para as possibilidades de ressonância entre os Saberes
Originários da Terra (afinal, não seriam irmãs essas sabedorias?).

c. Decolonização, saber e poder(-ser)

A pretensão de um ensaio introdutório em psicopatologia decolonial intercalada


com a ecofenomenologia dos saberes originários da terra, necessita de alguns
posicionamentos prévios, sendo os principais: o que é colonialismo? O que são saberes
e seu impacto na vida (humana e relacional com outros seres vivos)?

Como define Boaventura de Souza Santos em “Descolonizar o saber e o poder”,


o colonialismo é um fenômeno multifacetado, que configura o modo de habitação da
Terra e as consequentes possibilidades possíveis da vida se abrir/se manifestar para
humanidade. Mas como se dá essa configuração de ser no mundo? Santos nos diz que

Os conflitos estruturais do nosso tempo decorrem da articulação


desigual e combinada dos três modos principais de desigualdade
estrutural nas sociedades modernas. São eles, capitalismo,
colonialismo e patriarcado, ou mais precisamente, hetero-
patriarcado. Esta caracterização surpreenderá aqueles que pensam

14
Ao decorrer deste trabalho, tentaremos abordar este “outro modo de existência”, observando e descrevendo modos
de presença humana na Terra, comparando-os em duas modalidades: o modo de presença harmônico (densa e plena
presença junto ao Ser) e o modo de presença separativo (presença na não presença, niilização da vida), buscando assim
identificar o dar-se do fenômeno da paz e do sofrimento humano, respectivamente; na existência humana e na sua
relação com seu Todo constitutivo.

15
que o colonialismo é coisa de passado, tendo terminado com os
processos de independência. Realmente, o que terminou foi uma
forma específica de colonialismo — o colonialismo histórico com
ocupação territorial estrangeira. Mas o colonialismo continuou até
aos nossos dias sob muitas outras formas, entre elas, o
neocolonialismo, as guerras imperiais, o racismo, a xenofobia, a
islamofobia, etc. Todas estas formas têm em comum implicarem a
degradação humana de quem é vítima da dominação colonial. A
diferença principal entre os três modos de dominação é que,
enquanto o capitalismo pressupõe a igualdade abstrata de todos os
seres humanos, o colonialismo e o patriarcado pressupõem que as
vítimas deles são seres sem plena dignidade humana, seres sub-
humanos. Estes três modos de dominação têm atuado sempre de
modo articulado ao longo dos últimos cinco séculos e as variações são
tão significativas quanto a permanência subjacente. (SANTOS, 2019).

Deste modo, ao utilizarmos o termo “colonialismo”, estamos nos referindo às


formas de dominação (explícitas, mas principalmente implícitas) que reduzem outros
modos de vida à categoria de sub-vidas. Aqui, a partir das contribuições de Santos (2019)
e Coelho (2020), partiremos da compreensão de que o colonialismo não só reduz através
da dominação e desigualdade outros seres humanos, mas instaura um modo de
presença relacional que violenta outros seres vivos. Seja através do patriarcado, do
racismo, da divisão de classes capitalista ou até mesmo da hecatombe ecológica, o que
está em jogo aqui é identificarmos que existe na sustentação de nosso mundo um modo
de presença Separador entre os seres vivos, beneficiando alguns às custas da ruína de
outros. O colonialismo então se define como lógica-saber que, em um duplo movimento,
instaura a norma e a periferia dos seres vivos, sendo que “periferia não é apenas estar
à margem geograficamente na cidade, mas diz respeito principalmente a um modo de
vida, dos que estão à margem da norma de nosso mundo” (FONCK & MARTINS, 2020).
A norma colonial instaurada, não aniquila e executa apenas pela violência explícita no
ato de assassinato as vidas periféricas (desde pobres favelados até a Floresta
Amazônica), mas em seu saber perpetua um anestesiamento compreensivo da
Comunidade da Vida humana na terra, deixando-morrer as vidas periféricas que se
encontram na margem da norma do mundo (FONCK & MARTINS, 2020).

Mas o que sustenta esse modo de presença relacional Separador e violento?


Aqui nos deparamos com a problemática dos saberes. Saber não é simplesmente um
conjunto de informações reunidas que auxilia na compreensão e explicação racional de
algo, mas os saberes estruturam historicamente o mundo e sustentam as condições de
possibilidades possíveis para a comunidade de seres humanos. Essas possibilidades

16
possíveis não só nos abrem as condições de modos de ser conosco mesmos, mas o
próprio modo de aparição dos outros seres e o conjunto de comportamentos possíveis
frente a eles.

O foco dos resgates das Sabedorias Originárias da Terra não é uma tentativa
irrefletida e cegamente nostálgica de reconduzir à uma condição de humanidade
passada, mas poder abrir condições de possibilidades relacionais entre os seres vivos a
partir de saberes que estão enraizados em outros princípios éticos. Introduzir uma
psicopatologia ecofenomenológica necessariamente aponta para a urgência de
compreendermos o sofrimento humano atrelado ao seu nexo vital (a condição de
possibilidade da vida humana é a própria existência da mãe terra), e alguns ecos desse
Saber se encontram na ancestralidade. Que tem a ver desmatamento com ansiedade,
por exemplo? Talvez algo maior que a ciência-técnica atual possa nos fazer ver.

Assim, uma visada decolonial para a compreensão e cura do sofrimento humano


visa a polinização de modos relacionais entre os seres vivos que ao mesmo tempo
busque o entendimento da cura do sofrimento humano na mesma medida em que cessa
o movimento de causar sofrimento em outros seres vivos (este, talvez, seja uma das
intercalações mais explícitas da relação parte-todo presente na noção de
Separatividade). A tarefa presente do movimento decolonial que ecoa em todas as
ciências (principalmente nas ciências humanas) reside na justa compreensão de como
realizar esse movimento descolonizador. Não é possível, apenas citando e lembrando
de “saberes pré-coloniais”, mas sim abrindo a própria vida em outros modos de
presença relacional possíveis através de diálogo com a Sabedoria Ancestral,
reformulando então os saberes que sustentam nossas ciências (nossa medicina e
psicologia, nossas escolas, nosso sistema de justiça, nossa política etc.) nossas
possibilidades relacionais e nosso mundo. A concepção do que é decolonialidade que se
faz presente de maneira cáustica em Emicida nos ajuda na compreensão desta
empreitada15:

15
Presente desde o nome do álbum de Emicida (Amar-Elo), nesta obra encontramos polinizado os norteadores éticos
para o combate da Separatividade Colonial de tal maneira esplêndida que necessitaríamos de um trabalho todo à parte
para aprender e se nutrir desta obra. Frases como “Enquanto a Terra não for livre eu também não sou”, “todo mundo é
um”, “refaça o laço”, “mano, crer que o ódio é a solução é ser sommelier de anzol”, “tudo que nóis tem é nóis” e “eu
descobri o segredo que me faz humano, já não está mais perdido o elo, o amor é o segredo de tudo, e eu pinto tudo em
amar-elo”, nos brinda com a Sabedoria Ancestral Ecofenomenológico-Decolonial que visamos.

17
Minha caneta 'tá fodendo com a história branca

E o mundo grita, não para, não para, não para

Então supera a tara velha nessa caravela

Sério, para fella, escancara tela em perspectiva

Eu subo, quebro tudo e eles chama de conceito

Eu penso que de algum jeito trago a mão de Shiva

Isso é deus falando através dos mano

Sou eu mirando e matando a Klu

Só quem driblou a morte pela Norte saca

Que nunca foi sorte, sempre foi Exu

Meto terno por diversão

É subalterno ou subversão?

Tudo era inferno, eu fiz inversão

A meta é o eterno, a imensidão

Como abelha se acumula sob a telha

Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa

Polinização pauta a conversa

Até que nos chamem de colonização reversa

Emicida – Eminência Parda [feat. Dona Onete, Jé Santiago & Papillon]

18
2. Sofrimento enquanto índice de Separatividade com a Vida

Se queres alcançar o Vale da Bem-Aventurança através do Salão da Sabedoria,


Discípulo, fecha com força os teus sentidos contra a terrível heresia da
Separatividade que te afasta do resto.

Helena Blavatsky

Helena Blavatsky, grande pensadora que rearticula a sabedoria tibetana, legada


dos Povos Originários da Terra16, nos diz que a grande heresia (causadora do sofrimento
humano) é a Ilusão da Separatividade: “Esta terra, Discípulo, é o Salão do Sofrimento, e
nele, ao longo de um Caminho de duras provações, há armadilhas para fascinar o Eu
através da ilusão chamada ‘Grande Heresia’”. (BLAVATSKY, 2016, p. 7). Com heresia,
Helena Blavatsky entende não um “pecado” que deverá ser pago em um lugar físico
chamado “inferno”, como rasamente o espectro (o que restou) da sabedoria ancestral
nos temp(l)os de hoje nos diz, mas sim que a heresia da separatividade é o próprio
inferno, aqui na terra, como um estado de presença desarmônico (sofrimento). A
ambiguidade do sofrimento aqui se faz ver: o sofrimento é o indicativo da própria
separatividade, ao mesmo tempo que torna visível a separação, aponta justamente para
o caminho possível de reconexão, ao escutá-la. Como Rumi descreve ao observar a
ambivalência do sofrimento: a ferida que tens agora é o lugar por onde a Luz entra em
ti17 (GALVÃO, 2016).

