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Jorge Carrión nasceu em Tarragona, em 1976.

É doutorado em
Humanidades pela Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, onde
atualmente leciona literatura contemporânea e escrita criativa. Escreve
regularmente para jornais espanhóis e latino-americanos, como o El País,
ABC, La Vanguardia, Clarín e Arcadia. É autor de vários livros. Livrarias, que
agora se publica em Portugal, foi considerado um dos dez melhores livros de
viagens pelo jornal Guardian.
Cada livraria condensa o mundo.
Não é uma rota aérea, mas um
corredor entre estantes o que une o
teu país e as suas línguas com
regiões extensas nas quais se falam
outros idiomas. Não é uma fronteira
internacional, mas uma passagem –
uma simples passagem.
Jorge Carrión
Título: Livrarias
Título original: Librerías
Autor: Jorge Carrión
1.ª edição em papel: maio de 2017
Tradução: Margarida Amado Acosta
Revisão: João Assis Gomes

Design da capa: Rui Rodrigues · Quetzal Editores


Fotografia da capa: © Lonely Planet/Getty Images

© 2017 Quetzal Editores


© 2013 Jorge Carrión
Por acordo com Literarische Agentur Mertin Inh. Nicole Witt e K., Frankfurt am
Main, Alemanha
[Todos os direitos para a publicação desta obra em Língua Portuguesa, exceto Brasil,
reservados por Quetzal Editores]

Quetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
quetzal@quetzaleditores.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-989-722-390-7
Livrarias
«Uma livraria não é mais do que uma ideia no tempo.»

CARLOS PASCUAL, Los poderes del lector

«Não tenho a menor dúvida de que falo


frequentemente de coisas sobre as quais os mestres
dos respetivos ofícios tratam melhor e com mais
verdade. Isto é apenas o ensaio das minhas
faculdades naturais e não das adquiridas: e quem
surpreender a minha ignorância, nada fará contra mim:
pois dificilmente responderei perante os outros
relativamente às minhas opiniões se não o fazendo
perante mim próprio, nem olhando para elas com
satisfação. Se alguém andar à procura de ciência, que
a colha onde ela estiver. Quanto a mim, de nada faço
menos profissão. Isto são as minhas fantasias, e com
elas não tento dar a conhecer as coisas, mas a mim
próprio.»

MICHEL DE MONTAIGNE, Dos Livros

«O mestre impressor do século XVI devia dominar


vários ofícios. Além de impressor, também era livreiro,
empresário capitalista, indexador e tradutor
familiarizado com várias línguas, além de revisor e
editor. Devia ter boas relações com eruditos
eminentes, por um lado, e com ricos mecenas e
governantes, por outro. O seu especial contributo para
a vida intelectual não devia ser subestimado.»

MARTYN LYON, Books, a Living History

«Continuam lá. Mas não por muito tempo. Eu sei. Foi


por isso que fui. Para me despedir. Sempre que viajo,
é invariavelmente para me despedir.»

SUSAN SONTAG, Unguided Tour

«Caminhar: ler um pedaço de terreno, decifrar um


pedaço do mundo.»

OCTAVIO PAZ, O Macaco Gramático

«Um homem só reconhece o seu génio quando o


ensaia: o gavião treme como uma rola quando abre
pela primeira vez as asas e ganha confiança para
voar. Um autor acaba a sua primeira obra sem
conhecer, tal como o livreiro, o seu valor. Quando o
livreiro nos paga como quer, nós vendemos-lhes o que
bem entendemos. É o êxito que instrui o comerciante
e o literato.»

DENIS DIDEROT, Carta Histórica


e Política sobre o Comércio dos Livros
Introdução a partir de um velho conto
de Stefan Zweig

«Pegue nessa aldeia quase toda e divida as páginas por


pessoa. E um dia, quando a guerra acabar, os livros poderão
voltar a ser escritos. As pessoas serão convocadas uma a
uma para recitarem o que sabem, que será impresso, e depois
chegará outra Era das Trevas na qual, talvez, tenhamos de
repetir toda a operação. Mas é esta a maravilha do Homem:
nunca fica tão desencorajado ou aborrecido a ponto de desistir
do que tem mesmo de ser feito, pois sabe muito bem que é
importante e vale a pena.»

RAY BRADBURY, Fahrenheit 451

ENTRE UM CONTO CONCRETO e toda a literatura universal estabelece-se


uma relação semelhante à que mantém uma única livraria com
todas as que existem e existiram, e talvez as que virão a existir. A
sinédoque e a analogia são as figuras por excelência do
pensamento humano: começarei por falar sobre todas as livrarias do
presente e do passado, e quem sabe se do futuro, através de um só
relato, «O Mendel dos Livros», escrito em 1929 por Stefan Zweig e
ambientado na Viena do adeus ao império, para depois abordar
outros contos que também falaram de leitores e de livros ao longo e
ao largo do palpitante século XX.
Para a sua ambientação, Zweig não escolhe um dos gloriosos
cafés vienenses, como o Frauenhuber ou o Imperial, um daqueles
cafés que – como evoca em O Mundo de Ontem – eram «a melhor
academia para nos informarmos sobre todas as novidades», mas
um café menor, pois o conto começa com a deslocação do narrador
para «os bairros da periferia». É surpreendido pela chuva e refugia-
se no primeiro lugar que lhe aparece pela frente. Depois de sentar-
se à mesa, é invadido por uma sensação de paulatina familiaridade.
Passeia o olhar pelo mobiliário, pelas mesas, pelos bilhares, pelo
tabuleiro de xadrez, pela cabina telefónica, intuindo que já tinha
estado lá. E esquadrinha com afinco a memória até conseguir
lembrar-se, lembrar-se brutalmente.
Encontra-se no Café Gluck, e mesmo em frente dele sentava-se
o livreiro Jakob Mendel dia após dia, todos os dias, das sete e meia
da manhã até à hora do fecho, com os seus catálogos e os seus
volumes empilhados. Enquanto memorizava, através dos óculos,
aquelas listas, aqueles dados, afagava a barba e os caracóis ao
ritmo de uma leitura que tinha muito de reza: chegara a Viena com a
intenção de estudar para ser rabino, mas os livros antigos
desviaram-no dessa rota «para se entregar ao politeísmo brilhante e
multiforme dos livros». Para se converter no Grande Mendel. Porque
Mendel era «um prodígio único da memória», «um fenómeno
bibliográfico», «o miraculum mundi, o mágico arquivo de todos os
livros», «um titã»:

«Por detrás daquela testa calcária, suja, coberta de musgo cinzento, cada
homem e cada título alguma vez impresso na capa de um livro
encontravam-se, formando parte de uma impercetível comunidade de
fantasmas, como que cunhados em aço. De qualquer obra, nova ou usada,
que tivesse aparecido há dois dias ou há duzentos anos conhecia, num
ápice, o lugar de publicação, o editor, o preço. E de cada livro recordava,
com uma precisão infalível, ao mesmo tempo a encadernação, as
ilustrações e as separatas em fac-símile. [...] Conhecia cada planta, cada
infusório, cada estrela do cosmos perpetuamente sacudido e sempre
agitado do universo dos livros. Sabia de cada matéria mais do que os
especialistas. Dominava as bibliotecas melhor do que os bibliotecários.
Conhecia de cor os fundos da maioria das casas comerciais melhor do que
os seus proprietários, apesar das notas e dos ficheiros deles, enquanto ele
apenas dispunha da magia da recordação, daquela memória incomparável
que, na verdade, só se pode explicar através de centenas de exemplos
diferentes.»

As metáforas são belíssimas: a barba é um musgo cinzento, os


livros memorizados são espécies ou estrelas e conformam uma
comunidade de fantasmas, um universo de textos. O seu
conhecimento de vendedor ambulante, sem licença para abrir uma
livraria, é superior ao de qualquer especialista e qualquer
bibliotecário. A sua livraria portátil, que encontrou a sua localização
ideal numa mesa – sempre a mesma – do Café Gluck, é um templo
de peregrinação para todos os que amam os livros e os colecionam;
e para todos aqueles – também – que não conseguiram encontrar,
seguindo as pautas oficiais, as referências bibliográficas que
procuravam. Assim, na sua juventude universitária, após uma
experiência insatisfatória na biblioteca, o narrador é conduzido à
mesa lendária do café por um colega de estudos, um cicerone que
lhe revela o lugar secreto que não aparece nos guias nem nos
mapas, que só os iniciados conhecem.

«O Mendel dos Livros» poderia inserir-se numa série de relatos


contemporâneos que giram à volta da relação entre a memória e a
leitura, uma série que poderia começar em 1909 com «Mondo di
carta», de Luigi Pirandello, e acabar em 1981 com Enciclopédia dos
Mortos, de Danilo Kiš, passando pelo relato de Zweig e os três que
Jorge Luis Borges escreveu no equador do século passado. Porque
na obra borgesiana, a velha tradição metalivresca adquire tal
maturidade, tal transcendência, que nos obriga a ler o que se fez
antes e o que se fez depois em termos de precursores e herdeiros.
«A Biblioteca de Babel», de 1941, descreve um universo
hipertextual em forma de biblioteca-colmeia, desprovido de sentido e
no qual a leitura é quase exclusivamente deciframento (parece um
paradoxo: no conto de Borges, a leitura por prazer está proscrita).
«O Aleph», publicado quatro anos mais tarde, versa sobre como ler
a redução da Biblioteca de Babel a uma esfera minúscula, na qual
se condensam todo o espaço e todo o tempo; e, sobretudo, sobre a
possibilidade de traduzir essa leitura num poema, numa linguagem
que torne útil a existência do portentoso Aleph. Mas não há dúvida
de que «Funes, o Memorioso», escrito em 1942, é o conto de
Borges que mais evoca o de Zweig, com o seu protagonista nas
margens das margens da civilização ocidental, encarnação, como
Mendel, do génio da memória:

«Babilónia, Londres e Nova Iorque sufocavam com feroz esplendor a


imaginação dos homens; ninguém, nas suas torres populosas ou nas suas
avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão
incansável como a que, dia e noite, convergia sobre o infeliz Ireneu no seu
pobre arrabalde sul-americano.»

Tal como Mendel, Funes não frui da sua espantosa capacidade


de recordar. Para eles, ler não significa desentranhar argumentos,
desbravar itinerários vitais, compreender psicologias, abstrair,
relacionar, pensar, experienciar nos nervos o temor e o deleite. À
semelhança do que sucederá 44 anos mais tarde com Johnny 5, o
robot do filme Curto-Circuito, a leitura é absorção de dados, nuvem
de rótulos, indexar, processar informação: está isenta de desejo. Os
contos de Zweig e de Borges são absolutamente complementares: o
velho e o novo, a recordação total dos livros e a recordação
exaustiva do mundo, a Biblioteca de Babel num único cérebro e o
Aleph numa única memória, unidas ambas as personagens pela sua
condição marginal e pobre.
Pirandello imagina, em «Mondo di carta», uma cena de leitura
que também é percorrida pela pobreza e pela obsessão, mas
Balicci, leitor tão viciado que a sua pele mimetizou a cor e a textura
do papel, endividado por causa do seu vício, está a ficar cego:
«Eccolo lì, tutto il suo mondo! E non poterci più vivere ora, se non
per quel tanto che lo avrebbe ajutato la memoria!1» Reduzidos a
uma realidade táctil, a volumes desordenados como peças de Tetris,
decide contratar alguém para classificar os livros, para organizar a
sua biblioteca, até o seu mundo ser «tratto dal caos» [«tirado do
caos»], mas depois continua a sentir-se incompleto, órfão, devido à
impossibilidade de ler. E, assim, contrata uma leitora, Tilde
Pagliocchini. Porém, a sua voz irrita-o, o seu tom, e a única solução
que encontram é que ela leia em voz baixa, ou seja, em silêncio,
para que ele possa evocar a velocidade das linhas e das páginas
que passam, a mesma leitura, cada vez mais remota. Todo o seu
mundo, reordenado na recordação. Um mundo abrangível, reduzido
graças à metáfora da biblioteca, da livraria portátil ou da memória
fotográfica, descritível, cartografável.
Não é por acaso que o protagonista do relato Enciclopédia dos
Mortos, de Kiš, é, precisamente, um topógrafo. A sua vida inteira,
até ao mais ínfimo detalhe, é dedicada a uma espécie de seita ou de
grupo de eruditos anónimos que desde finais do século XVIII levava a
cabo um projeto enciclopédico – paralelo ao do iluminismo –, no
qual figuram todas as personagens da História que não se
encontram no resto das enciclopédias, as oficiais, as públicas, as
que podem ser consultadas em qualquer biblioteca. Por isso, o
conto especula sobre a existência de uma biblioteca nórdica onde
se encontrariam as salas – cada uma delas dedicada a uma letra do
abecedário – da Enciclopédia dos Mortos, cada volume acorrentado
à sua respetiva estante, impossível de copiar ou reproduzir: apenas
objetos de leituras parciais, vítimas imediatas do esquecimento.
«A minha memória, senhor, é como uma lixeira», diz Funes.
Borges fala sempre do fracasso: as três maravilhas que imagina
estão condenadas à morte ou ao absurdo. Sabemos quão estúpidos
são os versos que Carlos Argentino foi capaz de escrever a partir do
incrível Aleph, cuja posse desperdiçou sem remédio. E o
bibliotecário borgesiano, viajante insistente pelos recantos da
biblioteca, enumera, na velhice, todas as certezas e esperanças que
a Humanidade foi perdendo ao longo dos séculos; e afirma, no fim
do seu relatório: «Conheço lugares em que os jovens se ajoelham
diante dos livros e beijam selvaticamente as páginas, mas não
sabem decifrar uma só letra.» O mesmo tom de elegia encontra-se
em todos os contos mencionados: o protagonista pirandelliano fica
cego, Mendel morreu, a Biblioteca de Babel perde população devido
às doenças pulmonares e aos suicídios, Beatriz Viterbo faleceu, o
pai de Borges está doente e Funes morreu de uma congestão
pulmonar, o pai da narradora de Kiš também desapareceu. O que
une esses seis contos é o luto, de uma pessoa e de um mundo:
«Lembrança de melancolia indizível: às vezes, muitas noites viajei
por corredores e escadas polidas sem encontrar um só
bibliotecário.»
«Por isso, quando vi a mesa de mármore de Jakob Mendel, aquela fonte
de oráculos, vazia como uma lápide sepulcral, dormitando naquele quarto,
invadiu-me uma espécie de terror. Só então, passados uns anos,
compreendi tudo o que desaparece com semelhantes seres humanos. Em
primeiro lugar, porque o que é único é cada dia mais valioso num mundo
como o nosso, que irremediavelmente se vai tornando cada vez mais
uniforme.»

A sua extraordinária natureza, diz Zweig, só podia ser narrada


através de exemplos. Para contar o Aleph, Borges vale-se da
enumeração caótica de fragmentos particulares de um ente capaz
de processar o que é universal. Kiš – pós-borgesiano – insiste em
que cada um dos exemplos que menciona é apenas uma pequena
parte do material indexado pelos sábios anónimos. Uma mesa de
um café de bairro pode ser a chave diminuta que abre as portas das
dimensões que se sobrepõem em qualquer cidade vasta. E um
homem pode ter a chave que dá acesso a um mundo que ignora as
fronteiras geopolíticas, que entende a Europa como um espaço
cultural único para além das guerras ou da queda dos impérios. Um
espaço cultural que é sempre acolhedor porque só existe no cérebro
dos que nele viajam. Contrariamente a Borges, para quem a História
carece de importância, o propósito de Zweig é falar sobre como a
Primeira Guerra Mundial inventou as fronteiras contemporâneas.
Mendel passara a vida inteira em paz, sem qualquer documento que
referisse a sua nacionalidade original ou a sua pátria de
acolhimento. De repente, os postais que envia a livreiros de Paris ou
de Londres, às capitais dos países inimigos, chamam a atenção do
censor (esse leitor fundamental na história da perseguição dos
livros, esse leitor que se dedica a denunciar leitores), porque no seu
mundo livresco não penetrou a notícia de que estão em guerra, e a
polícia secreta descobre que Mendel é russo e, por conseguinte, um
potencial inimigo. Numa escaramuça, perde os óculos. É internado
num campo de concentração durante dois anos, ao longo dos quais
congela a sua atividade mais urgente, constante e íntima: a leitura.
É libertado graças a clientes importantes e influentes,
colecionadores de livros cientes do seu génio. Porém, quando
regressa ao café, tinha perdido a capacidade de se concentrar e
caminha irreversivelmente para a indigência e a morte.
Importa que seja um judeu errante, parte dos Povos do Livro,
que provenha do Leste e que encontre a sua desgraça e o seu fim
no Oeste, embora isso só aconteça após dezenas de anos de
assimilação inconsciente, de ser objeto de respeito e,
inclusivamente, de veneração por parte dos poucos escolhidos que
são capazes de calibrar a sua excecionalidade. A sua relação com a
informação impressa, diz-nos Zweig, colmava todas as suas
necessidades eróticas. Como os anciãos sábios da África negra, era
um homem-biblioteca, e a sua obra, imaterial, energia acumulada e
partilhada.
Essa história é-lhe contada pela única pessoa que sobreviveu
dos velhos tempos, quando o café tinha outro dono e outro pessoal
e representava um mundo que se perdeu entre 1914 e 1918: uma
idosa por quem Mendel ganhou sincero afeto. Ela é a memória de
uma existência condenada a esquecer-se (se o seu ouvinte, a
pessoa a quem passou o testemunho, não a convertesse num
conto). Graças a todo esse processo de evocação e investigação, à
distância crítica do tempo esse narrador tão parecido com Zweig
atinge o eco da epifania:

«Tudo o que de extraordinário e mais poderoso se produz na nossa


existência só se atinge através da concentração interior, através da
monotonia sublime, sagradamente aparentada com a loucura. [...] E, no
entanto, tinha sido capaz de esquecê-lo. Evidentemente, nos anos da
guerra e entregue à própria obra de modo semelhante ao seu.»

Invade-o a vergonha, porque se esqueceu de um modelo, de um


mestre. E de uma vítima. Todo o conto se prepara para esse
reconhecimento. E fala subterraneamente de uma grande mudança:
da periferia, na juventude, para um possível centro na maturidade
que esqueceu a origem que não devia ter sido esquecida. É o relato
de uma viagem a essa origem, uma viagem física que envolve outra
mnemotécnica e culmina numa homenagem. Generoso e irónico, o
narrador permite que a idosa analfabeta fique com o volume picante
que pertencera a Mendel e que constitui um dos poucos rastos
sólidos da sua passagem pelo mundo. «Os livros só se escrevem»,
conclui o texto, «e mais do que o próprio hálito, para unir os seres
humanos e, assim, se poderem defender do inexorável reverso de
toda a existência: a fugacidade e o esquecimento».
Homenageando um livreiro portátil de um mundo desaparecido,
colecionando e reconstruindo a sua história, Zweig comporta-se
como um historiador tal como o entendia Walter Benjamin:
colecionista, trapeiro. A esse respeito, no seu ensaio Devant le
Temps, Georges Didi-Huberman escreveu: «O despojo oferece não
apenas o suporte sintomático da ignorância – verdade de um tempo
reprimido da História –, mas também o próprio lugar e a textura do
“conteúdo das coisas”, do “trabalho sobre as coisas”.» A memória
de Funes é como uma lixeira. Os contos que referi, possíveis
exemplos de uma série contemporânea sobre a leitura e a memória,
são, na verdade, explorações da relação entre a leitura e o
esquecimento. Uma relação que se dá através de objetos, desses
volumes que são contentores, os resultados do processo de um
certo artesanato a que chamamos «livros» e que lemos como
despojos, como ruínas da textura do passado e das suas ideias que
sobrevivem. Porque o destino das totalidades é serem reduzidas a
partes, a fragmentos, enumerações caóticas, exemplos que se
deixem ler.
Sobre os livros como objetos, como coisas, sobre as livrarias
como restos arqueológicos, bricabraques ou arquivos que se
recusam a revelar-nos o conhecimento que possuem, que se negam
pela sua própria natureza a ocupar o lugar na história da cultura que
lhes corresponde, sobre a sua condição amiúde contraespacial,
oposta a uma gestão política do espaço em termos nacionais ou
estatais, sobre a importância da herança, sobre a erosão do
passado, sobre a memória e os livros, sobre o património imaterial e
a sua concretização em materiais que tendem a descompor-se,
sobre a Livraria e a Biblioteca como Jano bifronte ou almas gémeas,
sobre a censura sempre policial, sobre os espaços apátridas, sobre
a livraria como café e como lar para além dos pontos cardeais, o
este e o oeste, o oriente e o ocidente, sobre as vidas e as obras dos
livreiros, sedentários ou errantes, isolados ou membros de uma
mesma tradição, sobre a tensão entre o que é único e o que é serial,
sobre o poder do encontro num contexto livresco e o seu erotismo,
sexo latente, sobre a leitura como obsessão e como loucura, mas
também como pulsão inconsciente ou como negócio, com os seus
correspondentes problemas de gestão e os seus abusos laborais,
sobre os contáveis centros e as infinitas livrarias, sobre o mundo
como livraria e a livraria como mundo, sobre a ironia e a solenidade,
sobre a história de todos os livros e sobre livros concretos, com
nomes e apelidos nas capas, de papel e pixéis, sobre as livrarias
universais e as minhas livrarias particulares: sobre tudo isto versará
este livro, que até há pouco tempo estava numa livraria ou numa
biblioteca ou na estante de um amigo e que agora pertence, mesmo
que apenas provisoriamente, leitor, à tua própria biblioteca.
Ou seja, acaba de sair de uma heterotopia para penetrar noutra,
com as consequentes mudanças de sentido, com as decorrentes
alterações de significados. Assim funcionará este livro: propondo
tanto o consolo das leituras ordeiras como as digressões ou as
contradições que inquietam ou ameaçam, reconstruindo tradições
possíveis e recordando, ao mesmo tempo, que apenas se fala de
exemplos, de exceções de um mapa e uma cronologia das livrarias
impossível de reconstruir, que está feito de ausências e de
esquecimentos, propondo analogias e sinédoques, coleção de
fragmentos áureos e de despojos de uma história ou de uma
enciclopédia futura impossível de escrever.
«[A heterotopia] seria a desordem que faz cintilar os
fragmentos de um grande número de ordens possíveis, na
dimensão, sem lei nem geometria, do que é heteróclito; e
entenda-se esta palavra na aceção mais próxima da sua
etimologia: as coisas estão «estendidas», «postas»,
«dispostas» em lugares de tal maneira diferentes que é
impossível encontrar para eles um espaço de acolhimento
definir sob uns e outros um lugar-comum.»

MICHEL FOUCAULT
As Palavras e as Coisas.

1 «Ei-lo, todo o seu mundo estava ali! E agora não podia viver nele, exceto por aquela
pequena porção que lhe devolveria a memória!» (N. da T.)
Sempre a viagem

«Uma livraria põe lado a lado manuais sobre o amor e


ilustrações coloridas; faz cavalgar Napoleão em Marengo ao
pé das memórias de uma criada de quarto, e entre um livro
sobre sonhos e outro de culinária, faz marchar antigos
ingleses pelos caminhos largos e estreitos do Evangelho.»

WALTER BENJAMIN, Livro das Passagens

CADA LIVRARIA CONDENSA O MUNDO. Não é uma rota aérea, mas um


corredor entre estantes o que une o teu país e as suas línguas com
regiões extensas nas quais se falam outros idiomas. Não é uma
fronteira internacional, mas uma passagem – uma simples
passagem – o que se deve atravessar para mudar de tipografia e,
portanto, de toponímia e, portanto, de tempo: um volume editado em
1976 encontra-se ao lado de outro publicado ontem, acabado de
chegar e que ainda cheira a lignina (parente da baunilha); uma
monografia sobre as migrações pré-históricas convive com um
estudo sobre megapolis do século XXI; depois das obras completas
de Camus, encontramos as de Cervantes – em nenhum outro
espaço reduzido é tão certo o verso de J.V. Foix: «M’exalta el nou i
m’enamora el vell» [«Exalta-me o que é novo e apaixona-me o que
é velho»]. Não é uma estrada, mas um lanço de escadas ou talvez
um limiar ou talvez nem sequer isso: dar a volta é o que vincula um
género com outro, uma disciplina ou uma obsessão com o seu
reverso tantas vezes complementar: o drama grego com o grande
romance norte-americano, a microbiologia com a fotografia, a
história do Extremo Oriente com os romances populares do
faroeste, a poesia hindu com as crónicas das Índias, a entomologia
com a teoria do caos.
Para aceder à ordem cartográfica de qualquer livraria, a essa
representação do mundo – dos muitos mundos a que chamamos
mundo –, que tanto tem de mapa, a essa esfera de liberdade em
que o tempo abranda e o turismo se converte noutro tipo de leitura,
não é necessário nenhum passaporte. E, no entanto, em livrarias
como a Green Apple Books, de São Francisco, em La Ballena
Blanca, da Mérida venezuelana, na Robinson Crusoe 389, de
Istambul, em La Lupa, de Montevideu, na L’Écume des Pages, de
Paris, na The Book Lounge, da Cidade do Cabo, na Eterna
Cadencia, de Buenos Aires, na Rafael Alberti, de Madrid, na Cálamo
e na Antígona, de Saragoça, na Casa Tomada, de Bogotá, na
Metales Pesados, de Santiago do Chile e na sua sucursal de
Valparaíso, na Dante & Descartes, de Nápoles, na John Sandoe
Books, de Londres ou na Literanta, de Palma de Maiorca, senti que
estava a selar algum tipo de documento, que ia acumulando
carimbos que certificavam a minha passagem por uma rota
internacional das livrarias mais importantes ou mais significativas ou
melhores ou mais antigas ou mais interessantes ou simplesmente
mais acessíveis naquele momento, quando de repente começou a
chover em Bratislava, quando precisava de um computador ligado à
Net em Amã, quando precisava mesmo de me sentar e de
descansar uns minutos no Rio de Janeiro ou quando estava
cansado de tantos templos no Peru ou no Japão.
Foi na Librería del Pensativo, na Cidade da Guatemala, que
conquistei o meu primeiro carimbo. Tinha aterrado em finais de julho
de 1998 e o país ainda estava a ser sacudido pelos estertores do
bispo Gerardi, atrozmente assassinado dois dias depois de, como
rosto visível da Oficina de Derechos Humanos del Arzobispado, ter
apresentado os quatro tomos do relatório Guatemala – Nunca Más,
no qual se documentavam cerca de 54 mil violações dos direitos
fundamentais ao longo dos 36 anos, aproximadamente, que durou a
ditadura militar. Esborracharam-lhe o crânio até tornar impossível a
identificação dos seus traços faciais. Desses meses instáveis,
durante os quais mudei quatro ou cinco vezes de domicílio, o centro
cultural La Cúpula – composto pelo bar-galeria Los Girasoles, a
livraria e outras lojas – foi a coisa mais parecida a um lar que
conheci. A Librería del Pensativo nasceu na vizinha La Antigua
Guatemala em 1987, quando o país ainda estava em guerra, graças
à tenacidade da antropóloga feminista Ana María Cofiño, recém-
chegada após uma longa temporada passada no México. A loja
familiar da Calle del Arco era uma antiga estação de serviço e uma
oficina. Nos vulcões que rodeavam a cidade ainda ecoavam, ao
longe, os disparos da guerrilha, do exército ou dos paramilitares. Tal
como acontecia e acontece em tantas outras livrarias, como em
maior ou menor grau sucedia e sucede em todas as livrarias do
mundo, a importação de títulos que não se conseguiam obter no
país centro-americano, a aposta na literatura nacional, as
apresentações, as exposições de arte, a energia que depressa uniu
o espaço com o resto de espaços acabados de inaugurar,
converteram a Pensativo num centro de resistência. E de abertura.
Após fundar uma editora de literatura guatemalteca, também
inauguraram uma sucursal na capital, que ofereceu os seus serviços
durante 12 anos, até 2006. E na qual eu – embora ninguém saiba –
fui feliz.
Quando fechou, Maurice Echeverría escreveu:

«Agora, com a presença da Sophos ou a expansão paulatina da Artemis


Edinter, esquecemos que a Pensativo foi quem manteve durante uma
época a lucidez e a agudeza intelectual depois da devastação dos
cérebros.»
Procuro a Sophos na Net: é, sem dúvida o lugar no qual passaria
as minhas tardes se agora vivesse na Cidade da Guatemala. É uma
dessas livrarias espaçosas, cheias de luz e com restaurante que
proliferam em todo o lado, com o mesmo ar de família da Ler
Devagar, de Lisboa, da El Péndulo, da Cidade do México, da
McNally Jackson, de Nova Iorque, da The London Review of Books,
de Londres, ou da 10 Corso Como, de Milão, todos eles espaços
acostumados a acolher comunidades de leitores, a converterem-se
rapidamente em ágora, em lugar de encontro. A Artemis Edinter já
existia em 1998, há mais de 30 anos, e agora conta com oito
sucursais. O mais provável é eu ter na minha biblioteca algum livro
comprado lá, mas não me lembro dela. Na El Pensativo de La
Cúpula vi a cabeleira e o rosto e as mãos do poeta Humberto
Ak’abal e aprendi de cor um poema seu sobre a faixa com que os
maias continuam a transportar fardos que por vezes os triplicam em
peso e em volume («Para / nós / os índios / o céu acaba / onde
começa / o mecapal»); vi um homem pôr-se de cócoras para falar
com o filho de três anos e vi assomar na cintura das suas calças de
ganga a culatra de uma pistola; comprei o Que me maten si..., de
Rodrigo Rey Rosa, na edição da casa, um papel pobre em que eu
nunca tinha tocado e que ainda me faz lembrar aquele com que a
minha mãe embrulhava as sanduíches quando eu era pequeno, o
tato dos mil exemplares que se imprimiram nas oficinas litográficas
das Ediciones Don Quijote a 28 de dezembro de 1996, quase um
mês após as eleições democráticas; foi lá que comprei, também, o
Guatemala – Nunca Más, o resumo num só volume dos quatro livros
de ódio e de morte do relatório original, a militarização da infância,
as violações sexuais maciças, a técnica ao serviço da violência, o
controlo psicossexual da tropa, tudo aquilo que é contrário ao que
significa uma livraria.
Mais do que um passaporte, encontrei um mapa-múndi no dia
em que, finalmente, desdobrei na minha secretária todos os selos
(cartões, postais, apontamentos, fotografias, cromos que guardava
em pastas depois de cada viagem, à espera de que o momento de
escrever este livro chegasse). Ou melhor dizendo: um mapa do meu
mundo. E, portanto, submetido à minha própria biografia: quantas
dessas livrarias teriam fechado as suas portas ou teriam outra
morada, quantas se teriam multiplicado, quantas seriam agora
multinacionais ou teriam feito reajustamentos no seu quadro ou
teriam inaugurado o seu domínio ponto.com. Um mapa atravessado
pelos tempos das minhas viagens e necessariamente incompleto,
em que enormes superfícies ainda não tinham sido percorridas nem,
por conseguinte, documentadas, em que dezenas, centenas de
livrarias significativas e importantes ainda não tinham sido
registadas (colecionadas); mas que, no entanto, representava um
possível estado da questão de um cenário crepuscular e em
mutação de um fenómeno que reclamava ser historiado, pensado,
nem que fosse apenas para que lessem sobre aqueles que também
se sentiram em livrarias de aqui e de acolá como em embaixadas
sem bandeira, máquinas do tempo, caravançarais ou páginas de um
documento que nenhum Estado pode emitir. Porque em todos os
países do mundo as livrarias como El Pensativo já desapareceram
ou estão a desaparecer ou se converteram numa atração turística e
abriram a sua página Web ou são agora parte de uma cadeia de
livrarias que partilha o nome numa transformação inevitável,
adaptando-se ao volátil – e fascinante – sinal dos tempos. E lá
estava, à minha frente, uma collage que convidava ao que Didi-
Huberman chamou em Atlas ou A Gaia Ciência Inquieta um
conhecimento nómada, no qual tanto conta – como nos corredores
de uma livraria – «o elemento afetivo como o cognitivo», o tampo da
minha mesa entre «classificação e desordem ou, se se preferir,
entre razão e imaginação», porque «as mesas servem ao mesmo
tempo de campos operatórios para dissociar, despedaçar, destruir»
e para «aglutinar, acumular, dispor» e, portanto, «colhe
heterogeneidades, dá forma a relações múltiplas»: «espaços e
tempos heterogéneos não cessam de encontrar-se, confrontar-se,
cruzar-se ou amalgamar-se».
A história das livrarias é muito diferente da história das
bibliotecas. As primeiras carecem de continuidade e de apoio
institucional. São livres por serem as respostas de iniciativas
privadas a problemas públicos, mas, por essa mesma razão, não
são estudadas, muitas vezes nem sequer constam nos guias
turísticos nem lhes dedicam teses de doutoramento, até que o
tempo acaba com elas e se convertem em mitos. Mitos como o de
St. Paul’s Churchyard, onde – conforme leio no 18 Bookshops, de
Anne Scott –, no século XVII, se encontrava, entre outras 30 livrarias,
The Parrot, cujo dono, William Aspley, não só era um dos livreiros
como também um dos editores de Shakespeare. Mitos como o da
Rue de l’Odéon, em Paris, que nutriram La Maison des Amis des
Livres, de Adrienne Monnier, e a Shakespeare and Company, de
Sylvia Beach. Mitos como Charing Cross Road, a avenida
intergaláctica, a rua bibliófila de Londres por excelência,
imortalizada no título do melhor livro de não-ficção que já li sobre
livrarias, 84, Charing Cross Road, de Helene Hanff (onde, como em
qualquer loja de livros, a paixão bibliófaga se confunde com os
sentimentos humanos e o drama convive com a comédia), um
exemplar cuja primeira edição vi – emocionado – à venda (por 250
libras) na montra da Goldsboro Books, um estabelecimento
especializado na comercialização de primeiras edições
autografadas, muito perto da mesma Charing Cross Road onde
ninguém me soube dizer onde ficava a livraria de Hanff. Mitos como
a livraria Dei Marini, mais tarde chamada Casella, fundada em
Nápoles em 1825 por Gennaro Casella e depois herdada pelo seu
filho Francesco que, na viragem do século XIX para o XX, reuniu no
local personagens como Filippo T. Marinetti, Eduardo De Filippo,
Paul Valéry, Luigi Einaudi, G. Bernard Shaw ou Anatole France, que
se alojava no Hotel Hassler de Chiatamone, mas usava a livraria
como se fosse o salão da sua casa. Mitos como o da Livraria dos
Escritores de Moscovo que, no fim dos anos 10 e princípios dos 20,
aproveitou o breve parêntese de liberdade revolucionária para
oferecer aos leitores um centro cultural gerido por intelectuais. A
história das bibliotecas pode ser cabalmente narrada através de
uma ordenação por cidades, regiões e nações, respeitando as
fronteiras dos tratados internacionais, recorrendo à bibliografia
especializada e ao próprio arquivo de cada uma delas, onde se
documentou a evolução dos seus fundos e das suas técnicas de
classificação e se conservam atas, contratos, recortes de imprensa,
listas de aquisições e outros papéis que permitem a estatística, o
relatório e a cronologia. A história das livrarias, pelo contrário, só
pode ser relatada a partir do álbum de postais e de fotografias, do
mapa situacionista, da ponte provisória entre os estabelecimentos
desaparecidos e os que ainda existem, de certos fragmentos
literários, do ensaio.

Ao classificar todos aqueles cartões de visita, folhetos,


desdobráveis, postais, catálogos, polaroides, apontamentos e
fotocópias, encontrei várias livrarias que fugiam a qualquer critério
cronológico ou geográfico, que escapavam a qualquer entendimento
nas escalas e rotas que ia traçando para as outras, por muito
conceptuais e transversais que fossem. Eram as livrarias
especializadas em viagens que constituem, em si mesmas, um
paradoxo, porque todas as livrarias são convites à viagem, elas
próprias viagens. Mas estas são diferentes. A sua raridade é
marcada pela palavra especializada. Como as livrarias infantis, as
lojas de banda desenhada, os alfarrabistas, as lojas de rare books.
A sua especialização observa-se desde a própria divisão do espaço:
em vez de segmentá-lo por géneros, línguas ou disciplinas
académicas, organizam-se por áreas geográficas. O extremo desse
princípio é levado à prática na Altaïr, cujo principal estabelecimento
barcelonês é um dos espaços livrescos mais envolventes que
conheço, onde também os livros de poemas, os romances e os
ensaios são classificados por países e continentes, de modo a
poderem ser encontrados ao lado dos guias e dos mapas. As
livrarias de viagens são as únicas nas quais a cartografia tem o
mesmo protagonismo que o verso e a prosa. Se seguirmos o
percurso proposto pela Altaïr, atravessamos a montra e deparamos,
em primeiro lugar, com um quadro com anúncios de viajantes. Atrás
dele, expostos, os números da revista homónima. A seguir:
romances, livros de História e guias temáticos sobre Barcelona,
numa constante internacional que respeita a maior parte das
livrarias do mundo, como se a sua lógica fosse necessariamente ir
do imediato, do local, à maior lonjura: o Universo. Por conseguinte,
depois, o mundo, igualmente arrumado de acordo com esse critério
de afastamento, da Catalunha, da Espanha e da Europa para o
resto dos continentes, derramados pelos dois pisos do local. Em
baixo encontram-se os mapas-múndi e, mais à frente, ao fundo, a
agência de viagens. Porque a consequência necessária dos
anúncios do quadro, das revistas e das leituras só pode ser partir.
A Ulyssus, em Gerona, tem como subtítulo «Livraria de viagens»,
e tal como os fundadores da Altaïr, Albert Padrol e Josep Bernadas,
o seu dono, Josep Maria Iglesias, sente-se mais viajante que livreiro
ou editor. À frente da livraria parisiense Ulysse, com efeito,
encontra-se Catherine Domain, exploradora e escritora que obriga a
sua loja a viajar com ela, todos os verões, até ao casino de Hendaia.
Por extensão simbólica, este tipo de estabelecimento costuma estar
cheio de mapas e de globos do mundo: na Pied à Terre, em
Amesterdão, por exemplo, contam-se às dezenas os globos
terrestres que nos olham de soslaio enquanto procuramos guias e
outras leituras. O seu slogan não pode ser mais enfático: «O
Paraíso do viajante». A ordem dos fatores não altera o produto,
porque é certo que as livrarias viajantes de todo o mundo também
são grandes armazéns de artigos práticos para viajar. Também em
Madrid a Desnivel, especializada na montanha e na aventura, vende
aparelhos de GPS e bússolas. Sucede a mesma coisa na berlinense
Chatwins, que dedica boa parte da sua capacidade expositiva aos
cadernos Moleskine, a ressurreição em série dos blocos artesanais
que Bruce Chatwin comprava num armazém de Paris até que a
família que os manufaturava em Tours deixou de fazê-los em 1986,
como nos conta num livro publicado no ano seguinte, The
Songlines.
Embora as suas cinzas tenham sido espalhadas em 1989 ao pé
de uma capela bizantina em Kardamyli, uma das sete cidades que
Agamémnon oferece a Aquiles para que este retomasse o cerco de
Troia, no Sul do Peloponeso, perto do lar de um dos seus mentores,
Patrick Leigh Fermor, escritor viajante e membro, como ele, da
Tradição Inquieta, o seu enterro foi celebrado numa igreja de West
London.
Trinta anos antes, um jovem provinciano sem ofício nem
benefício chamado Bruce Chatwin chegou à capital da Grã-Bretanha
para trabalhar como aprendiz na Sotheby’s, ignorando o seu futuro
como escritor de viagens, como mitómano e, sobretudo, como mito.
Ignorando que uma livraria de Berlim ostentaria o seu nome. Entre
as muitas livrarias que, em finais dos anos 50, Chatwin descobriu
quando chegou à capital, destacam-se duas: a Foyles e a Stanfords.
Uma generalista e a outra especializada em viagens. Uma cheia de
livros e a outra repleta de mapas.
Situada em plena Charing Cross Road, os seus 50 quilómetros
de estantes convertiam a Foyles no maior labirinto livresco do
mundo. Naquela época, era uma atração turística não só graças ao
seu tamanho mas também às absurdas ideias que a sua dona,
Christina Foyle, pôs em prática e que fizeram com que o
estabelecimento não se convertesse num monstruoso anacronismo
durante toda a segunda metade do século passado. Ideias como
recusar o uso de calculadoras, caixas registadoras, telefones ou
qualquer outro avanço tecnológico na gestão de pedidos e vendas;
ou arrumar os livros por editoras e não por autores ou géneros; ou
obrigar os clientes a fazerem três filas diferentes para pagarem as
suas compras; ou despedir os empregados à toa. A sua caótica
gestão da Foyles – fundada em 1903 – durou de 1945 até 1999. A
sua excentricidade explica-se por via genética: William Foyle, o seu
pai, cometeu as suas próprias loucuras antes de delegar a gestão
na filha. Mas há que atribuir a Christina a melhor iniciativa da livraria
em toda a sua história: os seus famosíssimos almoços literários.
Entre 21 de outubro de 1930 e os dias de hoje, mais de meio milhão
de leitores comeu com mais de mil autores, entre os quais T.S. Eliot,
H.G. Wells, Bernard Shaw, Winston Churchill e John Lennon.
As lendas negras já só pertencem ao passado (e a livros como
este): em 2014, a Foyles transformou-se numa grande livraria
moderna e mudou-se para o edifício vizinho, para o n.º 107 da
mesma Charing Cross Road. A remodelação do antigo Central Saint
Martins College of Art and Design foi da responsabilidade dos
arquitetos do ateliê Lifschutz Davidson Sandilands que, para
enfrentarem o desafio de conceberem a maior livraria construída na
Inglaterra do século XXI, optaram por um grande pátio central vazio,
no qual a luz branca se derrama, reforçada por grandes candeeiros
a modo de pontuação de um grande texto diáfano, rodeado por
umas escadas que sobem e baixam qual orações subordinadas. A
cafetaria – sempre alvoroçada – fica no alto, ao lado de uma sala de
exposições recetiva aos projetos transmédia e da sala de eventos; e
no rés do chão somos recebidos, assim que entramos, pelo seguinte
lema: «Welcome book-lover, you are among friends» [«Bem-vindo,
amante dos livros, estás entre amigos»]. O que diria Christina se
levantasse a cabeça... Bom, na verdade, daria com uma parede
inteira que evoca e celebra a importância dos seus almoços
multitudinários.
Explora, descobre, inspira: esse é o lema da Stanfords, como me
recorda o marcador que conservo de alguma das minhas visitas.
Embora o negócio tenha sido fundado na mesma Charing Cross
onde sobrevive a Foyles, o seu célebre e principal estabelecimento
de Covent Garden, em Long Acre, abriu as portas ao público em
1901. Na altura já se tinha estabelecido uma sólida relação entre a
Royal Geographical Society e a livraria, pois esta produzia os
melhores mapas numa época na qual a expansão do colonialismo
britânico e o auge do turismo provocaram uma produção
cartográfica maciça. Embora também encontremos, no soalho dos
seus três andares, cada um deles revestido com um mapa
gigantesco (Londres, o Himalaia e o Mundo), guias, literatura de
viagens e acessórios, a grande protagonista da loja é a cartografia.
Mesmo a bélica: entre os anos 50 e os 80 a cave esteve ocupada
pelo departamento de topografia aeronáutica e militar. Lembro-me
de ter ido à Stanfords por alguém me ter dito, ou por ter lido nalgum
lado, que Chatwin comprava lá os seus mapas. Na verdade, não há
qualquer registo de que isso tenha acontecido. A lista de clientes
ilustres inclui o Dr. Livingstone e o capitão Robert Scott, Bill Bryson
e Sir Ranulph Fiennes, um dos últimos exploradores vivos,
passando por Florence Nightingale, Cecil Rhodes, Wilfred Thesiger
ou Sherlock Holmes, que encomenda na Stanfords o mapa de um
misterioso pântano que lhe permitirá resolver o caso de O Cão dos
Baskervilles.

Ainda existem ambas. A Foyles tem cinco sucursais em Londres


e uma em Bristol. A Stanfords conta com delegações em Bristol e
em Manchester, além de uma pequena sede na Royal Geographical
Society que só abre quando há sessões públicas. Apenas por dois
anos, Chatwin não pôde conhecer também a Daunt Books, uma
livraria para leitores viajantes cuja primeira loja – um edifício
eduardiano da Marylebone High Street no qual a luz natural penetra
através de enormes vitrais – abriu em 1991. É fruto do projeto
pessoal que James Daunt, filho de diplomatas e acostumado, por
conseguinte, às mudanças, abraçou depois de ter passado uma
temporada em Nova Iorque, após a qual decidiu que queria dedicar-
se às suas duas paixões: às viagens e à leitura, e que agora é uma
rede londrina com seis estabelecimentos. A Au Vieux Campeur já
conta com trinta e quatro espalhados por toda a geografia francesa
e oferece, desde 1941, guias, mapas, livros de viagens e artigos
sobre excursionismo, campismo e alpinismo. É a lógica da
Moleskine.
Em finais do século XIX e princípios do XX, muitos artistas
profissionais e amateurs adotaram o costume de viajar com uns
cadernos de páginas consistentes que permitiam usar aguarelas ou
tinta da china e de capas igualmente sólidas para protegerem os
desenhos e os apontamentos das inclemências, manufaturados em
diversos pontos da França e vendidos em Paris. Agora sabemos
que Wilde, Van Gogh, Matisse, Hemingway ou Picasso os usavam:
mas quantos milhares de viajantes anónimos também o fizeram?
Onde estarão os seus moleskines? Assim lhes chamava Chatwin no
referido relato australiano que escreveu, e foi esse o ponto de
partida de uma pequena empresa de Milão, a Nodo & Nodo, para
lançar no mercado cinco mil exemplares de cadernos Moleskine em
1999. Lembro-me de ter visto alguns deles, ou das edições também
limitadas que se seguiram à primeira tiragem, numa livraria da rede
Feltrinelli, em Florença, e de me sentir subitamente como se tivesse
levado uma injeção de prazer fetichista, a que o reconhecimento
administra. É a mesma coisa que sente qualquer leitor sistemático
quando entra na Lello do Porto ou na City Lights de São Francisco.
Durante alguns anos, para comprar um Moleskine era preciso viajar.
Não era necessário ir a um armazém parisiense, mas não se
encontrava em todas as livrarias do mundo. Em 2008 era distribuído
em cerca de 15 mil lojas de mais de 50 países. Para as abastecer,
embora o seu design fosse italiano, a produção transferiu-se para a
China. Até 2009 tinha de ir a Lisboa se quisesse entrar na Livraria
Bertrand, a mais antiga do mundo; mas depois inauguraram uma
fugaz delegação da rede em Barcelona, a cidade onde vivo, e a
serialidade ganhou outra batalha – a enésima – contra essa velha
ideia, já quase sem corpos que a encarne: a aura.

«Seguimos pelo corredor estreito e escuro até entrar numa


livraria em saldo, onde volumes atados e empoeirados
falavam de todas as formas de ruína.»
WALTER BENJAMIN
Livro das Passagens.
Atenas – O começo possível

«Veio ler. Estão abertos


dois ou três livros, de historiadores e poetas.
Mas só leu dez minutos,
deixou-os de lado. E adormece
num divã. Pertence plenamente aos livros,
mas tem vinte e três anos.»

CAVAFIS, «Veio ler»

ATENAS PODE SER PERCORRIDA E LIDA como um estranho bazar de


livrarias. Claro que a estranheza é menos causada pela decadência
do ambiente e pela sensação palpável de Antiguidade do que pela
língua em que foram escritos tanto os nomes dos lugares como os
letreiros das estantes, para não falar dos títulos dos livros e dos
nomes dos seus autores. Para o leitor ocidental, o Oriente começa
no mesmo sítio onde o fazem os alfabetos desconhecidos: em
Saraievo, em Belgrado, em Atenas. Nas prateleiras das livrarias de
Granada ou de Veneza não há um rasto alfabético de tudo aquilo
que, num passado já remoto, chegou do Leste: são traduções para
as nossas línguas, e esquecemos que o mesmo sucedia com as
suas. A importância da antiga cultura grega, da sua filosofia e da
sua literatura não se compreende sem a sua localização a meio-
caminho entre o Mediterrâneo e a Ásia, entre os etruscos e os
persas, em frente dos líbios, dos egípcios e dos fenícios. A sua
condição de arquipélago de embaixadas. Ou de aqueduto radial. Ou
de rede de túneis entre alfabetos diversos.
Depois de muito navegar na internet, guiando-me pelo cartão de
um dos estabelecimentos que conservo desde o verão de 2006,
encontro, finalmente, uma alusão em inglês ao lugar de que ando à
procura: a Books Arcade. Galeria do Livro ou Passagem do Livro,
uma sucessão de 20 lojas com portas em ferro forjado onde se
alojam 45 chancelas editoriais, entre as quais a Kedros e as
Ediciones del Banco Nacional. Sentado num dos muitos cadeirões
das passagens, sob uma das ventoinhas do teto que trituravam o
calor em câmara lenta, tomei alguns apontamentos sobre a relação
entre as livrarias e as bibliotecas. Porque a «passagem
Pesmazoglou» – pois também lhe chamam assim, numa alusão a
uma das ruas que lhe dão acesso – encontra-se diante da Biblioteca
Nacional da Grécia.
O Túnel perante o Edifício. A Galeria sem data de inauguração à
frente do Monumento repleto de detalhes: de estilo neoclássico,
financiado desde a diáspora pelos irmãos Vallianos, a primeira
pedra da Biblioteca Nacional foi lançada em 1888 e a inauguração
teve lugar em 1903. Nela conservam-se uns 4500 manuscritos em
grego antigo, códices cristãos e importantes documentos sobre a
Revolução Grega (não em vão quem teve a ideia da sua criação, ao
que parece, foi Johann Jakob Mayer, amante da cultura helénica e
companheiro de armas de Lorde Byron). Porém, todas as bibliotecas
são mais que edifícios: são coleções bibliográficas. Antes de ali
estar, a Nacional esteve alojada no orfanato Aegina, nos banhos do
Mercado Romano, na igreja de Agios Eleftherios e na Universidade
de Otto; nos próximos anos mudar-se-á para um novo edifício
monumental, virado para o mar, concebido pelo arquiteto Renzo
Piano. Por isso, a atual Biblioteca da Alexandria não é mais do que
o eco sem força do grito original: embora a sua arquitetura seja
alucinante, embora dialogue com o mar vizinho e com os 120
alfabetos inscritos na sua superfície refletora, embora acolha turistas
de todo o mundo que a vêm contemplar, as suas paredes ainda não
alojam os volumes suficientes para que seja considerada a
reencarnação da que lhe emprestou o mítico nome.
A sombra da Biblioteca da Alexandria é tão densa que eclipsou o
resto das bibliotecas anteriores, contemporâneas e futuras, e que
apagou da memória coletiva as livrarias que a nutriram. Porque não
nasceu do nada: era o principal cliente dos comerciantes de livros
do Mediterrâneo Oriental durante o século III a.C. A Biblioteca não
pode existir sem a Livraria, que está vinculada, desde as suas
origens, à Editora. O comércio de livros já se tinha desenvolvido
antes do século V a.C., pois nessa altura – em que a escrita ganha
força perante a oralidade na cultura helénica – eram conhecidas em
boa parte do Mediterrâneo Oriental as obras dos principais filósofos,
historiadores e poetas que hoje consideramos clássicos. Ateneu cita
uma obra perdida de Alexis, do século IV a.C., intitulada Linos, na
qual o protagonista diz ao jovem Héracles:

«Pega num desses livros preciosos. Lê os títulos e vê se te interessa


algum. Tens aí Orfeu, Hesíodo, Quérilo, Homero, Epicarmo. Há peças de
teatro e tudo o que possas desejar. A tua escolha permitirá apreciar os
teus interesses e o teu gosto.»
Com efeito: Héracles escolhe um livro de culinária e desvia-se
das expectativas do seu acompanhante. Porque o negócio das
livrarias inclui todo o tipo de textos e de gostos de leitura: discurso,
poemas, apontamentos, livros técnicos ou de Direito, coletâneas de
anedotas. E também contempla todo o tipo de qualidades: as
primeiras editoras eram constituídas por grupos de copistas de cuja
capacidade de concentração, disciplina, rigor e nível de exploração
laboral dependia o número de alterações e de erratas que conteriam
as cópias que seriam postas em circulação. Para otimizar o tempo,
alguém ditava e os outros transcreviam. É por isso que os editores
romanos eram capazes de lançar de uma só vez no mercado várias
centenas de cópias. Durante o exílio, Ovídio consolava-se
lembrando a si próprio que era «o autor mais lido do mundo», pois
as cópias das suas obras chegavam até aos derradeiros confins do
império.
Alfonso Reyes, no seu Libros y Libreros en la Antigüedad, um
resumo do trabalho de The World of Books in Classical Antiquity, de
H.L. Pinner, que só foi publicado após a sua morte, fala de
«tratantes de livros» para se referir aos primeiros editores,
distribuidores e livreiros, como Ático, amigo de Cícero, que
açambarcava todas as facetas do negócio. Pelos vistos, as
primeiras livrarias gregas e romanas eram postos ambulantes e
barracas onde se vendiam ou alugavam livros (uma espécie de
bibliotecas ambulantes), ou lojas anexas às editoras. «Em Roma, as
livrarias eram conhecidas, pelo menos nos dias de Cícero e de
Catulo», escreve Reyes: «Encontravam-se nas melhores zonas
comerciais e serviam de ponto de reunião para eruditos e
bibliófilos.» Os irmãos Sosii, editores de Horácio, Secundus, um dos
editores de Marcial, e Atrecto, entre muitos outros homens de
negócios, geriam os seus estabelecimentos nas imediações do
Foro. À porta encontravam-se as listas que publicitavam as
novidades. E por uma módica quantia era possível consultar os
volumes mais valiosos, numa sorte de empréstimo fugaz. Ocorria a
mesma coisa nas grandes cidades do império, como Reims ou Lyon,
cujas excelentes livrarias surpreenderam Plínio, o Jovem, quando
verificou que também vendiam as suas obras.
Para que os romanos abastados pudessem ostentar as suas
bibliotecas, generalizou-se não só a compra e venda de exemplares
valiosos como também a aquisição de volumes a peso para revestir
paredes de cultura aparente. As coleções privadas, amiúde nas
mãos de bibliófilos, nutriam-se diretamente das livrarias e serviam
de modelo para as coleções públicas, ou seja, das bibliotecas, que
não provêm da democracia, mas da tirania: as duas primeiras
atribuem-se a Polícrates, tirano de Samos, e a Pisístrato, tirano de
Atenas. A Biblioteca é poder: com o saque da campanha na
Dalmácia, o general Asínio Polião fundou, em 39 a.C., a Biblioteca
de Roma. Pela primeira vez, exibiram-se nela, publicamente e lado
a lado, títulos gregos e romanos. Quatro séculos mais tarde, havia
28 bibliotecas na capital do Baixo-Império. Como a Biblioteca de
Pérgamo ou a Palatina, agora também em ruínas.

Tudo indica que a Biblioteca da Alexandria se inspirou na


biblioteca privada de Aristóteles, provavelmente a primeira da
História a ser submetida a um sistema de classificação. O diálogo
entre as coleções privadas e as coleções públicas, entre a Livraria e
a Biblioteca, é, por isso, tão velho quanto a civilização; mas a
balança da História inclina-se sempre para a segunda. A Livraria é
leve; a Biblioteca é pesada. A leveza do presente contínuo opõe-se
ao peso da tradição. Não há nada mais alheio à ideia de livraria do
que a de património. Enquanto o Bibliotecário acumula, entesoura,
no melhor dos casos empresta temporariamente a sua mercadoria –
que deixa de o ser ou congela o seu valor –, o Livreiro adquire para
se livrar do que adquiriu, compra e vende, faz circular. Interessa-lhe
o tráfego, a passagem. A Biblioteca está sempre um passo atrás: a
olhar para o passado. A Livraria, pelo contrário, está amarrada ao
nervo do presente, sofre com ele, mas também se excita com o seu
vício das mudanças. Se a História assegura a continuidade da
Biblioteca, o Futuro ameaça constantemente a existência da
Livraria. A Biblioteca é sólida, monumental, está atada ao poder, aos
governos municipais, aos Estados e aos seus exércitos: além do
espólio patrimonial do Egito, «o exército de Napoleão levou uns mil
e quinhentos manuscritos dos Países Baixos austríacos e outros mil
e quinhentos da Itália, principalmente de Bolonha e do Vaticano»,
escreveu Peter Burke na sua Uma História Social do Conhecimento,
para alimentar a voracidade das bibliotecas francesas. A Livraria,
pelo contrário, é líquida, temporal, dura tanto como a sua
capacidade para manter, com alterações mínimas, uma ideia no
tempo. A Biblioteca é estabilidade. A Livraria distribui, a Biblioteca
conserva.
A Livraria é crise perpétua, sujeita ao conflito entre a novidade e
o fundo, e é precisamente por essa razão que se situa no centro do
debate sobre os cânones culturais. Os grandes autores romanos
estavam conscientes de que a sua influência dependia do acesso do
público à sua produção intelectual. A figura de Homero situa-se
justamente nos dois séculos prévios à consolidação do negócio
livreiro, e a sua centralidade no cânone ocidental mantém uma
relação direta com o facto de ser um dos escritores gregos de cuja
obra conservamos mais fragmentos. Isto é: um dos mais copiados.
Um dos mais difundidos, vendidos, oferecidos, roubados,
comprados por colecionadores, leitores comuns, livreiros, bibliófilos,
gestores de bibliotecas. Dos rolos de papiro e de pergaminho e dos
códices das livrarias gregas e romanas, de todo o capital textual que
foi posto a circular, provisoriamente confinado em espaços privados
e públicos, e do qual a maior parte foi destruída em inúmeras
guerras e incêndios e mudanças, depende a nossa ideia de tradição
cultural, o nosso saldo de autores e títulos de referência. A
localização da livraria é fundamental para vertebrar estes cânones:
houve um tempo em que Atenas ou Roma eram os possíveis
centros de mundos possíveis. Sobre essas capitalidades perdidas e
indemonstráveis construímos toda a cultura posterior.

Com a queda do Império Romano diminuiu o tráfego de livros.


Os mosteiros medievais continuaram a tarefa da difusão da cultura
escrita através dos seus copistas, ao mesmo tempo que o papel
levava a cabo a sua longa viagem desde a China, onde foi
inventado, até ao Sul da Europa, graças ao islão. O pergaminho era
tão caro que muitas vezes eram apagados textos para se
escreverem outros por cima deles: há poucas metáforas tão
poderosas sobre como funciona a transmissão cultural como a do
palimpsesto. Na Idade Média, um livro podia ter umas cem cópias
manuscritas, podia ser lido por milhares de pessoas e ouvido por
muitas mais, pois a oralidade voltou a tornar-se mais importante do
que a leitura individual. Isto não significa que o negócio dos livros
tivesse estagnado, pois não só a classe eclesiástica e a nobre
tinham necessidade de ler, como também os cada vez mais
numerosos estudantes universitários tinham de abastecer-se de
textos impressos, uma vez que as mais antigas universidades da
Europa (Bolonha, Oxford, Paris, Cambridge, Salamanca, Nápoles...)
foram fundadas entre os séculos XI e XIII. Como escreveu Alberto
Manguel em Uma História da Leitura:

«Desde finais do século XII, aproximadamente, os livros passaram a ser


objetos comerciais, e na Europa o seu valor pecuniário estava
suficientemente estabelecido para que os prestamistas os aceitassem
como garantia subsidiária: as notações onde se registavam tais
compromissos encontram-se em numerosos livros medievais,
especialmente nos pertencentes aos estudantes.»

