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Sumário

Introdução
1 Os Evangelhos de Santo Agostinho
2 O Codex Amiatinus
3 O Livro de Kells
4 O Arateia de Leiden
5 O Beato de Morgan
6 Hugo Pictor
7 O Saltério de Copenhague
8 Carmina Burana
9 As Horas de Joana de Navarra
10 Chaucer de Hengwrt
11 O Semideus de Visconti
12 As Horas de Spinola
Epílogo
Referências bibliográficas e notas
Créditos das imagens
Introdução

Este livro é uma visita a importantes manuscritos medievais, ao que


eles nos contam e à razão pela qual são importantes. Era para se
chamar “Entrevistas com manuscritos”, conforme fora preconcebido
de início, e, de fato, os capítulos não diferem muito de uma série de
entrevistas com celebridades. Entrevistas reais — as tradicionais,
com pessoas famosas — comumente introduzem o cenário e
descrevem as circunstâncias dos encontros. Tentam sempre evocar
algo da experiência do encontro com os entrevistados e da
interação com eles. Algumas informações já foram antecipadas a
você, é claro, mas quem são realmente essas pessoas quando
enfim vêm até a porta, apertam sua mão e o convidam a entrar e
sentar? Os relatos podem deixar entrever algo de sua presença
física, talvez de suas roupas, sua postura e seu estilo de conversar.
Podemos todos fingir que uma pessoa muito conhecida não é, na
realidade, diferente de qualquer ser humano, mas há uma inegável
excitação ao efetivamente conhecer alguém de estatura mundial e
falar com ele. Será que, de fato, ele ou ela tem um carisma
impressionante, ou (como acontece às vezes) revela-se uma
decepção? Talvez você queira descobrir como as pessoas ganham
fama, e se sua reputação é merecida. Ouça-as e deixe que falem.
Um bom entrevistador deve ser capaz de extrair segredos que eram
totalmente desconhecidos e que a pessoa famosa tencionava
manter bem ocultos. Existe, por parte do leitor, até mesmo certo
voyeurismo quando bisbilhota essas confissões íntimas à medida
que elas vêm à tona.
Os mais célebres manuscritos ornados com iluminuras são, na
realidade, para a maioria de nós, tão inacessíveis quanto as
personalidades muito famosas. Em geral, qualquer pessoa com uma
boa dose de energia e dinheiro para viajar conseguirá ver muitos
dos grandes quadros e monumentos arquitetônicos, e pode estar
hoje diante da Grande Muralha da China ou do Nascimento de
Vênus, de Botticelli. Mas tente — apenas tente — fazer com que
retirem o Livro de Kells de seu estojo de vidro em Dublin para que
você possa folheá-lo. Isso não vai acontecer. Atualmente, a maioria
dos grandes manuscritos medievais quase nunca está em nenhum
tipo de exibição pública, nem mesmo em vitrines protegidas da luz,
e se estão, você verá uma única abertura de página dupla. São
frágeis demais e preciosos demais. É mais fácil encontrar-se com o
papa ou com o presidente dos Estados Unidos do que tocar no Très
Riches Heures, do duque de Berry. A cada ano o acesso fica mais
difícil. A ideia deste livro, então, é convidar o leitor a acompanhar o
autor numa jornada particular para ver, manusear e entrevistar
alguns dos mais belos manuscritos iluminados da Idade Média.
Paleógrafos — termo genérico para definir aqueles que estudam
manuscritos antigos — acostumaram-se a trabalhar nas salas de
leitura de bibliotecas de livros raros, mas estas são santuários
inacessíveis ao público em geral, como seria para mim o túmulo do
Profeta em Medina. Bibliotecas nacionais modernas estão entre os
prédios mais caros jamais construídos, mas pouca gente entra neles
fundo o bastante para chegar às mesas exclusivas separadas para
a consulta dos livros mais valiosos de todos. Alguns cenários para o
estudo de manuscritos são imponentes e intimidadores, e outros são
carinhosamente informais. O acesso a eles é um segredo dos
iniciados, e os formulários para admissão ao espaço e manuseio
dos manuscritos variam muito de um repositório a outro. Este é um
aspecto da história da erudição frequentemente negligenciado por
completo. Os soberbos livros iluminados da Idade Média são pedras
angulares de nossa cultura, mas é raro alguém se dar ao trabalho
de documentar seu habitat.
Pode ser que alguns desses grandes manuscritos sejam
conhecidos através de fac-símiles ou de imagens digitalizadas
disponíveis on-line, tão acessíveis e tão familiares quanto biografias
autorizadas de gente famosa, mas nenhuma cópia se iguala a um
original. A experiência do encontro é totalmente diferente. Fac-
símiles não têm raízes em — nem estão ligados a — lugar algum.
Ninguém pode propriamente conhecer um manuscrito ou escrever
sobre ele sem tê-lo visto e segurado nas mãos. Nenhuma
reprodução fotográfica já inventada tem o peso, a textura, a
superfície irregular, as bordas denteadas, a espessura, o cheiro, a
qualidade tátil e a pátina do tempo de um verdadeiro livro medieval;
e nada pode se comparar ao frêmito de excitação quando enfim um
manuscrito de inexcedível fama é colocado sobre a mesa a sua
frente. Você não o está meramente vendo, como que atrás de um
vidro, mas de fato pode tocá-lo e olhar entre suas frestas. Sempre
haverá detalhes que ninguém terá visto antes. A cada vez você fará
descobertas. Evidências ainda não notadas podem ser extraídas de
marcas deixadas na fabricação, rasuras, arranhões, retoques,
ressaltos, remendos, buracos de agulha, encadernações, nuanças
de cor e de textura, que nas reproduções são totalmente invisíveis.
As perguntas a que os manuscritos podem responder quando
confrontados cara a cara são às vezes inesperadas, tanto sobre
eles mesmos como sobre a época em que foram produzidos. Há
aqui, em cada capítulo, novas observações e hipóteses, e para
obtê-las nada mais inteligente do que mergulhar nos originais. Olhe
bem de perto. Se quiser, use uma lupa. Recoste-se: vire as páginas
e ouça em silêncio o que os livros lhe dizem. Deixe que falem.
Apenas fazer isso já é imensamente prazeroso e interessante.
Manuscritos medievais têm biografias. Eles têm sobrevivido através
de séculos, interagindo com sucessivos proprietários e eras,
negligenciados ou admirados, até nossa época. Vamos destrinçar
proveniências que eram totalmente desconhecidas. Às vezes essas
histórias são muito dramáticas, quando livros assumem seu lugar
nas questões da Europa em seu mais alto nível, desde as alcovas
de santos e reis medievais aos lugares secretos de esconderijo na
Alemanha nazista. Habent sua fata libelli [Os livros têm seu destino].
Alguns manuscritos mal saíram de suas prateleiras originais desde o
dia em que foram completados; outros há que ziguezaguearam pelo
mundo conhecido em baús de madeira ou alforjes que oscilavam no
dorso dos cavalos, ou através do oceano em pequenos veleiros, ou
como carga aérea, pois livros são muito portáteis. Muitos, em algum
momento, passaram pelo comércio ou por salas de leilão, e os
preços a eles atribuídos enquanto assim transitavam é parte de uma
história mutante de gosto e de moda. A vida de cada manuscrito,
como a de cada pessoa, é diferente, e todos têm histórias a contar.
Uma dúzia de manuscritos foram selecionados para serem aqui
entrevistados. Ninguém sabe com precisão quantos manuscritos
medievais sobreviveram em todo o mundo — talvez 1 milhão, talvez
mais —, e a escolha foi de fato muito abrangente. São todos
potencialmente fascinantes, e mesmo o mais modesto e mal-
ajambrado desses manuscritos proveria material suficiente para
encher um capítulo deste livro, mas constituiria uma experiência
menos glamorosa para o leitor. Vamos nos engajar em grandes
companhias. Quando se está na sala de leitura de uma biblioteca
virando as páginas de algum deslumbrante volume iluminado, pode-
se perceber certo respeito por parte de seus colegas estudiosos que
consultam livros ou arquivos mais modestos em mesas vizinhas, e
espero compartilhar com o leitor o sabor dessa serena satisfação de
se associar a manuscritos famosos, que por breves momentos vão
se tornar nossos companheiros íntimos. Vamos iniciar, juntos, uma
citação um tanto autoindulgente de nomes famosos. Entre esses
colossos tentei escolher um conjunto que representasse diferentes
tipos de livros medievais, não apenas Evangelhos e livros de horas,
mas também textos de astronomia, comentários bíblicos, música,
literatura e política renascentista. Poderíamos também ter optado
por liturgia, medicina, direito, história, romance, heráldica, filosofia,
viagens ou muitos outros assuntos amplamente contemplados em
manuscritos da Idade Média. Separei volumes que me pareceram
característicos de cada século, do VI ao XVI. Todos eles nos contam
algo sobre sua época e as sociedades que os produziram.
Eu fui conferir cada um desses manuscritos com a finalidade de
escrever este livro. Já tinha manuseado alguns deles antes disso,
mas desta vez os procurei sem nenhuma expectativa particular
quanto ao que desejava que nos contassem, e quaisquer novas
revelações — e certamente há algumas — os manuscritos as
ofereceram no decurso dos encontros aqui descritos. A narrativa vai
mostrar isso acontecendo.
Os manuscritos não têm todos o mesmo tamanho. A natureza
miniatural da arte da iluminura é parte do fascínio dos manuscritos
medievais, mas alguns desses livros são enormes. Aqueles que
estudam a história da arte exclusivamente por meio de reproduções,
sejam reduzidas ao tamanho de um livro de texto, sejam ampliadas
em telas de conferências, perdem todo o senso de relação de
escala entre um manuscrito e outro. Ao longo da Idade Média havia
uma forte sensibilidade à hierarquia das coisas, tanto no mundo
natural como no humano, que com frequência se expressava na
proporção. O livro com as maiores dimensões aqui é o Codex
Amiatinus, uma pandecta (assim era chamada) das Escrituras
inteiras, escrita para exibição pública. O menor é o delicado Livro de
Horas de Joana de Navarra, escrito para as mãos de uma rainha.
Quando, numa biblioteca, um manuscrito é entregue em sua mesa,
antes de abri-lo sempre ocorre a inesperada constatação de quão
grande ou pequeno ele é. É como um truque de projeto gráfico,
portanto, em que cada capítulo começa com a imagem do
manuscrito em questão, quando fechado. A ilustração do Codex
Amiatinus é tão grande quanto permitem as dimensões deste livro; a
capa de todos os outros, por sua vez, é mostrada no início de cada
capítulo em escala com essa reprodução maior.
Certos temas vão se esclarecer à medida que prosseguimos. O
capítulo 1, sobre o Evangelho de Santo Agostinho, nos leva a uma
era na qual um novo letramento cristão emergia do colapso da
Roma antiga. O Codex Amiatinus, no capítulo 2, é a mais antiga
Bíblia latina que sobreviveu, enviada para a Itália dos confins da
Terra, como declara sua dedicatória, por aqueles que se orgulhavam
de seus estudos romanos. O incomparável Livro de Kells, que
constitui o capítulo 3, é um tipo muito diferente de manuscrito dos
quatro Evangelhos, e nele imergimos no distante mundo celta, no
qual magia e crença são inseparáveis e posteriormente têm um
papel a desempenhar no sentido moderno da identidade nacional
irlandesa. O capítulo 4 versa sobre copiar manuscritos e copiar
culturas. A corrida apressada para o milênio e o apocalipse
antecipado preocuparam o século X e preenchem o capítulo 5. Os
sóbrios efeitos de longo alcance da conquista normanda de 1066
podem ser experimentados em formato gráfico e em primeira mão
nos manuscritos que se examinam no capítulo 6. O século XII marca
uma grande mudança na produção de livros, de monásticos para
seculares, um divisor de águas na história do letramento e da arte, e
é um dos pontos de inflexão subestimados de nossa civilização. No
capítulo 7 decifraremos o nome do rei que possuiu um dos mais
belos livros de Salmos da época. No capítulo 8 vamos pegar um
livrinho em Munique e lá encontrar as canções de amor e luxúria
dos estudantes e dos doutos errantes do início do século XIII. O
capítulo 9 introduz um delicado livro de horas escrito para a filha de
um rei, o qual, assim como seu manuscrito, se tornou um peão da
política, numa história que se estende numa linha ininterrupta de
posse desde a atribulada dinastia de são Luís, na França, até
Hermann Göring. O capítulo 10, sobre os Contos da Cantuária, traz
o início de uma reconhecível literatura inglesa e da publicação de
livros, com um subtexto sobre as responsabilidades e os perigos da
erudição literária. O Semideus do capítulo 11 trata de guerra e
armamentos, e da Rússia moderna. Terminamos no capítulo 12, que
fala sobre luxo e dinheiro. Atravessando os capítulos, essas doze
entrevistas contam uma história da cultura intelectual e da arte
desde os momentos finais do Império Romano diretamente até a
alta Renascença e adiante, transmitindo o conteúdo desses
manuscritos de sua própria época até o mundo contemporâneo.
Todos esses livros têm certas características em comum, além da
fama. São todos manuscritos: a palavra significa simplesmente
“escritos à mão”. Isso não era uma opção. Até a invenção da
imprensa, em meados do século XV, todos os livros eram
necessariamente copiados por escribas. Quase todos os
manuscritos medievais são decorados de algum modo, no mínimo
com iniciais coloridas e não raro com ouro e figuras. A maioria deles
não tem data nem páginas de título. Na Idade Média, era
infrequente numerar as páginas de livros. A convenção moderna,
que utilizo aqui, é contar as folhas, não as páginas, e numerar cada
uma de acordo com sua frente (recto) ou verso (verso), em geral
abreviando com “r” e “v”. A maior parte dos manuscritos da Europa
medieval, inclusive todos aqui descritos, foram escritos sobre pele
de animal (para a maioria dos fins, as palavras “pergaminho” e
“velino” são intercambiáveis). Retângulos oblongos de pergaminho
eram dobrados ao meio e dispostos um dentro do outro para formar
grupos, comumente, mas não sempre, com oito ou dezesseis
páginas, que poderiam depois ser costurados através de suas
dobras centrais. Cada seção é chamada quire ou gathering
[caderno], termos até hoje usados nos livros modernos impressos e
encadernados. Uma série de quires em sequência forma um
manuscrito inteiro. Explico isso com algum detalhe por ser
importante para se compreender o que é “colacionar” ou “alcear” um
manuscrito, parte crucial de cada capítulo deste livro. Os
paleógrafos expressam isso numa fórmula que à primeira vista
parece ser tão impenetrável quanto um padrão de tricô ou uma
sequência de DNA, mas que na realidade é bem precisa e simples.
Imagine que cada quire é numerado com numerais romanos escritos
em letras minúsculas, e o número de folhas em cada um é expresso
em algarismos arábicos sobrescritos. Assim, usando um exemplo
fácil, um manuscrito com 86 folhas formado por dez quires, ou
cadernos, de oito folhas cada um seguidos de um com seis folhas
seria expresso como: i-x8, xi6. Muitos manuscritos medievais —
provavelmente a maioria deles, na verdade, de um modo ou de
outro — agora não estão mais completos. Digamos que o mesmo
manuscrito que tinha 86 folhas agora está reduzido a 83 com a
perda de folhas isoladas em cada extremidade e uma em algum
lugar no meio. O alceamento agora será expresso como i7 [das 8
folhas, i perdeu uma folha antes do fólio 1],* ii-v8, vi7 [das 8 folhas, vi
perdeu uma folha após o fólio 41], vii-x8, xi5 [das 6 folhas, xi perdeu
uma após o fólio 83].
Como se tornará aparente quando olharmos cada manuscrito, as
colações, ou alceamentos, mostram-se de extrema importância.
Elas às vezes revelam lacunas nos ciclos de texto ou de figuras
onde ninguém jamais esperou. Para conhecer um manuscrito,
precisamos ter noção do que havia lá quando ele ainda era novo.
Mais importante, a colação nos leva de volta a unidades separadas
das quais era feito o manuscrito em sua origem. É notável como
escribas e iluminadores evidentemente dividiram o trabalho de
acordo com atribuições de cadernos soltos para cada um, e como
ocorriam com frequência mudanças de mão entre um caderno e o
próximo. Isso ainda é visível, desde o Codex Amiatinus do final do
século VII até as Horas de Spinola, oitocentos anos depois.
Confesso que gosto de colacionar manuscritos. É estranhamente
gratificante fazer isso caderno por caderno e é reconfortante
descobrir que o total atinge o número exato de páginas do livro.
Sem dúvida a resposta tinha de ser essa. Você examina a dobra
central, procurando as linhas de costura, e vai montando pouco a
pouco uma série de diagramas, em forma de V, da estrutura ao
longo do volume. Isso seria impossível a partir de um fac-símile ou
um microfilme, e não raro provê a chave mágica para se ver onde
houve separação de autorias e de unidades do texto. Às vezes
penso que, se algum dia me aposentar e ficar nostálgico, eu deveria
batizar o meu retiro de “Duncollatin” e não “Dunedin”.
Outra característica recorrente ao longo de todos os capítulos aqui
é que, diferentemente de um livro impresso, que sai dos rolos da
impressora num único processo, todo manuscrito é escrito ao longo
do tempo. Pode até mesmo ter sido iniciado num certo período e
depois ter sido adaptado ou completado em outras fases de
atividade. Um manuscrito é um pouco como uma construção ou uma
peça de um grande móvel feito à mão: por um tempo permanece
inacabado, ou tem suas partes desmontadas e novamente
reconfiguradas, com acréscimos ou subtrações, sendo sempre
adaptadas aos caprichos e às necessidades de seus sucessivos
donos. Alguns dos aparentes mistérios dos manuscritos aqui
entrevistados são revelados com a súbita constatação de que houve
mais do que um só momento de produção.

Se de fato empreendermos juntos essa jornada, já me bastaria


conseguir transmitir a você o prazer que se pode ter ao examinar
manuscritos. Espero que uma amostra dessa satisfação acabe
surgindo desses encontros. É claro que, quanto a isso, sou uma das
pessoas mais parciais do mundo, mas acredito que manuscritos
medievais são realmente fascinantes, em muitos níveis. Quero
saber tudo sobre eles. Quero saber quem os criou, e quando e por
que e onde, o que eles contêm e de onde provêm seus textos, por
que se achou que um determinado manuscrito era necessário, e
como foram copiados e em que condições, e como estas afetaram
seu formato e seu tamanho, que materiais foram usados, quanto
tempo se levou para fazê-los, por que e como foram ornamentados
e por quem (se foram ornamentados, e por que não, se não foram),
e quanto custam, como foram reunidos, quem os usou e de que
maneira, como (ou se) foram retransmitidos depois em outras
cópias, que mudanças se fizeram neles mais tarde, onde foram
guardados, como foram arquivados e catalogados, como
sobreviveram, às vezes contra todas as probabilidades, quem foram
seus donos, como foram comprados e vendidos e por quanto (pois
sempre foram valiosos), em que circunstâncias chegaram à custódia
de seus proprietários atuais — e, em cada uma dessas perguntas,
de onde vem a resposta. Podemos nos comprazer em bisbilhotar os
afazeres de homens e mulheres de muito tempo atrás, e
compartilhar os mesmos artefatos originais que foram o deleite
daquelas pessoas também.
A ideia deste livro surgiu numa conversa com Caroline Dawnay. Eu
havia lhe pedido, como é frequente eu pedir às pessoas sem
esperar que aconteça algo, que viesse conhecer a Biblioteca Parker
se algum dia passasse por Cambridge. Um dia ela apareceu sem
avisar, dispondo de meia hora. Ela nunca tinha examinado com
minúcia um manuscrito medieval. Pegamos um volume da Bíblia
Bury, um dos primeiros livros em inglês feitos por um iluminador
profissional, escrito em 1130. O encantamento desse encontro de
olhos arregalados, tanto para mim como para ela, sugeriu o desafio
de tentar transmitir a um público mais amplo a excitação de trazer
um leitor bem informado mas não especializado a um contato íntimo
com grandes manuscritos medievais.
Tentei evitar o uso de termos técnicos que só historiadores
especializados conhecem. Se estas fossem visitas reais à biblioteca,
eu o encorajaria a me interromper se algo não ficasse claro ou fosse
complicado demais. A intenção é que seja tão próximo de uma
conversa quanto um livro possa ser. Por esse motivo, resisti à
tentação de espalhar notas de rodapé ao longo do texto. Eu, por
exemplo, sou incapaz de ler qualquer livro cheio de notas de rodapé
sem levar os dedos a múltiplas páginas, o que torna a leitura mais
lenta e entedia o leigo. Para os que se interessam, e muitos não vão
se interessar, há referências bibliográficas discursivas e notas em
separado para cada capítulo. Estas apresentaram seus próprios
problemas de composição. Tenho familiaridade com alguns desses
manuscritos ou os conheço há mais de quarenta anos e não lembro
com exatidão quais são as fontes de tudo que li. Pior do que isso,
temo que pessoas tenham me contado coisas e sugerido ideias que
já esqueci. Tentei dar-lhes o crédito, no próprio texto e nas notas.
Estou em dívida com todos os curadores que me receberam em
minhas visitas com boa vontade e frequentemente com informações.
Nós, que trabalhamos com paleografia, estamos conscientes da
existência de toda uma rede internacional de historiadores e
bibliógrafos com essa mesma mentalidade, e, quando podemos, nos
ajudamos com satisfação. Nós conversamos no vestíbulo de
bibliotecas e fofocamos em conferências. Pedimos conselhos por e-
mail. Às vezes nos hospedamos uns na casa dos outros. Espero
que fique evidente que um livro como este só se torna possível com
uma vida inteira de amigos e colegas.
Para começar, há duas pessoas que quero destacar. A primeira,
claro, é minha mulher, Mette, que resistiu à escrita deste livro
durante vários anos e que, graciosamente, aparece como o assunto
de diversas brincadeiras no texto. (Este é um truque meu: ela terá
de ler o livro para achá-las.) A outra é meu velho amigo Scott
Schwartz, de Nova York, que discutiu o projeto comigo em seus
primórdios e me ajudou a definir seus parâmetros. Durante um
período de saúde abalada, agora superado graças a Deus, ele leu o
primeiro rascunho de cada capítulo à medida que era terminado, e
devo muito à sua sabedoria e percepção. É a ele que dedico este
livro.

* “Fólio” aqui no sentido de “folha”, composta de duas páginas. (N. T.)


1

Os Evangelhos de Santo Agostinho


final do século VI
Cambridge, Corpus Christi College, MS 286

Ao final deste capítulo contarei como o papa Bento XVI e o


arcebispo da Cantuária me fizeram uma reverência ao vivo, na
televisão, diante do grande altar da Abadia de Westminster. Antes
de chegar a esse momento tão improvável, no entanto, devemos
seguir os rastros de um manuscrito que vai se entrelaçando com um
milênio e meio de história inglesa, encontrando nessa jornada vários
papas e outros arcebispos da Cantuária. Um desses arcebispos foi
Matthew Parker (1504-75), que era o dono desse livro. Parker tinha
frequentado a Universidade de Cambridge e fora ordenado padre
pouco antes da Reforma na Inglaterra. Por pura sorte, talvez devido
a uma conexão familiar em Norfolk, ele se tornou o capelão
domiciliar de Ana Bolena, segunda mulher de Henrique VIII, e rainha
da Inglaterra a partir de 1533 até sua execução por traição, em
1536. Foi pelo círculo em torno de Ana que se introduziram na corte
inglesa os primeiros apelos por uma reforma luterana, e Parker
evidentemente foi levado por essa estimulante excitação intelectual
de renascimento religioso da época. Em 1544, por recomendação
de Henrique VIII, ele foi nomeado professor do Corpus Christi
College em Cambridge. Parker casou-se (um ato radical para o
clero), foi destituído do cargo pela reacionária rainha Mary, 1553-8,
e em 1559 foi chamado a Londres pela nova rainha, Elizabeth, filha
de Ana Bolena, que o tornou o primeiro arcebispo da Cantuária de
seu reinado, com instruções de fazer com que a Reforma inglesa
fosse absoluta e irrevogável.
A Igreja Reformada da Inglaterra, como confirmada por Parker,
conhecida como Estabelecimento Elisabetano, foi, ao menos no
início, muito diferente do protestantismo da Europa continental.
Martinho Lutero tinha retornado aos tempos apostólicos do início do
cristianismo, rejeitando o papado e solapando a Igreja romana por
trás, ao pôr em campo uma tradução da Bíblia que derivava de
textos mais antigos e aparentemente mais autênticos do que a
Vulgata latina padrão do século IV, edição de São Jerônimo.
Matthew Parker, em contraste, abraçou os papas mais antigos e a
tradicional linha de sucessão apostólica de São Pedro. Gregório, o
Grande, papa de 590 a 604, foi um dos heróis de Parker, em
especial por ter enviado a primeira missão cristã organizada à
Inglaterra, em 596, composta de um grupo de monges italianos sob
o comando de um tal Agostinho, prior do mosteiro de Sant’Andrea,
em Roma. Santo Agostinho da Cantuária, como ele hoje é
conhecido, chegou depois a Kent, no sudeste da Inglaterra, em 597,
e convenceu Etelberto, rei de Kent de c. 560 a 616, a adotar o
cristianismo. Os missionários da Itália estabeleceram uma catedral
na Cantuária, nas proximidades, e fundaram um mosteiro fora dos
muros da cidade, a princípio como uma igreja-sepulcro,
originalmente dedicado aos santos Pedro e Paulo, padroeiros de
Roma. O próprio Agostinho tornou-se o primeiro arcebispo da
Cantuária. O mosteiro que ele criou teve depois o nome mudado
para Abadia de Santo Agostinho, em sua homenagem. Sobreviveu
nos arredores da Cantuária durante quase mil anos até ser
suprimida por Henrique VIII em 1538, quando Parker ainda vivia.
Matthew Parker foi o septuagésimo arcebispo no que ele
considerava uma linha de continuidade nunca interrompida desde
Agostinho. Ele convenceu a si mesmo de que aqueles antigos
missionários tiveram a intenção de estabelecer uma Igreja inglesa
totalmente independente, não atrelada a Roma. Para Parker, o
desenvolvimento da religião na Europa fora irrelevante após 597.
Em sua interpretação, apenas a Inglaterra tinha conseguido
preservar a Igreja cristã em sua pureza primeva, como fora a
intenção dos santos Gregório e Agostinho. Isso, em sua opinião,
tinha sido corrompido e subvertido com a conquista normanda
(1066) e a centralização da Igreja católica sob as iniciativas de
Gregório VII, papa de 1073 a 1085. Todos os antiquários
elisabetanos lembravam com nostalgia a era anglo-saxônica como
uma idade de ouro da identidade nacional e da independência
inglesa. Parker concluiu que as práticas supostamente radicais da
Reforma do século XVI, inclusive o uso do vernáculo na liturgia e o
papel central da monarquia na Igreja, eram na verdade tradições
bem estabelecidas da Inglaterra anglo-saxã. Em 1568, ele obteve
licença do Conselho Privado para apropriar-se de todo manuscrito
original na Inglaterra que pudesse justificar a Reforma anglicana
nesses termos, e fornecer precedentes tangíveis para a agenda
elisabetana. Parker depois confiscou cerca de seiscentos
manuscritos antigos, a maioria de bibliotecas de catedrais medievais
recém-reestruturadas, ou de ex-mosteiros, inclusive muitos dos
livros mais antigos então existentes na Inglaterra. Foi realmente o
primeiro grande colecionador do período elisabetano, bem à frente
de Sir Robert Cotton (1571-1631), cujos manuscritos constituem
hoje o cerne da Biblioteca Britânica em Londres, e antecedeu até
mesmo Sir Thomas Bodley (1545-1613), cujas aquisições supriram
a nova Biblioteca Bodleiana em Oxford, a qual visitaremos no
capítulo 6. Parker requisitou cerca de trinta manuscritos antigos do
mosteiro abandonado de Santo Agostinho, na Cantuária. O mais
velho deles era o assim chamado Livro dos Evangelhos, do próprio
Santo Agostinho, o mais antigo entre os livros sobreviventes que se
sabe terem existido desde a Inglaterra medieval. Ele é o tema deste
capítulo.
Em 1574, já chegando ao fim de sua vida, o arcebispo Parker
tomou providências para que sua coleção fosse enviada do Palácio
Lambeth, sua residência oficial em Londres, para sua antiga
faculdade de Corpus Christi, em Cambridge. O registro desse
legado destacava duas condições principais. Uma era a presunção
de acesso público, que a faculdade ignorou totalmente, e a outra era
que deveria haver uma auditoria anual na biblioteca todo mês de
agosto, e que se mesmo uns poucos livros estivessem faltando, ou
perdidos devido à falta de cuidado ou negligência, todo o legado
seria apreendido e revertido para o Gonville and Caius College, um
pouco mais acima naquela rua de Cambridge, junto com magníficas
peças de prataria Tudor também doadas por Parker, que eram muito
cobiçadas. Foi em grande parte por medo dessa terrível cláusula
punitiva que relativamente poucas pessoas de fora tiveram
permissão para ver esses livros. Durante mais de quatrocentos anos
a Biblioteca Parker ficou notoriamente (até mesmo
escandalosamente) inacessível a estudiosos, ou, no melhor dos
casos, sua disponibilidade tinha caráter quixotesco ou inconsistente.
Posso contar, com certo sentimento de orgulho às avessas, que
quando eu mesmo pedi para ver um manuscrito, em meados da
década de 1970, a permissão me foi negada, e essa ainda é a única
biblioteca no mundo à qual me negaram acesso. Contudo, essa
exclusão de leitores resultou em que cada um dos livros de Parker
está em segurança em sua prateleira, muitos espantosamente bem
preservados, quase nas mesmas condições em que estavam na
época da Reforma. Eles ficaram com seus atuais proprietários por
muito mais tempo do que ficou qualquer outro dos principais
manuscritos que encontraremos neste livro.
Retrato de Matthew Parker (1504-75), gravura
por Remigius Hogenberg, 1573, que mostra o
arcebispo aos setenta anos de idade, lendo
uma Bíblia, enquanto na ampulheta, na janela,
toda a areia já escorreu.
A biblioteca de Matthew Parker, no Corpus Christi College,
Cambridge, na sala do primeiro andar projetada pelo arquiteto
William Wilkins (1778-1839).