O desdobramento da Separatividade percebida por muitos pensadores culminou


em muitas descrições pertinentes, a seguir, tentemos ouvir a Separatividade a partir de
alguns destes.

16
O termo Povos Originários da Terra não só identifica “comunidades humanas ancestrais”, enquanto indicativo
temporal de sua presença na Terra, mas principalmente um vínculo qualitativo, um modo de presença com a Vida em
sua maior potência de fundamentação sagrada (por isso Originários, nos sentidos que Heidegger apresenta para
Fundamento (a este respeito: Gunter Figal, “Introdução à Martin Heidegger”), se tornando assim um conceito
importante para podermos compreender o presente trabalho. Talvez a ciência moderna se aproxime dessa
sabedoria/ontologia de melhor modo com a proposta de um "giro decolonial", mesmo que por vezes essas palavras
estejam vazias de Vida.
17 Para Lacan, por exemplo, esse é o caráter de linguagem do sintoma: anunciação da Separatividade, da ruptura.

19
a. Da Fuga dos Deuses: Apontamentos iniciais para a
preparação do caminho de pensamento sobre a
niilização da Vida como indicativo do modo de presença
da Separatividade

Nós chegamos muito tarde para os deuses e muito cedo para o ser.

Martin Heidegger

Nietzsche e Heidegger nos ajudam a compreender a desconexão com o Todo a


partir dos termos Morte de Deus e Niilismo (CABRAL, 201418); Fuga dos Deuses
(HEIDEGGER, 2015), Era da Técnica (HEIDEGGER, 2012b) Esquecimento/abandono do
Ser (HEIDEGGER, 2012), respectivamente. O diálogo possível entre Separatividade e as
noções acima apresentadas nas filosofias de Nietzsche e Heidegger demandariam um
extenso processo que não cabe aqui para o presente trabalho, o que nos é possível é
indicar que tanto para Nietzsche quanto para Heidegger, a “Fuga ou morte dos Deuses”
nos aponta para um esvaziamento de medidas para ser no mundo, a perca de densidade
ontológica junto à própria Vida.

Nietzsche identifica esse esvaziamento da Vida ao ser humano com o termo


Niilismo (CABRAL, 2014). Heidegger também observa esse esvaziamento da Vida através
de nossa Época, em seus estudos sobre a Era da Técnica. Esse esvaziamento é a perda
de fundamento que sustente um modo “Sagrado” de presença relacional com a Vida.
Para além do Dogma, Sagrado aqui nada mais é que um modo de presença que permite
que o ser dos entes se manifeste para comunidade humana de uma forma não
esvaziada, em plenitude de ser.

A nomeação dessa desconexão com Deus, não se trata da identificação de um


ente em meio a Vida que está biologicamente morto ou em fuga física, mas sim um
qualitativo-norteador para nosso estado de presença19, que está esvaindo. A

18 Cf. cap. 1 pág. 77 e segs.

19Estado de presença é uma descrição do acontecimento do próprio ato de existir. Enquanto conceito criado para o
presente trabalho, buscamos uma compreensão das variações de modos de ser/habitar. Na tradição filosófica, o que
mais se aproximaria desse conceito seria a noção de Cuidado, Clareira do Ser e Acontecimento Apropriativo na obra
de Martin Heidegger (também versando com uma possível “fundamentação” da abertura da existência para as
Tonalidades Afetivas Fundamentais).

20
identificação da Fuga dos Deuses é a descrição da destinação epocal de nossa era, do
estado atual de presença da civilização humana, onde um estado de Graça ou Sagrado
se perdeu. Se Oxóssi não mora mais na mata, não é por não estar mais lá, mas sim por
não podermos acessá-lo a partir de nosso atual modo de presença cotidiano20.

A Morte de Deus em Nietzsche, a Era da Técnica em Heidegger, os


desdobramentos na fuga dos Deuses, o esquecimento do ser... todas essas temáticas se
encontram na niilização da Vida, nesse esvaziamento da própria condição de
possibilidade da presença humana e sua relação com o todo, aqui reside a verdade da
Separatividade, e é justamente aqui que precisamos nos deter para abrir caminho de
compreensão entre Separatividade enquanto niilização da Vida e Sofrimento Humano.
Vamos à obra.

A niilização da Vida aponta para uma fixação no plano material, como Heidegger
descreve nossa relação com a Natureza em A Questão da Técnica, há um modo de
presença/um desencobrimento21 onde a própria realidade/natureza/o Todo é aberto de
maneira exploratória. A resultante deste processo de abertura do Ser do ente é
justamente a niilização da Vida, pois a exploração depende de uma fixação no caráter
material da realidade, inviabilizando assim um modo de presença humano que consiga
acessar o plano energético/espiritual/das Formas da realidade. Nos detenhamos ao
seguinte exemplo: uma curandeira só pode abrir cura através de uma planta, não por
ler isso em um livro, não por explorar uma potência material da planta para realizar um
processo de cura, mas sim em sua relação de amor e respeito com o ente vegetal, este,
em sinal de amizade, lhe lega sua potência curadora. A Técnica inverte esta ordem, não
é mais no silêncio que conseguimos colher o Ser das Coisas, sendo nós o canal de
manifestabilidade do Mistério da Vida, mas estamos incessantemente extraindo do real

20
Aqui também, vale a citação da modulação de presença ocorrida através da transição de práticas de cura das
curandeiras para a era farmacológica, bem como da medicalização da vida, até o giro da prática de cuidado do partejar
das curandeiras para uma prática da ciência médica, e todo o desenraizamento do sagrado a partir deste giro. A
radicalização da separatividade e o consequente esvaziamento ontológico da Vida se dá através dos modos de presença
relacionais humanos junto à Vida, mas os modos de presença são enraizados no próprio Espírito da Época, Espírito
Técnico este que enraíza o desenraizamento e distanciamento ontológico junto aos outros entes.

21
ἀλήθεια: Verdade, desvelamento, desencobrimento.

21
o que queremos. Essa poluição esvazia o espiritual na vida. Davi Kopenawa descreve
este fenômeno como A Queda do Céu (KOPENAWA & ALBERT, 2020).

A respeito da parte espiritual da vida, Hadot, comentando os ensinamentos de


Plotino, nos dá um bom exemplo do que está em jogo:

Qual é então a relação entre o mundo das Formas e o mundo sensível?


Se o primeiro pode ser visto através do segundo, se a visão do espírito
pode prolongar a visão do olho, é por haver continuidade entre os dois
mundos, é porque são a mesma coisa, mas em dois níveis diferentes.
Plotino insiste fortemente sobre essa continuidade: “Como este
mundo aqui poderia existir se estivesse separado do mundo
espiritual”? (HADOT, 2019, p. 43).

Quando Heidegger aponta para o caráter de entre do ser-aí humano


(HEIDEGGER, 2015) é justamente o caráter definitório da essência humana que ele está
ressaltando, somos Nada pois somos Cuidado (do Ser). Cuidado é presença que torna
possível a manifestabilidade do Ser e ente, não sendo uma ponte entre os dois, mas em
sua coetaneidade: radicalmente clareira do Ser.

A presença humana só pode se abrir para o plano ontológico-espiritual da


realidade a partir do acesso ao Silêncio.

O silêncio é o alimento da presença.

A presença é o alimento do espírito.

O sofrimento humano aponta justamente para a desconexão entre a


continuidade dos planos materiais e espirituais.

b. A Hermenêutica Contemporânea do Sagrado e o


Sofrimento na Fuga dos Deuses na obra de Kendrick
Lamar

Talvez nossa tradição precise de algumas contextualizações para a validação das


considerações hermenêuticas contemporâneas do Sagrado vindas de alguém como
Kendrick Lamar.

22
De saída, se faz pertinente o apontamento que, em algum nível, toda a produção
de saber da periferia do mundo resguarda os ecos das sabedorias dos povos
ancestrais, pois justamente por carregar esta sabedoria em sua tradição
(ancestralidade) também detém a sabedoria frente a norma do mundo técnico-
capitalista22. Este povo periférico, resultado da violência da norma do mundo
(FONCK & MARTINS, 2020), carrega em sua Vida ensinamentos de reconexão
importantes, pois, como nos descreve Kendrick Lamar,

Porque Ele disse que vai nos punir, os chamados negros, hispânicos e
índios nativos americanos, são os verdadeiros filhos de Israel. Os filhos
de Israel, eles vão ser punidos por seus pecados, por nossa
desobediência (LAMAR, 2017).

O que significa ser filho de Israel, senão a constatação de que este é um Filho Originário
da Terra - de Deus -? E que justamente a humanidade, por sua desconexão com os
princípios de Deus (ou seja, com seu caráter indelével de Cuidado, como descreve
Heidegger, 2012 e 2015), está em sofrimento. Pecado nada mais é que um nome para o
sofrimento, para a heresia da separatividade com o Todo.