O empenho de livros foi uma constante desde então até à


popularização da fotocópia pela Xerox em meados do século
passado. As reprografias convivem, nos arredores da Biblioteca
Nacional da Grécia e da vizinha Academia de Atenas, com
universidades, editoras, centros culturais e a parte mais compacta
dos bazares de livrarias, porque todas essas instituições se
retroalimentam mutuamente. Lembro-me de que no espaçoso piano-
bar da Livraria Ianos, pedaço de uma cadeia de civilização, com as
suas estantes cor de mogno e a sua sinalética em branco sobre
verde-maçã, li durante algum tempo uma edição da poesia de
Cavafis que levava na mochila porque não era capaz de perceber
nenhum dos volumes que me rodeavam. Lembro-me de que entre
as prateleiras de madeira escura da Livraria Politeia passei horas a
procurar, entre os milhares de livros em grego, as poucas centenas
que tinham sido publicados em inglês.
O lugar, dividido em dois andares e uma cave, tem quatro portas
de acesso. É um desses espaços ultrailuminados: um sem-fim de
retângulos de luz que contêm apenas seis focos circulares fazem
brilhar as capas e os títulos e o chão. Politeia significa «teoria da
cidade».
Acabei por entrar na Livraria Kauffmann. Não só por ser a livraria
francesa de Atenas e, portanto, um lugar onde havia livros que eu
podia ler, mas por ser uma dessas livrarias nas quais há que
carimbar o passaporte inexistente. A imagem fundacional é
impressionante: a preto e branco, com data de 1919, mostra um
quiosque onde trabalha uma mulher com a cabeça parcialmente
coberta, vestida à maneira oriental, sobre a qual se vê um letreiro
que diz «Librairie Kauffmann». Foi assim que começou o seu
negócio Hermann Kauffmann, numa banca de rua onde vendia livros
usados em francês. Dez anos mais tarde, instalou-se na loja da Rua
Zoodochos Pigis, que cresceria com o tempo até se converter numa
espécie de grande apartamento com vista para a avenida, e
incorporou volumes novos na sua oferta graças a um acordo com a
editora Hachette, de maneira que não demorou a tornar-se o lugar
onde as pessoas mais letradas de Atenas se abasteciam de leituras
em francês e onde os filhos compravam os manuais escolares e os
livros de leitura obrigatória dos seus colégios e academias
francófonos. Na parede da escada, ao lado de fotografias de Frida
Kahlo ou de André Malraux, está pendurado um diploma atribuído a
Kauffmann pela Exposition Internationale des Arts et des
Techniques, de Paris, 1937. Com a ajuda da Hachette, criou a
Agência Helénica de Distribuição. Após a sua morte, em 1965, a
viúva tomou as rédeas da empresa e promoveu importantes
iniciativas, como a coleção «Confluences», dedicada à literatura
grega traduzida em francês, ou o Dictionnaire français-grec
moderne. É isto que devia ser sempre uma livraria especializada
numa língua estrangeira: um dicionário pelo menos bilingue.
A página Web da Kauffmann não está disponível. Nada na
internet indica que a livraria continua aberta. Após várias pesquisas
infrutíferas, resgatei o cartão dessa viagem, cor de laranja, com uma
árvore estampada sob os caracteres gregos e latinos, qual
arquipélago esbatido no fundo do mar. E marco o seu número de
telefone. Duas, três vezes. Ninguém responde. De página em
página, no meu deambular pelos motores de busca, acabo por
encontrar fotografias políticas que não queria ver. Uma delas mostra
a «passagem Pesmazoglou» – ou Galeria do Livro – carbonizada
durante os distúrbios de princípios de 2012 por albergar empresas
privadas. A biblioteca, pelo contrário, embora no início a imprensa
internacional tenha difundido a notícia de que tinha ardido, não foi
atacada, não se viu afetada pelos incêndios: pública e antiga, com
data de inauguração e planos de mudança, um passado e um futuro
tão seguros quanto possível permanecem.

«E bastantes daqueles que tinham praticado <artes> metediças trouxeram


os seus livros e queimaram-nos diante de todos; e calcularam os preços
dos livros e descobriram que <a soma seria> cinquenta mil moedas de
prata.»

APÓSTOLOS 19:19.
As livrarias mais antigas do mundo

«Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada


passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me
estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos,
quem escrevia era eu [...].»

FERNANDO PESSOA, Livro do Desassossego

UMA LIVRARIA NÃO SÓ TEM DE SER ANTIGA como deve parecê-lo. Quando
entramos na Livraria Bertrand, no n.º 73 da Rua Garrett, em Lisboa,
a poucos passos do café A Brasileira e da sua estátua de Fernando
Pessoa e, por conseguinte, em pleno coração do Chiado, o «B»
sobre fundo encarnado do logótipo exibe orgulhosamente um
número: 1732. Na primeira sala tudo aponta para esse passado
venerável patente na data: a vitrina de livros em destaque; as
escadas deslizantes ou o banco-escadote que permite aceder às
prateleiras mais altas de umas estantes vetustas; a placa
enferrujada que batiza como «Sala Aquilino Ribeiro» o lugar onde
nos encontramos, em homenagem a um dos seus mais ilustres
clientes, tão assíduo como Oliveira Martins, Eça de Queirós, Antero
de Quental ou José Cardoso Pires; e, sobretudo, o diploma do
Guinness World Records, que certifica a sua condição de livraria no
ativo mais antiga do mundo.
Uma atividade ininterrupta. E documentada. No n.º 1 da Trinity
Street, Cambridge, venderam-se livros durante muito tempo desde
1581, com clientes tão célebres como William Makepeace
Thackeray e Charles Kingsley, mas durante longos períodos o
estabelecimento foi, em exclusivo, sede da Cambridge University
Press, sem venda direta ao público. No mesmo terreno pantanoso
da ausência de documentos fiáveis, encontramos, em Cracóvia, a
Matras – ainda conhecida como Gebether i Wolff pelos mais velhos
–, cujas origens míticas remontam ao século XVII (quando o
mercador de livros Franz Jacob Mertzenich abriu nesse mesmo
lugar uma livraria), com continuidade desde 1872. Palco de um
célebre salão literário nessa viragem do século, hoje em dia acolhe
importantes eventos relacionados por estar implantada numa cidade
UNESCO da literatura. É por isso que a Librairie Delamain, de Paris,
que abriu as suas portas na Comédie-Française em 1700, 1703 ou
1719 – a data varia, conforme as fontes –, e que só se mudou para
a Rue de Saint Honoré em 1906, talvez seja a autêntica livraria mais
antiga do mundo. No entanto, não tem como demonstrar essa
afortunada atividade ininterrupta, em parte devido a que, ao longo
da sua dilatada história, sofreu pelo menos um incêndio e uma
inundação, que certamente terão danificado os seus arquivos. O
que a memória coletiva sem dúvida não esqueceu foi que, durante o
século XVIII, foi regida pela mesma família Duchesne que editou Rétif
de La Bretonne, Voltaire e Rousseau, e que o seu mais famoso
proprietário durante o século XX, o editor Pierre-Victor Stock, a
perdeu num jogo de póquer. A livraria P&G Wells, de Winchester,
parece ser mesmo a mais antiga do Reino Unido, e quem sabe se
não será a mais antiga do mundo com uma única localização, ou
seja, radicalmente independente (em finais do século XX abriu a sua
única sucursal na universidade). Conservam-se recibos de compras
de livros de 1729 e, ao que parece, a atividade regular na sede da
College Street remonta à década de 1750. Durante a década
seguinte, em 1768, começou a negociar com livros a Hodges Figgis,
ainda no ativo, que não só é a mais antiga da Irlanda como a maior,
com um stock de 60 mil exemplares. E é a mais dublinense, porque
aparece no mais dublinense de todos os livros, que não é o Gente
de Dublin, mas o Ulisses, de James Joyce («Ela. Ela. Ela. Que ela?
A virgem na vitrina da Hodges Figgis, na segunda-feira, à procura
da Cartilha que ias escrever»). A mais antiga de Londres é a
Hatchards, que abriu as suas portas em 1797 para nunca mais as
fechar, com o seu aristocrático edifício no 187 de Piccadilly e o seu
retrato a óleo do fundador, John Hatchard, que confere à instituição
a devida pátina de antiguidade e de respeitabilidade. Agora pertence
à cadeia Waterstones, mas não perdeu um ápice da sua identidade
alcatifada: continua a oferecer, contrariamente ao que é habitual nas
livrarias mais populares, no primeiro andar, os romances, e no rés
do chão, os livros de História e os ensaios de capa dura, comprados
desde sempre pelos seus clientes habituais a caminho da Royal
Academy ou das alfaiatarias da Jermyn Street. Nos últimos anos,
desenvolveram um serviço de subscrições que, na nossa era de
algoritmos, emprega três grandes leitores incumbidos de estudar os
gostos dos subscritores e de lhes fazerem chegar periodicamente,
por correio, os volumes escolhidos. Mary Kennedy, que me guiou
tanto pelos seus recantos, como pela história da livraria, disse-me
com orgulho: «Todos têm o direito de devolver os títulos de que não
gostarem, mas isso só aconteceu uma vez.»

Na minha biografia, a única livraria do século XIX realmente


importante talvez seja a portenha Librería de Ávila – situada
defronte da Igreja de San Ignacio e a dois passos do Colégio
Nacional de Buenos Aires – que, tudo indica, foi fundada em 1785,
altura em que na esquina onde ainda hoje se encontra se instalou
uma mercearia que, além de oferecer produtos alimentares e
licores, vendia livros. Se a P&G imprimia livros para a Winchester
College, a sua contemporânea de Buenos Aires estava vinculada
com a vizinha instituição educativa, inclusivamente no nome:
Librería del Colegio. Só existem documentos que atestem essa
mesma localização a partir de 1830: «Antiguos Libros Modernos»,
pode ler-se na sua fachada. Na sua cave comprei, durante a minha
primeira visita a Buenos Aires, em julho de 2002, alguns exemplares
da revista Sur. Tocar em livros velhos é uma das poucas
experiências táteis que nos transporta para o passado remoto.
Embora o conceito de livraria-antiquário ou alfarrabista seja próprio
do século XVIII, devido ao correspondente auge de disciplinas como
a História e a Arqueologia, nos séculos XVI e XVII desenvolveu-se
graças aos encadernadores e aos livreiros, que tanto trabalhavam
com livros impressos como com cópias manuscritas. O mesmo se
pode dizer dos catálogos dos impressores e dos editores, que
evoluíram desde simples listas de publicações até sofisticados
livrinhos luxuosos. Nunca toquei numa dessas relíquias. Nem
sequer num livro que nunca tenha sido impresso.
Svend Dahl escreveu, no seu Histoire du Livre, que nos primeiros
anos da imprensa os manuscritos prevaleciam sobre os livros
impressos por terem mais prestígio, como outrora sucedeu com o
papiro sobre o pergaminho, ou nos anos 60 do século passado com
o livro composto à mão sobre o livro de composição mecânica. No
início, o impressor era o próprio livreiro: «Mas depressa fizeram a
sua aparição os vendedores ambulantes, que iam oferecendo, de
cidade em cidade, os livros comprados aos impressores.»
Apregoavam pelas ruas a lista de títulos de que dispunham e
anunciavam a pousada onde ficavam alojados e onde instalariam o
seu mercado nómada. Também havia os que tinham postos fixos
nas grandes cidades. No século XVI, já era possível fazer milhares
de cópias de um mesmo livro, e os leitores multiplicaram-se até às
centenas de milhares: ao longo destes cem anos, chegaram a
pulular pela Europa mais de cem mil livros impressos diferentes.
Desenvolve-se, então, um duplo sistema de exibição classificada de
livros: mediante gavetas ou ficheiros e estantes, porque o mais
normal era que os livros não fossem encadernados, para que o
cliente pudesse escolher o tipo de encadernação que desejava para
cada exemplar. Daí as caprichosas coleções de títulos que só têm
em comum as lombadas que os proprietários escolheram para elas.
Algumas podem ser encontradas, íntegras, na cave da Librería de
Ávila e nos alfarrabistas das proximidades da portenha Avenida de
Mayo. Como eram as livrarias no século XVIII, quando a Bertrand
Livreiros, a Hatchards e a Librería del Colegio abriram as suas
portas em Lisboa, Londres e Buenos Aires, respetivamente? A
avaliar pelas gravuras dos séculos XVII e XVIII estudadas por Henry
Petroski em The Book on the Bookshelf, um pormenorizado
itinerário pela história de como arrumámos os nossos livros, o
livreiro instalava-se atrás de uma grande secretária, desde a qual
geria o seu negócio, que muitas vezes comunicava fisicamente com
a imprensa ou com a editora da qual dependia, e dispunha à sua
volta o grande arquivo de cartapácios cosidos, mas não
encadernados, que era a livraria. Os móveis de gavetas muitas
vezes eram parte integrante do balcão, como se pode observar
numa famosa gravura de The Temple of the Muses, talvez a livraria
mais lendária e bela do século XVIII, situada na londrina Finsbury
Square e regida por James Lackington, que se recusava a destruir
os livros que não vendia, preferindo pô-los em saldo, em sintonia
com o que entendia ser a sua missão profissional. Escreveu: «Os
livros são a chave do conhecimento, da razão e da felicidade, e toda
a gente deve ter acesso a eles a preços acessíveis,
independentemente do nível económico, classe social ou sexo.»
Entre os testemunhos escritos das livrarias oitocentistas, também
se destaca o de Goethe, que no dia 26 de setembro de 1786
escreveu na obra Viagem à Itália:

«Finalmente tenho a obra de Palladio: na verdade, não a edição original,


que vi em Vicenza, cujas gravuras são feitas em madeira, mas uma cópia
fiel, um fac-símile em aço, uma edição preparada por um homem
excelente chamado Smith, antigo cônsul inglês em Veneza. Tenho de
confessar que os ingleses há muito que sabem apreciar o que é bom e têm
uma maneira grandiosa de difundi-lo. Quando fiz esta compra, entrei numa
livraria que, como sucede na Itália, tem um aspeto assaz original. Todos os
livros estão encadernados e dispostos ao alcance da mão. Encontra-se
sempre gente seleta. Os que são um pouco versados em literatura, sejam
do clero secular, da nobreza ou artistas, entram e saem constantemente.
Desejam um livro, pedem-no, folheiam-no, ficam com ele ou voltam a
pousá-lo a seu bel-prazer. Encontrei meia dúzia de pessoas reunidas:
quando perguntei pela obra de Palladio, todos olharam para mim, e
enquanto o dono da loja procurava o livro, louvaram-no e elucidaram-me
sobre o original e as cópias. Estavam bem familiarizados com a obra e
com o mérito do autor e, julgando-me arquiteto, elogiaram-me por seguir,
no meu estudo, o exemplo deste mestre e não de outros. Era mais útil no
seu uso e aplicação que o próprio Vitrúvio, pois tendo estudado a fundo a
Antiguidade e os antigos, Vitrúvio esforçava-se por apropriar-se dos
conhecimentos adquiridos em benefício das nossas necessidades.
Conversei longamente com outras amáveis pessoas; obtive notícias sobre
as coisas mais notáveis da aldeia e despedi-me.»

A primeira oração evidencia a consecução de um desejo: o


objetivo da visita a toda a livraria. A última, a aquisição de um
conhecimento que não se encontra diretamente nos livros, mas nas
pessoas que os rodeiam. O que mais surpreende o erudito e
viajante é o facto de estarem todos encadernados e completamente
acessíveis, de modo que os visitantes possam dialogar tanto entre
eles como com os volumes. A encadernação só se generalizou na
Europa quando o mesmo sucedeu com a máquina correspondente,
por volta de 1823, altura em que as livrarias começaram aos poucos
a assemelhar-se às bibliotecas, ao oferecerem produtos acabados e
não livros por fazer, de maneira que a surpresa de Goethe prende-
se com o facto de serem encadernações artesanais. Em Uma
Viagem Sentimental por França e Itália (1768), Laurence Sterne
entra numa livraria do cais de Conti para comprar uma «coleção de
Shakespeare», mas o livreiro responde-lhe que não possui
nenhuma. O viajante, indignado, pega numa que estava em cima da
mesa e pergunta: «Então e o que é isto?» E o livreiro explica-lhe
que não é sua, mas de um conde, que lho tinha enviado para que o
encadernasse: é um «esprit fort», explica-lhe, «amante de livros
ingleses» e do convívio com os ilhéus.
Quando Chateaubriand, em 1802, viajou até Avinhão ao saber
de uma falsificação dos quatro volumes de Génio do Cristianismo,
como nos conta nas suas memórias, «de livraria em livraria lá
consegui dar com o falsificador, que não sabia quem eu era». Na
cidade havia muitas, da maioria das quais não conservamos
qualquer recordação. Tendemos a conceber a literatura como uma
abstração, quando se trata de uma rede incomensurável de objetos,
corpos, materiais, espaços. Olhos que leem, mãos que escrevem e
que passam páginas e que seguram livros, sinapses cerebrais, pés
que levam até livrarias e bibliotecas, ou vice-versa, desejo
bioquímico, dinheiro que compra, papel e cartão e tecido, estantes
recheadas, madeira prensada e florestas desaparecidas, mais olhos
e mãos que guiam camiões, carregam caixas, arrumam volumes,
espreitam, folheiam e folheiam, contratos, letras e números e
fotografias, armazéns, lojas, metros quadrados de cidade,
caracteres, ecrãs, palavras de tinta e pixéis.
Da raiz linguística poiéin, que significa «fazer», deriva a palavra
«poesia», que na Grécia antiga significava «literatura». Em The
Craftsman, o sociólogo Richard Sennett explorou a íntima ligação
entre a mão e o olho: «Qualquer bom artesão mantém um diálogo
entre as práticas concretas e o pensamento; este diálogo evolui até
se converter em hábitos que, por sua vez, estabelecem um ritmo
entre a solução e a descoberta de problemas.» Refere-se sobretudo
aos carpinteiros, aos músicos, aos cozinheiros, aos luthiers, a todos
aqueles a que normalmente chamamos artesãos, mas a sua
reflexão pode aplicar-se tanto aos inúmeros artesãos que desde
sempre contribuíram para a criação de um livro (papeleiros,
tipógrafos, impressores, encadernadores, ilustradores) como ao
próprio corpo de qualquer leitor, à dilatação das suas pupilas, à sua
capacidade de concentração, à sua postura corporal, à sua memória
digital (nas pontas dos dedos). A própria escrita, enquanto caligrafia
– ou seja, manufatura –, está submetida ainda à disciplina da
perfeição em civilizações como a chinesa ou a árabe. E na história
da cultura ainda é muito recente o momento em que se deixou de
escrever à mão para se passar a escrever à máquina. Apesar de
não intervir diretamente na criação do objeto, a figura do livreiro
pode entender-se como a do leitor-artesão, aquele que, após as 10
mil horas que, segundo alguns especialistas, são necessárias para
se ser especialista nalguma prática, é capaz de aliar a excelência ao
trabalho, o fazer à poesia.
Algumas livrarias do mundo cultivam com esmero a sua
dimensão táctil, para que o papel e a madeira aceitem o testemunho
dessa tradição de leitores artesanais. Os três estabelecimentos
ingleses da Topping & Company, por exemplo, foram mobilados com
estantes confecionadas por carpinteiros locais. E tanto os pequenos
letreiros que indicam as secções como os cartões em que os
livreiros recomendam alguns títulos são escritos à mão. A nutrida
secção de poesia do estabelecimento de Bath assinala a
importância de uma livraria abraçar e potenciar os interesses da
comunidade na qual se inscreve. «As pessoas desta pequena
cidade têm orgulho na sua devoção pela poesia», contou-me um
dos seus livreiros, Saber Khan, «e nós, de lhes oferecermos um dos
fundos de poesia mais importantes do país». Tal como os leitores e
os carpinteiros são diferentes em cada lugar, cada uma das Topping
& Company «possui a sua identidade própria, como irmãos e irmãs,
mas em todas elas o café é gratuito, porque não se pode recusar a
ninguém uma chávena de café». Vi lá leitores instalados durante
horas nas suas mesas e cadeiras de madeira. E a cama e o prato
da comida do cão que anda às voltas pela livraria, a sua casa, a
nossa casa. O seu lema «A proper oldfashioned bookshop» pode
ser traduzido como: «Uma autêntica livraria à moda antiga» ou
«Uma livraria como deus manda, passada de moda».
Como me disse José Pinho, a alma mater da lisboeta Ler
Devagar, uma livraria é capaz de regenerar o tecido social e
económico da zona onde é aberta porque é puro presente, um
acelerado motor de mudança. Não é de estranhar, pois, que muitas
livrarias façam arte de projetos sociais. Penso nas que estão
vinculadas à Eloísa Cartonera em muitas cidades da América
Latina, a partir da casa-mãe argentina, com os seus livros
encadernados por trabalhadores informais que apanham papel e
cartão nas ruas. Penso em La Jícara, um restaurante que serve
comida saborosíssima rodeado por estantes duplas com literatura
para crianças e adultos, e que só vende livros de chancelas
independentes, em Oaxaca, México. Penso na Housing Works
Bookstore Café, exclusivamente gerida por voluntários e que dedica
todo o lucro obtido com a venda de livros, do arrendamento do
espaço e da cafetaria à ajuda dos mais desfavorecidos de Nova
Iorque. São livrarias que estendem a mão para construírem cadeias
humanas. Não há melhor metáfora da tradição livresca, porque
lemos tanto com os olhos como com as mãos. Ao longo das minhas
viagens contaram-me a mesma história muitas vezes. Aquele
momento em que foi necessário mudar de loja e os clientes, que já
eram amigos, se ofereceram para ajudar na mudança. Aquela
cadeia humana que uniu a antiga sede da Auzolan, em Pamplona,
com a nova, ou as da RiverRun, em Portsmouth, ou as da Robinson
Crusoe, em Istambul, ou as da Nollegiu, no bairro de Poblenou, em
Barcelona. Romano Montroni, que durante décadas trabalhou na
Feltrinelli da Piazza di Porta Ravegnana, em Bolonha, defendeu, em
Il decalogo del libraio, que «il cliente è la persona più importante
dell’azienda» [«o cliente é a pessoa mais importante da empresa»],
e colocou o pó no centro da atividade quotidiana da livraria: «Há que
limpá-lo todos os dias, e toda a gente deve fazê-lo!», exclama em
Vendere l’anima – Il mestiere del libraio: «O pó é um assunto de vital
importância para um livreiro. Se limpa ou não o pó de manhã, logo
cedo, de cima a baixo e no sentido dos ponteiros do relógio.
Enquanto o faz, o livreiro vai memorizando o lugar dos livros e
reconhecendo-os fisicamente.»
Pelo menos desde a Roma Antiga que as livrarias são os
espaços relacionais em que a textualidade se torna mais física, mais
do que na sala de aula ou na biblioteca, devido ao seu dinamismo. E
quem se move são sobretudo os leitores, quem relaciona os
exemplares expostos com o balcão e, por conseguinte, com os
livreiros, quem pega em moedas e notas ou cartões de crédito para
os trocar por livros, quem, no seu movimento, observa o que os
outros procuram ou compram. Os livros, os livreiros e as livrarias
permanecem bastante quietos quando comparados com os clientes,
que não param de entrar e sair, e cujo papel no interior é
precisamente esse, o de se movimentarem. São viajantes na cidade
em miniatura, cujo objetivo é fazer com que as letras – quietas no
interior do livro – se tornem móveis durante o tempo da leitura (ou
da sua recordação), porque, como escreveu Mallarmé: «O livro,
expansão total da letra, deve extrair dela, diretamente, uma
mobilidade.» No entanto, a própria livraria, com ou sem
compradores ou curiosos no seu interior, possui os seus próprios
ritmos cardíacos. Não só os de desembalar, ordenar, devolver e
repor. Não só os das mudanças de pessoal. As livrarias também têm
uma relação conflituosa com os lugares que as contêm, que as
definem apenas em parte, e não completamente. E com os seus
próprios nomes, que muitas vezes mudam com os sucessivos
proprietários. Por dentro e por fora, as livrarias são portáteis e
mutantes. É por isso que o recorde Guinness de Livraria mais Antiga
do Mundo é ostentado pela Livraria Bertrand, porque é a única que
pode demonstrar a sua longeva continuidade desde a data da sua
fundação. O que é habitual é que, no mínimo, mude de nome
sempre que o faz de mãos.
A mais antiga da Itália ilustra esse problema: a Libreria Bozzi foi
fundada em 1810 e continua aberta numa maltratada esquina de
Génova, mas o seu primeiro proprietário, um sobrevivente da
Revolução Francesa, chamava-se Antonio Beuf. Em 1927 foi
adquirida por Alberto Colombo, pai da primeira mulher do Mario
Bozzi que dá nome ao estabelecimento até aos dias de hoje, em
que é gerida por Tonino Bozzi. A Livraria Lello, do Porto, é outro
exemplo disso. A empresa foi fundada com o nome Livraria
Internacional de Ernesto Chardron na Rua dos Clérigos; em 1881,
José Pinto de Sousa estabeleceu-a na Rua do Almada; treze anos
mais tarde, foi vendida por Mathieux Lugan a José Lello e ao seu
irmão António, que a rebatizaram como Sociedade José Pinto
Sousa Lello & Irmão. Como se não fossem suficientes todas estas
mutações, após a construção do edifício atual – entre neogótico e
art déco –, em 1906, a livraria receberia o seu nome definitivo em
1919: Livraria Lello & Irmão. Num dos seus cantos ainda se
encontra pendurado o artigo que lhe dedicou Enrique Vila-Matas,
que a qualificou como a mais bela do mundo. O cartão que conservo
da minha visita de 2002 está impresso num elegante papel
levemente rugoso, com um emblema e a morada impressos a tinta
lilás. «Livraria Lello», reza sob a ilustração. O nome da empresa que
a gere é Prólogo Livreiros, S.A.
Uma história semelhante esconde outra livraria de referência
internacional, e coetânea, a Luxemburg, de Turim, que embora
tenha sido fundada em 1872 – se admitirmos, insisto, que as
mudanças de proprietário, lugar e inclusivamente de nome não
acabam com a identidade de uma livraria –, também teve, como a
de Ávila, um nome diferente durante a maior parte da sua
existência. Gerida por Francesco Casanova, um importante editor
piemontês, a Libreria Casanova foi um centro cultural de primeira
magnitude nas últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX.
A cronista napolitana Matilde Serao, o decadentista Antonio
Fogazzaro e o criador do verismo Giovanni Verga eram alguns dos
seus frequentadores habituais. Casanova forjou uma amizade íntima
com Edmundo de Amicis, de quem publicou Gli Azzurri e i Rossi, em
1897. Se sob a sua batuta a loja conseguiu sintonizar-se com o
espírito da sua época, quando o projeto foi retomado em 1963 pelo
ativista e escritor Angelo Pezzana, que rebatizou a livraria como
Hellas, o novo dono também saberia encontrar a frequência dos
novos tempos. Tendo como proprietário o fundador do primeiro
movimento de libertação homossexual da Itália, não é de estranhar
que nela fosse apresentada, no dia 17 de fevereiro de 1972, com
uma leitura poética e uma atuação musical, a revista psicadélica de
contracultura Tampax, que mais tarde engendraria outra, a Zombie
International. Cinco anos antes, acompanhado por Fernanda
Pivano, a grande difusora da literatura norte-americana na Itália,
Allen Ginsberg visitou a livraria e recitou na sua cave. Quando
Ginsberg voltou a Turim, em 1992, leu uma continuação de «Hum
Bom!», o poema que iniciara em 1971, com Bush e Saddam como
personagens (ouço a gravação no YouTube enquanto escrevo isto:
é o eco do pulsar da livraria durante aqueles anos 70). Foi o próprio
Pezzana quem lhe voltou a mudar o nome em 1975: Luxemburg
Libreria Internazionale. Não cessou a sua atividade política e
cultural: esteve por detrás tanto do nascimento da International Gay
Association e da Associazione Italo-Israeliana como da criação do
Salão do Livro de Turim. No rés do chão, ao fundo, sob as escadas
de madeira, o pequeno gabinete do livreiro está decorado com
bandeiras de Israel e da Itália; e a secção judaica encontra-se quase
tão bem aprovisionada como a das revistas internacionais da
entrada ou a dos livros noutras línguas europeias do andar de cima.
Uma fotografia a preto e branco mostra o poeta beat e um
amarelado recorte de imprensa dá fé da sua visita. Numa vitrina
exibem-se faturas e notas de encomenda de Francesco Casanova.
É o próprio Pezzana, com os óculos apoiados no último milímetro do
nariz, quem me cobra o exemplar que comprei para oferecer à
Marilena do último romance de Alessandro Baricco. O acesso à
cave encontra-se vedado.
Ainda existe um catálogo da Bertrand Livreiros de 1755, o ano do
terramoto de Lisboa. Nele, os irmãos franceses indexam quase dois
mil títulos, um terço dos quais são livros de História, outro de
Ciências e Artes e o último de Direito, Teologia e Literatura. A maior
parte deles está escrita em francês e foi editada em Paris. Poucos
meses depois do terramoto, muitos livreiros italianos e franceses da
capital portuguesa já tinham retomado a sua atividade, e embora
não se conservem catálogos da Bertrand Livreiros desses anos, há
folhas de pedidos de títulos enviadas ao Santo Ofício e ao órgão
censor que posteriormente herdou as suas funções. Numa das
hastas públicas dos terrenos devastados pelo terramoto, em 1773,
obtiveram a localização definitiva da livraria, que na altura se
chamava Rua das Portas de Santa Catarina. A empresa manteve-se
na família até 1876, ano em que foi trespassada pelo último
descendente direto, João Augusto Bertrand Martin, à firma Carvalho
& C.ª. Foi a primeira das muitas sociedades mercantis que
possuíram, desde então, uma marca que a dada altura, para que
não se duvidasse da sua antiguidade, acrescentou ao «B» inicial o
número 1732.
«Fondata nel 1872», pode ler-se no cartão que me ofereceu
Pezzana antes de nos despedirmos.

«E assim, também desta vez retomei esse hábito e entrei na


Reading Room logo na primeira manhã em Southworld para
ver se alguma coisa tinha mudado e tomar umas notas sobre
o que tinha vivido na véspera. Como em muitas das vezes
anteriores, comecei por folhear o diário de bordo do
Southwold, um barco-patrulha acorado na ponta do molhe
desde o outono de 1914. [...] De cada vez que decifro uma
destas anotação, admiro-me por um rasto há tanto tempo
desaparecido do ar ou da água permanecer visível no papel.»

W.G. SEBALD
Os Anéis de Saturno.
Shakespeares and Companies

«O descrédito atual da livraria prende-se menos com uma


suspensão das suas operações (eu não o vejo assim), mas
com a sua notória impotência em relação à obra excecional.»

STÉPHANE MALLARMÉ, Quant au livre

COMECEMOS ESTE CAPÍTULO COM UMA CITAÇÃO de L’Histoire par le


Théâtre (1865), de Théodore Muret, arquivada por Benjamin no seu
inacabado e já aqui citado projeto Livro das Passagens:

«Havia necessariamente modistas, que trabalhavam sobre grandes


tamboretes virados para o exterior sem que nenhum vidro as separasse, e
os seus semblantes vivos não eram, para alguns passantes, o menor dos
atrativos do lugar. Além do mais, as Galeries de Bois eram o centro da
nova livraria.»

A associação entre tecer e escrever, entre o tecido e o texto,


entre a costureira e o artista, é uma constante na história da
literatura e da arte. A atração pelas artesãs, pelos seus corpos
femininos relaciona-se nestas linhas com o consumo cultural. Muret
enfatiza a ausência de um vidro, numa época em que todas as
livrarias começavam a ter montras, uma exibição transparente da
mercadoria que partilham com as lojas de brinquedos ou de roupa.
Quando narra o regresso de Jakob Mendel a Viena após dois anos
de internamento no campo de concentração, Zweig refere-se «às
montras cheias de livros» da cidade, porque é nelas que se torna
exterior a experiência interior das livrarias e, com ela, a exuberância
da vida cultural urbana. O seguinte comentário de Benjamin talvez
se deva a esta associação de ideias:

«Julius Rodenberg a propósito da pequena sala de leitura na Passage de


l’Opéra: “Que acolhedora se me afigura na memória esta pequena câmara
envolta na penumbra, com as suas altas filas de livros, as suas mesas
verdes, o seu empregado ruivo (um amante dos livros que estava sempre
a ler romances, em vez de os servir aos outros), os seus jornais alemães,
que alegravam o coração do alemão todas as manhãs (exceto o Kölnische
Zeitung, que aparecia, em média, apenas uma vez de quinze em quinze
dias). E se porventura havia novidades em Paris, este era o lugar onde
informar-se, era aqui onde as ouvíamos.”»

Os salões, os gabinetes de leitura, os ateneus, os cafés ou as


livrarias partilham a sua natureza de lares postiços e de núcleos
político de tráfego de informação, como se observa no romance O
Viajante do Século, de Andrés Neuman, que de resto escreveu que
as livrarias são «lares de passagem». A imprensa estrangeira e a
local dialogam nos cérebros extraterritoriais dos viajantes e dos
exilados, que se deslocam de capital em capital europeia enquanto
se vai extinguindo o Grand Tour. A Europa converte-se num grande
espaço de fluxo de livros graças à sua produção industrial, que é
acompanhada pela proliferação de redes de livrarias, a multiplicação
do folhetim como forma novelística comercial por excelência, o
aumento exponencial das pessoas alfabetizadas e a transformação
do continente num vasto emaranhado de linhas de comboio.
Consolidam-se em paralelo as instituições que zelam pela produção
e a comercialização editoriais. Na Alemanha, por exemplo – como
nos recorda Svend Dahl –, em 1825, surge a Associação de
Livreiros que, 23 anos mais tarde, consegue a supressão da
censura e que, em 1870, se decrete uma disposição válida para
todo o país segundo a qual os direitos de autor permanecerão
vigentes durante 30 anos após a morte do mesmo. Nessa altura já
se tinha consolidado o sistema de comissões e de grossistas
intermediários. Tal como sucede com os restantes bens de
consumo, os livros também estão submetidos ao arbítrio da
legislação laboral, à competitividade, à publicidade ou ao escândalo.

Não é por acaso que os dois maiores escândalos literários do


século XIX foram simultâneos e tiveram lugar em Paris (não
desfazendo de Oscar Wilde, que por acaso também morreu na
capital francesa, sumido na indigência). Os julgamentos de 1857 por
ofensa à moral e aos bons costumes contra Charles Baudelaire, por
causa da sua obra-prima As Flores do Mal, e contra Gustave
Flaubert, pela sua magnífica Madame Bovary, constituem uma
casuística perfeita para refletir sobre as mudanças que se estavam
a produzir na indústria do livro e na história literária. Respostas
possíveis a questões como: até onde chega a responsabilidade do
escritor em relação ao que escreve? E se se tratar de ficção? É
legítima a censura numa sociedade democrática? Em que grau
pode um livro influenciar uma pessoa? Qual é a relação legal do
editor com o livro? E do impressor, e do distribuidor, e do livreiro?
Perguntas, estas, com ilustres precedentes: depois de ser
denunciado pelo seu pároco, Diderot foi julgado em 1747 por causa
d’A Carta sobre os Cegos e foi enclausurado na fortaleza de
Vincennes, até que os livreiros associados conseguiram libertá-lo,
argumentando que, se o projeto da Enciclopédia continuasse
parado, a principal prejudicada seria a indústria nacional. A
propósito da publicação de A Origem do Narrador, uma compilação
dos autos de ambos os julgamentos oitocentistas, Daniel Link
reinterpretou com acerto o título do volume: «Tem sobretudo a ver
com a noção (moderna) de autor: o seu aparecimento e o seu
desaparecimento ao mesmo tempo do local (do crime) e a maneira
como a responsabilidade (penal e ética) permite relacionar
determinados enunciados com determinados nomes próprios.»
Baudelaire perdeu (foi multado e obrigado a suprimir seis poemas);
Flaubert ganhou. Os autos evidenciam que o grande protagonista de
ambos os processos foi o procurador Ernest Pinard. Curiosamente,
foi durante o julgamento que perdeu que se revelou um excelente
crítico literário. É a ele que devemos a interpretação mais
consensual do romance hoje em dia. Todos os leitores são críticos,
mas só se convertem em críticos literários aqueles que, de algum
modo, tornam públicas as suas opiniões sobre o que leem. Pinard
era-o, de pleno direito, e os autos do julgamento são a obra que o
demonstra.
O poeta passou toda a vida com vontade de escrever uma
«história de As Flores do Mal», para esclarecer que o livro, embora
tivesse sido condenado por ser imoral, era «profundamente moral».
O que aconteceu fisicamente com ele? O seu editor, Poulet-
Malassis, continuou a vender a edição integral de As Flores do Mal
ao dobro do preço original e comercializou alguns exemplares com
páginas a menos, mutilados. E em 1858 pôs em circulação uma
segunda edição, uma vez mais integral, que esgotou em poucos
meses. Contrariamente ao que sucedeu a Wilde, que foi uma
autêntica tragédia, os escândalos protagonizados por Flaubert e
Baudelaire não tiveram repercussões graves. Porém, continuam a
condicionar a leitura de ambas as obras-primas ainda no século XXI.
E das que as seguiram.
A leitura literária, devido à sua penetração social, é condicionada
por inúmeros agentes críticos e microcríticos. O facto de que um
procurador o seja, e de que o saibamos através dos textos que
redigiu, é um facto extraordinário, quase tanto como se se revelasse
como tal um livreiro. Não obstante, as duas livreiras parisienses
mais importantes da primeira metade do século XX – e talvez do
mundo e do século – publicaram dois livros de memórias que nos
iniciam no funcionamento relacional e crítico de uma livraria de
referência. A leitura em paralelo de Rue de l’Odéon, de Adrianne
Monnier, e de Shakespeare and Company, de Sylvia Beach permite
falar de dois projetos gémeos. Até mesmo, e por coincidência, no
que diz respeito ao seu financiamento inicial, porque Monnier
conseguiu abrir La Maison des Amis des Livres em 1915 graças a
uma indemnização que o pai recebeu (devido a um acidente
ferroviário) e, quanto a Beach, foi a mãe que lhe emprestou todas as
suas poupanças para que as investisse no negócio, que abriu as
suas portas não longe da primeira em 1919, mudando-se para a
Odéon dois anos mais tarde. Para ambas, a coisa mais importante
do ofício é a possibilidade de frequentar escritores que também são
clientes e se convertem em amigos. A maior parte dos respetivos
livros, precisamente, é dedicada ao catálogo de visitantes ilustres:
Walter Benjamin, André Breton, Paul Valéry, Jules Romain ou Léon-
Paul Fargue, entre outros, no caso da La Maison des Amis des
Livres; e Ernest Hemingway, Francis Scott Fitzgerald, Jean Prévost,
André Gide, James Joyce ou Valery Larbaud, no caso da
Shakespeare and Company. Se é que a diferenciação é correta,
porque visitar a Rue de l’Odéon significava visitar ambas as livrarias,
e o público e as amizades das duas livreiras entrosavam-se tanto
nas atividades culturais como na vida pessoal. Enquanto Monnier
mantém uma certa equanimidade e dedica relacionamentos
semelhantes a todas as suas afeições, Beach tinha uma fraqueza
ofuscante por Joyce, a quem ainda antes de conhecer considerava
«o maior escritor da minha época». Toda a família Joyce manteve
relações privilegiadas com a Shakespeare and Company desde o
início: os jovens Giorgio e Lucia colaboraram no transporte de
caixas quando a livraria se mudou da sua morada original, na Rue
Dupuytren, para a casa definitiva, na Odéon, que também servia de
posto dos correios e de banco para toda a família; e Lucia, mais
tarde, foi amante de Samuel Beckett, o secretário do pai, e de
Myrsine Moschos, a assistente de Beach e sua ajudante na livraria.
O processo de edição do Ulisses constitui o argumento central do
seu livro, e a personalidade do seu autor invade o texto, para o bem
e para o mal, como uma chuva de borboletas pretas e brancas. Não
me parece um mero acaso a centralidade desse livro e desse autor:
as livrarias literárias constroem o seu discurso situando no seu
centro o gosto elevado que conduz à dificuldade. Como diz Pierre
Bourdieu em A Distinção: Uma Crítica Social da Faculdade do Juízo
: «Toda a linguagem da estética está contida numa rejeição, por
princípio, do que é fácil, em todos os sentidos que a ética e a
estética burguesas dão a essa palavra.»

Monnier fala das «visitas belas: as dos autores e dos amateurs


versados». Beach, dos «peregrinos» que chegam dos Estados
Unidos atraídos pela aura que rodeava a cidade pela presença de
Picasso, Pound ou Stravinski. De facto, converte-se numa autêntica
«guia turística» quando visitantes como Sherwood Anderson – entre
muitos outros – lhe pedem que os leve até à residência de Gertrude
Stein; e documenta essa atividade no seu santuário de peregrinação
graças à cumplicidade de Man Ray, cujas fotografias decoram o
estabelecimento. Ambos os espaços eram também bibliotecas que
emprestavam livros («naquele tempo não havia dinheiro para
comprar livros», explica, a esse respeito, Hemingway em Paris É
Uma Festa. E na Shakespeare and Company também havia um
quarto para os convidados. De maneira que a livraria absorvia a
galeria de arte, a biblioteca, o hotel. E a embaixada: Beach
vangloria-se de ter comprado a maior bandeira dos Estados Unidos
existente em Paris. E o centro cultural: em ambas realizavam-se
periodicamente recitais e conferências; e La Maison acolheu tanto a
primeira audição pública de Socrate, de Erik Satie, em 1919, como a
primeira leitura de Ulisses dois anos mais tarde. A música e a
literatura difíceis e distintas.
Beach decidiu manter aberta a livraria durante a ocupação, mas
a sua nacionalidade e as suas amizades judaicas chamaram a
atenção dos nazis. Um dia de 1941, apresentou-se lá um «oficial
alemão de alta patente» que, «num inglês perfeito», lhe disse que
queria comprar o exemplar de Finnegans Wake que estava na
montra. Ela recusou-se a dar-lho. Quinze dias mais tarde, regressou
para a ameaçar. E a intelectual decidiu fechar o estabelecimento e
armazenar todo o material num apartamento do mesmo edifício,
mesmo por cima de onde vivia. Passou seis meses num campo de
internamento. Quando voltou a Paris, permaneceu escondida: «Eu
visitava diariamente, embora em segredo, a Rue de l’Odéon, e na
livraria da Adrianne punha-me a par das últimas notícias e podia ver
os últimos livros das Éditions de Minuit, que eram clandestinas.»
Hemingway foi o soldado do exército aliado que, em 1944, libertou a
rua das míticas livrarias (e depois dirigiu-se para o bar do Ritz, para
o libertar também). La Maison continuou aberta até 1951, quatro
anos antes da morte de Monnier, que se suicidou oito meses depois
ouvindo ruídos no interior da cabeça.
Durante essas décadas, seguramente foi Léon-Paul Fargue
quem estabeleceu a ponte entre essa Paris franco-anglo-saxónica e
a Paris hispano-americana. Alejo Carpentier descreve-o como um
homem de erudição assombrosa e brilhantíssima poesia, sempre
vestido de azul-marinho, o derradeiro noctívago, viciado na
metrópole e avesso às viagens. Apesar dos seus itinerários
irregulares e da sua falta de pontualidade, pelos vistos era fiel à
Cervejaria Lipp, ao Café de Flore – onde se encontrava com
Picasso –, à Rue de l’Odéon e à casa de Elvira de Alvear, onde
frequentava Arturo Uslar Pietri e Miguel Ángel Asturias. Outro poeta
fetiche e ponte entre ambas as margens foi Paul Valéry, que Victoria
Ocampo conheceu durante a decisiva viagem de 1928, relacionada
com o grande projeto da sua vida, a revista Sur, cujo primeiro
número veria a luz três anos mais tarde. Durante vários meses
conheceu filósofos, escritores e artistas plásticos. Visitou o russo
Lev Shestov na companhia de José Ortega y Gasset. Do encontro
com Pierre Drieu La Rochelle não saiu ilesa: fugiram para Londres
inflamados por uma paixão adúltera. Depois de conhecer Monnier e
Beach, que lhe revelaram a obra de Virginia Woolf, Ocampo voltou a
atravessar o canal da Mancha para a conhecer em 1934, e
regressou em 1939, acompanhada por Gisèle Freund, que tirou a
Woolf umas fotografias mais famosas ainda do que as que Man Ray
fez de Ocampo. As duas livreiras também lhe apresentaram Valery
Larbaud. E Monnier tomou chá mais de uma vez na casa que
Alfonso Reyes e a mulher arrendaram em Paris durante a década
anterior. Porém, a avaliar pelos seus artigos, cartas e livros, nenhum
desses nomes hispano-americanos persistiu na memória das
livreiras parisienses.
Não há dúvida de que ambas se comprometeram radicalmente
com a literatura do seu tempo: a dona da Shakespeare and
Company arriscou todas as suas poupanças para editar a obra-
prima de um homem; a de La Maison des Amis des Livres, para
publicar a sua própria revista literária, Le Navire d’Argent. Porém,
Monnier tem um perfil crítico muito mais acentuado do que Beach e
mais vontade de intervenção direta no debate da sua época. Um
dos textos do seu livro é uma leitura profunda da poesia de Pierre
Reverdy. Beach evoca uma conversa, mantida depois do jantar em
que conheceu pessoalmente Joyce, na qual Jules Benda e Monnier
discutem sobre quais eram os melhores autores franceses
contemporâneos. A propósito das vanguardas, afirma que «todos
estávamos muito conscientes de que caminhávamos para um
renascimento». E sobre a função de uma livraria em relação ao seu
presente literário, afirma:

«É realmente indispensável que uma casa consagrada aos livros seja


fundada e dirigida com consciência por alguém que conjugue a maior das
erudições com o amor pela novidade e que, sem cair em snobismos, seja
capaz de potenciar as verdades e as novas fórmulas.»

Para satisfazer tanto a maioria como a minoria, é necessário


fazer autênticas piruetas e, sobretudo, dispor de muito espaço. La
Maison era uma livraria pequena e, por conseguinte, é normal que o
seu acervo fosse limitado. Muitos escritores que a visitavam
verificavam se os seus livros estavam expostos, ou ofereciam-nos à
biblioteca, de modo que é compreensível que o círculo de amigos e
de cúmplices estivesse representado na oferta, especialmente
quando a dona do negócio os defendia esteticamente nas suas
intervenções culturais. É assim que uma livraria se converte num
lugar anómalo, onde a obra excecional que, segundo Mallarmé não
encontra um lugar na livraria moderna, não só está à venda como
encontra subscritores, investidores, tradutores, editores.
«E quantas descobertas são possíveis numa livraria», escreve
Monnier, «por onde passam, obrigatoriamente, entre os transeuntes
anónimos, as Plêiades, os que entre nós parecem já um pouco
“grandes pessoas azuis” e com um simples sorriso justificam aquilo
a que chamamos as nossas melhores esperanças». A livreira e
crítica e agitadora cultural inclui-se na elite. Podiam ter dificuldade
em encontrar um editor ou até em subsistir, mas eram os melhores
escritores da sua época. Possuíam a aura do reconhecimento: eram
reconhecidos por aqueles que os viam em carne e osso, porque
podiam não os ter lido, mas já os tinham visto em fotografias, como
sucedia com a Torre Eiffel. Chateaubriand, na passagem
anteriormente citada, e a propósito da pirataria da sua obra, diz em
Memórias d’além da Campa:

«Estava numa disposição feliz; a minha reputação tornava-me a vida leve:


há muitos sonhos na primeira embriaguez da fama, e os olhos enchem-se
primeiro com as delícias da luz que desponta; mas quando esta luz se
apaga, deixa-vos na escuridão; se perdura, o hábito de a ver depressa vos
torna insensíveis a ela.»
A palavra-chave, obviamente, é reputação. Dela depende outra,
igualmente crucial e também feminina, a consagração. Desde que a
modernidade nasceu, o complexíssimo sistema literário articulou-se
numa teia de consagrações: a publicação em certas editoras ou
coleções, os elogios de determinados críticos ou escritores, a
tradução para certas línguas, a sucessão de galardões, prémios,
reconhecimentos de importância primeiro local e depois
internacional, a frequência de certas pessoas, cafés, salões,
livrarias. Paris e o país e a língua que capitaliza constituíram,
durante o século XIX e a primeira metade do XX, a primeira e mais
influente república literária do mundo, o centro desde o qual se
legitimava boa parte da literatura mundial. Quando descreve a
livraria na sua Viagem à Itália, Goethe relaciona três sistemas
culturais de carácter nacional: o alemão que leva dentro de si (e é a
língua na qual escreve o livro), o inglês (a elogiada edição inglesa
do livro que compra) e o italiano (Palladio e a própria livraria). Como
nos recordou Pascale Casanova, Goethe falou na sua obra tanto de
uma literatura mundial como de um mercado mundial de bens
culturais. Estava totalmente consciente de que a modernidade se
basearia na transformação dos objetos culturais e artísticos em
mercadoria que se move em dois mercados paralelos, o simbólico
(cujo objetivo é o prestígio, a distinção) e o económico (cujo fim é a
obtenção de benefícios pelo trabalho feito, entre o artesanato e a
arte).
Tal como sucede na maior parte das biografías, ensaios e
estudos de conjunto sobre épocas e lugares cruciais da história da
cultura, em La République Mondiale des Lettres, Casanova não fala
da importância das livrarias nessa geopolítica literária
progressivamente internacional. As exceções, como costuma
acontecer em tantos outros títulos, são a Shakespeare and
Company, citada numa ocasião a propósito de Joyce, e La Maison
des Amis des Livres, que algumas páginas antes aparece num
parágrafo sobre o tópico do escritor como passageiro sem pátria
institucionalizada:
«Esta associação inverosímil converteu durante muito tempo Paris, em
França e em todas as partes do mundo, na capital dessa República sem
fronteiras nem limites, numa pátria universal isenta de qualquer
patriotismo, no reino da literatura que se ergue contra as leis comuns dos
Estados, lugar transnacional cujos únicos imperativos são a arte e a
literatura: a República mundial das Letras. “Aqui”, escreve Henri Michaux a
propósito da livraria de Adrianne Monnier, que foi um dos templos
parisienses da consagração literária, “encontra-se a pátria dos que não
encontraram pátria, seres livres de qualquer amarra”. Paris converteu-se,
assim, na capital dos que se proclamavam sem nação e acima das leis: os
artistas.»

No artigo que dá título a Extraterritorial, de 1969, George Steiner


fala de autores pós-modernos como Borges, Beckett ou Nabokov,
representantes de uma «imaginação multilingue», de uma «tradução
interiorizada», que os teria levado a produzir uma obra prodigiosa.
Friedrich Nietzsche maravilhava-se com o facto de em Turim,
quando ele lá vivia, haver livrarias trilingues. Mais a norte, noutra
cidade transfronteiriça e poliglota, Trieste, a Libreria Antiquaria, no
período entreguerras, foi um lugar onde os grandes escritores
triestinos, como o próprio poeta que geria a livraria, Umberto Saba,
ou o seu amigo Italo Svevo, conversavam com escritores de
diversas procedências, como James Joyce. As mudanças de
domicílio e de língua derivam, portanto, numa extraterritorialidade
artística; mas, como cidadãos, os artistas continuavam submetidos
às leis formais e, como autores, às regras do jogo dos respetivos
campos literários. Embora os escritores pudessem cultivar em Paris
uma ficção de liberdade, talvez fosse mais fácil fazê-lo relativamente
à geopolítica que aos mecanismos da consagração literária. Monnier
era, além de livreira, crítica literária: juiz e parte interessada. A sua
importância consagradora foi percebida pelos seus
contemporâneos: em 1923 foi publicamente acusada de ter
influenciado poderosamente, com as suas recomendações de
leitura, a Histoire de la Littérature Française Contemporaine, de
René Lalou (que, segundo um artigo de opinião publicado em Les
Cahiers Idéalistes, «ignorou aqueles cujos livros não estão nas suas
estantes»). Em sua defesa, a livreira arguiu que se limitava a dispor
de títulos que não se encontravam no resto das livrarias e, ao
enumerá-los, articulou um cânone.
O binómio criado por Monnier e Beach constituiu um duplo polo
anti-institucional: respetivamente, em oposição às grandes
plataformas locais de legitimação (jornais, revistas, universidades,
órgãos governamentais) e, como consulado cultural na
clandestinidade, em oposição às grandes plataformas norte-
americanas de legitimação (sobretudo editoriais). Em Paris
ludibriou-se a censura norte-americana, que impossibilitava a
publicação da obra de Joyce em Nova Iorque: um cúmplice de
Beach passou de barco, desde o Canadá, exemplares do Ulisses
que trazia escondidos nas calças. A ênfase contraespacial,
antinacional, extremou-se durante a ocupação nazi, quando se
converteu num bunker de resistência simbólica.
Em 1953, Monnier escreveu um texto intitulado «Souvenirs de
Londres», no qual rememora a sua primeira viagem à capital
inglesa, em 1909, quando tinha 17 anos. Chama a atenção que não
mencione nenhuma livraria. Isto pode dever-se a que a sua vocação
ainda não tinha desabrochado, mas na escrita retrospetiva é
habitual forçar os mitos de origem. Eu diria que o motivo é mais
simples: no início do século passado, era difícil encontrar a
consciência de pertencer a uma tradição. E, de facto, a forte
tradição de livrarias independentes conceptualmente entrelaçadas
do século XX (as Shakespeare and Companies) nasce com o trânsito
entre a Biblioteca e a Livraria que iluminou Sylvia Beach:

«Certo dia vi, na Biblioteca Nacional, que uma das críticas – Vers et Prose,
de Paul Fort, se não me falha a memória – podia ser adquirida na livraria
de A. Monnier, Rue de l’Odéon, 2, Paris-VI. Nunca tinha ouvido esse
nome, nem o bairro me era familiar, mas qualquer coisa irresistível dentro
de mim atraiu-me para o lugar onde me viriam a acontecer coisas tão
importantes. Atravessei o Sena e depressa me achei na Rue de l’Odéon.
Ao fundo da rua havia um teatro que me fazia lembrar as Casas Coloniais
de Princeton, e a meio da rua, no lado esquerdo, via-se uma livraria de cor
cinzenta com as palavras “A. Monnier” por cima da porta. Contemplei os
atraentes livros da montra e, espreitando para o interior da loja, vi todas as
paredes cobertas por estantes repletas de volumes forrados com o mesmo
papel celofane que forra todos os livros franceses enquanto esperam,
geralmente durante muito tempo, que os levem ao encadernador. Aqui e ali
também se viam interessantes retratos de escritores. [...] “Gosto muito da
América”, disse-me; respondi-lhe que eu também gostava muito da
França. E tal como a nossa futura colaboração demonstrou, estávamos a
falar a sério.»

O livro foi publicado em 1959, e o seu recetor natural era o


público anglo-saxónico (é a isso que se deve a comparação com
Princeton), com a consciência de que a sua livraria era um marco
incontornável e de que a reconstrução das suas origens tinha
interesse para a história da literatura. O relato da descoberta é o de
uma viagem causada por uma leitura e isso implica atravessar uma
fronteira (o Sena) para atingir o desconhecido. Através da montra (a
segunda fronteira), Beach relaciona-se com a surpresa de Goethe:
ainda há lojas onde não encadernam os textos, para que o leitor o
possa fazer a seu gosto. O desejo do olhar dirige-se tanto para
livros expostos (atraentes) como para os retratos dos escritores
(interessantes), que ainda hoje decoram habitualmente as livrarias.
Finalmente: sela-se a aliança com uma declaração de gostos que é,
à distância do tempo, reinterpretada como uma declaração de
intenções. E de amor: Monnier e Beach foram amantes durante
cerca de 15 anos, embora a relação íntima não apareça nos livros
que escreveram (nem, pelo menos de forma enfática, que foram das
primeiras livreiras do mundo, com total independência do poder ou
do investimento masculino). Esta aliança foi a primeira pedra do
mito. Beach estava consciente de que tinha chegado quatro anos
mais tarde, de que se situava numa linha inaugurada por La Maison
des Amis des Livres. O que ela não podia saber era que, quando
publicasse o seu livro, ambas as livrarias já fariam parte de uma
tradição na qual a Geração Perdida se entroncava com a Geração
Beat. Sobre a primeira, a propósito, escreveu Beach: «Não me
ocorre uma geração que mereça menos este nome.»
A segunda Shakespeare and Company abriu as suas portas no
n.º 37 da Rue de la Bûcherie, em 1951, com o nome Le Mistral, e só
em 1964, após a morte de Sylvia Beach, foi rebatizada como a sua
admirada antecessora. George Whitman pouco mais era que um
ianque vagabundo e maltrapilho com experiência no exército
quando chegou a Paris. Depois de se licenciar, em 1935, em
Ciências e Jornalismo, passou vários anos a viajar pelo mundo, até
que a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial o
atirou para um posto médico na Gronelândia, a norte do círculo
polar ártico, e posteriormente para a base militar de Taunton, no
Massachusetts, onde abriu uma primária e rudimentar livraria. Certo
dia, descobriu que havia falta de braços em França, e então decidiu
mudar-se para lá fazer voluntariado num campo de órfãos; mas
sentindo o apelo da capital, matriculou-se num curso na Sorbonne.
Comprou alguns livros em inglês com a intenção de ganhar algum
dinheiro com o seu empréstimo, e depressa viu como o seu quarto
arrendado era invadido por estranhos à procura de leitura; e então
arranjou maneira de ter sempre pão e sopa quente para oferecer
aos clientes do seu incipiente negócio. Foi este o embrião comunista
da sua futura livraria.
Porque Whitman foi sempre uma pessoa incómoda para os
padrões norte-americanos. Em Paris vendia livros proibidos, como
Trópico de Câncer, de Henry Miller, aos soldados do seu país. O seu
sonho americano seguia, como escreveu Jeremy Mercer, o princípio
marxista «Dá o que puderes, leva o que precisares»; e ele próprio
sempre entendeu o seu projeto como uma espécie de utopia. Desde
o primeiro dia, instalou em Le Mistral uma cama, um pequeno fogão
para aquecer a comida e uma biblioteca de empréstimo para quem
não pudesse comprar livros. A fusão entre livraria e pousada foi total
durante décadas: para tal, Whitman sacrificou a sua intimidade,
vivendo constantemente com desconhecidos. Na Shakespeare and
Company alojaram-se, ao longo de 60 anos, umas cem mil pessoas
em troca de umas horas de trabalho na livraria e de se dedicarem à
escrita e à leitura, porque o livro novo convive com o usado, e a
presença de sofás e de cadeirões convida ao uso do edifício como
se se tratasse de uma grande biblioteca. A divisa que a rege está
escrita num dos limiares do labirinto: «Não sejam pouco
hospitaleiros com os estranhos, podem ser anjos disfarçados.»
Poeta aficionado, Whitman declarou em várias ocasiões que a sua
grande obra era a livraria: cada uma das suas salas seria um
capítulo diferente do mesmo romance.
Sobre uma das montras da Shakespeare and Company pode ler-
se: «City Lights Books». E na parte superior da porta da City Lights,
de São Francisco, foi provavelmente o próprio Lawrence Ferlinghetti
que pintou à mão sobre fundo verde: «Paris. Shakespeare+Co».
Irmã do seu modelo parisiense, ciente de pertencer à mesma
estirpe, fruto dos quatro anos que o poeta beat passou a estudar na
Sorbonne, durante os quais se tornou amigo de Whitman no seu
quarto arrendado, repleto de livros e aconchegado pela sopa
fumegante, a mítica livraria da Costa Oeste nasceu dois anos
apenas após o seu regresso, em 1953. Depressa se converteu
numa chancela editorial, publicando livros do próprio Ferlinghetti e
de poetas como Denise Levertov, Gregory Corso, William Carlos
Williams ou Allen Ginsberg. O catálogo não tinha como objetivo
restringir-se à poesia beat, mas muitas das suas obras gravitam
nessa órbita: dos contos de Bukowski aos textos políticos de Noam
Chomsky. A editorial e o seu editor entraram na história da literatura
no outono de 1955, aquando da leitura de Ginsberg na Six Gallery
da cidade: Ferlinghetti propôs-lhe que publicasse na sua chancela o
poema O Uivo. E assim foi, e pouco tempo depois foi apreendido
pela polícia, que acusou um empregado da livraria e o editor de
incitarem à obscenidade. O julgamento teve uma grande cobertura
mediática e o veredicto, a favor da City Lights Publishers, ainda hoje
é um marco na história jurídica dos Estados Unidos em questões de
liberdade de expressão. «Books, not Bombs», pode ler-se num
grafiti sobre papel pendurado num vão das escadas. Porque a
livraria vai-se definindo a si própria nas paredes: «A literary meeting
place»; «Welcome, Have a Seat and Read a Book». A leitura pública
e a performance sempre foram uma constante desde o início, tanto
na livraria parisiense como na californiana. Num célebre recital de
1959 na City Lights, Ginsberg disse que, para escrever o que estava
prestes a declamar, teve de se concentrar até captar um ritmo, e
que depois improvisou a partir dele com a ajuda de qualquer coisa
muito semelhante à inspiração divina; também protagonizou recitais
à frente da Shakespeare and Company, atestado de vinho tinto.
Ambas têm vocação de agitação, de biblioteca, de hospitalidade e
de abertura à novidade. Por isso, em ambas existe uma secção bem
nutrida de fanzines, que continuam a ser um dos meios de
expressão da mesma contracultura que se formou paralelamente a
elas nos anos 50. Desde a varanda da Shakespeare and Company,
Whitman testemunhou os episódios de Maio de 68. Não é por acaso
que em ambas a sala de poesia e de leitura se encontra na zona
mais alta do edifício, se se tiver em conta o seu espírito andarilho,
beatnik, contestatário, enfim: neorromântico. A sua constante
renovação é assegurada, na livraria parisiense, pelo contínuo fluxo
de corpos jovens, temporariamente boémios.
Como disse Ken Goffman em Counterculture Through The Ages,
a sociedade artística francesa da mudança do século XIX para o XX
relacionou a procura da originalidade artística com a vida boémia:

«Durante as primeiras quatro décadas do século XX esta boémia artística


parisiense explodiu de tal modo que era quase um movimento de massas.
Literalmente, centenas de artistas, escritores e personagens históricas
universais cujas obras inovadoras (e, nalguns casos, personalidades
desafiantes) ainda se fazem ouvir hoje em dia, depois de terem
ultrapassado os portais daquilo a que o historiador da literatura Donald
Pizer chamou “O Grande Momento de Paris”. [...] Como escreveu Dan
Franck, autor da obra histórica Bohèmes: “Paris [...] converteu-se na
capital do mundo. Já não havia um punhado de artistas nas ruas... mas
centenas, milhares. Foi um florescimento artístico de uma riqueza e de
uma qualidade que nunca teve rival.”»