No final da década de 1990, a administração do Corpus Christi


College resolveu reverter esse isolacionismo e abrir e explorar seu
maior ativo tangível. Levantaram dinheiro de várias fontes,
sobretudo da Fundação Donnelley, em Chicago, para subvencionar
um curador em tempo integral. O mesmo homem a quem o pedido
de acesso fora recusado 25 anos antes candidatou-se ao cargo e foi
nomeado em 2000. O fato de a Biblioteca Parker ter se tornado uma
das mais acessíveis e consultadas bibliotecas de livros raros no
mundo, tanto fisicamente como por meio de uma abrangente
digitalização, não é nem de longe algo a ser creditado a mim, mas
apenas ocorre porque os tempos mudaram e porque havia uma
expectativa por essa nova atitude.
Corpus Christi é uma entre 29 faculdades independentes que
formam a Universidade de Cambridge. Nela estudam regularmente
cerca de 260 alunos de graduação. As partes mais antigas do prédio
datam de sua fundação, em meados do século XIV. A maioria dos
leitores que têm hora marcada para estudar manuscritos na
Biblioteca Parker agora entra na faculdade em várias etapas,
atravessando um enorme pórtico de aparência medieval em
Trumpington Street, em geral se apresentando primeiro na guarita
dos porteiros, à esquerda, para que o pessoal da biblioteca seja
avisado. À frente fica o que é conhecido como New Court, um
grande pátio quadrangular de grama muito bem cuidada, com
trechos aparados com frequência, cercado nos quatro lados por
prédios de alvenaria clara em estilo gótico-regência, projetados na
década de 1820 pelo arquiteto William Wilkins (1778-1839). (“New”,
em inglês, é sempre um termo relativo; o New Forest* é do século
XI.) Frequentemente turistas ficam em volta, sob as arcadas,
fotografando a si mesmos e olhando para dentro, curiosos, para
vislumbrar estudantes de pós-graduação e funcionários da
faculdade que vivem e trabalham em quartos laterais, no andar de
cima. Bem em frente fica a entrada da capela, ladeada por nichos
com estátuas de Nicholas Bacon, o benfeitor, segurando uma bolsa
com dinheiro, e de Matthew Parker, com um livro em cada mão. A
tesouraria fica à esquerda da capela, do lado de Bacon, e a
residência do diretor, à direita. O refeitório da faculdade fica atrás de
janelas altas com uma ponta em forma de ogiva, ao longo do lado
norte do pátio. A Biblioteca Parker ocupa quase todo o andar
superior no lado direito (sul) da fachada. Toque a campainha no alto
portão gótico no canto mais afastado do New Court e será admitido
num vestíbulo escuro de onde você poderá seguir por uma
escadaria de pedra que se ergue bem à sua frente, ou por uma
entrada logo à direita. Membros do público em geral seguem em
grupos organizados para a magnífica biblioteca no alto da escada,
com seu teto alto, paredes formadas por livros elisabetanos e de
impressão posterior, e com vitrines iluminadas ao longo da sala,
exibindo alguns dos mais belos manuscritos da biblioteca. Os que
vieram estudar livros raros serão levados, em vez disso, ao gabinete
de leitura protegido, no andar térreo.
O recinto não é tão grande quanto o do andar de cima. Já foi
anteriormente a extremidade mais afastada da biblioteca dos
estudantes de graduação. Tem paredes verde-pálidas e um tapete
cinzento. As janelas fasquiadas, na parede sul, geralmente
protegidas por persianas para reduzir a incidência direta da luz
solar, dão para o adro da igreja de São Botolfo, que fica no lado
norte de New Court. A sala é mobiliada com estantes de carvalho
que remontam à década de 1930, e com mesas de carvalho claro,
de intenção mais recente, e, combinando com elas, catorze
cadeiras, todas com inserções de couro escarlate vivo, presente do
colecionador de manuscritos Gifford Combs. Uma placa de vidro na
parede, projetada por Lida Kindersley, registra a inauguração da
sala de leitura pelo príncipe Philip, duque de Edimburgo, em 21 de
junho de 2010.
O livro que estamos prestes a olhar, o MS 286, é o mais antigo e
de longe o mais precioso da biblioteca. É um privilégio que nos é
concedido por estarmos sendo acompanhados pelo bibliotecário: o
Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho não é trazido com
facilidade para leitores ocasionais. Ele é imensamente frágil e
vulnerável, e para muita gente ainda tem significado sagrado e
espiritual. Para o arcebispo Parker, ele teve um valor primordial em
sua pesquisa sobre a fundação do cristianismo na Inglaterra, em
597. O manuscrito fica armazenado num cofre com alarme
antirroubo e ar-condicionado, depositado na horizontal numa sólida
caixa de carvalho feita em 1993 às expensas do arquiteto e antigo
membro da faculdade Roger Mears, cujo nome está registrado
numa etiqueta de couro. Espere por um momento na sala de leitura
enquanto vou buscá-lo, trazendo a caixa nas duas mãos e
colocando-a sobre a mesa. Abrimos os fechos de latão e erguemos
a pesada tampa, aliviando a sutil pressão que mantém o livro
solidamente fechado quando não está em uso. O volume repousa
num leito de consistente espuma termoplástica para arquivamento.
Erga-o com cuidado e ponha-o sobre um dos descansos para livros,
almofadados em cor laranja, que há nas mesas da biblioteca.
Os que se encontram pela primeira vez com pessoas famosas por
vezes comentam depois como esse personagem célebre,
inesperadamente, pareceu ser muito menor na realidade.
Considerando toda a sua estatura na história da Inglaterra, esse não
é um manuscrito grande, e chega a desapontar alguns visitantes
que o veem pela primeira vez. Tem cerca de 26,5 por 21,5
centímetros e cerca de 7,5 centímetros de espessura, é bem leve,
pouco volumoso, e fácil de se segurar numa só mão. É encadernado
em placas planas de carvalho levemente chanfradas nas bordas
internas, com uma lombada em couro de cabra de cor creme,
curtido em sais de alumínio, no estilo mais apreciado pelo
movimento Arts and Crafts na Inglaterra cujo principal paladino e
promotor foi o encadernador Douglas Cockerell (1870-1945). A
lombada, hoje escurecida pelo manuseio, divide-se em seis
retângulos, um deles com a gravação em ouro “MS 286”, e outro
com uma cruz de Malta; na base estão as letras “C.C.C.C.” (para
Corpus Christi College Cambridge). Não há outro título. O
manuscrito foi reencadernado para a faculdade na encadernadora
do Museu Britânico em 1948-9 (foi devolvido a Cambridge em julho
de 1949). O empréstimo a Londres teve uma consequência.
Anexada a uma folha de guarda final há uma nota padrão do Museu
Britânico sobre o número de folhas, datada de julho de 1948, na
inconfundível caligrafia de Eric Millar (1887-1966), então guardião
dos manuscritos. O guardião-assistente era, na época, Francis
Wormald (1904-72), que aproveitou a oportunidade para examinar
minuciosamente o Livro dos Evangelhos quando esteve na custódia
temporária de seu departamento. Mais tarde, dedicou a ele sua
Sandars Lecture** em Cambridge, que teve início em 29 de
novembro daquele ano, um grande passo no caminho do livro para
a fama no século XX.
O Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho, aberto no retrato do
evangelista São Lucas, exposto na Biblioteca Parker.

Os encadernadores do Museu Britânico costuraram os cadernos


nas extremidades de folhas de guarda salientes projetando-as para
fora, de modo que o manuscrito possa ser aberto com segurança a
noventa graus sem encurvar o pergaminho original. Era uma prática
de conservação elegante na época, já não mais recomendável hoje
em dia, pois altera de modo muito antinatural a integridade original
de um livro e, quando as páginas são viradas, pode resultar em
fricção entre os cadernos. A encadernação tem folhas de guarda em
papel moderno cuja responsabilidade é preservar a folha de guarda
em papel mais antigo da encadernação anterior, de meados do
século XVIII, junto com um número de guardas medievais, em
pergaminho. Entre estas, as primeiras duas estão em branco, talvez
do fim da Idade Média. Uma, pelo menos, foi sem dúvida transferida
do final, onde servia como última folha do livro, junto à capa de trás
original. Tanto ela como a atual folha final têm endentações
retangulares que combinam entre si, e pequenos furos de ferrugem
no topo, causados pelo que deve ter sido uma corrente uma vez
presa na margem de cima da placa de madeira inferior, na
encadernação medieval. Em algum momento o manuscrito
evidentemente estivera preso por uma corrente, com a capa da
frente para cima.
Voltaremos mais tarde com uma descrição mais detalhada do MS
286, mas ninguém resiste a uma olhada preliminar dentro do livro. É
uma oportunidade que não se apresenta com frequência. O
manuscrito compreende os quatro Evangelhos do Novo Testamento
na tradução de São Jerônimo para o latim, feita a partir do original
em grego, que ele verteu para a língua falada da Europa ocidental.
O termo “Vulgata”, que desde a Reforma tem sido alvo de alusões
críticas por ser arcano e inacessível às pessoas comuns, a princípio
significava apenas que se tratava do vernáculo corrente do período.
Quando se fez esse manuscrito, o latim ainda era a língua falada, e
Jerônimo, que morreu em 420, não estava então mais distante no
tempo do que (digamos) estão de nós Walter Scott ou Emily Brontë.
O Império Romano tinha implodido havia pouco. Roma fora
saqueada pelos visigodos em 410, e de novo pelos ostrogodos em
546, fatos então ainda na lembrança. Salvaguardou sua identidade
se reinventando como império cristão. A missão de Santo Agostinho
na Inglaterra foi a primeira iniciativa imperial consciente do papado
romano.
O manuscrito começa na metade de uma palavra da lista capitula
que precede o Evangelho de Mateus. Essas listas são cabeçalhos
tabulados ou sumários de capítulos (embora as divisões em
capítulos medievais mais antigas sejam diferentes das numerações
modernas, que não existiam antes do século XIII). No texto do livro
que sobreviveu, as primeiras palavras são “[nine-]vitarum signum
pharisaesis tradit”, que se referem a Cristo dando aos fariseus um
sinal dos homens de Nínive (em nossa numeração isso é contado
em Mateus 12,41). Há mais um bom pedaço faltando no manuscrito
antes disso, como veremos. O texto completo do Evangelho de
Mateus começa no fólio 3r, “Liber generationis ih[es]u xp[ist]i filii
david…”, “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi…” (Mateus
1,1). As duas primeiras palavras estão escritas em vermelho (e por
isso as registrei com destaque), que desbotou para um laranja-
pálido que já está quase marrom, e o “L” de abertura é ligeiramente
mais alto do que a letra seguinte. É contido e moderado, sem
nenhum ornamento ou ênfase excepcional para a abertura de um
Evangelho, bem diferente da extravagância de manuscritos
posteriores, como o Livro de Kells.
O texto dos Evangelhos de Santo Agostinho está disposto em
duas colunas de uma pequena e caprichada escrita uncial latina. Há
muita incerteza quanto à derivação da palavra “uncial”, termo a
princípio usado com conotação reprobatória por Jerônimo, que a
considerava afetação frívola. Ironicamente, para ele, tornou-se a
escrita de maior disseminação e de uso generalizado em
manuscritos das Escrituras em latim que ele mesmo traduziu. O
termo é às vezes associado à palavra “úncia”, uma polegada (da
qual o adjetivo seria “uncialis”), letras grandes exageradamente
concebidas para terem uma polegada de altura, o que nunca
tiveram na realidade. A uncial tornou-se a caligrafia formal do início
do cristianismo, assim como eram as iniciais rústicas para os textos
seculares (veja adiante no capítulo 4). As unciais são letras de
caixa-alta encurvadas, algumas poucas com o formato de suas
equivalentes modernas em caixa-baixa, como um “h” com a haste
ascendente, um “f” que se estende abaixo da linha, e um gracioso
“d” que se arredonda para trás. Essa caligrafia era escrita com uma
pena de bico largo ou até um pedaço de junco, com um contraste
claro entre traços grossos e finos. É espaçosa e fácil de ler,
considerando sobretudo a idade avançada dos livros que a usaram.
Na Idade Média, unciais eram associadas a antiguidade e
autoridade. O Glossário de Corpus, espécie de dicionário alfabético
de cerca do ano 800, também da Abadia de Santo Agostinho e
agora também depositado na Biblioteca Parker, define a palavra
“antiquário” como “qui grandes litteras scribit”, aquele que “escreve
com letras grandes”: um antiquário era alguém que usava unciais.
No MS 286 as palavras são dispostas no padrão que foi chamado
de per cola et commata, que significa algo como “por orações e
pausas”, no qual a primeira linha de cada sentença preenche toda a
largura da coluna e as linhas subsequentes são escritas com uma
largura menor. O formato foi quase com certeza o do manuscrito
original da Vulgata de Jerônimo, e é característico de todas as
cópias muito antigas. Cada unidade provavelmente correspondia ao
que uma pessoa leria e falaria de um fôlego só. Assim, Mateus
começa: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de
Abraão”, pause, respire, olhe novamente, em silêncio, para a
próxima frase, “Abraão gerou Isaac”, mais uma inspiração, olhe de
novo para o texto, “Isaac gerou Jacó, [e] Jacó gerou Judá e seus
irmãos”, respire novamente, e assim por diante. Winston Churchill
datilografou seus grandes discursos dessa maneira, de modo que
pudesse lê-los num relance, e suas famosas pausas oratórias eram
preordenadas no layout visual de seu texto. Essa é uma
configuração que se faz sobretudo para leitura em voz alta, o que
por si só nos diz algo sobre o Livro dos Evangelhos de Santo
Agostinho, que vem de uma época de cultura oral, na qual a maior
parte da audiência das Escrituras era de pessoas iletradas.
A primeira página que sobreviveu dos
Evangelhos de Santo Agostinho, aberta na
lista de cabeçalhos de capítulo do Evangelho
de Mateus, com a marca de estante da
Biblioteca Parker, “L15”, no topo.
O segundo Evangelho, o de Marcos, começa no fólio 75r com seu
prólogo e lista capitula, e o texto propriamente dito seis páginas
depois. O prólogo e a lista capitula para o terceiro Evangelho, de
Lucas, são precedidos por uma pintura em página inteira que mostra
doze cenas da Paixão numa grade formada por quadrados (fólio
125r). A efetiva abertura de Lucas tem ao lado uma página inteira
com um retrato do próprio evangelista sentado debaixo de um arco
com seu símbolo, um boi, acima da cabeça, e cenas de seu
Evangelho em colunas dos dois lados (fólio 129v). Essa é a página
que geralmente se mostra quando o manuscrito está em exibição
pública, uma vez que é a única página dupla, com o livro aberto, em
que texto e ilustração ficam lado a lado. Não é difícil de localizar,
pois, de tantas vezes que foi ali aberto, o manuscrito se abre com
naturalidade nesse ponto. O Evangelho final, de João, começa no
fólio 208r, da mesma forma precedido por prólogo e lista capitula. O
livro inteiro termina com as palavras “D[E]O GRATIAS” (a rigor, a
primeira palavra poderia talvez ter se expandido como “D[OMIN]O”)
e, mais adiante, “SEMPER AMEN”. Isso provavelmente se baseia na
fórmula “Glória a Deus”, usada na missa ao fim de cada leitura de
um Evangelho, mas também se aplica ao sentimento do próprio
escriba, grato e aliviado por ter terminado a escrita à mão de 530
páginas de texto. As palavras estão escritas aqui em iniciais rústicas
e não em unciais, uma vez que não são parte das Escrituras, da
mesma forma que podemos usar itálico para diferenciar, do
principal, outros tipos de texto. Páginas em branco no final do
manuscrito estão preenchidas com cópias de documentos e
registros monásticos, inclusive uma interessante lista de relíquias do
século XII.
Na folha de guarda traseira do livro encontra-se um chocante
souvenir de um visitante anterior. É uma complacente declaração
em latim, informando ao mundo que o manuscrito é tão parecido
com o Codex Amiatinus que pode ser, com toda segurança,
atribuído ao século VI. Está assinado “Const. Tischendorf”. O Codex
Amiatinus, que é o tema de nosso próximo capítulo, data na
realidade de cem anos depois e não é em nada parecido com este,
exceto por ser também escrito em unciais latinas. Constantin
Tischendorf (1815-74), de Leipzig, que descobriu o Codex Sinaiticus
em 1844, cópia primária da Bíblia grega, pavoneia-se pomposa e
imodestamente do estudo bíblico erudito do século XIX. No dia em
que assinou e datou essa atribuição, quinta-feira, 9 de março de
1865, ele estava em Cambridge para receber um título de doutor em
letras latinas honorário da universidade. Nas primeiras vezes em
que vi o manuscrito, não cheguei a ler essa confusa inscrição: ela
me foi indicada, pesarosamente, pelo arquimandrita Justin Sinaites,
bibliotecário no mosteiro de Santa Catarina, no monte Sinai, onde
Tischendorf é hoje lembrado não como herói, mas como surrupiador
traiçoeiro de seu maior tesouro, o Codex Sinaiticus grego, do século
IV.
Página de imagem nos Evangelhos de Santo
Agostinho com múltiplos ícones da Paixão de
Cristo, desde a entrada em Jerusalém até a
via-crúcis.
Muitos dos que veem o manuscrito agora exibido ou o veneram
devotamente ou riem de suas credenciais, não raro com o desdém
puritano que ainda reservam para supostas relíquias de um santo
qualquer. (É curioso como pessoas aceitam que um manuscrito
medieval tenha pertencido a uma celebridade secular — a Bíblia de
Carlos, o Calvo, por exemplo —, mas no momento em que um santo
é envolvido, elas tratam zelosamente de zombar da credulidade de
outras.) Há também aqueles para quem o Livro dos Evangelhos de
Santo Agostinho ainda é uma relíquia religiosa do maior valor
espiritual. Existe um novo livro sobre ele, do bispo episcopal do
Arizona, escrito do ponto de vista de seu significado para os cristãos
hoje em dia. Quando o manuscrito foi exibido no Museu Fitzwilliam,
na Universidade de Cambridge, em 2005, Stella Panayotova,
curadora de manuscritos da instituição, viu um visitante chorando e
beijando o chão diante do estojo de vidro em que era exposto. Há
pessoas que dão importância a essas coisas, e é claro que temos
de ponderar quanto à evidência de sua atribuição a Santo Agostinho
o mais objetivamente que pudermos.

A nota acrescentada por Constantin Tischendorf (1815-74) quando


examinou os Evangelhos de Santo Agostinho, em 1865,
comparando-o com o Codex Amiatinus.
Humfrey Wanley (1672-1726), antiquário e precoce anglo-
saxonista (e certamente não um católico crédulo), moveu a primeira
ação pós-Reforma para identificar o volume que estava na
Biblioteca Parker com Santo Agostinho da Cantuária. Foi um dos
poucos eruditos antigos a quem se concedeu livre acesso ao legado
de Parker no Corpus Christi College, que visitou em 1699. Ele
descreve o Livro dos Evangelhos sucinta mas acuradamente em
seu texto sobre a literatura antiga no norte da Europa, publicado em
Oxford em 1705. Wanley chama a atenção para o relato de Beda,
segundo o qual Gregório, o Grande, teria despachado Agostinho de
Roma, que foi seguido de um presente, em 601, que consistia em
toda a parafernália necessária para o uso da Igreja da Inglaterra,
inclusive “codices plurimos” (“muitíssimos livros”). Ele citou as
descrições de dois Livros de Evangelho com texto do início do
século XV da Abadia de Santo Agostinho, que seriam parte do
legado de Gregório, e sugeriu que esses dois manuscritos deviam
ser este volume aqui em Cambridge e outro Livro de Evangelho
semelhante, mas sem adornos, que está na Biblioteca Bodleiana em
Oxford. A identificação de ambos os livros como tendo sido trazidos
para a Inglaterra por Santo Agostinho foi aceita sem contestação por
outros antiquários da época, inclusive Thomas Astle (1735-1803),
que publicou uma gravura de nosso manuscrito em 1784. Ele já
estava começando a jornada que o levaria ao olhar do público.
Retrato de Lucas nos Evangelhos de Santo
Agostinho, entre cenas da narrativa no
Evangelho, debaixo do símbolo do
evangelista, um boi alado.
É evidente que o manuscrito bodleiano pertencia à Inglaterra
anglo-saxã, mas não tinha uma associação reconhecida com a
Cantuária medieval. Sua história pregressa, antes de ser
presenteado à Bodleiana em 1603 por Sir Robert Cotton, é
desconhecida. Uma anotação antiga numa margem inferior sugere
que a leitura do capítulo adjacente, o 9 do Evangelho de João, era
adequada para a festa de santo Chad, o que pode ser uma
indicação de que o manuscrito foi usado em Mércia, talvez em
Lichfield, onde Chad está sepultado. Estudos ulteriores, desde a
época de Wanley, foram aos poucos diminuindo a probabilidade de
identificar esse manuscrito como sendo do próprio Agostinho. O
caso do MS 286, no entanto, foi ficando cada vez mais sólido. Ele
estivera sem dúvida na Abadia de Santo Agostinho. É provável que
estivesse na Inglaterra no fim do século VII, pois havia correções no
texto e nas legendas de ilustrações inseridas, em ambos os casos,
numa escrita que era distintamente do sul da Inglaterra naquele
período. Páginas em branco foram usadas mais tarde para registrar
documentos e possessões da própria Abadia de Santo Agostinho. A
mais antiga entre elas é uma cópia feita no século X, numa página
adjacente à da abertura e prólogo do Evangelho de Marcos.
Registra, em inglês antigo, o legado de uma mulher chamada
Ealhburg, em meados do século IX, doando à abadia vários itens da
produção de sua propriedade em Brabourne, Kent, inclusive um boi
castrado, quatro ovelhas, galinhas, pão, queijo e madeira, em troca
do que os monges cantariam o Salmo 20 diariamente por ela e por
seu marido, Ealdred. Outro desses registros está na margem
superior da página oposta ao início desse mesmo Evangelho de
Marcos: é uma escritura de terreno em nome de Wulfric, abade de
Santo Agostinho de 989 a 1005. Há mais documentos que
mencionam a abadia nas folhas de guarda no fim, inclusive uma
lindamente escrita concessão de terras em Plumstead, hoje a
sudeste de Londres, com data provável de 1100, pois diz que a
transação foi durante a Quaresma, no ano em que o rei Henrique
deu a mão de sua filha (Matilda) ao imperador (Henrique V, a quem
ela fora prometida naquele ano). É do mesmo escriba um missal da
Abadia de Santo Agostinho, que também está na Biblioteca Parker,
MS 270. No topo da página seguinte há uma lista, do século XII, de
relíquias sagradas que estão guardadas numa pequena caixa preta
na abadia, inclusive muitos fragmentos da Vera Cruz, ou Cruz
Verdadeira, pedaços do manto da Virgem Maria e dos cabelos de
santa Cecília, e um dedo de são Gregório, o Grande. Não há,
portanto, nenhuma dúvida de que o manuscrito estava na posse da
Abadia de Santo Agostinho desde a época anglo-saxã,
provavelmente sob a custódia do guardião das relíquias. O Livro de
Costumes da Abadia de Santo Agostinho, do século XIV, descreve a
curadoria das relíquias como um dos deveres do sacristão.
Abertura do prólogo do Evangelho de Marcos, com um documento
em inglês antigo acrescentado na página oposta, originalmente
em branco, que registra o legado de Ealhburg para a Abadia de
Santo Agostinho.
Lista de relíquias pertencentes à Abadia de Santo Agostinho,
inclusive peças da Cruz Verdadeira e o osso de um dedo de são
Gregório, acrescentada aos Evangelhos de Santo Agostinho.