Ao se defrontar com o caráter ambivalente do sofrimento (enquanto indicativo


formal da desconexão e também indicativo formal do possível caminho de reconexão),
Kendrick Lamar nos oferece a compreensão de que “Deuteronômio 28:28 diz: O Senhor
te ferirá com loucura, com cegueira e com perturbação de espírito. Olha, família, este é
o porquê você se sente com uma ferida em seu ombro. Até você finalmente entender,
você vai sempre se sentir dessa maneira.” (LAMAR, 2017).

O resgate dos mandamentos de Deus é justamente o resgate do modo de


presença harmonioso com o Todo. A Reconexão entre o plano espiritual e material.

22
A Separatividade, o Eu frente a separação do Uno, é uma das pedras angulares do capitalismo (mas também do
colonialismo, do racismo, do patriarcado etc.): o princípio de mais valia, motor do Capital, depende necessariamente
da subvaloração de uns para sobrevalorização de outros, aqui, a Separatividade já ganhou contornos comunitários e
epocal. Essas lógicas de nossa época humaniza o ser humano de tal modo que já o posiciona enquanto suas
possibilidades de desejo como necessariamente a sua vitória ante a derrota de outro: o capitalismo impede de modo
pleno o senso comunitário dos seres vivos.

23
Para colher os mandamentos de Deus, precisamos nos reencontrar com Ele.
Onde Deus habita? O Poeta23, nos diz que

Eu ouço o silêncio da mata

Ouço o silêncio do vento

Eu ouço o silêncio

Do meu pensamento

É no silêncio que Deus está

Com ele eu vou me encontrar

Eu ouço o silêncio da noite

Ouço o silêncio do dia

Eu ouço o silêncio

Da harmonia

É no silêncio que Deus está

É nele que eu vou me firmar

(Tony Jarbas, Hinário “Deus no Silêncio”, 2015)

23
Assim como entendido para Heidegger, como aquele que se encontra junto à Nascente do Ser; a partir disso,
podemos afirmar que o poeta é aquele que resguarda a deização dos Deuses na Terra.

24
3. A Identificação do modo de presença da angústia como indicativo da
espiritual condição humana: abertura para o silêncio, rearticulação
possível em Vida Harmoniosa como Modo de Presença Próprio

Tú que estás ahí,

sirviendo a la muerte,

paseas desinhibido por el inframundo,

por el inconsciente, te atreves a reír tumbado al sol,

siendo arena, siendo el viento.

El amor se extiende en los pasajes de tu memoria acercándose al fuego,

eres el todo, pero,

¿Quién eres tú?

¿Quién es al que escuchas pensar?

¿Quién sueña tu sueños?

Ahí donde el mar acaba, ahí puedas llorar.

Naces,

del fondo de la tierra,

del centro del espíritu, del borde del abismo.

¿Sabes respirar?

Observa el viento,

se arena, trae la vida en tus manos, en las manos del eterno,

abre el corazón

y deja,

deja que el sonido de tu alma vibre.

Advan Haschi - Onde o Jaguar Espreita

Quem somos nós? Heidegger nos diz que somos os que são capazes de poder-
apreender:

Todas as representações encapsuladas objetivantes de uma psique,


um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na
psicologia e na psicopatologia, devem desaparecer na visão
daseinsanalítica em favor de uma compreensão completamente
diferente. A constituição fundamental do existir humano a ser
considerada daqui em diante se chamará “Dasein” ou “ser-no-
mundo”. (...) O que o existir como Da-sein significa é um manter
aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que
aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira. (HEIDEGGER, 2017,
p. 34).

25
Mas quem é este que apreende? Como apreende? O que pode apreender? Neste
capítulo, tentaremos compreender a interconectividade entre o Plano Ontológico e
Espiritual na Realidade Material, onde o próprio ser humano tem como especificidade
ser o entre desses planos. O primeiro indicativo para esta tarefa reside na compreensão
da angústia humana como indicativo da condição espiritual deste ente que nós somos.

a. Da Espiritual Condição Humana: angústia e


espiritualidade

De saída, é necessário a contextualização do que chamamos aqui de espiritual


condição humana, a fim de entendermos como a angústia é um indicativo formal da
mesma e ao mesmo tempo abertura para o Silêncio (e o consequente acesso ao Sagrado,
à Deus).

O que aqui entendemos por espírito, é a síntese constitutiva da condição


humana, como descreve Kierkegaard:

o ser humano é uma síntese do psíquico e do corpóreo. Porém, uma


síntese é inconcebível quando os dois termos não se põem de acordo
num terceiro. Este terceiro é o espírito. (...) como se relaciona o
espírito consigo mesmo e com sua condição? Ele se relaciona como
angústia. (2018, p. 47).

Quando evocamos a questão da espiritualidade para compreendermos os modos


de presença humanos na Terra, associados ao sofrimento pela separatividade com a
vida, entendemos que ela é imprescindível para a psicologia pois

o que está em jogo com a espiritualidade é o cultivo de modos de ser


que impliquem a integralidade da existência humana no mundo. Essa
implicação se identifica com a produção de sentidos, que estruturam
a existência e legitimam sua estada no mundo. Mais do que o
seguimento de um conjunto de normas religiosas, a espiritualidade se
preocupa com a qualidade do sentido que estrutura a integralidade da
vida humana no mundo. (...) sua questão é o cultivo de sentidos para
esta vida, na Terra, com outros humanos e outros não humanos. Se o
problema da espiritualidade é a qualidade da existência, que se exerce
no mundo, então são os elementos desta vida finita, mortal, vulnerável
e interdependente que são ‘trabalhados’ e elaborados pela
espiritualidade. (CABRAL, 2020, p. 220-1).

Para Kierkegaard, a angústia é um estado de presença do ser humano frente ao


que o constituí, o Nada que nos fundamenta, estando assim diante da “angustiante

26
possibilidade de ser-capaz-de” (2018, p. 48), ou seja, diante do próprio espírito
enquanto condição fundante de poder-apreender. O modo de presença da angústia
acessa a harmonia trazendo à tona a afinação da paz, pois a angústia reside

neste estado (que) há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há algo de


diferente que não é discórdia (Ufred, discórdia, o contrário de Fred:
paz) e luta; pois não há nada contra o que lutar. Mas o que há, então?
Nada. Mas nada, que efeito tem? Faz nascer angústia. (2018, p. 45).

b. Angústia e Liberdade

Como defrontação com a própria constituição humana, a angústia é “a realidade


da liberdade como possibilidade para a possibilidade” (ibid.), dito de outra maneira, a
angústia é a constatação da Natureza Humana como radical abertura. Para Heidegger, a
condição humana radicalmente marcada pelo seu caráter de abertura é nomeada como
Existência24, compreendendo assim que a possibilidade para a possibilidade, a
liberdade, é liberdade-para-Ser, pois se o ser humano nada é previamente, em seu
caráter de ter-de-ser é livre para poder acolher a Vida e trazer à Realidade/mundo o Ser
dos entes através de seu caráter essencial de Cuidado(-do-Ser) (HEIDEGGER, 2012).
Justamente por isso, para Heidegger, o ser humano é marcado pelo caráter único de ser
formador de mundo.25

A liberdade, sendo este nada que constitui a natureza do ser humano,


justamente por ser o fundamento de Ser, nos acompanha em toda a nossa trajetória de
vida. A nossa peregrinação na Terra, com o respeitoso “fardo”26 de ter de ser, no tempo
finito27 para ser. O poeta se aproxima da condição humana e ao ver Deus nela, a
descreve:

Meus olhos de água

Meu canto de lágrimas

24
Ek-sistere, ser-para-fora, como descrito em Ser e Tempo.

25
A esse respeito, Heidegger, “Os Conceitos Fundamentais da Metafísica - Mundo - Finitude – Solidão”.

26
A respeito deste fardo: Ser e Tempo como um todo, e neste caso específico, págs. 375 e seguintes; bem como as
descrições acerca do caráter de Cuidado da existência humana.

27
Ou seja, por sermos Mortais e compreendermos nossa condição temporal.

27
Meu coração de Navegador

Eu Sou

Só um Barquinho no Mar

Meu Caminho de estrelas

Meu sonho mais lindo

Minha vida é um sopro de um Sonhador

Eu sou só uma folha no vento

Busco na Natureza

O canto mais lindo

Deus me deu alma de um cantador

Eu sou barulho, voz e silêncio

Passo abrindo caminhos

Rumo ao Infinito

Divina essência de um buscador

A mata bruta me mostra quem sou

Aonde eu bebo água

o Jaguar espreita

eu o vejo sou um caçador

Neste momento contemplo quem sou

Advan Haschi - Onde o Jaguar Espreita (grifo nosso)

Como nos aproximar da constatação do modo de presença da angústia? Um


desses modos, é observando-compreendendo um ser angustiado (a criança, o poeta).
Se faz necessário, de início, entendermos o Ser da Angústia em contraste com sua
corrente compreensão na cotidianidade, como ansiedade. A angústia “não é uma culpa
e, segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com a
felicidade da inocência28” (KIERKEGAARD, 2018, p. 46).