A saturação de Paris tem uma data-limite: 1939. Durante a


Segunda Guerra Mundial a cidade assistiu ao congelamento parcial
da vida cultural, enquanto o território dos Estados Unidos e a sua
atividade intelectual se conservavam intactos. Passados os anos 40
e, com eles, os seus mitos políticos e militares, na década de 50
surgiram fraturas que permitiram a penetração de uma incipiente
vida boémia ao ritmo do bebop. Do movimento beat ao movimento
beatnik já se produz uma primeira ampliação quantitativa.
Ferlinghetti conta que, nos 60, começaram a chegar autocarros de
beatniks às portas da City Lights como parte da sua peregrinação
pela topografia de Kerouac, Snyder, Burroughs e os demais. Porém,
é com o movimento hippie que se massifica a nova versão da
boémia, já totalmente desprovida do impulso elitista e distinto dos
primeiros dândis. Uma autêntica nova cultura de massas, porque,
após a Segunda Guerra Mundial, é tal o grau de alfabetização e de
sofisticação do Ocidente, que nele podem conviver várias massas
culturais, cada uma com os seus traços perfeitamente definidos e só
parcialmente contraditórios.
É necessário chegar a um consenso e, por conseguinte, é
necessário que exista uma massa crítica de seguidores, de leitores,
para que uma geração literária seja canonizada. As duas últimas da
literatura norte-americana, a Geração Perdida e a Beat, entraram no
cânone graças – entre muitos outros fatores – à atividade da
primeira Shakespeare and Company e à sua retroalimentação na La
Maison des Amis des Livres, na Rue de l’Odéon, e a City Lights e os
restantes núcleos culturais da San Francisco Renaissance. Pois foi
assim que ficou conhecido, em inglês, o período de esplendor
cultural vivido pela cidade da Costa Oeste nos anos 50. Não é por
acaso, obviamente, que renaissance é uma palavra de origem
francesa.

«Dezoito meses depois de chegar à cidade, Ferlinghetti uniu


as suas forças às de Martin e juntos abriram uma livraria no
rés do chão. O espírito do lugar (tal como o de Whitman em
Paris) era pessoal, informal e amistoso. Rexroth descrevera a
poesia que queria escrever como uma poesia “de mim para ti”,
e a City Lights era uma livraria “de mim para ti”. Martin e
Ferlinghetti decidiram dedicá-la apenas aos livros de bolso.
Estava aberta até à meia-noite, sete dias por semana.»

JAMES CAMPBELL
This Is the Beat Generation.
Livrarias fatalmente políticas

«Mandamos ainda que, daqui para a frente, nenhum livreiro,


mercador de livros ou pessoa alguma ouse trazer para estes
lados Bíblias ou testamentos novos das referidas impressões
depravadas ou de outras que contenham alguns erros, mesmo
que os tragam apagados da forma como agora se mandam
apagar os erros das Bíblias e testamentos novos que no
presente há nestes lados, sob penas nesta nossa carta
contidas.»

FRANCISCO FERNÁNDEZ DEL CASTILLO,


Libros y Libreros del Siglo XVI

UM POSTER DA CICCIOLINA, na altura atriz porno, a futura política


italiana, com os lábios muito vermelhos e um vestido decotado; e,
ao lado dela, um poster do vizinho bairro barroco. Uma boa oferta
de novidades e revistas de vários países ao lado de manchas nas
paredes, sob lâmpadas fundidas, inúteis. Foi este tipo de contrastes
com que deparei em inícios do século na Livraria La Reduta, na Rua
Paleckého, de Bratislava, ao pé de um parque sossegado, apesar
das faíscas intermitentes que, à sua passagem, disparavam os
elétricos. A mesma sensação de me encontrar entre duas águas,
entre dois momentos históricos, que partilham todos os lugares
atravessados pelo comunismo. Os expositores dedicavam idêntico
espaço à literatura eslovena e à checa, mas a espessura das
novidades em eslovaco era superior, como se sublinhasse com
orgulho um certo estado da questão no âmbito de um processo de
lentíssima transição.
Berlim inteira transmite a mesma sensação de águas divididas.
Sim, desde a Alexanderplatz caminhamos por esse amplo bulevar
de estética socialista batizado como Avenida Estaline, mais tarde
chamado Karl-Marx-Allee, tão largo que por ele poderia desfilar um
exército inteiro com vários tanques lado a lado, e surpreende-nos
que nessa megalomania espacial, nesse cenário perfeito para a
intimidação política, se enfatize tanto a cultura. Porque a primeira
coisa que encontramos é o grande mural da Casa do Professor, com
a sua colorida e pedagógica exaltação do mundo do trabalho. Pouco
depois, à esquerda, vemos a fachada do Kino International, que
desde 1963 acolhia as estreias da DEFA (Deutsche Film AG). A
partir dele vão-se sucedendo o Café Moskau, o Bar Babette, o CSA
Bar, até chegarmos, finalmente, à Karl Marx Buchhandlung, a velha
livraria comunista que, desde que fechou, em 2008, alberga uma
produtora cinematográfica e a cuja esquerda se encontrava o velho
Rose-Theater. Dois anos antes de fechar, a livraria serviu de cenário
para A Vida dos Outros, um filme que fala, fundamentalmente, da
leitura.

Porque o capitão Gerd Wieler, da Stasi, que assina os seus


relatórios como HGW XX/7, ocupa todo o seu tempo a ler (ouvindo)
a vida quotidiana do escritor Georg Dreyman e da sua companheira,
a atriz Christa-Maria Sieland. Num momento essencial da ficção, o
espião subtrai um dos livros da biblioteca de Dreyman, escrito por
Bertolt Brecht, uma passagem estreita através da qual penetra,
timidamente, na dissidência. Se o livro se converte, assim, no
símbolo da leitura dissidente, uma máquina de escrever trazida de
contrabando do Oeste – pois o serviço de espionagem tinha todas
as máquinas de escrever da República Democrática Alemã
controladas – constitui o símbolo da escrita contestatária. É nela que
Dreyman, até então afeto ao regime, mas desencantado com a
perseguição dos seus amigos e a infidelidade da namorada (que
aceita dormir com um ministro da Cultura da RDA para não ser
condenada ao ostracismo), tecla um artigo sobre a altíssima taxa de
suicídios que o Governo mantém em segredo. É publicado no Der
Spiegel, porque Wiesler começou a simpatizar com o casal e a
protegê-lo, escrevendo relatórios nos quais oblitera a atividade
suspeita levada a cabo na sua casa. Graças a ele, a máquina de
escrever não é encontrada durante uma rusga, e Dreyman livra-se
das consequências da sua traição, embora Christa-Maria morra
acidentalmente durante o escrutínio. Como o seu superior intui –
com razão, mas sem provas – que o espião mudou de bando,
degrada-o à pura leitura: abrir as cartas dos suspeitos nos Correios,
ler a correspondência privada dos que podiam andar a informar o
inimigo ou a conspirar para depor o regime. Após a queda do Muro,
o escritor acede aos arquivos da Stasi e descobre a existência do
informante e do seu papel nuns factos que até então não tinha sido
capaz de interpretar. Procura-o. Agora é carteiro. Anda de casa em
casa a distribuir envelopes fechados, respeitados pelo direito à
privacidade. Não se decide a falar com ele. Dois anos mais tarde,
Wiesler passa diante da Karl Marx Buchhandlung e detém-se ao
reconhecer Georg Dreyman no cartaz que, na montra, anuncia a
publicação de um livro seu. Entra. Está dedicado a HGW XX/7. «É
para oferecer?», pergunta-lhe o empregado. «Não, é para mim»,
responde. O filme acaba com essa resposta, nesta livraria que é
agora um grande escritório, mas cujas estantes reconheço tanto
pela ficção como pelas minhas visitas de 2005. Fotografo o mural de
Karl Marx, com o seu rosto barbudo e lilás, encostado a um canto
num dos extremos do lugar. Esses rastos. No seu romance Europe
Central, William T. Vollmann introduz-se no cérebro de um desses
espiões que eram leitores constantes das vidas de seres humanos,
que, aos seus olhos, se convertiam em autênticas personagens
literárias. Um cérebro crítico e censor. Tem a seu cargo o controlo
dos passos de Akhmatova e escreve, escolhendo uma metáfora
convertida em realidade pela máquina estalinista: «O mais correto
teria sido apagá-la da fotografia e depois culpar os fascistas.» Numa
alusão a um envio de material subversivo muito mais importante do
que o artigo escrito na ficção por Dreyman, o espião afirma: «Se mo
tivessem deixado a mim, Soljenítsin jamais teria conseguido fazer
chegar à outra banda o seu peçonhento Arquipélago Gulag.»
Vollmann evoca o frenesim das bancas de livros na Alameda
Nevski, artéria cultural de São Petersburgo, em cuja Livraria Sitin
comprava livros Lenine. Juntamente com a livreira Aleksandra
Komikova, que enviava para a Sibéria o que pediam os militantes
revolucionários lá confinados, criou o jornal marxista de que a causa
precisava para se difundir. Pela obra O Desenvolvimento do
Capitalismo na Rússia, Lenine obteve um contrato de 2400
exemplares, com cujo adiantamento pelos direitos de autor
conseguiu comprar na loja de Komikova os livros de que precisava
para o seu estudo.
Com uma honestidade não demasiado frequente no cultivo da
literatura, Vollmann reconhece como modelo da sua obra A Tomb for
Boris Davidovitch, de Danilo Kiš, onde é bem patente o conflito
político das ditaduras do proletariado, as suas construções sociais
baseadas na existência de legiões de leitores de vidas quotidianas.
E em negociações eminentemente textuais. Livros proibidos,
censura, traduções autorizadas ou recusadas, acusações,
confissões, formulários: escrita. Baseada na suspeita, nascida do
horror: escrita. No combate final entre o prisioneiro Novski e o
torturador Fedyukin, que tenta arrancar-lhe das entranhas uma
confissão completa, condensa Kiš a essência de cada uma dessas
relações entre intelectuais e repressores que se repetem, como uma
piada racista, em todas as comunidades sob sistemática suspeita.
Tal como em Enciclopédia dos Mortos, o escritor sérvio parte de
Borges, mas desta vez fá-lo para o politizar, enriquecendo o seu
legado com um compromisso alheio ao original:
«Novski alargou a instrução, numa tentativa de introduzir no documento da
sua confissão, o único que permaneceria após a sua morte, alguns
esclarecimentos que pudessem suavizar a sua queda definitiva e, ao
mesmo tempo, piscar o olho a um futuro investigador, através de
contradições e exageros habilmente tecidos sobre o facto de toda a
construção da confissão se basear numa mentira arrancada, sem dúvida,
por meio da tortura. Por essa razão, lutava com uma força incrível por
cada uma das palavras, por cada formulação. [...] Creio que os dois, em
última instância, agiram por motivos que iam além de fins egoístas e
acanhados: Novski lutava por conservar, na morte, na queda, a dignidade,
não apenas da sua imagem mas de qualquer revolucionário; Fedyuin
tentava, dentro da sua procura da ficção e das conjeturas, preservar o
carácter escrito e consequente da justiça revolucionária e daqueles que a
aplicavam, pois era melhor sacrificar a verdade de um homem, de um
organismo minúsculo, do que abdicar, por sua causa, de uns princípios e
uns interesses muito mais sublimes.»

Se a Karl Marx foi a livraria mais emblemática da Berlim Oriental,


a Autorenbuchhandlung foi, e continua a ser, a mais significativa da
Berlim Ocidental. Não em vão Charlottenburg era, na cidade
dividida, o centro da metade federal, e o estabelecimento encontra-
se a poucos passos da Savignyplatz, perto da rua em que Walter
Benjamin se baseou para escrever Rua de Sentido Único, esse
manual urbano que – como As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino –
serve para nos orientarmos em qualquer psicogeografia
metropolitana do mundo. A inauguração, em 1976, foi da
responsabilidade de Günter Grass, mas para deixar claro que a sua
vocação não era exclusivamente solene, poucas semanas depois
apareceu Ginsberg – livreiro, uma vez mais, neste livro – para a
reinaugurar com uma performance poética. Até à queda do Muro, foi
um foco de discussão sobre comunismo e democracia, repressão e
liberdade, cujos convidados tinham a envergadura de Susan Sontag
ou de Jorge Semprún; mas nos 90 virou-se para a reunificação
cultural, debruçando-se sobre a literatura da Alemanha Oriental e
reivindicando-a. A sua principal singularidade – como anuncia o seu
nome – reside em ter sido fundada por um grupo de escritores que
assumiu como sua a tarefa de difundir a literatura alemã que
produziam e liam. A livraria parece-se, fisicamente, com a
barcelonesa Laie, a portenha Eterna Cadencia ou a Robinson
Crusoe 389 de Istambul: sóbria, elegante, clássica. Não é de
estranhar que seja o lugar onde compra os seus livros o
protagonista de O Dia de Todas as Almas, um romance de Cees
Nooteboom com evidente ambição europeísta. O eixo que articula
Europe Central é o da Alemanha e o da Rússia. No romance de
Nooteboom, lemos:

«Era como se esses dois países sentissem um pelo outro uma nostalgia
mútua difícil de compreender para um neerlandês atlântico, como se essa
planície incomensurável que parecia começar em Berlim exercesse uma
misteriosa força de atração, de onde mais cedo ou mais tarde deveria
nascer qualquer coisa outra vez, qualquer coisa que agora ainda não podia
vislumbrar-se mas que, apesar da aparência contrária, voltaria a dar uma
reviravolta à História europeia, como se essa enorme massa de terra
pudesse girar, fazendo escorrer e cair a periferia ocidental como se se
tratasse de um lençol.»

Os regimes de Estaline e de Hitler são bombas atómicas de


significado fatalmente afim, que estalaram simultaneamente em
duas zonas geográficas condenadas ao diálogo pelo menos desde
que o prussiano judeu Karl Marx desenvolveu as suas ideias
políticas. Durante a sua época no seminário, o jovem Estaline,
receando que os títulos dos livros que pedia emprestados na
biblioteca pública pudessem ficar registados, dando azo a eventuais
represálias, procurava a liberdade de leitura na livraria de Zakaria
Chichinadze. Nesse tempo, a censura imperial era férrea em São
Petersburgo e encorajava a produção em Moscovo, concentrada na
Rua Nikolskaya e arredores, de lubki – o equivalente russo dos
chapbooks ou folhas soltas – que exaltavam a figura do czar,
narravam grandes batalhas ou reproduziam contos populares, para
indignação dos intelectuais pré-revolucionários, que os
consideravam retrógrados, antissemitas e pró-ortodoxos. Após a
Revolução de 1917, foram apagados da fotografia. Foi na livraria de
Chichinadze que se produziu O Grande Encontro: foi lá que Estaline
teve acesso aos textos de Marx. O mitómano converteu a
experiência, retrospetivamente, numa aventura: de acordo com a
sua versão, ele e os seus camaradas entravam sub-repticiamente
na loja de Chichinadze e, como tinham pouco dinheiro, dedicavam-
se a copiar, à vez, os textos proibidos. Assim o explica Robert
Service na sua biografia do líder e genocida soviético:

«Chichinadze estava do lado daqueles que se opunham ao domínio russo


em Tbilissi. Quando os seminaristas chegaram à sua loja, recebeu-os sem
dúvida, cordialmente; e se fizeram cópias foi decerto com a sua
autorização explícita ou implícita. A difusão das ideias era mais importante
para a elite intelectual metropolitana do que o mero benefício económico.
Era uma batalha para cuja vitória os liberais mal podiam contribuir. A loja
de Chichinadze era como uma mina que entesourava o tipo de livros que
os jovens queriam. Iósef Dzhughashvili gostava do livro de Victor Hugo,
Noventa e Três. Foi castigado por tê-lo introduzido clandestinamente no
seminário; e quando, em novembro de 1896, durante uma rusga,
encontraram o livro de Hugo Os Trabalhadores do Mar, o reitor
Guermoguén condenou-o a “uma longa temporada” na solitária. Segundo o
seu amigo Iremashvili, o grupo também teve acesso a textos de Marx,
Darwin, Plekhanov e Lenine. Estaline referiu-se a isto em 1938, afirmando
que cada membro tinha pagado cinco copeques pelo empréstimo de O
Capital, de Marx, durante uma quinzena.»
Quando conquistou o poder, Estaline desenvolveu um
imbrincado sistema de controlo de textos, em parte graças a essas
experiências pessoais, que lhe permitiram constatar que toda a
censura tem os seus pontos fracos. Os livros sempre foram
elementos fundamentais para o controlo do poder, e os Governos
desenvolveram mecanismos de censura livresca, tal como
construíram castelos, fortalezas e bunkers que – inevitavelmente –
acabaram por ser tomados ou destruídos, ignorando o que já Tácito
dizia: «Pelo contrário, a autoridade dos talentos perseguidos cresce,
e nem os reis estrangeiros, nem os que procederam com o mesmo
tipo de encarniçamento, conseguiram senão a desonra para si
mesmos e a glória para eles.» Foi sem dúvida com a imprensa que
os países começaram a ter sérios problemas para travar o tráfico de
livros proibidos. E foram as ditaduras modernas que tiraram mais
dividendos políticos da queima pública de livros, ao mesmo tempo
que se destinavam fatias enormes do erário nacional aos
organismos que se dedicavam à leitura.
A Espanha foi pioneira, durante os primeiros séculos da
modernidade, tanto na conceção de sistemas maciços de vigilância
e repressão dos leitores (que mais foi a Santa Inquisição, afinal de
contas?) como de rotas de importação de escravos, de campos de
concentração, de planos de reeducação e de estratégias de
extermínio. Não é de estranhar que, para Franco, o grande modelo
retórico do Estado fosse a Espanha Imperial, a parafernália
nacional-católica da conquista americana. O livreiro malaguenho
Francisco Puche falou dos símbolos contrapostos aos franquistas:

«Todos nós, os livreiros que sofremos com a censura franquista, a


perseguição policial, os atentados fascistas que se seguiram à morte de
Franco, ficámos marcados por essa época, e sempre considerámos a
livraria como mais do que um mero negócio. Erguíamos o archote do
último injustiçado pela Inquisição, um livreiro de Córdova condenado no
século XIX por fazer circular livros proibidos pela Igreja. E essa época
deixou claro, uma vez mais, que esse reflexo das ditaduras de queimar
livros não é casual, mas fruto da incompatibilidade entre ambas as
realidades, como dizíamos no início a propósito da resistência. E deixou
clara, também, a importância das livrarias independentes como
instrumentos da democracia.

Porém, não se pode considerar a problemática relação entre os


regimes aristocráticos, ditatoriais e fascistas e a circulação da
cultura a partir de um maniqueísmo que exonere totalmente de
culpas as democracias parlamentares, embora, felizmente, muitas
delas excluam o castigo físico e a pena de morte. Os Estados
Unidos são o exemplo paradigmático de como a liberdade de
expressão e de leitura esteve perpetuamente cercada por
mecanismos de controlo e de censura. Desde a «Lei Comstock», de
1873, que perseguiu as obras obscenas e lascivas, até à atual
proscrição de livros levada a cabo por milhares de livrarias,
instituições educativas e bibliotecas por motivos políticos ou
religiosos, ou as diversas maneiras como o Gabinete de Controlo
dos Ativos Estrangeiros, do Departamento do Tesouro, boicota a
difusão de obras cubanas e de outras regiões do mundo, pode
observar-se a história da democracia norte-americana como um
conjunto de negociações sem fim no frágil ringue da liberdade
intelectual. Na nossa época de difusão imediata de qualquer notícia
impactante, a queima de livros continua a fazer manchetes. Como
explicou Henry Jenkins, a saga literária mais controversa durante a
primeira década do nosso século foi a de Harry Potter, que em 2002
se achava no centro de mais de 500 litígios diferentes em todo o
território dos EUA. Em Alamogordo, no Novo México, a Christ
Community Church queimou 30 exemplares, juntamente com filmes
da Disney e CD de Eminem porque, segundo Jack Brock – pastor
da igreja –, eram obras-primas satânicas e instrumentos para a
instrução das artes negras. Porém, foi na década anterior que a
publicação de Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, não só
evidenciou, pela enésima vez, a problemática relação dos Estados
Unidos com a censura direta ou indireta como lançou sobre a mesa
uma questão muito mais importante: a da migração geopolítica do
problema da liberdade de expressão. Porque se durante meio
século se tinha concentrado especialmente na Europa do Leste e na
Ásia, a partir dos anos 90 inclinar-se-á para o mundo árabe, com a
diferença de que a mutação das relações económicas e sobretudo
mediáticas faria com que deixasse de poder haver polémicas
domésticas ou nacionais, rapidamente soterradas pelas autoridades.
A partir de Versículos Satânicos, cuja maldição coincidiu com a
queda do Muro, os atropelos de Tiananmen e a expansão imparável
da internet, sempre que ocorre uma afronta à liberdade de
expressão e de leitura as suas consequências são automaticamente
globais.

Salman Rushdie narra, nas suas memórias Joseph Anton, os


pormenores do caso. Numa primeira fase, a publicação segue o seu
curso habitual no Ocidente, faz as viagens de promoção da praxe e
o romance é finalista do Prémio Booker, enquanto na Índia a sua
difusão começa a ter problemas, a partir de um destaque do India
Today («desencadeará forçosamente uma avalancha de protestos»)
e da decisão de dois deputados muçulmanos de assumirem o
ataque ao livro como uma questão pessoal (sem o terem lido). Tudo
isso desemboca na decisão da sua proibição. Tal como ocorreu
outras vezes nos Estados Unidos, este tipo de decisão recai no
Departamento do Tesouro, amparado pelo Código Aduaneiro.
Rushdie responde com uma carta aberta ao primeiro-ministro Rajiv
Gandhi. Por sua vez, os fanáticos respondem enviando uma
ameaça de morte para a editora, a Viking Press, e outra para o lugar
onde o escritor ia fazer uma sessão de apresentação. A seguir, o
romance foi proibido na África do Sul. E alguém fez chegar um
bilhete anónimo à sua casa londrina. E a Arábia Saudita e muito
outros países árabes proibiram a ficção. E começaram as ameaças
por telefone. E em Bradford queimaram publicamente exemplares
de Versículos Satânicos, e no dia seguinte «a principal rede de
livrarias britânica, a WHSmith, retirou o livro das estantes das suas
430 lojas», enquanto, num comunicado oficial, pediam que não os
considerassem «censores». E ganhou o Prémio Whitbread. E uma
turbamulta assaltou o Centro Informativo e Documental norte-
americano em Islamabade (Paquistão), e cinco pessoas morreram
por causa dos disparos enquanto a multidão gritava: «Rushdie, és
um homem morto!» E o aiatola Khomeini e a sua fátua e dois
guarda-costas dia e noite e uma quinta perdida num remoto canto
do País de Gales e a ameaça de boicote a todos os produtos da
Penguin Books em todo o mundo muçulmano e n.º 1 na lista dos
mais vendidos do The New York Times e muitas ameaças de bomba
e uma bomba real que rebentou na Livraria Cody’s, de Berkeley,
cujas estantes destruídas se conservam como testemunho da
barbárie e muitas ameaças de morte a editores e tradutores
estrangeiros e a solidariedade do arcebispo de Cantuária e do papa
com os sentimentos feridos do povo muçulmano e a Declaração dos
Escritores do Mundo a favor de Rushdie e o Irão a cortar as
relações diplomáticas com a Grã-Bretanha e muitas instituições a
recusarem-se a acolher atos de apoio ao escritor perseguido por
motivos de segurança e a multiplicação dos conflitos («essas
pequenas batalhas entre os amantes dos livros afiguravam-se-lhe
tragédias numa época em que a própria liberdade literária se via
atacada de maneira tão violenta») e as mudanças periódicas e um
nome falso («Joseph Anton») e bombas incendiárias nas livrarias
londrinas Collet’s e Dillons e na australiana Abbey’s e em quatro
sucursais da rede Penguin e o Comité Internacional para a Defesa
de Rushdie e a vida quotidiana condicionada atravessada sacudida
pelos choques elétricos constantes das medidas de segurança e o
primeiro aniversário da queima de livros em Bradford e a ratificação
da fátua e o assassinato do tradutor japonês Hitoshi Igarashi e o
esfaqueamento do tradutor italiano Ettore Capriolo e a tentativa de
assassinato do editor norueguês William Nygaard e a ratificação da
fátua e a morte de 37 pessoas noutros protestos e 11 anos
escondido, sem poder passear na rua, jantar em paz com amigos
num restaurante, verificar se os seus livros estavam bem
apresentados numa livraria. E que os seus livros, nas estantes de
uma livraria, carregassem sem culpa tantos cadáveres. Tantíssimos.
Na elétrica medula dos acontecimentos, tal como são descritos
em Joseph Anton, há uma consciência de que a sua obra pertence à
tradição dos livros perseguidos.

«Quando os amigos lhe perguntavam o que podiam fazer para ajudar,


muitas vezes ele suplicava: “Defendam o texto.” O ataque era muito
concreto, e no entanto a defesa era, amiúde, geral, baseada no poderoso
princípio da liberdade de expressão. Tinha esperança de poder contar, e
muitas vezes sentia que precisava dela, com uma defesa mais específica,
tal como foi defendida a qualidade dos livros atacados nos casos de O
Amante de Lady Chatterley, Ulisses, Lolita; porque esse era um ataque
violento, não contra o romance em geral ou a liberdade de expressão em
si, mas contra uma acumulação concreta de palavras e contra as
intenções e a integridade do escritor que tinha juntado essas palavras.»

No entanto, contrariamente ao que sucedia com os seus


predecessores, escandalosos num mundo sem propagação
instantânea das notícias, Versículos Satânicos foi vítima de um novo
contexto internacional. Um contexto em que o polo da intransigência
islâmica sujeita a tensão extrema o polo contrário, o das
democracias que, de uma maneira ou outra, são herdeiras das
revoluções liberais. Porém, se entendermos a Revolução Francesa
como o primeiro passo definitivo para a democracia moderna, não
nos podemos esquecer de que, a par das execuções maciças e do
saque dos bens da aristocracia e do clero, o povo acumulou um
enorme capital de livros, com o qual não sabia realmente o que
fazer. Alberto Manguel recorda-nos em Uma História da Leitura que,
em finais do século XVIII, quando era muito mais barato um livro
antigo do que um novo, os colecionadores ingleses e alemães
beneficiaram da revolução comprando a peso milhares de joias
bibliográficas, evidentemente através de intermediários franceses.
Como o nível de alfabetização do povo comum era muito baixo, os
livros que não se venderam ou foram destruídos não encontraram
demasiados leitores nas bibliotecas a que foram destinados. A
abertura de pinacotecas também não resultou num consumo cultural
imediato: as consequências mais importantes da educação coletiva
só se notam a longo prazo. A redistribuição dos livros só viria a dar
frutos várias gerações depois. Num bom número de países
islâmicos, precisamente, assiste-se a um endurecimento dos
sistemas de repressão da leitura que assegurem um futuro sem
pluralidade, sem discrepância, sem ironia.
Na história da Foyles, a prestigiada livraria londrina, encontramos
um novo triângulo cujos outros dois vértices se encontram na
Alemanha e na Rússia, replicando a mesma dinâmica livresca que
reproduziu desde sempre: as guerras, as revoluções, as mudanças
políticas de cariz radical como momentos propícios para que
grandes quantidades de livros mudem de bando e de proprietários.
Quando Hitler, nos anos 30, deu início à queima em massa de livros,
a primeira coisa de que se lembrou William Foyle foi de enviar-lhe
um telegrama a oferecer-lhe um bom preço por aquelas toneladas
de material impresso e inflamável. Pouco antes, tinha enviado a sua
filha Christina, na altura na casa dos vinte, para a Rússia estalinista
à cata de saldos. A expedição russa foi um êxito, mas não a
tentativa germânica, pois Hitler continuou a queimar livros sem
qualquer intenção de vendê-los. Quando deflagrou a guerra e
Londres foi bombardeada pela aviação nazi, os velhos livros da
cave, misturados com areia, nutriram os sacos com que o mítico
livreiro protegeu a sua loja; e, pelos vistos, cobriu o telhado com
exemplares do Mein Kampf.
Eram, seguramente, exemplares de My Struggle, a versão
inglesa da Hurst & Blackett, traduzida por Edgar Dugdale, ativista do
sionismo que verteu o texto para o inglês com a intenção de
denunciar os planos de Hitler. Infelizmente, tanto a editora inglesa
como a norte-americana (My Battle) aceitaram as exigências da
editora alemã do livro, a Eher-Verlag, que as obrigou a purgá-lo de
muitas afirmações xenófobas e antissemitas do original. Como
explica Antoine Vitkine no seu estudo sobre a história do livro, assim
que apareceu na Inglaterra, em 1934, venderam-se 18 mil
exemplares; mas na altura já Churchill o tinha lido, tal como
Roosevelt, Ben-Gurion ou Estaline, que dispuseram de traduções
integrais realizadas pelos seus serviços de espionagem. O Mein
Kampf não só converteu Adolf Hitler no autor do bestseller por
excelência da Alemanha dos anos 30, milionário graças aos direitos
de autor, como também o fez sentir-se escritor, pois foi essa a
profissão que passou a indicar na sua declaração de rendimentos
desde 1925. Não há dúvida de que o facto de ser o líder político do
país ajudou nas vendas, mas também o mito associado à escrita
(estava na prisão) e a sua vontade messiânica contribuíram para a
difusão vertiginosa, convenientemente apoiada por anúncios nos
principais periódicos da época. Em vez da típica apresentação de
livraria, Hitler optou pela Cervejaria Bürgerbräukeller para dar a
conhecer a obra da sua vida:

«O argumento foi torpemente alinhavado, mas convence a audiência. Para


lutar contra os manes de Marx, é necessário um Marx nazi ou, por outras
palavras, o próprio Hitler, o autor de Mein Kampf. Ao apresentar-se como
escritor, Hitler muda de imagem e sai do pântano em que se tinha movido
até então. Já não é apenas um esganiçado de cervejaria, um fanfarrão, um
golpista fracassado: agora cobre-se de prestígio ligado às letras e surge
como um novo teórico. À saída da sala, os homens de Hitler distribuem
folhetos publicitários com o anúncio da publicação do seu livro e,
inclusivamente, com a indicação do seu preço.»
A sua fama de incendiário eclipsou a de colecionador: o
exterminador tinha acumulado, na altura da morte, uma biblioteca de
mais de 1500 volumes. Depois de abandonar a escola, na
passagem da adolescência para a juventude, durante a qual
padeceu de problemas pulmonares, Hitler consagrou-se à vida
artística e intelectual, desenhando e lendo compulsivamente. E
nunca abandonou esta segunda atividade. O seu único amigo dos
anos de Linz, August Kubizek, conta que frequentava a livraria da
Sociedade Educativa Popular da Bismarckstrasse e várias
bibliotecas com serviço de empréstimo. Lembra-se dele rodeado de
pilhas de livros, sobretudo da coleção «Sagas dos Heróis Alemães».

Cerca de 15 anos mais tarde, em 1920, enquanto Hitler


celebrava o seu primeiro comício multitudinário e punha em
andamento a maquinaria propagandística nazi, na outra ponta do
mundo outro futuro genocida, Mao Tsé-Tung, abria, em Changsha,
uma livraria e editora que batizou como Sociedade Cultural dos
Livros. O negócio correu-lhe tão bem que chegou a ter seis
empregados, graças aos quais pôde dedicar-se à escrita de artigos
políticos que lhe granjearam o favor dos mais influentes intelectuais
chineses. Na mesma época, apaixonou-se e casou-se. Durante os
anos anteriores tinha trabalhado numa biblioteca como assistente de
Li Dazhao, um dos primeiros comunistas chineses, em cujo grupo
de estudo acedeu aos textos fundamentais do marxismo-leninismo;
mas foi em 1920, quando se converteu em livreiro, que começou a
autoproclamar-se comunista. Quarenta e seis anos mais tarde,
promoveu a Revolução Cultural que incluiu a queima sistemática de
livros.
Sendo o maior regime comunista do mundo, a China mantém
redes estatais que abrem livrarias gigantescas nas principais
cidades do país e zelam pela moral pública, com uma secção de
«Estudos do Êxito» permanentemente nutrida para encorajar o
trabalho duro e a superação individual, que é a base da coletiva.
Talvez a principal seja a rede Xinhua, que possui monstros como o
Edifício do Livro de Pequim, no cruzamento de duas linhas do metro
e com 300 mil volumes distribuídos por cinco andares. No entanto,
estes títulos escolhidos pelo Governo convivem nas estantes com a
literatura popular, os manuais escolares ou certos livros em inglês.
Nas livrarias da Universidade de Ciência Militar, da Escola Central
do Partido e da Universidade da Defesa Nacional, pelo contrário, a
produção oficial não está tapada por camadas de dissimulação:
publicam-se obras de estatística e de prognóstico escritas por
oficiais do Exército Popular, teses de doutoramento e estudos que
revelam o núcleo duro do pensamento comunista, sem as máscaras
dos comunicados oficiais destinados à imprensa estrangeira.
Felizmente, a livraria A Traça-dos-Livros, de Pequim, sob uma
pátina de glamour e com o prestígio de aparecer nas listas das lojas
com os livros mais belos do mundo, proporcionou aos seus clientes,
durante os últimos anos, livros proibidos ou incómodos, como os do
artista Ai Weiwei.
Durante a última vez em que estive na Venezuela, um soldado
muito jovem cheirou um a um os 23 livros que eu tinha na mala.
Perguntei-lhe se agora a droga viajava na literatura, e ele olhou para
mim com ar de quem não percebia, antes de responder que a
misturavam com cola, na encadernação, «como o senhor bem
sabe». Também farejou os dois volumes da «Biblioteca Ayacucho»
que eu tinha comprado numa Librería del Sur, que faz parte da rede
de livrarias do Ministério para o Poder Popular da Cultura do
Governo Bolivariano da Venezuela. Quando deu por terminada a
sua inspeção, com o meu iPad nas mãos, descontraiu o tom de voz
para me perguntar se eu o tinha comprado nos Estados Unidos e
quanto me tinha custado. Além dessa vez no Aeroporto Maiquetía,
só me revistaram os livros que trazia na mala noutros dois – título a
título e passando o polegar ao longo das páginas: em Telavive e em
Havana. Os espiões israelitas são muito novos e muitas vezes estão
a cumprir o serviço militar obrigatório; enquanto pegam no livro,
perguntam-nos se estamos a pensar ir à Palestina, ou se já lá
estivemos e se trouxemos algum objeto de lá, quem conhecemos no
país, onde ficámos ou ficaremos alojados, qual a razão da visita, e
traduzem numa letra autocolante que colam no passaporte o nosso
nível de perigosidade. Os soldados cubanos vestem-se da mesma
maneira que os venezuelanos e são tão pouco sofisticados quanto
eles, porque na verdade estes últimos são cópias daquele original.
Foi numa livraria comunista da Calle Carlos III de Havana que o
futuro comandante e repressor Fidel Castro comprou os dois livros
capitais da sua vida: o Manifesto Comunista e O Estado e a
Revolução, de Lenine. Durante a sua estada na prisão, devorou
todo o tipo de leituras, de Victor Hugo a Zweig, passando por Marx
ou Weber. Muitos eram ofertas de quem o ia visitar à prisão; muitos
outros, ainda, foram comprados na mesma livraria da Carlos III. Na
obra Un seguidor de Montaigne mira La Habana, Antonio José
Ponte lembra que na Calle Obispo da zona antiga era possível
comprar livros em russo:

«Numa enciclopédia de inícios do século, descobri uma velha fotografia


dela: a rua de lojas e toldos às riscas em ambos os passeios parece um
bazar, um mercado árabe visto de cima. Há tempos escrevi que tem
qualquer coisa de praia. Começa com as livrarias e tem um final aberto,
para a praça e o porto. Uma das livrarias vendia, na altura, volumes em
russo. Os barcos soviéticos passavam pelo porto. A Obispo estava
delimitada por esses dois letreiros em cirílico: o título de um livro e o nome
de algum barco.»
Porém, é no livro La Fiesta Vigilada que Ponte traça com mais
precisão a topografia torturada da cidade castrista, capital do
«parque temático da Guerra Fria». Evoca o comandante Guevara
em toda a sua complexidade: militar revolucionário e fotógrafo
profissional, líder político e escritor vocacional, grande leitor. «Desde
o seu posto de comando, em La Cabaña», diz-nos numa única
oração magistral, «Ernesto Guevara dirigia uma revista, a banda
musical do acampamento, uma equipa de desenhadores, o
departamento de cinema do exército e o pelotão de fuzilamentos». A
revolução provocou, e continua a provocar, sucessivas ondas de
turismo revolucionário. A dada altura do livro, Ponte evoca as
experiências de Jean-Paul Sartre e de Susan Sontag, a firmeza do
francês e as dúvidas da norte-americana, como, atrás dos seus
passos, se ouve o eco das inquietantes palavras de Nicolás Guillén:
«Qualquer procura formal é contrarrevolucionária.» No fim, o
narrador muda-se para Berlim, onde se encontra com o seu tradutor,
que acaba de obter o seu processo da Stasi: «Graças a uma vizinha
que lhe espiava os movimentos, era capaz de reconstituir uma
jornada de há 30 anos.» O viajante permite a Ponte converter a sua
vida de escritor vigiado em Havana numa experiência universal. Foi
longa a viagem que levou o Che de Buenos Aires até Cuba. E uma
viagem inversa, de norte para sul, acabou com o seu cadáver na
lavandaria do hospital público Señor de Malta, em Valle Grande, sob
a objetiva de Freddy Alborta. Conheci-o por acaso na sua loja de
fotografia de La Paz, pouco antes da sua própria morte, e contou-
me a história da outra viagem: o seu resultado, as fotografias do
ilustre cadáver estavam numa vitrina, ao pé dos rolos e das
molduras. Vendiam-se como postais. Numa das mais famosas,
vários militares bolivianos posam com o morto, numa sorte de crua
lição de anatomia, e um deles toca no corpo inerte com o dedo
indicador, como para demonstrar que os mitos também são feitos de
carne, de matéria em constante putrefação.
Vender-se-iam os livros do escritor Ernesto Guevara na Librería
Universal? Não me parece. No mesmo ano de 1960 em que o
revolucionário foi nomeado presidente do Banco Nacional e ministro
da Economia, o contrarrevolucionário Juan Manuel Salvat
abandonou a ilha através de Guantánamo. Cinco anos mais tarde,
abriu, com a mulher, na Calle 8 da cidade de Miami, o lugar que
estava destinado a ser um dos núcleos culturais do exílio, com as
suas tertúlias e as suas edições de livros em espanhol. Numa
crónica de Maye Primera, escrita aquando do fecho da Librería
Universal no dia 20 de junho de 2013, Salvat declarou que a
primeira geração de exilados, a que mais lia, tinha ido morrendo aos
poucos e que as «novas gerações, os nossos filhos, embora se
sintam cubanos, nunca conheceram Cuba, não dispõem das
ferramentas da nacionalidade, e a sua primeira língua é o inglês,
não o espanhol». É a lei da vida.
No dia 2 de maio de 1911, desde a capital de Cuba, Pedro
Henríquez Ureña escrevia uma carta a Alfonso Reyes, na qual dizia:
«Mas não penses que há aqui boas livrarias de segunda ou de
primeira mão; as livrarias de Havana pouco mais são que as de
Puebla.» É possível que, para um viajante mexicano, a cidade não
se destacasse, em inícios do século passado, pelas suas livrarias,
mas a Calle Obispo – em cujo Hotel Ambos Mundos se costumava
alojar Hemingway – e a Plaza de Armas foram os lugares por
excelência do comércio livresco, os lugares onde os havaneses se
abasteciam de leituras durante as décadas em que, precisamente,
estavam impedidos de viajar. Quando visitei a ilha durante os
últimos dias de 1999 só comprei livros nas bancas da Plaza de
Armas, porque os estabelecimentos estatais dispunham de
pouquíssimos títulos, multiplicados por dezenas para que
preenchessem os metros cúbicos de ar. Nas portas, nas garagens,
nos vestíbulos, vendiam-se livros em segunda mão: as pessoas
desfaziam-se dos tesouros familiares por um punhado de dólares.
Porém, a livraria Casa de las Américas, que outrora representava o
poder da cultura latino-americana, oferecia apenas alguns volumes
de escritores oficiais. Jorge Edwards, que em finais dos anos 60 foi
jurado dos seus prestigiados prémios anuais, narrou em Persona
non grata a reviravolta brutal do regime em inícios da década
seguinte. São muitos os casos e cenas que o escritor chileno
enumera para ilustrar essas mudanças, inscritas, infelizmente, no
ADN da própria ideia de revolução comunista e muito semelhantes
aos que narram Kiš e Vollmann nos seus relatos sobre a paranoia
da órbita soviética. Porém, um deles vem especialmente a
propósito. Diz-lhe o reitor da Universidade de Havana: «Nós, em
Cuba, não precisamos de críticos de Havana», porque criticar é
muito simples, qualquer coisa pode ser criticada, o que é difícil é
construir um país, e do que este precisa é de «realizadores, de
construtores da sociedade», e não de críticos. E é tanto assim que
decidem suprimir uma revista cujo nome, de repente, lhes parece
profundamente subversivo: Pensamento Crítico. E Raúl Castro
conspira para submeter os estudos teóricos do marxismo ao
controlo do exército. Li esse livro, e também Antes Que Anoiteça, de
Reinaldo Arenas, durante os dias de viragem do século, parte do
arquivo de um processo de decadência que tinha começado há três
décadas. Como se toda a obra levada a cabo até à data – e que
pode imaginar-se lendo, por exemplo, as cartas de Cortázar –
tivesse sido esvaziada e as estantes da Rayuela, a livraria da Casa
de las Américas, fossem o derradeiro resultado desse
esvaziamento.
Ocorrem-me poucas imagens tão tristes como a de uma livraria
quase vazia ou dos restos de uma fogueira na qual arderam livros.
No século XVI, a Sorbonne emitiu meio milhar de condenações de
obras heréticas. Em finais do século XVIII, enumeravam-se 7400
títulos no Índice de Livros Proibidos, e durante o assalto à Bastilha
os revolucionários encontraram uma montanha de livros prestes a
serem incinerados. Nos anos 20, o Serviço Postal dos Estados
Unidos queimou exemplares do Ulisses. Só nos anos 60 puderam
ser publicados legalmente e sem processos por obscenidade O
Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, ou Trópico de
Câncer, de Henry Miller. Em 1930, a União Soviética proibiu a
edição privada e a censura oficial perdurou até à chegada da
Perestroika. Eugenio Pacelli, o futuro Pio XII, leu o Minha Luta em
1934 e convenceu Pio XI da conveniência de não o incluir no Índice,
para não enfurecer o Führer. Queimaram-se livros publicamente
durante as últimas ditaduras chilena e argentina. Os obuses sérvios
tiveram como alvo a Biblioteca Nacional de Saraievo.
Periodicamente, aparecem manifestantes puritanos, cristãos ou
muçulmanos, que queimam livros tal como queimam bandeiras. O
Governo nazi destruiu milhões de livros de escritores judeus
enquanto exterminava milhões de seres humanos judeus,
homossexuais, presos políticos, ciganos ou doentes; mas conservou
alguns deles, os mais raros ou valiosos, com a intenção de os expor
num museu do judaísmo que só abriria as suas portas após a
conclusão definitiva da «solução final». Já muito se falou do gosto
pela música clássica dos responsáveis nazis dos campos de
extermínio; quase ninguém tem presente, pelo contrário, que
aqueles que conceberam os maiores sistemas de controlo,
repressão e execução do mundo contemporâneo, os que
demonstraram ser os mais eficazes censores de livros, eram
também estudiosos da cultura, escritores, grandes leitores, em
suma: amantes das livrarias.

«Tento tratar os livros como eles me tratam a mim, ou seja, de


homem para homem. Os livros são pessoas, ou não são nada.
[...] Assim que se tenta encontrar uma utilidade para a
literatura, ela languidesce, encolhe e perece. Uma livraria é
esse lugar gratuito e perfeito que não pode servir para nada.»

CLAUDE ROY
L’Amateur de Librairies.
A livraria oriental?

«Muitas vezes teria dado o que quer que fosse para os


perceber. E espero que algum dia possa prestar a esses
contadores de histórias itinerantes a homenagem que
merecem. No entanto, também me alegrava por não os
perceber. Continuavam a ser, para mim, um bastião da vida
antiga e intocada.»

Elias Canetti, As Vozes de Marraquexe

ONDE ACABA O OCIDENTE E COMEÇA O ORIENTE?


A pergunta, claro, não tem resposta. Talvez a tenha tido nalgum
dia já longínquo: na época de Flaubert, porventura, ou muito antes,
na de Marco Polo, ou muitíssimo antes ainda, na de Alexandre, o
Grande. Porém, a construção de um pensamento ocidental na
Antiga Grécia já esteve completamente em diálogo com as filosofias
das outras margens do Mediterrâneo, de maneira que era em si
mesmo um pensamento que integrava essa abstração chamada
Oriente, mesmo que as releituras posteriores a tivessem tentado
desterrar. Mas este capítulo tem de começar por algum sítio, tal
como os anteriores o fizeram em Atenas ou em Bratislava, e
começará em Budapeste, uma dessas cidades – como Veneza,
Palermo, Esmirna – que parecem flutuar entre duas águas que,
mais do que estarem em contradição, conversam.
Era um dia de verão de princípios deste século, e nas minhas
voltas pela cidade acabei embeiçado por uma caixa de madeira
pintada à mão que tinha a particularidade de não poder ser aberta e,
portanto, parecia completamente inútil. Um cubo de madeira verde
decorado com filigrana. Exibia-se ao pé de outras recordações
numa das banquinhas alinhadas nas margens do Danúbio. Havia
claramente uma tampa, mas não uma fechadura. A vendedora
esperou um pouco, e só quando eu já estava desesperado, numa
luta manual contra o hermetismo do objeto, é que se aproximou de
mim para me dizer: «É uma caixa mágica»: vários movimentos de
dedos revelaram peças soltas na estrutura de madeira, partes que
deslizavam para um lado e para o outro até deixarem à vista a
fechadura e, sobretudo, a ranhura onde se escondia a chave.
Maravilhou-me o artefacto. Ela percebeu logo. Foi então que
começou o regateio.
A dicotomia entre o preço fixo e o regateio poderia ser um dos
eixos de polarização, hoje em dia, entre o Ocidente e o Oriente.
Outro, poderia ser o da materialidade e da oralidade. São oposições
escorregadias, ingovernáveis, mas que podem ajudar a pensar se
fazem sentido enunciados como «o leitor ocidental» ou «a livraria
oriental». Na praça Jemaa el Fna, de Marraquexe, a biblioteca é
imaterial e inacessível para quem não conhecer as línguas locais: os
encantadores de serpentes, os vendedores de banha da cobra e,
sobretudo, os contadores de histórias vão edificando no ar,
acompanhados por uma gestualidade hipnótica, exibindo ilustrações
de corpos humanos ou mapas desenhados, um relato que não
compreendemos. Em As Vozes de Marraquexe, Canetti vincula essa
incompreensão com certa nostalgia de modos de vida extintos na
Europa, mais artesanais e que conferem maior importância à
transmissão oral do conhecimento. Há, sem dúvida, sabedoria e um
valor maiúsculo nas tradições orais que confluem nessa praça
poeirenta, com qualquer coisa de caravançarai, que todas as tardes
se transforma num enorme pátio de refeições informal e fumegante.
Mas a sua idealização remete para a mentalidade orientalista, as
reduções e os clichés sobre o mundo árabe e asiático com que
traficam os que, como eu, somos conhecidos como ocidentais.
Como aquela imagem de um livreiro egípcio que fotografei numa
pequena aldeia nas margens do mar Vermelho. Porque o mundo
árabe e o asiático são mundos da caligrafia e do livro, com uma
textualidade antiquíssima e poderosa, apesar de nos estar vedada,
a menos que a resolvamos trair parcialmente por via da tradução.
Pela sua proximidade com o fim da Europa, Tânger depressa
começou a ser orientalizada pelos escritores e os pintores europeus,
especialmente os franceses. O primeiro que converteu a cidade
marroquina numa paisagem representativa da gigantesca abstração
foi Delacroix, nos anos 30 do século XIX. No seu repertório de
jelabas e de cavalos, mancebos e tapetes, sobre um fundo
arquitetónico simples e branco no qual, muitas vezes, espreita um
mar de papel de seda, condensam-se os tópicos que se repetirão
até à exaustão na representação do continente africano. Oitenta
anos mais tarde, como parte da mesma tradição, Matisse
geometrizou a cidade e os seus habitantes: modernizou-a. Entre os
pintores espanhóis, Mariano Fortuny, Antonio Fuentes e José
Hernández foram acrescentando matizes a essa paisagem pictórica.
O último, parte da comunidade hispânica da cidade, expôs na
Librairie des Colonnes, talvez o seu centro cultural mais importante
dos últimos 60 anos e onde, a propósito, trabalhou o escritor Ángel
Vázquez, que ganhou o Prémio Planeta em 1962 e 15 anos mais
tarde publicou o seu grande romance sobre a cidade, La Vida Perra
de Juanita Narboni. Porque é costume recordar os nomes de
artistas norte-americanos e franceses que fizeram da «cidade
internacional» um dos pontos nevrálgicos da cultura do século XX,
mas à sua volta gravitaram heterodoxos de muitas outras
procedências, como os espanhóis mencionados ou o pintor hiper-
realista chileno Claudio Bravo, que residiu em Tânger entre 1972 e
2011, o ano em que morreu, ou os próprios artistas marroquinos que
participaram na criação do mito, como o pintor Mohamed Hamri ou
os escritores Mohamed Choukri, Abdeslam Boulaich, Larbi Layachi,
Mohammed Mrabet ou Ahmed Yacoubi.
O relato oficial daquilo a que se poderia chamar o mito de Tânger
estabelece 1947, o ano da chegada de Paul Bowles à cidade, como
o do começo da sua expansão simbólica. No ano seguinte, a sua
mulher, Jane, instalou-se com ele. Mais tarde apareceriam
Tennessee Williams, Truman Capote, Jean Genet, William
Burroughs (e o resto da Geração Beat) ou Juan Goytisolo. Além de
certas festas em residências particulares e de certos cafés que se
tornaram obrigatórios, eram dois os principais pontos de encontro
desse tão heterogéneo conjunto de criadores e de tantas outras
personagens que iam e vinham, ricos e aventureiros, diletantes e
músicos interessados nos ritmos africanos, atores como o húngaro
Paul Lukas (que participou no filme Amor em Acapulco com Elvis
Presley e na versão de Lord Jim realizada por Richards Brooks, e
que morreu em Tânger enquanto andava à procura de um lugar
onde passar os seus últimos anos de vida), realizadores de cinema
como Bernardo Bertolucci e bandas de música como The Rolling
Stones. Esses dois pontos de encontro foram, por um lado, o próprio
Bowles, que se tornou uma atração turística semelhante à que
encarnaram Gertrude Stein ou Sylvia Beach na Paris de
entreguerras; por outro, a Librairie des Colonnes, fundada na
mesma época em que os Bowles se estabeleceram em Tânger e
que lhes sobreviveu.
O casal belga formado por Robert – arquiteto e arqueólogo,
amigo de Genet, André Gide e Malcom Forbes – e Yvonne Gerofi –
bibliotecária –, com a imprescindível colaboração da sua irmã
Isabelle, dirigiu o leme da Librairie des Colonnes desde a sua
fundação, no verão de 1949. Foi Gallimard, o dono do negócio, que
lhes ofereceu o lugar. O seu casamento era feito de papel bíblia. O
casal tinha-se unido por conveniência, pois eram ambos
homossexuais e Tânger, naquela época, era o lugar ideal para esse
tipo de situações familiares, tão similar à protagonizada pelos
Bowles. Enquanto as irmãs Gerofi assumiam o controlo da livraria
até se converterem em autênticas celebridades na esfera cultural,
Robert dedicava-se ao desenho e à arquitetura. Entre outros
projetos, levou a cabo a remodelação do palácio árabe no qual
Forbes – editor e dono da famosa revista – instalou a sua coleção
de cem mil soldadinhos de chumbo. Numa fotografia da agência
Magnum, surge velho, a olhar para a câmara, com um casaco
branco e um chapéu também ele branco nas mãos, como «manager
of the Forbes State». A relação entre as Gerofi e os Bowles era
estreita, como se pode apreciar nas cartas dos escritores. Para
Paul, são uma presença constante e próxima sobre a qual não é
necessário falar porque, tal como o Petit Socco ou o estreito de
Gibraltar, fazem parte da paisagem quotidiana. Para Jane, pelo
contrário, Yvonne era uma amiga íntima, e até uma enfermeira, pois
era nela que se apoiava durante os longos períodos de instabilidade
psicológica. A 17 de janeiro de 1968 entrou na Librairie des
Colonnes totalmente passada, sem reconhecer ninguém, e pediu
dois dirhams emprestados; a seguir, pegou em dois livros e, apesar
das advertências da sua criada Aicha, saiu sem pagar.
Sempre que Marguerite Yourcenar ia a Tânger, passava pela
livraria para cumprimentar o seu amigo Robert; e sempre que algum
escritor norte-americano – como Gore Vidal – ou algum intelectual
europeu – como Paul Morand – ou árabe – como Amin Maalouf –
visitava a cidade branca, acabava inexoravelmente entre as suas
estantes que, com o tempo, passaram a incluir, além do acervo de
livros em francês que era de esperar que tivesse, uma variada
coleção de títulos em árabe, inglês e castelhano. Não em vão foi um
bastião de resistência antifranquista, e tanto promovia publicações
como convocava reuniões de exilados. Dos escritores espanhóis
relacionados com a Librairie des Colonnes, o mais célebre é Juan
Goytisolo, cuja relação com a cultura árabe começou em meados
dos anos 60 precisamente em Tânger. Assim que chegou, escreveu
a Monique Lange, como se pode ler em Los Reinos de Taifa: «Sinto-
me feliz, passeio 10 horas por dia, vejo o Haro e a mulher, não
durmo com ninguém e vejo Espanha ao longe, cheio de excitação
intelectual.» A obra Reivindicação do Conde Julião é fruto desta
relação: «A minha ideia de trabalho funda-se na visão da costa
espanhola desde Tânger: quero partir desta imagem e escrever algo
belo que supere o que escrevi até hoje.» Entretanto, toma
apontamentos difusos, ensaia ideias e lê profusamente, no seu
quarto arrendado, a literatura do Século de Ouro. Embora mais
tarde acabe por decidir fixar a sua residência em Marraquexe,
Goytisolo passará a maior parte dos verões da sua vida em Tânger,
tornando-se cúmplice da sua livraria mais importante. Num dos seus
últimos romances, Carajicomedia, onde vira do avesso a camuflada
tradição homossexual da literatura hispânica, põe na boca do
grotesco père de Trennes:

«Sabe se Genet continua no Minzeh ou já se instalou em Larache?


Falaram-me de uma excelente autobiografia de um tal Choukri, traduzida
para o inglês por Paul Bowles. Já a leu? Assim que chegarmos, vou
comprar um exemplar na Librairie des Colonnes. Você é amigo das irmãs
Gerofi, suponho eu. Quem não conhece as irmãs Gerofi em Tânger?
Como? Não sabe quem são? Impossível! Um tangerino como deve ser,
como você, não frequenta a livraria delas? Devo dizer que não acredito.
São o motor da vida intelectual da cidade!»

Menos conhecido, mas talvez mais emblemático pela sua


relação com a bissexualidade, a droga e a inércia destrutiva que
imperavam no ambiente intelectual tangerino, é Eduardo Haro Ibars.
Filho de exilados, nascido, de facto, em Tânger em 1948, durante a
adolescência infiltrou-se no círculo beat, acompanhando Ginsberg e
Corso nas suas derivas noturnas. «Criei-me de modo um pouco
transumante, entre Madrid, Paris e Tânger», escreveu; mas
seguramente o vetor espacial que marcou a sua breve vida foi o de
Tânger-Madrid, porque levou para a capital a injeção inconformista
dos beat e alimentou, com ela, a Movida, militando como
homossexual, escrevendo poemas e canções, experimentando todo
o tipo de substâncias alucinogénicas. Na primavera de 1969, após
quatro meses na prisão com Leopoldo María Panero, regressou à
casa tangerina da família. E certa vez, para fugir do serviço militar,
apanhou um comboio noturno até Algeciras, atravessou o estreito,
alojou-se na casa de Joseph McPhillips – amigos dos Bowles – e foi
auxiliado pelas damas Gerofi, que o deixaram realizar determinados
trabalhos na sua livraria. Definia-se a si mesmo como homossexual,
drogado, delinquente e poeta. Morreu de sida com 40 anos.

As livrarias costumam sobreviver tanto aos escritores que


alimentaram a sua mitologia como aos seus donos. Depois das
Gerofi, foi Rachel Muyal que passou a dirigir o negócio entre 1973 e
1998. Como se pode ler em Mes Années à la Librairie des
Colonnes, com ela – tangerina e vizinha da livraria desde 1949 –
aliou-se ao cosmopolitismo um interesse pelo carácter marroquino
de Tânger:

«Uma pessoa que me honrava com as suas visitas era Si Ahmed Balafrej.
Gostava de folhear as revistas de decoração e de arquitetura. Si
Abdelkebir el Fassi, herói da resistência, acompanhava-o. Foi no
transcurso de uma das suas conversas que Si Ahmed me disse, olhando-
me nos olhos: “Só Deus sabe que fiz tudo para que Tânger conservasse
um estatuto especial sem renunciar à sua pertença ao Reino de
Marrocos.”»