Existem duas principais fontes medievais para os tesouros que


foram preservados por monges daquele mosteiro, na crença de que
eles tinham sido confiados pelo papa Gregório, o Grande, a
Agostinho na época da conversão da Inglaterra. O primeiro desses
testemunhos é a crônica da Abadia de Santo Agostinho de Thomas
Sprott, do final do século XIII ou início do século XIV. O original está
na Biblioteca da Universidade de Cambridge. Sprott menciona a
Bíblia de são Gregório junto com seu Livro dos Evangelhos (“et
evangelia euisdem”) entre outras relíquias, que incluem vestimentas
enviadas de Roma por Gregório. O segundo texto é um muito mais
vago levantamento das antiguidades da abadia, datado de 1414, o
Speculum Augustianum de Thomas Elmham, monge da abadia. Seu
manuscrito original pertence agora ao Trinity Hall, em Cambridge.
Elmham escreve longamente sobre os veneráveis livros que ele
chama de “primeiros frutos” de toda a Igreja da Inglaterra. Apresenta
um esboço do grande altar da abadia com seis livros fechados
desenhados em vermelho, apoiados num suporte dos dois lados do
relicário do rei Etelberto, com uma legenda acima “libri missi a
gregorio ad augustinum” (“livros enviados por Gregório para
Agostinho”). Ele descreve os tomos individualmente, não o conjunto
deles no altar. Seu número aumentou agora, para incluir os dois
Livros de Evangelho. Essa foi a referência citada por Humfrey
Wanley em 1705. Na descrição, um desses manuscritos está numa
estante da biblioteca, onde foi guardado junto com os dois volumes
da Bíblia de são Gregório (hoje perdida). Elmham diz que seu Livro
de Evangelho, que a acompanhava, abria com dez quadros
canônicos e um prólogo inicial “Prologus canonum…”. Esses
volumes, a Bíblia e o Livro de Evangelho na biblioteca da abadia,
são, sem dúvida, os mesmos manuscritos mencionados por Sprott
um século antes. O segundo Livro de Evangelho dos “primeiros
frutos” listados por Elmham em 1414 foi guardado na sacristia, onde
era conhecido como os Evangelhos de Santa Mildred, e sobre o
qual (assim ele diz) um certo camponês em Thanet tinha jurado em
falso e perdido a visão.
Desenho de Thomas Elmham em 1414, do altar-mor na Abadia de
Santo Agostinho, com os livros enviados por são Gregório em
posição vertical, de cada lado do relicário do rei Etelberto.

Mildred Budny (note seu primeiro nome), que preparou um relato


muito longo sobre os manuscritos anglo-saxões ornamentados na
Biblioteca Parker, publicado em 1997, sugeriu que o MS 286 seria
provavelmente identificado como o Livro de Evangelho da santa a
quem devia seu nome. A Mildred anterior, que morreu por volta de
700, era filha de uma princesa de Kent. Ela se tornou abadessa do
convento que sua mãe tinha fundado em Minster-in-Thanet, Kent,
cerca de vinte quilômetros a nordeste da Cantuária. Santa Mildred
era tida como tetraneta de Etelberto, rei de Kent convertido por
Agostinho, o que poderia ter criado uma linha de descendência na
posse de um manuscrito italiano trazido à Inglaterra na missão
agostiniana. O problema, contudo, é que se seu Livro de Evangelho
[de Mildred] estava em Thanet (como claramente estava, tendo em
vista a cruel vingança que lá se exerceu contra um camponês
perjuro), então devia ter chegado à Abadia de Santo Agostinho por
volta de 1030, quando todas as relíquias de santa Mildred foram
trasladadas para a Cantuária, enquanto já foi demonstrado que
nosso manuscrito estava em Santo Agostinho, o mais tardar, no
século X. Em resumo, se o MS 286 é um dos dois livros descritos por
Elmham, então ele é com certeza o primeiro, guardado na
biblioteca. Isso pode ser consistente com o vestígio de um fecho
com uma corrente, anteriormente descrito, já que livros em
biblioteca eram presos com correntes, enquanto livros litúrgicos na
sacristia não eram. Os Evangelhos de Santa Mildred, por sua vez,
podem ser então um manuscrito mutilado agora dividido entre a
Biblioteca Britânica, em Londres, e a Biblioteca Parker, às vezes
chamado de “Evangelhos de Londres-Cambridge”, registrados
independentemente em suas duas partes como se tivessem estado
entre os livros enviados de Gregório para Agostinho, mas na
realidade feitos na Inglaterra por volta de 700, o que faz com que
seja possível, e possível apenas, que de fato tivessem pertencido a
santa Mildred.
Resumindo, então, a alegação de que o MS 286 é o Livro dos
Evangelhos de Santo Agostinho depende de quatro fatos. Eles são:
1) Beda registra que Gregório enviou livros para a Inglaterra por
intermédio de Agostinho, e é muito provável que o tenha feito, e
entre eles teria necessariamente incluído uma cópia dos
Evangelhos; 2) um Livro de Evangelho que se pretende ser um
desses livros enviados por Gregório foi registrado, na Idade Média,
duas vezes na Abadia de Santo Agostinho, onde foi preservado
junto com uma Bíblia, que também se acredita ser uma relíquia de
seu fundador; 3) o MS 286 na Biblioteca Parker estava com certeza
na Inglaterra no fim do século VII e está demonstrado que estava na
Abadia de Santo Agostinho pelo menos no século X; 4) deve ter
chegado de algum modo à abadia, e por sua data e origem deve ter
sido enviado da Itália no fim do século VI. Detêm-se aí as evidências
já obtidas — muito prováveis, considerando-se tudo, mas, afinal de
contas, impossíveis de provar. O advogado do diabo poderia alegar
que ele pode ter chegado à Inglaterra em segunda mão, vindo de
alguma parte no sul da Europa até um século após sua feitura.
No entanto, existe mais uma evidência. Uma análise muito
interessante do texto do manuscrito foi publicada em 1922 por Hans
Hermann Glunz (1907-44), de Frankfurt. Ele chega a uma conclusão
tão espantosamente relevante para essa discussão que não posso
compreender como foi ignorada por tanto tempo. Embora a tradução
da Vulgata por Jerônimo tenha aos poucos se tornado padrão na
Idade Média, ela tinha substituído uma versão anterior e menos
fluente conhecida como Vetus Latina, texto em latim antigo que tinha
circulado entre cristãos no Império Romano. A Vulgata, mais
acurada, teve um início lento, e por vários séculos muitos leitores
conservadores na Europa ainda preferiam o familiar e doméstico
latim antigo, que por algum tempo sobreviveu concomitantemente.
O MS 286 na Biblioteca Parker é reconhecido como talvez a mais
antiga cópia substancialmente completa da nova tradução de
Jerônimo dos quatro Evangelhos existentes, o que não é pouca
coisa. Ela ostenta o siglum “X”, testemunho primordial na árvore
genealógica do texto. No entanto, mesmo Wanley notou que ele
apresenta muitas discrepâncias inesperadas em relação à Vulgata
padrão. Glunz as documentou sistematicamente, tabulando cerca de
setecentas variantes. A maioria é muito pequena ou insignificante,
compreendendo diferenças desprezíveis na ordem ou grafia das
palavras. Em outras, o escriba optou por leituras tiradas do latim
antigo e não de Jerônimo. Preste atenção, pois é aqui que isso
adquire grande importância. Gregório, o Grande, reputado como o
doador do Livro do Evangelho a Agostinho (e que foi o dono do
dedo que se encontra na caixa de relíquias na Abadia de Santo
Agostinho), também foi notável autor de comentários bíblicos. Em
Moralia, sua exposição sobre o livro de Jó, Gregório explica que a
Vulgata e a Vetus Latina, em sua época, eram usadas
simultaneamente no palácio Apostólico em Roma, e que nesse
comentário ele mesmo usaria a Vulgata, exceto onde o fraseado do
texto mais antigo lhe parecesse mais adequado àquela linha
específica de argumento. Figuras medievais de são Gregório
mostram-no com frequência escrevendo enquanto a Pomba
Sagrada (o Espírito Santo) sussurra em sua orelha: é como se
Gregório recebesse autoridade sobrenatural para suas — às vezes
arbitrárias — decisões editoriais.
Gregório também compilou homilias sobre os quatro Evangelhos,
publicadas em 593, quatro anos antes da missão à Inglaterra. Um
dos mais antigos manuscritos daquele texto está na Biblioteca
Parker também, MS 69, copiado no final do século VIII. Eis aqui,
então, uma observação crucial. Toda vez que um texto em latim
antigo aparece no MS 286, ele corresponde às leituras substituídas
por Gregório em suas homilias sobre os Evangelhos. A conclusão,
embora Glunz não a tire explicitamente, é que esse texto só pode
ter emanado da casa do próprio são Gregório, em Roma.
Examinemos alguns exemplos representativos no próprio
manuscrito. No fólio 134r encontra-se o famoso relato do anjo que
apareceu aos pastores no campo próximo a Belém. Na coluna 1,
linha 16, o escriba original escreveu: “natus est nobis hodie salvator”
(“Nasceu-nos hoje um Salvador”); mais tarde, alguém corrigiu isso
numa tinta mais escura para o texto padrão da Vulgata, “natus est
vobis…” (“Nasceu-vos hoje um Salvador”, Lucas 2,11). O manuscrito
usou originalmente a variante de Gregório, derivada do latim antigo,
que ele escolheu, segundo diz, porque ainda se aplica ao nível
teológico em nossa própria época, a nós agora, e não apenas aos
pastores na história. E eis aí outro exemplo. Na segunda coluna do
fólio 235v está a passagem de João 10,11 na qual o próprio Cristo
se declara um bom pastor que daria a vida por seu rebanho. O
escriba usou o verbo do latim antigo “animam suam ponit pro ovibus
suis” (linhas 20-21; alguém corrigiu voltando ao texto da Vulgata
“animam suam dat”). Gregório, em sua homilia sobre o Evangelho,
mantém o antigo “ponit”, põe sua vida por suas ovelhas, e não “dat”,
dá, porque, ele explica, isso implica um sacrifício mais consciente
por parte de Cristo. Um terceiro exemplo é a última linha do fólio
262r e continua até o topo do fólio 262v. É a história do momento
após a Ressurreição, quando Maria Madalena encontra pela
primeira vez o Cristo de pé e o confunde com o jardineiro (João
20,15). No texto da Vulgata de Jerônimo lê-se “illa estimans quia
hortulanus esset”, com o verbo no subjuntivo, “ela, acreditando que
ele fosse o jardineiro”. O manuscrito na Biblioteca Parker e a homilia
de Gregório sobre o texto preservam ambos o presente do
indicativo, do latim antigo “quia hortulanus est”, “que ele é o
jardineiro”, porque Gregório interpreta isso, num sentido espiritual,
mais como uma realidade factual do que como uma possibilidade
abstrata.
Glunz insinua que Gregório deve ter preparado uma espécie de
texto editado da Vulgata, temperado com variantes da Vetus Latina,
para serem lidos paralelamente com seus próprios comentários.
Mesmo que isso não tenha sido tão deliberado de sua parte, talvez
Gregório simplesmente tenha usado um manuscrito de origem mista
do qual dispunha em sua casa. Seja qual for o caso, a coincidência
é grande demais. O MS 286 só pode ter derivado do scriptorium de
Gregório em Roma. Por esse motivo apenas, creio que podemos
abandonar o cauteloso “‘assim chamado” e identificar o manuscrito,
com boa dose de segurança, como um dos que foram enviados à
Inglaterra pelo próprio são Gregório.
Narrativa dos pastores no campo, nos Evangelhos de Santo
Agostinho, com a variante em latim antigo “Nasceu-nos hoje um
Salvador”, mais tarde corrigida para a versão da Vulgata, “Nasceu-
vos hoje…”.
O manuscrito ainda está em seu descanso sobre a comprida mesa
na Biblioteca Parker. Como muitos manuscritos clássicos mais
tardios, seu pergaminho é muito fino e às vezes quase não tem
peso. As folhas não são todas do mesmo tamanho, o que sugere
que o que temos aqui não difere muito do livro original quanto a
suas dimensões. Como o livro costuma ser guardado
hermeticamente fechado num cofre em condições ótimas de
temperatura e umidade, sua liberação num recinto quente o
bastante para ser confortável para humanos faz com que o
pergaminho depressa absorva a umidade do ar, e, se isso não for
controlado, as páginas começam a se enrolar de modo assustador
bem diante de nossos olhos, como se estivessem vivas, um pouco
como esses peixes de papel que se costumava comprar em lojas de
brinquedos ou de artigos de mágica, e que colocados no calor de
sua mão aberta se enrolavam como indicação de que você estava
apaixonado (eles sempre se enrolavam, e você, com dez anos de
idade, era alvo de irreverente gozação). Curiosamente, as páginas
do manuscrito se enrolam da direção do lado mais escuro da pele
do suporte, que era o lado do pelo, exatamente o oposto da curva
natural da pele quando reveste o animal. Isso acontece, explicaram-
me os especialistas em conservação de documentos, porque as
fibras que ficam na superfície externa de qualquer pele animal são
mais densas e menos flexíveis do que as que ficam no lado mais
macio e dobrável em contato com a carne, e se expandem rápido
quando absorvem umidade. Não é um enrolamento permanente; a
página fica plana de novo, sem sofrer dano, quando a viramos.
João 10,11 nos Evangelhos de Santo Agostinho, com a variante
em latim antigo na qual o Bom Pastor “põe” sua vida por suas
ovelhas, depois corrigida na Vulgata para “dá”.

Jiří Vnouček, especialista em pergaminhos da Biblioteca Real em


Copenhague, diz-me que o manuscrito é na maior parte, ou todo
ele, feito de pele de carneiro, o que parece, por coincidência, muito
apropriado no caso de Gregório, cujo nome escolhido é um jogo de
palavras com greges, “rebanhos”, e que escreveu a Regra pastoral
e constantemente se definia como um pastor. As páginas são
pautadas com linhas de guia em duas colunas com 25 linhas cada
uma. Como quase todos os manuscritos, a pessoa que preparou as
pautas perfurou as marcas de medida através de várias páginas de
uma só vez, para facilitar uma duplicação consistente: nesse
manuscrito, o que é incomum, a linha vertical de perfurações vai até
o centro da cada página, e não até as margens. O fato de existir
uma única linha de orifícios indica que as páginas devem ter sido
pautadas antes de serem dobradas, já que as perfurações tinham
de se juntar em continuação numa página dupla, com o livro aberto.
A ordem do livro alceado é fornecida a seguir, de acordo com a
fórmula que foi explicada na introdução.*** Os pares de folhas foram
arrumados em cadernos que são, ou foram, na maioria de oito
folhas cada um, embora agora estejam faltando folhas em vários
pontos, como se demonstra na descrição do alceamento. Nos
cantos direitos das últimas folhas dos cadernos ii-x há marcas
originais feitas pelo escriba para montar o livro na ordem correta.
São feitas com a letra “Q” (para “quaternum”, que comumente
significa quatro pares de folhas) seguida de um numeral romano
entre “IIII” e “XII”. Isso quer dizer que a maior parte de três conjuntos
de folhas — com os números “I” a “III” — agora estão faltando no
início, provavelmente 22 folhas ao todo, assumindo que cada
conjunto tem oito folhas. Isso deve incluir os prólogos gerais, os dez
quadros canônicos descritos por Elmham, possivelmente com a
costumeira carta explicativa de Eusébio a Carpiano, junto com o
prefácio de Mateus e as primeiras páginas da lista capitula de
Mateus. Também se percebe com clareza que houve uma figura de
página inteira do evangelista Mateus debaixo de um arco, como a
de Lucas, que ainda sobrevive, pois ela deixou inequívocas marcas
vermelhas impressas na folha que uma vez confrontou. Não se pode
saber se houve também uma página com uma narrativa composta
de figuras múltiplas de Mateus, como a de Lucas, mas é muito
possível. Com certeza houve um retrato de Marcos ao lado do fólio
78r, onde falta uma folha e também aparecem marcas tênues. Falta
uma folha de texto após o fólio 130r, contendo Lucas 1,17-33. O
retrato perdido de João, inesperamente, ao que parece não se
contrapunha à abertura de seu Evangelho, onde não há marcas
nem lacuna no alceamento, mas em vez disso estava ao lado do
prólogo, deixando leves marcas na página adjacente. Contudo,
havia mais uma página, com múltiplas figuras, bem no fim, deixando
traços fantasmagóricos de sua presença no fólio 215v. Afora tudo
isso, o alceamento do manuscrito mostra-se intacto.
A inclusão de figuras inteiras, mesmo que agora apenas duas
sobrevivam, também é importante na atribuição da origem do
manuscrito ao patronato de Gregório, o Grande, uma vez que o
próprio Gregório fez uma famosa defesa do valor das ilustrações de
cunho religioso, escrevendo a Sereno, bispo de Marselha. Figuras,
ele disse, são úteis no ensino da fé aos não convertidos e na
transmissão de histórias sacras aos iletrados. Era exatamente disso
que Agostinho deve ter precisado. Segundo Beda, Agostinho teve
um encontro inicial com o rei Etelberto, de Kent, e lhe mostrou uma
figura de Cristo pintada num painel, e só então começou sua
prédica.
Vamos olhar mais de perto as duas páginas inteiras com figuras
remanescentes. A primeira contém uma série de doze pequenos
quadrados representando cenas, inseridos numa moldura trompe
l’oeil de mármore com veios vermelhos. Está no fólio 125r.
Compreende quatro fileiras com três quadrados em cada uma,
representando estações da Paixão de Cristo. Descrevê-la como algo
parecido com história em quadrinhos seria banal, mas de fato é uma
sucessão de imagens que contam uma história em figuras. Os
temas são, resumindo, a entrada em Jerusalém, a Última Ceia, a
Agonia no Jardim, a ressurreição de Lázaro (estranhamente fora de
ordem, e, se há motivo para isso, não consigo cogitar qual seria),
Cristo lavando os pés dos discípulos, o beijo de Judas, a prisão,
Cristo diante de Caifás, a zombaria a Cristo, Pilatos lavando as
mãos, Cristo sendo levado para ser crucificado, e carregando a
Cruz. É de notar que a Crucificação e a Ressurreição, eventos
centrais da Paixão, não aparecem. Meu palpite é que uma série
subsequente de figuras, hoje perdidas da parte final do manuscrito,
completaria a história. Seguindo o mesmo princípio, a página que
falta antes do Evangelho de Mateus seria de figuras, contando a
vida de Cristo de seu nascimento até a vida adulta.
A segunda figura remanescente é o grande retrato de São Lucas,
nove páginas depois. O evangelista se parece com um senador
romano de barbas brancas, sentado num trono com as pernas
cruzadas, o queixo apoiado na mão e com um livro aberto no colo.
Não é mostrado no ato de escrever, como teria sido num Livro de
Evangelho grego, mas sim tentando escutar, com toda a atenção, a
voz de uma inspiração divina. Aqui a composição pode refletir algum
protótipo antigo que mostra mais um filósofo do que um escritor. De
cada lado de São Lucas há colunas de mármore, ora vermelhas ora
verdes, com capitéis de mármore branco que suportam um dintel e
um grande arco, tudo parecendo sair de uma imponente sala do
trono na Roma imperial. Dentro do tímpano, no topo, o meio-corpo
de um touro alado, o símbolo de São Lucas na arte. Ao longo do
dintel, palavras sobre o touro, citação de Carmen Paschale, do
poeta Sedúlio, do século V; ecos de versos que correspondem aos
símbolos dos outros evangelistas (um homem para Mateus, um leão
para Marcos, e uma águia para João), ou esboços dos próprios
símbolos, ocorrem nos fólios 2v, 78r e 207v, e são parte da
evidência de que retratos semelhantes já estiveram presentes no
livro. Esse é um uso muito antigo desses símbolos pictóricos, que
derivam da visão do trono de Deus por Ezequiel (Ezequiel 1,10 e
Apocalipse 4,7). O homem, o leão, o boi e a águia vão reaparecer
no Livro de Kells (capítulo 3), e depois as figuras dos evangelistas
nas Horas de Spinola (capítulo 12). Entre as colunas junto a São
Lucas há pequenas figuras, seis de cada lado, que representam
cenas do Evangelho de Lucas, desde a anunciação a Zacarias
(Lucas 1,11) até Zaqueu subindo no sicômoro (Lucas 19,4). As
cenas estão todas identificadas com precisão nas margens, numa
caligrafia inglesa do século VIII. Dado que as minúsculas cenas
pouco diferem entre si, quem escreveu a legenda deve ter tido
acesso a alguma versão maior e mais genérica, tal como um painel,
ou um afresco, ou simplesmente inventou o que parecia ser
provável onde os temas não estavam claros.
Existe uma considerável literatura sobre a iconografia dessas
figuras nos Evangelhos de Santo Agostinho, na qual não iremos nos
deter agora. O estilo é totalmente clássico, quase tridimensional, e
pintado nas suaves cores mediterrâneas que nos são familiares de
fragmentos de afrescos romanos, azul-pálido de centáurea, creme,
terracota, e um delicado laranja. Se quase não há manuscritos
ornamentados europeus sobreviventes do século VI, certamente há
mosaicos e murais em igrejas, dos quais se podem extrair paralelos
satisfatórios. A imagem de São Lucas no manuscrito está, ela
mesma, num contexto arquitetural. A figura com múltiplas cenas
também pode estar baseada em algo que já foi familiar no contexto
de igrejas. É apresentada como um único grande quadro
emoldurado em mármore clássico. Em minha única visita à Etiópia,
com um grupo do Corpus Christi College, fiquei impressionado com
as semelhanças entre esse desenho compósito e os enormes
painéis de madeira com ciclos narrativos de aspecto primitivo sobre
cenas religiosas, arrumados, de forma similar, em fileiras seguidas
formadas por retângulos consecutivos — exatamente como aqui —,
que se encontram hoje pendurados em igrejas etíopes. Muito pouco
mudou na prática religiosa na Etiópia desde a data aproximada dos
Evangelhos de Santo Agostinho. Quando eu contemplava esses
painéis múltiplos lá usados para transmitir histórias cristãs aos
iletrados, não pude deixar de me perguntar se as igrejas em Roma,
na época de Gregório, o Grande, não tinham figuras emolduradas
similares, e se a composição no manuscrito não representava
painéis de madeira que ou eram familiares das basílicas romanas ou
até mesmo estavam entre os pertences trazidos para a Inglaterra
pelo próprio Agostinho.

Pinturas religiosas etíopes modernas em painéis, muitas vezes,


são curiosamente semelhantes em formato às imagens múltiplas
nos Evangelhos de Santo Agostinho e podem estar preservando
uma tradição antiga.
Enquanto eu escrevia este capítulo, os professores Andrew Beeby
e Richard Gameson, ambos da Universidade de Durham, vieram à
Biblioteca Parker com um equipamento de espectroscopia portátil
Raman, que permite a identificação química de pigmentos,
analisando os comprimentos de onda de raios laser refletidos por
pontos de cor. Eu aproveitei a oportunidade e trouxe o Livro dos
Evangelhos de Santo Agostinho. Eles puderam me dizer, por
exemplo, que os três tipos de vermelho usados no manuscrito são
hematita marrom-avermelhada (ou possivelmente ocre vermelho),
chumbo vermelho-laranja-claro, e vermelhão, que se usa para
escrita em vermelho. São minerais de ocorrência natural. O azul,
dizem eles, é índigo. Feito das flores de uma planta, Indigofera
tinctoria, que cresce comumente na Itália e outros lugares, mas que
se supõe ter origem, como sugere seu nome, na Índia. Eles não
conseguiram identificar o amarelo usando a técnica Raman, exceto
para dizer que não é auripigmento. Richard Gameson também
observou que as cores estão aplicadas numa camada notavelmente
fina, ao contrário de (digamos) manuscritos gregos, em que a tinta
costuma ser tão grossa que chega a descamar. Os pigmentos aqui,
tão pouco substanciais quanto uma aquarela, continuam presos a
um manuscrito que deve ter sido submetido a muito manuseio e
muitas mudanças de clima.
O manuscrito não contém ouro. Talvez também tenha sido
considerado vulnerável e frágil demais para um livro que seria
levado através da Europa. Em termos estritos, a palavra “iluminado”,
aplicada a manuscritos, implica o uso de ouro, que cintila e captura
a luz. Cerca de metade dos itens descritos neste livro, inclusive o
Livro de Kells, tecnicamente falando, não são de modo algum
manuscritos iluminados. Não que o ouro fosse um artigo raro no
século VI, pois há muitos exemplos de joias e mosaicos
mediterrâneos desse período que são ricos em ouro. No entanto,
esse manuscrito, em particular, é muito despojado. As duas páginas
inteiras de ilustração são raridades estupendas, mas as páginas
seguintes não são ornamentadas, nem mesmo com iniciais. Em vez
disso, se houve ouro, ele provavelmente estava na encadernação
original do manuscrito. A antiga folha de guarda frontal tem duas
manchas verdes desbotadas, em forma de losango, deixadas por
algum dispositivo de latão ou de cobre que alguma vez estivera
cravado atravessando a espessura das capas, supostamente pinos
para fixar algum tipo de acessório. Há uma imagem de uma
encadernação ornada com joias em mosaicos do século VI na
Basílica de São Vital, em Ravenna, que mostra o imperador
Justiniano acompanhado de sacerdotes, um dos quais tem nas
mãos o que certamente é uma cópia dos Evangelhos, encadernada
com placas cobertas com ouro incrustado de ornamentos em verde
e branco. Ainda existe também, em separado, uma encadernação
com joias do final do século VI ou início do século VII no tesouro da
Catedral de São João Batista em Monza, perto de Milão, a qual foi
doada por Teodolinda (c. 570-628), rainha dos lombardos. Sabemos
por suas epístolas que Gregório, o Grande, enviou a ela um Livro de
Evangelhos. Este não sobreviveu, mas se essa é a sua capa, como
usualmente se supõe, pode ser uma pista para o tipo de
encadernação que deve ter sido a do MS 286, que também foi
enviado por Gregório. A encadernação em Monza é de madeira
coberta de ouro, emoldurada e decorada na capa superior com um
desenho cruciforme de ouro filigranado com pedras coloridas e
pérolas, entre camafeus clássicos. É até mesmo possível que partes
de uma encadernação como esta dos Evangelhos de Santo
Agostinho possam ter sobrevivido até o período de pilhagem, na
Reforma, quando teria sido desmembrada devido ao valor de seus
metais e suas joias, e em cujo processo também teriam se rasgado
as 22 folhas do início que se perderam.
O manuscrito na Biblioteca Parker é provavelmente o mais antigo
artefato não arqueológico, de qualquer tipo, sobrevivente na
Inglaterra (é difícil imaginar qualquer outra coisa que esteve na
posse de alguém e em uso continuado no país desde o século VI).
É, com folga, o mais antigo Livro de Evangelhos ilustrado, em latim,
a sobreviver onde quer que seja no mundo. No que tange à data,
equipara-se a um punhado de outros manuscritos com Evangelhos,
ilustrados, com datas semelhantes, do Oriente cristão, e não me
incomodaria atribuir uma precedência absoluta a qualquer um deles.
Os mais misteriosos de todos eles são dois volumes recentemente
alçados à proeminência, após sua redescoberta no mosteiro de
Abba Garima, no norte da Etiópia, escritos na língua ge’ez. Tudo
parece ser possível naquela cultura misteriosa, fossilizada desde a
Antiguidade mais tardia. Parte dos manuscritos de Abba Garima
talvez seja mesmo muito antiga, e diz-se que a datação de uma
amostragem das páginas por carbono-14 indica com segurança sua
origem entre os séculos V e VII, data que poderia, não fosse isso,
ser difícil de creditar. Essas páginas também incluem retratos de
rosto inteiro dos evangelistas, olhando para nós de seus
compartimentos emoldurados. Com datas mais seguras e mais bem
documentadas, no entanto, estão os famosos Evangelhos de
Rabbula, em tradução siríaca, assinada pelo escriba Rabbula no
ano de 586. Esse manuscrito está hoje na Biblioteca Laurenziana,
em Florença. É profusa e vigorosamente ilustrado, mas aparenta ter
sido retocado (eu vi o original, no qual as cores, preocupantemente,
parecem ter sido renovadas). Há também dois maravilhosos Livros
de Evangelhos na Grécia, com figuras narrativas de impressionante
realidade, de cerca de 600 ou pouco antes disso. Mas há
remanescentes de códices luxuosos escritos em ouro ou prata em
pergaminho tingido de púrpura, com delicadas ilustrações de dança.
Um está no museu diocesano em Rossano, Calábria, sudeste da
Itália, e o outro está na Bibliothèque Nationale, Paris, conhecido
como Codex Sinopensis, por ter sido adquirido em 1899 em Sinope,
no mar Negro, ao norte da Turquia. Estes, juntamente com os
Evangelhos em latim de Santo Agostinho, na Biblioteca Parker, são
os mais antigos exemplares ilustrados de Evangelhos conhecidos, e
formam um conjunto de grande raridade.
Capa de livro com joias em Monza, que pode
ser dos Evangelhos com que são Gregório
presenteou a rainha Teodolinda,
possivelmente o tipo de encadernação que já
foi a dos Evangelhos de Santo Agostinho.