28
Como nos diz a compreensão originária da palavra: inocência, ou seja, sem-causa.

28
Para Kierkegaard, a criança consegue nos dar indicativos do modo de presença
da angústia, pois

observando-se as crianças, encontra-se nelas a angústia de um modo


mais determinado, como uma busca do aventuroso, do monstruoso,
do enigmático. Que haja crianças nas quais ela não se encontra nada
prova, pois o animal também não a tem, e quanto menos espírito,
menos angústia. (ibid.)

c. Modo de Presença Próprio em Heidegger

Eu vivo na Terra, no presente, e não sei o que sou.

Sei que não sou uma categoria.

Não sou uma coisa, um nome.

Pareço ser um verbo, um processo evolutivo, uma função integral do Universo.

Richard Buckminster Fuller

A angústia, enquanto afinação fundamental do ser humano, abre a possibilidade


da harmonia, a esta possibilidade harmônica de presença, Heidegger nomeia como ser
próprio, em sentido daquele que se apropria de si. Estruturados por Nada, a voz da
consciência que desvelamos no despontar da angústia é uma voz sem voz,
essencialmente silenciosa. Este movimento é “um mergulho interior, que o tornará apto
a ouvir a poderosa Voz do Silêncio, anterior à linguagem” (COLLINS, 2021, p. 14).

O cuidado próprio, como exposto em Heidegger, reconecta a tarefa humana na


Terra com a harmonização da Vida e dos seres, realçando o caráter transitório de
processo da existência humana, como comenta Lúcia Helena Galvão acerca da vida do
inventor Richard Buckminster Fuller:

se tornar um processo, com uma única intenção: agregar vida, da mesma


maneira que ele recebia vida, agregar vida ao mundo, agregar vida à
humanidade. (...) ele percebe que ele é verbo: verbos não se apegam à
substantivos, fluem através da linguagem. (2018).

A propriedade (ser-próprio), é essa harmonia que induz a uma ritmicidade,


notável neste modo de presença humana na Vida. Ao se defrontar com esse estado de

29
alma, nota-se uma “felicidade estranha”, bem como nos descreve Deleuze ao tematizar
o segundo de três gêneros de conhecimento no pensamento de Spinoza:

Eu mergulho no momento certo, eu emerjo no momento certo, eu flutuo no momento certo.

Eu evito a onda que se aproxima, ou, ao contrário, eu me sirvo dela.

Ora a onda me bate, ora a onda me carrega.

Eu me jogo!

Eu sei nadar. Eu sei voar.

É uma espécie de sentido do ritmo. A ritmicidade...

Que quer dizer “o ritmo”? O que quer dizer tudo isso?

(...)

Ah, eu sei nadar!

(...)

A gente sente que é uma felicidade estranha.

(DELEUZE, 2009, p. 240-243).

d. A Imensidão Íntima da Presença Humana: Cuidado


como capacidade de harmonizar a vida

[...] uma Arte de instaurar, ou Arte de fazer existir seres que ainda
vagam na penumbra, ficcional, virtual, longínqua e enigmática.
Portanto, todo seu pensamento poderia ser colocado sob o signo
desse chamado por uma “obra por fazer” – e por obra não se entende
aqui necessariamente obra de arte; mesmo o homem é uma “obra por
fazer”, incompleta, aberta, inantecipável. Assim, em cada caso, não se
trata de seguir um projeto dado que caberia realizar, mas abrir o
campo para um trajeto a ser percorrido conforme as perguntas, os
problemas e os desafios imprevistos aos quais é preciso responder a
cada vez, singularmente. O desafio vital que se coloca a cada um de
nós, pois, não é ‘emergir’ do nada, numa criação ex nihilo, mas
atravessar uma espécie de caos original e “escolher, através de mil e
um encontros, proposições do ser, o que assimilamos e o que
rejeitamos”. Nada está dado, nada está garantido, tudo pode
colapsar, a obra, o criador, a instauração[...] o trajeto vital é feito de
exploração, descobertas, encontros, cisões, aceitações dolorosas
(PELBART, 2016, p. 394).

30
Um modo de presença abre e instaura um modo de existência29, em um único
movimento, como um devir em bloco (DELEUZE & PARNET, 1998). A este movimento
que define a essência humana e sua vinculação com a Vida, Heidegger chama em Ser e
Tempo de Cuidado: cuidado é justamente a constatação de que os seres humanos
possuem modos de ser-aí (modos de presença), e que nesses modos de presença, o ser
humano abre (das possibilidades possíveis históricas) modos de existência (aqui usamos
a nomenclatura de Soriau, em Heidegger, isto fica mais evidente com o parágrafo 31,
onde “Existindo, o Ser-aí é o seu aí” (HEIDEGGER, 2012). Para essa experiência humana,
Heidegger também cunhou outros termos, como Pastor do Ser, Clareira do Ser, etc.

Estamos abrindo modos de existência da vida a partir do nosso modo de


presença a cada acontecimento (COELHO, 2020), como se estivéssemos capturando (e
aqui reside uma dupla captura, isso é o que Heidegger chama de Acontecimento
Apropriador, no Contribuições à Filosofia) na vida um modo dela ser: ao mesmo tempo
que abro a experiência de terror à uma mulher quando a olho violentamente na rua,
estou sendo violento. Este movimento de dupla captura, define o ser, o modo de
existência, do ente em questão no qual me relaciono (afetando-o e transformando a
atmosfera do espaço; isso é “energia”), mas ao mesmo tempo defino-me em meu ser
com este afeto. Quando uma rezadeira entoa seus cânticos com a arruma para curar um
enfermo, é em seu próprio modo de presença, em sintonia com um modo de existência
possível, abre a possibilidade da cura para o enfermo que a consulta. O elemento
curador nesta cena não reside na materialidade da arruda, nem tampouco
simplesmente na curandeira, mas é na relação, é no modo de presença que sintoniza
um modo de existência possível da relação entre todos estes elementos que abre a
possibilidade curadora.

Assim também é com os rituais. Rito é um Saber que abre Prática de Cura. Esse
modo de presença afina um modo de existência curador possível. Sabedoria enraíza a
experiência possível, aqui, na harmonia Sagrada da Vida. Em Deus. Toda planta de

29
Aqui deixaremos de lado uma problemática possível que a fenomenologia hermenêutica nos lega, acerca da palavra
existência (ek-sistere; ser-para-fora). Entendemos que para Soriau, os Modos de Existência em “Diferentes Modos de
Existência” são justamente os Modos de Ser para Heidegger de “Ser e Tempo”. Portanto, o que no presente trabalho se
encontrar como Modos de Existência, entenda, baseado em Heidegger, como Modos de Ser. O que aqui apresentamos
como Modo de Presença, entenda em meio à problemática do que é Existência e Cuidado em Ser e Tempo (e até mesmo
o que é ser-aí humano), e das contribuições sobre Acontecimento Apropriador e Habitação nas obras tardias de
Heidegger.

31
poder, desenraizada de sua ritualística, se torna uma mazela humana, por não abrir
Sagrado, apenas Poder (cocaína, maconha, álcool, tabaco, etc.).

A materialidade dos entes não encerra suas possibilidades ontológicas possíveis,


mas então, onde reside o caráter multifacetado do ser dos entes? A diferença ontológica
(ser não é ente) reside justamente naquele ente que pode questionar acerca dessa
diferença. O que traz à realidade um amontoado de peças de Lego ser, para uma mãe,
um amontoado insignificante de peças coloridas, e, para uma criança, aquilo ser um
prédio? (PELBART, 2016; LAPOUJADE, 2017; SORIAU, 2021) Neste exemplo conseguimos
captar a sutileza em que a questão presente se insere. Os modos de presença humana
abrem a realidade e instauram existências possíveis, assim também são as curandeiras:
seu modo de presença junto à árvore abre na existência desta seu caráter curador. Isso
não tem relação com livros. Abrir modos de existência não é um exercício lógico ou
racional, tem a ver com a capacidade de habitação (HEIDEGGER, 2012c).

Assim também é como somos-com os outros humanos. Ser-com, é um dos


caráteres definitivos do ser humano. Alguém só poderia ser algo como alegre, amoroso,
raivoso, em relação com outros seres do Um. Os afetos aproximam ou afastam a
harmonia com o Um.

A angústia é o modo de presença que restaura a possibilidade para possibilidade


dos modos de existência, a esse caráter rearticulador da essência humana, chamamos
de liberdade (HEIDEGGER, 2012a).

Intimidade é um modo de presença onde os modos de existência podem


aparecer sob a forma da harmonia.

Um modo de presença é radicalmente marcado pelo seu tom afetivo; como se o


ser humano, por ser marcado por esses tons afetivos, pudesse trazer
tridimensionalidade ao ser dos entes, pois “a ciência geográfica não dá conta da
experiência um tanto angustiante de um bosque [...] a floresta é um estado de alma”
(BACHELARD, 1988, p. 228), quando Bachelard nos traz essa frase, de sua obra A Poética
do Espaço, reside nesse capítulo o título “A Imensidão Íntima”, pois então, qual é a
relação da imensidão íntima com a poética do espaço?