Tal como outros livreiros e livreiras que já apareceram ou


aparecerão nestas páginas, Muyal vivia a dois passos do
estabelecimento, e dava muitos cocktails e festas vinculados a
apresentações de livros ou a acontecimentos culturais; e também se
converteu, como eles, num agente de referência, num embaixador,
numa ponte: todas as semanas, três ou quatro pessoas lhe pediam
que as pusesse em contacto com Bowles, que não tinha telefone;
recorrendo a moços de recados, ela enviava os pedidos de
encontro, a que ele quase sempre acedia.
Mais tarde, chegariam Pierre Bergé, Simon-Pierre Hamelin e a
revista Nejma, consagrada à memória dessa mitologia internacional,
a esse mapa no qual tantos escritores marroquinos encontraram
caminhos para serem traduzidos e conhecidos fora de Tânger.
Desde sempre que o estreito de Gibraltar foi um lugar de passagem
entre a África e a Europa, de maneira que é natural que a livraria
tenha desempenhado um papel privilegiado na comunicação cultural
entre ambas as margens. Muyal disse, numa conferência que deu
no Clube dos Rotários da cidade:

«Nesse lugar mítico que é a Librairie des Colonnes, pude sentir-me no


centro da cidade e mesmo do mundo. Por isso, disse a mim própria que
era absolutamente necessário fazer com que a instituição participasse no
movimento cultural de Tânger, essa cidade que simboliza melhor que
nenhuma outra o encontro entre dois continentes, dois mares, dois polos: o
Oriente e o Ocidente, e também entre três culturas e três religiões que
constituem uma única e homogénea população.»
Ainda conservo o cartão de papel texturado da Librairie
Papeterie de Mlle. El Ghazzali Amal, de Marraquexe, no qual foi
orgulhosamente estampado «Depuis 1956», e lembro-me de como
me dececionou o escasso número de livros que tinha à venda e o
facto de estarem todos escritos em árabe. A Librairie des Colonnes,
pelo contrário, só pode entusiasmar o leitor europeu porque é como
uma livraria de cá, mas nas margens africanas e com os
necessários apontamentos do colorido local. Vende livros em
francês, inglês e espanhol a preço fixo, sem a opção do regateio
que no início é divertido, mas depois se torna aflitivo, saturante; e
isso faz-nos sentir a salvo. O mesmo acontece noutras duas livrarias
marroquinas que descobri recentemente: a Ahmed Chatr, também
de Marraquexe, e – sobretudo – a Carrefour des Livres, de
Casablanca, com os seus quadros de cores estridentes e o seu
grande sortido de títulos em árabe e em francês (as ligações à
Librairie des Colonnes são diretas, pois têm à venda os mesmos
livrinhos brancos e tangerinos com a chancela Khar Bladna que fui
colecionando ao longo dos anos). Sentimo-nos à vontade. Poucas
vezes senti uma sensação de asfixia tão grande como na outra
livraria de Marraquexe, consagrada exclusivamente aos livros
religiosos, todos em árabe, nem uma fresta por onde respirar.
Viajamos para descobrir mas também para reconhecer. Só o
equilíbrio entre essas duas ações nos proporciona o prazer que
procuramos nas viagens. As livrarias são quase sempre uma aposta
segura no que a isto diz respeito: a sua estrutura acalma-nos porque
nos parece sempre familiar; compreendemos intuitivamente a sua
ordem, a sua disposição, o que podem ter para nos oferecer; mas
precisamos, pelo menos, de uma secção na qual reconheçamos o
alfabeto e saibamos lê-lo, de uma zona de livros ilustrados que
possamos folhear, manchas de informação que, em caso de
necessidade – ou por mero acaso –, possamos decifrar.
Foi isso, precisamente, que me aconteceu no Bazar dos Livros
de Istambul: entre milhares de capas incompreensíveis, encontrei
um volume sobre viajantes turcos publicado em inglês e com
fotografias, Through the Eyes of Turkish Travelers. Seven Seas and
Five Continents, de Alpay Kabacali, numa cuidada edição com box
set do Toprakbank. Como na minha coleção de história de viagem
faltava essa peça do puzzle, o testemunho dos viajantes turcos,
empenhei-me em comprá-lo. Desde o primeiro instante tive sempre
em mente a vendedora de caixas mágicas da banca de rua de
Budapeste, onde ia dia após dia fazer a mesma oferta até que, no
último dia, ela lá cedeu, falsamente resignada. Comprei duas para
oferecer aos meus irmãos. Precisamente quando mas estava a dar,
envoltas em papel kraft, um turista norte-americano, com uma
caixinha idêntica às minhas nas mãos, perguntou-lhe quanto
custavam. A mulher duplicou o preço inicial. O comprador, sem
protestar, levou a mão ao bolso e, enquanto ela me piscava o olho,
divertida, pedindo-me silêncio, fechou um negócio igual ao meu com
o qual ganhou seis vezes mais. De maneira que perguntei o preço
da box azul ao jovem vendedor turco que ouvia rádio atrás do
balcão, que na verdade só estava a vigiar a mercadoria porque
chamou imediatamente, com um grito, um homem de meia-idade
acabado de barbear que, olhando-me nos olhos, me disse que
custava 40 dólares. «Vinte e cinco parece-me um preço mais justo»,
repliquei eu. Ele encolheu os ombros, deixou o rapaz novamente
sozinho e foi-se embora. Tinha vindo por uma das esquinas do
Sahaflar Carsisi, que é o nome turco do Bazar dos Livros. Fica num
antigo pátio embutido entre a Mesquita de Beyazit e a entrada de
Fesciler para o Grande Bazar, muito perto da Universidade de
Istambul, e ocupa aproximadamente os mesmos metros quadrados
que durante séculos acolheram o Chartoprateia, o mercado do papel
e do livro de Bizâncio. Talvez por causa do busto de Ibrahim
Müteferrika que estava no centro do pátio, ao lado dos títulos dos 17
primeiros livros publicados em turco graças à imprensa que ele
liderou, uma imprensa tardia, de princípios do século XVIII, ocorreu-
me que poderia adquirir a antologia de viajante recorrendo à mesma
tática de que me valera em Budapeste. Por Müteferrika ser da
Transilvânia e ninguém saber como chegou a Constantinopla nem
por que razão se converteu ao islão, os meus olhos relacionavam a
minha viagem turca com as minhas incursões nos Balcãs e no
Danúbio. Seja como for, acostumei-me a passar todos os dias por
lá, aumentando a minha oferta cinco dólares de cada vez.
Também me acostumei a ler à tarde na esplanada do Café Pierre
Loti, com vistas para o Mármara, e a passear ao anoitecer pela
Istiklal Caddesi ou Avenida da Independência, outro grande centro
livresco da cidade. Tal como Buda e Pest, as duas margens de
Istambul separadas pela Ponte de Gálata, possuem a sua própria
idiossincrasia, que pode condensar-se nesses dois polos de escrita:
o Bazar e a Avenida. À volta desta última assentaram arraiais, em
tempos, os mercadores venezianos e genoveses; há paisagens
belíssimas, e livrarias com o preço de cada um dos livros impresso
em autocolantes brancos na contracapa. Procurei em vão a
antologia de viajantes em lugares como a Robinson Crusoe 389,
onde adquiri, por outro lado, dois livros de Juan Goytisolo traduzidos
para o turco. Nas fotografias que se incluem na edição da Istambul
Otomana não aparecem livrarias antigas nem modernas, porque
nunca foram topos da literatura de viagens ou da história cultural.
Procurei bibliografia sobre o genocídio arménio e, no extremo da
avenida que dá para a Torre de Gálata, encontrei, finalmente, um
livreiro que falava perfeitamente inglês – com sotaque de Londres –
e que me remeteu para dois volumes da History of the Ottoman
Empire and Modern Turkey, de Stanford J. Shaw e Ezel Kural Shaw.
O seu índice temático não deixava lugar para dúvidas:
«Nacionalismo arménio, terrorismo, revolta arménia; a questão
arménia, guerra aos nacionalistas turcos.» Tão revoltante quanto
isto, mas menos compreensível, é o facto de, no resumo histórico
com que a Lonely Planet brinda a Turquia, também se omitirem os
massacres sistemáticos que ceifaram a vida de mais de um milhão
de pessoas, naquele que foi o primeiro genocídio do século XX.
Perto do busto do primeiro impressor turco – que era húngaro –,
conversei várias vezes com um livreiro que falava perfeitamente
inglês e que – à medida que os dias iam passando – se foi abrindo
comigo. Orhan Pamuk, que acabara de ganhar o Prémio Nobel, era,
segundo ele, um escritor medíocre que tinha beneficiado dos seus
contactos no estrangeiro. E o genocídio arménio era um episódio
histórico que, em sentido estrito, não podia ser designado como tal,
porque primeiro era necessário separar os factos da propaganda. Já
não sei se se chamava Burak Türkmenoglu ou Rasim Yüksel,
porque tanto conservo o cartão dele como o do homem de meia-
idade, sempre perfeitamente escanhoado, que no dia em que eu
parti de autocarro para Atenas me vendeu a box azul por 40 dólares.
Porém, lembro-me perfeitamente de que, no recinto em penumbras,
os seus olhos brilhavam mais do que papel de prata a refletir
chamas.
Na Turquia abunda a literatura negacionista, tal como a
antissemita no Egito e a islamofóbica em Israel. Na livraria
Madbouly da Praça Talaat Harb, da cidade do Cairo, vi, ao lado de
outros volumes igualmente suspeitos, três exemplares de Os
Protocolos dos Sábios de Sião; mas também tinham as obras
completas de Naguib Mahfuz, o único escritor egípcio que emulou
Stein ou Bowles e que se converteu em vida numa atração turística,
como cliente habitual do Fishawi ou Café dos Espelhos. Na Sefer Ve
Sefel, de Jerusalém, que foi fundada em 1975 com o propósito de
vender livros em inglês e que teve de fechar o café durante a
Intifada, ou na Tamir Books, na mesma Jaffa Road, onde só se
vendem livros em hebraico, também convivem todas as tendências
políticas historiográficas, mesmo as insustentáveis: as livrarias
generalistas costumam representar, por sinédoque, as sociedades
nas quais se inscrevem, de maneira que as minorias radicais estão
representadas em estantes igualmente mínimas. Frequentei, porém,
menos livrarias em Jerusalém do que em Telavive, uma cidade
menos obcecada com as religiões e, portanto, mais tolerante; e a
livraria à qual ia todos os dias durante a minha estada no Cairo foi
outra: a da American University, não por acaso apolítica e secular.
Nela comprei um dos livros mais belos que alguma vez ofereci: o
Contemporary Arabic Calligraphy, de Nihad Dukhan.
Nunca vi um calígrafo árabe em ação, mas um chinês, sim. Nas
principais cidades chinesas e japonesas visitei dezenas de livrarias,
como sempre faço, mas não posso negar que me interessaram
menos os grandes armazéns, esses grandes depósitos
perfeitamente ordenados dos quais eu era expulso pelos caracteres
que não percebia, do que outro tipo de espaços e de figuras, que
me atraíam como viajante pela sua força orientalista. Surpreendeu-
me descobrir na Libro Books, de Tóquio, que Haruki Marukami tinha
publicado em vários volumes a correspondência cibernética com os
seus fãs. Gostei de folhear, na Alameda do Livro de Xangai, a
tradução chinesa do Dom Quixote. Mas, sobretudo, persegui um
híbrido de descoberta e reconhecimento nas casas de chá dos
hutong, no Caminho da Filosofia, em certos jardins, nas lojas de
antiguidades, no ateliê de um velho calígrafo. Talvez por não
perceber as vozes quando falavam, gostei de ouvir a música do
zhonghu ou do ruan. Talvez por me ser negada a possibilidade de
aceder à literatura japonesa na sua língua original, apaixonei-me
pelos papéis com que embrulham os livros, as caixas de bombons,
os copos ou os pratos, essa extraordinária e sofisticada arte de
papelaria.
Num estabelecimento de antiguidades pequinês, voltei –
memoravelmente – à prática do regateio. Depois de muito procurar
nas suas estantes poeirentas, repletas de objetos belíssimos,
reparei num bule que me pareceu mais acessível do que as
gravuras, os tapetes ou os jarros. Como não nos entendíamos, o
adolescente que me atendeu pegou numa calculadora de brinquedo
com teclas gigantescas e teclou o preço em dólares. Mil. Arrebatei-
lhe o artefacto e teclei a minha contraoferta: cinco. Baixou logo para
trezentos. Eu subi para sete. Pediu ajuda ao dono, um homem
velhíssimo de aspeto impassível e olhar voraz que se sentou à
minha frente e, com um par de gestos espaventosos, me comunicou
que agora é que era a valer: cinquenta. Subi para dez. Ele pediu-me
quarenta, trinta, vinte, doze. E foi isso que paguei, satisfeito.
Embrulhou-me o bule em papel de seda branco.
Foi quando vi o turista americano de Budapeste a pagar o triplo
do que eu pela mesma caixa que percebi o valor da minha e,
sobretudo, o meu presumível valor como viajante. E foi quando, no
dia seguinte à minha nova compra, em Pequim, vi numa feira uma
centena de bules iguais ao meu, mas reluzentes e sem pó,
produzidos em série, em cima de um tapete, no chão e a um dólar,
que me apercebi (ou que me lembrei, uma vez mais) de que a aura
tem a ver com o contexto. A comparação e o contexto também são
fatores fundamentais para calibrar a importância de um livro, cujo
texto é uma realidade amarrada a um determinado momento de
produção. É o que faz a crítica literária constantemente: estabelecer
hierarquias comparativas dentro de um campo cultural concreto.
Não há um lugar físico onde nós, os leitores, comparemos mais do
que numa livraria – mas para que essa comparação se realize,
temos de compreender a língua em que os livros que folheamos
foram escritos. Por isso, para mim e para tantíssimos outros leitores
ocidentais, os muitos ecossistemas culturais a que chamamos
Oriente, e as livrarias em que estes se materializam, constituem um
universo paralelo onde é fascinante mas também frustrante,
navegar.
Foi na China que se inventou o papel, em inícios do século II d.C.
Pelos vistos, a ideia foi de um eunuco, Cai Lun, que fez uma pasta à
base de trapos, cânhamo, cortiça e redes de pesca. Menos nobre do
que o bambu e a seda, o papel demorou séculos a impor-se como o
melhor suporte da palavra escrita, e só no século VI saiu das
fronteiras chinesas, para chegar à Europa no século XII. Em França
a sua produção entreteceu-se com a do linho. Na altura, os
impressores chineses já dispunham de tipos móveis, mas os
milhares de caracteres da língua impediram que a imprensa
provocasse realmente uma revolução, como sucederia com
Gutenberg, 400 anos mais tarde. Não obstante, como escreveu
Martyn Lyons, «em finais do século XV, a China tinha produzido mais
livros do que o resto do mundo todo junto». Cada volume: um
objeto. Um corpo. Matéria. As secreções e os bichos do papel de
seda. Gutenberg teve de aperfeiçoar a tinta indelével à base de
óleo, fazendo experiências com ferrugem, verniz e claras de ovos.
De forjar tipos com ligas de chumbo, antimónio, estanho e cobre.
Nos séculos seguintes, tornou-se consensual outra combinação:
cascas de noz, resina, linhaça e terebentina. E embora mais tarde
se tenha tornado habitual a produção industrial do papel a partir da
madeira de pinheiro ou de eucalipto misturada com cânhamo ou
algodão, o seu fabrico a partir de trapos destes dois últimos
materiais, celulose pura livre de cortiça, ainda é sinónimo de
qualidade entre os especialistas. O livro dependeu do trapeiro até ao
século XVIII; depois, desenvolveram-se sistemas modernos de
extração do papel do miolo da madeira e o preço do livro reduziu-se
para metade. Porque os trapos eram baratos, mas o processo era
caro. Nos seus estudos sobre Baudelaire – como já se viu –,
Benjamin insiste na figura do trapeiro como colecionista, como
arquivista de tudo aquilo que a capital despedaçou, dos restos do
naufrágio da capital. Além da analogia entre o tecido e a sintaxe da
escrita, entre o trapo usado e o envelhecimento do que se publica,
importa esse círculo que se fecha: a reciclagem, a reabsorção do
lixo por parte da indústria para que a máquina da indústria não se
detenha.
No Oriente, durante séculos persistiu a ideia de que a melhor
forma de absorver os conteúdos de um livro era copiando-o à mão:
que a inteligência e a memória façam com as palavras a mesma
coisa que a tinta faz com o papel.

«Através da papelaria, lugar e catálogo de tudo o que é


necessário para a escrita, introduzimo-nos no espaço dos
signos.»
ROLAND BARTHES
O Império dos Signos.
América (1) – «Coast to Coast»

«Por um lado, o texto leva a cabo uma operação


espacializadora cujo efeito é fixar ou deslocar as fronteiras
que delimitam campos culturais (o que é familiar vs. o que é
estrangeiro) e que trabalham as distribuições espaciais que
sustentam e organizam uma cultura. Porém, para mudar,
reforçar ou perturbar essas fronteira socioetnoculturais, é
necessário um espaço de jogo.»

Michel de Certeau, Le Lieu de L’autre

O PERCURSO CLÁSSICO DA VIAGEM costa a costa começa em Nova


Iorque e acaba na Califórnia. Como este é um ensaio clássico, filho
bastardo de Montaigne, o presente capítulo brincará com esta rota,
apesar das escassas paragens intermédias; uma rota que
desembocará inevitavelmente numa viagem tão textual como
audiovisual – apesar de ir ancorando de modo mais ou menos firme
em certas livrarias exemplares à sua maneira que vão aparecendo
pelo caminho – pelos mitos da cultura norte-americana, uma cultura
que, precisamente, se caracteriza pela produção de mitos
contemporâneos.
Embora, na sua maioria, estes sejam individuais, geralmente
relacionam-se com espaços significativos, amiúde conotados
coletivamente. Isto é, Elvis Presley é um corpo único, em movimento
e, portanto, um itinerário, uma biografia; mas também o são
Graceland e Las Vegas. E Michael Jackson espacializou-se em
Neverland, tal como antes o fizera Walt Disney no seu primeiro
parque temático californiano. Da mesma maneira, pode percorrer-se
a história cultural dos Estados Unidos durante o século passado
invocando cronologicamente certos lugares emblemáticos,
exemplos de uma totalidade incomensurável. Nos anos 20,
celebravam-se os famosos almoços do restaurante The Algonquin,
no hotel de Nova Iorque com o mesmo nome, onde escritores,
críticos e editores como John Peter Tooley, Robert Sherwood,
Dorothy Parker, Edmund Wilson ou Harold Ross discutiam sobre a
estética e a indústria da literatura nacional e internacional; foi nos
anos 30 que se consolidou a Gotham Book Mart na mesma cidade,
especializando-se na difusão de autores experimentais, organizando
todo o tipo de conferências e de festas literárias e sendo
paulatinamente frequentada pelos vanguardistas europeus exilados;
durante os anos 40, a galeria nova-iorquina Art of this Century, de
Peggy Guggenheim, foi a decisiva impulsionadora do
expressionismo abstrato como forma por excelência da vanguarda
nacional; nos anos 50, a Livraria City Ligths, de São Francisco, pôs
a circular alguns dos livros mais sintomáticos da época, fazendo-os
acompanhar de apresentações e recitais; The Factory, de
Manhattan, sob a liderança de Andy Warhol, destacou nos anos 60
como estúdio cinematográfico, ateliê artístico e sede de festas
narcóticas; e durante a década seguinte e princípios dos 80, ganhou
relevo o clube noturno Studio 54.

Todos eles são cronotopos pontuais. Sobretudo na Costa Leste,


embora não se possa compreender a cultura norte-americana sem o
perpétuo Coast to Coast: «I love Los Angeles. I love Hollywood.
They’re beautiful. Everybody’s plastic, but I love plastic. I want to be
plastic1», disse Warhol. Se tivesse de escolher um único edifício
com que identificar, nem que fosse lateralmente, a vida intelectual
dos Estados Unidos durante o século XX seria o Hotel Chelsea,
inaugurado em 1885 e ainda de portas abertas. A lista de
celebridades e de capítulos importantes do século passado podia
começar com Mark Twain e acabar com Madonna (no livro Sex
aparecem fotografias do quarto 822), passando por alguns
sobreviventes do Titanic, Frida Kahlo e Diego Rivera, o suicídio de
Dylan Thomas em 1953, a escrita de 2001 – Uma Odisseia no
Espaço, de Arthur C. Clarke, a composição do álbum Blonde on
Blonde de Bob Dylan, a interpretação de «Chelsea Hotel # 2» de
Leonard Cohen e algumas cenas do filme Nove Semanas e Meia. O
hotel parece-se com uma livraria. É um âmbito igualmente
fundamental na história das ideias, como lugar de encontro entre
migrantes, de leitura intensiva e em solitário – que tão bem retratou
Edward Hopper; de escrita e criação; de intecâmbio de experiências
e de referentes e de fluidos. Encontra-se, também, na disjuntiva
entre a unicidade e a clonagem, entre a independência e a cadeia,
com idêntica vocação de museu. E está fora do círculo institucional
e, por conseguinte, a sua história é feita de descontinuidades.
Embora mais de 125 anos de presença constante em Nova Iorque
assegurem a possibilidade de um relato articulado
cronologicamente, ao ser atravessado – bombardeado – pelas
biografias de centenas de artistas, o Hotel Chelsea e o resto dos
hotéis onde essas centenas de artistas ficaram alojados durante
milhões de deslocações só podem ser narrados desde a
constelação das histórias e dos factos.
Espaço fetiche da Geração Beat, significou para os seus
membros a passagem de testemunho do Beat Hotel de Paris, essa
cidade que – como disse Burroughs – «é um buraco nojento para
pessoas sem cheta» e está cheia de franceses, «uns autênticos
porcos»; mas onde conseguiu terminar Festim Nu e trabalhar nos
seus cut-ups graças à proteção de uma francesa, Madame Rachou,
que regia aquele hotel sem nome (9 Rue Gît-le-Coeur) no qual se
alojou com Ginsberg, Corso e outros amigos. A dada altura, quando
o movimento se converteu na corrente beat, na moda beat, em
Beatnik, esse hotel parisiense foi batizado como Beat Hotel. A
mesma cidade que vira nascer meio século antes o cubismo nos
pincéis de Juan Gris, George Braque e Pablo Picasso acolhia agora
a eclosão pós-moderna do recorte e da montagem literária. Depois
de Tânger e de Paris, continuaram a drogar-se e a criar no Hotel
Chelsea de Nova Iorque. Burroughs escreveu que era um lugar que
«parecia ter-se especializado em mortes de escritores célebres».
Em 1966, durante as filmagens de Chelsea Girls, o filme
experimental de Warhol, pode ver-se como outro trânsito: o fim de
um certo modo de entender o romantismo, um modo selvagem e
viajante, e o início da produção em série e tornada espetáculo da
arte contemporânea.
Os beats eram clientes de livrarias? Segundo a lenda, a resposta
é «não». É mais fácil imaginá-los a emprestar livros uns aos outros,
a roubá-los, a levá-los provisoriamente das estantes da
Shakespeare and Company do que a comprá-los. De facto, a livraria
de Whitman era – se se tiver em conta a abundante
correspondência – sobretudo uma fonte de ingressos: «O livreiro
daqui, que é amigo do Ferlinghetti, tem na montra 50 exemplares do
meu livro e vende uns quantos todas as semanas.» O grande ladrão
de livros era Gregory Corso, que muitas vezes tentava vender de
manhã, na própria livraria, os volumes que tinha subtraído de noite.
Seguramente foram mais proclives à livraria de segunda mão que à
de livros novos. E à leitura de originais, viciados, como eram, não só
em substâncias químicas como também na arte epistolar, na escrita
automática, no rapto lírico ao ritmo do jazz. Embora as lendas
existam, sobretudo, para serem desmentidas: em Paris, por
exemplo, aproveitaram o acesso aos livros da Olympia Press para
adquirirem a obra de autores americanos e franceses proibidos. «O
Ferlinghetti mandou-me cem dólares ontem e, por isso, comemos,
paguei ao Gregory os 20 dólares da renda atrasada e ele mudou-se
para nossa casa temporariamente», escreve Ginsberg a Kerouac
numa carta de 1957. «Comprámos um livro porco do Genet e do
Apollinaire, uma dose de heroína, uma caixa de fósforos de kief e
um frasco de molho de soja caro.» Enquanto viviam no Hotel
Chelsea, frequentavam livrarias nova-iorquinas, como The Phoenix
Bookshop, que copiografou a revista de Ed Sanders Fuck You e
lançou uma coleção de poesia – em formato chapbook – que conta
com títulos de Auden, Snyder, Ginsberg e Corso. Num antigo talho
kosher, o próprio Sanders abriu, em 1964, a Peace Eye Bookstore
que, além de livros, oferecia artigos para fetichistas contraculturais,
como uma coleção emoldurada de pelos púbicos de 16 poetas
inovadores ou a barba de Ginsberg por 25 dólares. Depressa se
converteu num foco de ativismo político que defendeu, ente outras
causas, a legalização da marijuana. No dia 2 de janeiro de 1966 a
polícia tomou de assalto a loja e deteve o seu proprietário, acusado
de posse de literatura obscena e de ilustrações lascivas. Embora
tenha vencido em tribunal, não lhe devolveram o material
confiscado, e foi essa a razão pela qual teve de fechar o negócio.

Se através de uma complexa operação cultural, económica e


política, com o apoio de instituições tão diferentes como o MoMA ou
a CIA, os expressionistas abstratos se converteram durante os anos
50 nos herdeiros dos pintores vanguardistas europeus, foi graças à
confluência de uma nova força sociológica, novas formas de
entender a vida e a viagem e a música e a arte, performativas como
as pinceladas de Jackson Pollock, como a Geração Beat se tornou
herdeira da Geração Perdida e dos surrealistas franceses, ou seja,
dos suspeitos do costume da Rue de l’Odéon. Até depois da
Segunda Guerra Mundial, a Gotham Book Mart foi o equivalente,
nos Estados Unidos, da Shakespeare and Company original. Como
podemos ler no diário de Anaïs Nin, a livraria de Frances Steloff
«desempenhou o mesmo papel que a Sylvia Beach em Paris». O
mesmo contágio entusiasta, o mesmo apoio às poéticas mais
inconformistas: emprestaram cem dólares à própria Nin e
brindaram-lhe toda a publicidade possível para que a autoedição do
seu livro Un Hiver d’Artifice fosse possível, cuja publicação foi
celebrada com uma grande festa. Contudo, imediatamente depois
de Hiroxima, Frances Steloff não soube ver ou não quis ver o poder
dos beatniks, e a sua famosa livraria estagnou literariamente no
mundo pré-bélico, mas não no que diz respeito à arte: foi ela que
recomendou a Duchamp o artesão capaz de fabricar-lhe o protótipo
da sua célebre mala-museu, a sua montra exibiu uma instalação
dele a propósito do lançamento de um livro de Breton e, em
colaboração com Peggy Guggenheim, concebeu outra com a Art of
this Century em mente. Mas o gesto mais emblemático da livraria
ocorreu em 1947 e foi a fundação da James Joyce Society, cujo
primeiro sócio foi T.S. Eliot. Quase uma década antes, quando o
escritor irlandês ainda estava vivo, Steloff dedicou uma montra cheia
de ironia a Finnegans Wake inspirada num velório, sintonizando-se
com o nervo do presente. No entanto, relacionar a livraria com um
autor morto aproximou-a prematura e perigosamente do estatuto de
museu, embora fosse um estabelecimento ainda relativamente novo
(abriu em 1920 e só desapareceu em 2007) e a sua alma mater
tivesse pouco menos que 50 anos de idade e estivesse destinada a
ser uma livreira centenária. Basta ler Em Contacto com o Génio:
Memórias de Um Livreiro para constatar que, embora a Gotham
Book Mart sempre tenha defendido as pequenas revistas e os
fanzines, apoiando os jovens autores e a literatura de alta qualidade,
a sua memória manteve-se fiel às suas próprias raízes e reivindicou
sobretudo certa literatura da primeira metade do século XX, refletida
na edição da antologia We Moderns – 1920-1940. Os textos que
compõem as memórias foram publicados em 1975 e fazem lembrar
os de Beach: não em vão ambas as livreiras nasceram no mesmo
ano, em 1887, e consagraram as suas vidas à difusão dos mesmos
autores, encabeçados por Joyce. Neles, a livreira emula a sua
predecessora e torna-se uma observadora («Nunca me dirigia aos
clientes, a menos que parecessem precisar de ajuda») e uma
colecionadora de visitantes ilustres. Conheceu Beach em Paris e
coincidiram em diversas ocasiões, como nos conta num dos
capítulos das suas memórias, que acaba assim: «Muitos pensavam
nas nossas livrarias como se fossem projetos afins, embora eu
nunca tenha tido as facilidades que ela teve.» Nos anos 20 e 30, a
Gotham Book Mart foi, sobretudo, um foco de irradiação dos títulos
proibidos no país, a ilha onde se podiam encontrar tesouros como
os livros de Anaïs Nin, D.H. Lawrence e Henry Miller, de maneira
que era esse horizonte literário que cimentava a sua reputação e
que centrava os seus esforços de divulgação. Encontramos alusões
a ela na obra íntima desses autores. Por exemplo, numa carta do
autor de Trópico de Câncer a Lawrence Durrell:

«Naturalmente, as vendas não foram muito elevadas, nem de O Livro


Negro, nem do Max, mas vão-se vendendo aos poucos. Eu próprio
comprei, pagando do meu bolso, uma boa quantidade de livros teus que os
meus amigos me pediram. E agora que deixaram de ser censurados na
América, podemos chegar a algum lado, pelo menos através da Gotham
Book Mart. Daqui a aproximadamente 10 dias conto receber notícias
interessantes deles, pois escrevi-lhes para lhes contar como andam as
coisas. Suponho que o Cairns não teve tempo de ir ver-te; o barco zarpava
no dia a seguir à chegada dele. Mas tem uma opinião muito elevada sobre
ti e todos nós; é um tipo saudável, íntegro, um pouco ingénuo, mas no bom
sentido. Considero-o um bom amigo e, porventura, o meu melhor crítico na
América.»

A Gotham Book Mart e o seu célebre lema «Wise Men Fish


Here» aparece na banda desenhada Are You My Mother?, de Alison
Bechdel, onde se diz: «This bookshop has been here for ever, it’s an
institution.» A cultura sempre circulou tanto por circuitos alternativos
ao mercado institucional como pelos canais oficiais, e os escritores
sempre foram os maiores acionistas das poéticas afins; mas
interessa-me destacar a alusão de Durrell a Huntington Cairns para
compreender a complexidade das relações entre a arte e o poder
político nos Estados Unidos, porque se trata de um excelente leitor,
mas também do advogado que assessorava o Tesouro acerca da
importância das produções que pudessem ser consideradas
pornográficas. Por outras palavras: era um censor. Provavelmente, o
mais importante da sua época. A carta, escrita em Paris, em março
de 1939, acaba nem mais nem menos com as seguintes palavras:
«Sou zen aqui mesmo, em Paris, e nunca me senti melhor, mais
lúcido, mais seguro, com a cabeça mais no lugar. Só uma guerra
poderia desviar-me disto.» Noutra carta contemporânea que dirigiu a
Steloff para lhe oferecer as primeiras edições de Trópico de Câncer
e de Black Spring, leva a sua afirmação ainda mais longe: «A minha
decisão não se baseia no receio da guerra. Não me parece que este
ano haja uma, nem no ano que vem.» Ainda bem que se dedicou à
escrita e não às artes divinatórias.
Em 1959, Gay Talese cobriu a história de O Amante de Lady
Chatterley, um romance até à data proibido no país. Um juiz federal
atenuou a definição de obscenidade estabelecida pelo Supremo
Tribunal dois anos antes no caso de Samuel Roth v. Estados Unidos
da América por tráfico de pornografia:

«A anulação da apreensão do romance teve início graças às diligências


junto do tribunal de uma editora de Nova Iorque, a Grove Press, que
interpôs e ganhou um processo contra os Serviços Postais dos Estados
Unidos, que até então tinham agido com absoluta autoridade para proibir o
envio por correio de livros “porcos” e outros materiais condenáveis. O
triunfo jurídico da Grove Press foi celebrado de imediato pelos defensores
da liberdade literária como uma vitória nacional contra a censura e uma
confirmação da Primeira Emenda.»
E assim se punha termo a mais um dos infinitos capítulos da
censura que se foram sucedendo ao longo da História, como se já
no século XVIII não tivéssemos sido avisados por Diderot na sua
célebre Carta Histórica e Política sobre o Comércio dos Livros
(1763), uma dissecação sistemática do funcionamento do sistema
editorial, dos direitos de autor à relação do escritor com o impressor,
o editor e o livreiro, que, salvaguardando as distâncias, pode ser
aplicada a boa parte das parcelas em que ainda se divide legal e
conceptualmente o negócio da circulação de livros. O mesmo
Diderot que promoveu a Enciclopédia, que teve que vender a sua
biblioteca para pagar o dote da filha, que foi autor de outras
epístolas célebres, como as de Sophie Volland ou a Carta sobre Os
Cegos e Os Mudos, que talvez tenha sido amante da czarina da
Rússia e que publicou um dos grandes romances da primeira
modernidade, Jacques, o Fatalista, escreveu estas linhas sobre a
circulação dos títulos proibidos:

«Cite-me, por favor, uma dessas obras perigosas proscritas, impressas


clandestinamente no estrangeiro ou no reino, que em menos de quatro
meses não se tenha tornado tão comum como um livro privilegiado. Que
livro é mais contrário aos bons costumes, à religião, às ideias recebidas da
filosofia e à administração, numa palavra, a todos os preconceitos vulgares
e, consequentemente, mais perigoso, do que as Cartas Persas?
Porventura haverá alguma coisa pior? E, no entanto, há cem edições das
Cartas Persas, e não há um estudante que não encontre um exemplar por
12 moedas nas margens do Sena. Quem não tem um Juvenal ou um
Petrónio traduzidos? Já se perdeu a conta às reimpressões do
Decâmeron, de Boccaccio, ou dos Contos de La Fontaine [...]. Será que os
nossos tipógrafos franceses não podem imprimir no fundo da primeira
página “Por Merkus, em Amesterdão”, como fazem os operários do
Merkus? [...] O Contrato Social, impresso e reimpresso, troca-se por um
escudo sob o vestíbulo do palácio do soberano. O que significa isto? Pois
que nós não deixámos de conseguir ter acesso a estas obras; que
pagámos ao estrangeiro o preço de uma mão de obra a que um
magistrado indulgente e com melhor política teria podido poupar-nos, e
que desta maneira nos atirou para os braços dos vendedores ambulantes
que, aproveitando-se de uma dupla curiosidade, tripla devido à proibição,
nos venderam bem caro o perigo real ou imaginário a que eles se
expunham para a satisfazer.»

Enquanto as pequenas livrarias, tantas vezes fugazes, nutrem o


imaginário da literatura à margem da mainstream, as livrarias que se
gabam do seu enorme tamanho fazem-nos lembrar que a indústria
editorial não se baseia em títulos minoritários e refinados, mas na
produção em massa, semelhante à alimentar. A livraria de Nova
Iorque equivalente ao Hotel Chelsea em termos de independência,
duração e importância simbólica podia ser a Strand, com as suas
«28 milhas de livros», fundada em 1927 por Benjamin Bass, que a
legou ao seu filho Fred que, por sua vez, a deixou em herança a
Nancy, a sua filha, que em 2006 entregou o negócio aos filhos,
William Peter e Ava Rose Wyden: a expressão «negócio familiar» foi
inventada para eles. Quatro gerações e dois lugares diferentes: o
original, no «Book Row» da Rua Quatro, onde chegou a haver até
48 livrarias nos bons velhos tempos, das quais a Strand é a única
sobrevivente, e o atual, na esquina da Décima Segunda com a
Broadway.
José Donoso descreveu de modo eloquente a sua importância
num artigo intitulado «La obsesión neoyorquina»:

«No entanto, não é às grandes livrarias que vou: os meus passos dirigem-
se inevitavelmente para a Strand Bookstore, na esquina da Broadway com
a Décima Segunda, essa catedral de livros em segunda mão onde é
possível encontrar tudo, ou encomendar tudo, e onde todos os sábados à
tarde e domingos de manhã se podem ver celebridades da literatura e do
teatro e do cinema de calças de ganga e desmaquilhadas à procura de
qualquer coisa para alimentar as suas obsessões.»

Interessa-me a insistência na palavra tudo: essa ideia de que há


livrarias que são como a Biblioteca de Babel, por oposição a outras
que são como a mesa de Jakob Mendel no Café Gluck. A Strand
orgulha-se dos seus dois milhões e meio de títulos. O tamanho, a
quantidade, a extensão recorde como chamariz publicitário
acompanha um grande número de livrarias dos Estados Unidos, um
país megalómano por natureza. E no vizinho Canadá temos a
World’s Biggest Bookstore, em Ontário, instalada num antigo e
enorme recinto de bólingue. Os seus 20 quilómetros de estantes
foram imortalizados – por assim dizer – por essa máquina de
memorizar, esse leitor em piloto automático chamado «Número 5»,
na sequela do filme Curto-Circuito, quando a sua voracidade por
informação provoca um grande alvoroço na livraria. Neste lado da
fronteira, a fazer fé na publicidade, a maior livraria académica do
mundo encontra-se em Chicago. Durante os meses que vivi em
Hyde Park frequentei-a assiduamente: a Seminary Co-op Bookstore,
da Rua Cinquenta e Sete, o melhor refúgio quando nevava,
juntamente com a biblioteca da universidade. O que tinha de mais
característico era The Front Table, uma brochura impressa a cores
com recensões sobre as principais novidades; mas também havia
outras publicações culturais gratuitas. É uma dessas livrarias
eminentemente subterrâneas, em cujas salas podemos passar
muitos minutos a folhear livros na mais absoluta solidão. A sede, no
entanto, não era a da Rua Cinquenta e Sete, mas a que acolheu a
fundação da cooperativa: a que se encontrava nas caves do
Seminário de Teologia, em pleno campus, onde agora está o Becker
Friedman Institute for Research in Economics. Não em vão a
Universidade de Chicago tem orgulho dos seus 24 prémios Nobel de
Economia distribuídos por catedrádicos, investigadores convidados
e ex-alunos, embora ninguém de lá me tenha sabido dar
demasiadas pistas sobre a passagem de Saul Bellow e de John
Maxwell Coetzee pelos seus corredores e salas de aula neogóticas.
Na revista digital Gapers Block, pelo contrário, encontro o
testemunho de um livreiro, Jack Cella, que lembra que Bellow
adorava espreitar os livros recém-chegados quando eram
desembrulhados: os novíssimos membros da comunidade.

A Prairie Lights, pelo contrário, soube beneficiar da proximidade


do programa de escrita criativa mais famoso do país: o da
Universidade do Iowa. Na sua página constam os nomes e os
apelidos dos sete prémios Nobel da Literatura que os visitaram:
Seamus Heaney, Czesław Miłosz, Derek Walcott, Saul Bellow, Toni
Morrison, Orhan Pamuk e J.M. Coetzee. Trata-se do projeto pessoal
de Jim Harris, um licenciado em Jornalismo que decidiu investir uma
pequena herança no negócio dos livros e abrir uma livraria em 1978.
A sede atual, agora nas mãos dos seus antigos empregados, ocupa,
por coincidência, o mesmo espaço que albergou, nos anos 30, uma
sociedade literária onde se reuniam Carl Sandburg, Robert Frost e
Sherwood Anderson. Um dos ex-alunos do célebre Writer’s
Workshop, Abraham Verghese, no capítulo correspondente à Prairie
Lights de My Bookstore. Writers Celebrate Their Favorite Places to
Browse, Read, and Shop, escreveu que os seus livreiros também
eram, de algum modo, seus professores, «moldando as nossas
sensibilidades e, mais importante ainda, tratando-nos como
escritores a sério mesmo quando ainda não tínhamos semelhante fé
em nós próprios». Nesse mesmo volume, Chuck Palahniuk centra-
se na Powell’s City of Books e ironiza sobre os circuitos de
apresentação das novidades editoriais: Mark Twain morreu de
stresse durante uma digressão.
A paragem seguinte no nosso costa a costa livresco poderia ser
a Tattered Cover, de Denver, por onde passam todos os autores
importantes que se encontrem em digressão pelos Estados Unidos,
incluindo Barack Obama. O projeto é dirigido desde 1973 pela
ativista Joyce Meskis, uma autêntica líder civil, tão apreciada pelos
seus vizinhos e clientes que quase 200 pessoas colaboraram nas
mudanças da livraria, transportando caixas carregadas de volumes
para lugares próximos. Meskis aplica uma pequena margem de
lucro, entre um a cinco por cento do preço do livro, para poder
competir com as cadeias de livrarias e para demonstrar ao cliente
que ele é o grande protagonista e o grande beneficiado. Esta
amabilidade não é apenas pessoal e económica, também se traduz
em dezenas de cadeirões que, segundo a dona, servem para
recordar ao visitante que se encontra num lugar parecido com a sala
da sua própria casa. A Tattered Cover sempre esteve associada à
defesa dos direitos cívicos, mas em 2000 essa luta tornou-se notícia
nacional quando, ao abrigo da famosa Primeira Emenda, conseguiu
que o Supremo Tribunal do Colorado lhe desse razão após a polícia
a ter tentado obrigar a revelar a identidade do cliente que lhe tinha
comprado um livro que, segundo eles, ensinava a fabricar
manfetaminas. Afinal, tratava-se apenas de um manual de caligrafia
japonesa.
Dois mil quilómetros mais tarde – deixando Las Vegas e Reno à
esquerda –, chegamos a outra das livrarias norte-americanas a que
nenhum escritor em promoção pode dar-se ao luxo de não
comparecer, a mencionada Powell’s, de Portland, de que Palahniuk
deve gostar por se parecer com um casino: inúmeras salas
interligadas, um labirinto no qual cada uma das nove salas tem um
nome diferente (Dourada, Rosa, Púrpura), como as personagens do
filme Cães Danados, ou como um imenso bordel. À semelhança do
que sucede na Strand ou noutras livrarias megalómanas, a
qualidade é o tesouro a encontrar no meio de camadas e camadas
de quantidade. Nada mais nada menos do que um milhão e meio de
livros. Percorrê-la é fazer uma viagem com a bússola de um mapa
do estabelecimento: o objetivo talvez seja encontrar a Rare Books
Room, com os seus volumes dos séculos XVIII e XIX, ou
simplesmente ir até ao café para fazer uma pausa e descansar.
Porque a Powell’s, de Portland, é tão famosa pelo seu tamanho
(talvez seja realmente a maior do mundo), que se converteu numa
atração turística e, como tal, é constantemente percorrida por
visitantes do todo o imenso país. A Califórnia encontra-se no sul.
Para chegar a Los Angeles, onde Quentin Tarantino filmou a sua
obra-prima, onde foram projetadas e inclusivamente construídas
tantas livrarias de ficção, há que passar primeiro por Berkeley e por
São Francisco. Na pequena cidade universitária, vale bem a pena
visitar a Moe’s Books, um edifício com 200 mil livros novos, usados
e antigos; uma livraria com mais de meio século de história. Foi
fundada por Moe Moskowitz em 1959, de maneira que se
consolidou como projeto cultural nos políticos anos 60, incluindo
protestos contra a Guerra do Vietname. Em 1968, o livreiro foi preso
por vender títulos escandalosos (como banda desenhada de Robert
Crumb e livros de Valerie Solanas). Após a sua morte, em 1997, a
filha Doris tomou o leme, que agora partilha com o filho Eli: três
gerações de livreiros independentes. E na vizinha São Francisco
aguardam por nós quatro importantes livrarias californianas: a mais
antiga do estado (a Books Inc.), a mais famosa do país (a City
Lights), talvez a mais fascinante que conheço (a Green Apple
Books) e uma das mais interessantes no que diz respeito à arte e à
comunidade que alguma vez visitei (a Dog Eared Books).
A história da primeira remonta a meados do século XIX, em plena
febre do ouro, quando em 1853 o viajante suábio Anton Roman
começou a vender livros e instrumentos musicais aos mineiros de
Shasta City numa loja chamada Shasta Book Store, situada em
frente do El Dorado Hotel, cujos horizontes depressa expandiu com
a Roman’s Picture Gallery, pois não em vão aquilo era o deserto e
estava tudo por fazer: a cultura, a história, a música, a imaginação
da fronteira. Quatro anos mais tarde, mudou-se para São Francisco,
onde o negócio do texto e da imagem se aliou ao da impressão e da
edição próprias. Desde então, mudou de lugar e de nome tantas
vezes que a única coisa que permanece realmente é um slogan:
«The oldest independent bookshop in the West.»
Neste livro já se falou do estabelecimento que ainda hoje é
gerido pelo poeta Lawrence Ferlinghetti, com essa ligação francesa
que encontramos uma e outra vez na história da cultura norte-
americana. Como é óbvio, fica no centro da cidade: ao lado de
Chinatown e de Little Italy e da maioria dos ícones turísticos. A
Green Apple Books, pelo contrário, encontra-se numa periferia
possível: na principal artéria do mestiço bairro de Clement. Aparece
no romance The Royal Family, de William T. Vollmann, como aquilo
que realmente é: o lugar onde ir para quem anda à procura de
respostas. No caso da personagem novelesca, abre as Escrituras
Budistas e lê: «As coisas não vão nem vêm, também não aparecem
ou desaparecem, nem sequer as obtemos ou perdemos.» Eu, pelo
contrário, que durante a minha primeira visita a São Francisco
peregrinei cheio de devoção até à City Lights por ainda acreditar no
passaporte invisível, quando lá voltei, 10 anos mais tarde, e me
levaram à Clement Street, senti que tinha ganhado qualquer coisa
que jamais perderia.
Porque na sua harmonia entre livros novos e usados, na sua
calculada improvisação, nas suas dezenas de corredores,
passagens, desníveis e lanços de escadas, nas suas dezenas de
recensões manuscritas que guiam os leitores e os clientes na sua
escolha iminente, no chão de madeira, a Green Apple Books
mostra, sem rodeios, a sua vocação de livraria próxima e tradicional.
Uma livraria é constituída sobretudo pelo que destaca: os posters,
as fotografias, os livros recomendados ou expostos com uma ênfase
particular. Na Green Apple Books há uma moldura pendurada com a
Open Letter de Hunter S. Thompson, que chegou a São Francisco
em meados dos anos 60 atraído pelo magnetismo do movimento
hippie. As escadas são presididas por um enorme mapa dos
Estados Unidos; mas também há uma secção na entrada, chamada
«Read the World», onde se expõem e recomendam novidades em
tradução. E a parede direita do rés do chão é um verdadeiro museu
de máscaras africanas e asiáticas, uma obra de Richard Savoy, que
abriu o negócio em 1967 quando contava apenas 25 anos de idade
e a única experiência que tinha era a de operador de rádio da
American Airlines. E, sobretudo, há leitura. Porque na labiríntica
livraria da Clement Street encontramos, furtivos, quase escondidos,
como que confinados nos cubículos de um mosteiro budista ou nas
catacumbas dos primeiros cristãos, em silêncio, de todas as idades
e condições, de pé, de cócoras ou sentados: leitores. E isso não tem
preço.
Uma livraria é uma comunidade de crentes. E nenhuma
representa melhor esta ideia que a Dog Eared Books, a qual, desde
1992, criou uma autêntica atmosfera empática com os habitantes de
Mission District. Além de revistas, livros, discos e obras gráficas, na
montra desta livraria de esquina encontra-se a perfeita
representação do vínculo de carinho e respeito que uma livraria
deve criar com os seus clientes leitores: um altar dedicado aos
mortos que todas as semanas é atualizado pela artista Verónica de
Jesus. Nele, convivem vizinhos anónimos, amigos pessoais,
escritores e estrelas pop. Leitores famosos ou desconhecidos
irmanados pela morte e homenageados numa livraria que, acima de
tudo, se sente parte de um bairro.

Numa estante da Green Apple Books, alguém colou uma


fotografia da Marilyn Monroe a ler o Ulisses. O Corpo de Hollywood
a ler a Mente de um escritor irlandês exilado em Trieste ou em Paris.
Os Estados Unidos a lerem a Europa. Na velha comédia musical
Cinderela em Paris este tipo de binómios sofreu uma interessante
reviravolta. Por indicação do seu editor, um fotógrafo da moda
encarnado por Fred Astaire tem de encontrar uma nova modelo que
combine beleza e pensamento, alguém cujas ideias «sejam tão
boas como o seu aspeto». A livraria Embryo Concepts, de
Greenwich Village – inventada num estúdio de Hollywood –, é o
lugar onde se leva a cabo a operação de busca e captura: nela
conhece Jo Stockton, uma belíssima filósofa amadora (a cara e a
pele de Audrey Hepburn), a quem tenta convencer a acompanhá-lo
a Paris para participar num festival de moda. Ela aceita, não por
sentir uma especial predileção pela fotogenia, mas por ser uma
oportunidade para assistir às aulas de um filósofo especialista em
empaticalismo. É interessante a inversão dos papéis tradicionais
num filme de 1957: ele representa a superficialidade e ela a
profundidade. Porém, no fim, como corresponde a um musical, dão
um beijo que apaga, ou pelo menos congela, todos os desencontros
precedentes. Em Notting Hill o ponto de partida é inverso: ele (Hugh
Grant) é dono de uma livraria independente especializada em
viagens, e ela (Julia Roberts) é uma atriz de Hollywood. Quando ela
entra pela primeira vez no estabelecimento para dar uma vista de
olhos (a ficcional Travel Book Company é, na verdade, uma loja de
sapatos que agora se chama Notting Hill), ele tinha acabado de
surpreender um ladrão de livros, ao qual se dirige educadamente
para o informar sobre as opções de compra ou devolução do
exemplar que escondeu nas calças. É o ladrão que reconhece a
famosa atriz e lhe pede um autógrafo; o livreiro, pelo contrário,
limita-se a apaixonar-se por ela. Como lugar erótico, toda a livraria
é, por excelência, um lugar de encontro: entre livreiros e livros, entre
leitores e livros, entre leitores e livreiros, entre leitores viajantes. O
carácter de familiaridade partilhado por todas as livrarias do mundo,
a sua natureza de refúgio ou de bolha faz com que nelas, mais do
que noutros espaços, seja mais provável a aproximação. Essa
estranha sensação de saber, pelo título, que certo livro publicado em
árabe ou em japonês é de Tolstói ou de Lorca, ou pela fotografia do
autor ou por algum outro tipo de intuição. Essa experiência
partilhada de termos reencontrado alguém nalguma livraria do
mundo. Por isso, não é de estranhar que a ideia de alguém se
apaixonar numa livraria seja um consolidado topos literário e
cinematográfico. Na sequela Antes do Anoitecer, os dois
protagonistas de Antes do Amanhecer, o relato das horas mágicas
que partilharam ambos em Viena nove anos antes enquanto
realizavam viagens de comboio pela Europa em separado,
reencontram-se na Livraria Shakespeare and Company.
Coincidência feliz: ele converteu-se em escritor e é esse o lugar
onde os autores norte-americanos apresentam os seus livros em
Paris. O momento em que ele a reconhece possui a magia da
representação erótica clássica. Enquanto relata ao público o
argumento de uma história que gostava de escrever, um livro feito
de um presente mínimo e do máximo de recordações e que durasse
tanto como uma canção pop, acedemos, através de flashbacks, à
história principal da qual essa outra história superficial estaria, na
verdade, a dar conta, fragmentos do filme anterior, daquela noite
vienense. Então, ele vira-se para a direita e vê-a. Reconhece-a
imediatamente. Fica muito nervoso. Dispõem de apenas algumas
horas para retomarem a ponta que deixaram solta uma década
atrás. Na nossa mudança de século predomina o romantismo que
envolve a ideia de livraria, que fez dela um símbolo da
comunicação, da amizade, do amor, como se pode observar noutros
produtos da cultura popular, dos romances A Sombra do Vento e
Haunting Jasmine, às comédias românticas como Lembra-te de Mim
e Julia & Julia, ambas com cenas filmadas na Strand, e, sobretudo,
Você Tem Uma Mensagem, no qual uma livraria independente é
ameaçada pela sucursal de uma rede que acaba de abrir as suas
portas mesmo ao seu lado, sendo que a mulher que está à frente da
primeira (Meg Ryan) e o diretor da segunda (Tom Hanks) mantêm
uma relação epistolar sem conhecerem a cara ou o nome um do
outro.
O eros platónico: amar o conhecimento. Num capítulo da
primeira temporada da série televisiva Os Homens do Presidente,
mostra-se o aparato policial que rodeia o Presidente Bartlet sempre
que este se lembra de ir comprar livros antigos, pelos quais professa
um verdadeiro amor. A maior parte dos volumes que coleciona são
oitocentistas ou de princípios do século passado e bastante
peculiares: sobre a caça ao urso, o esqui alpino, Fedro, Lucrécio. Na
ficção contemporânea, a livraria significa o espaço do tipo de
conhecimento que não pode ser encontrado nas instituições oficiais
– na Biblioteca, na Universidade – porque, ao ser um negócio
privado, foge à regulação, e porque os livreiros ainda são mais
freaks do que os bibliotecários ou os professores universitários. É
por isso que o género fantástico e o de terror fizeram da literatura
gerida por um sábio atípico, que entesoura informações raras e
proibidas, uma constante equivalente à loja de antiguidades com
uma divisão ou uma cave secretas. Vários livros de banda
desenhada do nosso século insistem na ideia de livraria como
arquivo clandestino, como The Boys, de Garths Ennis e Darick
Robertson, onde a cave de uma loja de BD salvaguarda a memória
real do mundo super-heroico; o Neonomicon, de Alan Moore, em
cuja livraria é possível comprar todo o tipo de títulos sobre magia e
sadomasoquismo. Esta passagem do relato The Battle That Ended
the Century, de Lovecraft, ilustra na perfeição essa ideia do circuito
alternativo de uma subcultura à margem do sistema:

«O relatório de Mr. Talcum sobre os acontecimentos, ilustrado pelo famoso


artista KlarkashTon (que representou, esotericamente, os lutadores como
fungos sem ossos), foi impresso – após múltiplas rejeições por parte do
exigente editor de Windy City Grab-bag – sob a forma de folheto,
financiado por W. Peter Chef. Este folheto, graças aos esforços de Odis
Adelbert Kline, foi enfim posto à venda na livraria Smearum and Weep, até
que, finalmente, três cópias e meia foram vendidas graças à tentadora
descrição para catálogo proporcionada por Samuelus Philantropus, Esq.»

Contudo, não só o ocultismo, a magia, a religião ou os livros


proibidos pela Inquisição ou pelas ditaduras se encontram nas
recâmaras e nas caves das livrarias, qualquer título que possua uma
aura de secretismo, de pouco conhecido, de livro apenas para uns
happy few, essa imensa minoria, connaisseurs, iniciados, pode
ocupar essa cripta da relíquia ou da caixa-forte. Depois de
publicados, o acesso à imensa maioria é democrático: o seu preço é
calculado em função de fatores do presente. À medida que os anos
vão passando, dependendo da fortuna da obra e do autor, da sua
raridade ou da sua aura, da sua vigência enquanto clássico e do seu
poder de mito, o preço dispara e entra numa dimensão aristocrática,
ou desce até valer a mesma coisa que um despojo ou um pedaço
de lixo. Um livro pode ser objeto de perseguição tanto pelos seus
poderes mágicos como pelo seu poder de mercado, que muitas
vezes se combinam. Quando George Steiner, por exemplo,
rememora a sua descoberta da obra de Borges, fá-lo nestes termos:

«Lembro-me de um dos primeiros connaisseurs da obra de Borges a


mostrar-me, nas cavernosas traseiras de uma livraria de Lisboa – isto,
recordo, aconteceu nos primeiros anos da década de 50 –, a tradução de
Borges do Orlando de Virginia Woolf, o seu prólogo para uma edição
argentina de A Metamorfose, de Kafka, o seu importantíssimo ensaio
sobre a linguagem artificial inventada pelo bispo John Wilkins, publicado
em La Nación no dia 8 de fevereiro de 1942, e El tamaño de mi esperanza,
o mais raro de todos os tesouros, uma compilação de ensaios breves
publicada em 1926, mas que, por vontade do próprio Borges, não voltou a
ser editada. Estes pequenos objetos foram-me mostrados com um gesto
de fastidiosa arrogância. E com razão. Eu tinha chegado tarde ao lugar
secreto.»

Em Paris, a Livraria Alain Brieux faz conviver no mesmo espaço


livros e ilustrações antigas com crânios humanos e instrumental
cirúrgico do século XIX. Um autêntico gabinete de curiosidades. O
imaginário do alfarrabista como depósito de estranhezas oscila entre
os referentes reais e os cenários da imaginação, como tudo o que
afeta esse impulso humano a que chamamos «ficção». A Livraria
Flourish & Blotts, no beco Diagon, de acesso reservado e situado
precisamente atrás da londrina Charing Cross Road, é um dos
estabelecimentos onde Harry Potter e os seus colegas aprendizes
de magos se dirigem para se abastecerem de material escolar no
início de cada ano letivo. As filmagens da versão cinematográfica do
livro decorreram na Livraria Lello & Irmãos, do Porto. A livraria de
Monsieur Labisse em Hugo, com um encanto similar, foi, pelo
contrário, fabricada ex professo para o filme. Para tal, foram
necessários 40 mil livros. Foi também num estúdio de Hollywood
que Alfred Hitchcock replicou a Livraria The Argonaut, de São
Francisco, para as filmagens de uma célebre cena de Vertigo. No
guião, descreve-se o local, rebatizado como The Argosy, nos
mesmos termos que temos estado aqui a referir: ênfase na sua
antiguidade, cena crepuscular, saturação de velhos volumes que
asseguram um conhecimento marginal e, sobretudo, a
especialização na Califórnia dos pioneiros que justifica a visita de
Scottie, que andava à procura de dados sobre «a triste Carlotta»,
como a define Pop Leibel, o livreiro ficcional inspirado no autêntico
Robert D. Haines, que se tornou amigo de Hitchcock após as visitas
deste a The Argonaut. «Ela morreu», prossegue Leibel. «Como?»,
pergunta Scottie. «Pela sua própria mão», responde o livreiro,
sorrindo com tristeza: «Há tantas histórias...» No final do guião da
cena pode ler-se: «Escureceu no interior da livraria e as figuras
ficaram reduzidas a silhuetas.»
Acabo de descobrir na internet que a Livraria Book City, de
Hollywood, fechou. Era um enorme armazém de volumes em
segunda mão e em saldo, uma espécie de réplica da Strand, na
Costa Oeste, a dois passos do Passeio das Estrelas. Também
vendiam guiões. Havia grandes caixas de cartão cheias de selos a
dez, cinco, um dólar: a preço de pulp, de polpa, guiões
dactilografados, agrafados, guiões que nunca foram filmados, talvez
nem sequer lidos, comprados a peso às produtoras que os recebiam
e recebem em excesso, com capas pretas e brancas, opacas e
transparentes, de plástico, encadernados com espirais de plástico, o
mesmo plástico de que tanto gostava Andy Warhol.

«Está a ler o Ulisses, de James Joyce, em circunstâncias


suspeitas, dado que lê o mesmo livro – o mesmo exemplar –
em sítios diferentes e vestida de outra maneira, como quem lê
a mesma página a partir da qual já não é capaz de avançar
por não poder sair dela, ou por não poder regressar ao interior
do livro, como se no primeiro caso estivesse a viver o fim de
uma era de leitura (uma despedida da última página legível) e,
no segundo, o princípio de outra (a chegada ao mundo da
ilegibilidade).»

JUAN JOSÉ BECERRA


La Interpretación de un Libro.

1 «Amo Los Angeles. Amo Hollywood. São tão belos. São todos de plástico, mas amo o
plástico. Quero ser plástico.» (N. da T.)
América (2) – De norte a sul

«Era uma pequena livraria da Rue du Cherche-Midi, era um ar


suave de pesadas voltas, era a tarde e a hora, era do ano a
estação florida, era o Verbo (no início), era um homem que se
julgava um homem. Que estupidez infinita, meu deus. E ela
saiu da livraria (só agora me apercebo de que era como uma
metáfora, ela a sair nem mais nem menos que de uma livraria)
e trocámos duas palavras, e fomos beber uma taça de Pelure
d’Oignon a um café da Sèvres-Babylone.»

JULIO CORTÁZAR, O Jogo do Mundo

A LIVRARIA LEONARDO DA VINCI, no Rio de Janeiro, deve ser a mais


poetizada do mundo. Márcio Catunda dedicou-lhe o poema «A
livraria», no qual descreve a paisagem que leva até às suas
entranhas no subsolo do Edifício Marquês do Herval, essas montras
raivosamente iluminadas para criar dias artificiais. Quem mo
fotocopiou foi Milena Piraccini, a diretora, com quem me lembro de
ter conversado sobre a história de uma instituição que no ano
anterior – estávamos em finais de 2003 – tinha celebrado meio
século de existência. Cada um de nós estava numa secretária
diferente, onde duas grandes calculadoras faziam as vezes de
falsas caixas registadoras, a informática proscrita, ao pé de uma
coleção completa de «La Pléiade». A mãe, Vanna Piraccini, italiana
de pai romeno, encarregou-se oficialmente do negócio em 1965,
após a morte do marido, Andrei Duchiade, mas foi ela quem
assumiu as rédeas desde o início.Vanna enfrentou as maiores
adversidades da história do negócio e superou-as: as recessões
económicas, a longa ditadura militar e o incêndio que, em 1973,
destruiu a loja por inteiro. O seu amigo Carlos Drummond de
Andrade escreveu: «A loja subterrânea / expõe os seus tesouros /
como se os defendesse / de fomes apressadas.»
Desde 1994, na mesma galeria subterrânea e à frente dela, há
outra livraria também destinada a tornar-se histórica: a Berinjela.
Fundada por Daniel Chomski – como me contou o editor Aníbal
Cristobo, que viveu no Rio em inícios do século –, «é um lugar que
faz lembrar o do filme Smoke: um ponto de encontro de escritores
que tão depressa se pode converter em chancela discográfica,
como numa editora (responsável pelos quatro números da Modo de
Usar, talvez a melhor revista de poesia contemporânea do Brasil),
ou num reduto quase clandestino para a organização de
campeonatos de futebotão, um desporto misterioso». Entre ambos
os estabelecimentos gera-se uma energia parecida – suponho eu –
com a que em tempos se terá sentido na Rue de l’Odéon, mas
subterrânea.
À Livraria Leonardo da Vinci foi dedicado outro poema, «A
cidade e os livros», de António Cícero, que também conservo
fotocopiado:

«O Rio parecia inesgotável


àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia – e de repente,
anónimo entre anónimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim –, entrar em becos,
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugares que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.»