Há um extraordinário aparte nessa linha de manuscritos ilustrados


do século VI. Por um triz os Evangelhos de Rossano também não
estão agora na Biblioteca Parker. Meu enérgico predecessor no
cargo de bibliotecário do Corpus Christi no século XIX foi o
classicista de barba preta Samuel Savage Lewis (1836-91), sempre
aberto a novas coisas e novas ideias. Sua mulher era Agnes Smith
Lewis, uma das gêmeas “irmãs do Sinai”, extraordinárias viajantes e
exploradoras da cristandade levantina numa época em que essas
explorações eram exclusivamente masculinas. Na biografia que
escreveu de seu marido após a morte dele, Agnes Lewis nos conta
da visita que fizeram juntos a Rossano em dezembro de 1889, para
ver o famoso Livro de Evangelhos. Ninguém conseguiu encontrá-lo.
Depois eles rastrearam seu paradeiro, chegando à casa de um
arquidiácono, que o guardava numa caixa de papelão, numa gaveta
de seu quarto. O clérigo e Lewis se envolveram numa discussão
sussurrada quanto a seu valor e à necessidade de dinheiro para
comprar mobiliário para a igreja. A palavra “immediamente” foi ali
entreouvida. Em Nápoles, essas inesperadas negociações
continuaram a sério. Foi sugerida a quantia de mil libras. A sra.
Lewis continua: “Assim, depois de passar um telegrama para casa
pedindo fundos, ele arquitetou o projeto louco de pegar um trem
para Rossano, chegar lá à meia-noite para um encontro marcado
com os padres na estação, e voltar com o MS adquirido no bolso, no
trem seguinte”. Tratava-se claramente de uma grande briga
doméstica, como acontece às vezes nas férias, e Agnes Lewis, num
deplorável acesso de probidade presbiteriana, vetou o acordo. O
que resta da coleção particular de livros e antiguidades de Lewis é
ainda hoje propriedade do Corpus Christi College.
Quando os Evangelhos de Santo Agostinho chegaram à Inglaterra,
no início foi provavelmente um livro muito prático, ainda não
venerável o bastante para se tornar uma relíquia. Sem dúvida foi
levado em procissões e durante a liturgia. Pode ter sido usado como
modelo para a cópia de outros manuscritos. Só poderíamos ter
conhecimento disso se textos idênticos fossem encontrados em
outros Livros de Evangelhos de feitura inglesa, mas sobrevivem
muito poucos para que deles se possam tirar conclusões claras.
Segundo Beda, um interesse renovado em erudição bíblica ocorreu
na Abadia de Santo Agostinho (que ainda não tinha esse nome) no
tempo de Adriano, abade de 670 a 709. Ele era norte-africano de
nascimento, fluente em latim e grego, e antes tinha sido abade no
sul da Itália. O MS 286 foi extensamente corrigido por mãos inglesas
no fim do século VII, a mesma época de Adriano, pondo-o na linha
da preponderante e convencional Vulgata, aprimorando as variantes
do latim antigo já mencionadas. Algumas palavras foram apagadas
e reescritas, ou expungidas riscando-as ou marcando-as com fileiras
de pontos, sendo inseridas alterações e frases mais precisas numa
tinta mais escura. Depois, dessa época em diante, o manuscrito não
mais teria um texto que o distinguissse o bastante para nos informar
se foi novamente usado como modelo para ser copiado, mas isso é
provável, dada a autoridade que lhe era conferida por sua
proveniência.

São Mateus, do Codex Aureus do século VIII,


hoje em Estocolomo, copiado de imagem
similar que havia nos Evangelhos de Santo
Agostinho.

Suas figuras, no entanto, tiveram sem dúvida uma pós-vida na


Cantuária. Os retratos dos evangelistas foram copiados no Codex
Aureus, magnífico Livro de Evangelhos inglês de meados do século
VIII, agora na biblioteca real em Estocolmo. Para nossa frustração,
no manuscrito da Suécia falta agora a figura de Lucas. Como o
retrato de Lucas é o único que sobrevive no MS 286, uma
comparação direta entre as imagens dos dois manuscritos é
impossível. Contudo, o Codex Aureus nos provê com o que são,
sem dúvida, reproduções confiáveis das miniaturas perdidas de
Mateus e de João nos Evangelhos de Santo Agostinho. Suas
composições são quase idênticas à da figura sobrevivente de Lucas,
mostrando os autores sentados debaixo de arcos com seus
símbolos no tímpano acima. A miniatura de Mateus em Estocolmo
tem até mesmo as pequenas e ralas plantas que aparecem nos
Evangelhos de Santo Agostinho, crescendo ao lado do trono de
Lucas. Não se sabe onde foi feito o Codex Aureus, exceto que foi
roubado no século IX por um grupo de vikings e resgatado a peso de
ouro por um casal da Cantuária, o conde Ælfred e sua mulher
Werberg, e assim é provável que seja oriundo da Cantuária. O
símbolo do boi acima de Lucas no MS 286 também foi
inequivocamente copiado num Livro de Evangelhos que se encontra
hoje na Biblioteca Britânica, adaptado de uma Bíblia que foi,
comprovadamente, toda feita na Abadia de Santo Agostinho no final
do século VIII. A criatura é a mesma, com o relaxado casco pousado
graciosamente num livro. Isso é um dado a mais na certeza de que
o MS 286 esteve de fato na Abadia de Santo Agostinho muito antes
do acréscimo dos primeiros documentos, no século X.
A página com as fileiras de figuras em quadrinhos, como as das
igrejas da Etiópia, teve uma influência ainda mais duradoura na arte
inglesa. Numa das manifestações mais marcantes, a cena da Última
Ceia, no topo ao centro, foi copiada no fim do século XI, com
alterações insignificantes, nada menos do que na Tapeçaria de
Bayeux, onde a cena passa a mostrar o bispo Odo de Bayeux
abençoando um cálice, numa mesa redonda, após os normandos
terem chegado a Pevensey, em setembro de 1066. O Livro dos
Evangelhos de Santo Agostinho, portanto, desempenha um papel
no argumento de que a Tapeçaria de Bayeux foi feita, na realidade,
na Cantuária. O esquema de múltiplos quadrados formando uma
narrativa tem aparente repercussão já no fim do século XII, no ciclo
que constitui o preâmbulo do Saltério de Eadwine, escrito no
priorado da Catedral da Igreja de Cristo, na Cantuária, por volta de
1160. Embora o estilo e os assuntos sejam atualizados, o formato é
idêntico e é exclusivo da Cantuária. A manifestação final das figuras
está no ciclo de preâmbulo do assim chamado Saltério Anglo-
Catalão, agora em Paris, iluminado na Cantuária pouco antes de
1200, seiscentos anos após os Evangelhos de Santo Agostinho
terem entrado na Inglaterra. Alguns historiadores da arte também
veem paralelos com os padrões dos vitrais do final do século XII que
sobrevivem na Cantuária. Existe até mesmo uma conexão possível
com a arquitetura da Trinity Chapel, na Catedral da Cantuária, mais
além do altar-mor, construída em 1179-84 e depois adaptada como
santuário de são Tomás Becket, um dos destinos de peregrinação
mais visitados na Europa. Em volta da capela há pares de colunas
encimadas por capitéis brancos, sustentando arcos acima delas: os
pilares são geminados, em mármore mosqueado, um vermelho e o
outro verde, exatamente como os que flanqueiam o clássico
evangelista nos Evangelhos de Santo Agostinho.

A imagem da Última Ceia nos Evangelhos de Santo Agostinho foi


copiada cerca de quinhentos anos depois na Tapeçaria de
Bayeux, onde foi adaptada para representar a cena em que Odo
de Bayeux festeja com seus nobres.

Embora o manuscrito estivesse na Abadia de Santo Agostinho, não


na catedral, ele tem uma associação, renovada modernamente, com
a Catedral da Cantuária. Os que vivem nessa cidade chamam-no às
vezes de “Evangelhos da Cantuária”. É o livro usado hoje no
juramento de posse na entronização de cada novo arcebispo da
Cantuária. A linha dos arcebispos, de Santo Agostinho em diante,
continuou em sucessão direta desde o século VI, muito mais tempo
do que aquele em que tem havido reis na Inglaterra, ou qualquer
outro cargo público. Matthew Parker teria visto nessa continuidade
uma aprovação divina. O que exerce o cargo atualmente é o 106o a
ter esse título. Dezoito desses arcebispos foram canonizados. Os
mesmos visitantes da Biblioteca Parker que duvidam da associação
dos manuscritos com Santo Agostinho frequentemente também
zombam: “Suponho que seu uso pelos arcebispos seja apenas mais
uma dessas tradições espúrias inventadas no século XIX”. Não, não
é, nem mesmo é tão antiga. Começou há pouco tempo, com a
posse de Geoffrey Fisher, em 1945. Em um delicioso relato
datilografado nos Arquivos da Catedral da Cantuária, William Urry,
então o arquivista, descreve a chegada do manuscrito num carro de
polícia, vindo de Cambridge, exatamente às 12h30 de 27 de junho
de 1961, para a entronização de Michael Ramsey, na segunda vez
em que era usado para isso. O que houve naquele dia parecia ter
sido tirado de uma comédia antiquada, na qual os Evangelhos de
Santo Agostinho eram levados pelos recintos da catedral, seguidos
por Sir George Thompson, mestre do Corpus Christi College,
Michael McCrum, tutor sênior, e vários policiais apressados, e
acabavam no piano de Urry, quando, depois disso tudo, foi servido o
chá.
Eu mesmo acompanhei o manuscrito até a Cantuária duas vezes,
para a entronização de Rowan Williams em 27 de fevereiro de 2003,
e de novo para a de Justin Welby em 21 de março de 2013. Não
queria me distrair muito com o relato desses dias memoráveis
(embora pudesse, caso vocês o quisessem), porque num instante
terei mesmo que dizer algo a respeito disso. No entanto, passei por
uma experiência na entronização do arcebispo Williams que tem
alguma relevância no estudo de manuscritos antigos. Nesse dia, tive
de entrar na catedral pela porta oeste, juntando-me à procissão
assim que se começou a cantar o primeiro hino, que era “Immortal,
Invisible, God Only Wise” [Imortal, invisível, Deus único e sábio], um
canto galês em homenagem à nacionalidade do novo primaz. Eu
estava levando o volume dos Evangelhos de Santo Agostinho,
aberto, sobre uma almofada. Ele estava preso com duas tiras de fita
transparente. Mais de 2500 pessoas cantando muito alto um hino
conhecido num recinto de pedra fechado faz o ar vibrar. Essa é a
natureza das ondas sonoras. As folhas de pergaminho do
manuscrito, como já vimos, são extremamente delicadas e de um
tecido muito fino, e elas captavam a vibração, zumbiam e
palpitavam ao ritmo da música. Naquele momento, foi como se o
manuscrito do século VI, em sua almofada, tivesse adquirido vida e
participasse da cerimônia. Ocorreu-me que talvez os manuscritos
cristãos antigos sempre fizessem isso, pois seus pergaminhos são
em geral muito mais finos do que os dos livros posteriores, e que
decerto o motivo de se levarem livros de Evangelhos antigos
abertos em procissões fosse esse efeito extraordinariamente
poderoso e emocionante. Devo acrescentar, no interesse de um
distanciamento científico, que isso não voltou a acontecer em 2013.
Volto, enfim, ao incidente com o qual iniciei este capítulo.
Começou com um telefonema tentador, em junho de 2010, do
cônego Jonathan Goodall, capelão do arcebispo da Cantuária no
palácio Lambeth, no qual ele me apresentou, em suas palavras,
“uma ideia interessante”. Explicou-me que ele e seus colegas
estavam planejando a visita do papa Bento XVI à Inglaterra naquele
mês de setembro. Era apenas a segunda vez que um papa em
exercício estaria na Grã-Bretanha. A proposta, ele disse, era que o
papa e o arcebispo presidissem juntos uma cerimônia ecumênica na
Abadia de Westminster. A razão para a escolha da abadia, em vez
de, digamos, as catedrais da Cantuária (anglicana) ou de
Westminster (católica), era ser a abadia uma royal peculiar, o que
significa que era subordinada diretamente à rainha, e não à prelazia
da Cantuária. Portanto, o papa e o arcebispo seriam convidados do
deão em termos iguais, sem a delicada diplomacia da precedência.
A Abadia de Westminster também já fora, é claro, um mosteiro
medieval beneditino, e (nesse contexto, com propriedade) dedicado
a São Pedro. Será que nós, perguntou o cônego Goodall,
consideraríamos a hipótese de permitir que o Livro de Evangelhos
de Santo Agostinho fosse levado em procissão pela abadia para ser
reverenciado juntamente pelo papa e pelo arcebispo após a leitura
do texto do Evangelho daquele dia?
O pedido formal arrastou-se devagar, atravessando a burocracia
do Corpus Christi College. Acionaram-se os dispositivos para seguro
e transporte. Na manhã de sexta-feira, 17 de setembro de 2010, eu
estava na faculdade bem antes das seis horas. O manuscrito tinha
sido embalado na noite anterior, num estojo azul-escuro à prova de
explosivos. Nós o prendemos com correias dentro de um furgão
protegido (não um carro de polícia) e viajei com ele até Londres, e,
ao longo do dique, até a Abadia de Westminster. Às oito ele estava
trancado no cofre que fica debaixo da biblioteca, na ala leste do
claustro, aos cuidados de Tony Trowles, bibliotecário da abadia. A
cerimônia inteira foi meticulosamente ensaiada a partir das 11h30.
Fomos todos conduzidos em nossos percursos, até mesmo o
arcebispo, que estava lá (o papa não estava), e foram feitas
algumas modificações de última hora para permitir uma cobertura
televisiva apropriada, mas discreta. Para os ensaios, usei um livro
moderno, em lugar do original.
No meio da tarde, a abadia inteira foi cercada pela polícia com um
cordão de isolamento. A segurança foi realmente muito rigorosa. Foi
difícil tornar a entrar no recinto da abadia pouco antes das quatro
horas. Um clérigo que estava na fila me reconheceu, e eu fui levado
de volta apressadamente para o claustro, onde preparamos o livro,
colocando-o numa espécie de almofada vermelha modificada,
parecida com uma bandeja acolchoada, dessas em que se serve o
desjejum a inválidos. Tinham nos perguntado se o livro poderia ser
aberto em uma das páginas com figura, mas isso parecia ser
irresponsável do ponto de vista curatorial. Em vez disso, o abrimos
no texto em latim da leitura do Evangelho que fora designada para a
cerimônia, Marcos 10,35-45, de modo que o papa pudesse
reverenciar o texto que acabara de ser lido.
Eu vesti, adequadamente, as pomposas roupas acadêmicas, pela
primeira vez desde meu ph.D. em Cambridge. O manuscrito e eu
fomos escoltados à Câmara de Jerusalém pela porta oeste da
abadia (quarto no qual morreu Henrique IV). O afável cardeal
arcebispo de Armagh já estava lá. Sentei-me a um canto com o
manuscrito em meu colo. Um a um, os próceres de várias igrejas
cristãs da Grã-Bretanha também foram chegando, alguns já
ataviados com subcamadas de elegância medieval, outros com
pequenas e jeitosas maletas de dentro das quais se desdobravam
misteriosas vestimentas e ornamentos. Observar furtivamente como
se enfeitavam, feito árvores de Natal ambulantes, cada um ou uma
de seu próprio tipo, foi o prazer inesquecível daquele dia. Eles eram
os moderadores da Igreja Presbiteriana, das Igrejas Livres da
Inglaterra e de Gales e da Igreja Reformada Unida, batendo papo
com bispos e arcebispos; havia os presidentes do Conselho
Metodista e, em marcante contraste, do Conselho das Igrejas
Orientais no Reino Unido, com o arcebispo de Thyateira e da Grã-
Bretanha; e os metodistas e os luteranos e o Exército de Salvação,
e muitos outros, reunidos e vestindo suas túnicas.
A essa altura o tranquilo murmúrio de expectativa dos vários
milhares de visitantes convidados na abadia era encoberto pelo
canto e pelos gritos das imensas e matizadas multidões no lado de
fora, nas ruas. O cardeal e eu atravessamos o quarto e olhamos
pela janela. Havia uma ampla faixa de estandartes, bandeiras e
cartazes em igual medida protestando e dando boas-vindas ao
papa. Provavelmente Santo Agostinho da Cantuária tinha deparado
com ajuntamentos que não diferiam desse quando desembarcou
aqui em 597. Um cônego ligou uma televisão na Câmara de
Jerusalém, e pudemos ouvir o discurso do papa no Westminster Hall
e ficar sabendo quando o séquito papal estava prestes a atravessar
a rua em direção à abadia, que foi a deixa para que nossa estranha
panóplia saísse da câmara e se dispusesse na extremidade oeste
da nave. Agarrado ao manuscrito, tomei a posição que me fora
designada, na pedra memorial de David Lloyd George, ao lado de
uma coluna. “Você não pensa às vezes: ‘O que estou eu fazendo
aqui?’”, sussurrei ao policromo sacristão que, a meu lado, carregava
a reluzente cruz processional de Westminster. Ele pareceu ficar
espantado. “Não”, disse, “na verdade não. Para nós este é um
trabalho normal.”
O papa Bento XVI na Abadia de Westminster venerando os
Evangelhos de Santo Agostinho, carregados por Christopher de
Hamel, observado por Rowan Williams, arcebispo da Cantuária.

A entrada do papa pela porta ocidental foi anunciada por um


bramido da multidão na rua e pelo ruído dos disparadores de
incontáveis câmeras, como o som de milhares de pássaros alçando
voo. Após o papa ser saudado e paramentado, formamos todos uma
imponente procissão ao longo da nave gótica da abadia, subindo ao
coro e atravessando o piso de mosaico feito para Henrique III em
1268. Eu pus o precioso tomo no grande altar, sem dúvida de
maneira muito semelhante a como deve ter sido feito na Abadia de
Santo Agostinho no início da Idade Média, curvei-me (um pouco
constrangido) e fui até meu lugar nos assentos do clero. A longa
procissão continuou, culminando com a passagem do deão, o
arcebispo da Cantuária e o papa, com seus capelães assistentes.
Mais tarde, após a leitura do Evangelho (em inglês, pelo moderador
da Igreja da Escócia), minha breve tarefa foi trazer o manuscrito em
sua almofada até o papa, que se curvou diante de mim e beijou as
páginas, e depois me voltar para o arcebispo, que fez o mesmo.
Minha preocupação primordial era não escorregar nos enganosos e
lisos degraus de pedra medieval ao descer do altar e voltar para ele.
Tropeçar ali, coisa que sou capaz de fazer nas melhores condições,
seria uma cena espetacular para a televisão, mas também seria
ruim para o manuscrito. Depois, quando se cantava o Magnificat, o
deão incensou o altar, fazendo o turíbulo oscilar infindavelmente
acima do manuscrito aberto, e eu me perguntava o que faria se
visse um pedacinho de carvão ardente cair no pergaminho.
Na verdade, estava tudo bem. Depois eu nem mesmo consegui
sentir o cheiro do incenso nas páginas. Em seu discurso, o
arcebispo contou como a Igreja da Inglaterra tinha, afinal, um
fundamento papal, representado pelo Livro dos Evangelhos enviado
para cá de Roma pelo papa Gregório. No momento aprazado eu
trouxe o tomo de volta a meu posto, acima de Lloyd George, e vi o
papa passar e sair sob aplausos para o crepúsculo lá fora. Quando
a congregação se dispersou e as ruas de Westminster foram
reabertas, o furgão de segurança entrou atravessando o Dean’s
Yard e reembalamos o manuscrito para sua viagem de volta. Tarde
da noite ele estava em segurança em casa, em Cambridge, depois
de seu momento recapturado de esplendor medieval e, no escuro,
de novo em sua prateleira no cofre, voltando a ser mais uma vez o
MS 286 na Biblioteca Matthew Parker.

* Parque nacional no sul da Inglaterra. (N. T.)


** Nome de um programa anual de conferências sobre bibliografia. (N. T.)
*** 4 folhas de guarda + i2 [provavelmente de 8, faltando i-v e viii, 5 folhas antes do fólio 1 e
uma após o fólio 2], ii-x8, xi9 [de 10, faltando iv, uma folha após o fólio 77], xii-xvi8, xvii7 [de
8, faltando viii, uma folha após o fólio 130], xviii-xxvi8, xxvii3 [de 4, faltando iv, uma folha
após o fólio 205], xxviii-xxxiv8, xxxv4 + 4 folhas de guarda (em branco, exceto quanto ao
acréscimo de documentos medievais).
2

O Codex Amiatinus
c. 700
Florença, Biblioteca Laurenziana, Cod. Amiat. 1

Da Inglaterra do século VII, muito pouca coisa restou sobre o solo.