32
Espaço não é algo calculável, por isso mesmo, espaço se dá de maneira poética,
o modo de existência do espaço depende do modo de presença do ser humano para se
abrir de tal ou qual forma. A essa experiência afetiva da presença humana, Bachelard
chama de Imensidão Íntima. Ela é a angústia, é a nossa imensidão íntima enquanto
capacidade de ser afetado pela Vida e poder extrair desse contato uma possibilidade
possível, um modo de existência, da mesma, a partir do modo em que ela ressoa em
nosso modo de presença.

A morte de Deus, A fuga dos Deuses, o Esquecimento de Ser (aqui não nos
importa no momento a diferença conceitual, mas justamente o que é importante aqui
é o que liga estes conceitos), apontam justamente para o esquecimento fundamental
na ligação e fundação entre modo de presença e modo de existência/de ser. A morte de
Deus simboliza a perda do fundamento de nossa época, de nosso tempo histórico, para
a capacidade de harmonizar as existências a partir de nossa presença humana.

Os modos de sofrimento humano (depressão, ansiedade etc.) apontam


justamente para a Morte de Deus, pois revelam a incapacidade momentânea de um
modo de presença estar harmônico com a Vida. Algo cindiu ali, algo se Separou, algo de
Vital foi momentaneamente perdido, como um rio que abruptamente esquece como
continuar a fluir.

33
4. Do Silêncio, Da Cura e do Habitat de Deus

Quando Heidegger nos conduz ao interior da questão do acontecimento


apropriativo, nos diz que ele é a voz do acontecimento que não tem voz, e é deixando
ser-apropriado do acontecimento apropriador que escuto sua voz (HEIDEGGER, 2015),
em sua essência: silêncio30.

Helena Blavatsky aponta que a “’Voz Sem Som’, ou a ‘Voz do Silêncio’. Do ponto
de vista literal, talvez a melhor tradução seja ‘A Voz no Som Espiritual’, já que Nada é a
palavra equivalente, em sânscrito, de um termo em senzar” (2016, p. 5). Heidegger
quando compreende a essência humana como Nada (também descrita como
Liberdade31), está justamente olhando para o caráter indelével espiritual da condição
humana.32

A partir do que aqui está exposto, resgatar o caráter espiritual da Vida humana
é um caminho necessário frente ao modo de como escutamos o sofrimento humano.
Quando a reconexão entre a vida humana trans-passa seu caráter material-objetivo
estudado pelas ciências técnicas modernas, realizamos um salto qualitativo para dentro
do problema do sofrimento enquanto ilusão da separatividade33. Como comenta Helena
Blavatsky,

quando diante do tumulto do mundo a tua Alma, florescente se põe a


escutar; quando tua Alma responde à voz ruidosa da Grande Ilusão
(Maha-Maya, a grande ilusão, o Universo objetivo); quando, assustada
por ver as lágrimas quentes do sofrimento, ensurdecida pelos gritos de
aflição, tua Alma se retira como a tímida tartaruga para dentro da
carapaça do SEU PRÓPRIO INTERIOR, percebe, ó Discípulo, que tua
alma não é um templo digno do Silencioso ‘Deus’ dela própria (2016,
p. 6).

30Também importante para melhor compreensão da noção de Silêncio, consultar Luz no Caminho, de Mabel Collins
(2021).

31
A respeito da correlação entre a condição humana enquanto Liberdade e Nada, consultar HEIDDEGER, A
Essência da Liberdade Humana: introdução à filosofia, 2012a.

32
O que, para a psicologia técnico-científica, se trata de um tabu, de uma palavra não-científica, mesmo que
paradoxalmente a questão espiritual seja indelével ao ser humano, como constatado, por exemplo, no pensamento de
Kierkegaard, em obras como “O Conceito de Angústia”.
33 Nos falta fôlego para pormenorizar a conexão entre cura/saúde e silêncio no presente trabalho. Ficam os indicativos
de, além da “Voz do Silêncio” de Helena P. Blavatsky, a obra “Luz no Caminho”, de Mabel Collins (2021), ambas
traduzidas por Fernando Pessoa para língua portuguesa.

34
Como descrito acima, Helena Blavatsky recupera a sabedoria ancestral tibetana
para dar luz ao cerne constituinte da vida humana, seu próprio interior, este nada que
silenciosamente é Deus ao poder escutá-lo e dar harmonia ao caos constitutivo da Vida.
O ruidoso modo de presença desarmônico, fonte do sofrimento humano, só é passível
de ser curado ao ouvir esta voz silenciosa, da Anunciação dos Deuses na Vida, através
de nós mesmos. Heidegger chamaria esta experiência de clareira, identificando a
linguagem como morada do Ser, ou na compreensão de que somos-o-aí no qual
habitamos e participamos da Fundação do Ser em forma de História.

Essa afinação harmônica com a Vida, sendo uma sintonia que define um modo
de Ser possível a partir de um modo de presença, desemboca na superação da ilusão da
separatividade, reconectando o ser humano através de seu modo de presença
harmonioso, com a matriz da vida e cura o ser humano como o Todo; ao mesmo tempo
que o permite ser curador, pois em essência, “o homem é feito à imagem e semelhança
de Deus” (Gênesis 1:26-27). Esta afinação depende de uma posição respeitosa ao
encarar a Vida, pois

respeito vem de "respicere", saber ver. Você vê por trás de cada coisa
um episódio do divino, como em você. Quando não deseja (ter) as
coisas, não pense que você as trata pior, você as trata melhor. Porque
respeita as coisas por elas mesmas e não pelo que elas podem te servir
(GALVÃO, 2016).

Respeito este, que sendo sintoma do modo de presença harmônico, faz com que o ser
humano possa perceber que “quando eu começo a fazer as coisas por um verdadeiro
sentido de Unidade, sem querer deixar para trás nenhum pedaço dessa Unidade”
(Ibidem), a cura do Todo se torna a sua própria cura ao superar a separação Eu-Todo (ou
seja, ao superar a ilusão do egoísmo34).

Mas afinal, o que seria essa “sintonização”, esse tom? A este aspecto da condição
humana, Heidegger descreve como Afinação.35

34 Em outros termos, este é justamente o “ser próprio”, ou o “Singular” em Heidegger (2012).

35
Na tradução de Ser e Tempo de Fausto Castilho, Encontrar-se (befindlichkeit), característica essencial da abertura
do ser humano na Vida. Optamos por harmonizar as compreensões possíveis do Encontrar-se através do termo
Afinação, Tom ou Tonalidade Afetiva, pois, a depender da etapa do texto, darão a tônica que busco ressaltar. Assim
como a afinação de um instrumento abre o seu campo de possibilidades musicais, a afinação humana é a estrutura
básica de sua abertura para receber e criar a vida, para Parir-Ser na ressonância do escutar dos Deuses.

35
a. Afinação e Cuidado em Heidegger

Como o saber-escutar-Deus nas Plantas de um Xamã, que ao sintonizar com a


partícula divina nas plantas consegue ressoar a sua cura em outros seres vivos, “o Dasein
é o ser desse ‘entre’” (HEIDEGGER, 2012, p. 379). O que o cuidado humano sintoniza em
nossa era, é a exploração técnica da vida, este posicionamento obstrui um modo de
presença harmonioso com a vida. O exemplo xamânico acima aponta essa radical
diferença: se o humano colonial depende de um conjunto de técnicas científicas para
extrair de uma planta seu caráter curador (como na produção de remédios), no
xamanismo a própria presença relacional com a planta abre esse saber. Um Pajé ou uma
curandeira não aprende em livros como fazer um banho de ervas ou um chá, mas é no
escutar das próprias plantas que colhe essa sabedoria, como no caso do Santo Daime
para Mestre Irineu (MOREIRA & MACRAE, 2011)36.

Quando Heidegger define o ser humano como Cuidado, é por observar justamente
sua capacidade frente à Vida de gerar valor37, pois “o ente que é essencialmente
constituído pelo ser-no-mundo é cada vez ele mesmo o seu “aí” (HEIDEGGER, 2012).
Este modo de conceber a estrutura da Vida Humana através do Cuidado 38, é o modo
como Heidegger consegue se livrar do resquício subjetivista da noção Husserliana de
Intencionalidade39 e sua consequente separatividade do Todo a partir desta proposição.

Como Heidegger identifica, a intenção (intencionalidade) humana é um “cuidado-


desafastante-direcionado” (ibidem). O que o cuidado desafasta e direciona é justamente
uma possibilidade de ser do ente em questão (seja dele mesmo ou de outro ente),
trazendo à tona (de potência para ato, do espiritual ao material) a partir de sua
sintonização, um modo de ser da Vida.

36
A este respeito, vale a indicação da obra: MOREIRA, P. & MACRAE, E. Eu venho de longe: mestre Irineu e seus
companheiros. Bahia, SciELO & EDUFBA: 2011.