Esse é o olhar do adolescente sobre a cidade e os seus espaços


e a sua cultura. Um olhar erotizado que devora. Para Juan García
Madero, a poesia – no início – encontra-se na Faculdade de
Filosofia e Letras da UNAM e no seu quarto do bairro Lindavista,
mas depressa se desloca para certos bares e cafés e casas
realvisceralistas e livrarias onde, nos dias de solidão, quando faltava
alguém com quem conversar, anestesiar a fome. Nas primeiras
páginas de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño, a literatura
sexualiza-se: não poderia ser de outro modo, tratando-se de
protagonistas adolescentes. Juan descobre um poema de Efrén
Rebolledo, recita-o, imagina uma empregada de mesa a cavalgá-lo
e masturba-se várias vezes. Pouco depois, uma das reuniões
literárias acaba num broche. Enquanto a bebida e o sexo presidem
à literatura noturna, a diurna está marcada pelas livrarias, em cujo
labirinto tenta encontrar «dois amigos desaparecidos»:

«Já que não tenho nada para fazer, decidi ir à procura do Belano e do
Ulises Lima nas livrarias do D.F. Descobri o alfarrabista Plinio el Joven, na
Venustiano Carranza. A Livraria Lizardi, na Calle Donceles. O alfarrabista
Rebeca Nodier, na esquina da Mesones com a Pino Suárez. Na Plinio el
Joven, o único empregado era um velhinho que, depois de atender
obsequiosamente um “estudioso do Colegio de México”, não demorou a
adormecer numa cadeira que estava ao lado de uma pilha de livros,
ignorando-me soberanamente, e a quem roubei uma antologia da
Astronómica, de Marco Manilio, com um prólogo de Alfonso Reyes, e o
Diário de Um Autor sem Nome, de um escritor japonês da Segunda Guerra
Mundial. Na Livraria Lizardi creio que vi o Monsiváis. Sem que ele se
apercebesse, aproximei-me para ver que livro estava a folhear, mas
quando cheguei ao pé dele, o Monsiváis virou-se, olhou para mim
fixamente, creio que esboçou um sorriso e, com o livro bem seguro e
ocultando o título, foi falar com um dos empregados. Espicaçado pela sua
atitude, subtraí um livrinho de um poeta árabe chamado Omar Ibn al-Farid,
editado pela universidade, e uma antologia de jovens poetas norte-
americanos da City Lights. Quando saí, o Monsiváis já lá não estava.»

A passagem pertence a uma série – os dias 8, 9, 10 e 11 de


dezembro da primeira parte, Mexicanos Perdidos en México, (1975)
– consagrada à dimensão livresca do Distrito Federal e à
bibliocleptomania: essa prática tão velha quanto os próprios livros.
Sucedem-se as descrições das visitas às livrarias Rebeca Nodier,
Sótano, Mexicana, Horacio, Orozco, Milton, El Mundo e Batalla del
Ebro, cujo «dono é um velhote espanhol chamado Crispín Zamora»,
a quem confessa «que roubava livros porque não tinha dinheiro».
Ao todo: dois livros que Don Crispín lhe oferece e vinte e quatro que
rouba em três dias. Um deles é de Lezama Lima: jamais saberemos
qual. É inevitável que num romance de formação a livraria surja
relacionada com a voracidade do desejo. Em Paradiso, uma das
personagens sofre de uma disfunção sexual relacionada com os
livros, e um amigo prega-lhe uma partida, precisamente, numa
livraria:

«Quando entrou o livreiro, perguntou-lhe: – Já chegou o Goethe, de James


Joyce, que acabou de ser publicado em Genebra? – O livreiro piscou-lhe o
olho, percebendo o tom trocista da pergunta. – Não, ainda não, mas
estamos à espera dele por estes dias. – Quando chegar, guarde-me um
exemplar – disse-lhe a pessoa que estava a falar com Foción, que não
percebia a piada de ser referida uma obra jamais escrita. A voz era grossa,
com um salivar de merengue endurecido, revelando, por outro lado, o suor
das mãos e da testa a violência das suas crises neurovegetativas. – Na
mesma coleção aparece um Sartre chinês do século sexto antes de Cristo
– diz Foción –, pede-o ao livreiro, para que ele também to guarde. – Um
Sartre chinês terá encontrado algum ponto de contacto entre o wu wei e o
nada dos existencialistas sartrianos.»
A conversa disparatada prossegue com outros livros inventados,
até que o interlocutor do livreiro abandona o estabelecimento, sobe
a Calle Obispo e entra no quarto do hotel onde vive. Então, o
narrador conta-nos que padecia de «uma crise sexual que se
revelava numa falsa e apressada inquietude cultural, tornada
patológica perante as novidades das livrarias e a publicação de
obras raras». Foción sabe-o e desfruta destas loucuras transitórias
no «labirinto», que é como chama às livrarias. A ereção. O fetiche. A
acumulação de mercadoria. Acumular experiências eróticas é como
somar leituras: o seu rasto é virtual, pura memória. Roubar ou
comprar livros, ou que no-los ofereçam, significa possuí-los: para
um leitor sistemático, a configuração da sua biblioteca pode ler-se,
se não como um correlato da sua vida inteira pelo menos como um
paralelismo da sua construção como pessoa durante a juventude,
quando essa posse era decisiva.
Guillermo Quijas tinha 18 anos quando o avô, o mestre-escola e
livreiro Ventura López, lhe pediu que levasse o ficheiro de um livro a
um desenhador, que depois fosse à imprensa e que, finalmente,
trouxesse os exemplares. Como por arte de magia, de um dos bytes
invisíveis apareceram volumes com páginas, cheiro e peso. Mas
aquele título não surgia, na verdade, do nada: a sua existência fazia
parte de uma cadeia de sentido que retrocedia no tempo até aos
anos 30 do século XX, quando um novíssimo Ventura López fez das
tripas coração para que lhe dessem uma bolsa para poder tirar o
curso que lhe permitiria obter o título de professor normalista do
Ensino Rural e, algum tempo depois, de professor do Ensino
Primário. Por ter promovido uma cooperativa agrária e por se ter
filiado no Partido Comunista em 1949, foi impedido de dar aulas.
Então, juntamente com alguns colegas que se encontravam numa
situação semelhante, criou um fundo comum que tornou possível a
abertura de uma livraria com vocação de centro cultural e projeto
alfabetizador, que também acabou por ter uma linha editorial de
livros de cultura local. O Mestre faleceu em 2002, mas a Provedora
Escolar ainda existe em Oaxaca graças à vocação do neto. As suas
duas instalações herdadas e as cinco novas convivem com o projeto
pessoal de Quijas, a Editora Almadía, uma palavra de origem árabe
que significa barco.

Enquanto as livrarias de livros novos costumam primar pela


ordem, nos alfarrabistas reina o caos: a acumulação desordenada
do saber. Muitas vezes, os próprios nomes das livrarias sugerem
essa condição. Na Calle Donceles e adjacentes encontram-se a
Inframundo, a El Laberinto ou a El Callejón de los Milagros, livrarias
não informatizadas onde encontrar um livro depende,
exclusivamente, do seu precário sistema de classificação, da sorte
ou perícia do cliente e, sobretudo, da memória e da intuição do
livreiro. Ecos da gruta ou da cova, da livraria de Zaratustra que
Valle-Inclán – esse escritor hispano-mexicano e universal, um crânio
privilegiado – descreveu em Luzes da Boémia: «Pilhas de livros
fazem entulho e cobrem as paredes. Empapelam os quatro vidros
de uma porta quatro cromos pavorosos de um dramalhão em
fascículos. Na cova, os tertulianos são um gato, um papagaio, um
cão e um livreiro.» Em Caracas encontra-se a La Gran Pulpería del
Libro, que leva até às últimas consequências a realidade de uma
livraria subterrânea, superando-a: os livros amontoam-se no chão
como se se tivessem derramado de umas estantes que durante
anos os tentaram conter. Numa entrevista, perguntaram ao dono, o
historiador e jornalista Rafael Ramón Castellanos, que fundou o
negócio em 1976 e combinou, desde então, o trabalho de livreiro
com a escrita, qual era o sistema de classificação da livraria, e ele
respondeu que as tentativas para a informatizar tinham fracassado e
que estava tudo na sua «memória, dos meus assistentes e do meu
filho Rómulo».
Num almoço com Ulises Milla em meados de 2012, num
restaurante caraquenho, pensei que nunca mais estaria tão perto
(pelo menos foneticamente) do Ulises Lima. A história que me
contou é a história do exílio de Espanha e da América Latina, a
história das migrações que povoaram aquele território e que
construíram uma cultura cujo mapa arterial Bolaño desenhou com
traços desgarrados. Livrarias que convertem a dor, que é longa e
natural e que sempre vence, em memória particular, que é humana
e breve e sempre escorregadia. Benito, Leonardo e Ulises: três
gerações de editores e livreiros com um apelido que sugere
velocidade, distância e tradução. «Ulises Milla» – pensei naquele
restaurante de carne guarnecida com queijo-creme e abacate – é
quase uma tautologia. Durante 15 anos dedicou-se ao desenho
gráfico, como uma estratégia para tentar esquivar-se à herança
familiar, mas desenhava livros. E acabou por se converter em editor
e livreiro.
Benito Milla nasceu em Villena, Alicante, em 1918, e, enquanto
secretário da Juventud Libertaria de Cataluña, fez parte do exílio
republicano de 1939. Passados uns anos em Paris, onde nasceu o
seu primogénito Leonardo, a mulher convenceu-o («a minha avó
está por detrás de todas as mudanças do meu avô») a irem para
Montevideu, onde começou com uma banca de livros na Plaza
Libertad e acabou por fundar a Editorial Alfa e dirigir várias revistas
culturais ao longo de 15 anos de vida, entre 1951 e 1967, anos de
crise económica e de conflitos políticos no Uruguai que
desembocariam na ditadura militar da década seguinte. «O meu avô
abandona Montevideu em 1967, rumo a Caracas, para dirigir a
recém-criada Monte Ávila Editores», contou-me. «A Alfa de
Montevideu passou para as mãos do meu pai, e em 1973 mudámo-
nos para Buenos Aires com a editora às costas, mas tivemos de sair
de lá por causa da chegada dos militares quando Perón morreu;
Leonardo só desembarca em Caracas em 1977, altura em que
começa o período venezuelano da Alfa, que, por causa de uns
percalços administrativos, teve de passar a chamar-se Alfadil.» O
projeto do avô ainda teria de contar com uma terceira fase em
Barcelona («a minha avó é catalã») entre 1980 e até à sua morte,
em 1987, como sócio da Editora Laia. Que acabou mal. Fecha-se o
círculo. Como se os círculos, que são espaços concretos, pudessem
fechar-se no tempo múltiplo dos universos paralelos. Foi o editor de
Juan Carlos Onetti, Eduardo Galeano, Mario Benedetti, Cristina Peri
Rossi (há orgulho na voz de Ulises). Do anarquismo avançou para
um humanismo cuja palavra-chave – como recordou Fernando
Aínsa – era ponte: entre os seres humanos e as suas leituras, entre
os países da América Latina, entre ambas as margens do Atlântico.
E entre as diferentes gerações de uma mesma família: Leonardo
Milla, que quando era criança só tomava o pequeno-almoço depois
de se vender o primeiro livro do dia, converteu a Editorial Alfa no
Grupo Editorial Alfa nos anos 80, e expandiu a sua rede de livrarias
(«mas nunca teve consciência de que aquilo podia ser considerado
uma cadeia»), com as duas instalações da Ludens e as três da
Alejandría 332 a.C. (o ano em que Alexandre, o Grande, derrotou os
persas no Egito e empreendeu a construção da cidade e do seu
mito).
Enquanto inventava uma língua própria a partir da taquigrafia, a
que chamava «la taqui», e da qual se conservam numerosos
escritos ainda por decifrar, Felisberto Hernández e a mulher, a
pintora Amalia Nieto, abriram, em 1942, uma livraria, El Burrito
Blanco, na garagem da casa dos sogros. É claro que foi um
fracasso. Montevideu é uma cidade misteriosa e a capital de um
misterioso país cheio de histórias e de episódios como este. Tem
qualquer coisa da Suíça ou de Portugal nas suas dimensões e nas
suas velocidades. Durante o tempo que passei na Argentina,
costumava viajar de três em três meses até ao país vizinho para
renovar o meu visto de turista, receber o dinheiro das minhas
colaborações no suplemento cultural de El País e visitar as suas
livrarias repletas de livros argentinos fora do mercado e de livros
uruguaios que só se podiam comprar no Uruguai, como os da
delegação local da Alfaguara ou da Trilce. Em cada nova incursão
fui descobrindo camadas de uma história de migrações periódicas.
Foi por isso que não estranhei encontrar mais um dos seus vestígios
no Peru, anos mais tarde, na minha única visita à sua capital.
Na El Virrey, de Lima, há um canto com um tabuleiro de xadrez
entre dois cadeirões. As ventoinhas do teto giram lentamente, como
uma batedeira desprovida de violência. Tudo é madeira, livros e
madeira. E a lembrança longínqua do exílio. Queria conhecer a
história da livraria, e com essa intenção perguntei à livreira se existia
algum documento escrito que a resumisse. Chamava-se Malena.
Disse que tinha de falar com a mãe e deu-me o e-mail de Chachi
Sanseviero, a quem escrevi de imediato com a intenção de marcar
uma entrevista. Não foi possível, deu como pretexto uma afonia,
mas anexou na resposta o texto que escrevera a pedido da revista
Cuadernos Hispanoamericanos. A El Virrey de Lima abriu as suas
portas em 1973 com as poupanças previstas para um longo exílio
uruguaio. No seu logótipo vê-se o inca Atahualpa com um livro
numa mão e um quipo na outra: os dois sistemas de comunicação
das duas culturas, a imposta e a original, num único corpo
assimilado. Pelos vistos, o chefe inca, quando soube que aquele
livro se vendia como o portador da autêntica história do deus
verdadeiro, atirou-o ao chão para reafirmar que a verdade estava do
lado do seu próprio panteão. No seu texto, Chachi fala do livreiro
como de alguém que adia sempre a leitura e converte os livros em
«eternos candidatos», «porque, tirando algumas exceções, nunca
os lê até ao fim». Folheia-os, começa a leitura, leva-os para cima do
balcão, talvez mesmo para casa, para cima da secretária ou da
mesa de cabeceira, onde também não os acabará de ler.
A tradição familiar voltou a bifurcar-se ou deu uma inesperada
pirueta em 2012, quando Malena e o irmão Walter abriram a sua
própria livraria, a Sur, com a missão de trilhar o caminho que o pai,
Eduardo, lhes indicara. Vejo na internet que se trata de uma livraria
encantadora, na qual as linhas retas das estantes e as curvas das
mesas de novidades se aliam para dar ao livro um protagonismo
absoluto. Às vezes penso que a internet é o limbo onde me esperam
as livrarias que ainda não pude conhecer. Um limbo de espectros
virtuais.
«Em 1999, depois de voltar da Venezuela», escreveu Bolaño
referindo-se ao Prémio Rómulo Gallegos, «sonhei que me levavam
à casa onde estava a viver Enrique Lihn, num país que bem podia
ser o Chile e numa cidade que bem podia ser Santiago, se
acharmos que o Chile e Santiago já tiveram qualquer coisa de
inferno». Depois de passar os anos cruciais da adolescência na
Cidade do México, numa rota inversa à de Ernesto Guevara, 20
anos antes dele, Bolaño desceu por via terrestre até ao Chile em
1973 com a intenção de apoiar a revolução democrática de Salvador
Allende. Foi detido poucos dias depois do golpe de Pinochet e só se
salvou de uma morte provável porque um dos polícias que o
custodiava tinha andado com ele na escola. Regressou ao México
também por terra, para acabar de viver as experiências que mais
tarde nutririam a sua primeira obra-prima. Quando cheguei à capital
chilena, ele estava morto há três meses. Na livraria do Fondo de
Cultura Económica comprei as edições da Planeta de A Pista de
Gelo e de A Literatura Nazi nas Américas. Nesta última, as duas
biografias mais extensas pertencem aos «fabulosos irmãos
Schiaffino (Italo e Argentino, «El Grasa») e a Carlos Ramírez
Hoffman («El Infame»). Dois argentinos e um chileno.
Embora tenha passado a maior parte da vida no México e em
Espanha e, por extensão, estas sejam as duas principais paisagens
geográficas e vitais da sua obra, no que ao cânone diz respeito
Bolaño moveu-se sobretudo no Cone Sul. Como latino-americanista,
conhecia profundamente a obra de todo o continente; como catalão
e espanhol de adoção, a dos seus contemporâneos; como
apaixonado pela poesia francesa, aprendeu dos seus grandes
mestres; como leitor compulsivo, devorou todos os títulos da
literatura universal que lhe apareceram pela frente. Durante a sua
juventude mexicana combateu a figura de Octavio Paz, o que essa
figura – em termos de política cultural – significava; durante a sua
vida adulta foi encontrando inimigos periódicos, traduções literárias
dos exércitos contra os quais combatia nas suas reuniões de Blanes
com amantes dos jogos de guerra e de estratégia. E, no entanto,
sentia-se, sobretudo, parte da tradição do Cone Sul – se é que essa
tradição realmente existe –, e no seu ambicioso cérebro de escritor
essa tradição dividia-se em duas: uma poética e outra narrativa. O
Chile e a Argentina. Como poeta, Bolaño sentia-se perto de Lihn e
de Nicanor Parra. E perto e longe, ao mesmo tempo, de Pablo
Neruda, que está para a poesia chilena como Borges para a
narrativa argentina: são Monstros, Pais, Saturnos devoradores de
filhos. Não deixa de ser curioso que Juan Rulfo não fosse visto
assim pelos escritores mexicanos da segunda metade do século
passado, e que Paz, pelo contrário, tivesse essa dimensão
portentosa e castradora (e mesmo Carlos Fuentes). Muitas vezes
pergunto-me o que teria acontecido se Rulfo se tivesse convertido
no principal modelo dos escritores hispano-americanos da nossa
viragem do século e tivesse ocupado o lugar que a História reservou
a Borges. Juan Rulfo, o rural, o anacrónico, o minimalista, o que
olhava para o passado, o que acreditava na História, o que disse
«não», em vez de Jorge Luis Borges, o urbano, o moderno, o
preciso, o que olhava para o futuro, o que desprezava a História, o
que disse «sim». Em «Um Carnet de Baile», Bolaño conta a história
do seu exemplar de Vinte Poemas de Amor e Uma Canção
Desesperada, que percorreu um longo caminho «por diversas
aldeias do Chile, depois por várias casas da Cidade do México,
depois por três cidades de Espanha»; e conta que aos 18 anos leu
os grandes poetas latino-americanos, e que os seus amigos se
dividiam entre vallejianos [de César Vallejo] e nerudianos [Pablo
Neruda], e que ele «era parriano [Nicanor Parra] no vazio, sem a
menor dúvida», e que «há que matar os pais, o poeta é um órfão
nato». A poesia chilena, neste texto, organiza-se como os parceiros
de dança: «Os nerudianos na geometria com os huidobrianos
[Vicente Huidobro] na crueldade; os mistralianos [Gabriela Mistral]
no humor com os rokhianos [Pablo de Rokha] na humildade; os
parrianos no osso com os lihnianos [Enrique Lihn] no olho.» A sua
aliança com Parra e Lihn sofre da fissura de Neruda, a brecha pela
qual se esgueira a imensidão nerudiana, essa influência da qual
nenhum poeta na nossa língua pode escapar. Em «Um Carnet de
Baile», a constatação das contradições políticas de Neruda levam a
um excurso alucinado sobre Hitler, Estaline e o próprio Neruda, e a
uma passagem genuinamente bolañiana sobre a repressão
institucional e as valas comuns e as Brigadas Internacionais e os
cavaletes de tortura.

«58. Quando for grande quero ser nerudiano na sinergia. 59. Perguntas
antes de adormecer. Porque é que o Neruda gostava de Kafka? Porque é
que o Neruda não gostava de Rilke? Porque é que o Neruda não gostava
do De Rokha? 60. Gostava de Barbusse? Tudo leva a crer que sim. E de
Shólojov. E do Alberti. E do Octavio Paz. Estranha companhia para viajar
até ao Purgatório. 61. Se o Neruda tivesse sido cocainómano,
heroinómano, se tivesse sido morto por um pedregulho na Madrid sitiada
de 36, se tivesse sido amante de Lorca e se tivesse suicidado depois da
morte dele, a história seria outra. Se Neruda fosse o desconhecido que no
fundo verdadeiramente é!»

Quando a irmã lhe ofereceu o libro de Neruda, Bolaño estava a


ler as obras completas de Manuel Puig. Na prática do conto foi em
«Sensini» (de Chamadas Telefónicas) onde melhor definiu a sua
filiação com a narrativa artística, comprometida e de esquerda
argentina através da figura de Antonio Di Benedetto. Na teoria do
ensaio, foi em Derivas de la Pesada que o escritor chileno se
posicionou relativamente à tradição narrativa argentina, abordando
sem rodeios a questão do cânone. Repetidamente, Bolaño recordou
a sua dívida para com Borges e Cortázar, sem os quais não se
compreende a ambição enciclopédica da sua obra, o seu trabalho
com a autoficção e com o conto ou as estruturas – nos caminhos
abertos por O Jogo do Mundo – de Os Detetives Selvagens e de
2666. Foi sobretudo nesse texto que, para se proclamar seu máximo
herdeiro, levou a cabo uma crítica drástica dos seus
contemporâneos argentinos através dos atalhos ou subterfúgios que
escolheram para esquivar a centralidade borgesiana: os que
seguiram Osvaldo Soriano, os que viram em Roberto Arlt o Anti-
Borges, os que reivindicaram Osvaldo Lamborghini. Ou seja, muitos
escritores que não são mencionados, Ricardo Piglia e César Aira.

Durante os três ou quatro dias que passei em Santiago decidi,


sem dúvida precipitadamente, que a livraria que mais me
interessava na cidade era a Libros Prólogo. Na altura, escrevi o
seguinte apontamento:
«Não é tão grande como a Librería Universitaria de La Alameda (com o
seu chão alcatifado e o seu look dos anos 70), nem como a cadeia Feria
Chilena del Libro, nem tem o encanto dos alfarrabistas da Calle San Diego,
mas a Prólogo possui um bom fundo de catálogo e encontra-se na Calle
Merced, ao lado de um cinema, de um teatro e de um café, e perto dos
antiquários e dos alfarrabistas da Calle Lastarria.»

Não conservo mais apontamentos. Na minha memória é um


lugar de resistência, um centro que alimentou a vida cultural durante
a ditadura, mas não disponho de meios para provar esta informação
e, por conseguinte, não sei realmente. Nos motores de busca, não
deixou qualquer rasto. Talvez não tenha passado de um delírio de
um viajante seduzido por Noturno Chileno, o romance em que
Bolaño constrói o discurso alucinante do sacerdote Sebastián
Urrutia Lacroix que, sob o pseudónimo Ibacache, celebra a poesia
reacionária e selvagem de Ramírez Hoffman em Estrela Distante e
que, na reta final da ficção, evoca as lições de teoria política à Junta
Militar e as tertúlias literárias na casa de Mariana Callejas. A
personagem está inspirada no sacerdote do Opus Dei José Miguel
Ibáñez Langlois que, no jornal El Mercurio, assinava com o
pseudónimo Ignacio Valente, autor de livros de teoria filosófica e
teológica (O Marxismo: Visão Crítica; Doutrina Social da Igreja), de
crítica literária (Rilke, Pound, Neruda: Três Chaves da Poesia
Contemporânea; Para Ler Parra; Josemaría Escrivá, como Escritor)
e de poesia com tendência para o oxímoro no título (Poemas
Dogmáticos). Não só era o crítico literário mais importante da
ditadura e da transição, como também deu um seminário sobre
marxismo à Junta Militar. Por outras palavras, Pinochet foi aluno
dele. Pinochet: o leitor, o escritor, o amante de livrarias. Ricardo
Cuadros escreveu:

«Ibáñez Langlois nunca reconheceu ou negou ter frequentado os saraus


literários de Mariana Callejas no casarão do bairro alto de Santiago, onde
vivia com o marido, o agente da DINA1 Michael Townley. Estas reuniões
aconteceram mesmo, e nas caves do casarão foi torturado até à morte,
entre outros, o funcionário espanhol da ONU Carmelo Soria.
Essa cave de uma casa tomada2 é a antítese exata do que a
grande maioria das livrarias do mundo foram, continuam a ser e
sempre serão. Houve e há livrarias com o nome do conto de
Cortázar em várias cidades (Bogotá, Lima, Palma de Maiorca...),
porque o título emancipou-se do conteúdo do texto e passou a
significar «espaço tomado por livros». No entanto, o relato, pelo
contrário, fala de como estes desaparecem. O narrador de «Casa
Tomada» lamenta o facto de não chegarem novidades às livrarias
francesas de Buenos Aires desde 1939, e de não poder continuar a
alimentar com elas a sua biblioteca. Admitindo uma interpretação
política do relato e a ideia de que o escritor criou uma metáfora do
peronismo como invasão dos mais íntimos redutos, será lícito
concluir que não é por acaso que a parte da casa a ser ocupada em
primeiro lugar inclui a biblioteca. O protagonista é leitor e a irmã
dedica-se à tecelagem. Porém, a partir dessa primeira ocupação a
leitura vai sendo apagada da sua vida. Quando a casa é
definitivamente tomada e os irmãos fecham a porta para sempre, só
levam com eles a roupa que trazem no corpo e um relógio, nenhum
livro, o fio cortado: «Quando viu que os novelos tinham ficado no
outro lado, largou o tecido sem olhar para ele.»
Uma década depois, regressei a Santigo do Chile e senti-me, de
repente, num estado de transe, de sonambulismo que, à noite,
desfaz o caminho dos fios que deixou para trás, qual trama invisível,
na sua rota diurna. Era meio-dia e o Sol fulgia, rotundo, mas eu
caminhava pelo bairro Lastarria à beira da inconsciência. Tinha
acabado de encontrar, por acaso, a pensão na qual ficara alojado na
viagem anterior: é possível que esse meu deambular automático
tivesse sido provocado pela descarga de recordações eróticas que,
subitamente, revestiu a minha pele com a do outro, a de quem eu
era aos vinte e tal anos. Não me espantou dar comigo, sem mais
nem menos, na Libros Prólogo, a livraria que mais me impressionou
na altura, naqueles dias que se seguiam às noites na pensão, com
os seus jogos e os seus beijos e os seus lençóis desenfreados. Nem
encontrar, atrás do balcão, o Walter Zúniga, como se tivesse
esperado por mim aqueles 10 anos com a mesma camisa e as
mesmas rugas.
– O que está a ler com tanta atenção? – perguntei-lhe, depois de
passar uns minutos às voltas pela livraria.
– É uma biografia do Fellini escrita pelo Tullio Kezich, comprei-a
ontem na feira – respondeu-me, com aquelas orelhas tão grandes
dos velhos que sabem ouvir. – É curioso, tenho este livro aqui há
imenso tempo, dois exemplares, é extraordinário, mas nunca o
vendi.
– Mas se o tem, porque é que o comprou?
– É que estava tão barato...
Conversámos durante algum tempo sobre as outras instalações
da livraria, que já tinham fechado, e ele confessou-me que o
negócio que funcionava mesmo era o das suas livrarias Karma,
«especializadas em artes divinatórias, tarô, new age e artes
marciais». Pedi-lhe o livro que tinha sido publicado recentemente
sobre um projeto cibernético pioneiro, durante o Governo de
Salvador Allende...
– Revolucionários Cibernéticos – interrompeu-me, enquanto
teclava. – Não tenho aqui nenhum exemplar, mas posso
encomendá-lo e chega cá daqui a dois dias. – E pegou no telefone e
pediu-o à distribuidora.
Uns minutos mais tarde, despediu-se com um gesto: estava a
oferecer-me o cartão dele. Tinha corrigido o número de telefone com
tinta preta. Era exatamente o mesmo cartão que eu tinha no meu
arquivo dedicado às livrarias. A mesma tipografia em caracteres
encarnados. «Libros Prólogo. Literatura-Cine-Teatro.» Foi uma
ligação muito forte com quem eu era uma década atrás, com esse
viajante. Tudo mudara na cidade e em mim, menos aquele cartão de
visita. Ao tocar-lhe, arrancou-me do meu sonambulismo, arrancou-
me violentamente do meu passado.
Foi com toda a naturalidade, por isso, que dei meia centena de
passos, atravessei a rua e entrei na Metales Pesados, na frequência
do presente. Nem um grama de madeira na loja, apenas estantes de
alumínio, a livraria como um gigantesco mecano que acolhe os
livros com a mesma contundência que uma loja de ferragens ou um
laboratório informático. De fato preto e camisa branca, dândi e puro
nervo, lá estava Santiago Parra, sentado numa mesa da esplanada
do café, numa cadeira articulada e metálica. Pedi-lhe o Lenhador,
de Mike Wilson, um livro que andava a perseguir há meses pelo
Cone Sul. Mostrou-mo com o olhar escondido atrás de uns óculos
de massa. Perguntei-lhe pelos livros de Pedro Lemebel e aí, sim,
olhou para mim.
Mais tarde descobri que tinha liderado a campanha de apoio à
atribuição do Prémio Nacional de Literatura a Lemebel; e que eram
amigos; e que eram poetas; e que eram vizinhos. Porém, naquele
momento eu só tinha olhos para um poster enorme que mostrava o
cronista e performer, e todos os seus livros bem expostos, bem
visíveis, porque todos os livreiros são traficantes de visibilidade.
Recomendou-me um par de livros de crónicas que eu não tinha,
comprei-os e paguei:
– Mais que uma livraria, a Metales Pesados é um aeroporto. De
repente, pode cá entrar o Mario Bellatin, ou alguém a quem o Mario
ou outra pessoa recomendou que passasse por cá, amigos de todos
os lugares do mundo, muitos até deixam cá a mala porque já
fizeram o check out do hotel e ainda têm umas horas para ir ao
Cerro Manquehue ou ao Museu das Belas-Artes. Como eu
praticamente vivo aqui, pois trabalho de segunda a domingo,
converti-me numa espécie de ponto de referência.
A livraria como aeroporto. Como lugar de trânsito: de
passageiros e de livros. Puro ir e vir de leituras. A Lolita, pelo
contrário, afastada do centro, na esquina de um bairro residencial,
aspirava a que as pessoas ficassem. Também tinha um escritor
atrás do balcão: o narrador Francisco Mouat, cuja paixão pelo
futebol o levara a dedicar um canto aos livros sobre desporto. Quem
me acompanhou até à recém-estreada livraria foi o cronista Juan
Pablo Meneses, e mostrou-me que o Juan Villoro, o Martín
Caparrós, o Leonardo Faccio e outros amigos comuns estavam lá,
fragmentados, minimamente representados pelos volumes que
dedicaram ao pequeno deus redondo. Mouat possui um olhar líquido
e uma gestualidade amável, acolhedora, apesar da sua altura
intimidante: não me admira nada que os seus três grupos de leitura
encham todas as segundas, quartas e sextas.
– Um livro por semana não é um mau ritmo de leitura – disse-lhe
eu.
– Já dantes era assim, noutra loja; tenho leitores que me seguem
há anos, e quando abri a Lolita trouxe-os para esta nova casa.
A fidelidade está no lema: «Não podemos viver sem livros.» A
fidelidade está no logótipo: uma antiga cadela da família Mouat olha
para nós, estampada na lombada dos livros da Editora Lolita.
Quando finalmente, no meu último dia em Santiago, visitei a Ulises,
esse lugar repleto de livros cujos espelhos abismais refletem as
estantes e os volumes até ao infinito, sobrevoando-nos e
multiplicando-nos num maravilhoso teto de espelhos concebido pelo
arquiteto Sebastián Gray, talvez por me encontrar numa das livrarias
mais belas e borgesianas do mundo, o quarto vértice de um
quadrado invisível, pensei que as outras três, a Libros Prólogo, a
Metales Pesados e a Lolita materializavam os três tempos de
qualquer livraria: o passado do arquivo, o presente do trânsito, o
futuro das comunidades unidas pelo desejo. Que, todas juntas,
configuravam a livraria perfeita, a livraria que levaria para uma ilha
deserta.
E lembrei-me, de repente, de uma cena de que me tinha
esquecido. Uma cena repetida e longínqua, um eco em extinção ou
um chamamento de uma caixa negra no fundo do oceano e do
acidente. Devo ter nove ou 10 anos, a minha mãe está no talho ou
na padaria ou no supermercado, e eu mato o tempo na papelaria do
nosso bairro, a Rocafonda, na periferia de Barcelona. Como não há
nenhuma livraria no bairro, sou completamente viciado em
quiosques, nos seus livros aos quadradinhos sobre super-heróis e
as suas revistas de jogos de computador, o Depósito Ortega, que
exibe uma considerável coleção de livros e de revistas de
divulgação, e nesta papelaria da mesma rua onde vivem os irmãos
Vázquez e outros colegas da escola. Não há mais de cem livros, ao
fundo, atrás dos expositores de cartolinas, postais de aniversário e
livros para recortar. Apaixonei-me por um manual do detetive
perfeito: lembro-me da capa azul, lembro-me (e a força da evocação
perturba-me, ao sair da Ulises e entrar num táxi que me levaria ao
aeroporto) de ler todas as semanas, duas páginas de pé, como tirar
boas impressões digitais, como fazer um retrato-robô, todas as
semanas até ao Natal ou Sant Jordi, até que os meus pais me
ofereceram o livro tão desejado. Em casa, depois de o ler, apercebi-
me de que o sabia de cor. Durante grande parte da minha infância
tive duas vocações, como posso ter-me esquecido disso: escritor e
detetive privado. Alguma coisa da segunda permaneceu na minha
obsessão por colecionar histórias e livrarias. Quem sabe se nós, os
escritores, não somos, antes que mais nada, detetives de nós
próprios, personagens de Roberto Bolaño.
Na esplanada do Café Zurich, em Barcelona, Natu Poblet, que
gere, em Buenos Aires, a livraria Clásica y Moderna, contou-me que
na loja, em 1981, quando abandonou a arquitetura para se dedicar
ao negócio da família, dois anos antes da última ditadura, havia
cursos de literatura, de teatro e de política dados por aqueles a
quem tinha sido vedado o acesso à universidade, como David
Viñas, Abelardo Castillo, Juan José Sebreli, Liliana Heker, Enrique
Pezzoni ou Horacio Verbitsky. «Os cursos convertiam-se em
tertúlias, eu e o meu irmão levávamos vinho e whisky, aparecia
muita gente e a conversa prolongava-se até às tantas», disse-me,
enquanto dava conta de um copo de Jameson: aí nascera a ideia de
fazer conviver a livraria com um bar. Implicou submetê-la a uma
volta de 180 graus. O avô, o livreiro madrileno Don Emilio Poblet,
fundou, na Argentina de princípios do século XX, a rede Poblet
Hermanos. O pai, Francisco, abriu, em 1938, juntamente com a
mulher, Rosa Ferreiro, a Clásica y Moderna; e os irmãos Natu e
Paco incumbiram-se do negócio após a morte do pai, em 1980.
Nesse ano, a Junta Militar ordenou a queima de um milhão e meio
de livros publicados pelo Centro Editor de América Latina. Após sete
anos de atividade nas catacumbas e na recém-estreada
democracia, incumbiram o arquiteto Ricardo Plant da transformação
radical do espaço que, desde então, é um bar e um restaurante,
além de uma livraria e uma sala de exposições e de concertos
(«Nos três primeiros anos abríamos 24 horas por dia, mas depois
começámos a ter problemas com alguns bêbedos noctívagos e
decidimos cingir-nos a um horário mais convencional»). Desde a
sua abertura, já lá atuaram atores como José Sacristán ou cantores
como Liza Minnelli. O piano foi oferecido por Sandro, um habitual da
Clásica y Moderna dos anos loucos, cuja biografia pode ser
resumida pelos títulos de alguns dos seus discos: Beat Latino,
Sandro de América, Sandro... un ídolo, Clásico, Para mamá.

«Sonho imenso com a livraria do meu pai», confessou-me Natu


Poblet enquanto terminava a bebida e dávamos início a um longo
passeio pela noite barcelonesa. No Rio de Janeiro, Milena Piraccini
depressa me falou da importância que Vanna, a mãe, dava ao trato
pessoal com cada um dos seus clientes, e que traços da sua
personalidade podiam ser explicados em função da sua
ascendência europeia. Em Caracas, Ulises Milla resumiu-me a
história da sua família uruguaia e falou-me de outros livreiros de
Montevideu e de Caracas, como Alberto Conde, com os quais tanto
tinha aprendido. Chacho Sanseviero escreveu:

«O meu mestre foi Eduardo Sanseviero, um grande livreiro e discípulo de


Don Domingo Maestro, um notável livreiro uruguaio. Eduardo tinha uma
verdadeira fraqueza pelo xadrez, pela História e pelos livros antigos. Mas
também amava a poesia e possuía o estranho dom de incorporar tudo isto
nas tertúlias. Comunista inveterado, numa época de despotismo dava-lhe
prazer organizar, no seu pequeno círculo, conciliábulos conspirativos. Mas
no fim do dia voltava a pegar no espanador e a tratar dos seus livros.»

A tradição dos livreiros é uma das tradições mais secretas.


Amiúde familiar: Natu, Milena, Ulises, Rómulo, Guillermo e
Madalena, como tantos outros livreiros, são, por sua vez, filhos e até
netos de livreiros. Quase todos eles começaram como aprendizes
nas livrarias dos pais ou de outros negociantes de papel impresso.
Rafael Ramón Castellanos lembra que, quando chegou a Caracas
vindo do interior da Venezuela, trabalhou numa livraria, na Viejo y
Raro, que pertencia a um ex-embaixador argentino: «Mais tarde, em
1962, criei a minha própria livraria com os conhecimentos que tinha
adquirido», a Librería de Historia que precedeu a La Gran Pulpería
del Libro.
Não é estranha a figura do livreiro? Não é mais explicável o
escritor, o impressor, o editor, o distribuidor, até mesmo o agente
literário? Não será essa estranheza a razão da ausência de
genealogias e de anatomias? Héctor Yánover, em Memórias de Um
Livreiro, iluminou durante o tempo que dura um fósforo esses
paradoxos:

«Este é o livro de um livreiro pretensioso. Estas são as primeiras linhas


deste livro. Estas palavras serão as primeiras da primeira página. E todas
as palavras, linhas, páginas, formarão o livro. Vocês, hipotéticos leitores,
fazem ideia de quão terrível é, para um livreiro, escrever um livro? Um
livreiro é um homem que, quando descansa, lê; quando lê, lê catálogos de
livros; quando passeia, detém-se diante das montras das outras livrarias;
quando vai a outra cidade, a outro país, encontra-se com livreiros e
editores. Então, certo dia, este homem decide escrever um livro sobre o
seu ofício. Um livro dentro de outro livro que se irá juntar aos outros nas
montras ou nas estantes das livrarias. Mais um livro para arrumar, marcar,
limpar, repor, excluir definitivamente. O livreiro é o ser mais consciente da
futilidade do livro, da sua importância. Por isso, é um homem escindido; o
livro é uma mercadoria para comprar e vender, e ele integra essa
mercadoria. Compra-se e vende-se a si mesmo.»
Yánover geriu a Librería Norte de Buenos Aires e, segundo
Poblet, foi o grande livreiro da cidade durante o último quartel do
século passado. A sua filha Débora tomou as rédeas do negócio.
Também foi responsável por uma célebre coleção de discos graças
aos quais era possível ouvir outros a recitar, como Cortázar e
Borges. Quando o autor de O Perseguidor visitava o país, convertia
a Librería Norte no seu centro de operações: passava nela todo o
seu primeiro dia na cidade, e era lá que pedia que os seus
admiradores entregassem as cartas e os embrulhos com livros.
Ignoro se esses discos estão nalgum recanto do Arquivo Bolaño, se
ouvia as vozes mortas como ouvia ópera ou jazz. A livraria que
marcou a vida do autor de Ficções foi, no entanto, a Librería de la
Ciudad, que ficava ao pé da sua casa, no outro lado do passeio da
Calle Maipí, no interior da passagem conhecida como Galería del
Este. Visitava-a todos os dias. Nela, deu dezenas de conferências
gratuitas sobre os temas que lhe interessavam e apresentou os
títulos de «A Biblioteca de Babel», a coleção que dirigia a pedido do
editor milanês Franco Maria Ricci e que a própria livraria coeditou
parcialmente. Borges e Cortázar não se conheceram numa livraria,
mas num domicílio particular da Avenida Diagonal Norte, onde o
mais novo descobriu que o mestre tinha gostado tanto do seu conto
«Casa Tomada», que já estava no prelo. Reencontraram-se em
Paris muito tempo depois, ambos já consagrados pela Academia
Francesa. Não consegui identificar a livraria portenha na qual, em
1932, Cortázar comprou Opium, de Jean Cocteau, o livro que
mudou a sua obra, quero dizer, a sua vida. Mas encontrei a
entrevista de Hugo Guerrero Marthineitz na qual o autor de
Nicaragua, tan violentamente dulce tenta justificar o comportamento
de Borges durante a ditadura militar, na qual confiara para restaurar
a ordem e durante a qual também se definira como «um anarquista
inofensivo» e «um revolucionado», que estava «contra o Estado e
contra as fronteiras dos Estados» (como mostrou, entre outros, o
seu biógrafo Edwin Williamson). E que decidiu morrer em Genebra.
As dificuldades retóricas de Cortázar são semelhantes às que
encontramos nas linhas de Bolaño sobre Neruda: «Escreveu alguns
dos melhores contos da história universal da literatura; também
escreveu uma História Universal da Infâmia.»

Esse é o modelo de A Literatura Nazi nas Américas, um livro


escrito desde a distância europeia. Não há nada mais difícil do que
julgar a complexidade: Ibáñez Langlois defendeu Neruda e Parra, os
dois «pais» do poeta Bolaño, e promoveu a carreira de Raúl Zurita,
em cujos poemas escritos no céu parece haver um modelo de parte
da obra do infame Ramírez Hoffman. Não é exagerado ler toda a
obra de Bolaño como uma tentativa de compreender a sua própria
biblioteca ferida, perdida, recomposta, com tantas ausências como
companheiros de viagem, atravessada pela distância que não o
deixava compreender cabalmente o que estava a acontecer no
Chile, ao mesmo tempo que lhe conferia a necessária lucidez crítica
para uma leitura oblíqua, uma biblioteca contraditória e complexa,
dizimada pelas mudanças e reconstruída em livrarias europeias.
Lemos, num dos capítulos de Entre Paréntesis:
«Também não me lembro, por outro lado, de o meu pai me ter oferecido
algum livro, embora uma vez, ao passarmos por uma livraria e a meu
pedido, me tenha comprado uma revista com um longo título sobre os
poetas elétricos franceses. Todos esses livros, incluindo a revista, e muitos
mais livros, perderam-se durante as minhas viagens e mudanças, ou
emprestei-os e nunca mais os voltei a ver, ou vendi-os, ou ofereci-os. Há
um livro, porém, do qual não só me lembro de quando e onde o comprei,
como também da hora em que o comprei, de quem me esperava fora da
livraria e do que fiz nessa noite, da felicidade (completamente irracional)
que senti quando peguei nele. Foi o primeiro livro que comprei na Europa e
ainda o tenho na minha biblioteca. Trata-se da Obra Poética de Borges,
editada pela Alianza/Emecé em 1972, que deixou de circular há bastantes
anos. Comprei-o em Madrid em 1977, e embora não desconhecesse a
obra poética de Borges, comecei a lê-lo nessa mesma noite, até às oito da
manhã, como se a leitura daqueles versos fosse a única leitura possível
para mim, a única leitura que me podia distanciar efetivamente de uma
vida até então desmesurada, e a única leitura que me podia fazer pensar,
porque na natureza da poesia borgesiana há inteligência e também
valentia e desesperança, ou seja, a única coisa que incita à reflexão e que
mantém viva a poesia.»

Não há questionamento ideológico. Não há suspeita moral.


Borges simplesmente não pertence à tradição revolucionária, mas
isso não lhe diminuiu o valor. É menos problemático do que Neruda.
Em Conselhos de Um Discípulo de Morrison a Um Fanático de
Joyce, Bolaño e A.G. Porta falam insistentemente das livrarias de
Paris: a livraria como uma trincheira de leitura política (nela, a
personagem lê a revista El viejo topo), a livraria como um convite ao
voyeur moral («Sempre gostei das montras das livrarias. A surpresa
de espreitar pelos vidros e ver o último livro do maior filho da puta e
do mais reles dos desesperados»), a livraria como beleza em si
mesma («Estive nas duas ou três livrarias mais belas que já vi»).
Uma delas, embora não o diga explicitamente, deve ser a falsa
Shakespeare and Company. O seu remake. Da sua visita surge a
ideia de filmar o Ulisses em Super-8:

«Paris. Lugares onde viveu Joyce. Restaurantes, Les Trianos,


Shakespeare and Company – Left Bank Facing Notre-Dame – (embora
esta não seja a mesma. A original ficava no n.º 8 da Rue Dupuytren,
primeiro, e depois, no verão de 1921, no n.º 12 da Rue de l’Odéon).»

Em «Vagabundo na França e na Bélgica», um dos contos de


Putas Assassinas, uma personagem chamada «B.» passeia pelos
alfarrabistas de Paris, e num da Rue du Vieux Colombier encontra
«um antigo número da revista Luna Park», e o nome de um dos
seus colaboradores, Henri Lefebvre, «ilumina-se de repente como
um fósforo num quarto escuro», e compra a revista e sai para a rua,
perdendo-se como Lima e Belano antes dele. Outro nome, desta
vez o de uma revista, ilumina-se agora nesta página que escrevo:
Berthe Trépat foi o nome que Bruno Montané e ele escolheram para
uma revista copiografada que editaram em Barcelona em 1983. A
luz não dura muito, mas é suficiente para que possamos ler certas
tradições de escritores e de livreiros, certa genética comum à
história da literatura e das livrarias, isto é, da cultura, sempre a
debater-se – qual falha geológica, qual tremor – entre a vela e a
noite, entre o farol e o firmamento noturno, entre a estrela distante e
a escura dor.

«Gramsci, Trótski, Mandel, Lenine e, obviamente, Marx. Em


1976, o vento mudou e esses livros continuavam a vender-se.
O que é que os livreiros podiam fazer? Destruir o que era
dinheiro, dinheiro que lhes tinha custado a ganhar? Punham-
nos sob o balcão e vendiam-nos às escondidas. Vários
desapareceram por causa disso.»

HÉCTOR YÁNOVER
El Regresso del Librero Establecido.

1 A Dirección de Inteligencia Nacional (1973-1977) era a polícia secreta do regime militar


de Augusto Pinochet. (N. da T.)
2 «Casa Tomada» (1946) é o título de um conto do escritor argentino Julio Cortázar. (N. da
T.)
Paris sem mitos

«Tennessee Williams queixava-se da falta de fidelidade sexual


dos rapazes marroquinos, pelos quais se apaixonava
enquanto percorria as ruas, com Truman Capote, à procura
dos deleites oferecidos pelos belos adolescentes.»

ADRIÁN MELO, El Amor de los Muchachos:


Homosexualidad y Literatura

EM 1996, O REALIZADOR DE CINEMA E ESCRITOR Edgardo Cozarinsky


estreou a docuficção Fantasmas de Tânger, falada em francês e em
árabe. O protagonista é um escritor em crise que chega à costa
africana para perseguir tanto alguns dos espetros norte-americanos
que já apareceram neste livro como os franceses que os ajudaram a
mitificar a cidade branca e internacional. O seu reverso é encarnado
por um rapaz que anda à procura de uma maneira de emigrar para a
Espanha. A Tânger literária convive, na narrativa, com a Tânger da
pobreza, que é a do opróbio. A escrita e o turismo sexual
interpenetram-se na mesma membrana, uma membrana pantanosa
e lodacenta, na qual os limites – apesar das aparências – estão
claros: o cliente e o trabalhador, o explorador e o explorado, o que
tem francos ou dólares e o que aspira a tê-los, com o francês como
língua franca entre ambos os bandos, antagonistas apesar da
aparência de diálogo. O rasto de Foucault e de Barthes confunde-se
com o de Burroughs e de Ginsberg, convergentes nos bordéis onde
os jovens marroquinos se prostituem desde sempre.
A dimensão documental do filme retrata os sobreviventes dessa
época alegadamente dourada, mas que de repente se nos afigura
turva. «Toda a gente já passou por aqui», diz Rachel Muyal em Mes
Années à la Librairie des Colonnes, «por esta livraria». E logo a
seguir reproduz um episódio que decerto já teria contado muitas
vezes: «Genet estava a tomar um café com Choukri, quando se
aproximou deles um engraxador e perguntou se alguém queria
puxar lustro aos sapatos, então Juan Goytisolo pegou numa nota de
500 francos. Deve ter sido uns dois anos antes da morte dele.» Três
mitos contemporâneos numa única estampa que só a livreira parece
querer manter intacta. «Não sinto qualquer nostalgia pela Tânger
Internacional, foi uma época miserável», diz Choukri quando o
entrevistaram no filme. E Bowles fala mal de Kerouac e dos outros
beatniks. E Juan Goytisolo contou-me que nunca esteve com Genet
em Tânger. E Rachel Muyal também me disse, insistentemente, que
eu estava enganado. O filme de Cozarinsky está num dos baús das
minhas viagens, é uma cópia VHS que já não é possível ver. Sabe-
se lá quem terá razão, se é que a razão pode ter-se. A cada
bacorinho vem o seu S. Martinho.
Interessa-me particularmente a leitura que o autor de Le Pain Nu
faz dessa dourada legião estrangeira. Para ele, contaminado pela
sua dependência económica de Paul Bowles – que o ajudou a
escrever o primeiro livro e o traduziu para o inglês, lançando-o no
mercado internacional –, Genet pouco mais era que um impostor,
não só porque a sua miséria não era comparável com a miséria real
dos marroquinos, que o próprio Choukri retratou de maneira tão crua
nos seus livros autobiográficos, mas porque não falava uma só
palavra de espanhol, de maneira que os seus relatos sobre os bas-
fonds de Barcelona ou de certos ambientes de Tânger não podiam
ser levados a sério.
Batizou Bowles como «o recluso de Tânger», por ter passado os
seus últimos anos de vida deitado na cama e por achar que nunca
se tinha relacionado verdadeiramente com a cultura árabe
circundante. Basta ler as cartas de Bowles para perceber que – com
efeito –, embora residisse fisicamente em Marrocos, o seu diálogo
cultural centrava-se nos Estados Unidos, onde passava
mentalmente cada vez mais tempo à medida que ia envelhecendo.
No entanto, a sua inteligência permitiu-lhe nunca deixar de perceber
que a circulação de escritores anglo-saxónicos estava a mascarar a
cidade, a «literaturizá-la» sem que existisse uma indagação real dos
visitantes nas camadas profundas da sociedade marroquina,
seguramente porque a ele próprio não lhe interessava essa
penetração total. Num artigo de 1958 intitulado «Worlds of Tangier»,
escreveu que «uma cidade, tal como uma pessoa, deixa quase
sempre de ter um único rosto assim que a conhecemos
intimamente», e para isso é necessário tempo. A dada altura, ao
longo dos 40 anos seguintes, decidiu que lhe bastava um certo nível
de intimidade. Em 1948, numa carta escrita no tangerino Hotel Ville
de France, Jane disse-lhe: «Continuo a gostar de Tânger, talvez por
ter a sensação de que estou perto de qualquer coisa onde entrarei
algum dia.»
Paul Bowles – Le Reclus de Tanger começa assim: «Que
absurdo. Nada me parece mais absurdo que essa nostalgia
exagerada pela Tânger de outrora e esse suspirar pelo seu passado
como zona internacional.» No entanto, não consigo deixar de
perguntar-me porque é que Choukri escreveu realmente este livro,
ou o seu gémeo Jean Genet e Tennessee Williams em Tânger, até
que ponto a sua vontade desmitificadora não se confunde com a
certeza de que só se falasse sobre celebridades anglo-saxónicas ou
francesas continuaria a ser lido no Ocidente. Não fica claro, não
pode ficar claro. Do que não há dúvida é da dor que supuram as
suas palavras, não em vão está a matar o próprio pai: «Gostava de
Marrocos, nas não dos marroquinos.» A edição da Cabaret Voltaire
do seu retrato de Bowles foi apresentada em Tânger em meados de
2012 pela sua tradutora Rajae Boumediane El Metni e por Juan
Goytisolo: como é óbvio, na Librairie des Colonnes.
No seu caderno de memórias, Muyal evoca o seu primeiro
encontro com Choukri («Estávamos a jantar na maravilhosa e
perfumada esplanada do Restaurante Le Parade numa noite de
verão com umas primas jovens e bonitas, quando um jovem
desconhecido nos ofereceu umas flores. Ao ver que não
aceitávamos, o rapaz começou a desfolhá-las e a comer as
pétalas»), o impacto que teve nela a leitura de Le Pain Nu, porque
ignorava que existisse uma pobreza tão pungente, tão crua, na sua
própria cidade, e como se converteu num interlocutor frequente
sobre literatura e política nas suas assíduas visitas ao
estabelecimento. Foi Tahar Ben Jelloun que o traduziu para o
francês, de maneira que contou com tradutores de exceção nas
duas línguas mais importantes do mundo editorial. Porém, na sua
própria língua o livro Le Pain Nu depressa se converteu num desses
livros celebrados e proibidos: «Venderam-se dois mil exemplares
numa semana, recebi do Ministério do Interior uma nota a proibir a
venda deste livro em todas as línguas. No entanto, foram publicados
fragmentos do seu livro em árabe na imprensa libanesa e
iraquiana.» Quando o narrador de Cidade Aberta (2011), de Teju
Cole, pede a outra personagem que lhe recomende um livro «que
corresponda à sua ideia de ficção autêntica», este não hesita em
anotar num papel o título da obra mais famosa de Choukri. Opõe-no
a Ben Jelloun, mais lírico, integrado nos círculos ocidentais,
orientalista, enquanto Choukri «ficou em Marrocos, a viver com a
sua gente», sem nunca abandonar «a rua». Noutro romance
publicado um ano depois e noutro continente, Rue des Voleurs,
Mathias Énard também põe o seu narrador a defender o
magnetismo do escritor marroquino: «O árabe dele era seco como a
pancada que lhe dera o pai, duro como a fome. Uma língua nova,
uma maneira de escrever que me pareceu revolucionária.» Cole, um
escritor norte-americano de origem nigeriana, põe o dedo na ferida
quando defende a importância de Edward Said para a nossa
compreensão da cultura oriental: «A diferença não se aceita nunca.»
O que Choukri fez a vida toda foi precisamente isso: defender o seu
direito à diferença. Criticamente, aproximando-se e afastando-se
dos que viram nele o que era, um grande escritor, como acontece
em qualquer vida, em qualquer negociação.
Em Paris nunca Se Acaba, Enrique Vila-Matas fala sobre
Cozarinsky, com quem se cruzava muitas vezes nos cinemas da
capital francesa: «Lembro-me de o admirar porque sabia
compaginar duas cidades e duas devoções artísticas», anota no
fragmento 65 do seu livro. Refere-se a Buenos Aires, a cidade natal
de Cozarinsky, e a Paris, a de adoção. Porém, na sua obra há
sempre uma tensão entre dois lugares: entre Tânger e Paris, entre o
Oeste e o Leste, entre a América Latina e a Europa. «Admirei muito
especialmente», acrescenta Vila-Matas, «o seu livro Vudu Urbano,
um livro de exilado, um livro transnacional onde utilizava uma
estrutura híbrida que, naqueles dias, era muito inovadora». Se
Bolaño reencontrou Borges em Madrid, foi na Librairie Espagnole
parisiense que Vila-Matas descobriu, seguindo as pistas de
Cozarinsky, os contos de Borges: «Sobretudo impressionou-me
muito a ideia – presente num dos seus contos –, de que talvez o
futuro não existisse.»
Chama a atenção que tenha tido essa ideia no estabelecimento
gerido por Antonio Soriano, um exilado republicano que cultivava,
precisamente, a esperança num futuro sem fascismo. Nas traseiras
da sua Librería Española, como na da Ruedo Ibérico, a diáspora
menteve acesa a atividade cultural de resistência. Como acontece
quase sempre que se trata da história de uma livraria, o projeto está
relacionado com outro anterior: o da Librairie Espagnole León
Sánchez Cuesta, inaugurada em 1927 num espaço de cinco metros
quadrados da Rue Gay Lussac com duas montras: uma dedicada a
Juan Ramón Jiménez, e outra a jovens poetas como Salinas ou
Bergamín. Era gerida por Juan Vicéns de la Llave, que chegou a
ponderar a hipótese de editar livros em espanhol desde Paris (o
primeiro seria o Ulisses, numa tradução de Dámaso Alonso). Para
poder regressar a Madrid durante as turbulências ibéricas de 1934,
deixou-a nas mãos de uma antiga empregada, Georgette Rucar.
Porém, durante a guerra, como delegado de Propaganda do
Governo republicano na embaixada parisiense, usou o espaço como
centro de irradiação das ideias que estavam a ser esmagadas pelo
exército de Franco. Foi Rucar que, após a Segunda Guerra Mundial
– como conta Ana Martínez Rus em «San León Librero»: las
empresas culturales de Sánchez Cuesta –, contactou Soriano, que
estava estabelecido em Toulouse como livreiro, para que este
tomasse conta do fundo de catálogo da antiga livraria. Este livro, em
vez de se intitular Livrarias, bem podia ter por título As
Metamorfoses.
Quando chegou às águas-furtadas de Marguerite Duras em
1974, Vila-Matas assistiu aos últimos estertores desse mundo,
quando não às fotografias da sua autópsia. Desde a sua
maturidade, o autor de História Abreviada da Literatura Portátil
revisita a sua experiência iniciática em Paris, na Paris dos seus
mitos pessoais, como Hemingway, Guy Debord, Duras ou Raymond
Roussel, onde tudo remete para um passado de esplendor
necessariamente perdido que, paradoxalmente, não passa de moda.
Porque cada geração revive, na sua juventude, uma certa Paris que
só quando envelhecemos se vai desmitificando progressivamente.
Numa das saídas de emergência da Livraria La Hune, havia um
grafiti da silhueta de Duras sentada no chão, com a sua célebre
frase à esquerda: «Faire d’un mot le bel amant d’une phrase.1»
Demorei cinco viagens a Paris para descobrir que, das suas
centenas de livrarias, talvez as três melhores sejam a Compagnie, a
L’Écume des Pages e a La Hune. Nas minhas visitas anteriores,
além de insistir na Shakespeare and Company, entrei em todas
aquelas por que passei, mas por alguma razão nenhuma das três
fez parte dos meus itinerários. E, por isso, na última vez, decidi pedir
ajuda ao próprio Vila-Matas antes de partir. E, uma vez lá, procurei-
as e encontrei-as. Encontrei o poster de Samuel Beckett (o seu
rosto arbóreo) sobre um fundo de cortiça numa parede da
Compagnie. E as estantes art déco da L’Écume des Pages. E a
escadaria improvável e a coluna branquíssima no centro do recinto
da La Hune, parte da remodelação de 1992, da responsabilidade de
Sylvain Dubuisson. A primeira encontra-se entre a Sorbonne, o
Museu de Cluny e o Collège de France. A segunda e a terceira, tão
perto do Café de Flore e do Les Deux Magots, estão abertas todos
os dias até à meia-noite em Saint-Germain-des-Prés, perpetuando a
velha tradição boémia de combinar a livraria com o café e as
bebidas.
Quando Max Ernst (depois de se casar com Peggy Guggenheim
e de se converter num frequentador da Gotham Book Mart), Henri
Michaux (depois de se despedir da literatura para se concentrar na
pintura) ou André Breton (depois do seu exílio americano)
regressaram a uma Paris sem as livrarias da Rue de l’Odéon,
fizeram de La Hune um novo espaço de tertúlia e de convívio com
os livros. Fundada em 1944 por quatro amigos, os livreiros Bernard
Gheerbrant e a sua futura mulher, Jacqueline Lemunier, o escritor e
cineasta Pierre Roustang e a escritora surrealista e socióloga
búlgara Nora Mitrani, a La Hune, em 1949, no mesmo ano em que
se mudou para o n.º 170 do Boulevard Saint-Germain, acolheu a
exibição e o leilão dos livros, manuscritos e móveis do andar
parisiense de Joyce (falecido em 1941), juntamente com parte do
arquivo de Beach sobre o processo de edição da sua obra-prima,
em benefício da família do escritor. Pouco depois, Michaux deu
início às suas experiências com a mescalina, e a obra gráfica que
produziu traduziu-se em livros que publicou em meados dos anos 50
como Misérable Miracle e a exposições como «Description d’un
Trouble» na Librairie-Galerie La Hune. Bernard Gheerbrant,
desaparecido em 2010, foi uma figura relevante da vida intelectual
parisiense e dirigiu durante mais de uma década o Club des
Libraires de France. Pela importância do seu trabalho como editor
textual e gráfico, os seus arquivos conservam-se no Centro
Pompidou, onde, em 1975, foi curador da exposição «James Joyce
et Paris». Após uma breve e fracassada etapa noutra morada, a La
Hune fechou definitivamente as portas em junho de 2015. A artista
Sophie Calle quis ser a última a passar pela caixa. Ser a última
cliente, a última leitora. A sua performance inaugurou um luto que
ainda dura, que não se limita aos seus clientes parisienses, mas a
todos aqueles que, como eu, entrámos nas suas portas e saímos
um pouco, quase nada, mudados, mas mudados, afinal de contas.
Como a maior parte das livrarias que foram sendo mencionadas
neste ensaio, estas três também foram fetiches em si mesmas e
lugares de exibição de fetiches. Um fetichismo que transcende o
clássico da teoria marxista segundo o qual todas as mercadorias
são fetiches fantasmagóricos que ocultam a sua condição de
objetos produzidos e mantêm a ilusão de serem autónomos em
relação aos seus produtores; um fetichismo promovido por agentes
capitalistas (os editores, os distribuidores, os livreiros, cada um de
nós) que jogam (jogamos) à defesa da produção e do consumo
culturais como se não estivessem sujeitos à tirania do lucro; um
fetichismo que se aproxima da religiosidade e mesmo da
sexualidade (em código freudiano): a livraria como templo onde se
custodiam ídolos, objetos de culto, como armazém de fetiches
eróticos, fontes de prazer. A livraria como igreja parcialmente
dessacralizada e convertida em sex-shop. Porque a livraria nutre-se
de uma energia objetal que seduz pela acumulação, pela
abundância da oferta, pela dificuldade em definir a procura, que se
concretiza quando se encontra, finalmente, o objeto que excita, que
reclama uma compra urgente e uma possível leitura posterior (a
excitação nem sempre sobrevive, mas deixa um rasto de
percentagens de preços de livros, de despesas e lucros, como
cinzas).
Dean MacCannell dissecou as estruturas do turismo,
estabelecendo um esquema básico: a relação do turista com a vista
através do marcador. Isto é: o visitante, a atração e o que a assinala
como tal. O que é decisivo é o marcador, que indica ou cria o valor,
a importância, o interesse do lugar, convertendo-o em
potencialmente turístico. Em fetiche. A loja de presumíveis
antiguidades de Pequim era um marcador fabuloso. Embora o valor
seja, em primeira instância, icónico, também acaba por ser
discursivo: a Torre Eiffel é primeiro um postal, uma fotografia, e a
seguir a biografia do seu autor, a história da sua polémica
construção, o resto das torres do mundo, a topografia da Paris na
qual se inscreve e desde cuja cúspide se divisa. As livrarias mais
significativas do mundo reivindicam, com maior ou menor subtileza,
os marcadores que as singularizam, que lhes acrescentam potencial
comercial ou que as convertem em lugares turísticos: a antiguidade
(fundada em, a livraria mais antiga de), a extensão (a maior livraria
de, x milhas de estantes, x centenas de milhares de livros) e os
capítulos da história da literatura com os quais estão vinculadas
(sede de tal movimento, frequentada por, a livraria onde x
comprava, visitada por, fundada por, como pode ver-se na
fotografia, livraria irmanada com).