Vestígios da arquitetura do período ainda podem ser vistos na
extremidade oeste da igreja paroquial de São Pedro em Monk
Wearmouth, no moderno condado de Tyne and Wear, extremo
nordeste da Inglaterra, onde era a antiga Nortúmbria. Conquanto
tenha sido designada como patrimônio mundial, hoje o aspecto geral
da edificação é desapontador, nos subúrbios da moderna cidade
industrial e do porto de Sunderland, parecendo muito mais uma
igreja paroquial vitoriana num bem cuidado parque municipal
circundado por casas. Há claras marcações no gramado ao sul da
igreja indicando o perímetro de escavações arqueológicas recentes,
mas é preciso mais do que minha imaginação para conceber isso
como uma paisagem selvagem da Idade das Trevas, perto de onde
o grande rio Wear desemboca no mar do Norte (nenhum dos quais
se avista hoje da igreja), num terreno ofertado em 674 por Egfrido,
rei da Nortúmbria, para a fundação de um grande mosteiro no
modelo dos da Roma clássica tardia.
O primeiro abade e fundador dessa nova abadia do norte foi Bento
Biscop (c. 628-90), um nobre local que visitou Roma nada menos
que cinco vezes em sua vida. Essas experiências tiveram
claramente um enorme impacto em sua percepção cultural. Ele
decidiu tornar-se um monge. Em sua terceira viagem, em 669,
acompanhou na volta à Inglaterra o sétimo arcebispo da Cantuária,
na sucessão a Santo Agostinho, Teodoro de Tarso (602-90), a quem
se credita ter instituído o ensino de grego no sul da Inglaterra. Em
troca, Teodoro nomeou Bento abade efetivo do mosteiro vizinho na
Cantuária, depois conhecido como Abadia de Santo Agostinho. Por
algum tempo, portanto, Bento Biscop teve em sua custódia
(segundo meu conhecimento) o Livro dos Evangelhos de Santo
Agostinho, provavelmente àquela altura já guardado como um
tesouro em memória do fundador da abadia. Quando, vários anos
depois, em 674, o rei Egfrido ofereceu o terreno à margem do Wear
para um mosteiro, Bento foi o candidato óbvio a ser enviado de volta
à Nortúmbria. Conhecemos os detalhes disso a partir das
incomparáveis histórias de Beda (c. 672-735), gênio preeminente
entre os escritores anglo-saxões.
Após estabelecer a nova casa em Wearmouth, Bento viajou de
novo para Roma em 679, acompanhado pelo jovem monge
Ceolfrido (c. 642-716). Os dois viajantes compraram lá, ou de algum
modo obtiveram, “uma imensurável quantidade de livros de todos os
tipos”, como expressou Beda, fato que terá destaque na história que
se segue. Beda, que conhecia os dois, deixa implícito que foi
Ceolfrido e não Bento quem adquiriu em Roma o texto da nova
tradução da Bíblia (isto é, a Vulgata de Jerônimo) em três
manuscritos, junto com uma vasta pandecta — ou seja, um volume
abrangente — da Bíblia inteira, descrita como uma “antiga” versão
das Escrituras. Esses e outros livros, bem como relíquias e objetos
sacros, foram todos enviados e vieram junto com Bento e Ceolfrido
para Wearmouth. Os monges ingleses também cooptaram pessoas
em Roma, inclusive um chantre chamado João, que veio para
ensinar a prática de canto romana, e provavelmente artífices
praticantes. As informações para visitantes no exterior da igreja em
Monk Wearmouth hoje registram como as escavações no sítio
revelaram vestígios de vidro e argamassa romana, técnicas que não
eram conhecidas no norte da Europa naquele tempo. Os livros
trazidos de Roma, muito valorizados na época de Beda, há muito
desapareceram, exceto (talvez) um pequeno fragmento italiano do
século VI, tradução feita por Jerônimo do livro dos Macabeus para o
latim, que sobreviveu por sorte, ao ser reutilizado como folha de
guarda num manuscrito medieval na biblioteca da Catedral de
Durham.
Em 682, o rei Egfrido deu aos monges mais terras, em Jarrow,
cerca de onze quilômetros a noroeste, próximo da foz de outro
grande rio nortumbriano, o Tyne. Os monges decidiram construir
uma segunda igreja. O abade Bento Biscop confiou essa tarefa a
Ceolfrido, que se mudou para o novo local com vinte membros do
mosteiro, inclusive Beda, que era então adolescente e um monge
iniciante. Os dois estabelecimentos eram tidos como uma só
comunidade, a uma distância um do outro que se podia percorrer a
pé. Historiadores modernos referem-se comumente aos mosteiros
gêmeos como “Wearmouth-Jarrow”, como se fossem um único local,
e é costumeiro se referirem “à biblioteca” ou “ao scriptorium” de
Wearmouth-Jarrow como sendo entidades indistinguíveis.
Wearmouth foi dedicada a São Pedro, e Jarrow a São Paulo, os
patronos conjuntos da Roma cristã. É provável que Ceolfrido tenha
transferido para Jarrow os manuscritos que ele mesmo tinha
adquirido em Roma, já que Beda, claramente, continuou tendo
acesso a eles, mas assim mesmo continuaram a ser propriedade
conjunta de ambas as igrejas. Em 686 Ceolfrido foi nomeado abade
das duas casas, e continuou a viver em Jarrow por mais trinta anos.
A igreja de São Paulo em Jarrow é hoje incomparavelmente mais
evocativa do que sua irmã gêmea mais ao sul. Fica nos arredores
de uma cidade moderna, no meio de um arvoredo entremeado de
caminhos e de bancos, onde me sentei para fazer anotações à luz
do sol filtrada pela folhagem. No lado sul da igreja há ruínas do
mosteiro que foi reconstruído no século XII no terreno de Ceolfrido,
as quais, como em Wearmouth, estão agora escavadas por
completo e claramente marcadas na grama. O terreno aqui, que
uma vez foi configurado em terraços, vai descendo num declive
suave até as margens lamacentas do rio Don, que flui vagaroso
antes de se juntar ao possante Tyne, em seu rumo para o oceano. A
leste da igreja estende-se um descampado conhecido como Jarrow
Slake, e à distância estão as gruas e os tanques de óleo das docas
do porto de Tyne. A proximidade do mar foi benéfica aos
construtores e fornecedores da abadia, mas também um perigo,
pois o mosteiro foi saqueado e pilhado primeiro pelos vikings, em
794.
Era uma manhã de domingo quando estive lá. Um senhor idoso
juntou-se a mim no banco. Eu lhe perguntei a que horas a igreja
abria. Ele disse que o serviço matinal começaria às onze, e eu
respondi que gostaria de assistir. Ele me contou muito mais, e nem
tudo eu realmente compreendi, pois o forte sotaque geordie* ainda
pode ser impenetrável para os sulistas. Ceolfrido e o cantor visitante
romano sem dúvida falavam aqui em latim, o que deve ter sido mais
fácil. Dentro da igreja, nós nos sentamos nas cadeiras de madeira
da nave, e não em bancos (minha nova companhia desaprovava
essa inovação recente), e eu podia ver mais acima, através da base
da torre, a pequena e antiga capela-mor, na extremidade leste, que
data da época do próprio Ceolfrido. Na parede da direita, no lado
sul, há três minúsculas janelas originais do século VII, uma delas
agora guarnecida com fragmentos recuperados de vidro anglo-
saxão colorido, os mais antigos que se conhecem. Janelas dando
para o sul também eram típicas das igrejas irlandesas antigas, pois
essa era a direção da luz solar. A janela equivalente na parede norte
em Jarrow é moderna, projetada por John Piper e inaugurada em
1985 por Diana, princesa de Gales. Bem alto acima do arco da
capela-mor, inseridas na parede e visíveis da nave, há duas placas
tangentes de pedra com sua famosa inscrição contemporânea em
latim registrando a inauguração dessa igreja de São Paulo em 685,
em IX Kal. May (23 de abril) no 15o ano do reinado de Egfrido e no
quarto ano do fundador, abade Ceolfrido, que aqui é mencionado
pelo nome. Foi uma experiência emocionante sentar lá e orar
debaixo de palavras e nomes que devem ter sido vistos diariamente
naquela mesma igreja por Ceolfrido e Beda havia tanto tempo. Se
os monges reconheceriam a maior parte da cerimônia anglicana
dominical, já é outra questão. Grande parte tanto do coro como da
rala congregação era constituída de mulheres. Para a leitura do
Evangelho, no entanto, os dois sacerdotes, vestidos em verde e
branco, atravessaram a nave em procissão, carregando bem alto o
livro sagrado com suas elaboradas capas fechadas: pode-se
imaginar essa mesma cena com um dos manuscritos trazidos de
Roma, em 680.
A igreja de São Paulo em Jarrow, vista do lado norte: a torre e a
ala leste são sobreviventes do mosteiro anglo-saxão.

Há dois relatos do início do século VIII relacionados com a cópia


de mais manuscritos bíblicos sob o patrocínio de Ceolfrido. Tendo
em vista a raridade de quaisquer referências documentais à
produção anglo-saxã de livros, eles merecem ser examinados com
cuidado. O primeiro refere-se a uma biografia anônima de Ceolfrido,
decerto escrita por um de seus monges. Ele registra que Ceolfrido
enriqueceu muito o acervo da igreja em Jarrow e que aumentou
consideravelmente a coleção de livros que ele e Bento Biscop
tinham trazido de Roma. O autor explica que Ceolfrido encomendou
mais três Bíblias completas (ou pandectas — palavra que já
encontramos antes), das quais uma foi deixada em cada igreja dos
mosteiros gêmeos, de modo que quem quer que desejasse ler uma
passagem de qualquer um dos testamentos poderia fazê-lo sem
dificuldade. Não consta uma data certa para eles, exceto que
aconteceram durante o abadado de Ceolfrido, mas esses
manuscritos provavelmente tiveram início nas últimas décadas do
século VII, e o trabalho deve ter continuado no início do século VIII.
Beda, que sem dúvida estava muito familiarizado com a cópia
exibida na igreja de Jarrow, faz um ligeiro complemento desse relato
em sua Historia abbatum. Ele descreve como Ceolfrido trouxe uma
pandecta de uma “antiga” tradução da Bíblia de Roma e depois
ampliou esse benefício fazendo mais três cópias dela, mas com um
“novo” texto em vez do primeiro. Essa última observação é de
importância. É característico de Beda ter noticiado e registrado qual
tradução estava sendo usada. Os escribas sob a direção de
Ceolfrido modelavam suas cópias no formato da grande pandecta
que tinham recebido da Itália, mas agora eles substituíram o texto
para que fosse o da mais moderna Vulgata de Jerônimo. Esse fato
vai se tornar significativo na história.

Pedra na qual se registra a inauguração da igreja de Jarrow em


685, 15o ano do reinado de Egfrido e quarto do abadado de
Ceolfrido.

Uma nova Bíblia Vulgata para cada igreja, a de Wearmouth e a de


Jarrow, é um fato compreensível, conquanto impressionante, mas
uma terceira cópia? Quanto a isso só podemos especular. Talvez
houvesse planos que nunca se materializaram para a criação de
uma terceira casa nortumbriana, tão distinta e tão indivisível quanto
a Trindade (conceito do qual eles gostariam); ou talvez — e ele não
seria o único no que concerne a isso — Ceolfrido se perguntasse
secretamente se sua carreira não o levaria ainda mais longe, talvez
como arcebispo da Cantuária com a morte de Teodoro, ou mesmo
como papa, e talvez guardasse um volume de reserva para qualquer
promoção que lhe fosse oferecida em outro lugar. Mas o anônimo
Vita Ceolfridi e Beda nos contam o que aconteceu depois. Com a
avançada idade de 74 anos, Ceolfrido decidiu ir de novo a Roma e
levar consigo a terceira pandecta, a reserva, como um presente
para São Pedro, o príncipe dos apóstolos. (Era comum a prática
medieval de se referir a uma igreja com o nome de seu santo
padroeiro, como se ainda estivesse vivo: isso significava, é claro, a
corte papal.) A implicação é que esse anúncio veio como uma
surpresa para a comunidade de Wearmouth-Jarrow. Não sabemos
qual foi seu motivo, não mais do que sabia Beda. Será que Ceolfrido
ainda esperava, em seu íntimo, uma nomeação em Roma, caso em
que poderia precisar da Bíblia para facilitar as negociações? O papa
Constantino tinha morrido em 9 de abril de 715, e provavelmente a
decisão de viajar foi tomada por Ceolfrido mais ou menos quando a
notícia chegou à Inglaterra. Ou teria havido em 679 algum tácito
entendimento de que ele podia levar livros de Roma para a
Nortúmbria em troca de transcrições posteriores? Ambas as
hipóteses são possíveis. A Vita Ceolfridi registra as palavras exatas
de uma inscrição que foi inserida no início do tomo, dedicatória a
São Pedro da parte de Ceolfrido, abade dos ingleses dos mais
distantes confins da Terra (“extremis de finibus”). Portanto, em junho
de 716, como nos diz o relato, essa terceira pandecta,
convenientemente já com a dedicatória, foi levada declive abaixo, da
igreja de Jarrow para um navio no rio Don, para o Tyne e para o
mar, acompanhada de Ceolfrido e um séquito de monges. Foi a
primeira exportação documentada de uma obra de arte da
Inglaterra. Mas para nossa lástima, Ceolfrido morreu durante a
viagem, em Langres, França central, em setembro, e isso, por mais
de mil anos, representou o fim da história.
Há um famoso manuscrito antigo da Bíblia na Itália conhecido como
Codex Amiatinus. Era um antigo tesouro do mosteiro de San
Salvatore, no monte Amiata, no sul da Toscana, de onde tirou seu
nome. Está registrado na lista das relíquias da abadia, datada de
1036, que o descreve como sendo o Antigo e o Novo Testamento
“escritos pela mão do abençoado papa Gregório”. Essa atribuição a
são Gregório, o Grande (c. 540-604), não era desarrazoada, uma
vez que fora escrito em unciais italianizadas, muito parecidas com
as do Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho, e nunca se duvidou
de que tinha sido feito na Itália. Ele abre com uma dedicatória de
página inteira, na qual o livro é presenteado ao mosteiro do
Salvador (Salvator) por um certo Pedro, abade dos lombardos, “dos
mais distantes confins da Terra”. É um eco do texto de
Deuteronômio 28,49. Mesmo hoje em dia, os toscanos consideram
todos os lombardos pessoas de um reino alienígena que fica além
das mais afastadas fronteiras da civilização (e vice-versa), e essa
inscrição de redação estranha foi aceita com satisfação em San
Salvatore em seu valor nominal. O livro é o mais antigo manuscrito
completo sobrevivente da Vulgata e ainda é a principal referência
para o estabecimento do texto da Bíblia latina.
Constantin Tischendorf, que fez uma breve e não muito digna
aparição no capítulo anterior, editou o texto em latim do Novo
Testamento no Codex Amiatinus em 1854. Ele anunciou que tinha
havido pequenas alterações na dedicatória inserida, e que os nomes
de Pedro, abade dos lombardos, e do mosteiro ao qual era dedicado
pareciam ter sido escritos cobrindo rasuras. Trinta anos depois, o
epigrafista Giovanni Battista de Rossi (1822-94) por fim decifrou os
nomes que estavam por trás e revelou que o manuscrito tinha sido
originalmente dedicado a São Pedro por um chamado Ceolfrido,
“abade dos ingleses”. Logo depois, um professor de teologia em
Cambridge, F. J. A. Hort (1828-92), relembrou que essas palavras
batiam com a transcrição na Vita Ceolfridi e se constatou pela
primeira vez que devia ser na realidade a pandecta de Wearmouth-
Jarrow, da qual se perdera a pista desde que deixara a Nortúmbria,
em 716. Quando estourou a notícia, em fevereiro de 1887, ela
causou sensação, especialmente na Grã-Bretanha. Foi uma década
excitante de descobertas bíblicas no Oriente Próximo e em
Oxirrinco, no Egito, mas poucos anúncios tinham sido tão
inesperados quanto a revelação de que a mais antiga cópia
completa da Bíblia latina fora na verdade feita na Inglaterra. Em
1890, H. J. White, mais tarde deão da Igreja de Cristo, em Oxford,
disse, com um toque de exagero patriótico, que ela era “talvez o
mais belo livro no mundo”.
Quatro dias após minha visita a Jarrow, eu estava no sudoeste da
Úmbria, onde tinha marcado um encontro com Nicolas Barker, editor
de The Book Collector, e sua mulher, Joanna; eles tinham uma casa
de veraneio perto do Lago di Bolsena e foram me buscar com seu
carro na estação de Orvieto, da qual surgi piscando os olhos ao
clarão brilhante do verão. Nosso objetivo naquele dia era ver onde o
Codex Amiatinus tinha sido guardado. Nicolas dirigia, Joanna o
orientava do banco traseiro. Quando atravessamos para o canto sul
da Toscana, o monte Amiata surgiu a nossa frente, a maior numa
longa cadeia de montanhas vulcânicas que dominava o horizonte,
como um Ararat italiano. Seguimos a E35, antiga autoestrada A1
entre o norte e o sul, que parcialmente ainda se superpõe à Via
Francigena, rota medieval de peregrinos para Roma, e depois
dobramos à esquerda numa ramificação e começamos a subir uma
estrada de montanha muito sinuosa que segundo a sinalização
levava a San Salvatore. É uma paisagem surpreendentemente
desolada e agreste, quase bíblica, muito diferente da suave
domesticidade da Toscana setentrional.
O mosteiro não fica no cume, onde há uma estação de esqui, mas
num platô na encosta leste da montanha. Em torno dele há uma
cidade medieval, e o conjunto é conhecido como Abadia de San
Salvatore, pois se desenvolveu como um adjunto à vida do mosteiro,
o qual ele cerca e protege de tal modo que no início não
conseguimos encontrar o prédio da abadia. Pedimos orientação
numa praça da cidade. Um homem solícito e talvez sem muita coisa
para fazer naquele dia pulou para dentro de seu carro e nos instruiu
a segui-lo pelas pequenas ruas, até a Via Cavour e a Piazzale
Michelangelo, onde a antiga basílica se erguia diante de nós. Ele
gesticulou para ela orgulhosamente. É mesmo espetacular. Tem
duas torres medievais, uma alta e uma atarracada, de cada lado de
uma modesta porta de entrada romanesca. O interior da igreja é
muito alto, porém escuro, com pequenas janelas de arco
arredondado, não como as da capela-mor em Jarrow. Há algumas
construções modernas no interior, mas, na configuração atual, o
altar e um belo crucifixo de madeira do século XII ficam no topo de
uma escadaria central. De cada lado dessa escadaria há degraus
que descem para uma maravilhosa cripta com colunas, que dizem
datar do século VIII. No lado norte da igreja fica o claustro, que
presumivelmente abrigou em algum momento a biblioteca. Há um
pequeno museu do mosteiro acima da ala sul do claustro. Ficava
fechado até as quatro horas, mesmo depois de termos importunado
um padre adormecido e várias freiras, mas, após um agradável e
prazeroso almoço e um passeio pela cidade, fomos admitidos na
hora aprazada e vimos maravilhosos objetos e panos medievais e
muitas fotografias do famoso Codex Amiatinus.

O mosteiro de San Salvatore, no monte Amiata, sul da Toscana,


visto do oeste com a fonte e as castanheiras.

Do material em exibição no museu aprendemos que a história


documentada da abadia remonta a 742. Ela se incorporou à Ordem
Cisterciense em 1228. Consta que Carlos Magno esteve aqui em
800, em seu caminho em direção ao sul para sua coroação como
imperador em Roma. O papa Pio II — Enea Silvio Piccolomini, o
erudito humanista — morou aqui durante os meses de verão de
1462, conforme celebra um monumento sob as castanheiras no
exterior da igreja, com um texto em latim que Nicolas declamou para
nós em inglês. É bem possível que o precioso códex tenha sido
mostrado ao imperador e, com certeza, ao papa. Como o
manuscrito era (e ainda é) a referência primordial para o texto em
latim da Vulgata, ele assumiu grande importância durante a
Contrarreforma. Os assediados católicos do século XVI sentiam-se
ameaçados pelas traduções protestantes da Bíblia, que agora eram
feitas diretamente das línguas originais das Escrituras, enquanto
eles só tinham os textos em latim. O Codex Amiatinus, no entanto,
dava a isso uma resposta, ao que parecia, incontestável. Essa
“Bíblia de são Gregório” em latim, reputada como do século VI, era
substancialmente mais antiga do que qualquer manuscrito em
hebraico conhecido e na época só era igualada por um em grego
(no Vaticano). Era, portanto, uma grande peça de propaganda na
batalha pela precedência de texto. Em 1572, o capítulo geral dos
cistercienses mandou buscá-lo, para consulta; o mesmo fizeram os
conselheiros de Gregório XIII. O mosteiro recusou-se a emprestá-lo.
Mais tarde ele foi sumariamente requisitado pelo papa Sisto V, para
ser usado como principal fonte na preparação de uma nova edição
papal da Bíblia, e o mosteiro não teve escolha. O livro foi para Roma
em 12 de julho de 1587 e foi devolvido a San Salvatore em 19 de
janeiro de 1590. A Vulgata sistina, nele baseada, foi publicada em
1590 e depois revista como a monumental edição clementina de
1592, a resposta católica a Lutero; é publicada até hoje.
Assim como muitos mosteiros italianos atingidos pela política
secular de modernização do Sacro Império Romano no final do
século XVIII, a Abadia de San Salvatore foi extinta por completo em
junho de 1782. Durante vários anos, o Codex Amiatinus pode ter
ficado à disposição de qualquer um que fosse diligente o bastante
para roubá-lo. Sua existência foi informada em 1789 ao grão-duque
da Toscana, Pedro Leopoldo (1747-92, mais tarde imperador
Leopoldo II), como tendo estado “entre as sombras e sob o pó,
desconhecido como que perdido”. Ele ordenou que fosse levado do
monte Amiata para Florença, primeiro sob a custódia de um
seminário, e logo depois para a Biblioteca Laurenziana, onde está
agora como Cod. Amiat. 1, provavelmente o mais famoso
manuscrito da biblioteca.

Minha primeira solicitação para ver o próprio Codex Amiatinus foi


recusada, com esse profundo e abrangente suspiro de infinito pesar
que só os italianos souberam aprimorar: ele é frágil demais para ser
movido, me informaram, e precioso demais para ser manuseado. Na
Itália, no entanto, a palavra “não” não é necessariamente uma
negativa. É apenas o primeiro estágio de uma discussão. Estou em
dívida com Laura Nuvoloni, por seus conselhos, e Giovanna Rao,
por sua disposição para ouvir minha súplica.
Meio século atrás, o arqueólogo inglês Rupert Bruce-Mitford
descreveu a experiência de ver o Codex Amiatinus pela primeira
vez:
Já tendo se sentado num banco e esperado um tempo considerável, você
vê com espanto dois assistentes, e um terceiro para abrir as portas,
entrarem cambaleando sob o peso de sua carga. Meia dúzia de gordos
tomos têm de ser postos sobre a mesa, para suportar o peso da
encadernação, antes que se possam abrir as capas. É com tremor que você
se aventura a usar o farol de bicicleta com o qual planejou suplementar,
para um minucioso exame dos ornamentos, a luz inadequada da sala de
leitura octogonal de Michelangelo.

Como um quadro antiquado, de muito tempo atrás, essa imagem


parece difícil de conceber no mundo moderno. Na verdade, meu
próprio encontro com o Amiatinus não seria muito diferente.
A Biblioteca Laurenziana está entre as glórias arquitetônicas e
literárias de Florença, uma das mais extasiantes cidades do mundo.
Seu cerne é o acervo humanista a princípio reunido por Cosimo de’
Medici, “il Vecchio” (1389-1464), que foi suplementado sobretudo
com as aquisições de seu neto Lorenzo, “o Magnífico” (1449-92).
Após a morte de Lorenzo os livros foram saqueados, vendidos e
readquiridos pelos Medici, que agora viviam em Roma.
Posteriormente as coleções foram devolvidas a Florença por
Clemente VII (Giulio di Giuliano de’ Medici, 1478-1534), que
encomendou ao próprio Michelangelo o projeto de uma biblioteca
nobre para eles acima do claustro da basílica de San Lorenzo, a
igreja da família Medici desde 1419. Foi completada em 1571 por
Cosimo I de’ Medici (1519-74), grão-duque da Toscana e parente
não consanguíneo do papa, e tinha então cerca de 3 mil
manuscritos. Ela ainda mantinha algo do caráter de uma biblioteca
dinástica quando o grão-duque Pedro Leopoldo ordenou que o
Amiatinus fosse levado para lá do extremis finibus de seu ducado,
na década de 1780.

Antiga sala de leitura da Biblioteca Laurenziana, projetada por


Michelangelo, em cima dos claustros da basílica de San Lorenzo.