37
Qualidade.

38
Sorge, em alemão. Em algumas traduções como preocupação, ocupação. Preferimos manter como Cuidado por
expor melhor o pensamento proposto no presente trabalho.

39
Literalmente, tender-ao-interior-de(-o-fenômeno).

36
A riqueza da percepção de Heidegger é inominável. Temos em termos descritos a
própria condição humana ela mesma, enquanto instauradora de Vida, ou, nas palavras
de Heidegger, como Pastor do Ser, que abre na Vida o que é intencionado em si, ouvindo
do Ser (Deus) uma possibilidade possível no Real: ser-no-mundo.

Para nomear essa Instauração, essa intencionalidade, Heidegger se vale da palavra


grega verdade40, como ele indica, ela é a abertura constitutiva do Ser Humano, uma
clareira, que traz à luz uma possibilidade de ser, em seu como:

O discurso ôntico figurado do lumen naturale do homem não significa


nada mais do que a estrutura ontológico-existenciária desse ente, que
é no modo de ser seu ‘aí’. Ele é ‘iluminado’ significando: como ser-no-
mundo ele é em si mesmo iluminado, não por receber a luz de um
outro ente, mas porque ele mesmo é claridade da clareira (2012, p.
381).

Quando um detentor da Sabedoria dos Povos Originários da Terra realiza um


processo de cura através de uma Medicina da Floresta, em modo de chá, inalação, etc.,
ele está se deixando-ser41 canal de cura através da própria Medicina inerente ao Ser da
Mata. Enquanto Clareira do Ser, possuímos a capacidade de nos afinar com outros seres
vivos e trazer ao ato suas potencialidades (do plano das Formas ao plano da Matéria42).

Nenhum debitário da Sabedoria de Cura Originária da Terra necessita ler um livro


para exercer esta prática de Cura, ele escuta Deus na natureza, e por isso pode servir de
canal para esta cura. Talvez esta última afirmação soe como esotérica aos que não
conseguem reconhecer essa potência humana, mas ela está lá, ou melhor, aos que ainda
estão vivos e podem escutá-las, ela está aqui, mas se perdendo conforme o cientificismo
técnico avança, com a morte dessas Sabedorias Originárias decorrente da maquinação
farmacológica e Médica de nossa era.

A capacidade de nos conectarmos com a vida está tão afetada, tão distanciada de
nós, que até para conseguirmos compreender a necessidade vital do outro - na clínica,
por exemplo – necessitamos dos instrumentais técnicos da ciência moderna.

40
ἀλήθεια.

41
Serenidade; Silêncio como abertura primordial de Ser. A esse respeito, consultar Serenidade (2000) e Caminho do
Campo (1969). Como afirma o poeta: “É no silêncio que Deus está”.
42 HADOT, P. 2019. Págs. 39 e segs.

37
O Modo de Presença ansioso, depressivo etc. traz com ele mesmo alterações das
inúmeras formas do manifestar-do-sofrimento-pela-separatividade. O ritmo
respiratório, o ritmo de fala, o olhar e sua direcionalidade. Na clínica, poucas vezes
conseguimos estar abertos para acolher estes sinais, tendo a necessidade de solicitar
uma descrição da própria pessoa em nossa frente sobre o que ela sente. Porque isto não
me é perceptível ao simples entrar-em-contato com a pessoa enferma? Por estar
anestesiado, com o olhar cientificamente entorpecido. Assim como os povos originários
colhem nas plantas a sua sabedoria, podemos colher na própria presença vital o
adoecimento do paciente. A nossa dificuldade em realizar este procedimento atesta
justamente a identificação de Heidegger frente a atual condição humana: o niilismo.43
Heidegger atesta isso ao introduzir o propósito da obra Ser e Tempo, ao posicionar a
precedência da questão-do-ser como algo que

ambos (Platão e Aristóteles) conquistaram (e que) resistiu ao preço de


muitos desvios e ‘retoques’ até a Lógica de Hegel. Aquilo que de modo
fragmentário e numa primeira investida foi um dia arrancado dos
fenômenos pelo supremo esforço do pensamento de há muito se
trivializou (2012, p. 33).

O que se trivializou aqui, é justamente essa conexão pujante com a matriz da Vida.

Ao buscar entender nossos Modos de Presença, buscamos justamente ressaltar o


caráter modal (de possibilidades) nossas de vinculação com a Vida e suas respectivas
qualidades (valores). Se o modo como afetivamente estamos presentes abre a realidade
de um determinado modo, é justamente a afetividade enquanto essa afinação que nos
possibilita a harmonia e desarmonia no Todo.

Ao identificar a afinação como estrutural para o caráter de cuidado que define o Ser
Humano, Heidegger afirma que, onticamente, “o estado-de-ânimo deixa manifesta
‘como alguém está e como anda’” (2012, p. 385), a saber, justamente este como alguém
está e como anda é o que identificamos como Estado ou Modo de Presença. Para
Heidegger, é “nesse ‘como está’ o ser do estado-de-ânimo leva o ser a seu ‘aí’” (ibidem),
trazendo à tona o Ser possível em questão, ressoante a seu modo afetivo sintonizado
em sua presença, como descreve Heidegger, mesmo o ser humano tentando se alienar

43
Assim como em Nietzsche. Chamamos de niilismo aqui pois, a própria nadificação da vida é resultado (e/ou
resultante) da Separatividade (e consequente desarmonia) com o Todo, que sustenta estruturas histórico-sociais como
a Colonialidade, o Capitalismo, o Patriarcado, o Especismo etc.

38
de seu caráter fundamental como cuidado, como ser-o-aí44, é justamente “naquilo para
que tal estado-de-ânimo não dá atenção, o Dasein se desvenda em seu entregar-se a
responsabilidade do ‘aí’. O ‘aí’ é aberto na esquivança também” (2012, p. 387).

44
Ser-em-o-mundo (HEIDEGGER, 2012).

39
5. Do Sofrimento da Separatividade à sua Cura: Intimidade como
Método Clínico

O que define a posição do mestre é que ele cuida do cuidado que aquele que
ele guia pode ter de si mesmo, diferentemente do médico ou do pai de família,
ele não cuida do corpo nem dos bens. Diferentemente do professor, ele não
cuida de ensinar aptidões e capacidades a quem ele guia, não procura ensiná-
lo a falar nem a prevalecer sobre os outros etc. O mestre é aquele que cuida do
cuidado que o sujeito tem de si mesmo (FOUCAULT, 2010, p. 55).

Como levarmos a reflexão do presente trabalho acerca da separatividade com o


Todo e sua possível cura? No horizonte da psicoterapia, intuímos que um dos modos de
realizar esta conexão é justamente a intimidade.

Para refletirmos sobre a Intimidade e a Clínica, dialogaremos com Beto Machado


e sua obra “Intimidade como método clínico: Ensaio de fundamentação de uma
psicologia com bases fenomenológica e hermenêutica” (2019). Ali podemos observar
como a psicoterapia pode ser um espaço que resgata o estado de harmonia, não falando
sobre ele, mas experienciando-o no acontecer clínico. Deste modo, o espaço de terapia
se configura como o encontro entre seres humanos que experienciam conjuntamente o
sofrimento (que norteia o trabalho, enquanto indicativo formal do ponto vital de
desconexão) pela desarmonia (e sua consequente desvinculação com a vida), nomeia,
acolhe, e des-cobrem juntos a própria harmonia possível em um modo de presença
conjunto na relação (ou seja, a própria relação entre psicoterapeuta e paciente supera
a cisão com o Todo: a este fenômeno, damos o nome de intimidade).

O Silêncio descrito no presente trabalho, se revela aqui como o norteador da


prática clínica, sendo compreendido então como uma postura frente ao Sofrimento:
uma hermenêutica negativa (SÁ, 2017; FONCK, 2019). Silêncio não se trata de ser-
calado, mas de deixar-ressoar a afetividade presente que sintoniza a relação ali
existente. A poluição mental característica do modo de presença ansioso ecoa na
intimidade da relação terapêutica, e assim se torna passível de ser nomeada e
defrontada. A nadificação característica do modo de presença da depressão vem a luz
na relação, e assim pode ser cuidada.

40
A intimidade se instaura visando a recondução não apenas do paciente à sua
liberdade constitutiva do estado inaugural da angústia, mas vivenciando o afetivo modo
de presença harmonioso entre os seres na própria relação terapêutica. Este é o
horizonte clínico da “alta”, da constatação da Saúde-de-Ser e o caminhar pleno na vida.

A Intimidade como Método Clínico resguarda a possibilidade de reinserção do


paciente à totalidade da Vida, em um modo de presença sereno45.

É no modo de presença relacional da intimidade, que o silêncio se instaura como


um acolher do que se manifesta por si, em sua misteriosa multiplicidade. Essa conexão
respeitosa, não judicativa ou pré-conceituosa, é o que permite não só o trabalho
terapêutico, mas também povos originários se relacionarem igualmente com uma
árvore, a ponto de chamá-las de povo-em-pé (SAMS, 1994). Essa relação harmoniosa é
o que permite que nos nutramos enquanto nutrimos os outros seres vivos.