A arte e o turismo assemelham-se na necessidade da existência


desse sinal luminoso, do que atrai o leitor para a obra. O David de
Miguel Ângelo dificilmente chamaria a atenção se se encontrasse no
museu municipal de Adis Abeba e fosse uma obra anónima. Em
1981, Doris Lessing, depois de ter publicado com muito êxito O
Caderno Dourado, enviou a várias editoras o seu novo romance
com um pseudónimo de escritora inédita e foi rejeitado por todas.
No caso da literatura, são as editoras que tratam, em primeiro lugar,
de gerar marcadores através do texto da contracapa ou da nota de
imprensa. Mas rapidamente a crítica, a academia e as livrarias criam
os seus, que decidirão a sorte do livro. Às vezes, são os próprios
autores que o fazem, consciente ou inconscientemente, vertebrando
um relato em torno das condições de vida naqueles anos. O
suicídio, a pobreza ou o contexto da escrita são o tipo de elementos
que muitas vezes se juntam ao marcador. Esse relato, a sua lenda,
é um dos fatores que permite a sobrevivência do texto, a sua
persistência como clássico. A primeira parte do Dom Quixote,
supostamente escrita na prisão, e a segunda parte como reação à
usurpação de Avellaneda; a leitura de Diário da Peste de Londres
como se não fosse um romance; os processos contra Madame
Bovary e As Flores do Mal; a leitura radiofónica de A Guerra dos
Mundos e o pânico coletivo provocado pela crónica deste
apocalipse; Kafka no leito de morte a ordenar a Max Brod que
queimasse a sua obra; os manuscritos de Malcolm Lowry que
arderam, desapareceram; o escândalo de Trópico de Câncer e de
Lolita e de O Uivo e de Le Pain Nu. O marcador nem sempre é
previsível e constrói-se muito tempo depois. É o caso dos romances
rejeitados por muitas editoras, como Cem Anos de Solidão ou Uma
Conspiração de Estúpidos. É claro que isto não foi utilizado como
argumento de venda no momento em que – finalmente – foram
publicados, mas quando se tornaram um êxito recuperou-se como
parte do relato mítico: o da sua predestinação.
Vários processos de escrita de livros parisienses como o Ulisses,
o Festim Nu ou O Jogo do Mundo foram claramente fetichizados e
hoje em dia são lugares-comuns da cultura contemporânea. Para a
Geração Beat, que se sentia herdeira do simbolismo e da vanguarda
francesa, o Ulisses foi um óbvio referente da ideia de rutura; e a sua
aparatosa e mítica edição, um exemplo muito próximo durante
aqueles meses em Paris. Escrito nos turvos anos tangerinos,
ordenado por Ginsberg e Kerouac, finalizado em França, Festim Nu
foi submetido ao julgamento de Maurice Girodias, editor da Olympia
Press na Rive Gauche, que não percebeu todo aquele galimatias e
declinou a sua publicação; mas um ano e meio mais tarde, quando a
publicação de alguns fragmentos tinha alimentado a fama do
romance, uma fama provocadora e obscena, um marcador, Girodias
voltou a interessar-se pelo manuscrito. Na altura, o êxito de Lolita
tinha-o convertido num homem rico, e o romance de Burroughs, de
cuja escrita o autor tinha uma recordação bastante vaga, ajudou-o a
enriquecer ainda mais. Inscrevia-se numa antiga tradição francesa:
a do traficante de livros escandalosos, muitas vezes proibidos por
serem considerados obscenos ou pornográficos, que no século XVIII
eram publicados na Suíça e entravam em França uma vez pago o
respetivo suborno aduaneiro, e que no século XX eram editados em
Paris e chegavam aos Estados Unidos através dos mais diversos
subterfúgios da picaresca.

A propósito de Pela Estrada Fora, escreveu Kerouac: «O Ulisses,


que se considerava de leitura difícil, hoje é considerado um clássico
e toda a gente o percebe.» Encontramos a mesma ideia em
Cortázar, para quem esta tradição é fundamental e que se
relacionou com Paris não apenas na ambientação da primeira parte
da sua obra-prima mas também numa certa reescrita do Nadja, de
Breton. Numa carta ao seu editor, Francisco Porrúa tem em conta a
mesma referência como paradigma de dificuldade, de rutura, de
resistência e de distinção entre os seus coetâneos: «Suponho que
isso deve ser sempre assim; não conheço as críticas
contemporâneas do Ulisses, mas deve ter sido do género: “Mr.
Joyce escreve mal porque não escreve com a linguagem da tribo.”»
Tal como Festim Nu, O Jogo do Mundo contrói uma ordem de leitura
que trabalha a partir do fragmento, da collage, do acaso, com uma
intenção politicamente revolucionária: destruir a ordenação
burguesa do discurso, detonar as convenções literárias que tanto se
parecem com as sociais. É por isso que o autor tenta orientar, nas
suas cartas ao editor, o marcador, o discurso que guiará a leitura do
livro. Há que imaginar a dificuldade de um processo de edição
levado a cabo epistolarmente, as demoras, os mal-entendidos, os
extravios (foi num envelope que se perdeu, por exemplo, a maquete
do livro confecionada por Cortázar):

«Não gostava nada de que insistissem no facto de este livro ser um


“romance”. Seria enganar um pouco o leitor. Sei que também é um
romance e que, no fundo, talvez o que se aproveite dele seja isso mesmo.
Mas eu escrevi-o como um contrarromance, e Morelli di-lo e sugere-o
muito claramente nas passagens que te cito mais acima. Em última
análise, creio que seria preferível destacar os aspetos, digamos,
axiológicos do livro: a contínua e exasperada denúncia da inautenticidade
das vidas humanas [...], a ironia, a irrisão, o autoescarnecimento sempre
que o autor ou as personagens caem na “seriedade” filosófica. Como
podes compreender, depois de Heróis e Túmulos, o mínimo que podemos
fazer pela Argentina é denunciar aos gritos essa “seriedade” de obtusos
ontológicos que pretendem os nossos escritores.»

A sintonia de O Jogo do Mundo com os seus jovens


contemporâneos foi imediata. A Paris que descreve atualiza a visão
clássica, que é a boémia, da cidade; os seus abundantes
pormenores topográficos convertem-na num possível guia turístico
cultural, como enfatizaram as edições que anexam um mapa ou
uma lista dos cafés favoritos do escritor; a sua dimensão
enciclopédica (literatura, pintura, cinema, música, filosofia...) dificulta
o esgotamento das suas leituras. Uma obra clássica da qual sempre
sinto que se pode extrair uma nova leitura. Um clássico é um autor
que nunca passa de moda. E Paris foi, precisamente, onde nasceu
a moda tal como a entendemos hoje em dia, de maneira que não é
de estranhar que, pelo menos até aos anos 60, e graças ao
contínuo fluxo de artistas de todos os recantos do mundo, tenha
conservado a capacidade de gerar um prometedor horizonte de
expectativas de certos leitores em relação a certas obras, uma aura
fetichista. Pascale Casanova escreve:

«Quem resume a questão da localização da modernidade é, sem dúvida,


Gertrude Stein, numa sentença lapidar: “Paris”, escreve em Paris-France,
“estava onde se encontrava o século XX”. Paris, lugar do presente literário
e capital da modernidade, deve a sua coincidência com o presente
artístico, por um lado, ao facto de ser o lugar onde se produz a moda, um
aspeto da modernidade por excelência. No famoso Paris Guide, editado
em 1867, Victor Hugo insistia na autoridade da Cidade-Luz não apenas em
matéria política e intelectual mas também na esfera do gosto e da
elegância, da moda e do que é moderno.»

Pode dizer-se que a lógica que explica parcialmente a relação


entre a cultura romana e a grega na Antiguidade, a da continuidade
traduzida, da imitação, da importação e da usurpação com que o
império assegurou a hegemonia cultural, em que os mitos originais
foram reformulados (de Zeus a Júpiter) e a épica reescrita (da Ilíada
à Odisseia de Homero, passando pela Eneida, de Virgílio), é um
modelo de compreensão para ler a relação entre os Estados Unidos
e a França durante a época contemporânea. Embora Londres
também seja a capital cultural do século XIX, Paris ergue-se – como
vimos – no seu centro literário e pictórico internacional. Durante os
anos 20 e 30, celebridades como Hemingway, Stein, Beach, Dos
Passos, Bowles ou Scott Fitzgerald encontraram em Paris a
sensação de capitalidade e a exaltação da boémia. Para uma
geração inteira de intelectuais norte-americanos – os nomes
anteriores são uma ínfima fração de todos aqueles que rumaram a
Paris e regressaram com ideias a modo de souvenirs –, a França foi
um modelo de grandeur cultural e de gestão do património
simbólico. Se Hemingway tinha razão e a capital francesa era uma
festa portátil, é lógico que tenha decidido emigrar durante os anos
30, em pleno auge do poder do nazismo na Alemanha e da
deflagração da Segunda Guerra Mundial. Picasso ficou em Paris,
onde criou o sistema do mercado de arte contemporânea; Beach
também ficou e Hemingway regressou como soldado da libertação.
Mas a grande maioria dos vanguardistas franceses e dos
romancistas norte-americanos reencontraram-se ou conheceram-se
em Nova Iorque, juntando-se aos artistas, galeristas, historiadores,
jornalistas, arquitetos, desenhadores, realizadores de cinema ou
livreiros. A mesma cidade onde o MoMA, depois de programar
grandes exposições sobre Van Gogh ou Picasso, foi criando sobre
esse substrato o seu próprio relato da arte contemporânea,
enaltecendo primeiro os expressionistas abstratos, e mais tarde a
arte pop capitaneada por Warhol e The Factory. Esses anos 50 são
fascinantes porque os escritores norte-americanos mais fortemente
sintonizados com a sua época continuam a visitar Paris. Mas o
gesto é diferente. Porque quando Kerouac ou Ginsberg viajam para
França, fazem escala em Tânger, invertendo a rota de Bowles,
como se uma cidade não fosse mais importante que a outra. A
língua materna de Kerouac era o francês, Ferlinghetti traduz
surrealistas como Jacques Prévert. Mais tarde, outros escritores
norte-americanos, que também estabeleceram fortes vínculos com o
imaginário da livraria, dirigem-se para a capital francesa, como Paul
Auster – tradutor de Mallarmé –, mas os maiores referentes literários
dessas gerações posteriores são oriundos dos Estados Unidos, e
não europeus. Paris converteu-se numa Biblioteca da Literatura
Universal, enquanto em São Francisco, Los Angeles, Chicago ou
Nova Iorque se inauguram constantemente livrarias convocadas a
ser dos centros culturais mais importantes da segunda metade do
século XX. Para o bem ou para o mal, e não se encontrando em
território norte-americano, como embaixada ou como intruso, uma
delas é a segunda Shakespeare and Company.
No documentário Portrait of a Bookstore as an Old Man alguém
diz que George Whitman era a pessoa mais americana que
conheceu porque era absolutamente pragmático e poupado: os
trabalhos dentro da livraria tinham de ser feitos por jovens adeptos
das letras, que não eram pagos mas tinham direito a cama, um
prato de comida e – isto não se diz – a uma experiência prestigiante:
ter trabalhado e vivido na Shakespeare and Company, no coração
de Paris. O que Whitman fez foi construir o sonho de qualquer
jovem leitor norte-americano: a livraria correspondia a um
estereótipo, como a de Harry Potter, era uma atração turística com
um marcador muito forte, tão importante para um estudante de
literatura como a Torre Eiffel ou A Gioconda, e além disso era
possível lá viver, permitia – como o mapa da edição de O Jogo do
Mundo – espacializar a literatura, convertê-la em corpo ou em hotel.
«Living the Dream» podia ter sido o seu lema. E fê-lo através de
uma operação concetual e comercial em relação à original
Shakespeare and Company, de Sylvia Beach, que pode ser vista
desde duas perspetivas: como prolongamento ou herança, por um
lado; e como apropriação ou mesmo usurpação, por outro. Whitman
disse numa entrevista: «Ela nunca soube nada de nós. Esperámos
até à morte dela, porque se lhe tivesse perguntado e tivesse dito
que não, nem depois de morta podia usar o nome. Mas acho que
teria dito que sim.» É claro que se não escolheu o nome Maison des
Amis des Livres para o seu negócio foi quer pela sua condição
anglo-saxónica, quer pelo potencial comercial de uma marca que
assegurava a peregrinação turística. E pela natural confusão que
gerava.

O filme mostra um livreiro despótico e instável, que tão depressa


insulta e magoa, como é capaz de revelar um sentimentalismo
poético, utilizando os hóspedes como voluntários num campo de
trabalho de cujas condições laborais nunca foram devidamente
informados. Um livreiro boémio e frugal, apesar dos lucros
consideráveis gerados pela livraria e dos cinco milhões de euros
que vale o edifício, mas que não gasta nada em roupa ou em
comida e que não tem vida social ou sentimental fora do seu reino
pitoresco – que queima o cabelo com duas velas à frente da
câmara, não se sabe se por demência senil ou para poupar o
dinheiro do barbeiro. E a cuja filha, a atual dona do negócio, chamou
Sylvia Beach Whitman.
Para sermos justos, o retrato deve ser completado com a crónica
Time was soft there, de Jeremy Mercer. Nas suas páginas, Whitman
surge como um ser tão instável quanto envelhecido, mas muitíssimo
generoso, namoradeiro, sonhador, disposto a partilhar com qualquer
pessoa que dormisse nas suas camas as leituras essenciais e uma
certa memória de Paris. A memória de Lawrence Durrell bêbedo à
noite, depois de ter dedicado todo o dia à escrita de O Quarteto de
Alexandria; a de Anaïs Nin, que talvez tenha sido amante do livreiro;
a de Henry Miller e a da Geração Beat e a de Samuel Beckett que,
como é óbvio, só protagonizava visitas silenciosas; a de todos os
livros e revistas promovidos pela sua livraria; a de Margaux
Hemingway, que se deixou guiar pela cidade à procura do avô.
Após assumir o legado do pai, a primeira coisa que Sylvia Beach
Whitman fez foi transportar a livraria para o século XXI. Limpou-a em
profundidade, instalou uma iluminação nova, fizeram-se algumas
reformas para facilitar o acesso e a circulação e inaugurou-se, no
rés do chão, a cafetaria que projetou, mas nunca abriu, George
Whitman. Um dos primeiros gestos da nova proprietária foi editar
uma pequena publicação a cores que resgatava parte do arquivo
documental e gráfico que havia permanecido nos baús e nas
gavetas durante décadas. Pela primeira vez, que eu saiba,
menciona-se Cortázar como um dos clientes habituais durante os
anos 60 e 70, juntamente com os ilustres suspeitos habituais
franceses e anglo-saxónicos. Um passo decidido em direção ao
grande livro ou à grande exposição que mostrará de maneira
rotunda a importância da lendária livraria na vida cultural da Paris da
segunda metade do século XX. Assim, após a sua primeira vida na
Rue de l’Odéon e a sua segunda vida beatnik, começou a terceira
vida da Shakespeare and Company.
«O que foi e o que é a Shakespeare and Company?»,
perguntamos nós depois de ver o filme e de ler o livro. Uma utopia
comunista ou o negócio de um forreta? Um ícone turístico ou uma
livraria realmente importante? O seu dono era um génio ou um
louco? Não creio que haja respostas para semelhantes perguntas, e
se houver, não serão pretas ou brancas, mas um leque de
cinzentos. O que é claro é que a L’Écume des Pages e a La Hune
não são livrarias míticas no mesmo sentido em que o é a
Shakespeare and Comapany, nem internacionalmente conhecidas
como esta é, o que nos obriga a perguntar uma vez mais: «De que
matéria foram feitos os mitos? E, sobretudo, como podemos
desmitificá-los?»
Eu próprio sou cúmplice desses processos de mitificação (que é
uma mistificação). Todas as viagens e todas as leituras são parciais:
quando, finalmente, for à Le Divan, cujas origens remontam aos
anos 20 em Saint-Germain-des-Prés, que foi ressuscitada pela
Editorial Gallimard em 1947 e que desde 1996 se encontra no XV
Arrondissement, e estudar a sua história; quando descobrir a
Tschann, fundada em Montparnasse em 1929 por dois amigos dos
protagonistas da vida artística do famosíssimo bairro, na altura
boémio, os senhores Tschann, cuja filha Marie-Madeleine foi uma
promotora decisiva da obra de Beckett em França, poderei
satisfazer, por fim, a insistência do tradutor Xavier Nueno, que
espero que me apresente o atual responsável, Fernando Barros, o
qual demonstra nas suas entrevistas pensar tanto no passado como
no futuro da livraria; quando – por último – as leituras ou as viagens
ou os amigos me levarem a outros bairros e a novas livrarias, a
minha topografia cultural de Paris mudará e, com ela, o meu
discurso. Entretanto, aceito os limites desta enciclopédia impossível
e futura, clara-escura como todas, incompleta, em perpétua
reescrita.

«Olhando para trás, após meio século como livreiro em Paris,


tudo me parece uma obra de William Shakespeare que nunca
acaba, na qual os Romeus e as Julietas são eternamente
jovens enquanto eu me converti num octogenário que, como o
Rei Lear, está a perder lentamente as suas luzes.»

GEORGE WHITMAN
The Rag and Bone Shop of the Heart.
1 «Fazer de uma palavra o belo amante de uma frase.» (N. da T.)
Cadeias de livros

«A velocidade implica uma fluidez e uma redução do conteúdo


dos objetos. Estes tornam-se panoramas, imagens. Nada une
os intervalos existentes de uma rota, a não ser a vista
panorâmica do que se divisa lá fora, longe dos sentidos, ainda
relacionados com um sistema técnico que se mantinha em
contacto estreito com a terra firme. O comboio só conhece o
tempo de saída e de chegada; tal como o transeunte
imaginado pelos urbanistas, o viajante é uma peça dentro
deste sistema circulatório.»

RENATO ORTIZ, Modernidad y Espacio – Benjamin en Paris

DESDE 1981, A SHAKESPEARE AND COMPANY é também uma cadeia de


livrarias independentes, com quatro estabelecimentos em Nova
Iorque, todos situados perto de universidades. Embora muitas
possuam as suas próprias livrarias, onde se vendem tanto manuais,
livros de consulta e de leitura obrigatória, como – sobretudo – T-
shirts, sweatshirts, canecas, posters, mapas, postais e outros
objetos turísticos associados à experiência universitária, a Barnes &
Noble colonizou este mercado com mais de 600 livrarias nas
universidades dos Estados Unidos, às quais há ainda que somar as
mais de 700 sucursais urbanas, cada uma com a sua cafetaria
Starbucks no interior (é impressionante como este número é afetado
pelo anúncio de 2013 de que um terço dos estabelecimentos
fecharão nos próximos 10 anos).
Embora a primeira livraria com este nome tenha aberto em Nova
Iorque em 1917, a família Barnes já possuía interesses na indústria
da imprensa desde os anos 70 do século anterior. Cem anos mais
tarde converteu-se na primeira livraria a ter um anúncio na televisão
e, no século XXI, na principal ameaça para a sobrevivência das
pequenas livrarias autónomas. O que não deixa de ser um
paradoxo, pois a tendência de muitos negócios que nascem de uma
única sede é precisamente a multiplicação, tornarem-se elos de uma
mesma cadeia ou marca. As cadeias históricas também começaram
por ser livrarias únicas e independentes. Muito antes de ter dezenas
de sucursais espalhadas por todo o México, a Gandhi era uma
livraria no sul da capital, aberta em 1971 por Mauricio Achar. As
maiores cadeias de livrarias brasileiras nasceram de projetos de
imigrantes: Joaquim Inácio da Fonseca Saraiva, procedente da
região portuguesa de Trás-os-Montes, abriu a primeira Saraiva, que
na altura se chamava Livraria Académica; a primeira Nobel foi
fundada em 1943 pelo italiano Cláudio Milano (em 1992, o neto
adotou o sistema de franchising e as delegações multiplicaram-se);
a Livraria Cultura surgiu da ideia de uma imigrante judaico-alemã,
Eva Hertz, de abrir um serviço de empréstimo de livros na sala da
sua casa, em 1950, e só se converteu em livraria em 1969. Os três
impérios nasceram na mesma cidade, São Paulo, e expandiram-se
por todo o país. A Family Christian Stores conta atualmente com
cerca de 300 lojas, e em 2012 doou um milhão de Bíblias para
serem distribuídas por missionários de todo mundo, mas os irmãos
Zondervan começaram com sobras de tiragens retiradas do
mercado numa quinta, nos anos 30. A sua expansão deveu-se ao
êxito das suas edições baratas de bibliografia religiosa livre de
direitos, como diversas traduções da Bíblia para o inglês.
Graças à sua condição de refúgio de calvinistas e à ausência de
censura religiosa e política, a Holanda converteu-se, durante os
séculos XVI e XVII, num dos grandes centros mundiais do livro. Entre
os seus impressores, destacou a família Elzevir que, de 1622 a
1652, editou autênticos clássicos de bolso anotados por eruditos da
época. Como nos recorda Martyn Lyons: «A edição de 1636 das
obras completas de Virgílio teve um êxito tal que foi republicada 15
vezes. Os clássicos de bolso depressa começaram a ser chamados
“edições elzevir”, embora não fossem eles os editores». Apesar do
êxito, este tipo de produção foi concebido para a elite letrada. Há
que perceber que a Enciclopédia, um autêntico bestseller que
vendeu cerca de 25 mil exemplares, foi adquirida sobretudo pela
nobreza e pelo clero, as classes sociais cujos pilares pretendia
minar. O povo chão e leitor consumia sobretudo os chapbooks de
poucas páginas, as páginas soltas com muitos desenhos ou a
bibliothèque bleue encadernada com o papel azul dos pacotes de
açúcar, cuja distribuição estava em mãos dos vendedores
ambulantes conhecidos como colporteurs na França,
Jahrmarkttrödlers na Alemanha e leggendaio na Itália. Vidas de
santos, ficções disparatadas, farsas, paródias, canções de taberna e
noitadas, contos e lendas, relatos cavalheirescos, calendários das
colheitas, horóscopos, instruções para jogos de azar, receituários e
até resumos de clássicos universais: eram estes os autênticos
bestsellers antes da eclosão do romance romântico e realista no
século XIX e a sua produção folhetinesca em série.

O livro como êxito comercial nasceu com Walter Scott e


consolidou-se com Charles Dickens e William Makepeace
Thackeray. Era tal o volume de vendas do romancista romântico na
Europa, que a partir de 1822 os seus romances apareceram
simultaneamente em inglês e em francês; e em 1824 foi publicada
na Alemanha uma paródia das suas ficções, Walladmor, com o
próprio Scott como personagem, pois é sabido que não há maior
garantia de êxito que a imitação e a troça. Em meados do mesmo
século, os irmãos Lévy lançaram, em Paris, uma coleção de obras a
um franco cada uma. Michael e Calmann enriqueceram com a
comercialização de libretos de ópera e obras de teatro, e abriram
uma das grandes livrarias oitocentistas no Boulevard des Italiens,
onde havia uma secção de livros em saldo. Além de investirem
numa livraria, os irmãos também o fizeram nos caminhos de ferro,
em companhias de seguros e em serviços públicos das colónias. Na
mesma época, Baedeker e Murray popularizaram os guias de
viagem que, como tantos outros tipos de livros, podiam ser
adquiridos numa infinidade de pontos de venda: mercearias,
quiosques, vendedores ambulantes, livrarias independentes e em
rede. Eileen S. DeMarco estudou, em Reading and Riding, o caso
da cadeia de livrarias da Hachette nas estações de comboio
francesas, um projeto que durou quase um século, desde os
primeiros esboços de 1826 até ao início da Primeira Guerra Mundial
em 1914, passando pela inauguração do primeiro estabelecimento
parisiense em 1853. Os comboios converteram-se rapidamente no
veículo por excelência do livro: nas suas carruagens viajavam o
papel, as impressoras e as respetivas peças sobresselentes, os
operários, os escritores, os livros de uma cidade para a outra e,
sobretudo, os leitores. A cadeia baseou a sua eficácia, pela primeira
vez na história, na contratação de mulheres como vendedoras de
livros, de femmes bibliothécaires, pois a iniciativa chamava-se
Bibliothèque de Chemins du Fer. Na carta que Louis Hachette dirigiu
aos responsáveis das principais companhias ferroviárias da França
para os convencer da pertinência da sua proposta, insistia no seu
carácter pedagógico, pois os livros portáteis, leves, que se
ofereceriam, além de servirem de entretenimento durante as
viagens, teriam um cariz educativo. Em julho de 1853 já tinham
aberto as suas portas 43 sucursais, que ofereciam cerca de 500
títulos. No ano seguinte, começaram a vender jornais diários, que se
converteriam, com o tempo, na principal fonte de rendimentos. E
três anos mais tarde incorporaram na sua oferta outras editoras,
embora mantendo o monopólio da venda nas estações. No fim do
século, penetrou na rede do metro.

Até 2004, a rede de livrarias A.H. Wheeler & Co. deteve o


monopólio das vendas nas estações de comboio da Índia. Tal como
a da Hachette – que agora é um grupo editorial multinacional que
movimenta 250 milhões de livros por ano –, a sua história ferroviária
é fascinante. A primeira sucursal abriu as portas em 1877 na
estação de Allahabad depois de o escritor francês Émile Moreau e o
seu sócio T.K. Banerjee tomarem de empréstimo a marca de alguém
que provavelmente nunca pisou solo asiático, Arthur Henry Wheeler,
que possuía uma rede de livrarias na Londres vitoriana. Um acordo
com o Governo indiano concedeu-lhe o monopólio da distribuição de
livros e imprensa com uma clara intenção social e educativa:
durante mais de um século foi o principal veículo de circulação da
cultura nas zonas mais remotas do país, onde muitas vezes a A.H.
Wheeler & Co. era a única livraria num raio de muitos quilómetros.
Com a independência no horizonte, Moreau transferiu em 1937 a
sua parte da propriedade para o amigo e sócio indiano, cuja família
ainda hoje a gere. A companhia entrou no século XXI com uns 600
pontos de venda em quase 300 estações, mas em 2004 perdeu o
monopólio, após um arrebatamento nacionalista do ministro dos
Caminhos de Ferro, Lalu Prasad Yadav, que se insurgiu contra a
sonoridade britânica do nome da empresa indiana. Mas a decisão
foi revogada sete anos mais tarde: a cadeia de livrarias era
demasiado emblemática da paisagem para não ser tratada como
património cultural. Como explica Shiekhar Krishnan no artigo do
The Indian Express onde colhi a informação, «See you in
Wheeler’s» é uma expressão comum em Bombaim, de tal maneira a
marca faz parte do quotidiano do país. É frequente amigos ou
conhecidos combinarem nas suas livrarias e quiosques a compra do
jornal e fazerem juntos as longas horas de viagem de regresso a
casa; e em muitos destes pontos de venda foram organizadas
tertúlias sobre literatura e política, de pé, ao calor de um chai tea.
Em Bombaim nasceu Rudyard Kipling, cujo destino sempre
esteve ligado ao nome «Wheeler», pois esse era o apelido do editor
da Civil and Military Gazette, o primeiro jornal onde – com 17 anos –
trabalhou o futuro escritor. Passava dois terços do dia na redação,
mesmo durante o verão, com as suas temperaturas infernais: o suor
e a tinta convertiam o seu fato na pele «de um cão dálmata», como
disse um dos seus colegas. As suas deslocações de comboio para
cobrir acontecimentos do império em territórios muçulmanos ou
hindus, que incluíam estadas de até seis messes que prefiguraram
as suas célebres viagens ao Japão ou à África do Sul, alimentaram
as histórias e as atmosferas dos seus primeiros relatos, publicados
em 1888 em «The Railway Library», a coleção de paperbacks
publicada pela A.H. Wheeler & Co., a sua primeira editora. Com o
tempo, a memória disfarçaria de exotismo onírico e lendário estas
experiências coloniais, em romances como Kim ou O Livro da Selva.
Tanto a rede livreira da Hachette como a de Moreau e Banerjee
seguiam à risca modelos britânicos, pois em 1848, cinco anos antes
da primeira loja francesa, já existia uma semelhante na estação de
Euston, de Londres, propriedade da WHSmith, provavelmente a
primeira grande cadeia de livros da História. O vínculo entre o Sr.
Smith e o boom ferroviário foi tão estreito, que vários Governos o
nomearam ministro. Paralelamente, a sua livraria foi-se clonando
por toda a ilha à medida que se iam construindo as estações
modernas, com os seus grandes halls onde cabiam engraxadores e
floristas; e a progressiva sofisticação da viagem de comboio
começou a rodear-se dos mesmos luxos e comodidades que já
ofereciam alguns barcos e hotéis. Em finais do século XVIII e
princípios do XIX – como explica Frédéric Barbier em Histoire du
Livre –, as livrarias londrinas já se tinham virado para a rua, com as
suas montras, cartazes, etiquetas e até pregoeiros ou homens-
sanduíches com anúncios que convidavam os mais distraídos a
entrar pelas suas portas. O próprio livro, de facto, foi assumindo a
sua natureza de mercadoria: começaram a ser anunciadas nas
últimas páginas dos livros os restantes títulos da mesma coleção ou
da mesma editora; as capas uniformizaram-se para reforçar a
identidade da chancela e assimilaram os avanços da ilustração; o
preço começou a ser estampado para poder ser utilizado como
chamariz ou isco. A biblioteca dos caminhos de ferro vendia livros a
um preço que oscilava entre 0,75 e 2,50 francos. O preço médio do
livro em França passou de 6,65 francos em 1840, para 3,45 em
1870. Foram lançadas coleções a um franco, porque o consumo de
meios impressos multiplicava-se a olhos vistos, tal como os pontos
de venda. E os de empréstimo. E as bibliotecas e as livrarias
ambulantes que, à semelhança dos comboios, fazem a ponte com a
medula inquieta da Revolução Industrial. E os leitores profissionais:
no século XIX havia quem ganhasse a vida a ler notícias em voz alta
ou a recitar de maneira espaventosa passagens de Shakespeare (a
isto se dedicava, na sua infância, em Stratford-upon-Avon, um
anacrónico e histriónico Bruce Chatwin).
A grande invenção do século XIX é a mobilidade. O comboio
muda a perceção do espaço e do tempo: não só acelera a vida
humana, como converte a ideia de rede, de uma estrutura em rede,
em alguma coisa que se pode percorrer na totalidade em poucos
dias, por muito vasto que seja. Um verdadeiro sistema feito à
medida de um corpo. Os viajantes, que só sabiam ler na quietude,
após um período de adaptação aprenderam a fazê-lo também em
movimento. E não só: podiam erguer a vista da página e combinar
os fragmentos lidos e, por conseguinte, imaginados, com os
fragmentos vistos através da janela (preparando-se para a chegada
do cinema). Surge o elevador, que permite que as cidades cresçam
verticalmente, após demasiados séculos de crescimento horizontal.
Os pesados móveis da aristocracia emagrecem para permitirem as
mudanças. «O domínio da rua sobre a habitação», como traduz, em
termos espaciais, Renato Ortiz. Começam as migrações mais
rápidas e maciças da História da Humanidade. A Exposição
Universal de Paris e a de Londres, frutos do crescimento industrial e
da expansão imperial, são a resposta para a necessidade de tornar
pública – mundialmente – a sua supremacia. São amplificadores,
monstruosas montras do Mito do Progresso. Nasce a moda, que é o
ritmo vertiginoso de que necessita a produção em série, a nova
sociedade de consumo baseada na necessidade de que tudo,
absolutamente tudo, tenha prazo de validade. A moda e a leveza
também chegam aos livros: edições de bolso, miniaturas baratas,
títulos oferecidos, caixas de saldos, bancadas onde se expõem
livros em segunda mão. Tudo isto acontece em Inglaterra e em
França, em Londres e em Paris, os mesmos lugares onde se
configuram as livrarias modernas e, com elas, as cadeias de
livrarias.
A primeira Hudson News, com a sua oferta de imprensa e de
livros comerciais tal como a conhecemos agora, abriu no Aeroporto
de LaGuardia em 1987, após uma experiência anterior no de
Newark. Agora a rede conta com 600 pontos de venda nos Estados
Unidos. Pertencia ao Hudson Group até este ser adquirido em 2008
pela Dufry, um grupo suíço especializado em lojas duty-free. Até à
sua morte, em 2012, o rosto visível da empresa foi Robert Benjamin
Cohen, que durante décadas se dedicou principalmente à
distribuição de jornais e revistas. Segundo indica o seu obituário em
The New York Times, em 1981 foi condenado por subornar os
sindicatos de distribuidores de imprensa para obter um tratamento
favorável. O Hudson Group não só abriu centenas de livrarias e de
quiosques em aeroportos, estações de comboio e terminais de
autocarros de todo o mundo, como era responsável pelos
correspondentes restaurantes de comida rápida. Porque se no
século XIX o mundo acelera, depois das duas guerras mundiais
caberá aos Estados Unidos voltar a pôr o pé no acelerador. E se as
livrarias, independentes e de redes – assumindo que esta
polarização é completamente válida e não foi parcialmente
desmentida por um sem-fim de estádios intermédios –, desenham a
sua topografia no século XIX, a partir dos anos 50 começam a
incorporar as grandes mudanças no consumo do tempo e do espaço
que a cultura de massas norte-americanas introduz. O centro
comercial, que no início imita o modelo europeu (Arcade) e se
instala no centro das cidades, vai-se tornando progressivamente
suburbano. E o parque temático começa a fundir-se com o
restaurante de comida rápida: no mesmo ano em que é inaugurada
a Disneylândia, abre o primeiro franchisado da McDonald’s, ambas
ligadas – à semelhança do que sucede com os motéis – à rede de
estradas dos Estados Unidos, um emaranhado imperial que tem o
seu duplo nas autoestradas aéreas, o equivalente, no século XX, ao
emaranhado ferroviário europeu do século XIX.
A livraria da segunda metade do século XX terá o carácter
aglutinador do shopping mall, no qual convivem – estreitamente ou
numa relação de vizinhança – a exposição de livros, o infantário, o
parque infantil, a sala de espetáculos, a restauração e,
progressivamente, os discos, os vídeos, os CD, os DVD, os jogos de
computador e os souvenirs. O modelo norte-americano urbano, vital
e, por conseguinte, livresco, será seguido em grande medida por
outras potências, como o Japão, a Índia, a China ou o Brasil e, por
extensão, pelos restantes países. E os velhos impérios não terão
outra alternativa a não ser adaptar-se a essa tendência hegemónica
de oferta maciça de lazer que assegura uma venda indiscriminada
de consumíveis culturais. Assim, a WHSmith e os supermercados
Coles unir-se-ão para criar a Chapters. E a Fnac, que nasceu em
1954 como uma espécie de clube literário de espírito socialista,
acabaria por vender televisores em 80 estabelecimentos em França
e em mais de sessenta no resto do mundo. Todas as cadeias têm
qualquer coisa em comum: a oferta está dominada pela produção
cultural norte-americana.
Em Atlante del Romanzo Europeo 1800-1900, Franco Moretti
traduziu em mapas a influência de autores como Scott, Dickens,
Dumas, Hugo, Stendhal ou Balzac, e a expansão viral no Velho
Continente de subgéneros como o romance sentimental, náutico,
religioso, oriental ou o de «talheres de prata» (que às vezes só eram
lidos regionalmente). Isso permitiu-lhe compreender a lógica da
forma do romance durante o século XIX como tradução dos dois
modelos predominantes:

«Formas diversas, Europas diversas. Cada género literário tem a sua


geografia e até a sua geometria: mas são todas figuras carentes de centro.
Reparem em quão estranha é, e nada óbvia, a geografia do romance. E
duplamente estranha. Porque, em primeiro lugar, o romance blinda a
literatura europeia contra qualquer influência estrangeira: reforça, e inventa
mesmo, o seu carácter peculiarmente europeu. Mas esta forma tão
profundamente europeia privará depois quase toda a Europa de qualquer
liberdade criativa: duas cidades, Londres e Paris, dominam-na durante um
século inteiro, publicando metade (e talvez mais) de todos os romances
europeus numa impiedosa e inflexível centralização cultural. Centralização:
o centro, o facto sabido, mas visto como o que é: não um dado, mas um
processo. [...] As bibliotecas inglesas e as biografias europeias enviam-
nos, pois, a mesma mensagem: com o romance nasce, na Europa, um
mercado literário comum. Um mercado único: através da sua
centralização. E um mercado desigual: pela mesma razão. Porque nos
cem anos decisivos compreendidos entre 1750 e 1850, a peculiar trama
geográfica da centralização faz com que em quase toda a Europa os
romances sejam, muito simplesmente, livros estrangeiros. Os leitores
húngaros, italianos, dinamarqueses, gregos, familiarizam-se com a sua
nova forma lendo romances ingleses e franceses; e assim,
inevitavelmente, os romances ingleses e franceses convertem-se em
modelos dignos de imitação.»

Se aplicarmos o método analítico de Moretti aos catálogos da


Barnes & Noble, da Borders, da Chapters, da Amazon ou da Fnac,
como ele faz com os das circulating libraries e os cabinets de lecture
oitocentistas, além da correspondente percentagem de títulos locais,
veríamos que o consumo global de ficção é sobretudo de produtos
norte-americanos ou inspirados por eles. A mesma estratégia que a
Inglaterra e a França adotaram no século XIX relativamente ao
romance foi assimilada pelos Estados Unidos, que no cinema de
Hollywood, e mais tarde nas séries televisivas, fez da ficção
audiovisual o modelo digno de imitação, impondo – tal como
Londres e Paris impuseram a sua ideia de livraria – um modo de
espacializar a experiência familiar (com o televisor no centro), a
experiência cinematográfica (nos cinemas multissalas) e a
experiência da leitura (fundindo a livraria, a loja de souvenirs e a
cafetaria ao estilo da Starbucks).
É por essa razão que as grandes cadeias de livrarias norte-
americanas são o epítome dessa forma de conceber a distribuição e
venda de cultura a que chamamos cadeia de livrarias e que amiúde
distinguimos com a palavra «grande». Porque a pequena cadeia, a
meia dúzia de livrarias pertencentes a um mesmo dono e a uma
mesma marca, pode continuar a ter o capital localizado
característico do negócio independente, enquanto as grandes
cadeias constituem conglomerados quase sempre multinacionais
nos quais o livreiro deixou de o ser, porque perdeu a relação direta –
artesanal – com o livro e com o cliente. O livreiro é um empregado
ou um diretor-executivo ou o responsável pelas encomendas ou o
chefe de pessoal. As cadeias de livrarias, imersas nessa dinâmica
de acionistas e de administradores-delegados, provocam as
concatenações de acontecimentos próprias das grandes empresas:
a Waterstones foi criada em 1982 por Tim Waterstone depois de
este ter sido despedido da WHSmith, que por sua vez a comprou
em 1999, para a vender mais tarde à companhia que tinha adquirido
a principal cadeia da concorrência, a Dillons, cujos estabelecimentos
foram convertidos em Waterstones. Sob a nova direção, em 2008 a
Waterstones de Cardiff cancelou uma leitura do poeta Patrick Jones
depois de ter recebido ameaças da associação Christian Voices de
boicote a esta sessão, por se tratar de um livro «obsceno e
blasfemo». Os círculos e as piruetas, portanto, não são apenas
neoliberais, mas também kafkianos.
Quando estive em Londres no início de 2016, foi-me dada a
oportunidade de entrevistar James Daunt, administrador-delegado
das suas 300 livrarias e dono das oito da Daunt Books. Fiquei
surpreendido quando a primeira coisa que ele fez, assim que nos
encontrámos na cafetaria da Waterstones de Piccadilly, foi perguntar
o que é que eu queria beber, ir até ao balcão, pedir um café com
leite e servir-mo com um sorriso. Com os seus 52 anos, James
Daunt pareceu-me alto e elegante, de gestos cordiais que
inspiravam muita calma em contraste com um olhar cortante,
incisivo. Foi contratado em 2011 pelo multimilionário russo
Aleksandr Mamut, que tinha acabado de comprar a rede, na altura
praticamente na bancarrota, ao HMV Group por 67 milhões de
euros. Ou seja: ia entrevistar o homem que salvou a Waterstones.
– Quando, em 2011, o puseram à frente do projeto da
Waterstones que panorama encontrou?
– A cadeia estava na bancarrota. A Kindle tinha arrancado com
muita força e o mercado tinha descido 25%. O que é que eu fiz? A
primeira coisa em que pensei foi em motivar os livreiros, mas antes,
infelizmente, tive de despedir um terço do pessoal. Estava decidido
a converter a Waterstones numa companhia onde eu próprio tivesse
prazer em trabalhar. Nada fácil, se se tiver em conta que aqui deixou
de haver preços fixos e a Amazon podia vender os livros a um preço
até 40% mais barato do que o nosso. É por isso que o livreiro tem
de compensar essa diferença de preço com a sua qualidade
humana, com o seu comprometimento e o seu prazer na energia
que há entre o leitor, o livro e ele próprio. Essa energia não pode
estar na Amazon.
– Quais foram as principais mudanças que introduziu, além de
ter despedido trabalhadores?
– É um processo lento, isto de mudar uma livraria. A Hatchards
foi uma grande livraria, muito importante, mas entrou em decadência
e demorámos 10 anos a recuperá-la, no âmbito da Waterstones.
Também estamos a conseguir fazê-lo com o resto das livrarias da
cadeia: passámos de ganhar nove milhões de libras a ganhar 13
milhões no ano passado. A primeira coisa que fiz foi depositar nos
livreiros uma grande confiança, dar-lhes total autonomia para
decidirem que livros vendem e quais é que não. Para isso, tive de
converter a Waterstones na única cadeia que não aceita a compra
de espaço expositivo por parte das editoras, nem mesas ou
montras. Antes da minha chegada, a Waterstones tinha ganhado
uns 27 milhões de libras dessa forma. Mas aceitar esse dinheiro
significa que o editor pode pressionar-nos e que o livreiro não pode
selecionar, não pode ser o curador da sua própria livraria, de
maneira que o trabalho deixa de ser estimulante. A compra de
espaço expositivo cria livrarias uniformes, iguais. A minha outra
mudança teve a ver com as devoluções. Passámos de 27% para os
3% atuais, e o meu objetivo é que não haja devoluções.
– Todo o sistema se baseia nessa entrega de novidades em
depósito e nas devoluções periódicas. A negociação com os
editores deve ter sido dura...
– Os editores detestaram estas medidas. É preciso ter coragem
para se mudar o sistema editorial. Eu reuni-me com eles e
perguntei-lhes o seguinte: «Têm uma ideia melhor? Porque se não
fizermos mudanças, o negócio acaba.» Aos poucos, foram
compreendendo. Um grande editor, uma pessoa que estiver a
construir um grande catálogo, sobreviverá connosco; caso contrário,
se só estiver interessado nas novidades, nos títulos medíocres,
talvez consiga vender valendo-se de artimanhas, mas acabará por ir
ao fundo.
– Qual é a vossa postura em relação aos clientes, aos leitores?
– O nosso desafio é satisfazermos os clientes mais intelectuais e
não intimidarmos os clientes menos intelectuais. Em todas as
minhas livrarias, os taxistas têm de sentir-se à vontade. São
pessoas que leem muito, tanto imprensa como livros, por isso quero
que entrem nos meus estabelecimentos e encontrem o que desejam
ler. Não sou ingénuo, sei que as livrarias da Waterstones são
livrarias de classe média, e que os meus clientes da Daunt Books
têm cachê. Todas as livrarias devem conhecer o seu público e não
devem tentar competir com supermercados ou outro tipo de
estabelecimento que também venda livros.
– Como é o livreiro da Waterstones? E o da Daunt Books?
– A minha intenção é que acabem por ficar parecidos. Um bom
livreiro tem de ser amistoso, tem de estar interessado na cultura e
de ser capaz de contagiar esse interesse, tem de estar
intelectualmente comprometido com os livros e, além disso, ser
enérgico (não podemos esquecer que é um trabalho muito físico).
Queremos que os leitores mais novos trabalhem connosco, porque
não vão sentir isto numa cadeia onde prime a eficiência e a
estandardização em detrimento de um certo espírito de curiosidade
e de amor pelos livros. Por isso, também estamos a mudar a
conceção do espaço. Sempre que vou a Espanha, inspiro-me na La
Central, um dos meus modelos, como também o é a cadeia de
livrarias Feltrinelli, na Itália...
– Nota-se isso aqui no primeiro andar, com esta madeira cálida
que faz lembrar a La Central da Plaza del Callao, em Madrid. Sabia
que quem está por detrás desses projetos é o mesmo designer, o
argentino Miguel Sal?
– Exato! Eu comia com o Miguel sempre que ia a Londres. Era
um homem inteligente, divertido e provocador... Além de ser um
excelente cliente, acabava sempre por comprar livros como um
louco. Que pena que tenha desaparecido há pouco tempo de
maneira inesperada.
– O que acha da grande nova ideia da Amazon de abrir livrarias
físicas?
– Acabo de vir de Seattle. A livraria é alucinante. Os livros não
estão expostos de lado, mas de frente, com a capa à mostra. Só
têm uns cinco mil e estão dispostos de acordo com um cálculo
matemático, sem outro tipo de arrumação, sem hierarquias, sem
que possamos experimentar o sentimento de estar a descobrir
qualquer coisa. Desconstruíram a ideia de livraria: se tivesse outro
nome seria ridícula, mas como se chama Amazon, é brilhante.
Porque não nos podemos esquecer de que a WHSmith não é uma
livraria, mas a Amazon sim.
«Quem melhor para ir à guerra contra a Amazon do que uma
amazona?», perguntava Jan Hoffman numa crónica sobre a McNally
Jackson Books publicada no New York Times. A guerreira seria
Sarah McNally que, num canto emblemático de uma livraria famosa
pela sua generosidade para com os escritores ibero-americanos
(gerida por Javier Moea), pela sua agenda de atividades e pelo seu
fundo de obras literárias organizado geograficamente, instalou a
Espresso Book Machine, uma máquina capaz de imprimir e de
encadernar em poucos minutos qualquer um dos sete milhões de
títulos da livraria-nuvem que depende da livraria palpável de
Manhattan.
Numa cena fisicamente liderada pela Barnes & Noble e
virtualmente pela Amazon, após o fecho das centenas de livrarias
da Borders, a American Booksellers Association lançou as
campanhas Book Sense e IndieBound, cujos dois principais cavalos
de batalha são um prémio literário e uma lista de livros mais
vendidos que só tem em conta as aquisições em livrarias
independentes (contrariamente à do The New York Times, que
contabiliza as dos quiosques, redes de livrarias, supermercados,
lojas de presentes e drugstores, além de ter em conta os registos
dos próprios editores, duplicando, muitas vezes, os números de um
mesmo livro). André Schiffrin escrevia sobre esse panorama em
2010, em L’Argent et les Mots:

«Em Nova Iorque, onde nos anos do pós-guerra havia 330 livrarias, já só
restam trinta, incluídas as de cadeias. A Grã-Bretanha experimentou o
mesmo processo: a cadeia Waterstones, depois de ter eliminado
numerosas livrarias independentes ao aplicar enormes descontos, foi
comprada pela WHSmith, uma rede de quiosques de jornais e revistas
conhecida pela sua política puramente comercial e o seu conservadorismo
político.»

O editor utiliza no seu texto vários rótulos para diferenciar as


livrarias de qualidade das cadeias de livrarias: «livrarias com uma
função cultural», «livraria intelectual», «livraria de referência», e
comenta as estratégias protecionistas levadas a cabo pela França
para assegurar a sua sobrevivência. Anos depois, o Governo de
Hollande ideou outras. Contrariamente ao Clube de Vídeo, mas sem
chegar ao extremo da Biblioteca, a Livraria possui uma aura de
prestígio, uma importância tradicional comparável à do Teatro ou do
Cinema como espaços que devem ser preservados e potenciados
pelos orçamentos dos Estados. Esta consciência não existe nos
Estados Unidos, mas não seria de estranhar que o vazio deixado
pela Borders, em vez de ser invadido por outras cadeias, seja
localmente ocupado por novos estabelecimentos com ambições
culturais, que ofereçam um tratamento personalizado e com vontade
de se tornarem centros culturais no futuro: de referência. Em lugares
com uma intensa atividade nas redes sociais, com boas páginas
Web e que ofereçam o serviço de impressão por encomenda ou
estejam situados perto de centros de impressão. Pequenas lojas
que sirvam café e bolos caseiros, ou que ofereçam oficinas de
escrita, como as adegas requintadas que organizam cursos de
prova de vinhos. Livrarias nas quais o pó não seja eliminado por
anónimos serviços de limpeza, mas pelos próprios livreiros, com a
intenção de irem memorizando o lugar exato onde se encontra cada
um dos volumes raros, minoritários, artesanais, passados de moda,
que não têm lugar nas grandes cadeias de livros e que só os
livreiros das famílias Beach, Monnier, Yánover, Steloff, Sanseviero,
Ferlinghetti, Milla, Montroni ou McNally saberão acomodar nas
estantes ou nas mesas de novidades: torná-los visíveis.

«A Primeira Guerra Mundial interrompeu os planos de


Wallace. Em outubro de 1918 foi gravemente ferido durante
uma batalha em França. Durante os meses de recuperação,
centrou-se na leitura de muitas revistas, condensando os
artigos até ao essencial. Quando regressou a casa, em St.
Paul, continuou a trabalhar na condensação de outros artigos
da imprensa, juntando 31 artigos resumidos numa prova do
tipo de revista condensada que queria vender. [...] A primeira
edição da Reader’s Digest saiu em fevereiro de 1922.»

www.referenceforbusiness.com
Livros e livrarias do fim do mundo

«Este comentário do Apocalipse, que deposito nas mãos do


leitor, não pretende ser fruto da erudição.»

CRISTÓBAL SERRA (ed.), Apocalipsis

QUAL FOI A PRIMEIRA COISA QUE FIZ quando cheguei a Sidney? Procurei
uma livraria e comprei uma edição de bolso de Canto Nómada, de
Chatwin, cuja tradução para o castelhano tinha lido tempos atrás, e
outra de Austerlitz, de Sebald, que tinha acabado de ser publicado
em inglês. No dia seguinte, visitei a Gleebooks e estampei um dos
primeiros carimbos no meu passaporte invisível, que naquela época
(em meados de 2002) tinha um sentido, digamos, transcendente
para mim, peregrinava nas livrarias, nos cemitérios, nos cafés, nos
museus, nos templos da cultura moderna que ainda adorava. Como
já terão adivinhado nesta altura do ensaio, há muito tempo que
assumi a minha condição de turista cultural ou de metaviajante, e
que deixei de acreditar em passaportes invisíveis. A metáfora, no
entanto, parece-me bastante adequada e, no caso dos amantes das
livrarias, serviria para mascarar uma pulsão fetichista e sobretudo
consumista, um vício que, por vezes, é demasiado parecido com a
síndrome de Diógenes. Após esta viagem de dois meses pela
Austrália, regressei com 20 livros na mochila, alguns dos quais
desapareceram no crivo das minhas mudanças sem terem sido
lidos, folheados ou sequer abertos.
Estava eu a dizer: no dia seguinte fui à Gleebooks, mas os dois
livros fundamentais da viagem comprei-os numa livraria qualquer.
Há que distinguir entre as grandes livrarias do mundo e as livrarias
de emergência. É claro que estas últimas são as que nos
abastecem das leituras mais necessárias, as que não podem
esperar, as que nos entreterão durante um voo ou uma viagem de
comboio, as que nos permitem comprar um presente de última hora,
as que nos proporcionam – no próprio dia em que começou a ser
distribuído – o livro de que estávamos à espera. Sem as livrarias de
emergência não existiriam as outras, não fariam sentido. Uma
cidade tem de ser um entramado de lojas de livros: do quiosque à
livraria principal abre-se uma gama de livrarias modestas e médias,
de cadeias de livros, de secções de bestsellers em supermercados,
de estabelecimentos de livros de ocasião, de livrarias especializadas
em cinema, banda desenhada, romances policiais, livros
universitários, meios de comunicação, fotografia, viagens.

Cheguei ao n.º 49 da Glebe Point Road, a casa de estilo colonial


com o seu alpendre de uralite suportado por colunas metálicas,
porque o meu guia a destacava como sendo a livraria australiana
por antonomásia, vencedora em várias ocasiões do prémio para
melhor estabelecimento do país. Estávamos em julho de 2002 e
este livro era ainda um mero projeto entre tantos outros. Os
apontamentos sobre esta visita, fundeados no tempo, contrastavam
agora com a página Web da livraria, em constante atualização.
«Fundada em 1975», leio na minha caligrafia de então. «Estantes
de madeira», leio:

«Aparentemente caótica (até há livros no chão). A parte traseira dá para


um pátio rudimentar e arborizado. Grande quantidade de literatura
australiana, anglo-saxónica e traduzida. Vendem-se cadernos Moleskine.
Mural com capas de livros com dedicatórias dos autores. Águas-furtadas
encantadoras, alcatifadas, tal como o andar de baixo, com muita luz
natural, ventoinhas e vigas de madeira, com o teto à vista. Edição do
romance de Carey sobre os Kelly a imitar o papel e a tipografia antigas.
Revistas em dia. Nas águas-furtadas realizam atos literários. Folheio
Carrion Colony, um romance de humor absurdo sobre uma penitenciária
do século XIX.»