Chega-se à biblioteca por um portão no canto sudoeste da Piazza


di San Lorenzo, que fica em frente à inacabada fachada de tijolos
vermelhos da igreja. Acima da entrada flutuam as bandeiras italiana
e europeia, e estandartes de qualquer mostra que esteja então em
exibição. Ela leva, atravessando uma bilheteria, ao claustro
construído em 1462. Monumentos da Renascença alinham-se ao
longo das paredes. No pátio interno há um belo jardim. Estou certo
de que as árvores frutíferas são laranjeiras, mas meu livro-guia
garante que são romãzeiras. A escadaria para a biblioteca fica bem
em frente, junto à tumba de Paulo Giovio (1483-1552, notável
colecionador de manuscritos: fiquei contente de tê-la visto). Os
degraus levam, passando por afrescos desbotados, até o andar
superior, sobre a ala leste do claustro. A primeira porta é a entrada
do público para a escadaria que leva ao salão da biblioteca
construído por Michelangelo, ainda com seus atris de leitura
inclinados. A segunda porta, junto a um vaso de terracota, leva ao
escritório da biblioteca.
Duas mulheres conversavam. Eu disse que tinha um encontro
marcado para ver um manuscrito medieval. Elas fizeram uma
ligação telefônica. Apareceu um homem de jeans e perguntou se eu
falava italiano: respondi em inglês, depois francês e alemão —
“necnon etiam Latinam”, tentei, esperançoso —, mas ele deu de
ombros e me disse em italiano mesmo (eu nem mesmo tinha dito
quem era) que eu devia ter vindo ver a Bíblia Amiatina. Concordei,
aliviado. Ele me levou ao longo de uma série de salas com teto
baixo nas quais se alinhavam quadros emoldurados, passando
pelos armários dos funcionários e pelo que presumi serem entradas
de cofres de segurança para livros, à direita, bem embaixo do
interior de Michelangelo, lá em cima. No canto mais afastado do
claustro chegamos a uma pequena sala evidentemente usada para
fotografia, com tripés e câmeras, armários para arquivamento de
microfilmes e uma fotocopiadora. Apareceu outro homem. Eles
apontaram para um carrinho com um volumoso vulto debaixo de
uma cobertura. “Amiatina!”, anunciaram, e os dois, numa
reminiscência da experiência de Bruce-Mitford, com grande esforço,
ofegantes, depositaram o pacote na mesa alta do fotógrafo, e
trataram de sair. Não havia nada lá que permitisse que o livro fosse
aberto com segurança, e eu pedi alguma coisa para colocar sob a
capa quando eu a levantasse. Eles voltaram com os quatro volumes
da coleção da biblioteca das Filigranes, de Briquet, e não foi a
primeira vez que esses livros de referência com um século de idade
se mostraram lamentavelmente inadequados. Depois fui deixado
sozinho, sem nenhuma supervisão durante toda a minha visita,
exceto a de alguém que às vezes passava por lá para usar a
fotocopiadora.
Da mesma forma que Amiata é uma grande montanha, não há
como negar que o Codex Amiatinus é um colosso. Não tanto no
tamanho, pois muitos livros de corais medievais têm dimensões
maiores, mas ele tem uma espessura quase inimaginável. Cada
página tem uns cinquenta centímetros de altura, mas a lombada —
tente imaginar isso — tem cerca de trinta centímetros de espessura.
O livro vai afinando ligeiramente até a borda lateral. O manuscrito
está encadernado numa capa muito moderna de couro de bezerro
cor de bronze aplicado sobre madeira, com tiras de couro
penduradas na borda inferior, costuradas com fio amarelo e dotadas
de fechos modernos de latão que se encaixam em pinos de metal
afixados na borda superior da capa. Francamente, ele parece uma
grande e cara maleta de couro italiana. Levantei a capa da frente,
muito acima do nível da mesa, para que a pilha de volumes de
Briquet a suportasse. Há uma comprida tira para identificar o livro na
prateleira, estampada “Amiatino 1”, e, solta, uma folha recém-
fotocopiada do Ministero per i Beni e le Attività Culturali autorizando
um trabalho de conservação, inclusive uma total reencadernação
em 2001, designando como restauradores Sabina Magrini e Sergio
Giovannoni. Apesar de volumoso a ponto de ser impossível de
manusear, é bom saber que foi mantido como uma só pandecta, que
tanto impressionou Beda e o biógrafo de Ceolfrido, e que o
manuscrito não foi arbitrariamente dividido em volumes modernos
para a conveniência de seus bibliotecários, como foi o Livro de Kells
(capítulo 3) ou o Beato de Morgan (capítulo 5). Manchas de
ferrugem nas bordas externas das folhas de guarda sugerem que
em algum momento houve apliques de metal nas capas.
Por curiosidade, tentei erguer o volume. Consigo fazê-lo usando
os dois braços, mas não quando o manuscrito está aberto, pois é
simplesmente impossível sustentá-lo sem que ele se vergue ao
meio. Bruce-Mitford o pesou, são mais de 34 quilos, ou, com a
encadernação, acessórios, caixa para transporte, uma estimativa de
mais de quarenta quilos, comparáveis, conforme sua inesquecível
sugestão, ao peso de uma cadela dinamarquesa adulta. Um garoto
de doze para treze anos pesa a mesma coisa.
As primeiras oito folhas, que examinaremos com atenção daqui a
pouco, são ligeiramente menores que as do resto do livro e pródigas
em ornamentos. Há aquela preciosa inscrição dedicatória, embaixo
de um arco, no verso da primeira folha, com os nomes que
substituíram os anteriores bem aparentes numa tinta de um marrom
muito mais escuro, e nem de longe tão bem executados quanto a
escrita que não foi alterada. Na página adjacente está o soberbo e
famoso retrato de Esdras, a mais antiga pintura inglesa à qual se
pode atribuir qualquer data absoluta (isto é, não posterior a 716).
Em Florença abundam obras de arte que nos são familiares, mas
ainda se sente a excitação do reconhecimento quando são
encontradas no original. O que de pronto me impactou foi a
reluzente claridade do ouro em torno do halo de Esdras, ao fundo de
sua estante de livros, nos lados e na superfície superior de seu
banquinho, e nos retângulos que ficam nos cantos. Eu sabia, por
meio de reproduções, que o artista tinha usado ouro (o que
geralmente é mais característico nos manuscritos gregos antigos do
que nos latinos), mas não esperava tanta vividez e brilho. Talvez
essa disponibilidade do ouro não devesse ser surpreendente num
manuscrito inglês quase contemporâneo das deslumbrantes joias de
Sutton Hoo e do Tesouro de Staffordshire.
O imenso Codex Amiatinus, ainda num único volume,
reencadernado em couro de bezerro cor de bronze em 2001, com
fechos de latão e pinos de encaixe.
Inscrição dedicatória do Codex Amiatinus com os nomes alterados
e a ilustração adjacente mostrando Esdras escrevendo ao lado de
um armário com livros.
Cristo em Majestade, entre os quatro
evangelistas com seus símbolos. A ilustração
de página inteira precede o Novo Testamento
no Codex Amiatinus. O recorte curvo à
esquerda é da pele do pescoço do animal.
Em marcante contraste, a maior parte do restante do enorme
manuscrito, mais de 2 mil páginas, é formada por um texto austero,
mas elegante, em duas colunas, geralmente com ornamentação
insignificante. Mais uma vez, o que primeiro me impressionou foi o
espantoso frescor de seu estado. A maioria dos manuscritos antigos
traz a marca do uso de muitos diferentes períodos, leitores,
anotações em várias escritas, emendas e sinais de consultas e
referências durante séculos. Afora algumas correções
contemporâneas e marcações litúrgicas, provavelmente oriundas do
scriptorium original na Nortúmbria, o manuscrito quase não
apresenta sinais de uso. É como se tivesse sido embrulhado e
jamais aberto. Talvez tenha ocorrido exatamente isso, caso os
monges em San Salvatore o tenham considerado antes uma relíquia
sagrada de são Gregório do que um livro de uso prático. Os Salmos
agora estão numerados numa caligrafia pós-medieval e há uma
numeração discreta dos capítulos de acordo com o sistema
moderno, e para mim é fácil acreditar que isso date possivelmente
da época do exílio do manuscrito nos escritórios dos editores da
Vulgata, em Roma, entre 1587 e 1590. A triste verdade é que,
quando você empresta com relutância um bem precioso, é raro que
ele volte exatamente nas condições em que saiu.
O manuscrito é construído em sua maior parte de cadernos com
oito folhas cada um.** Em certo momento, os estudiosos do
Amiatinus especularam que seu exótico caderno preliminar poderia
ter sido transferido de outro manuscrito, talvez de origem italiana,
por ser tão diferente do resto do volume ou de qualquer coisa que
se conhecesse em qualquer outra Bíblia medieval existente. Duas
das folhas são tingidas de púrpura e uma de amarelo, típicas
técnicas clássicas. No entanto, hoje se aceita em todo o mundo que
essas páginas são componentes integrais, se bem que muito
incomuns, do volume, feitas pelos mesmos escribas e iluminadores
ingleses, usando os mesmos pigmentos da figura de Cristo em
Majestade, no Novo Testamento, fólio 796v, a qual é parte
inquestionável do livro, como demonstra seu alceamento.
A presença dessas páginas de abertura nos leva a um outro nível
de extraordinária coincidência com aquele relato segundo o qual
Bento Biscop e Ceolfrido obtiveram uma “imensurável quantidade de
livros” em sua visita à Itália em 679. Isso envolve uma biblioteca de
livros que tinham sido reunidos por Cassiodoro (c. 485-580), cônsul
na fase final do Império Romano, filósofo e autor prolífico, convertido
ao cristianismo e figura gigantesca na história da erudição bíblica.
Quando se retirou de cena, Cassiodoro estabeleceu uma espécie de
fundação de pesquisa monástica na Calábria, extremo sudeste da
Itália, chamada Vivarium — o nome é uma alusão aos viveiros de
peixes que havia na propriedade — à qual ele doou sua biblioteca
particular. Além disso, nas Institutiones, seu compêndio sobre
estudo teológico e secular, Cassiodoro não apenas explicou seu
método para subdivisão e interpretação da Bíblia como também
descreveu em detalhes como tinha incorporado esse seu sistema
bíblico único a alguns de seus próprios manuscritos. Os detalhes
apresentados correspondem com tamanha exatidão ao material
existente nessas primeiras folhas do Codex Amiatinus que parece
ser inescapável a explicação de que são cópias diretas, e de que de
algum modo naquela “imensurável quantidade de livros” obtidos em
Roma deviam estar incluídos alguns dos manuscritos do próprio
Cassiodoro, antes na Vivarium, agora de volta ao mercado. Como
acontece com muita frequência com bibliotecas pobremente
dotadas, a Vivarium não conseguiu sobreviver muito tempo após a
morte de seu fundador, e seus livros, com acerto, foram dispersos
ou vendidos. Se alguns (pelo menos) foram depois comprados por
Ceolfrido, eles estariam por sua vez disponíveis como exemplos
para os escribas de Wearmouth-Jarrow, na Nortúmbria. Beda, cujo
conhecimento dos estudos clássicos era assombrosamente vasto,
talvez tenha tido a sorte de ter acesso às aquisições feitas de uma
das mais qualificadas coleções privadas de livros do final do Império
Romano, e pode nem mesmo ter se dado conta de que os
manuscritos em Jarrow já tinham sido do grande Cassiodoro em
pessoa.
Em suas Institutiones, Cassiodoro afirma possuir uma enorme
pandecta com uma tradução latina da Bíblia, que ele chamou de seu
“Codex Grandior”, “o manuscrito maior”. Seu texto do Antigo
Testamento, ele diz, foi tirado da primeira revisão do grego por
Jerônimo, e não da versão posterior da Vulgata mais recentemente
traduzida do hebraico. Supõe-se que compreendia 380 folhas.
Considerando a extrema raridade, na época, de quaisquer versões
abrangentes da Bíblia em um só volume em latim, esse manuscrito
muito provavelmente não era outro senão aquela mesma pandecta
de uma “antiga” tradução que fora trazida da Itália por Ceolfrido.
Cassiodoro diz que tinha inserido em seu Codex Grandior um
diagrama com a planta do Templo de Jerusalém, conforme descrita
em Êxodo 26. Um esboço exatamente com esses detalhes aparece
numa página dupla entre as folhas de abertura do Codex Amiatinus
(fólios 6v-7r). Mostra o interior do templo, o próprio Tabernáculo. No
centro está o Santo dos Santos, com a Arca da Aliança. Mais
adiante Cassiodoro relata (tudo isso está no livro I, capítulo 14, das
Institutiones) que ele também incluíra no Codex Grandior diagramas
com diferentes maneiras de dividir o texto da Bíblia de acordo com
os santos Hilário, Jerônimo e Agostinho, respectivamente. É
exatamente isso que encontramos nos fólios 3r, 4r e 8r de
Amiatinus.
A mais famosa e estranha das páginas preliminares é o assim
chamado retrato de Esdras, já mencionado, agora posto no
frontispício. Ele mostra um homem aureolado em vestimentas
sacerdotais judaicas sentado num banquinho, encurvado, quase de
perfil, escrevendo num livro meio aberto em seu colo. Tem os pés
num pedestal baixo. Espalhados a sua volta estão vários
instrumentos da profissão de escriba — cálamos, compassos,
penas, potes de tinta e o que provavelmente é um prato com
pigmentos numa mesa em separado. Atrás dele há um armário
aberto com as portas apaineladas bem escancaradas para mostrar
cinco prateleiras inclinadas nas quais estão arrumados nove livros
encadernados em capas ornamentadas vermelho-escuras. Uma
estante muito semelhante com os quatro Evangelhos em suas
prateleiras é representada num mosaico de são Lourenço no
Mausoléu de Gala Placídia em Ravenna, que se pode datar da
segunda metade do século V, quase coincidindo com o tempo de
vida de Cassiodoro. Os detalhes da marcenaria nos móveis e os
ornamentos entalhados em torno do armário no Codex Amiatinus
são extraordinariamente delicados e sofisticados. Há uma hábil
tentativa de um desenho em perspectiva. O pote de tinta lança uma
sombra no chão, e vale a pena notar isso só pelo fato de com
frequência se dizer que não aparecem sombras na arte europeia até
o século XV. Mesmo como ilustração de um escriba desenhada na
Inglaterra no final do século VII, a figura já seria de grande interesse,
inclusive pelo fato de não haver escrivaninha e ele estar trabalhando
diretamente num livro em seu colo, como ainda fazem hoje em dia
os escribas na Etiópia. Enquanto eu rabiscava isso e pensava como
essa figura é diferente da maior parte das imagens que temos de
um scriptorium medieval, dei-me conta de que eu estava naquele
momento tomando minhas notas num caderno de capa dura em
meu colo, pois o Codex Amiatinus estava ocupando a mesa inteira à
minha frente, não deixando espaço para mais nada. Por um
momento, o escriba sentado e escrevendo diante de um armário
com livros poderia ter sido eu junto a armários com microfilmes e
equipamento reprográfico na Laurenziana.
Planta do Templo de Jerusalém no Codex Amiatinus, semelhante
ao descrito por Cassiodoro, que inseriu uma ilustração comparável
em seu Codex Grandior.
É uma cena estranha, aparentemente mostrando um autor que
rascunha um texto e não um escriba que copia um. As palavras em
seu livro são indicadas por rabiscos desunidos, que às vezes se
alega serem na verdade notas tironianas, tipo de antiga estenografia
medieval, mas decerto não passa da forma como o artista
representou um texto inespecífico. No topo da página, fora da
moldura da figura, há um dístico escrito em maiúsculas rústicas:
“Codicibus sacris hostili clade perustis/ Esdra deo fervens hoc
reparavit opus”, que significa (mais ou menos) “Tendo os Livros
Sagrados sido destruídos num desastre hostil, Esdras,
comprometido com Deus, restaurou esta obra”. Isso alude à
ocasião, no fim do exílio dos judeus na Babilônia por volta de 457
a.C., em que o sacerdote e escriba Esdras foi enviado de volta a
Jerusalém e descobriu que as Escrituras hebraicas tinham sido
esquecidas e perdidas, e sob orientação divina ele as reconstituiu
de memória. É essa legenda, bem como sua vestimenta sacerdotal
do Antigo Testamento, que identifica o homem apresentado como
Esdras.
Retratos preambulares de autor eram provavelmente uma
característica de textos gregos desde a Antiguidade clássica. Vimos
o retrato de Lucas no Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho
(capítulo 1). Esdras não era propriamente um autor. Sua
contribuição, se a considerarmos de modo literal, foi na preservação
de textos da primeira parte do Antigo Testamento — não, é claro,
toda a inteireza das Escrituras cristãs, a maior parte das quais data
de muito antes da época em que ele viveu. De muitas maneiras, um
frontispício mais adequado a uma pandecta de Vulgata inteira teria
sido uma imagem de São Jerônimo escrevendo, o que de fato
aparece, com frequência, na abertura de muitas Bíblias medievais
mais tardias. O estilo aqui é tão mediterrâneo que deve ter sido
copiado de um exemplar importado da Itália, o que também é,
presumivelmente, o caso do Codex Grandior, embora Cassiodoro
não mencione nele a presença de uma figura assim. Com
frequência se sugere que a pintura no Amiatinus seja na verdade
uma figura, que foi mal-entendida, do próprio Cassiodoro, que como
Jerônimo (e Esdras, e Ceolfrido) estava comprometido com a
preservação e a transmissão da Bíblia após um período de caos.
Cassiodoro viveu o saque a Roma pelos ostrogodos em 546, e seu
pequeno oásis cristão na Vivarium se dedicava a manter as
Escrituras em segurança durante as tormentas da barbárie e da
apostasia. Em suas Institutiones, Cassiodoro descreve não só seu
Codex Grandior como também o que ele chama de “novem
codices”, os nove volumes separados nos quais ele tinha dividido e
copiado o texto da Bíblia. As prateleiras no armário atrás de Esdras
na figura mostram exatamente isso: nove tomos bíblicos com títulos
na lombada. Nas reproduções da página esses nomes são quase
impossíveis de ler, mas posicionando o manuscrito original de modo
que reflita a luz, os nove títulos ficam visíveis com seu brilho contra
um campo opaco — o Octateuco, Reis e Crônicas com Jó, oito livros
de história, os Salmos, os livros de Salomão, os Profetas, os
Evangelhos, as Epístolas e (por fim) Atos e Apocalipse. No melhor
dos casos, apenas a primeira prateleira poderia ser atribuída a
Esdras na realidade histórica, mas todas as nove estavam na
biblioteca da Vivarium. Faria mais sentido se o modelo para essa
figura tivesse sido um retrato de Cassiodoro. É discutível que
Cassiodoro tivesse encomendado um retrato de si mesmo, mas
seus sucessores e bibliotecários póstumos poderiam facilmente ter
inserido um frontispício hagiográfico no Codex Grandior, o favorito
de seu falecido patrão.
São Mateus nos Evangelhos de Lindisfarne do
final do século VII ou início do VIII, copiado na
Nortúmbria do mesmo modelo que a imagem
de Esdras no Codex Amiatinus.

O uso dessa imagem do escriba associado a identidades


diferentes — Cassiodoro ou Esdras — é perpetuado numa notável
ocorrência de transferência pictórica mais acima na costa da
Nortúmbria no fim do século VII ou início do VIII: o retrato foi mais
uma vez copiado com exatidão, mas dessa vez seu tema muda para
ser o icônico frontispício do evangelista são Mateus nos famosos
Evangelhos de Lindisfarne, na Biblioteca Britânica. A composição do
“Esdras” anterior é reutilizada com precisão para ser a de um
escritor de Evangelho, na exata composição de sua postura, suas
mãos no livro aberto, suas sandálias e dois banquinhos, um para ele
mesmo e um para seus pés.
Do escriba, passemos para a escrita. O texto do Codex Amiatinus
está escrito em unciais, a quintessencial “romana scriptura”,
disposta, como nos Evangelhos de Santo Agostinho trazidos de
Roma, em colunas duplas com linhas longas e curtas, adequadas a
uma fácil leitura em voz alta, “per cola et commata”. A uncial é
totalmente diferente das maiúsculas e minúsculas nativas dos livros
irlandeses, conhecidas por historiadores de manuscritos como de
estilo “insular”, o qual compreende todo o âmbito celta das Ilhas
Britânicas. O contraste com as unciais mediterrâneas é mais uma
evidência gráfica de que as comunidades de Wearmouth e Jarrow
estavam se distanciando da Irlanda e conscientemente imitando as
práticas de escrita romanas. Deve haver a possibilidade de que
Bento Biscop e Ceolfrido tenham trazido consigo da Itália escribas
treinados, para que ensinassem a escrita uncial aos ingleses. No
fólio 86v do Codex Amiatinus no material preambular ao Levítico, há
várias palavras canhestramente escritas em grego a afirmar que
fora um tal de lorde Servandos quem fizera o livro. Este não é nem
de longe um nome anglo-saxão, e a sentença deve ter sido copiada
incompreensivelmente do exemplar por alguém que sabia latim, mas
não grego. Embora os escribas modelassem com atenção seu
trabalho segundo protótipos italianos, eles mesmos eram sem
dúvida ingleses. São traídos por marcas distintivamente insulares de
abreviações e outras peculiaridades que só se encontram em
manuscritos em uncial que sabemos com certeza terem sido
copiados na Nortúmbria.
Tem-se observado com frequência que só a partir do estilo da
escrita já se pode deduzir total diferença no aspecto cultural entre
Wearmouth-Jarrow, com modelo em Roma, e Lindisfarne, fundação
da ilha irlandesa cerca de oitenta quilômetros ao norte, onde os
manuscritos eram de hábito copiados na contrastante caligrafia
insular. Na realidade, segundo um provável senso comum, essas
comunidades se influenciavam reciprocamente. Com toda a sua
escrita romana, o Codex Amiatinus apresenta traços de uma prática
distintamente insular nas palavras de abertura de alguns textos,
usando o que se conhece como “diminuendo”, começando com uma
letra grande e diminuindo o tamanho letra a letra. Exemplo disso é a
abertura do Gênesis. As primeiras palavras são “In principio” (fólio
11r). O “I” é grande, com sete vezes a altura de uma letra do texto
normal, o “n” não é tão grande, e o “p” é ainda menor, à medida que
a escala se reduz até chegar ao tamanho da escrita normal. Essa é
uma característica de manuscritos irlandeses, e há exemplos
extremos no Livro de Kells (capítulo 3). Os escribas do Codex
Amiatinus devem ter visto isso em Lindisfarne. Em compensação,
como vimos, os monges de Lindisfarne derivaram seu padrão para
são Mateus do Codex Grandior em Jarrow, e pequenas unciais
foram usadas em seu encantador “Evangelho de São Cuteberto” do
início do século VIII, hoje na Biblioteca Britânica, tão delicado e leve
quanto Amiatinus é vasto e volumoso, e que aparentemente foi
enterrado numa data remota junto com o corpo de são Cuteberto,
sepultado em seu santuário em 698.
Uma medida da ordem de grandeza do scriptorium e da rigidez de
sua organização nos advém do fato de que parece que pelo menos
sete e talvez até mesmo nove escribas trabalharam no Codex
Amiatinus. Algumas caligrafias são maiores que outras, e isso é
muito aparente nas quebras entre os livros bíblicos. Sua incidência
está claramente repartida em distintos grupos de texto. Como o
demonstra o volume alceado, vários cadernos são formados por um
número incomum de folhas, todos eles correspondendo aos finais
dos livros: xlviii (9 folhas, fim de Crônicas, fólio 378v), lxviii (5 folhas,
fim de Isaías, fólio 535v), e xc (5 folhas, fim de Tobias, fólio 708v).
Cada um deles representa também uma mudança de escriba. Um
caderno com número ímpar de folhas só parece ter sido necessário
quando já se tinha começado a escrever o texto seguinte. Desse
modo, muitos escribas trabalhavam simultaneamente.
Para suprir o pergaminho de manuscritos tão grandes e tão
extensos quanto pandectas inteiras deve ter sido necessário dispor
da pele de uma quantidade enorme de animais. Da pele de cada um
se preparava não mais do que um simples par de folhas. Para as
1030 folhas do Codex Amiatinus deve ter sido utilizada a pele de
515 bezerros. Para todas as três pandectas encomendadas por
Ceolfrido, deve-se multiplicar isso por três. Às vezes se afirma, sem
evidências, que a concessão de terras a Wearmouth-Jarrow em 692
visava prover pasto suficiente a um rebanho que fora aumentado
para a feitura de Bíblias. Na realidade, a criação de alguns milhares
de animais não deve ter sido anormal para uma comunidade rural
grande e bem organizada durante os trinta anos do abadado de
Ceolfrido, especialmente dado que o gado fornecia muitos produtos
necessários além de sua pele. Isso incluía a carne para os jantares
diários de muitos monges ativos e também os chifres, cola, ossos e
até fertilizantes (providos por seu sangue) para a agricultura.
Embora a qualidade dos pergaminhos seja em geral boa e eles
sejam agradavelmente suaves ao toque, há uma certa sensação de
feitura doméstica que não vai se encontrar, digamos, no manuscrito
de Visconti do século XV, capítulo 11, ou nas Horas de Spinola, no
capítulo 12. Algumas páginas do Codex Amiatinus têm manchas,
outras incluem defeitos originais e orifícios que foram contornados
pelos escribas; às vezes o pergaminho é tão fino que se torna quase
ilegível devido à transparência (como no fólio 810); algumas páginas
são mais curtas que outras ou lhes faltam os cantos, caso em que
os escribas tiveram de se arranjar com peles ligeiramente menores
(como nos fólios 613, 735 e outros). Muitos leigos em manuscritos
podem duvidar do que estou prestes a dizer (e talvez alguns
paleógrafos também), mas se não soubesse que o Codex Amiatinus
é inglês, eu poderia suspeitar disso só pela textura e pelo cheiro das
páginas. Não disponho de um vocabulário que defina isso, mas há
uma curiosa tepidez de couro no cheiro de um pergaminho inglês,
diferente do aroma mais agudo e fresco das peles italianas. Pode
ser simplesmente o resultado de os escribas ingleses usarem
diferentes tipos de animal — como um bezerro em vez de um
cordeiro — ou animais criados em diferentes condições ambientais.
Raças de animais domésticos medievais devem ter diferido em
função da região muito mais do que diferem hoje. Esse é um campo
em que estudos de DNA podem provocar uma transformação nos
conhecimentos sobre manuscritos nas futuras gerações.
Abertura do Gênesis no Codex Amiatinus,
mostrando a prática caracteristicamente
insular com as letras de abertura diminuindo
de tamanho nas primeiras palavras do texto.
Considerando a absoluta raridade de quaisquer registros e
manuscritos dos séculos VII e VIII, este capítulo já se beneficiou de
algumas coincidências realmente extraordinárias na questão da
sobrevivência. Tendo em vista a insignificante taxa de sobrevivência
de manuscritos de todo aquele período, seria quase um desafio
acreditar que de fato se descobrisse depois que um desses volumes
relatados por Beda ainda existia. Isso seria um raro golpe de sorte,
mesmo para um manuscrito do século XV. O que leva o casual ao
nível de miraculoso é o fato de se ter provado que o único relato
detalhado conhecido de qualquer biblioteca privada em qualquer
lugar da Europa, cem anos antes e a mais de 2400 quilômetros de
distância da Nortúmbria, supriu os exemplos documentados para a
feitura daquele livro sobrevivente. No entanto, estamos prestes a
levar essa coincidência de sobrevivência a um nível ainda mais
elevado de implausibilidade.
Isso começou no início de setembro de 1908, quando Cuthbert
Turner (1860-1930), de Oxford e historiador da Igreja, estava na
Biblioteca da Catedral de Durham fazendo uma investigação sobre
os primeiros manuscritos da Bíblia. O cônego bibliotecário, William
Greenwell (1820-1918), arqueólogo e colecionador, convidou-o a
jantar em sua casa. No vestíbulo de Greenwell, Turner viu,
emoldurada, uma página de um grande manuscrito, escrita em
unciais, e observou em meio à conversa que ela se parecia com
uma página que faltava no famoso Codex Amiatinus. Isso parece ter
provocado uma reação inesperada de seu anfitrião. Greenwell
asseverou que era de uma das outras duas Bíblias encomendadas
por Ceolfrido, e, antes que mais investigações pudessem ser feitas,
e certamente antes de Turner publicá-las, ele de imediato
presenteou a folha ao Museu Britânico, onde foi recebida no início
de 1909. É geralmente conhecida pelo agradável nome arbóreo —
como se fosse coisa de Robin Hood — de “a Folha de Greenwell”.
Contém o texto em latim de III Reis 9,29-12,18. Em retrospecto,
Greenwell veio com uma história inverificável, cujos detalhes
variavam, de que tinha adquirido a folha por volta de 1890 numa
livraria em Newcastle, ou, em outra rememoração, numa “loja de
curiosidades antigas”. Como Newcastle fica a menos de dez
quilômetros de Jarrow, essa proveniência soava plausível,
conquanto seja difícil acreditar que Greenwell, um antiquário nada
modesto (em nenhum dos sentidos da palavra), pudesse ter feito tão
assombroso achado e esquecido de mencioná-lo a alguém durante
quase vinte anos.

William Greenwell, colecionador de antiguidades britânicas e


bibliotecário da Catedral de Durham, juntamente com a folha de
manuscrito da Bíblia do final do século VII, a qual Cuthbert Turner
achou emoldurada no vestíbulo da casa de Greenwell, em
setembro de 1908.