45 Evitemos aqui levantar juízos de moral e valorações que não estão presentes no conceito. Serenidade (gelassenheit,
literalmente, deixar-ser) não é passividade frente a vida, muito pelo contrário. A clínica também é local de identificação
das lutas que valem a pena serem lutadas na vida, lugar de acolhimento da revolta e da resistência que dá sentido de
ser e busca fazer viver a Vida, em todos os seus elementos e seres constitutivos.

41
6. Conclusão: Ecofenomenologia dos Povos Originários da Terra
(Ontologia, Natureza, Ciência-Técnica: Da Colonialidade do Ser ao
Movimento Contracolonial)

O presente ensaio introdutório se propôs a inicializar e fomentar indicativos


acerca da problemática da Separatividade e do Sofrimento humano em sua relação com
a articulação com o sofrimento do Todo.

De saída, é necessário compreendermos que, a Separatividade sustenta o


paradigma técnico da niilização da vida através da fixação no plano material da realidade
em detrimento da dimensão espiritual (Formal) da realidade, esta fixação é o que
sustenta a exploração humana em seu modo de presença relacional com todas as outras
formas de vida.

A fixação material da exploração técnica carrega em si um resíduo positivista e


uma tendência a-histórica em sua base, que quase não nos faz perceber o quão está
presente em nossos olhos e discursos; o quão está presente em como a vida se abre
para nós. Cabe a nós nos perguntarmos “o que o buscador busca”: o que nossos olhares,
nossos dizeres, nossos gestos buscam na realidade, o que o sustentam em sua base de
ação.

O Silêncio, enquanto A Voz no Som Espiritual (BLAVATSKY, 2016), é o que


sustenta um campo de tensionamento para o deixar-ser (serenidade) do ser dos entes
se manifestar. Nesta contenda, o dilema da aparição técnica do ser dos entes para nós
enquanto exploração pode vir a tona, tematizado e acolhido, sendo aqui o sofrimento o
indicativo de onde a exploração relacional da presença humana se enoda e precisa ser
rearticulada. Intimidade enquanto método clínico é o acesso ao Silêncio de maneira
partilhada em busca do desatar dos nós da Separatividade.

É o ouvir do clamor da voz da consciência (HEIDEGGER, 2012), essa voz sem som,
que abre ser na Vida - ou melhor, deixa-ser (SÁ, 2017) - de um tal modo onde o que se
mostra, o ser de algo sobre algo, é propriamente o fluxo intuitivo-intencional da Vida, a
própria matriz poética46 da Vida. Esse redirecionamento Fundamental, abre um outro

46 Poiesis enquanto verdade: produção.

42
modo possível de habitação na Terra, um outro modo de presença relacional entre os
Seres Vivos. Esse silêncio, quando acessado, torna possível que a Separatividade do
Plano ontológico-espiritual com o Plano material seja suprimida, e assim uma ética
respeitosa e amorosa com a Vida possa entrar em disputa na vida deste humano em
questão.

O que conhecemos hoje como Plantas de Poder, desde a Marijuana e os


Cogumelos até a Ayahuasca e o Tabaco, abrem em seus respectivos modos esse campo
não dual através de seus específicos Silêncios47. Essas aliadas na jornada contra a
Separatividade, quando bem manejadas se tornam fortes instrumentos para o despertar
da consciência, para ouvir a voz sem som do clamor da consciência (HEIDEGGER, 2012).

Por fim, o que está em jogo para nós nada mais é do que o resgate do que a
Colonialidade do Ser tenta soterrar, do que toda a tradição exploratória-técnica deixa
invisível para se fazer-viger: a saber, a própria harmonização dos Seres Vivos.

O fenômeno da Queda dos Céus (KOPENAWA & ALBERT, 2020) deixa-ver


justamente essa niilização da vida e sua consequência: a própria extinção da Vida. Esse
fenômeno tem por base a própria radicalização da Ilusão da Separatividade.

Os Saberes Originários da Terra Fundam48 um Povo, esse Fundamento define


ontologicamente o campo de possibilidades de ser dos entes ao redor deste povo. O
cuidado - com o ser – presentes em tais Povos funda uma outra ontologia, uma
ecofenomenologia baseada na não Separatividade, na relação amorosa e respeitosa
entre os Seres Vivos. Essa Ecofenomenologia dos Povos Originários da Terra é o que os
possibilitaram, por exemplo, em viver por milhares de anos sem o Deus-técnico-
farmacológico em sua cultura para curar suas mazelas, pois era o próprio deixar-ser-
curadora das plantas em sua relação Sagrada com elas que abria o campo
medicamentoso e de cura nas plantas, essa relação Sagrada é tão necessariamente
ontológica quanto um dilema de um modo de presença relacional específico.

47Sempre necessário pontuar que o caráter material de uma Medicina da Floresta não encerra suas potências (benéficas
ou maléficas). Toda Medicina da Floresta, toda Planta de Poder, necessita de uma ritualística para que se intencione-e-
desvele uma Prática Sagrada. Essa Prática só é Sagrada a partir da orientação dos Saberes Originários da Terra.

48 Fundamento, Grund.

43
Antes de podermos fundamentar nossas ciências e saberes a partir destes Povos,
também precisamos nos deixar entender além do que está em jogo principalmente nisso
(como a hecatombe terrestre), mas onde nos perdemos, e em troca do quê. A Doença
Humana começa no próprio Modo de Presença Relacional Exploratório com os outros
Seres Vivos, é este Modo de Presença que fundamenta todas as manifestações de
exploração (colonialidade, patriarcado, racismo, sociedade de classes, etc.), a base dos
dilemas relacionais da humanidade reside nos próprios paradigmas da Exploração e
fundamentalmente na Separatividade. Enquanto não nos debruçarmos sobre essas
problemáticas, toda tentativa de “reparo social” será um cuidado do sofrimento
humano e do Todo de maneira a combater um sintoma, e não a causa, a matriz desta
problemática.

44
7. Indicativos futuros

É impossível (e nem é nosso intuito) esgotar as possibilidades e necessidades de


compreensões ecofenomenológicas de Nosso Sofrimento, mas frente a atual crise que
a humanidade cria e passa, não podemos virar nossos olhares para o presente estado
em que nos encontramos. Alguns indicativos de (r)existências necessárias para
consideração do nosso sofrimento contemporâneo perpassa necessariamente pelo
resgate e valoração das sabedorias e práticas de cura dos Povos Originários da Terra, é
justamente lá que os Deuses ainda se refugiam com vigor.

O norte de pesquisa é adubado pelas seguintes questões:

- O apagamento do Sagrado nas ritualísticas 49dos Povos Originários da Terra através da


colonização, capitalismo, racismo e patriarcado mostra um nexo vital com o uso abusivo
das medicinas da Terra (Marijuana, Coca, etc.), justamente esse desenraizamento da
Sacralização e Deização das práticas de cura através das ervas sagradas, escraviza o
usuário das mesmas;

- A aniquilação das práticas de cura dos Povos Originários realizado pela Era da Técnica,
niilizando práticas sagradas, como o parto e a cura farmacológica (a farmacologia e
medicina científicas anulam os Saberes Originários de Cura das parteiras, dos pajés etc.,
por não se enquadrar na métrica técnico-científica);

- A conexão, em termos gerais, com a Vida, onde se afugentam os Deuses que nos
rodeiam, assim como os Deuses que moram em nós, para continuação da maquinação
técnico-capitalista-patriarcal-colonial-racista;

- Estudo clínico da conexão entre a aflição tempo-espacial-corporal dos estados de


sofrimento humano (depressão, ansiedade, esquizofrenia) e a Mãe Terra;

- Era da Técnica; Niilização da Vida; Epistemicídio como modus operandi da Técnica de


se des-dobrar na Vida.

49 Ritual: Saber que abre Prática de acesso ao Sagrado.

45
8. Bibliografia

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50
Fragmentos do Caminho (Lado B)

O caminho de um pensamento depende sempre de seu percurso. Um


caminho é o caminhar, a qualidade do caminho está no que é visto.

O que ando vendo caminhando? Justamente é isso que sustenta a


vida do pensamento.

Pedra bruta que demonstra o que vislumbro ao ser motivado a


escrever: fragmentos do caminho.

a. Introdução Parabólica às Meditações Filosóficas50:


Ciência-Técnica como Destinatório51 da Humanidade e
da Mãe Terra

A tarefa de Introduzir à Filosofia, não é o oferecimento de informações


estruturadas de tal modo que se possa transitar em um campo de saber
nomeado como filosofia, muito mais que isso, Introduzir à Filosofia, é
introduzir justamente na matriz vital que sustenta o Saber Filosófico em
seus muito mais de dois mil anos de existência, bem como introduzir o
exemplar52 humano que carrega tal sabedoria.