A edição em castelhano de A Verdadeira História do Bando de


Ned Kelly, de Peter Carey, traduzida por Enrique de Hériz, foi
publicada poucos meses antes da minha viagem. Fazendo alarde,
uma vez mais, da sua capacidade para imitar vozes, o escritor
australiano assume a primeira pessoa de Ned Kelly, órfão, ladrão de
cavalos, pioneiro, reformista, salteador e polícia, Édipo,
reencarnação do Robin dos Bosques no fim do mundo. Ou seja:
uma tradução de mitos europeus num país que, para se inventar
como nação, ignorou a cultura local, milenar e complexa, ao mesmo
tempo que tentava exterminar ou assimilar os nativos. Como todas
as livrarias australianas, a Gleebooks evidencia na sua distribuição
física a ferida não cicatrizada que percorre com um rastilho de
pólvora a ilha-continente: uma secção chama-se «Estudos
Aborígenes», e outra «Estudos Australianos», porque são duas as
Austrálias que se sobrepõem num só mapa, e cada uma delas
defende os seus próprios limites.
No meu arquivo desta viagem não há mais livrarias australianas:
nenhuma das que visitei em Brisbane, Cairns, Darwin ou Perth me
pareceu particularmente sedutora. Os principais títulos para a minha
investigação sobre a emigração espanhola para a outra ponta do
Planeta comprei-os em lojas de museus. Dez anos mais tarde, fui a
Melbourne e tive a oportunidade de conhecer as suas duas livrarias
principais, que me pareceram memoráveis: a Reader’s Feast
Bookstore, em cujos cadeirões descobri a literatura aborígene
contemporânea através de Tara June Winch, e a Hill of Content,
sem dúvida a minha favorita, tanto pelo seu texto como pelo seu
contexto. Todas as cidades se articulam, agora, através do culto ao
café, de maneira que as livrarias parecem apêndices deste ritual,
cujos tempos são completamente afins aos da leitura. A menos de
cem metros da Hill of Content, encontram-se a Pellegrinis, uma
velha cafetaria e restaurante italiano que se converteu numa
autêntica instituição em Melbourne, e a Madame Brussels, um
sofisticado espaço situado no terceiro andar do edifício da frente.
Entre a antiguidade vintage (na cozinha, a dona falava num dialeto
com o seu ajudante) e a modernidade retro (só a loiça da Madame
Brussels é realmente velha): foi lá que comecei a ler Debaixo do
Sol, as cartas de Chatwin, e Viagens, a antologia de crónicas de
viagem de Bowles, ambos recentemente editados e ainda invisíveis
nas minhas livrarias de Barcelona, e pelo contrário expostos na
montra de uma das livrarias do fim do mundo.
Os capuchinos que servem em Melbourne e a sua empenhada
persistência da hora do chá, o cultivo de vinhos excelentes e as
barraquinhas das suas praias, a vida na rua e as restauradas
Arcades: tudo pode ser lido como um vaivém entre um estilo de vida
mediterrânico, europeu, se se preferir, internacional, e uma certa
resistência em abandonar o passado colonial britânico, a herança da
Commonwealth. O mesmo acontece na África do Sul: os mesmos
capuchinos, a mesma hora do chá, vinhos igualmente bons, as
mesmas barracas multicolores, essa vida de esplanada que agora
partilham a maior parte das cidades do mundo, as mesmas
paisagens (e, como pano de fundo, um idêntico extermínio). Na
zona mais pitoresca da Cidade do Cabo, The Long Street Antique
Arcade, a livraria e o café são vizinhos dos bazares de antiquários e
das lojas de objetos militares, numa amálgama que é possível
encontrar em todas as galerias urbanas do velho Império Britânico.
Qual foi a primeira coisa que fiz quando aterrei em Joanesburgo
em setembro de 2011? Como é óbvio, perguntar pela melhor livraria
da cidade. Só a consegui visitar no último dia, quando, a caminho do
aeroporto, pedi ao taxista que parasse ao pé dela o tempo suficiente
para eu poder apreciá-la. Tratava-se da Boekehuis, especializada
em literatura em africâner, a única livraria que conheço que ocupa
uma moradia inteira, rodeada de jardins e protegida por um muro e
um posto de vigilância. Centenário, de estilo colonial, o edifício era a
residência da filha de Bram Fischer, um proeminente ativista anti-
apartheid. As lareiras foram tapadas, mas o ambiente continua
acolhedor, a cafetaria é uma espécie de oásis e os tapetes da
secção infantil recebem contadores de histórias aos fins de semana.
Agora que já tenho a biblioteca de que preciso e que posso andar
com livros armazenados no meu tablet, nas minhas viagens só
compro os títulos que podem vir-me a ser realmente úteis, os livros
que não se encontram facilmente na minha cidade e que quero
mesmo ler. De maneira que não comprei nada na Boekehuis. E
também não o fiz na The Book Lounge, a melhor livraria da Cidade
do Cabo. Trazia na mala o Praying Mantis, de André Brink. O
romance é a reescrita de uma história real situada no nebuloso
amanhecer do país, a do desordeiro Cupido Cockroach, que se
transformou num fervoroso missionário e viveu nas suas negras
carnes os conflitos que assolaram o futuro da África do Sul. Tanto A
Verdadeira História do Bando de Ned Kelly como vários livros de
J.M. Coetzee valem-se da mesma estratégia: a do manuscrito
encontrado e reescrito, a do diálogo com a matéria textual do
passado. A revisão das origens turvas da pátria encontra as origens
do próprio Coetzee como romancista: desde o seu primeiro livro,
Dusklands, cuja primeira parte, «Vietnam Project», começa assim:
«Chamo-me Eugene Dawn. Não posso fazer nada contra isto.
Começo, pois»; e cuja segunda parte, «The Narrative of Jacobus
Coetzee», na qual J.M. Coetzee surge como tradutor, começa deste
modo: «Há cinco anos, Adam Wijnand, um bastardo, não há que ter
vergonha disso, fez as malas e viajou a pé para o território dos
korana.» O título do romance Desgraça pode ser traduzido como
Vergonha. Pouco antes da minha viagem à África do Sul, tinha lido o
livro Estética de Laboratorio, de Reinaldo Laddaga, um desses
escassos bons livros de ensaio, como La République Mondiale des
Lettres ou Atlante del Romanzo Europeo 1800-1900, no qual o autor
não se centra numa língua ou numa área geográfica concretas, mas
tenta desenhar um mapa-múndi, porque a literatura não pode ser
entendida desde uma fé anacrónica nas fronteiras. Contrariamente
ao que sucede nos seus livros anteriores, onde Laddaga fala sobre
a literatura latino-americana, no novo título relaciona o espectro da
literatura atual, que sinto estar numa frequência semelhante à minha
(Sebald, César Aira, Sergio Chejfec, Joan Didion, Mario Levrero,
Mario Bellatin), com autores de outros âmbitos da criação
contemporânea, como a música ou as artes visuais. Um capítulo
versa sobre um aspeto de Desgraça que, apesar das minhas
reiteradas leituras, me tinha passado despercebido. David, o
protagonista, tenta compor uma ópera durante todo o romance, a
história de Byron em Itália, e a ficção termina com uma imagem
desoladora: a da personagem a afinar uns acordes num velho banjo
da filha, enquanto pondera a necessidade de incluir na sua obra o
lamento de um cão moribundo, sentado num velho cadeirão e
protegido por um chapéu de sol, com uma África negríssima e
incompreensível a expandir-se a perder de vista, que não se
exprime em inglês nem conhece os mitos e as línguas da Velha
Europa. Nessa composição que obceca David durante todo o
romance, segundo Laddaga, encontra-se a semente de todos os
livros posteriores de Coetzee: páginas escritas a partir de materiais
pobres, como apontamentos, diários, entrevistas e cartas, sem o
prestígio do que é literário, ensaios frustados, tentativas de afinar
uma música que não pode ser sublime, onde os alter ego do escritor
aparecem numa cena para exprimir a sua incapacidade de anunciar,
no século XXI, um relato acabado e perfeito.

Tão parecida com a Hill of Content, a Livraria da Travessa ou a


Eterna Cadencia que podiam ser irmãs, a The Book Lounge é uma
livraria encantadora, com grandes mesas e sofás e uma cave
decorada com tapetes onde apetece ficar a viver. A sua estética é
absolutamente clássica e, por conseguinte, familiar. Porém,
percorrê-la significou ser confrontado com um enigma. Porque, ao
observar os livros, estante após estante, fui encontrando vazios. O
primeiro, foi o de Paulo Coelho: os seus romances e livros de
autoajuda não estavam lá, como nos avisava um pequeno letreiro. O
segundo, foi o de Gabriel García Márquez. O terceiro, Coetzee. Nos
três casos, sempre o mesmo letreiro: «Peça os seus livros ao
balcão.» O que teriam em comum García Márquez e Coetzee? A
livreira estava a falar com um amigo e tive vergonha de interrompê-
los, de maneira que matei o tempo a fotografar a loja e a folhear os
livros. Quando ficou sozinha, pedi-lhe que desfizesse o enigma. E
assim fez: estes são os três autores mais roubados. Os únicos
roubados. «De maneira que os temos aqui», disse-me, apontando
para umas pilhas de livros que estavam atrás de si. Pedi-lhe os de
Coetzee. Não havia nenhum que eu não tivesse em casa, mas voltei
a dar uma vista de olhos ao discurso do Prémio Nobel, belamente
encadernado com tela pela Penguin e que tinha comprado anos
antes na Seminary Co-op., e procurei, na edição que a Penguin
Classics tinha acabado de publicar de Desgraça, uma edição
anotada a pensar nos estudantes universitários, alguma referência à
estética da precariedade, à ópera composta por David como
semente da sua ficção futura, à pobreza da sua execução com um
banjo desafinado numa casa apenas habitada por cães. Em vão.
Verão: Cenas da Vida na Província é o livro onde se podem
apreciar de maneira mais rotunda as intuições de Laddaga. A sua
análise chega até Diário de Um Mau Ano, mas é na última obra-
prima de Coetzee, até ao momento, que atingiu o esplendor
epifânico. Duríssima autobiografia ficcionada, é um romance sem
centro, sem clímax. E, no entanto, recordo com peculiar intensidade
a noite que John passa com a prima no interior de uma camioneta,
uma cena tão poderosa como o turbilhão do Maelstrom, apesar da
sua aparente indolência, da sua pátina de inação. Nesse momento,
o leitor sente-se no fim do mundo. É um sentimento forte: como
atravessar a Austrália ou a África do Sul ou os Estados Unidos ou o
Norte mexicano ou a Argentina, deter de repente o avanço das
horas pela paisagem monocórdica, parar numa bomba de gasolina
ou numa aldeia e sentir que se está, sem mais nem menos, no meio
de nenhures, a vertigem de se estar num posto fronteiriço de olho
preso ao horizonte à espera de uns bárbaros que nunca mais
chegam, essa angústia que leva a uma pergunta inevitável: «Que
raio faço eu aqui?»
Na Patagónia segui o rasto de Chatwin como em nenhum outro
lugar do planeta Terra. Durante essas semanas, o meu exemplar da
Muchnik Editores da sua obra-prima engordou até se converter
numa pasta-arquivador: à rugosidade dos sublinhados a lápis
juntaram-se os bilhetes de autocarro, os postais e os folhetos
turísticos, como os da Estancia Haberton ou os da Cueva del
Milodón. Dois foram os momentos em que estive mais perto do
autor de Anatomia da Errância: quando entrevistei o neto de
Hermann Eberhard («De manhã dei um passeio com o Eberhard
sob uma chuva torrencial. Estava com um casaco forrado de pele e
olhava ferozmente para o vendaval sob o seu gorro de cossaco»)
em Punta Arenas, que me contou a estranha visita que o escritor e
biógrafo Nicholas Shakespeare lhe fez para o entrevistar, a meio da
qual começou a ficar obcecado com a ideia de lhe comprar um
antigo frigorífico para a sua coleção, de maneira que a conversa foi
derivando para o eletrodoméstico até a monopolizar por completo; e
quando fui a pé até Puerto Consuelo para visitar a gruta lendária e
uma matilha de cães me perseguiu e dei por mim a pular cercas,
porque o caminho estava constantemente a ser interrompido pela
propriedade alheia, até que, finalmente, morto de medo, saiu de
uma rulote convertida em lar estável um homem sujo e rude que
acalmou aqueles cães do demo. Chatwin, o mitómano: é impossível
teres feito tudo o que dizes no livro e, no entanto, quão intenso é o
ar de verdade que irradia de tudo o que escreveste.
Qual foi a primeira coisa que fiz quando cheguei a Ushuaia na
primavera de 2003? Visitar o Museu do Presídio e comprar na sua
loja Uttermost Part of the Earth, de E. Lucas Bridges, a história da
sua vida no fim do mundo, entre os yagan (índios canoeiros), os
selknam (caçadores nómadas) e a sua família de emigrantes
britânicos (donos da fazenda Haberton, a primeira da Terra do
Fogo). É um dos melhores livros de viagens que já li, e a antítese do
relato de Chatwin. À sua fragmentação, Bridges contrapõe a
unidade; à sua superficialidade – própria da velocidade da maior
parte das viagens memoráveis –, uma profundidade que poucas
vezes se viu na Tradição Inquieta: o autor estudou a língua dos
aborígenes, travou amizade com eles, construiu uma ponte entre
ambas as culturas que Chatwin, no livro Na Patagónia, nem sequer
se propõe construir entre a anglo-saxónica e a hispânica. A verdade
de Bridges é superior à verdade de Chatwin. Pode parecer estranho,
mas é assim: a verdade literária tem os seus graus, e a
honestidade, impossível de provar à medida que os factos se vão
distanciando no tempo, pode fazer com que um livro penetre na
nossa intimidade mais profunda. Muitas vezes o viajante vê o que o
nativo não é capaz de apreciar, mas não é a mesma coisa ser um
turista no fim do mundo ou ter vivido nele.
Suponho que o que eu senti nas minhas fugazes estadas na
Terra do Fogo, no cabo da Boa Esperança ou na Austrália
Ocidental, esse pulsar da lonjura e da finitude, é a mesma coisa que
os viajantes romanos e os peregrinos medievais sentiam quando
divisavam as diversas finis terrae de ressonâncias celtas onde a
Europa Ocidental se despenhava no mar. Depois de chegar a
Santiago de Compostela, cidade universitária e, portanto, de
comércio livreiro e, portanto, de empenho de livros no fim de todos
os anos letivos desde 1495, os peregrinos retomavam o seu
caminho por mais três ou quatro dias até chegarem a Finisterre, em
cuja praia queimavam as roupas de meses inteiros de errância
antes de darem início ao lento regresso a casa, também a pé. Se há
qualquer coisa que une todas as religiões é a necessidade do livro,
a ideia de que caminhar nos aproxima dos deuses e a convicção de
que o mundo vai acabar. Para os antigos, esta certeza tinha uma
tradução física: com efeito, uma vez atingido um certo ponto, uma
certa fronteira, não era possível ir mais além. A nós, que mapeámos
o Globo até ao último confim, que acabámos com o mistério do
espaço, só nos resta certificar a existência dos tempos.

Coube-nos em sorte assistirmos ao lentíssimo fim do livro de


papel, tão lento que talvez nunca chegue a acontecer de todo. E, no
entanto, em Bécherel, na mesma Bretanha onde nasceu o material
romanesco moldado por Chrétien de Troyes e que se tornou tão
digno de imitação, a poucos quilómetros do departamento francês
de Finistère, visito, na companhia do tradutor François Monti, 17
livrarias e galerias de arte relacionadas com a tinta e a caligrafia
numa só tarde. Faz parte de uma teia de aldeias livreiras que pode
parecer anacrónica, mas que é impressionante. A primeira foi a Hay-
on-Wye, em Gales, fundada por Richard Booth em 1962 e que hoje
conta com 35 livrarias. Há-as na Escócia, na Bélgica, no
Luxemburgo, na Alemanha, na Finlândia, na França, em Espanha.
Em Bécherel, antes de 1989, não existia um só estabelecimento de
livros. O seu velho esplendor têxtil foi fixado pela toponímia: Rue de
la Chanvrerie (ou do cânhamo), Rue de la Filanderie (ou da fiação).
As presunçosas residências dos mercadores falam dos séculos XV,
XVI e XVII, quando esta zona exportava o melhor linho da Bretanha.
Na casa de hóspedes onde ficámos alojados há uma roca e uma
estante cheia de livros. Nunca tinha visto tantas livrarias com o chão
coberto de tapetes.
As casas são antigas, mas os alfarrabistas são novos e a
desordem está perfeitamente calibrada: encenações com um toque
retro numa arquitetura vintage. Com a sua estufa decorada com
esculturas metálicas e os seus dois andares junto do jardim do
presbitério, a Librairie du Donjon é uma das mais belas que já vi em
toda a minha vida. No entanto, é difícil esquecer que estou no
coração de uma operação turística. Que Bécherel é um parque
temático do livro. A inversão de uma velha dinâmica: a biblioteca,
em plena crise económica, com as suas ludotecas e as suas
videotecas, está mais viva do que nunca; e a livraria, pelo contrário,
converte-se em museu como estratégia de sobrevivência. Ou
desaparece: acabo de descobrir na internet que a Boekehuis fechou
em janeiro de 2012.
Algumas livrarias, remotas se a distância for medida desde
Barcelona, encontram-se no fim do mundo. Porém, todas elas,
absolutamente todas, encontram-se num mundo que talvez chegue
muito, muito lentamente, ao seu fim.

«É que, quando as autoridades marítimas requisitaram


guardas para o Farol do Fim do Mundo, a escolha não foi
fácil!»

JÚLIO VERNE
O Farol do Fim do Mundo.
O espetáculo tem de continuar

«Mas a maior ambição do espetacular integrado continua a


ser que os agentes secretos se tornem revolucionários e os
revolucionários se tornem agentes secretos.»

GUY DEBORD, Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo

TAMBÉM EM VENEZA SENTI QUE ACABAVA um dos tantos mundos a que


chamamos mundo. Estávamos no início de dezembro e a maré alta
convertia diariamente a Piazza San Marco num tanque de colunas
duplicadas, numa lagoa atravessada por turistas de galochas, num
naufrágio de mesas metálicas de pernas compridas que o reflexo
líquido convertia em patas de garças metalizadas. Era o momento
certo para visitar a Acqua Alta, o espaço que Luigi Frizzo converteu
numa das livrarias mais fotogénicas do mundo, com a sua longa
gôndola no meio da nave central saturada de volumes de segunda
mão, e com uma sala lateral que é inundada várias vezes por ano.
Umas tábuas permitiram-me fotografar o chão invadido pela maré,
parte de uma cidade à deriva; e a escada de livros que Frizzo
construiu no terraço conduziu-me até uma bela panorâmica sobre o
canal. A Acqua Alta não é apenas uma livraria: é uma loja de
postais; é uma comunidade de gatos; é um armazém de barcos e de
banheiras cheias de livros e de revistas; é um lugar onde se pode
conversar com venezianos simpáticos que lá vão todos os dias para
conhecer turistas; é – finalmente e sobretudo – uma atração
turística. Na porta, um letreiro dá as boas-vindas à «mais bela
livraria do mundo». À saída, com a memória repleta de fotografias,
compramos um livro qualquer, um calendário, um postal, quando
muito uma história da cidade ou uma coleção de crónicas de viagem
dos seus ilustres visitantes, e desse modo pagaremos a nossa
entrada no museu.
São muitas as livrarias tradicionais e belas que não entraram nos
circuitos do turismo ou que souberam esquivar-se aos seus cantos
de sereia. A John Sandoe Books, de Londres, por exemplo, tem
tudo o que um fotógrafo amador pode desejar: a fachada une três
edifícios do século XVIII numa única imagem pitoresca, e as montras
de madeira escura refletem as nuvens nos seus vidros; e o seu
interior de três níveis – com 20 mil volumes empilhados nas mesas
ou arrumados nas estantes de correr, com escadas que sobem e
descem a unir a cave poética e infantil e o resto das salas – está
cheio de recantos idóneos para serem metralhados pelos
megapixéis das nossas câmaras. Contudo, este belo corpo tem
alma. Apercebi-me disso quando já estava quase para me ir
embora, depois de ter folheado vários livros e não comprar nenhum.
Como sempre faço, perguntei na caixa se tinham alguma publicação
que contasse a história da livraria. Então, Johnny de Falbe – que,
como li mais tarde, trabalha lá desde 1986 e também é romancista –
começou a fazer magia. Como se de um isco se tratasse, primeiro
ofereceu-me um livro especial, The Sandoe Bag. A Miscellany to
Celebrate 50 Years. Enquanto lhe dava uma vista de olhos, reparei
numa brochura que não tinha visto antes, exposta atrás dele: The
Protocols of Used Bookstores, de David Mason, que comprei por
cinco libras. Continuámos a falar sobre o autor, um livreiro
canadiano, e de repente De Falbe desapareceu – como qualquer
ilusionista que se preze –, para reaparecer depois com The Pope’s
Bookbinder nas mãos, as memórias de Mason, acabadas de
importar de Ontário, onde conta que antes de se converter num dos
grandes livreiros da América do Norte viveu no Beat Hotel, onde
Burroughs martelava furiosamente a máquina de escrever no quarto
do lado, e que se refugiou mais de uma vez na Shakespeare and
Company de Whitman; quando voltou ao Canadá, foi vendo
germinar no seu interior a vocação livreira. Comprei com prazer
esse livro que não sabia que desejava por outras 25 libras. Da
Acqua Alta, pelo contrário, saí sem comprar nada.
Na cafetaria da Livraria Laie, na Carrer de Pau Claris, de
Barcelona, há duas fotografias da Shakespeare and Company: uma
da fachada e outra do inteior, com Joyce a conversar com as suas
editoras em redor de uma mesa. À direita, vêem-se dezenas de
retratos de escritores pendurados na parede, por cima da lareira
apagada. É uma pinacoteca em miniatura, um resumo da história da
literatura, um altar de idolatria. Monnier diz de La Maison des Amis
des Livres: «Era uma livraria que não parecia nada uma loja, apesar
de não ser essa a nossa intenção; não podíamos imaginar que, com
o tempo, seríamos tão elogiados pelo que a nós nos parecia
precariedade e improvisação.» Sylvia Beach comprou os sofás da
sua livraria numa feira da ladra, onde se presume que Whitman
também comprou depois os seus (quem sabe se não seriam os
mesmos). Steloff transportou, numa carroça puxada por cavalos, a
meia dúzia de móveis e os poucos livros com que abasteceu pela
primeira vez a sua livraria. Quando esse aspeto aparentemente
descuidado dura décadas, converte-se num traço de estilo e em
parte do marcador. Porque a essência do turismo é o eco, e uma
livraria clássica, com a sua pátina de antiguidade, deve aparentar
uma certa desordem, a acumulação de estratos que a vincula com
tudo aquilo que o tópico identifica com a Grande Tradição do Saber:
esse caos aparente que vai revelando a sua ordem. Na entrada da
Acqua Alta também há produtos de âmbito local, e à medida que
penetramos nas suas diferentes salas, apesar da bagunça e do pó,
vamos decifrando o sistema de classificação de que não se pode
emancipar nenhuma livraria.
Tal como ela, a Bertrand original, a Lello, a Librería de Ávila, a
City Lights, a Librairie des Colonnes ou a Shakespeare and
Company converteram-se em museus de si mesmas e do fragmento
de história da cultura que representam, sempre com mais fotografias
de escritores – como ícones representativos da letra impressa – que
de filósofos ou historiadores. É por isso que se fala, injustamente, de
livrarias literárias. Excetuando a lisboeta, também são museus da
livraria única, sem sucursais, sem clones. A transformação da City
Lights em atração turística acontece praticamente em tempo real, no
âmbito de uma cultura obcecada pela distinção e pelo ritmo
acelerado da mitificação própria do pop. A primeira Shakespeare
and Company fazia parte do circuito da American Express, e
autocarros carregados de turistas paravam uns minutos na Rue de
l’Odéon para que tirassem fotografias do lugar onde Joyce publicou
o seu elogiado romance, frequentado por Hemingway e pelo
glamoroso casal Fitzgerald. Nas listas que proliferaram durante os
últimos anos nos jornais e nas páginas Web das livrarias mais belas
do mundo, ou das melhores, costumam aparecer todas elas ao pé
de outras que imitam o mesmo desalinho, essa imagem de boémia,
essa importância histórica. É o caso da Another Country, de Berlim,
um clube de leitura e um alfarrabista de títulos em inglês. A
Autorenbuchhandlung, com o seu gosto requintado pelas coleções
de poesia ou o seu café literário, e a vizinha Bücherbogen, cinco
armazéns paralelos consagrados aos livros sobre arte e cinema
contemporâneos, ambas em Savignyplatz e ambas sob as linhas do
comboio, são as melhores livrarias da cidade e as mais belas. A
Librería de los Autores materializa um ideal clássico de livraria
contemporânea. A Préstamos de Libros, um ideal espetacular: a sua
decoração interior sintoniza-se na perfeição com o conteúdo dos
volumes que constituem o seu fundo de catálogo. A Otro País, pelo
contrário, limita-se a reproduzir em pequena escala o imaginário dos
alfarrabistas, poeirenta e convertida em pousada, como aquela de
que tanto beneficiou Whitman, com um frigorífico cheio de cervejas
e estudantes norte-americanos, insones ou a ressacar, a ler
reclinados nos sofás. A sua presença nas listas deve-se a duas
razões: porque pode ser conhecida (e reconhecida) em inglês (e os
jornalistas que elaboram esses cânones são, geralmente, anglo-
saxónicos), e porque pode ser condensada numa única imagem (é
pitoresca, corresponde àquilo que reconhecemos na pintura, nas
estampas, nas fotografias que circulam globalmente e tendem a
repetir-se, ou seja a perpetuar-se através do mecanismo básico que
regula o turismo e a cultura: a imitação).
Estas listas costumam estar encabeçadas por uma livraria que
ainda não consegui visitar, a Boekhandel Selexyz Dominicanen, de
Maastricht, cujas estantes e mesas de novidades são acolhidas por
uma espetacular estrutura gótica de uma autêntica igreja
dominicana, reconvertida em 2007 pelos arquitetos Merkx e Girod
num templo do que a nossa época entende por cultura. Para
aproveitar a altura da nave, construíram três pisos metálicos com as
suas respetivas escadas, que ascendem, juntamente com as
colunas, às alturas: o lugar da luz e do velho Deus. A ironia colocou
no extremo da nave uma mesa em forma de cruz, no espaço do
altar vazio, como se o ritual da comunhão fosse apenas o da leitura
(a ingestão desloca-se para a contígua cafetaria). Quatro anos mais
tarde, os mesmos arquitetos reabilitaram a fachada, que é a original,
com uma porta cor de ferrugem que, quando aberta, parece um
tríptico, e fechada, uma caixa ou um armário. Não há dúvida de que
se trata de uma obra-prima da arquitetura e do interiorismo, mas
não é assim tão claro que seja uma livraria extraordinária. Fecha às
seis da tarde e o seu fundo de catálogo é quase exclusivamente em
neerlandês. Mas não faz mal: na circulação global da imagem, o
continente é muito mais do que o conteúdo. O pitoresco é mais
importante do que a língua que leva à leitura. O divórcio entre a
comunidade de leitores que permite a existência da livraria, por um
lado, e do dos turistas que a visitam apenas para a fotografar, por
outro, constitui um dos traços fundamentais da livraria do século XXI.
Porque até agora a livraria convertia-se em atração turística quando
se avaliava a sua relevância histórica e a sua condição pitoresca,
mas nos últimos anos a aposta arquitetónica, a sua capacidade de
sedução mediática, quase sempre unida à grandeza e ao excesso,
converteram-se num marcador talvez mais decisivo que os dois
tradicionais.
Espero que me perdoem o abuso dos itálicos no início do
parágrafo anterior, mas quero enfatizar os três conceitos: o de
espetáculo, o de autenticidade e o de cultura. Se durante o século
XX a construção de óperas, teatros, auditórios, complexos culturais,
museus, estádios desportivos, centros comerciais e bibliotecas
aspirou ao modelo de catedral contemporânea, foi no século XXI que
essa tendência penetrou com força no âmbito das livrarias. A
primeira – na segunda posição na maior parte das listas, após ter
perdido a primazia para a Selexyz – foi a Ateneo Grand Splendid,
que remodelou no ano 2000 o interior de um cineteatro da Avenida
Santa Fe, de Buenos Aires, inaugurado em 1919, conservando a
sua cúpula pintada a óleo, os seus camarotes e a plateia e o palco
com um pano vermelho. A iluminação é portentosa, três andares de
lâmpadas em círculo transmitem a sensação de estarmos ao
mesmo tempo no interior de um monumento e em plena realização
de um espetáculo. Um espetáculo ininterrupto, no qual o
protagonismo não recai nos clientes ou nos livreiros, mas no próprio
contentor que os acolhe. Faz parte da cadeia Yenny e não possui
um catálogo particularmente destacável, mas assegura uma
experiência turística, tanto para os visitantes ocasionais como para
os habitantes locais e os leitores assíduos. Proporciona a
experiência de se estar num lugar único, apesar de a oferta ser igual
à das restantes lojas da cadeia. Enquanto a Fnac é clonada no
interior de qualquer edifício histórico, convertendo o Palácio da
Bolsa de Nantes num espaço idêntico ao do subterrâneo do Centro
Comercial Arenas, de Barcelona, no exterior continuam a parecer –
respetivamente – um edifício neoclássico e uma praça de touros, a
Ateneo Grand Splendid demonstra que a singularidade é mais
valorizada no mercado simbólico do turismo virtual (a imagem) ou
físico (a visita).
Não tenho nenhuma dúvida de que, num dos extremos do bairro
de Palermo, na mesma cidade de Buenos Aires, a Eterna Cadencia
é uma livraria melhor, e provavelmente também mais bela do que a
Ateneo Grand Splendid. Chão de madeira, mesas e cadeirões
senhoriais, um excelente catálogo distribuído pelas estantes que
revestem completamente as paredes, um café encantador num pátio
remodelado onde se realiza todo o tipo de eventos literários, a
atividade editorial da chancela homónima, os candeeiros que nos
transportam para as livrarias dos filmes. Clássica e Moderna, como
a livraria com esse nome da Avenida Callao, ou como a
Guadalquivir, situada a dois passos desta última e especializada em
editoras espanholas, de estilos similares ao que a Eterna Cadencia
reeditou em pleno século XXI. Nas três encontramos o mesmo estilo
sóbrio, cuidadoso nos detalhes, tradicional, de algumas das grandes
livrarias nascidas nos anos 80 e 90, como a Laie, a Robinson
Crusoe 389 ou a Autorenbuchhandlung. E de outras que abriram as
suas portas na década passada, como a The Book Lounge, porque
já muito se escreveu sobre os gostos e a nossa época caracteriza-
se pela sua multiplicidade.
O projeto da Livraria La Central, de Barcelona, pode ser
encarado como uma migração possível das tendências principais do
último quartel do século XX e do século XXI, desde que não nos
esqueçamos da importância da singularidade. A sua primeira sede
abriu as portas na Calle Mallorca em 1996, com um design parecido
com o das que acabo de citar, intimista, à medida do ser humano (o
corpo do leitor). A segunda, a La Central del Raval, inaugurada em
2003, sintoniza, pelo contrário, com a Selexyz e a Ateneo Grand
Splendid, ao reconverter a Capela da Misericórdia do século XVIII
num âmbito livresco, respeitando a arquitetura original e, por
conseguinte, a sua monumentalidade, os seus tetos altos que
subalternizam o homem. Mas há nela uma sobriedade monacal,
uma mesura desaparecida na qual poderia ver-se como que a
terceira fase de um projeto não premeditado: a La Central de Callao,
em Madrid, inaugurada em 2012, que reformou completamente um
palacete de princípios do século passado, conservando a sua
escada de madeira, os seus muros de carga de tijolo, os seus tetos
de cerâmica e madeira, os chãos de mosaico e até a sua capela
ornamentada, acrescentando-lhes, além das estantes e dos
milhares de livros, um restaurante, um bar e uma exposição
permanente de todo o tipo de objetos relacionados direta ou
indiretamente com a leitura, como cadernos, candeeiros, bolsas ou
canecas. Embora os tetos de cada um dos três andares sejam
relativamente baixos, o altíssimo pátio interior, com a sua
monumental sopa de letras, insere o espaço numa das principais
tendências do nosso século: uma grandeza que permite que a
livraria compita com o resto dos ícones culturais da arquitetura
contemporânea.

Após a abertura, um dos seus proprietários – juntamente com


Marta Ramoneda e Maribel Guirao –, o livreiro Antonio Ramírez, que
encarna a tradição do livreiro nómada (o seu percurso vital faz
lembrar o de Bolaño: de origem colombiana, iniciou-se no ofício nos
estabelecimentos da Cidade do México, aperfeiçoou-se em La
Hune, de Paris, e na Laie, de Barcelona, antes de abrir o seu próprio
negócio), publicou um artigo intitulado «Imaginar a Livraria Futura»,
onde afirmava:

«Talvez só seja possível se nos situarmos, precisamente, na sua dimensão


insubstituível: a densidade cultural que encerra a materialidade do livro de
papel; ou melhor dizendo, se pensarmos a livraria como o espaço real para
o encontro efetivo entre pessoas de carne e osso e objetos materiais
dotados de um aspeto singular, um peso e uma forma únicos, num
momento preciso.»

E a seguir enumerava as características desse espaço futuro que


já tem de ser, embora parcialmente, presente. Ramírez fala de uma
arquitetura para o prazer e a emoção, que anula qualquer barreira
entre o leitor e o livro e hierarquiza convenientemente a oferta, na
qual o livreiro faz as vezes de coreógrafo, meteorologista, hiperleitor
ou mediador, e dispõe os elementos afetiva e efetivamente para
estimular a memória do leitor e catalisar a sua escolha – a compra –
na direção que mais prazer lhe possa proporcionar. A ênfase na
livraria como soma de experiências físicas concretas é coerente
com uma arquitetura e um interiorismo como o de La Central de
Callao, onde o espetáculo dialoga com a intimidade, onde a
novidade é completada pelo fundo, onde o tato físico do papel ou do
cartão comunica com o apetite no restaurante ou no bar.
Contrariamente ao que sucede nas outras grandes livrarias da
nossa época, insere-se em pleno centro urbano, num lugar de
passagem de multidões, em concorrência direta com a Fnac ou com
El Corte Inglés, consciente de que – contrariamente ao que sucede
no caso delas, desprovidas de singularidade arquitetónica – se pode
converter numa atração turística se a sua monumentalidade e a sua
condição pitoresca forem incorporadas nos circuitos mundiais da
imagem.
A divisão das cadeias de livrarias entre as que respeitam a
idiossincrasia do espaço que as acolhe e as que impõem um único
design em todas as suas sucursais torna-se problemática nos dois
casos mexicanos: as livrarias do Fondo de Cultura Económica e as
de El Péndulo. A primeira, é uma rede latino-americana com
delegações tão meridianamente espetaculares como a do Centro
Cultural Gabriel García Márquez, de Bogotá, inaugurada em 2008 e
com 1200 metros quadrados de espaço, ou a do Centro Cultural
Bella Época, da Cidade do México, dois anos mais nova e alguns
(poucos) metros mais pequena. Enquanto a primeira e o complexo
de que faz parte foram criados do nada pelo arquiteto Rogelio
Salmona em pleno centro histórico da capital colombiana, a Librería
Rosario Castellanos faz parte da remodelação do Lido, um cinema
emblemático dos anos 40, levada a cabo por Teodoro González de
León. Trata-se de uma nave catedralesca de uma brancura extrema,
na qual as estantes e os sofás foram dispostos como um hieróglifo
faraónico. O céu da livraria foi concebido pelo artista holandês Jan
Hendrix e representa uma escrita vegetal. É claro que também há
um café no seu interior, mas ocupa um espaço mínimo.
A primeira Livraria El Péndulo, pelo contrário, abriu as portas no
bairro de La Condesa nos anos 90, deixando clara a fusão entre
livraria e café, que se faria acompanhar pela hibridação da sala de
concertos com a escola literária, em sintonia com os centros
culturais que foram proliferando no mundo ocidental na época, numa
prefiguração da principal resposta que a livraria daria à ameaça
digital. Uma palavra torna-se emblema da mistura: cafevraria. A
livraria como lugar de encontro, de reuniões de negócios, de aulas
particulares, de eventos, num contexto subtilmente mexicano (as
toalhas, a vegetação). Ao longo dos anos foram abrindo lojas, seis,
que conservam um estilo único, embora adaptado às características
de cada espaço. Na do bairro de Polanco, por exemplo, o
restaurante, a livraria e o bar têm praticamente a mesma
importância em termos de ocupação do espaço, embora sejam as
estantes de livros as incumbidas de criar um fio condutor, de dar o
tom, de criar uma harmonia entre as diversas secções de produtos
culturais diversos: música, cinema, séries televisivas, livros de arte...
Na do bairro Colonia Roma, essa função de interligação é cumprida
pela parede do fundo da livraria, convertida numa hiperbólica
estante cheia de livros que acompanha a escada até ao primeiro
andar e ao terraço, e que evoca os jardins verticais de Patrick Blanc.
Na Péndulo del Sur, é um enorme teto lilás que joga com o eco da
arte contemporânea. Na de Santa Fe encontramos, em vez disso,
uns murais que fazem lembrar Miró e a arte pré-colombiana. Há
uma imagem corporativa comum, mas que interage com os traços
de identidade do design específico, não em vão memoráveis, além
de cool.

Não há dúvida de que a livraria de grandes dimensões é uma


tendência importante na nossa época, em interação com a
instalação e outros dispositivos próprios do design e da arte
contemporâneos, que se tornam visíveis, principalmente, nas
maiores superfícies: certas paredes e, sobretudo, os tetos. Além de
Buenos Aires, Maastricht, Madrid ou Cidade do México,
encontramos projetos similares igualmente nascidos no nosso
século nos Estados Unidos, em Portugal, na Itália, na Bélgica e na
China. A The Last Bookstore ocupa a antiga sede de um banco da
downtown de Los Angeles e conserva a gigantesca colunata
original. O balcão é feito exclusivamente de livros e todo o espaço é
dominado pela escultura de um grande peixe, também elaborado
com centenas de volumes. A velha nave industrial do bairro lisboeta
de Alcântara que alberga a Ler Devagar, a qual conserva – intacta e
enferrujada – a imprensa industrial dos velhos tempos e que
também tem, ao fundo, uma parede maiúscula saturada de livros, é
continuamente sobrevoada por uma bicicleta com asas que se
abrem e fecham como um lento aplauso. Aplaude-se um projeto
sem equivalente no mundo livreiro. Depois de ter tido duas sedes
anteriores, uma no Bairro Alto e outra numa antiga fábrica de
armamento, a Ler Devagar é, atualmente, a livraria com mais livros
em Portugal, uma sociedade anónima com 140 sócios que não
recebem os lucros devidos pelo seu investimento inicial para os
aplicar a fundo quase perdido em livros, porque todos os livros da
sede e das delegações existentes noutros pontos do país são
comprados. É uma grande biblioteca com livros à venda, que
convida a ler lentamente. E é também um centro cultural de primeira
magnitude, um lugar onde estão sempre a acontecer coisas: não me
ocorre uma melhor definição de livraria ideal. As plataformas
brancas que dão forma ao teto da Bookàbar, a livraria e café do
Palazzo delle Esposizioni, de Roma, foram inclinadas e furadas
como se fossem esculturas suprematistas. Uma instalação de livros
pendurados por fios no teto domina a vista da Cook & Book, de
Bruxelas. No caso de A Traça-dos-Livros, de Pequim, é um
gigantesco toldo cor de laranja que combate o horror vacui. Porque
se trata, na verdade, de humanizar o espaço, de reduzir a vertigem
dos metros cúbicos que separam as paredes, de disfarçar a altura
de uns tetos que remetem para uma escala que não é humana, mas
fabril.
A maior parte dessas livrarias do século XXI possui uma ou duas
cafetarias, quando não um restaurante, harmoniosamente inscritos
no conjunto variado no qual os livros agem a modo de fio de
Ariadne. A decoração, o mobiliário, a secção infantil disfarçada de
ludoteca ou o diálogo entre as diversas cores e texturas remetem
para um interiorismo emocional cuja finalidade é prolongar a
permanência do cliente na livraria até a converter numa vivência que
implica todos os sentidos e as relações humanas. Parece-me que o
minimalismo é mais do que um recurso estilístico: pode ler-se como
uma declaração de intenções. Estabelece-se uma hierarquia em três
níveis. No superior, encontra-se a arquitetura, quase sempre
dominada pelas linhas retas, num espaço tão vasto que acaba por
impor-se sobre aquilo que o povoa, embora sem o encher,
minúsculo como uma letra. Num nível intermédio, encontramos o
protagonismo das escadas, das vidraças, das montras, dos murais,
das esculturas, dos móveis de época, dos candeeiros, com o qual
se tenta mitigar a intensidade de um espaço muitas vezes
concebido para outro tipo de funções sociais e que foi reciclado,
reconvertido. No nível inferior, pequenos, mínimos, exibem-se os
livros, a razão de ser de toda a estrutura, mas que nela, pela sua
magnificência, pela sua iluminação, pela sua condição de galeria de
arte ou de armazém vintage, não podem ter a importância que
tiveram durante todo o século XX, quando as livrarias estavam feitas
à sua medida, que é a das nossas mãos e dos nossos olhos.

A livraria, então, devém de uma metáfora possível da internet: tal


como na rede, os textos ocupam um âmbito significativo, mas
limitado, pequeno em comparação com o que invade tudo o que é
visual e, sobretudo, indefinido e vazio. Tal como no ciberespaço,
onde sempre estão a acontecer coisas, a imensa maioria das quais
são invisíveis, o visitante dessas livrarias multiespaciais está
consciente de que na zona dos livros para crianças se estão a
contar histórias, de que na cafetaria está a cantar um cantautor, que
nessa manhã mudaram a mesa das novidades ou a montra, que dali
a um bocado começará a apresentação de um livro, que no
restaurante há sobremesas novas ou que estão quase a acabar os
workshops literários do primeiro trimestre. Como no mundo virtual,
assistimos a novas formas de sociabilização, de redes sociais; mas
as livrescas insistem no contacto pessoal, na plenitude dos sentidos,
na única coisa que a internet não nos pode oferecer.
A proposta da 10 Corso Como torna claras essas intenções ao
assumir o slogan slow shopping, o lema da livraria espetacular.
Quanto mais tempo passarmos física ou mentalmente na loja, mais
compraremos e consumiremos. Embora a cadeia italiana tenha
delegações em Seul e em Tóquio, só a original de Milão acrescenta
à fusão de hotel, café-restaurante, jardim, galeria de arte, loja de
roupa e de objetos de design, uma livraria. Se no complexo
Trasnocho Cultural, de Caracas, inaugurado em 2001, o centro de
gravidade ainda é o cinema, à volta do qual se articulam os espaços
gastronómicos, artísticos ou livrescos (a Livraria El Buscón),
prolongando uma tendência do século XX que, não obstante, era
minoritária, porque nos centros comerciais as salas de cinema
costumavam situar-se no último andar e as livrarias eram apenas
mais uma entre muitas outras lojas, sem qualquer tipo de
singularidade ou de prestígio; na 10 Corso Como o núcleo encontra-
se nas áreas de restauração e hotelaria, em redor das quais
encontramos um par de satélites culturais que, com a sua presença,
legitimam a intenção de atividade cultural do conjunto. A Ler
Devagar faz parte da LX Factory, um centro comercial alternativo ao
ar livre situado numa antiga zona industrial recuperada, onde as
galerias de arte também convivem com os bares e os restaurantes.
A livraria da 10 Corso Como nem sequer se chama outra coisa a
não ser isso, livraria («Book and Design Shop»), porque não pode
ser percebida fora desse conjunto glamoroso. Numa época em que
a gastronomia atingiu o reconhecimento artístico, a experiência
cultural assiste à ampliação dos seus confins, os quais se esbatem
numa experiência turística que engloba todas as formas do
consumo cultural. Algo semelhante ao que aconteceu desde a
origem da modernidade: na época em que Goethe viajava pela
Itália, as visitas às livrarias faziam parte do continuum espacial que
configurava qualquer deslocação, tal como visitar igrejas, ruínas,
casas de eruditos, restaurantes ou hotéis. As viagens e as livrarias
sempre estimularam a agorafilia.

O prazer intelectual confunde-se com o voluptuoso. E, mais do


que nunca, na livraria atual, que pôs os olhos no êxito das lojas dos
museus de arte contemporânea, onde os catálogos não só fazem
parte da oferta – muitas vezes nem sequer a mais significativa –,
como também as joias, os brinquedos, a roupa e, em geral, o design
industrial. Os objetos condensam um atrativo intensificado graças a
esse contexto minimalista que faz sobressair cada peça pelas suas
virtudes singulares. Muitas vezes encontramos, como me aconteceu
com aquele bule em Pequim, a mesma T-shirt ou a mesma caneca
noutra loja e a um preço inferior, mas já despida do prestígio
inoculado pelo Pompidou ou pelo MoMA. Já não é exatamente o
mesmo objeto. Se estivesse apenas uns metros mais à frente, no
âmbito da exposição, não lhe poderíamos tocar, mas na loja
podemos fazê-lo. Contrariamente ao que sucede nos museus ou
nas bibliotecas mais importantes, nas livrarias é possível mexer em
tudo. E comprar tudo. A margem de lucro proporcionada pelos
objetos para oferta é muito maior do que no caso dos livros. As
novas livrarias sabem muito bem que o tato é um valor
acrescentado: o espaço não pode justificar a sua existência apenas
como sede física da venda eletrónica, tem o dever de oferecer nela
tudo aquilo que não pode proporcionar a sua página Web.
E isso passa, necessariamente, pelo luxo. Porque a visita a uma
livraria marcada pela sua história ou a sua arquitetura ou os seus
interiores ou o seu fundo editorial converte-nos em sujeitos
luxuosos, em membros de uma comunidade diferente da que
consome cultura nos centros comerciais e nas grandes cadeias. Já
Paul Otlet, no seu Traité de Documentation, de 1934, escrevia: «O
conforto rivaliza com o luxo e a beleza nas salas de venda. Um
ambiente refinado, cómodos salões, flores frescas. Algumas
livrarias, como a Brentano’s, a Scribner’s ou a Macmillan, são
autênticos palácios.» Pelo menos desde o oitocentista Tempo de las
Musas que há livrarias megalomaníacas. A política dos salões do
século XIX era regulada, precisamente, pelo refinamento, por um
gosto aristocraticamente refinado. Na democraria multiplica-se
exponencialmente o sonho dos trovadores: a pertença do leitor às
comunidades de maior excelência da sua época depende da sua
cultura, da sua formação, da sua capacidade artística, e não do seu
poder aquisitivo ou do seu sangue. No entanto, para se poder
avaliar e interpretar a arquitetura, o design ou a oferta das livrarias
espetaculares, é necessário ter acesso a uma educação que se
paga com dinheiro, e não é uma pessoa qualquer que pode dar-se
ao luxo de pagar as viagens que permitem conhecer essas livrarias
detentoras de um lugar de destaque nos guias turísticos. De
maneira que, como em todos os cenários turísticos, nelas convivem
diversos graus de consciência ou de profundidade e várias ficções
de classe, tantos quanto os cérebros e os olhares que nesse
momento as percorrem.
Num outro velho livro, A Life of Books, Joyce Thorpe Nicholson e
Daniel Wrixon Thorpe deixam claro que os livreiros australianos dos
anos 70 estavam conscientes da importância de os seus
estabelecimentos terem aquilo a que chamaram uma «trendy
appearance» [um «ar moderno»]. Mencionam a Livraria Angus &
Robertson, de Sidney, que quando se mudou para uma nova sede
decidiu pintar cada um dos seus pisos com uma cor diferente; a
Angus & Robertson, da Austrália Ocidental, que se mudou para um
hotel e restaurante de época e iniciou uma campanha que partia do
binómio «Books and beer» [«Livros e cerveja»]; e a Abbey’s Henry
Lawson’s Bookshop, no rés do chão do Hotel Hilton, de Sidney, com
as suas estantes de madeira preta e a sua impressionante oferta de
«qualquer livro publicado na Austrália». Muitíssimos são os
precedentes da livraria espetacular, à espera de serem
desenterrados nas bibliotecas, hemerotecas e lembranças pessoais.
Entre as que ainda existem, destacam-se duas estações de
comboio vitorianas transformadas em lojas de livros: em 1991, a
Barter Books abriu as suas portas em Alnwick (na costa leste da
Inglaterra), e quatro anos mais tarde fê-lo a Walk A Crooked Mile
Books, na Filadélfia.
A ressignificação de hotéis, estações de comboios, cinemas,
igrejas, palácios, bancos, imprensas, galerias de arte ou museus em
livrarias tem sido, portanto, uma constante nas últimas décadas que
se intensificou enormemente no século XXI. Num novo contexto
histórico, no qual a reciclagem cobrou um novo sentido, a cultura se
digitalizou e, sobretudo, a existência de tudo o que é real é –
simultaneamente – física e virtual, estas catedrais da cultura escrita
adquirem um significado algures entre o religioso e o apocalítico,
profundamente capitalista, mas também com uma ambição artística
com escassos precedentes. Em ambos os planos a marca da
espetacularidade é decisiva. Na página Web da El Péndulo é
possível realizar visitas virtuais por cada uma das suas seis
cafevrarias. A Google Imagens e outras plataformas estão a
abarrotar de fotografias das livrarias mais belas, mais interessantes,
mais espetaculares do mundo. Pela primeira vez na história da
cultura, essas livrarias passam imediatamente a fazer parte do
circuito internacional do turismo, os marcadores aceleram-se,
produz-se um contágio imediato – ao ritmo do corta e cola – e nas
páginas Web, nas redes sociais, nos blogues e microblogues impõe-
se o desejo de conhecer, de visitar, de viajar, de fotografar, sem
necessidade de ter a História por detrás, ou escritores famosos ou
livros míticos. A fotografia de uma igreja, de uma estação de
caminhos de ferro, de um teatro convertido em livraria: na nova
lógica do turismo, esta imagem valerá mais que os cem mil livros
que retrata e os seus dez mil milhões de palavras.

«Após uma década de colaboração na Gandhi, de Elvio Vitali,


Luis del Mármol começou a sua experiência como
empreendedor com a Un gallo para Esculapio, situada numa
esquina da Palermo Soho, em Buenos Aires. Foi esta a
primeira localização, desde 2001, deste bar e livraria. O seu
segundo domicílio encontrava-se na Gorriti 3538, também no
coração de Palermo, onde contava com diversas salas nas
quais se organizavam apresentações de livros e mostras de
fotografia e arte. O seu balcão ainda se conserva como na
atual morada, tal como uma velha ponte de comboios, hoje em
dia transformada em escritórios. Acompanhando a onda da
reciclagem, as atuais montras são as antigas vidraças do
segundo bar, e as pesadas cortinas que serviram de pano de
fundo no anterior cenário separam hoje a área de vendas do
depósito.»

www.tangocity.com
As livrarias quotidianas

«Preferia os quiosques da Ronda e os luxuosos montes de


revistas aos quadradinhos do Mercat dels Encants de Sant
Antoni, e os romances de aluguer da livraria Torrades, e da
pequena, intransitável, livraria da Carrer Príncep de Viana,
que ficava mais perto, com as suas pilhas de livros a modo de
precárias torres babilónicas.»

MARCOS ORDÓÑEZ, Un jardín abandonado por los pájaros

J.R.R. TOLKIEN PUBLICOU O SEU PRIMEIRO POEMA, «Pés de Goblin», na


coleção de poesia da Livraria Blackwell’s, de Oxford, que lhe anulou
uma dívida que tinha pendente em troca de um adiantamento pelos
direitos de autor. Porque era um cliente habitual do estabelecimento
fundado em 1879 por Benjamin Henry Blackwell e convertido num
projeto cultural e editorial pelo filho, Basil, o primeiro universitário da
família e o primeiro editor do autor de O Senhor dos Anéis. À
medida que a livraria foi ampliando as suas delegações e
convertendo-se numa cadeia, em cada um dos novos
estabelecimentos iam proliferando os clientes, os suspeitos do
costume, os fregueses, os que fizeram das Blackwell’s de
Edimburgo, Cambridge, Liverpool ou Belfast as suas livrarias
quotidianas. Na sede de Oxford ainda é possível imaginar, olhando
e tocando, como os poucos metros quadrados onde o negócio
nasceu foram engolindo os circundantes até transformarem vários
lares num único, monstruoso, lugar. Assim que se entra, à esquerda,
a lareira oitocentista e as vigas de madeira são os vestígios
arqueológicos do estabelecimento original. Ao lado da lareira do
andar de cima, se perguntarmos por ela, podemos visitar uma
recriação do gabinete dos fundadores, onde os cachimbos, os
óculos e os corta-papéis estão dispostos sobre a mesa como se
tivessem sido lá deixados há apenas umas horas, e não há um
século inteiro. A partir dessas duas pequenas dependências, os
sucessivos donos da Blackwell’s foram comprando todos os
apartamentos do edifício e expandindo o negócio. A última delas, a
definitiva, foi a enormíssima cave das traseiras, que ocupa o
subsolo do jardim do Trinity College. Tem nome próprio: The
Norrington Room. É uma piscina olímpica repleta de estantes e de
livros. Nos anos 60 e 70, durante os frequentes apagões, contava
com candeeiros de querosene que asseguravam a leitura,
acontecesse o que acontecesse. Imagino esses leitores náufragos
como num bunker pós-nuclear. Vista de cima, apesar da sua
geometria retangular, parece uma ágora oval ou um cérebro
gigantesco. Sim: o cérebro de uma inteligência coletiva, como os
seus 80 empregados, a maior parte deles livreiros; como a
Universidade de Oxford, que também se expande exponencial e
intelectualmente, tal como sucede com a sua melhor livraria.
A última vez que estive em Berlim, quando ia fotografar os restos
desmantelados da Livraria Karl Marx, encontrei por acaso o César
Aira. Entrámos no primeiro café que encontrámos e conversámos
durante algum tempo sobre as últimas novidades da literatura
argentina. «Reunimo-nos todos os dias», disse-me, a meio da
conversa, «na La Internacional Argentina, a livraria do Francisco
Garamona, eu, o Raúl Escari, a Fernanda Laguna, o Ezequiel
Alemián, o Pablo Katchadjian, o Sergio Bizzio e outros amigos,
quase todos os dias». Dominada por um sofá e uma mesinha onde
apoiar os copos de vinho, a sede da editora Mansalva talvez seja a
única livraria do mundo onde é possível comprar a maior parte dos
livros do Aira, mesmo as suas traduções, embora, claro, haja
sempre dez ou vinte que nem o Garamona poderá arranjar. É um
desses lugares novos onde foram implantados hábitos de outra
época. Como a Ballena Blanca, a loja de Alejandro Padrón, em
Mérida, na Venezuela, onde todos os dias se reúnem professores
universitários como Diómedes Cordero e escritores como Ednodio
Quintero para falarem sobre os grandes poetas do país, sobre
literatura japonesa ou sobre polémicas espanholas e argentinas,
enquanto preparam a próxima edição da famosa Bienal de Literatura
Mariano Picón-Salas, que inspirou, precisamente, as aventuras de
Aira e de um exército de clones de Carlos Fuentes no Congreso de
Literatura. Porque a literatura é polémica e futuro e textos onde
fabular.

«À tarde, a nossa livraria mais parecia um clube onde cientistas,


literatos e artistas se encontravam para se verem e conversarem,
para aliviarem a alma do prosaísmo da vida quotidiana», escreveu
Mikhail Ossorguine sobre a mítica cooperativa moscovita A Livraria
dos Escritores. Embora a conversa sobre literatura nas sedes
editoriais e livreiras seja tão velha quanto a cultura ocidental, é
obviamente a partir dos séculos XVII e XVIII que se institucionaliza
como tertúlia. Não é de estranhar, pois, que só então se comecem a
fundir num único ser a livraria e o café, como estudou Adrian Johns
em The Nature of the Book. Os aprendizes faziam parte da família, e
os limites entre o espaço privado e o negócio público não estavam
nada claros: de maneira que a presença de cadeiras, cadeirões e
sofás onde apreciar uma boa leitura e uma boa bebida muitas vezes
devia-se ao facto de pertencerem ao dono da livraria. A partir de
então, muitos livreiros tornam-se os centros dos salões e das
tertúlias, que tanto são encontros culturais como sessões de compra
e venda. «O mais emblemático exemplo de “Amphibeous Mortal”
era, seguramente, Jacob Jonson», que entre os aristocratas «era
tido como um livreiro, e entre os livreiros como um aristocrata». A
confusão entre vida privada e vida pública é paralela à confusão
entre livraria e biblioteca. Samuel Pepys fala nos seus diários de
livrarias onde «se dispunham assentos para que os clientes
pudessem ler durante todo o tempo que desejassem». E foram os
próprios livreiros do século XVIII que promoveram as bibliotecas de
empréstimo, muito mais democráticas de que as sociedades
literárias e a única maneira de os aprendizes de artesãos, os
estudantes ou as mulheres terem acesso à leitura sem necessidade
de investirem a enorme quantia que custava um livro. Dir-se-ia que
a livraria, apesar das aparências, nunca soube bem quais eram os
seus próprios limites.
Durante as minhas viagens, converti muitas delas em refúgios,
lares fugitivos longe de um lugar que na realidade não possuía,
amparando-me na sua natureza ambígua. Lembro-me de ir todos os
dias à cave da Leonardo da Vinci durante a temporada que passei
no Rio de Janeiro; e à Seminary Co-op, quando vivia em Chicago; e
ao Bazar dos Livros, de Istambul, durante o tempo que durou a
minha estúpida negociação para comprar o livro sobre os viajantes
turcos; e à Livraria Ross, de Rosario, sempre que ia à cidade do rio
sem margens, embora tenha sido na vizinha sede da El Ateneo que
encontrei as obras completas de Edgardo Cozarinsky e que li, no
seu café, Rinconete e Cortadillo e O Licenciado Vidraça. Desde que
me radiquei de novo em Barcelona, sempre que dou uma
escapadela a Madrid, além de visitar a La Central, do Rainha Sofia,
e a de Callao, tento beber um café no Tipos Infames, um bar e
galeria de arte em sintonia com as últimas tendências das livrarias
internacionais; vou cumprimentar a Lola Larumbe, que dirige com
precisão e encanto a Rafael Alberti, concebida pelo poeta e pintor
em 1975 e em cuja cave, ao que parece, a água flui; tento ir à La
Buena Vida para dar um abraço ao David García Martín, com quem
partilho a paixão pelas crónicas; e visito a Antonio Machado, no rés
do chão do Círculo de Bellas Artes, cuja seleção de pequenas
editoras espanholas é sempre impecável e ao lado de cuja caixa
registadora fui encontrando, ao longo dos anos, os principais livros
sobre livrarias que usei para este ensaio. Vou duas vezes por ano a
Nápoles e as minhas visitas obrigatórias são sempre a Feltrinelli, da
Estação Central, e a Libreria Colonnese, na Via S. Pietro a Majella,
rodeada de igrejas, artesãos de presépios, restos de muralhas e
altares consagrados a S. Diego Maradona. É, sem dúvida, uma
livraria muito mais hospitaleira quando, por via das visitas ou do
acaso, travamos amizade com algum dos seus livreiros. Quando
vivia em Buenos Aires e Rosario, e tinha de sair de três em três
meses do país, aproveitava para percorrer porções do Uruguai em
viagens por mar, rio e terra. Todos os meus percursos iam dar à
Livraria La Lupa, onde um dos proprietários, Gustavo Guarino, me
foi dando pistas sobre a literatura uruguaia em cada uma das
minhas visitas, porque só viajando para o lugar dos factos é que se
tem acesso a tudo o que resiste a tornar-se visível na internet. Um
dos prazeres que me esperam em Palma de Maiorca é entrar em La
Biblioteca de Babel e perder-me na sua secção de narrativa e
ensaio; na Los Oficios Terrestres, para admirar, uma vez mais, a
convivência do cabeleireiro com a poesia e o ensaio político; e na
Literanta, atrás de cujo balcão se encontra a crítica e agitadora
cultural Marina P. De Cabo, que me descobriu quando conhecemos
a obra de Cristóbal Serra. Durante anos, fui todas as sextas-feiras à
tarde à La Central del Raval, em Barcelona, sabendo que o César
Solís lá estaria para me recomendar as novidades editoriais latino-
americanas ou para me arranjar o último livro publicado por Sebald
ou sobre Sebald nalguma das principais línguas europeias. Desde
que se mudou para Madrid, é com o Damià Gallardo, da Livraria
Laie do Centro de Cultura Contemporánea, que vou falar para me
ajudar a solucionar os meus problemas como leitor. Porque um bom
livreiro tem qualquer coisa de médico, de farmacêutico ou de
psicólogo. Ou de barman. O Francisco, o Alejandro, o Gustavo, a
Marina, o César ou o Damià fazem parte da minha própria tradição
de livreiros, a tradição inquieta dos hábitos que recuperamos com
facilidade assim que chegamos a cidades longínquas onde vivemos
uma certa quotidianidade.