A provável fonte foi revelada em 1911, quando W. H. Stevenson


(1858-1924), membro e bibliotecário do St John’s College, Oxford,
publicou para a Comissão de Manuscritos Históricos seu catálogo
de monumentos de lorde Middleton em Wollaton Hall, Nottingham,
uma das grandes casas inglesas construídas na década de 1580.
Stevenson relatou ter achado nos arquivos da família Willoughby,
depois nobilitada como barões de Middleton, mais dez folhas e três
minúsculos fragmentos do mesmo manuscrito em uncial, usado em
encadernações do século XVI. Tudo isso compreendia mais trechos
de III-IV Reis. A essa altura não havia dúvida de que esses gêmeos
do Amiatinus de fato sobreviveram, numa coincidência
assombrosamente afortunada, de uma ou outra das pandectas que
Ceolfrido atribuiu às igrejas de Wearmouth ou Jarrow. Em 1938, os
fragmentos Willoughby foram vendidos também ao Museu Britânico
por mil libras. Mais uma folha, do Eclesiastes, foi achada por
Nicholas Pickwoad recentemente, em 1982, entre os documentos
imobiliários da família Bankes, em Kingston Lacy, uma propriedade
do National Trust. Esse fragmento está hoje depositado por tempo
indeterminado na Biblioteca Britânica. Meu motorista em nossa ida
ao monte Amiata, Nicolas Barker, naquela época chefe de
conservação da biblioteca, participou de sua identificação,
passando-a a sua colega no departamento de manuscritos, Janet
Backhouse. Ela notou que este também tinha conexão com
Wolatton Hall, por ter sido usado como papel de embrulho para
escrituras senhoriais de uma propriedade em Dorset que fora
comprada de Sir Francis Willoughby de Wollaton em novembro de
1585. Acreditem em mim, eu mesmo vasculhei com minúcia as
prateleiras dos arquivos Willoughby em Nottingham, na vã
esperança de encontrar mais fragmentos. Tudo que posso relatar ter
visto lá são as várias transcrições e escrituras nas quais Stevenson
encontrou seus fragmentos, algumas das quais ainda ostentavam as
marcas recebidas, como imagens num espelho das unciais inglesas
do final do século VII. Se me pedissem um palpite sincero, eu
suspeitaria que a folha de Greenwell também era proveniente do
arquivo de lorde Middleton, e que talvez Stevenson tenha lhe
enviado essas descobertas para que o assessorasse na
identificação, com uma sugestão, imprópria, de que, não
oficialmente, poderia ficar com uma como agradecimento por sua
ajuda.
É muito provável que todos esses fragmentos sejam resíduos de
uma Bíblia que em algum momento foi de propriedade da Catedral
de Worcester. Evidência disso é que os arquivos de Willoughby
também expeliram fragmentos semelhantes de um grande
manuscrito de dimensões quase idênticas, contendo transcrições do
século XI das escrituras de Worcester. Sabemos que Offa, rei da
Mércia de 757 a 796, tem a fama de ter dado uma grande Bíblia a
Worcester, e que Wulfstan, bispo de Worcester de 1062 a 1095, deu
ordem para que as escrituras da catedral fossem copiadas na “Bíblia
da sacra igreja”. No século XII alegava-se que a Bíblia de Offa havia
sido redigida em Roma, o que provavelmente significava que sua
escrita era uncial. Como a filha do rei Offa se casou com o rei da
Nortúmbria em 792, existe a possibilidade de que uma das Bíblias
de Ceolfrido tenha chegado a ele durante permutas diplomáticas
entre os reinos no fim do século VIII, talvez quando Jarrow foi
saqueada pelos vikings em 794.
Levei minha coleção de fotos das folhas de Greenwell e de
Willoughby para Florença, para compará-las com o próprio Codex
Amiatinus. Claro que isso já tinha sido feito antes, primeiro por
Cuthbert Turner em 1909, depois de seu jantar com o cônego
Greenwell, e especialmente por Richard Marsden, para seu Text of
the Old Testament in Anglo-Saxon England (1995), que tem sido
para mim importante fonte para este capítulo. No entanto, há
sempre uma satisfação no ato de comparar as pandectas palavra
por palavra.
Na maior parte, os textos dos dois manuscritos são absolutamente
idênticos, como era de imaginar (e esperar) como cópias feitas do
mesmo modelo no mesmo scriptorium, ou uma da outra. Por vezes
há pequenas variantes verbais, como “oblectavit” (Eclesiastes
35,25) na folha de Kingston Lacy, e “oblectabit” no Amiatinus, o que
não implica nenhuma diferença no sentido do texto. Há dois
aspectos em que diferem significativamente. As folhas de
Willoughby na Biblioteca Britânica não têm uma quebra entre o fim
de III Reis e a abertura de IV Reis, exceto por um minúsculo
monograma chi-rho na margem e uma letra “P” fracionariamente
aumentada em “Praevaricatus” (na numeração de uma Bíblia
moderna, 2 Reis 1,1). No Codex Amiatinus, a quebra entre os dois
livros é marcada de modo totalmente inequívoco. III Reis termina no
fólio 303v com a palavra “FINIT” e depois disso dez linhas são
deixadas em branco. IV Reis abre na página seguinte com uma linha
em tinta vermelha e uma grande inicial endentada com uma altura
de três linhas.
Em relação ao texto, não haveria necessidade de uma quebra
arbitrária entre o terceiro e o quarto livro de Reis, pois a narrativa
continua de modo inconsútil e as duas partes formam um único e
ininterrupto texto na Bíblia em hebraico. A divisão em dois livros
separados, no entanto, acontece na versão grega do Antigo
Testamento, conhecida como Septuaginta. Aparentemente é de
supor que o modelo disponível em Wearmouth-Jarrow também não
tinha uma quebra, pois é improvável que um escriba a deixasse
passar. Na época em que Amiatinus estava sendo copiado, logo
depois disso, foi tomada uma decisão editorial de alinhar a versão
latina com a tradição grega e separar os textos, uma adaptação tão
conveniente que todas as Bíblias em latim desde Amiatinus fizeram
o mesmo, e todas as Bíblias modernas ainda fazem. Há uma
possível explicação segundo a qual o Codex Amiatinus foi copiado
logo depois da cópia do volume com as folhas de Willoughby, e que
as decisões sobre política textual ainda estavam em vigor no
scriptorium de Wearmouth-Jarrow durante a produção das
pandectas.
A outra diferença ocorre no fólio 11v das folhas de Willoughby.
Para demonstrar isso tenho de citar o texto em latim (segue-se uma
tradução no parágrafo seguinte). Eis aqui as linhas 6-18 na primeira
coluna do fragmento.
Et constituerunt sibi regem Iosiam filium eius pro eo. Reliqua autem
sermonum Amon quae fecit, nonne haec scripta sunt in libro sermonum
dierum regum Iuda, Sepelieruntque eum in sepulchro suo in horto Aza, et
regnavit Iosias filius eius pro eo. Octo annorum erat Iosias cum regnare
coepisset et triginta et uno anno regnavit in Hierusalem.

Isso é IV Reis 21,24-22,1 (2 Reis 21,24-22,1 na Bíblia moderna). O


surpreendente é que as palavras aqui em itálico, presentes na folha
de Willoughby, são totalmente omitidas na passagem
correspondente do Codex Amiatinus (fólio 325v). A explicação
simples é que se trata de um erro comum aos escribas, conhecido
como homeoteleuton, no qual o escriba copiou as palavras “eius pro
eo” na primeira linha, fez uma pausa, tornou a olhar para seu
exemplar e seu olho pulou para a segunda ocorrência de “eius pro
eo”, algumas linhas mais adiante, e continuou a copiar de “Octo
annorum” em diante. É um tipo de erro fácil de cometer. Dele
resultou que se perderam duas linhas da Bíblia, e pelo fato (e
autoridade) de sua ausência em Amiatinus elas foram apagadas nas
revisões católicas durante a Contrarreforma e ainda não aparecem
em minhas próprias cópias de trabalho da Vulgata (Madri, 1965),
baseada na edição clementina de 1592. Isso por si só é interessante
e remonta a um momento em Wearmouth-Jarrow.
Final do texto de III Reis e abertura de IV Reis no Codex
Amiatinus, mostrando claramente a interrupção entre os dois
textos. A curvatura embaixo é, de novo, da pele do animal.
Final de III Reis e abertura de IV Reis nas folhas de Middleton,
com os dois textos sem interrupção entre eles, como uma
narrativa contínua.

Entretanto, tudo que diz respeito aos versos perdidos parece


suspeito. Eles dizem: “O resto da história de Amon, tudo o que fez,
não está escrito nos Anais dos reis de Judá? Sepultaram-no no seu
túmulo, no Jardim de Oza, e seu filho Josias reinou em seu lugar”.
Conquanto essas palavras sejam hoje consideradas autenticamente
bíblicas, elas soam em todos os aspectos como uma interpolação
espúria, por serem quase que palavra por palavra uma repetição de
III Reis 15,7-8, que igualmente começa com “Reliqua autem
sermonum…” e termina com “… filius eius pro eo”. Um editor de
texto com alguma experiência crítica suspeitaria de que tenham sido
reinseridas por acaso como uma glosa explicativa, suscitada pela
repetição verbal de “eius pro eo”, numa espécie de homeoteleuton
invertido. Em outras palavras, não sabemos se os versos — que
devem estar presentes no modelo — foram omitidos no Amiatinus
por um salto acidental da vista ou por uma intervenção intencional.
Se for esse o caso (e não há mais nada em Amiatinus que seja
descuidado), teremos de supor que havia alguém em Wearmouth-
Jarrow com segurança e aptidão crítica bastantes para apagar
palavras encontradas nas Escrituras no interesse da plausibilidade
textual e com conhecimento suficiente para corrigir a fusão dos
textos em latim de III e IV Reis e conformá-los ao grego. Essa
pessoa só poderia ser aquele erudito e comentarista bíblico
excepcional que realmente viveu no monastério em Jarrow em todo
o período no qual as pandectas estavam sendo preparadas. O
próprio Beda. É bem provável que tenha sido Beda quem a princípio
convenceu Ceolfrido de que a nova pandecta deveria seguir a nova
Vulgata de Jerônimo, mas sua fonte de referência para
melhoramentos deve ter sido o Codex Grandior, com seu texto
arcaico tirado do grego.
Outra variante interessante do Codex Amiatinus ocorre em
Gênesis 8,7. É a passagem na qual Noé envia pássaros para fora
da arca a fim de verificar se as inundações baixaram. Em traduções
modernas da Bíblia, ele liberta um corvo que sai voando e retorna,
várias vezes, até as águas terem secado. Esse é o texto original
hebraico. No entanto, o texto grego acrescenta uma negativa, o que
faz o corvo voar e não voltar até as águas terem secado. As duas
variantes fazem sentido. Beda discute essas alternativas com
alguma extensão em seu comentário do Gênesis, e ele
pessoalmente opta pela versão encontrada no grego. O editor que
fez a divisão entre o terceiro e o quarto livro de Reis no Codex
Amiatinus fez a mesma escolha, aceitando o grego. Na passagem
sobre o corvo, o escriba do Amiatinus escreveu a versão latina
aceita, “qui egrediebatur et revertebatur…”, e então uma mão
contemporânea mas distintamente não caligráfica a alterou,
inserindo a palavrinha “non”, em unciais, antes de “revertebatur”,
para conformá-la à grega. Isso ocorre no fólio 15r do manuscrito,
dezessete linhas acima do pé da segunda coluna. Seria uma
palavra autógrafa de Beda? Isso, certamente, é muito possível. É
difícil expressar esse súbito tremor de excitação, aqui na sala da
fotocopiadora na Biblioteca Laurenziana, ao se dar conta de que se
pode estar tocando uma página que foi efetivamente lida e corrigida
na Nortúmbria no fim do século VII pelo próprio Beda.

Finalmente, voltemos à Abadia de San Salvatore no monte Amiata.


Não sabemos como ou quando o Codex Amiatinus chegou lá. A
inscrição dedicatória adulterada, de um suposto “Pedro, abade dos
lombardos”, poderia representar uma doação factual, mas também
pode ser uma invenção espúria para ocultar o fato embaraçoso de
que o manuscrito estava num lugar diferente da destinação
pretendida por Ceolfrido. O mosteiro, como vimos antes, dá para a
Via Francigena, rota de peregrinação do norte da Itália para Roma,
e com certeza era um lugar de parada para viajantes. Na verdade,
essa antiga estrada segue uma linha mais longa, que atravessa a
Borgonha via Lausanne, pelo passo do Gran San Bernardo, para
entrar na Itália acima de Aosta, e descer cruzando Pavia, Lucca,
Siena, Viterbo chegando enfim a Roma. Qualquer um, em teoria até
mesmo Carlos Magno, poderia ter recolhido o manuscrito em
qualquer lugar dessa rota após a morte de Ceolfrido em Langres, e
poderia tê-lo deixado com os monges de San Salvatore na jornada
para o sul, ou no retorno, de novo em direção ao norte.
Gênesis 8,7 no Codex Amiatinus, com a palavra “non”
acrescentada na terceira linha, para que o texto ficasse em
conformidade com o grego, como proposto por Beda.

Já mencionei o museu da abadia. Num almoço em Londres alguns


meses antes, Nicolas Barker tinha me falado de um item lá exposto
que inflamou minha imaginação de tal modo que planejamos
originalmente nossa visita, juntos, ao monte Amiata para poder vê-
lo. Ele foi encontrado em San Salvatore na década de 1960.
Conforme um relato, foi descoberto oculto num buraco atrás do
grande altar durante os trabalhos de reconfiguração do santuário,
autorizado pelo Concílio Vaticano II. Isso foi publicado pela primeira
vez em 1974. O objeto é uma pequenina e primorosa caixa portátil,
um relicário insular, no formato de uma pequena casa com telhado
de duas águas, incrustada com um mosaico de retângulos
vermelho-escuros e guarnecida com ornamentos de metal
entrelaçados, inclusive florões no formato de cabeça de pássaros,
muito semelhantes à ornamentação em manuscritos do Livro de
Durrow e dos Evangelhos de Lindisfarne, ambos provavelmente do
final do século VII. Seria de imaginar que o relicário fosse irlandês,
exceto pelo fato de incorporar granadas (prática testemunhada na
Inglaterra anglo-saxã, mas ao que tudo indica não propriamente na
Irlanda) e conter fragmentos de vidro colorido, exemplos dos quais,
como vimos na abertura deste capítulo, sobrevivem apenas em
Jarrow. A caixa tem alças de metal para que seja pendurada em
cordões, possibilitando carregá-la. É perfeitamente crível atribuir-se
a ela uma data contemporânea a Ceolfrido.
Caixa-relicário insular, ou crismal, do século VII ou VIII, encontrada
na década de 1960, escondida na Abadia de San Salvatore, no
monte Amiata.

Repetindo, um mosteiro numa estrada de peregrinação pode


receber em qualquer momento presentes exóticos de viajantes de
passagem e de visitantes agradecidos. Não existe absolutamente
nenhuma conexão conhecida entre o relicário e o Codex Amiatinus,
exceto a notável coincidência de que San Salvatore pudesse ter tido
duas grandes obras de arte de mesma data e origem, tão longe da
Nortúmbria, e uma explicação simples seria de que as duas
chegaram juntas. Nicolas e eu nos delongamos bastante quanto a
esse tema, à medida que instigávamos um ao outro em nossas
especulações. É algo fácil de imaginar. A comitiva de Ceolfrido devia
sem dúvida levar consigo altares portáteis, cálices e relíquias de
Wearmouth-Jarrow, para manter uma vida religiosa durante sua
jornada. Seguindo a Vita Ceolfridi, alguns dos monges voltaram para
casa após a morte de Ceolfrido, em setembro de 716. Outros
continuaram sua jornada para Roma, ainda levando a Bíblia. A rota
para o sul deve ter passado pela Via Francigena. A Itália
setentrional é cultivada, e é fácil viajar por seus campos. Quando se
alcança a região mais selvagem entre a Toscana e a Úmbria, ela de
repente fica perigosa, erma e muito montanhosa. Devia haver
bandidos e lobos, e até ursos. Pode-se imaginar a delegação sem
seu líder fazendo uma pausa, talvez à espera de uma época mais
segura, mas de algum modo nunca deixando totalmente de se
locomover. Poderiam já existir alguns estabelecimentos religiosos
nas encostas do monte Amiata. Os monges ingleses estariam
morrendo um a um. Em 742, quando o mosteiro de San Salvatore é
mencionado pela primeira vez, os membros mais jovens do séquito
de Ceolfrido não estariam muito acima de seus quarenta e tantos
anos, mas eram velhos e poucos o bastante para com júbilo optar
por uma vida mais sedentária, com sua Bíblia e seu relicário. Isso
não é mais do que pura e imaginativa conjectura, mas preencheria a
lacuna existente nessa assombrosa jornada de um manuscrito de
1300 anos de Weatmouth ou Jarrow até a sala da fotocopiadora em
Florença.

* Sotaque da região do Tyne. (N. T.)


** O livro é alceado assim: i8 [um bifólio + 4 + 2 soltas], ii-xxi8, xxii4+1 [o fólio 173 é uma
folha solta], xxiii-xxiv8, xxv4, xxvi-xlvii8, xlviii8+1 [o fólio 378 é uma folha solta], xlix-lxvii8,
lxviii4+1 [o fólio 535 é uma folha solta], lxix-lxxxix8, xc4+1 [o fólio 708 é uma folha solta],
xci-cxviii8, cxix-cxx8+1 [os fólios 941 e 950 são folhas soltas], cxxi-cxxx8. O manuscrito tem
os registros numéricos de seus cadernos em numerais romanos, geralmente no canto
interior interno das últimas folhas dos cadernos, às vezes precedidos da letra “Q”
(quaternion), às vezes não. Uma complicação é o fato de o primeiro caderno não ser
numerado (fólios 1-8, todos eles com as páginas preliminares), e o de que a marcação de
caderno “XXIV” feita pelo escriba é descuidadamente repetida, aparecendo no fim do que é
na realidade o 25o caderno (fólio 193v) e também no fim do 26o (fólio 201v). O que o
escriba teria chamado de caderno CXXVIII, o último no manuscrito, é portanto, na
realidade, o 130o caderno.
3

O Livro de Kells
final do século VIII
Dublin, Trinity College, MS 58

Segundo se noticiou, o Livro de Kells foi roubado duas vezes. A


segunda vez foi em 1874. O relato, no Birmingham Daily Post and
Journal de 5 de novembro, é característico de um grande número de
histórias semelhantes publicadas na imprensa da Grã-Bretanha e da
Irlanda naquela semana. “O Trinity College, em Dublin, está
desesperado. Um de seus principais tesouros está desaparecido —
a saber, o Livro de Kells, escrito por são COLUMBKIL em 475 —, o
livro mais antigo no mundo, e o espécime mais perfeito de arte
irlandesa, com as mais ricas iluminuras, e avaliado em 12 mil
libras…” Essa avaliação é interessante: no ano anterior, uma Bíblia
de Gutenberg em velino tinha sido vendida, num leilão da biblioteca
da família Perkins, em Hanworth Park, perto de Londres, por 3400
libras, de longe o maior preço até então pago por qualquer livro, e
um segundo exemplar em papel havia chegado a 2690 libras. Ao
estimar o desaparecido Livro de Kells como quase quatro vezes
mais valioso que o livro tido como o mais caro do mundo, o College
provavelmente não estava errado. Foi relatado que a perda se
constatara quando o reitor do Trinity College quis mostrar o
manuscrito a algumas damas visitantes, e descobriu que tinha
desaparecido. Ninguém se lembrou de quando fora visto pela última
vez, o bibliotecário estava ausente e não se pôde consultá-lo. Havia
rumores e sussurros por todos os lados, como só pode acontecer
em universidades. O Birmingham Daily Post deleitou-se em
mergulhar numa nova camada do mistério: “Um recibo pelo volume
assinado por um tal de sr. BOND, supostamente do Museu Britânico,
chegou às mãos do reitor”. Em uma semana, o manuscrito foi
localizado. O bibliotecário do Trinity College, J. A. Malet, o tinha
levado pessoalmente ao Museu Britânico, em Londres, para se
aconselhar quanto a uma reencadernação… O suspeito “Mr. Bond”,
cujo nome fora impresso em maiúsculas na história contada pelo
jornal, era Sir Edward Augustus Bond (1815-98), guardião de
manuscritos desde 1867 e principal bibliotecário do museu desde
1873. Bond tinha dissuadido Malet de interferir na encadernação,
por causa da suprema importância do livro, mas perguntou se
poderia ter o livro sob sua guarda por alguns dias, para inspecioná-
lo. A essa altura o College tinha enviado seu advogado, sr. Moore, a
Londres para pedir a devolução, e o manuscrito, numa indignada
pressa, foi trazido de volta à Irlanda. Era uma época inebriante para
o nacionalismo irlandês. No ano de 1874 foi fundada a Home Rule
League [Liga de Autogoverno]. A Lei de Gladstone para um governo
irlandês foi derrotada por estreita margem em 1886. Em 1888, o
comitê executivo para a Exposição Irlandesa no Olympia, Londres,
carregada de cunho político, solicitou a inclusão do Livro de Kells…
“Acredita-se que se possa chegar a um acordo satisfatório quanto a
isso”, informava discretamente o jornal de Dublin Freeman’s Journal
and Daily Commercial Advertiser em 25 de abril daquele ano. Foi
amplamente anunciado em Londres que o manuscrito seria exibido.
Era uma avaliação que não levava em conta a política. A Junta do
Trinity College recusou em definitivo: “eles não consideram que seja
coerente com seu dever submeter um tesouro nacional tão único e
valioso” à exposição na Inglaterra.
A vez anterior em que o Livro de Kells havia sido roubado foi
pouco mais de 850 anos antes, em 1007. Dispomos de apenas uma
fonte para confirmar esse incidente, e alguns de seus detalhes são
ambíguos. O relato se encontra nos assim chamados Anais de
Ulster, uma crônica sempre atualizada, parcialmente em irlandês
antigo, que ia desde os primeiros tempos ao início do século XVI. O
manuscrito original também está no Trinity College, em Dublin. Um
trecho na narrativa do ano de 1007 foi apresentado mais ou menos
assim:
O grande Evangelho de Colum Cille foi sacrilegamente roubado à noite da
sacristia oeste da igreja de Cennanas. Era o objeto mais precioso do mundo
ocidental, por causa de sua capa com formas humanas. Esse Evangelho foi
recuperado após dois meses e vinte dias, despojado de seu ouro e com um
torrão de grama sobre ele.

“Colum Cille” é são Columba (no sentido literal, “Columba da


Igreja”). “Cennanas” é o antigo nome da cidade de Kells, ou Kenlis,
no condado de Meath, cerca de 65 quilômetros a noroeste de
Dublin. O lugar a oeste em que o livro era guardado — “airdom
iartharach” no original — pode significar a extremidade oeste da
igreja, ou pode ter sido algum tipo de tesouro em separado, a oeste
da igreja. O motivo declarado para o roubo foi a encadernação muito
ornamentada, ou o estojo correspondente, pois os livros de
Evangelhos irlandeses eram guardados, em geral, em sacrários
portáteis. A palavra original usada nos Anais é “comdaigh”, que em
outros contextos se escreve, de hábito, “cumdach”. Evidentemente,
o cumdach em Kells era feito de ouro e ornamentado com imagens
antropomórficas, talvez representando os evangelistas. Os ladrões
só estavam interessados no valor do metal precioso, e talvez
tenham sido vikings. Há registros, que sobrevivem em outros
lugares, de outros manuscritos roubados naquela época, inclusive
um saltério com uma encadernação ornada com gemas saqueado
em 1012 da Abadia de Santo Huberto em Luxemburgo, e o Codex
Aureus, roubado por vikings na Cantuária, a sudeste da Inglaterra, e
logo resgatado, certamente sem sua encadernação (veja antes, na
p. 57). Os ladrões do Livro de Kells, supõe-se, o despiram da
encadernação e jogaram fora ou enterraram o texto, que para eles
não tinha valor. Os dois meses e vinte noites de seu purgatório
constituem exatamente o dobro dos quarenta dias e quarenta noites
de Cristo no deserto, como relatado nos Evangelhos, ou duas vezes
a duração da Quaresma. Terminaram com sepultamento e
ressurreição.
Esse “objeto mais precioso do mundo ocidental” é agora um
monumento nacional do mais alto nível na Irlanda. É possivelmente
o livro medieval mais famoso — e talvez o mais carregado de
emoção — de qualquer tipo. É o símbolo icônico da cultura
irlandesa. Está incluído no Registro da Memória do Mundo, da
Unesco. Um desenho que evocava o Livro de Kells era usado na
antiga moeda de um pence da Irlanda (1971 a 2000) e numa moeda
comemorativa de vinte euros em 2012. Uma de suas páginas iniciais
era mostrada no verso da antiga cédula de cinco libras irlandesa.
Foi tema de ilustração de selos postais do país. Provavelmente todo
bar irlandês em todo o mundo tem algum reflexo de sua escrita na
decoração. É reproduzido em milhões de panos de prato de linho
irlandês, sem falar nos patrióticos ou rememorativos cachecóis,
gravatas, broches, garrafas de cerveja, abotoaduras e jogos
americanos. O original está exposto num sacrário especial, pouco
iluminado, hoje chamado de O Tesouro, na extremidade leste da
Biblioteca do Trinity College em Dublin, e mais de 520 mil visitantes
fazem fila para vê-lo, todos os anos, comprando ingressos coloridos
e numerados para a exposição do Livro de Kells. Mais de 10
milhões de pessoas passaram pelas vitrines nas primeiras duas
décadas que se seguiram à abertura da exibição atual, em 1992. As
filas diárias de visitantes à espera de testemunhar a existência de
um mero manuscrito em latim são quase inacreditáveis. Há placas
de sinalização para o “Livro de Kells” por toda a Dublin. O novo
ponto de bonde em frente aos portões do Trinity College tem o
nome do manuscrito. Nenhum outro manuscrito medieval tem um
nome de uso tão doméstico, mesmo que as pessoas nem sempre
saibam ao certo do que se trata. Com frequência me perguntam se
o “Livro de Kells” tem algo a ver com um livro de horas, e se tem, o
que é um kell?
O Livro de Kells, cujo nome simplesmente provém da cidade que
uma vez o possuiu (e da qual foi roubado em 1007), é um
manuscrito dos quatro Evangelhos — Mateus, Marcos, Lucas e
João — na tradução para o latim de Jerônimo, com variações, como
veremos, e suplementados, antes do início do Evangelhos de
Mateus, com alguns textos preambulares tradicionais. Nisso,
embora em muito poucas outras coisas, ele se parece com o Livro
dos Evangelhos de Santo Agostinho (capítulo 1), e provavelmente
data do fim do século VIII.