50 Introdução à Filosofia como Exercício Espiritual. A exemplo de:


“Abraão como protótipo de uma nova existência em Mircea Eliade e a fé como movimento envolvendo o finito e o
infinito em Kierkegaard”, de Luiz Carlos Mariano da Rosa, 2018. Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/dr/article/download/38802/20327/97678.
“A fé como ‘salto qualitativo’ em Kierkegaard e o desespero da busca do Absoluto na imanência entre o poeta, o herói
trágico e o cavaleiro da fé”, também de Luiz Carlos Mariano da Rosa, 2019. Disponível em:
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/bauman/article/view/12496
51 Jogo de palavras frente a Maquinação da Técnica: Destinatária-Destino de Ser.
52 Aquele exemplar que, finito em meio ao Infinito, se torna Memória (mnemosyne: Filha de Céu e Terra [Urano e
Gaia, respectivamente]. Literalmente, filha do encontro do divino no terreno; fagulha do infinito no finito.
No sentido “Grego”, Memória enquanto aquele Exemplar do Infinito em meio ao Finito: Trágica Heroína.
“Sentido Grego” no que hoje nomeamos de Filosofia Antiga. Antiga, inclusive, por ser um Acesso Ancestral ao Ser.
Exemplar, também, por ser aquele mortal, Cavaleiro da Fé [em seu teor de salto qualitativo], no qual deixa como o
exemplo não o que se fazer, mas sim como se fazer: Como se Caminhar na Vida. Ao que se Intenciona na Vida e é o
que nasce nela, se Ser é Tempo e eu Sou Tempo, Instante-fagulha-finita divina (Céu) na Terra (Gaia), a cada vez estou
parindo a Vida (enquanto resultante da contenda Céu-Terra, a este respeito, consultar a quaternidade nas Contribuições
à Filosofia de Heidegger [2015]), fazendo-nascer Ser na Vida.).

51
No rio da Vida, sendo-Eu-finito-no-infinito, sou apenas caminho:
apenas canoa.

Quem carrego em minha canoa, que direciona-a?

Quem carrego define que canoa sou. Canoa-canoeiro. Sendo-finito-


no-infinito, herói trágico, busca olhar nos olhos de Deus e ser o espelho
dele, sua imagem53 e semelhança.

O que direciona a humanidade para seu Destino? O que Destina à


humanidade ao passo que configura o modo de abrir (d)a “realidade”54?
Seriam estas questões Filosóficas?

O que carrego em minha barca são valores e princípios, e é de longe


que eu venho. Em minha barca, carrego Deus.

Enquanto a autômata Ciência-Técnica vigorar em meio a


humanização da humanidade, a Destinação enquanto finalidade que
abre Ser para o humano estará em Perdição.

Ao que só reconhece em meio às águas a hidrelétrica55, Iemanjá e


Oxum não se banham nessas águas.

A Globalização Técnica afugenta a presença dos Deuses junto a


nós; ou seja, distancia nossos Saberes56 da possível afinação-Sagrada57

53 ἰδέᾱ.
Inclusive, aqui ressoa a problemática da Heresia da Separatividade. Como comenta Heidegger, sobre o contexto do que
seria essa imagem de Deus (ἰδέᾱ) enquanto horizonte orientador da humanidade, na busca da deização da Vida em meio
a necessidade do Outro Início após a constatação da Fuga dos Deuses: “Sobretudo no outro início é preciso que – em
consequência da pergunta acerca da verdade do seer – seja logo levado a termo o salto para o interior do ‘entre’. O
‘entre’ do ser-aí supera o χωρισμός (chōrismós, separação); não na medida em que ele constrói uma ponte entre o Ser
(seer, seyn, a entidade) e o ente como margens por assim dizer presentes, mas na medida em que ele transforma o Ser
e o ente ao mesmo tempo em sua coetaneidade.” (2015, p. 29-30).
Falar em nome de Deus; Falar em Verdade; justamente isto define ser este “Entre” do Outro Início.
Outro início pois o princípio define as possibilidades do caminho. A necessidade do Saber Originário é Saber que no
Início Era o Verbo (sobre verbo, Psicologia pós-identitária, primeira parte sobre devir e a gramática existencial),
portanto, a instauração, a criação: devir.
54“Realidade” enquanto percepção da autodação (intencionalidade) da vida. Mas sempre Intencionalidade só se dá
enquanto abertura-e-recepção-de-Ser. (consciência é sempre consciência de; Cuidado com o Ser é o movimento
qualitativo que instaura-o enquanto algo como algo. Quê algo é esse? Ser se dá em meio ao movimento de Valoração
da Vida, em meio ao nosso Modo de Presença junto à própria Vida).
55 Heiddeger, A Era da Técnica.
56 em forma de Ciência, Ambientalismo, Filosofia, Psicologia, Teologia, Sociologia, etc. etc.
57Afinação, Disposição, Tom, Tonalidade, Tônica, Matiz: sintonia na Vida que Abre-Ser, simultaneamente em nós e
na realidade, essencialmente entre.

52
habitando no ecoar-direcionador da Finalidade Destinadora do Último
Deus no Além do Homem, propiciadora de Práticas58 de relação
Significativa com a Vida.

Valoração da Vida se dá a partir do Modo de Presença Humano na


Vida, ressoando em harmonia com Deus.

A Cura através de Deus59 só se abre para o filho da Terra que olha


a mãe nos olhos. O Sagrado só se abre para aquele que o re-conhece.

A Mãe Terra, ao se transformar em matéria prima na Ciência


Técnica, nos oferece matéria para uma Finalidade que nós mesmos
destinamos à ela, mas essa ensurdecedora poluição humana na Mãe
Terra nos impede de ouvir o silêncio destinatório de Sua Voz, a destinação
sagrada que abre a presença de Deus na Terra.

O caminho da Verdade60 é o caminho do coração, voz silenciosa-


intuitiva que nos mostra O Caminho, calando a voz do caminho.

Aos que ainda escutam a voz de Deus na nascente d’água: podeis


banhar-se em Deus.

Salve a caravana dos ciganos

Do povo do oriente

Que vieram lhe dizer

Que a força de cura da mata tem poder

Com a Jurema Sagrada

Eu posso me curar.

Advan Haschi - Caravana dos Ciganos

58 na Clareira de Ser que somos.


59Deus sive natura (Deus, isto é, a natureza). Nas Plantas, em sua Sabedoria Vegetal, através de ritualísticas na
consagração de Chás, Inalações e Fumos, por exemplo.
60 ἀλήθεια.

53
A tarefa de Introduzir à Sabedoria Filosófica, em seu grau61 de
Exercício Espiritual, essa Intenção-de-Saber é a confrontação da
Babilônia, esta, enquanto metáfora indicativa da Fuga dos Deuses: O
Saber Filosófico introduz na Vida a possibilidade de Reconexão com
Deus62.
A Linguagem, enquanto morada do Ser, é a morada de Deus.
Curioso.
Verdade é parir Deus63 na Vida, sendo extensão do criador: uma
vez mais, imagem e semelhança.
Não por sermos algo de especial na Vida, à priori, pois justamente
antes de ser, nada somos. Quem é o canoeiro na canoa que sou?
O modo que minha canoa vaga pelo infinito, quem é o canoeiro que
carrego? O que do infinito re-paro em minha vida finita?
Se este canoeiro não for capaz de olhar Horizonte, navegará
perdido.
O que norteia?

Deus é Valor que orienta o modo como se Cuida da Vida.

Eu sou só um humilde canoeiro que busca se tornar Canoeiro sabendo


cuidar de todos os Seres Vivos que encontro no caminho, olhando-os no
olho: assim também olho Deus.

Descendo na Amazônia, nas florestas


Nos rios do Infinito
Eu sou só um humilde canoeiro

Canoa Banô
Canoa-canoeiro
pelo infinito de quem sou

Canoa-canoeiro

61 Gradação Qualitativa; Propriedade Valorativa.


62 Daí a proposta de Alice Holzhey-Kunz, em seu livro “Daseinsanálise”, ao propor uma Experiência Filosófica para
a cura do sofrimento de ser.
63 Seer/Ser.

54
renasciendo en abuelos
Soy más fuerte quando canto al sol
Quando canto al Sol

Caminho el sendero
De los rios
Busco el brillo del espejo de tus ojos
Sinto lluvia, canto vida

Renasciendo fuerte en mis abuelos


En canoa-canoeio nas estrelas
Buscando-conhecimento

Renasciendo fuerte en mis abuelos


En canoa-canoeio nas estrelas

É de longe que eu venho

Advan Haschi - Canô

Que o canto que o poeta filosófa, que a Sabedoria de nossa Filosofia, seja
uma Memória do Eterno, pois eterno também é aquele que a carrega em
Vida com Princípios e Valor.
A superação da Babilônica situação técnica de nossa sociedade-
científica reside na Sabedoria Filosófica de falar identificando o Um em
suas muitas línguas. Enquanto os que fazem Filosofia, nos apropriar
deste Norte é ser introduzido ao Saber Filosófico.

Este estado de presença é justamente aquele que reconhece a


Harmonia do falar de Deus em muitas línguas64.

64 Aqui reside o mistério de Deus estar em todo e nenhum lugar.

55

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