Austerlitz, o protagonista do romance de W.G. Sebald, vive o


momento mais decisivo da sua vida num alfarrabista próximo do
Museu Britânico, propriedade de uma bela mulher cujo nome é pura
sensação de paz: Penelope Peaceful. Enquanto ela resolve um
crucigrama e ele folheia, distraído, umas gravuras de arquitetura,
duas mulheres falam na rádio: sobre «como no verão de 1939,
sendo elas crianças, tinham sido enviadas para a Inglaterra num
transporte especial». Uma espécie de transe invade o corpo e a
mente de Austerlitz: «Fiquei imóvel, como se não pudesse perder
uma só sílaba que saía daquele aparelho bastante riscado.» Porque
essa linguagem permite-lhe recuperar de repente a sua própria
infância, a sua própria viagem, a sua própria chegada à Inglaterra
proveniente de uma Europa em chamas, o seu próprio exílio: uns
anos que a sua memória tinha apagado por completo. É numa
livraria que, subitamente, se lembra de quem é, de que Ítaca
procede. A infância e, sobretudo, a adolescência, são as épocas em
que nos tornamos amantes de livrarias. Passei tantíssimas tardes
de sábado de roda das estantes da Rogés Llibres, aquele rés do
chão da Ciudad Jardín Mataró transformada em livraria de ocasião,
que sou incapaz de ordená-las numa cronologia ou de as situar
entre duas datas. Mas uma coisa é certa: essas sessões só
aconteciam aos fins de semana e nas férias, porque durante os
períodos escolares a minha rota levava-me no sentido inverso, para
o centro da cidade. A caminho da Biblioteca da Caixa Laietana,
onde li todos os livros do Astérix e Obélix e do Tintin, e onde li por
empréstimo todas as novelas de Alfred Hitchcock e os Três
Investigadores e de Sherlock Holmes, ou quando, de regresso a
casa à hora do jantar, passava pela Robafaves, que muito depois
descobri que era uma cooperativa e uma das livrarias mais
importantes da Catalunha, onde quase todas as tardes era
apresentado um livro e eu ouvia, como se estivesse na missa ou
numa sala de aula, as palavras que, embora estivessem lá, entre a
boca e o microfone, objetos quase tão palpáveis como os próprios
volumes que os rodeavam, me soavam tão distantes, um balbucio
incompreensível, totalmente desvinculado da minha firme intenção
de ser escritor.
Quando tinha 14 ou 15 anos acompanhava o meu pai nas suas
visitas ao domicílio noutro bairro de Mataró, vizinho do Parque
Central, o Velódromo e a Piscina Municipal, onde, quando era
pequeno, vi pavões, corridas e ciclistas e a mim próprio a atirar-me
à água como se não tivesse medo daqueles metros cúbicos de cloro
azul. Depois da sua jornada laboral de oito horas na Telefónica,
trabalhava como vendedor do Círculo de Leitores. Primeiro,
distribuíamos as novas revistas e íamos buscar os postais de todos
os sócios da zona com os respetivos pedidos; depois,
processávamos a informação; poucas semanas depois, chegavam a
nossa casa todos aqueles livros, e a minha mãe ajudava-nos a
dividi-los por ruas; finalmente, levávamo-los aos novos donos e
cobrávamos-lhes o dinheiro. Alguns clientes faziam-nos voltar duas
e até três ou quatro vezes porque nunca tinham as 950 ou as 2115
pesetas que custava a encomenda. Mas outros, pelo contrário,
compravam cinco, sete, nove livros de dois em dois meses, e tinham
em casa as 10 300 ou as 12 500 pesetas, porque estavam à nossa
espera com imensa vontade de ler. Suponho que deve ter sido
numa dessas casas de família ou de velhotas ou de solteiros
desconhecidos que vi pela primeira vez nutridas bibliotecas privadas
e que decidi que um dia, quando fosse escritor, também teria uma. A
primeira decisão era demasiado abstrata para ser mais do que um
balbucio indecifrável; a segunda, pelo contrário, concretizava-se em
estruturas palpáveis que, como os corpos das raparigas, eram puro
desejo. «Assim que uma criança aprende a andar e a soletrar fica à
mercê tanto do pavimento de uma rua mal asfaltada como da
mercadoria de qualquer pobre infeliz que – e o diabo saberá porquê
– se dedique a vender livros», escreve Elias Canetti em Auto-de-Fé:
«As crianças pequenas deviam crescer em grandes bibliotecas
particulares...» E é muito provável que tenha razão, porque sou
incapaz de me lembrar de um livro comprado na Rogés Llibre ou na
Robafaves que tenha mudado a minha vida: todas as minhas
grandes leituras chegaram mais tarde (ou, simplesmente, tarde),
quando já me tinha afastado de Mataró. No entanto, a Robafaves é
a livraria mais importante da minha vida, porque foi nela que pude
fazer o que apenas tinha podido vislumbrar naqueles domicílios
particulares: conviver com livros. «É possível que este livro tenha
vindo parar às minhas mãos na Laie», pensa Amalfitano no livro
2666, «ou na La Central». O mesmo podia eu dizer acerca de
grande parte da minha biblioteca, um terço, talvez, ao qual haveria
ainda que acrescentar os títulos inquietos comprados na Altaïr e os
livros de banda desenhada adquiridos na Arkham. Os outros dois
procedem dos serviços de entrega das editoras e das viagens. De
Rosario, Buenos Aires e Chicago remeti dezenas de caixas: não
concebo a ideia de biblioteca sem a de nomadismo. A minha própria
existência urbana configura-se a partir da intersecção entre passeio
e livrarias, de maneira que na maioria dos meus percursos habituais
há alguns lugares que implicam paragens obrigatórias. A rua, a
livraria, a praça e o café configuram as rotas da modernidade como
âmbitos de duas ações fundamentais: a conversa e a leitura.
Enquanto a escrita literária, que até há algumas décadas ainda era
visível nas mesas dos cafés, se ia confinando ao espaço privado ou,
na melhor das hipóteses, à biblioteca, a conversa e a leitura, o
encontro premeditado ou fortuito e o jornal ou o romance ou a
revista persistiam na sua articulação da esfera social da existência
metropolitana. Porque se os blogues e as redes sociais nos
permitem intercambiar dados e ideias na Cosmopolis, o nosso corpo
continua a pisar uma topografia doméstica e local.

Para Bolaño, as livrarias de Buenos Aires têm vida: os livros


perdem-se «no limbo das últimas estantes ou nas mesas
sobrecarregadas dos alfarrabistas» ou «erravam pelas livrarias
portenhas», lemos em «El viaje de Álvaro Rousselot», um dos
relatos de El Gaucho Insufrible. Isto é: não são só os corpos dos
leitores que ligam entre si, com o seu movimento, as diferentes
livrarias das cidades, pois também os livros são móveis e errantes,
abrem linhas de fuga, criam itinerários. Foi esta ideia que guiou o
dramaturgo e encenador barcelonês Marc Caellas quando se propôs
adaptar O Passeio de Robert Walser a uma viagem pela capital
argentina. As páginas encarnam de repente num ator, num
passeante que, como no romance, vai divagando pelos diversos
espaços emblemáticos da cidade moderna. Um deles é, claro, a
livraria:

«Ao exibir-se perante os meus olhos uma livraria extremamente airosa e


bem abastecida, e tendo eu sentido o instinto e o desejo de lhe fazer uma
breve e fugaz visita, não hesitei em entrar na loja com visíveis bons
modos, permitindo-me pensar, em todo o caso, que talvez fosse preferível
eu ser um inspetor ou um revisor de livros, ou um compilador de
informações e um fino conhecedor, do que um querido e bem-visto rico
comprador e um bom cliente. Com uma voz cortês, cautelosa em extremo,
e, compreensivelmente, as mais ponderadas expressões, informei-me
sobre o que de mais recente e de melhor qualidade se podia encontrar no
campo das belas letras [...].
– Com todo o gosto – disse o livreiro. Desapareceu como uma flecha,
regressando logo de seguida para junto do ansioso e interessado
comprador, e trazendo na mão o livro mais comprado e mais lido, de valor
na verdade perdurável. Carregava o valioso produto intelectual tão
cuidadosa e solenemente como se transportasse uma milagrosa relíquia.
O seu rosto denotava arroubo; o seu gesto irradiava o máximo respeito, e
com um sorriso nos lábios como só podem ter os crentes e intimamente
convencidos, mostrou-me do modo mais favorável o que tinha consigo.
Contemplei o livro e perguntei:
– Seria capaz de jurar que este é o livro mais difundido do ano?
– Sem dúvida.
– Afirma que este é o livro que há que ter lido?
– A todo o custo.
– É realmente bom?
– Que pergunta tão supérflua e inadmissível!
– Agradeço-lhe imenso – disse com sangue-frio; preferi deixar o livro
que tinha tido a mais absoluta difusão sossegado no seu lugar, porque
tinha de o ter lido a todo o custo, e afastei-me em silêncio, sem perder nem
mais uma palavra.
– Que homem malcriado e ignorante! – gritou-me, naturalmente, o
vendedor, no seu justificado e profundo desgosto...»

O passeante do suíço Walser, numa livraria qualquer de Boedo e


com sotaque argentino, a fazer troça dos consensos, da literatura
submetida a critérios de venda, dos absurdos do mundo cultural,
segundo as indicações de um dramaturgo e encenador catalão.
Centros periféricos e periferias centrais, fronteiras abolidas,
traduções, mudanças de cidade, saltos quânticos, interações
transculturais: bem-vindos a qualquer livraria.
A mesma relação entre a periferia e o centro – que
experimentava, sem me aperceber, quando, como se fossem
enigmas, visitava a Rogés Llibres e a Robafaves, a livraria de livros
usados e antigos e a livraria de novidades – pode ser estabelecida
entre as livrarias centrais de Barcelona e as que configuram os seus
arrabaldes. O primeiro estabelecimento barcelonês onde entrei
chamava-se Gigamesh, e depressa comecei a explorar as lojas de
banda desenhada e de ficção científica e fantasia heroica que a
rodeavam e continuam a rodear, como uma praga alienígena que se
foi propagando com os anos pelas imediações do Paseo de San
Juan. A órbita desse centro impossível ocupada pela Laie, a
Documenta, a Altaïr, a Alibri e a La Central, entre tantas outras, é
próxima, caminhável. Até finais de 2015, só tínhamos de atravessar
o Born, o bairro sem livrarias, para irmos à Negra y Criminal, gerida
durante quase 15 anos pelo Paco Camarasa num recanto da
Barceloneta. Agora há dois bairros órfãos. As livrarias mimetizam-se
com os bairros que as acolhem: esta loja só podia existir no meio de
casas de pescadores, e em Gràcia, também a 15 minutos a pé do
Arco Triunfo, a Taifa e as 30 livrarias de Gràcia só são imagináveis
no contexto de uma vila, num âmbito de proximidades. Camarasa e
José Batlló, alma mater da Taifa (agora nas mãos dos seus
herdeiros, Jordi Duarte e Roberto García), são duas das principais
personalidades do mundo livresco de Barcelona, esse mundo cujo
mito original são as páginas que Cervantes lhe dedica no Dom
Quixote e que sempre negociou com o bilinguismo literário da
cidade. Desde 1993, a Taifa é a livraria por excelência a norte da
Diagonal, como a Negra y Criminal o é a sul da Ronda Litoral. Batló
é um poeta, um editor e um mito. É famoso pela sua cultura, por ser
muito amigo dos seus amigos e pelas suas escaramuças com os
clientes, aos quais é capaz de ralhar se comprarem certos títulos.
Os livros que mais vendeu nas duas últimas décadas são O Jogo do
Mundo e A Cidade dos Prodígios. Os livros de ocasião estão nas
salas do fundo, para nos lembrar de que o normal é que os
romances e os ensaios deixem de ser distribuídos, que as editoras
acabem, que sejamos esquecidos.
Num segundo círculo – órbita da órbita –, outras livrarias
barcelonesas ergueram a voz para serem tidas em conta nos
últimos anos. Estou a pensar, por exemplo, na +Bernat, ao pé da
Plaza Francesc Macià, gerida por Montse Serrano e que se define a
si própria como um «armazém cultural», guarida de Enrique Vila-
Matas desde que foi viver para o bairro. Ou na Llibreria Calders, na
Carrer Parlement do bairro de Sant Antoni, com o seu piano e a sua
agenda sempre em chamas. Ou na Nollegiu, em Poblenou, que Xavi
Vidal também converteu num importante centro cultural. Ou na
Malpaso, mesmo ao pé de um restaurante mexicano e da editora
com o mesmo nome, que nos recebe com um lema que é ao mesmo
tempo um convite: entrem e leiam. Estas não são, felizmente, as
únicas livrarias que se foram consolidando longe do centro urbano e
gerando tecido humano. Porque, embora seja inegável a riqueza
patrimonial de eixos urbanos onde se concentram livrarias, como a
popular Via Port’Alba, a que Massimo Gatta chamou «a Charing
Cross Road de Nápoles», ou a elegante Het Spui, de Amesterdão, e
as suas ruas adjacentes, uma cidade democrática é uma rede de
bibliotecas, públicas e privadas, e de grandes e pequenas livrarias:
um diálogo entre leitores que vivem em múltiplos centros e em
diversas periferias.

Os meus passeios levam-me, por vezes, até à Carrer de la


Llibreteria, o antigo Decumanus de Barcino, onde se encontra a loja
de artesanato Papirvm e a La Central do Museu de Historia de la
Ciudad, um desses lugares – como a livraria da cave do Colégio de
Arquitetos – onde Barcelona arquiva a sua própria memória. Em
1553 foi fundada a confraria de Sant Jeroni dels Llibreters. Se S.
Lourenço, um dos primeiros tesoureiros da Igreja, pelo seu trabalho
na classificação de documentos, é considerado o padroeiro dos
bibliotecários, o severo S. Jerónimo, um dos primeiros escritores-
fantasma da Igreja (escrevia as cartas do papa Dâmaso I), é
considerado o padroeiro dos tradutores e dos livreiros. São
Lourenço, que algumas lendas identificam como a misteriosa
personagem que protegeu o Santo Graal da onda de violência que
viria a acabar com a sua própria vida, morreu martirizado pelo fogo
num braseiro nos arredores de Roma: no dia 10 de agosto de cada
ano, o relicário que contém a sua cabeça é exposto no Vaticano
para ser venerado, não sei se apenas pelos bibliotecários. São
Jerónimo, pelo contrário, depois de se notabilizar como tradutor,
exilou-se para Belém, onde viveu numa gruta e se dedicou a atacar
textualmente os vícios europeus e a fustigar-se com uma pedra em
sinal de penitência. Na iconografia costuma aparecer com a Vulgata,
a Bíblia que traduziu do hebraico – apesar de ser especialista em
grego antigo e em latim –, aberta em cima de uma secretária, com a
caveira que simboliza a vanitas e essa pedra que, dizem as más-
línguas, usava a modo de dicionário de tradução que ainda ninguém
tinha escrito: fustigava-se e Deus revelava-lhe, ipso facto, o
equivalente latino do original hebraico.
A nossa cidade penetra nas livrarias que a povoam através das
montras e dos passos dos clientes, um espaço centauro, nem todo
ele privado nem todo ele público. A cidade entra e sai da livraria
porque uma não se compreende sem a outra, de maneira que os
passeios onde abrem as suas portas a Pequod ou a Negra y
Criminal se enchem de gente aos sábados à tarde e aos domingos
de manhã para beberem um copo de vinho ou comerem mexilhões
ao vapor, e os livros sobre Barcelona entram em todas as livrarias
da cidade porque é o lugar que, por natureza, lhes pertence. E
quando começam a envelhecer, os romances e os ensaios e as
biografias e os livros de poemas que os cidadãos manusearam e
possuíram regressam às bancas da cidade, ao Mercat de Sant
Antoni, aos alfarrabistas ou a essa paisagem de fundo feita de livros
sob tetos de uralite do Mercat dels Encants, onde os passeantes se
revelavam colecionistas, antiquários, trapeiros.
Se aos domingos do Mercado de San Antonio ou nos dias em
que abrem Els Encants a metrópole intensifica a sua dimensão
livresca, há um dia por ano em que reproduz, em todos os seus
recantos, a mesma sensação que levou de cá Dom Quixote: a de
que a cidade respira letra impressa. O impulsionador da celebração
do Dia do Livro Espanhol foi o valenciano Vicente Clavel,
estabelecido desde novo em Barcelona como proprietário da Editora
Cervantes, que desde a Câmara do Livro, e com a cumplicidade do
ministro do Trabalho, o catalão Eduard Aunós, conseguiu que o seu
projeto se convertesse em Real Decreto em 1926, em plena
ditadura de Primo de Rivera. Embora a sua intenção fosse promover
em todos os níveis da administração a cultura livresca hispânica, de
maneira que todas as bibliotecas e todas as cidades de Espanha
participassem de uma maneira ou outra nos festejos, desde o início
polarizou-se entre a celebração popular de Barcelona e a
comemoração institucional e académica de Madrid. Guillermo Díaz
Plaja, num artigo escrito após a morte de Clavel, disse:

«Quase meio século depois, o decreto continua vigente, sem modificações


importantes a não ser a que se produziu em 1930 (decreto de 7 de
setembro), após a qual a data inicialmente fixada para 7 de outubro (dois
dias antes da que ostenta a certidão de nascimento de Cervantes) passou
para 23 de abril, a data fidedigna da sua morte. Esta razão de precisão
histórica faz coincidir, em Barcelona, o Dia do Livro com a celebração de
Sant Jordi. Quando D. Gustavo Gili advertiu Clavel para o facto, este
replicou: “Não faz mal. As rosas de Sant Jordi sempre florescerão. O que
está em risco de se perder é a memória de Cervantes.” Os anos
transcorridos vieram sublinhar o casamento feliz entre ambas as
comemorações no calendário de feriados barceloneses. A cidade dos
Condes acha-se, sem disputa, na cabeça da geografia peninsular no que
concerne à amplitude e ao enraizamento popular do Dia do Livro.»

Foi em 1930 que os editores começaram a lançar novidades em


catalão no dia de Sant Jordi, e o público começou a viver
intensamente esta jornada, enquanto Madrid dava os primeiros
passos para organizar a sua Feira do Livro noutras datas e no resto
do país também se iam esquecendo do Dia de Cervantes. A guerra
civil paralisou a produção editorial, e o franquismo proibiu o catalão
e eliminou as câmaras do livro, unificando-as no Instituto Nacional
do Livro Espanhol. Só nos anos 50 é que o Dia do Livro voltou a ser
importante na Catalunha. Em 1963, o anúncio foi da
responsabilidade de Manuel Fraga Iribarne, ministro da Informação
e do Turismo, que defendeu a necessidade de promover a literatura
em lengua catalana (sic). A capa do jornal La Vanguardia Española
de 23 de abril de 1977 (15 pesetas), juntamente com uma fotografia
de uma rua inundada de gente, reproduzia, em catalão, estes versos
de Josep Maria de Sagarra: «A rosa deu-lhe gozos e penas / e ele
ama-a até sabe-se lá onde; / e com ela tem mais sangue dentro das
veias / para poder vencer todos os dragões do mundo.» Desde
1964, graças ao impulso do Primeiro Congresso Latino-Americano
das Associações e Câmaras do Livro, o dia 23 de abril converteu-se
no Dia do Livro em todos os países de língua castelhana e
portuguesa; e desde 1996 também é o Dia Internacional do Livro e
dos Direitos de Autor. Talvez porque no dia 23 de abril não só
morreram Cervantes e Shakespeare mas também outros escritores
universais, como o inca Garcilaso de la Vega, Eugenio Noel, Jules
Barbey d’Aurevilly e Teresa de la Parra.
Adoro visitar as minhas livrarias favoritas nos dias anteriores a
Sant Jordi: faço todas as minhas compras nessa altura, e durante la
diada limito-me a passear e a observar, «como um bom tunante, fino
vagabundo e vadio ou perdulário de tempo e andarilho», como diz
Walser. À semelhança de todos os escritores e todos os editores
que se prezam de o ser, aproveito estas deambulações e as demais
oportunidades para verificar se os meus livros estão nas minhas
livrarias quotidianas, e nas que o não são, e para os arrumar
corretamente nas estantes. Até na secção de livros do El Corte
Inglés. Até no segundo andar da Fnac, em pleno centro da cidade,
onde imagino que muitos dos seus jovens vendedores, licenciados
em Letras, mestres ou doutores em Letras, teriam sido grandes
livreiros noutro mundo – sem dúvida melhor –, ou talvez já o sejam
neste que, embora esteja em crise, é o único que temos.

«As Fnac e as El Corte Inglés e as Casas del Libro onde só


vendem livros do Manuel Vilas no centro nevrálgico de Ciudad
Vilas.»

MANUEL VILAS
Gran Vilas.
Epílogo
As livrarias virtuais

«Ninguém, nem sequer o dono de 89 anos, terceira geração,


Mr. L., ninguém conhece as dimensões reais da livraria.»

LO CHIH CHENG, Bookstore in a Dream

DURANTE OS PRIMEIROS MESES DE 2013 vi uma livraria quase


centenária a ser transformada num McDonald’s. A metáfora é óbvia,
claro, mas não é por isso menos contundente. Muito provavelmente,
a Catalònia, que abriu as suas portas nas imediações da Plaça de
Catalunya em 1924, não foi a primeira livraria a converter-se num
lugar de comida rápida; mas foi a única metamorfose deste género
que eu presenciei. Durante esses três anos, passava todas as
manhãs pela sua porta de vidro e por vezes até entrava para dar
uma vista de olhos, comprar algum livro, realizar alguma consulta,
até que, de repente, as persianas nunca mais voltaram a ser
corridas e alguém pendurou um cartaz precário, apenas uma folha,
onde se podia ler:
Dia após dia fui testemunhando o desaparecimento dos livros, as
estantes vazias, o pó, esse pó que é o grande inimigo dos livros, de
uns livros que já lá não estavam, que eram apenas fantasmas,
recordações, cada vez mais o esquecimento de uns livros que,
numa certa quarta-feira, já nem sequer contavam com prateleiras
onde existir, porque o espaço foi esvaziado para logo a seguir se
encher de homens da obras que desmontaram as estantes e os
expositores e encheram tudo com berbequins e barulho, esse
barulho que tanto me surpreendeu durante semanas, porque
durante anos, quando passava pela mesma porta, o que de lá
emanava era o silêncio e a limpeza, e agora era só poeirada e
carrinhos de mãos repletos de entulho, de ruína, a progressiva
transformação da leitura, do negócio da leitura, na ingestão de
proteínas e de açúcares, o negócio da comida rápida.
Não tenho nada contra a comida rápida. Gosto de Mcdonald’s.
Sobretudo, interessam-me os McDonald’s: em quase todas as
minhas viagens procurei um para provar os pratos locais, porque há
sempre um pequeno-almoço ou uma fajita ou um hambúrguer ou um
doce que é a versão McDonald’s de um dos pratos favoritos dos
nativos. Mas isto não elimina o facto de aquela transformação ter
sido dolorosa. Por isso, durante aqueles meses, de manhã, fui
assistindo à destruição de um pequeno mundo, à ocupação desse
mesmo espaço pela embaixada de outro mundo, e à tarde lia sobre
a leitura e ia acabando a escrita deste livro.

Em Turim há uma livraria tradicional e multicolorida que se


chama La Bussola. Todas as livrarias são bússolas: quando as
estudamos, brindam-nos interpretações do mundo contemporâneo
mais afinadas que as facilitadas por outros ícones ou espaços. Se
tivesse de escolher outra livraria para explicar – parcialmente, não
há explicações totais – o estado de excisão em que se encontra o
negócio livreiro da nossa época, seria a Pandora, de Istambul. São
duas lojas situadas em frente uma da outra e muito bem
abastecidas: uma, vende exclusivamente livros em turco; a outra,
em inglês. As etiquetas de uma marcam os preços em liras turcas;
as da outra, em dólares. A Pandora torna explícita uma realidade
simbólica: todas as livrarias estão entre dois mundos, o local e o
imposto pelos Estados Unidos, o do comércio tradicional (de
proximidade) e o dos grandes centros comerciais (as cadeias), o
físico e o virtual. Essa metáfora não é tão óbvia como a de uma
velha livraria, uma livraria clássica e com linhagem, uma livraria
fundada por Josep López, Manuel Borràs e Josep Maria Cruzet, que
sobreviveu ao inverno bunker de uma ditadura e ao metódico
assédio de uma imobiliária que, após tanta inflamada resistência
política e moral, sucumbiu perante a implacável e fria e abstrata
economia, a Catalònia fechou, e a loja, a dois passos da Apple
Store, a 200 metros da Fnac, à frente do El Corte Inglés, converteu-
se num McDonald’s. Com efeito: a da Pandora é uma metáfora
menos óbvia, mas mais esperançosa, porque em vez de conduzir ao
fecho, conduz à sobrevivência. Todas as livrarias estão divididas
pelo menos entre dois mundos e veem-se obrigadas a pensar, e
digo isto sem um pingo de candura, noutros mundos possíveis. A
Green Apple Books – como recordou Dave Eggers no seu capítulo
da antologia My Bookstore – está alojada num edifício que
sobreviveu a dois terremotos, aqueles que abalaram São Francisco
em 1906 e 1989; talvez seja por isso que nas suas estantes nos
invada a «sensação de que, quando uma livraria é tão pouco
ortodoxa e tão estranha como os livros, os escritores e a própria
linguagem, tudo parece estar bem». Comprei lá um livrinho, uma
edição bilingue publicada por um festival de poesia de Hong Kong,
cujo título em inglês é Bookstore in a Dream. Chamam-me
poderosamente a atenção quatro versos sobre a livraria como ficção
quântica: a sua multiplicação no espaço, a sua entidade mental, a
sua existência nos universos paralelos da internet, sobrevivente
compulsiva de todos os sismos. Se a narradora de Danilo Kiš sonha
com uma biblioteca impossível em que se encontra a infinita
Enciclopédia dos Mortos, Lo Chih Cheng sonha com uma livraria
que não pode ser topografada. Uma livraria, como todas,
tranquilizadoramente física e terrivelmente virtual. Virtuais porque
são digitais; ou porque são mentais; ou porque deixaram de ser.
Livrarias que nascem, como a Lolita, em Santiago do Chile, como a
Bartleby & Co. em Berlim, ou a Librería Bartleby em Valência, como
a Librerío de la Plata, na periférica Sabadell, como a Dòria Llibres,
que ocupou o vazio deixado pela Robafaves noutra pequena cidade
catalã, a minha Mataró: em que momento os projetos são absoluta
realidade? Livrarias na memória, progressivamente invadidas pela
ficção.
Como a do sábio catalão de Cem Anos de Solidão que chegou a
Macondo durante o esplendor da Compañía Bananera, e que abriu
o negócio e começou a tratar tanto os clássicos como os clientes
como se fossem membros da sua própria família. A chegada de
Aureliano Buendía àquele covil do conhecimento é descrita por
Gabriel García Márquez em termos de epifania:

«Na tarde em que foi à livraria do sábio catalão, encontrou quatro rapazes
desbocados envolvidos numa encarniçada discussão sobre os métodos
usados para matar baratas durante a Idade Média. O velho livreiro, ciente
da predileção de Aureliano pelos livros que só o Venerável Beda lera,
instou-o com uma certa malícia paternal a interferir na controvérsia, e ele
nem sequer tomou fôlego para explicar que as baratas, o inseto alado mais
antigo da terra, já eram as vítimas favoritas das chineladas no Antigo
Testamento, mas que, enquanto espécie, era definitivamente refratária a
qualquer método de extermínio, das rodelas de tomate com bórax à farinha
com açúcar, pois as suas mil seiscentas e três variedades tinham resistido
à mais remota, tenaz e impiedosa perseguição que o Homem encetou
desde as suas origens contra qualquer ser vivo, incluindo o próprio
Homem, até ao ponto de, tal como se atribuía ao género humano um
instinto de reprodução, se lhe devia atribuir outro mais definido e
premente, que era o instinto de matar baratas, e que se estas tinham
conseguido escapar à ferocidade humana era por se terem refugiado nas
trevas, onde se tornaram invulneráveis devido ao medo congénito do
Homem da escuridão, mas em contrapartida desenvolveram uma
suscetibilidade contra o esplendor do meio-dia, de maneira que na Idade
Média, na atualidade e para todo o sempre o único método eficaz para
matar baratas era o do ofuscamento solar. Semelhante fatalismo
enciclopédico foi o princípio de uma grande amizade. Aureliano continuou
a reunir-se todas as tardes com os quatro discutidores, que respondiam
pelos nomes Álvaro, Germán, Alfonso e Gabriel, os primeiros e os últimos
amigos que teve na vida. Para um homem como ele, encastelado na
realidade escrita, aquelas sessões tormentosas, que começavam na
livraria às seis da tarde e acabavam nos bordéis ao amanhecer, foram uma
revelação.»
Esse sábio catalão era, na verdade, Ramon Vinyes, livreiro de
Barranquilla e agitador cultural, fundador da revista Voces (1917-
1920), primeiro imigrante espanhol, depois exilado espanhol,
professor, dramaturgo, escritor de contos. A sua livraria, a R. Viñas
& Co., um centro cultural de primeira magnitude, incendiou-se em
1923 e ainda é recordada em Barranquilla como uma das livrarias
míticas das Caraíbas colombianas. Quando, depois de passar pela
França, se exilou no país da América do Sul como intelectual
republicano, dedicou-se à docência e ao jornalismo, e converteu-se
em mestre de uma geração inteira, que ficou conhecida como «O
Grupo de Barranquilla» (Alfonso Fuenmayor, Álvaro Cepeda
Samudio, Germán Vargas, Alejandro Obregón, Orlando Rivera
Figurita, Julio Mario Santo Domingo e García Márquez). Durante
uma das manhãs mais estranhas da minha vida, dei a um taxista da
estação de autocarros de Barranquilla a seguinte morada: Calle San
Blas, entre a Progreso e a 20 de Julio. Livraria Mundo. Quando
íamos a caminho, informou-me de que o nome tinha mudado há uns
tempos, fez umas perguntas e averiguou que eu me estava a referir
à Calle 35, entre a Carrera 41 e a 43. E lá fomos. A Livraria Mundo,
de Jorge Rondón Hederich, onde nos anos 40 se reunia o lendário
grupo de intelectuais, herdeira da R. Viñas & Co., reduzida a cinzas
duas décadas antes. Quando cheguei, descobri que também tinha
deixado de existir. Era óbvio, mas a ideia nem nos tinha passado
pela cabeça, a mim e ao Juan Gabriel Vásquez (que me dera as
referências). A livraria devia lá estar mas não estava, porque há
muito tempo que só existia nos livros:

«Seja como for, o eixo das nossas vidas era a Livraria Mundo, ao meio-dia
e às seis da tarde, no quarteirão mais concorrido da Calle San Blas. O
Germán Vargas, amigo íntimo do proprietário, D. Jorge Rondón, foi quem o
convenceu a montar o negócio, que em pouco tempo se converteu num
centro de reunião de jornalistas, escritores e jovens políticos. O Rondón
carecia de experiência no negócio, mas aprendeu depressa, e com um
entusiasmo e uma generosidade que o converteram num mecenas
inesquecível. O Germán, o Álvaro e o Alfonso foram os seus assessores
nos pedidos dos livros, sobretudo nas novidades de Buenos Aires, cujos
editores tinham começado a traduzir, a imprimir e a distribuir em massa as
novidades literárias de todo o mundo depois da guerra mundial. Graças a
eles, podíamos ler a tempo os livros que, de outra maneira, nunca teriam
chegado à cidade. Entusiasmavam a clientela eles próprios, e
conseguiram fazer com que Barranquilla voltasse a ser o centro de leitura
que tinha decaído anos atrás, quando deixou de existir a livraria histórica
de D. Ramón. Pouco depois da minha chegada, integrei aquela confraria
que esperava, qual enviados do céu, os vendedores itinerantes das
editoras argentinas. Graças a eles, fomos admiradores precoces de Jorge
Luis Borges, Julio Cortázar, Felisberto Hernández e dos romancistas
ingleses e norte-americanos, bem traduzidos pela trupe de Victoria
Ocampo. La Forja de un Rebelde, de Arturo Barea, foi a primeira
mensagem de esperança de uma Espanha remota silenciada por duas
guerras.»

Assim falou García Márquez em Viver para Contá-la a propósito


daquelas duas livrarias, da que não conheceu e da que pôde
frequentar, ambas fundidas numa só na virtualidade da sua obra-
prima. Não encontrei na internet nenhuma fotografia da Ramón
Vinyes y Co. nem da Mundo, e agora percebo que o ritmo deste livro
foi o das pesquisas na matéria dos livros e na não-matéria do ecrã,
uma sintaxe de ida e volta, contínua e descontínua como a própria
vida, como se deliciaria Montaigne com os desacertos dos motores
de busca, com a sua capacidade de gerar associações, vínculos,
desacertos férteis, analogias. O que não aprenderia também com
elas o seu herdeiro Alfonso Reyes, a propósito do qual o narrador
da primeira parte de Os Detetives Selvagens diz: «O Reyes podia
ser a minha casinha. Lendo-o só a ele ou àqueles de quem ele
gostava podíamos ser imensamente felizes.» Em Libros y Libreros
en la Antigüedad, afirmou o sábio mexicano:

«O pergaminho era mais resistente e mais barato do que o papiro, mas


não foi facilmente adotado no comércio do livro. [...] Toda a antiga
produção de livros preferia esta forma leve e elegante, e havia uma certa
aversão contra o pesado e rude pergaminho. Galeno, o grande médico do
século II d.C., opinava, por razões higiénicas, que o pergaminho, devido ao
seu brilho, prejudicava e cansava mais os olhos que o opaco e macio
papiro, que não refletia a luz. O jurista Ulpiano (falecido em 229 d.C.)
abordou a questão do ponto de vista legal, refletindo sobre se os códices
de velino ou de pergaminho deviam ser considerados livros nos legados
das bibliotecas, mas nem sequer levantou a questão relativamente aos
papiros.»

Quase dois milénios mais tarde, o lento trânsito entre a leitura


em papel e a leitura digital atualiza estes debates periódicos. Agora
perguntamo-nos se o ecrã e a sua emanação de luz são mais
prejudiciais para a vista do que a tinta eletrónica, que não nos
permite ler às escuras. Ou se, após a morte de uma pessoa, é
legítimo que os seus descendentes herdem, juntamente com os
livros e os discos de vinil e os CD e os discos rígidos, as canções e
os textos que os pais compraram sem uma associação direta a
suportes materiais. Ou se a televisão e os jogos de computador são
nocivos para a imaginação das crianças e dos adolescentes, por
estimularem os reflexos maltratando a atividade cerebral e incitando
à violência. Como estudou Roger Chartier em Inscrire et Effacer.
Culture Écrite et Littérature (XIe-XVIIIe siècles), é na Castela do
Século de Ouro que se formaliza o perigo da leitura de ficção, sendo
o Dom Quixote a máxima expressão literária desse temor social:
«No século XVIII [...] o discurso medicaliza-se e constrói uma
patologia do excesso de leitura como uma doença individual ou uma
epidemia coletiva.» Nessa época, o mal do leitor é relacionado tanto
com a excitação da imaginação como com a imobilidade do corpo: a
ameaça é tanto mental como fisiológica. Seguindo este fio, Chartier
analisa, também, o debate oitocentista entre a leitura tradicional,
chamada intensiva, e a leitura moderna, qualificada como extensiva:

«Segundo esta dicotomia [proposta por Rolf Engelsing], o leitor intensivo


era confrontado com um conjunto limitado de textos, que eram lidos e
relidos, memorizados e recitados, ouvidos e aprendidos de cor,
transmitidos de geração em geração. Esta maneira de ler estava
fortemente impregnada de sacralidade e submetia o leitor à autoridade do
texto. O leitor extensivo, que surge na segunda metade do século XVIII, é
muito diferente: consome inúmeros textos impressos, novos, efémeros,
rápida e avidamente. O seu olhar é distanciado e crítico. A relação
comunitária e reverenciadora com a escrita é substituída por uma leitura
livre, desembaraçada, irreverente.»

A nossa maneira de ler, indissociável dos ecrãs e dos teclados,


seria a intensificação, após centenas de anos de textualidades
multiplicadas e cada vez mais aceleradas, em plataformas de
informação e de conhecimento progressivamente audiovisuais,
dessa extensão com implicações políticas. Perder a capacidade de
concentração num único texto implica ganhar espetro luminoso,
distância irónica e crítica, capacidade de relação e de interpretação
de fenómenos simultâneos. Significa, portanto, emancipar-se das
autoridades que constrangem as leituras, dessacralizar uma
atividade que, neste estádio da evolução humana, já devia ser
quase natural: ler é como caminhar, como respirar, qualquer coisa
que fazemos sem necessidade de pensar primeiro.
Enquanto os apocalípticos renovavam batidos argumentos de
mundos já inexistentes, em vez de aceitarem a mudança perpétua
como motor invariável da História, as livrarias Fnac entupiam-se de
jogos de computador e de séries televisivas, e as livrarias de
prestígio começaram a vender ensaios sobre jogos de computador e
sobre séries televisivas, além de e-readers e e-books. Porque,
assim que uma linguagem passa de moda ou deixa de ser tendência
e se converte em corrente dominante, o mais provável é que sofra
um processo de sofisticação artística que acabe por situá-la nas
estantes das livrarias e das bibliotecas e nas salas dos museus.
Como produto cultural. Como obra artística. Como mercadoria. O
desprezo pelas linguagens emergentes e mainstream é bastante
frequente no mundo da cultura, que é um campo – como todos –
dominado pela moda, pelo ego e pela economia. A maior parte das
livrarias de que falo neste livro, em cujo circuito internacional me
inseri como turista e como viajante, cultivam uma ficção de classe à
qual cada vez mais milhões de seres humanos têm – felizmente –
acesso, mas que continua a ser minoritária. Somos a ampliação da
gente seleta que Goethe encontrou na sua livraria italiana. Uma
ficção de classe, como todas, eminentemente económica, mesmo
que revestida pela pátina da educação mais ou menos refinada.
Porque não nos devemos enganar: as livrarias são centros culturais,
mitos, espaços de conversa e de debate e de amizade e até mesmo
de paixão, em parte causados pelas suas parafernálias
pseudorromânticas, muitas vezes lideradas por leitores artesanais
que amam o seu trabalho e inclusivamente por intelectuais e
editores e escritores que conhecem parte da história da cultura; mas
são, sobretudo, negócios. E os seus donos, amiúde livreiros
carismáticos, são também chefes, responsáveis pelos salários dos
empregados e pelo respeito pelos seus direitos laborais, patrões,
encarregados, negociantes, especialistas nos meandros da
legislação laboral. Um dos textos mais emocionantes e sinceros
relativos à Rue de l’Odéon relaciona, precisamente, a liberdade com
a compra de um livro:

«Para nós, o comércio tem um sentido comovente e profundo. No nosso


entender, uma loja é uma autêntica câmara mágica: no momento em que o
transeunte atravessa o limiar de uma porta que qualquer um pode abrir,
em que penetra neste lugar impessoal, dir-se-ia que nada se altera no seu
rosto, no tom das suas palavras; realiza, com um sentimento de total
liberdade, um ato que julga não ter consequências imprevistas.»

Porém, define-se, justamente, por essas consequências: James


Boswell conhecerá Samuel Johnson na livraria de Tom Davies, na
Russell Street; Joyce encontrará uma editora para o Ulisses;
Ferlinghetti decidirá abrir a sua própria livraria em São Francisco;
Josep Pla entrará, durante a sua infância, na Livraria Canet, de
Figueras, e selará o seu pacto com a literatura; William Faulkner
trabalhará numa como livreiro; Vargas Llosa comprará Madame
Bovary numa livraria do Quartier Latin de Paris muito tempo depois
de ter visto o filme em Lima; Jane Bowles encontrará a sua melhor
amiga em Tânger; Jorge Camacho comprará Celestino antes del
alba numa livraria de Havana e converter-se-á no maior defensor de
Reinaldo Arenas em França; um psiquiatra recomendará a um
jovem delinquente apelidado Limónov uma ida à Livraria 41 de uma
cidade russa da província e isso convertê-lo-á num escritor; entre os
livros em segunda mão da Delamain de Paris, François Truffaut
encontrou um romance de Henri-Pierre Roché intitulado Jules e Jim;
no dia 23 de abril de 1971, Iain Sinclair comprará, na Compedium de
Camden, o livro de William Blake que mudará a sua vida (a sua
arte); numa noite de 1976, Bolaño recitará, na Livraria Gandhi da
Cidade do México, o «Primeiro Manifesto Infrarrealista»; Cortázar
descobrirá a obra de Cocteau; Vila-Matas encontrará a de Borges.
Provavelmente, apenas uma vez na história da cultura o facto de
alguém não ter entrado numa livraria teve consequências positivas:
num dia de 1923, Akira Kurosawa dirigiu-se à famosa Livraria
Maruzen de Tóquio, conhecida pelo seu edifício construído por Riki
Sano em 1909 e por importar títulos internacionais para a elite
cultural japonesa, com a intenção de comprar um livro à irmã, mas
estava fechada e foi-se embora; duas horas depois, o edifício foi
destruído por um terremoto e todo o bairro foi consumido pelas
chamas. A literatura é magia e intercâmbio, e durante séculos
partilhou com o dinheiro o suporte do papel, tendo sido vítima de
tantos incêndios. As livrarias são negócios em dois planos,
simultâneos e indissociáveis: o económico e o simbólico, venda de
exemplares e criação ou destruição de famas, reafirmação do gosto
dominante ou invenção de um novo, depósitos e créditos. As
livrarias sempre foram amplificadoras do cânone e, portanto, pontos-
chave da geopolítica cultural. O lugar onde a literatura se torna mais
física e, por isso, mais manipulável. O espaço onde, bairro a bairro,
aldeia a aldeia, cidade a cidade, se decide a que leituras terão
acesso as pessoas, quais vão ser difundidas e, por conseguinte,
quais terão a possibilidade de serem absorvidas, descartadas,
recicladas, copiadas, plagiadas, parodiadas, admiradas, adaptadas,
traduzidas. É nelas que se decide grande parte das suas hipóteses
de se tornarem influentes. Não em vão o primeiro título que Diderot
deu à sua Carta Histórica e Política sobre O Comércio dos Livros foi:
«Carta histórica e política dirigida a um magistrado sobre a Livraria,
no seu estado antigo e atual, os seus regulamentos, os seus
privilégios, as licenças tácitas, os censores, os vendedores
ambulantes, a passagem de pontes e outros assuntos relativos ao
controlo literário.»
A internet está a mudar esta democracia – ou ditadura, conforme
o olhar – da distribuição e da seleção. Compro muitas vezes na
Amazon ou noutras páginas Web títulos publicados em cidades que
visitei e que não consegui comprar lá. No ano passado, quando
regressei da Cidade do México, onde fatiguei uma dezena de
livrarias à procura de um ensaio de Luis Felipe Fabre publicado por
uma pequena editora mexicana, lembrei-me de procurar na página
Web da Casa del Libro e lá estava, mais barato do que no seu lugar
de origem. Se o Google é o Motor de Busca e a Barnes & Noble é a
Cadeia de Livrarias, nem é preciso dizer que a Amazon é a Livraria
Virtual por excelência. O que não deixa de ser uma grande
imprecisão: mesmo tendo nascido como livraria em 1994 com o
nome Cadabra.com, embora pouco depois se passasse a chamar
Amazon para subir uns lugares na ordenação alfabética reinante da
internet antes do Google, é certo que há já algum tempo se
converteu num grande armazém no qual os livros têm a mesma
importância que as câmaras fotográficas, os brinquedos, os sapatos,
os computadores ou as bicicletas, embora a marca baseie o seu
potencial apelativo em dispositivos-emblema, como o Kindle, um
leitor ou livro eletrónico que fideliza as compras de textos na própria
Amazon. De facto, em 1997 a Barnes & Noble acusou-a de
publicidade enganosa (essa tautologia): o slogan «A maior livraria
do futuro» era falso, porque não se trata de uma «bookstore» (loja
de livros), mas de uma «book broker» (mediadora de livros). Agora
comercializa qualquer objeto, menos e-readers que não sejam
Kindle.
Aqueles que, como eu, somos motores de busca natos no
mundo físico – a perseguição da inexistente livraria de Barranquilla
é só um exemplo entre mil –, não podemos evitar sê-lo também no
mundo virtual: a história do livro eletrónico é tão absorvente como
um thriller. Começou nos anos 40; acelerou nos 60 com os sistemas
de edição hipertextual; encontrou o seu formato graças a Michael S.
Hart nos 60 e uma maneira de ser nomeado («electronic book»,
«livro eletrónico») graças ao professor Andries van Damme, da
Universidade de Brown, em meados da década seguinte. Quando,
em 1992, a Sony lançou no mercado o seu leitor de livros em CD
Data Discman, anunciou-o como «A Biblioteca do Futuro». Kim
Blagg obtém o primeiro ISBN para um livro eletrónico em 1998.
Estes são os dados, as cronologias possíveis, as pistas que, todas
juntas, transmitem a sensação de estarmos entre dois mundos, tal
como os contemporâneos de Cervantes durante o século XVI, os de
Stefan Zweig em inícios do XX ou os habitantes da Europa do Leste
em finais dos anos 80. Num lento apocalipse, no qual as livrarias
são, ao mesmo tempo, oráculos e observatórios privilegiados e
campos de batalha e horizontes crepusculares em irremediável
mutação. Como diz Alessandro Baricco em I Barbari:

«Trata-se de uma mutação. Do que diz respeito a todos nós, ninguém está
excluído. Mesmo os engenheiros, no alto dos torreões da muralha, têm os
traços somáticos dos nómadas contra os quais, em teoria, estão a lutar: e
têm no bolso dinheiro bárbaro, e pó das estepes nos seus pescoços
engomados. Trata-se de uma mutação. Não de uma ligeira mudança, ou
uma degeneração inexplicável, ou uma doença misteriosa: é uma mutação
levada a cabo para sobreviver. A escolha coletiva de um habitat mental
diferente e salvífico. Sabemos, mesmo que vagamente, o que a pode ter
causado? Vêm-me à cabeça algumas inovações tecnológicas, sem dúvida
decisivas: as que comprimiram o espaço e o tempo, comprimindo o
mundo. Mas provavelmente não teriam sido suficientes se não tivessem
coincidido com um acontecimento que abriu de par em par as portas da
cena social: a queda de barreiras que até então tinham mantido afastados
boa parte dos seres humanos da práxis do desejo e do consumo.»

Uma vez mais, aparece neste livro a palavra desejo, essa


energia platónica e química que atrai certos corpos e certos objetos,
veículos para o conhecimento múltiplo. No mundo posterior a 1989,
com o neoliberalismo reforçado pela queda da União Soviética, cada
vez mais digital e mais digitalizado, esse desejo foi-se
materializando no consumo de pixéis, essa unidade mínima de
sentido para explicar os nossos escritos, as nossas fotografias, as
nossas conversas, os nossos vídeos, os mapas que assinalam as
rotas onde suamos ou conduzimos ou voamos ou lemos. É por isso
que as livrarias têm páginas Web: para nos venderem livros
pixelizados e para que consumamos também imagens, relatos,
novidades, iscos. Tudo isto é substancial, não um mero acidente: os
nossos cérebros estão em processo de mutação, as nossas formas
de comunicação e de nos relacionarmos uns com os outros estão a
mudar, somos os mesmos, mas muito diferentes. Como explica
Baricco, nas últimas décadas mudou o que entendemos por
experiência e, inclusivamente, o tecido da nossa existência. As
consequências desta mutação são as seguintes: «A superfície em
vez da profundidade, a velocidade em vez da reflexão, as
sequências em vez das análises, o surf em vez do aprofundamento,
a comunicação em vez da expressão, o multitasking em vez da
especialização, o prazer em vez do esforço.» Uma desarticulação
exaustiva da maquinaria do pensamento burguês oitocentista, um
esgotamento dos últimos restos do naufrágio da divindade na vida
quotidiana. O triunfo político da ironia sobre o sagrado. É muito mais
difícil que os escassos velhos deuses que sobreviveram no papel às
duas guerras mundiais continuem a chagar-nos no fino fulgor do
ecrã.
As culturas não podem existir sem a memória, mas também não
o podem fazer sem o esquecimento. Enquanto a Biblioteca se
obstina em recordar tudo, a Livraria seleciona, descarta, adapta-se
ao presente graças ao esquecimento necessário. O futuro constrói-
se por obsolescência, temos de desprender-nos das crenças do
passado que são falsas ou se tornaram obsoletas, das ficções e dos
discursos que deixaram de emitir a mais ínfima quantidade de luz.
Como escreveu Peter Burke: «Descartar conhecimentos deste modo
pode ser desejável ou mesmo necessário, pelo menos até certo
ponto, mas nunca deveríamos esquecer as perdas ou os ganhos.»
É por isso que, uma vez produzida a série de seleções e de
rejeições que constitui um processo inevitável, convém «estudar o
que foi descartado ao longo dos séculos, o lixo intelectual», lá onde
os homens talvez se tenham enganado, onde o que havia de mais
valioso foi condenado à desmemória, entre muitos outros dados e
crenças que, pelo contrário, mereciam ter desaparecido. Após
tantos anos de duração a longo prazo, o livro passa a fazer parte,
com o suporte eletrónico, da lógica da obsolescência programada,
do prazo de validade. Isto vai mudar ainda mais profundamente a
nossa relação com os textos, que poderemos traduzir, alterar,
personalizar até limites ainda por imaginar. Trata-se do culminar
provisório do caminho iniciado durante o humanismo, quando a
filologia questionou as autoridades consabidas e inúteis e as bíblias
começaram a ser vertidas para as nossas línguas de acordo com
critérios racionais, e não com o ditame da superstição. Se já são
muitos os que, como eu, vamos acumulando carimbos inúteis no
estúpido passaporte das livrarias do mundo, é porque intuímos
nelas a presença de restos dos deuses culturais que suplantaram os
religiosos, porque desde o romantismo até agora as livrarias, qual
cemitérios, qual ruínas arqueológicas, como certos cafés e tantas
bibliotecas, como mais tarde os cinemas e os museus de arte
contemporânea, foram e continuam a ser espaços rituais, muitas
vezes assinalados como importantes pelo turismo e por outras
instituições para compreender a história da cultura moderna,
topografias eróticas, âmbitos estimulantes onde podemos
abastecer-nos dos materiais necessários para construirmos o nosso
lugar do mundo. Se com a morte de Jakob Mendel ou com o
hipertexto borgesiano esses lugares físicos a que nos podemos
agarrar se foram tornando mais frágeis, menos transcendentes, com
o desenvolvimento da internet passaram a ser muito mais virtuais do
que a imaginação alguma vez sugeriu. Obrigam-nos a construir
novas ferramentas mentais, a ler mais crítica e mais politicamente
que nunca, a imaginar e a relacionar como nunca, analisando e
surfando, aprofundando e acelerando, convertendo o privilégio de
um acesso inaudito à Informação em novas formas de
Conhecimento.

Dedico muitas tardes de domingo a deambular pela internet à


procura de livrarias que ainda não existem de todo para mim, mas
que estão lá, à minha espera. Durante anos fui leitor-espectador de
lugares emblemáticos que ainda não visitei. Há muito pouco tempo,
quis o acaso que tivesse a oportunidade de conhecer dois desses
espaços: em Coral Gables, esse topónimo que para mim é só
juanramoniano1, inesperadas 24 horas de ligação aérea permitiram-
me visitar a Books & Books, a belíssima livraria de Miami instalada
num edifício dos anos 20 de estilo mediterrânico; em Buenos Aires,
durante um fim de semana sem atividades programadas, pude
apanhar um barco que me levou a Montevideu para descobrir,
finalmente, em carne e osso, uma livraria ainda mais bela e bem
abastecida, a Más Puro Verso, com a sua arquitetura da mesma
época, art déco, e um vitral no alto da escadaria imperial. Tal como
desejei esses espaços, passei anos a colecionar pistas sobre outros
em livros, jornais, revistas, páginas Web ou vídeos; outros que
também quero possuir. Algumas dessas livrarias são a Tropismes,
situada numas galerias oitocentistas de Bruxelas; a Le Bal des
Ardents, em Lyon, com uma grande porta feita de livros e uns
tapetes orientais que convidam a ler no chão; a Mollat, de Bordéus,
que recentemente tornou realidade o sonho de qualquer amante de
livros, poder passar a noite numa livraria, e cuja página Web está
sempre a ferver de recomendações e atividades, pura tradição
familiar convertida em 2500 metros quadrados de cultura impressa a
abarrotar na casa onde viveu, escreveu e leu, no começo do século
XVIII, nada mais nada menos que Montesquieu, o filósofo viajante; a
Candide, com a sua arquitetura leve como uma floresta de bambu
em Banguecoque, gerida pela escritora, editora e ativista
Duangruethai Esanasatang; qualquer um dos três estabelecimentos
da Kyobo Bookstore, de Seul, que aos fins de semana acolhem
milhares de pessoas que lá vão comprar e ler, convertendo a livraria
numa espetacular biblioteca; a Athenaeum Boekhandel, de
Amesterdão, que tão enfaticamente me recomendou Cees
Nooteboom tanto pela sua estética clássica como pela sua
importância enquanto centro cultural e residência de escritores; a
Pendleburys, uma casa de campo devorada por um bosque galês; a
Swipe Design, de Toronto, porque tem no teto uma antiga bicicleta e
entre os seus dois cadeirões de leitura há um tabuleiro de xadrez; a
Ram Advani Booksellers, o mítico lugar de Lucknow (na Índia),
embora já não seja possível encontrar lá Ram Advani, porque
morreu no fim de 2015, aos 95 anos, sendo a sua memória
perpetuada pela nora, Anuradha Roy; e a Atomic Books, a livraria
preferida do guionista e crítico de banda desenhada Santiago
García, que num e-mail me contou que é uma das melhores dos
Estados Unidos para o leitor de BD, embora também tenha
literatura, fanzines contraculturais e até brinquedos e discos punk:
«Além do mais, podes dar de caras com o John Waters a levantar o
correio.» Sobre outras não disponho de informações relativamente à
sua história ou à sua importância, simplesmente cativaram-me
através de fotografias, porque todos os dados disponíveis sobre elas
estão em línguas que não compreendo, como o japonês: a Orion
Papyrus, de Tóquio, com o seu chão de parquê, uns candeeiros
dignos de Mondrian e umas estantes de madeira e metal repletas de
livros sobre arte e design; ou, na mesma cidade, a Shibuya
Publishing & Booksellers, com umas estantes que obedecem a
todas as geometrias imagináveis. Na Cidade da Guatemala, se
algum dia lá voltar, combaterei a nostalgia provocada pelo
desaparecimento da Librería del Pensativo indo religiosamente à
Sophos. Talvez tome apontamentos sobre todas elas, à medida que
as vá visitando como quem salda dívidas, num caderno parecido
com o que usei nessa viagem remota, porque já perdi o fugaz
costume de o fazer na aplicação Moleskine do meu iPad e não
gosto de usar o telemóvel, além de como câmara fotográfica, como
bloco de notas. Logo vejo: o que importa, afinal de contas, é a
vontade de arquivar.
Em «Felicidade Clandestina», um conto da Clarice Lispector, há
uma menina «gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente
crespos», mas que possui «o que qualquer criança devoradora de
histórias gostaria de ter: um pai dono de uma livraria». Há muitos
anos que descolo a etiqueta com o preço e o código de barras de
todos os livros que compro, para a colar no interior da contracapa,
ao pé do chip antirroubo. Desta maneira, conservo um vínculo
paterno. A última vontade do escritor David Markson, que morreu
em Nova Iorque em junho de 2012, foi que a sua biblioteca fosse
integralmente vendida na Strand, diluída entre tantíssimas outras
bibliotecas de inúmeros e anónimos leitores. Por um dólar, vinte,
cinquenta: os seus livros estavam lá, reintegrados no mercado a que
outrora pertenceram, à espera da sua sorte, do seu destino.
Markson podia ter legado a sua biblioteca a alguma universidade,
onde teria acumulado pó e teria sido visitada apenas pelos escassos
estudiosos da sua obra; mas optou por um gesto antitético: reparti-
la, desagregá-la, submetê-la ao risco das leituras futuras totalmente
inesperadas. Quando a voz se espalhou, dezenas de seguidores do
autor de This Is Not a Novel dirigiram-se para a livraria de
Manhattan à procura dos volumes sublinhados e anotados. Formou-
se um grupo virtual. Começaram a ser publicadas na Web páginas
digitalizadas. No exemplar de Bartleby, Markson sublinhou cada
uma das ocorrências da frase «preferia que não»; no de Ruído
Branco, alternou os «fantástico, fantástico, fantástico» com os
«seca, seca, seca»; numa biografia de Pasternak, escreve, à
margem: «É um facto que Isaak Bábel foi executado na cave de
uma prisão de Moscovo. Poderosa hipótese de o manuscrito de um
romance publicado numa prisão ainda existir nos arquivos de
Estaline.» Seria possível escrever um dos romances fragmentários
de Markson apenas com as notas da sua biblioteca, no qual os
apontamentos de leitura, as impressões poéticas e as reflexões se
fossem sucedendo como numa sessão de zapping. Seria um
romance impossível, porque nunca poderão ser localizados todos os
livros que um dia fizeram parte da sua biblioteca: muitos deles foram
comprados ou estão a ser comprados agora mesmo na Strand por
pessoas que não sabem quem foi Markson. Este gesto é parte do
seu legado. Um gesto final e definitivo que conjugou a morte, a
herança, a paternidade e apenas uma das infinitas livrarias, que
resume, no entanto, as restantes tal como num único conto se
resume toda a literatura universal.

«Não há ideias, a não ser nas coisas.»

DAVID MARKSON
Reader’s Block.

1 Referência ao escritor espanhol Juan Ramón Jiménez, que publicou, em 1948, um livro
intitulado Romances de Coral Gables. (N. da T.)
Sobre as citações

WEBGRAFIA

American Booksellers Association: http://www.bookweb.org


Bloc de Llibreries: http://delibrerias.blogspot.com.es
Book Forum: http://www.bookforum.com
Book Mania: http://www.bookmania.me
Bookseller and Publisher: http://www.booksellerandpublisher.com.au/
Bookshop Blog: http://bookshopblog.com/
Books Live: http://bookslive.co.za/
Bookstore Guide: http://www.bookstoreguide.org
Book Patrol: http://www.bookpatrol.net
Courrier du Maroc: http://courrierdumaroc.com/
Día del Libro: http://www.diadellibro.eu
Diari d’un llibre vell: http://www.llibrevell.cat
El Bibliómano: hhtp//www.bibliographos.net
El Llibreter: http://llibreter.blogspot.com.es/
El Pececillo de Plata: http://elpececillodeplata.wordpress.com/
Gapers Block: http://www.gapersblock.com
José Luis Checa Cremades. Bibliofilia y encuadernación:
http://checacremades.blogspot.com.es
Histoire du Livre: http://histoire-du-livre.blogspot.com.es
Kipling: http://www.kipling.org.uk
Le Bibliomane Moderne: http://le-bibliomane.blogspot.com.es
Library Thing: http://www.librarything.com
Libreriamo: http://www.libreriamo.it
Paul Bowles Official Site: http://www.paulbowles.org
Rafael Ramón Castellanos Villegas: http://rrcastellanos.blogspot.com.es
Reading David Markson: http://readingmarksonreading.tumblr.com
Rare Books Collection de Princeton: http://blogs.princeton.edu/rarebooks/
Reality Studio. A Williams S. Burroughs Community.
http://www.realitystudio.org
Rue des Livres: http://www.rue-des-livres.com
The Bookshop Guide: http://www.inprint.co.uk/thebookguide/shops/index.php
The Bookseller: http://www.thebookseller.com
The China Beat: http://www.thechinabeat.org
The Haunted Library: http://www.teensleuth.com/hauntedlibrary/
The Ticknor Society Blog: www.ticknor.org/blog/
[E as páginas Web e blogues de todas as livrarias citadas.]

FILMOGRAFIA

Antes do Amanhecer (1995), de Richard Linklater.


Antes do Anoitecer (2004), de Richard Linklater.
Californication (Showtime, 2007).
Chelsea Girls (1966), de Andy Warhol e Paul Morrisey.
A Vida dos Outros (2006), de Florian Henckel von Donnersmarck.
Fantômes de Tanger (2007), de Edgardo Cozarinsky.
Amor em Acapulco (1963), de Richard Thorpe.
Cinderela em Paris (1957), de Stanley Donen.
A Invenção de Hugo (2011), de Martin Scorsese.
Julie & Julia (2009), de Nora Ephron.
Lord Jim (1965), de Richard Brooks.
Nove Semanas e Meia (1986), de Adrian Lyne.
Notting Hill (1999), de Roger Mitchell.
Portrait of a Bookstore as an Old Man (2003), de Benjamin Sutherland e
Gonzague Pichelin.
Lembra-te de Mim (2010), de Allen Coulter.
Curto-Circuito (1986), de John Badham.
Curto-Circuito 2 (1988), de Kenneth Johnson.
Os Homens do Presidente (1999-2006), NBC.
Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock.
Você Tem Uma Mensagem (1998), de Nora Ephron.

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Sobre o Autor

JORGE CARRIÓN

Catalão de Tarragona (onde nasceu, em 1976 – antes de a família


se mudar para Mataró, também no litoral, um pouco a norte de
Barcelona), Jorge Carrión é doutorado em Literatura
Contemporânea pela Universidade Pompeu Fabra, onde dirige o
mestrado em escrita criativa e criação literária. Autor dos romances,
Los Muertos (2010), Los Huérfanos (2014) Los Difuntos (2015) e
Los Turistas (2015), que compõem a tetralogia Las Huellas, Carrión
viveu também na Argentina (Rosário e Buenos Aires) e nos Estados
Unidos (Chicago) – e viajou um pouco por todo o mundo, desde a
Austrália (para onde a família emigrou nos anos 60) à América
Latina, passando pela China, Médio Oriente, Estados Unidos; o
resultado é uma série de livros de viagens, entre os quais La
Brújula, Australia. Un Viaje, La Piel de La Boca, Crónica de Viajes
ou Nortes Es Sur. Crónicas americanas. Na área do ensaio, é autor
de um livro sobre as obras de W.G. Sebald e Juan Goytisolo (Viaje
contra Espacio) e de Teleshakespeare, sobre séries de televisão.
Librerías encontra-se a meio caminho do ensaio sentimental e da
literatura de viagem – duas coisas excelentes para definir um autor.

Sobre a Tradutora

MARGARIDA AMADO ACOSTA

Margarida Amado Acosta vive em Linda-a-Velha, tem uma filha


violinista e violetista, e dá aulas na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa há mais de 20 anos. Já traduziu para
português livros, filmes e ensaios de quase todos os países de
língua castelhana, do México ao Chile, de Cuba a Espanha.
Traduziu, entre muitas outras, obras de Juan José Millás, Héctor
Abad Faciolince, Severo Sarduy, Evelio Rosero y Gonzalo Celorio.

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