Cheguei a Dublin para vê-lo bem cedo num voo matinal de Londres,
pois é quase como vir dos subúrbios, pegando no aeroporto o
ônibus que faz a conexão com o centro-sul da cidade. Era um dia
frio de outono, com nuvens altas num céu do mais pálido azul.
Entra-se no Trinity College passando por um arco num edifício
clássico chamado Regent House, para o que é praticamente uma
cidade em miniatura, com grandes casas e praças elegantes. Para
chegar ao Livro de Kells segue-se a sinalização indo em frente e
depois à direita, contornando o lado extremo sul do longo prédio do
século XVIII, o da biblioteca. Um pouco constrangido por minha
própria presunção, passei por fileiras de turistas, já fazendo fila ao
longo do calçamento de pedrinhas no lado de fora para entrar na
exposição do Tesouro. Entra-se no prédio e se sai dele pela livraria,
pois é um negócio muito sério, como os santuários de peregrinação
da Idade Média. Não há um balcão de informações visível, afora os
atribulados caixas. Vislumbrei um homem de uniforme e perguntei
aonde teria de ir para um encontro marcado com Bernard Meehan, o
guardião dos manuscritos. “Oh, eu o levarei lá”, ele disse, com
aquela irresistível cadência irlandesa. Suspeito agora de que ele
efetivamente tenha sido enviado para me esperar. Ele me conduziu
adiante, subindo pela escadaria principal, assinalada com um “Saída
apenas”, direto para o centro do Salão Longo — como é chamado
— da Biblioteca do Trinity College. Essa é a magnífica catedral para
livros em madeira polida, construída pelo arquiteto Thomas Burgh
em 1712-32, a princípio para 100 mil volumes, dobrando esse
número em meados do século XIX com um piso superior formado
por múltiplas galerias em mezanino, com livros em suas
encadernações de couro e ouro indo do chão ao firmamento. É de
perder o fôlego. Até o meu cicerone fez uma pausa, para permitir
que o efeito me penetrasse adequadamente. “O senhor já esteve
aqui antes, suponho?”, ele perguntou. Confirmei que estivera. Se a
Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges tivesse mesmo existido,
deveria ser algo como o Salão Longo do Trinity College.
Atravessamos todo o comprimento da sala, passando por bustos de
mármore e vitrines de exposição atrás de barreiras de corda verde,
até uma íngreme escada de madeira, como a de um veleiro, no
canto mais afastado à esquerda. “Cuidado com a cabeça”, disse o
homem cujo nome, eu soube depois, era Brian. Ele me levou
escada acima até um balcão, onde dois restauradores trabalhavam
a uma mesa, e daí à sala de leitura de livros raros que ficava na
extremidade oeste, assim como a sacristia de Kells. Havia várias
pessoas às mesas, algumas delas (não pude deixar de notar)
usando luvas obrigatórias. Dobramos à direita e depois de novo à
esquerda para o espaço aberto que constitui os escritórios da
biblioteca, onde surgiu Bernard Meehan, muito afável, para me dar
as boas-vindas. Ele tem uma barba grisalha muito bem aparada,
parece um pouco um amigável cão schnauzer de óculos. Todos
gostam dele. É o tipo de pessoa que fica se dirigindo a você
tratando-o pelo primeiro nome.
O Salão Longo na Biblioteca do Trinity
College, Dublin, construído no início do século
XVIII e ampliado no século XIX.
O Livro de Kells é tão precioso e tão imediatamente reconhecível
que não seria conveniente, explicou Bernard, permitir que viesse à
sala de leitura. Nenhum outro manuscrito é comparável, nem
mesmo o Très Riches Heures, do duque de Berry, em Chantilly, na
França. O Livro de Kells corre o risco de ser assediado, como um
astro famoso ou um chefe de Estado. As disposições de segurança
em torno dele são tão complexas quanto a proteção ao presidente
realizada pelos serviços secretos de uma grande nação. Quando leu
um rascunho inicial deste capítulo, fazendo observações que foram
muito úteis, Bernard Meehan pediu-me que não descrevesse com
muita exatidão o lugar em que examinamos os volumes do precioso
manuscrito. Não tenho intenção de fazer mistério, mas é claro que
levei em conta sua precaução. Só devo dizer, simplesmente, que
nós três fomos para um recinto seguro na biblioteca, onde não havia
possibilidade de uma interrupção acidental. Mais cedo, naquela
mesma manhã, Bernard providenciara a vinda, sobre rodas, de um
grande e queixoso umidificador, para que o ambiente, com
calefação central, chegasse ao nível ótimo de segurança para o
manuscrito. Claramente estava funcionando, pois a pequena janela
já se embaçava com a umidade. Levaram-me a uma mesa circular
com tampo verde, guarnecida de antemão com almofadas de
espuma, um termômetro digital e luvas brancas. “Estamos prontos”,
ele acenou para Brian, e os dois saíram juntos para pegar o primeiro
volume. Não posso negar que senti certa excitação, sentado ali
sozinho, esperando que voltassem. Já fazia mais de cinquenta anos
que eu manuseara meu primeiro e modesto manuscrito medieval,
com treze anos de idade, na Biblioteca Pública de Dunedin, na Nova
Zelândia. Eu me perguntei o que teria pensado então se soubesse
que um dia estaria em Dublin, prestes a conhecer o livro mais
famoso do mundo.
Malgrado a recomendação do Museu Britânico, em 1874, de que
não se interferisse em sua encadernação, de todo modo
inadequada, o Livro de Kells foi de fato reencadernado em 1953 por
Roger Powell (1886-1990), o mais famoso artesão encadernador
britânico de sua geração. Powell dividiu o Livro de Kells em quatro
volumes, em parte para que os diferentes Evangelhos pudessem ser
exibidos simultaneamente, e de modo que os displays pudessem
rodar e partes do manuscrito pudessem ser retiradas da exposição,
antes que ele retornasse ao olhar do público. Eu já tinha combinado
com Bernard Meehan que me contentaria em ver o livro que não
estivesse exposto no dia em que eu estivesse lá, não importava qual
dos dois fosse. Quando Bernard e Brian voltaram, estavam
carregando uma caixa fina com alça de couro, como uma pequena
maleta de madeira. Parecia ser muito pequena para um Livro de
Kells, mas foi só por um momento, antes de eu perceber que na
verdade ela deveria conter o primeiro dos volumes separados. As
caixas foram feitas por Edward Barnsley (1900-87), um marceneiro,
e aparentemente todas as quatro se empilhavam, uma sobre a
outra, como prateleiras de algo que se parecia com uma arca de
gavetas de uma casa de bonecas, que é o camdach do manuscrito
no Trinity College. As caixas parecem bandejas de madeira, cada
uma com uma tampa muito bem ajustada, afixada por uma longa
mola de cobre, que se solta torcendo. A pressão exercida pela
tensão da mola mantém os volumes firmemente fechados,
prescindindo de presilhas.
Bernard Meehan tirou esse primeiro volume e o pôs sobre a mesa
à minha frente. Ficamos olhando por um momento. Fechado, ele
mede cerca de 35 por 27 centímetros. A encadernação de 1953 já
parece estranhamente antiquada, num estilo de Arts and Crafts
semelhante ao que foi usado nos Evangelhos de Santo Agostinho,
que foi reencadernado quase na mesma época. As capas do Livro
de Kells são feitas de placas de carvalho cortadas em quarto,*
atualmente bem manuseadas no folhear dos livros. A lombada é
envolta em couro branco curtido com alume, preso às bordas por
parafusos de aço, por dentro e por fora. Folhas que precisaram de
reparo foram costuradas com um fio branco muito visível, seguindo
o princípio de que a costura, conquanto óbvia, é, na encadernação,
uma arte honesta e tradicional. As guardas e os reparos essenciais
usaram pergaminho branco e limpo, sem tentar disfarçar. Suspeito
que um encadernador hoje em dia procuraria usar técnicas menos
invasivas. O maior problema com que deparou Roger Powell foi que
umas 140 folhas estavam soltas ou precisavam com urgência de um
reforço em suas dobras internas. Para isso, essas folhas tinham de
ser presas a novos pedaços de pergaminho moderno. Isso, por sua
vez, significava que as beiradas internas dessas folhas tinham agora
espessura duplicada, o dobro da espessura do livro em sua beirada
externa. A solução usual de um encadernador seria descascar o
pergaminho nas dobras até ficar excepcionalmente fino, para
compensar o acréscimo de material. A Junta do Trinity College
negou o procedimento de modo categórico, insistindo em que nada
(nem mesmo sujeira) devia ser removido das páginas. Powell e a
Junta quase brigaram quanto a essa questão. Ele disse que ela
estava “errada, beirando o ridículo”. Acho que hoje devemos louvar
a precaução da Junta. No fim, a solução de Powell foi inserir
aglomerados de novas páginas de pergaminho entre os cadernos,
descascados em suas bordas internas até elas ficarem muito finas e
de espessura robusta nas outras partes. O resultado restabeleceu
os volumes no formato normal, mas o preencheu de um modo não
natural e arruinou por completo o prazer que o bibliófilo tem em virar
as páginas, pois está sendo sempre interrompido pelo choque de
deparar com folhas totalmente novas. É uma grande pena. Isso não
é perceptível a quem esteja vendo o manuscrito num mostruário de
vidro, ou estudando-o num fac-símile, ou em imagens digitalizadas
on-line.
Estojos de madeira projetados por Roger
Powell para os quatro volumes do Livro de
Kells, que mantêm os Evangelhos bem
apertados sob a pressão de uma mola de
cobre.

Bernard tinha previamente salientado mais algumas regras da


casa, esperando que elas fossem aceitáveis. Fui convidado a
passar quanto tempo quisesse com cada um dos dois volumes
disponíveis que me seriam trazidos, um de cada vez, mas seria ele
mesmo quem viraria as páginas para mim. Tinha reservado o dia
inteiro para isso, e teria o maior prazer em me deixar examinar cada
página, o que fez com paciência infinita, às vezes fazendo
observações sobre o que estávamos vendo, às vezes se recolhendo
discretamente enquanto eu rabiscava anotações. Ele virava zeloso
as páginas com a pontinha dos dedos, em geral pelo topo e pelo pé
ao mesmo tempo.
A primeira impressão absoluta que se tem do manuscrito original é
que ele é muito liso, às vezes até mesmo translúcido, e que as
páginas são completamente planas, como as de um livro impresso,
e não franzidas e onduladas, como as de muitos grandes
manuscritos. O achatamento foi feito por Roger Powell, com a
intenção de que a compacidade das páginas impedisse a
penetração de poeira. Isso foi conseguido umedecendo as folhas
com muito cuidado e depois suspendendo-as firmemente por todos
os lados por fileiras de clipes, enquanto as páginas secavam sob
tensão. As beiradas das folhas já tinham sido aparadas com
precisão e nitidez, um legado de George Mullen, entusiástico
perfeccionista, que reencadernara o manuscrito em meados da
década de 1820. Para o bem ou para o mal, o Livro de Kells é hoje
muito bem-acabado e arrumado, como nunca poderia ter sido na
Idade Média.
A primeira página do livro é um tanto decepcionante.
Acintosamente costurado numa moldura de puro pergaminho
moderno há um retângulo vertical marrom surrado e com beiradas
irregulares (deve essa forma ao fato de ter sido aparado pela
margem do desenho no verso daquela folha, como pude ver quando
sinalizei a Bernard que virasse a página). Evidentemente fora um
fragmento amassado, agora alisado por Powell e restabelecido em
sua condição original. É dividido em duas colunas dentro de
molduras ornamentadas. O texto inicia numa caligrafia grande e
arredondada: “Sadoc iustificatus, Sidon venatio, Thomas abysus…”.
É a última coluna de uma lista perdida que foi, ao que parece, o
texto de abertura do manuscrito. Consiste num catálogo resumido
de nomes próprios hebraicos que ocorrem nos Evangelhos de
Mateus e de Lucas, em ordem alfabética (você pode ficar surpreso
ao descobrir que já se usava ordem alfabética no século VIII),
originalmente compilado por São Jerônimo, apresentando para cada
nome um sinônimo em latim. Jerônimo ansiava pela inclusão dos
significados em hebraico dos nomes próprios e topônimos presentes
na Bíblia, que se perdiam para leitores que só sabiam latim e
poderiam assim perder também alguma camada simultânea de
interpretações do texto sagrado. É estranho que isso tenha sido
considerado útil num manuscrito com um grande caráter de
ostentação como o Livro de Kells, que com certeza não foi
concebido para a consulta de estudiosos da exegese. O primeiro
nome aqui é “Sadoc”, cujo sentido, explica-se, é “justificado”. Até
onde me consta, o sacerdote Sadoc não é mencionado em nenhum
lugar nos Evangelhos (é um sacerdote dos livros dos Reis e
Crônicas e é citado pela última vez em Ezequiel). O seguinte é
nome de lugar, “Sidon”, interpretado como “caça”: a cidade de Sidon
aparece de fato nos Evangelhos, junto com Tiro (Mateus 11,21-22
etc.). O apóstolo Tomé, o terceiro nome, “um poço” (ou “mar
profundo”), aparece, é claro, muitas vezes, e é mencionado pela
primeira vez em Mateus 10,3. A lista termina com Zaqueu, o coletor
de impostos de Lucas 19. Seu nome, como o de Sadoc, é explicado
como significando, em hebraico, “justificado” ou “justificável”.
Primeira página sobrevivente do Livro de Kells,
que abre no meio de uma lista de nomes
hebraicos constantes dos Evangelhos.
Os quadros canônicos do Livro de Kells,
dispostos numa arquitetura clássica, listam
números de capítulos para passagens
análogas nos Evangelhos. A costura de Roger
Powell é claramente visível à direita.
A segunda coluna dessa primeira página fragmentária
sobrevivente nos leva ao primeiro encontro com figuras no Livro de
Kells, mas estão tão escuras e desgastadas que são difíceis de
discernir. Aparecem de lado, como que para serem vistas da direita.
São as primeiras de muitas pequenas imagens no manuscrito que
parecem estar voltadas para a direção errada. Podem-se imaginar
multidões em volta do livro, no século VIII, olhando para ele de todos
os lados, ou talvez se queira que visionemos Deus fazendo isso. As
figuras desbotadas aqui são símbolos dos quatro evangelistas,
também encontrados nos Evangelhos de Santo Agostinho. Aqui
estão novamente — um anjo com um livro para Mateus, um leão
alado com uma língua comprida para Marcos, o que deve ser um boi
para Lucas (embora seja difícil discernir detalhes), uma águia para
João. Essas são as imagens mais comuns do manuscrito. Aqui elas
são sem dúvida um frontispício parcial para as tábuas canônicas
que se seguem.
As tábuas canônicas mostram as concordâncias entre passagens
análogas nas quatro narrativas dos Evangelhos, e foram concebidas
por Eusébio de Cesareia (c. 260-c. 340). Devem ter estado também
no manuscrito de Santo Agostinho, antes de ele perder as páginas
da frente. Em muitos manuscritos antigos gregos e latinos as tábuas
estão entre colunas que se juntam no topo em graciosos arcos
arredondados, e se estendem numa página dupla, lembrando a
arcada de um claustro. Um leitor terá de correr seu dedo pela
página para combinar números de capítulos horizontalmente, entre
as colunas. Na maioria dos manuscritos, a comparação com a
arquitetura clássica é impactante. Olhar as tábuas canônicas num
Livro de Evangelhos grego ou mesmo carolíngio é como estar nos
pátios iluminados pelo sol, ou nos corredores pintados de um
palácio bizantino, ou de um mosteiro mediterrâneo. No entanto, na
ilha que fica além da fronteira mais extrema a oeste da Europa,
provavelmente ninguém, no final do século VIII, jamais tinha visto
quaisquer colunatas com arcos ascendentes arredondados. As
igrejas lá, na maioria, eram sem dúvida estruturas mais baixas e
escuras, com dintéis retos cruzando pequenas janelas e portas. No
Livro de Kells a ancestralidade arquitetônica original dessas tábuas
canônicas ficou quase perdida e afogada em ornamentos
irlandeses. Os pilares parecem ser insubstanciais, arrastando-se
com criaturas que se entrelaçam e se contorcem. Os pés das
colunas não são mais estruturais. Os arcos acima do topo estão
abarrotados (de fato estão) de ornamentos e novamente com os
rostos e os símbolos dos evangelistas, uma inovação que parece
ser única em manuscritos insulares ou irlandeses. Nas duas últimas
páginas das tábuas canônicas no Livro de Kells, o desenhista
desistiu, ou talvez estivesse copiando de um exemplar defeituoso e
teve de improvisar. Ele simplesmente pautou as últimas páginas da
tábua com uma grade retangular, em vez de linhas. Os pilares e
arcos desapareceram. Lembra um pouco o desenho de um tabuleiro
de jogos moderno. (Se a loja no Trinity College ler isto e decidir
comercializá-lo, que por favor se lembre de quem deu a ideia
primeiro.)
Documentos na antiga língua irlandesa
acrescentados a páginas originalmente
deixadas em branco no Livro de Kells; incluem
um documento com o nome de Ua Breslén,
sacerdote de Kells.
Ao longo da margem inferior da última dessas páginas e em todas
as folhas que se seguem, que uma vez já estiveram em branco, há
transcrições de vários contratos escritos na língua irlandesa
medieval. Há ocorrências disso em outros lugares do manuscrito
também. Todos se referem a terras em torno do mosteiro de Kells,
entre o final do século XI e 1161, e provavelmente foram inseridos
onde a sacralidade de seu contexto lhes outorgaria perpetuidade e
um adequado respeito ao que tinha sido transacionado com tal
solenidade. O acréscimo de escrituras é uma característica comum
nos primeiros livros de Evangelhos, em todas as partes da Europa
(vimos alguns nos Evangelhos de Santo Agostinho). Estes aqui
registram negócios como aquele no qual Ua Breslén, sacerdote de
Kells, e seus parentes compraram por dezoito onças de prata um
terreno conhecido como Muine Choscáin, com seu prado e sua
turfeira (com direito a colher a turfa), que se estendia para o oeste
até o lamaçal de Donahgmore, com o testemunho de muitíssimas
pessoas (tente imaginá-las todas reunidas ruidosamente em torno
do manuscrito), inclusive Oengus, neto de Rancán, o chefe absoluto
de Síl Tuathail; Ferdomnach Ua Clucáin (m. 1114), sucessor de
Colum Cille, com toda a comunidade de Colum Cille; Ua Dúnán (m.
1117), clérigo sênior do norte da Irlanda e de Domnall, filho de Flann
Ua Maelsechnaill, rei de Tara (1807-94); e Ossín, filho de Echtgal,
guardião dos portões de Kells. Esse exemplo específico está escrito
ao pé do fólio 6v. Os nomes têm algo de mágico e evocam um
mundo muito antigo. Também fornecem a localização exata de onde
o livro deve ter estado naquela época. Essas inscrições são
efetivamente a única evidência de que esse manuscrito é de fato o
grande Evangelho que pertenceu a Kells no século XI, conforme
descrito no relato de seu roubo da igreja de lá em 1007, quase cem
anos antes.
A Virgem e o Menino, tida como a mais antiga
ilustração sobre o tema na arte europeia, são
mostrados entre anjos.
Bernard virou de novo a página, e lá estava a primeira ilustração
de página inteira do Livro de Kells. Fica no fólio 7v. Mostra a Virgem
e o Menino na presença de quatro anjos. É uma das imagens mais
reconhecíveis na arte irlandesa. Um detalhe dela foi reproduzido
numa série de selos do correio comemorativos do Natal de 1972,
projetados por Patrick Scott. Aparentemente é a mais antiga
representação da Virgem e o Menino na arte europeia. Em
consequência do que vou dizer agora, acho que terei revogada para
sempre minha licença de visitar a República da Irlanda, mas a figura
é abominável. A cabeça de Maria é grande demais para seu corpo,
e ela tem imensos olhos arregalados delineados em vermelho, um
nariz comprido que parece escorrer para baixo e uma boca muito
pequena. Seus seios caídos são visíveis através da túnica púrpura,
e suas pequenas pernas estão viradas para os lados como num
desenho de criança. O bebê, visto de perfil, é grotesco e detestável,
com cabelos revoltos avermelhados que mais parecem algas, nariz
e queixo protuberantes voltados para cima, e uma atormentadora
linha vermelha do nariz até a orelha, talvez um prenúncio da barba
do Cristo adulto. A criança tem dois pés esquerdos. Não sou
qualificado para dizer se os quatro anjos de aparência desagradável
são realísticos, mas anatomicamente são com certeza muito
improváveis, debaixo de suas pesadas vestimentas. Contudo, a
beleza, como valor intrínseco, é um conceito de difícil apreensão na
história da arte, sobretudo considerando uma defasagem de 1200
anos. Não há como duvidar da aptidão técnica do artista, tendo em
vista a extrema delicadeza do ornamento na borda, mesmo nessa
página. Talvez as figuras centrais derivem de alguma composição
antiga para a qual houvesse uma veneração especial, ou uma
presunção de autenticidade. A estranheza das figuras talvez venha
de uma tradição herdada, e não simplesmente de um desenho ruim.
Diz-se que o próprio São Lucas pintou um retrato da Virgem Maria,
e muitos ícones gregos eram (e ainda são) tidos como
descendentes daquela figura. Existem manuscritos antigos siríacos
e coptas com representações similarmente disformes da Virgem e
do Menino. A incontestável jornada de tal iconografia para as ilhas
ocidentais, ainda tão inexplicável quanto a migração das aves, está
além de nossa compreensão. Algo muito parecido com a parte
superior dessa composição ocorre na haste da grande cruz de
pedra de Santo Oran, do século VIII, em Iona, recentemente
restaurada e de novo exposta no museu da ilha escocesa.
A imagem no manuscrito deve aludir à Natividade de Cristo, pois é
adjacente à abertura do sumário do capítulo com o Evangelho de
Mateus, que começa com a Natividade. A página contém linhas com
iniciais ornamentais tão densas que são quase ilegíveis, e alguma
mão do século XVII, prestativamente, transcreveu as palavras de
abertura na margem inferior, para facilitar sua compreensão,
“Nativitas xpisti in bethlehem…”, “O nascimento de Cristo em
Belém”, o acontecimento que de fato abre o texto do Evangelho.
Quando a página é virada de novo, encontramos enfim as linhas
com a grande e graciosa caligrafia maiúscula [majuscule] insular
pela qual o Livro de Kells é, com justiça, tão famoso. (“Maiúscula”,
neste contexto, às vezes chamada “meio-uncial”, é a escrita grande,
floreada, predominantemente horizontal, característica das ilhas da
Grã-Bretanha e da Irlanda.) No entanto, os textos do Evangelho
mesmo ainda não têm início por mais 21 folhas. A quantidade aqui
de material preambular não bíblico é extraordinária. É como se
vários manuscritos antigos começassem com diferentes textos de
ajuda de uso e todos tivessem sido reunidos, e cada um deles, em
toda a sua abrangência, introduzido aqui, mesmo não tendo mais o
valor prático que tinha para os primeiros proprietários daqueles
livros. De modo semelhante a “todos os pratos e complementos”
com os quais se costuma compor os almoços de Natal, a cada ano
mais elaborados, o cada vez maior aparato acrescentado aos livros
de Evangelhos foi sem dúvida herdado e incluído em cada
manuscrito que era feito, mesmo que sua necessidade tenha se
perdido na tradição. As tábuas canônicas e os sumários de capítulos
são mais ou menos inúteis, uma vez que, de qualquer maneira, não
há divisão em capítulos nos textos dos Evangelhos no Livro de
Kells.
Abertura do prefácio ao Evangelho de Mateus, “Matheus ex
iudaeis sicut primus ponitur…”, “Mateus [um] dos judeus, quando
primeiramente colocado…”.
Início do Evangelho de Mateus, com um retrato de página inteira
do evangelista diante das primeiras palavras do texto, “Liber
generationis…”, “Livro da origem…”.
Os textos excedentes continuam com o tradicional prefácio de
Mateus, com uma grande inicial quadrada, com um homem perplexo
espiando de detrás dela, como um banhista flagrado se trocando
atrás de uma toalha na praia; os sumários do capítulo e o prefácio
de Marcos; os prefácios de Lucas e de João; depois volta atrás para
os sumários dos capítulos de Lucas e de João, escritos em parte em
vermelho e púrpura, num estilo muito decorativo; e, finalmente,
ilustrações preambulares a Mateus — outra vez os símbolos dos
quatro evangelistas, dançando no espaço dentro de uma bela
moldura, e a figura de pé, em página inteira, do próprio são Mateus.
Isso nos trouxe ao fólio 28v. O evangelista está olhando fixo para
nós. Sua mão direita segura um livro, e a esquerda está enfiada em
seu manto, como Napoleão. O manto é púrpura, com pontos em
amarelo. Poder-se-ia imaginá-lo como um espectro, conjurado entre
ornamentos vibrantes e cabeças de animais com olhos selvagens.
Seus pés estão virados para fora e a fímbria de seu manto se agita,
como se ele flutuasse no espaço. A página é bem escura, pois deve
ter sido exibida e folheada muitas vezes nos últimos mil anos.
Depois, percorrida quase uma quarta parte do que é hoje o
primeiro volume, o Evangelho de Mateus enfim começa no fólio 29r,
e sua página de abertura é quase ilegível. É uma massa de curvas
enroscadas e círculos geométricos e retângulos, preenchidos com
ornamentos da mais fina delicadeza. Espiando do topo há um
pequeno homem que parece um sobrevivente dessa construção que
conseguiu subir escalando a decoração e agora inspeciona o caos
abaixo dele. Supõe-se que seja são Mateus, pois tem um halo e um
livro, e a um canto da margem superior há um anjo, símbolo de
Mateus na arte. No canto inferior esquerdo, vemos a figura solta de
um homem segurando um livro fechado. Pode ser mais uma vez o
autor, embora não haja halo, ou talvez seja um sacerdote ou
diácono trazendo o Evangelho que está prestes a ser destrancado
para revelar o cumprimento de todas as profecias. Embora seja
quase impossível achar a palavra naquele frenesi de ornamentos, o
Evangelho de Mateus começa na verdade com o termo “livro”, “Liber
generationis…”, como dois leitores tardios, sem dúvida em
desespero, transcreveram com mais legibilidade na margem inferior.
O texto de Mateus 1,18, “XPI autem
generatio”, “Agora, a geração de Cristo”,
ornamentado com um quase ilegível
monograma chi-rho, do nome de Cristo.
Página de texto do Livro de Kells, com Mateus
18,19-24, incluindo as cabeças de leão na
decoração das capitulares.
Algumas páginas depois está o que consiste numa segunda
múltipla abertura do Evangelho de Mateus. Há uma imagem de
página inteira de Cristo, aparentemente num trono (fólio 32v), e, na
página adjacente, o que se chama de “página-tapete” de pura
ornamentação. Esse termo gráfico usado por historiadores da arte é
justo, pois ela de fato se parece com um tapete oriental
maravilhosamente tecido. Aqueles que buscam as origens do
cristianismo irlandês no norte da África copta podem com muita
razão apontar para os tecidos coptas, que são extraordinariamente
semelhantes. O fólio 34r, a abertura seguinte, é de novo, para
qualquer finalidade prática, ilegível. Ele é na verdade uma palavra,
“Christi” — para o nascimento de Cristo, que começa em Mateus
1,18 —, mas na abreviação medieval tradicional de suas primeiras
letras em grego, “XPI”, formas que se prestam a padrões
caleidoscópicos. São desenhos tão familiares de incontáveis
reproduções que é difícil imaginar seu impacto numa congregação
do século VIII ao ver essas páginas pela primeira vez.
Também há grandes pinturas de página inteira para cada
Evangelho subsequente, cada um precedido outra vez pelos
símbolos dos quatro evangelistas e cada abertura com páginas de
arranjo formal tão complexo que o texto seria indecifrável para
qualquer um que não o soubesse de cor, em Marcos (fólio 130r),
Lucas (fólio 188r) e João (fólio 292r).
Minha impressão pessoal, ao ver as páginas do Livro de Kells
sendo viradas diante de meus olhos, uma após outra, durante o dia
inteiro, é que as páginas com figuras interrompem o texto e são
difíceis de se apreciar, malgrado toda a sua fama. Nem mesmo
estou certo de que possamos considerá-las bonitas. São
espetacularmente importantes na história da arte, e seu valor
comercial é inestimável (escrevo isso como ex-funcionário da
Sotheby’s), mas são confusas e difíceis de decifrar. As formas
humanas são primitivas, até mesmo toscas. Há decoração demais.
O olho não tem onde se fixar. Além disso, essas páginas hoje estão
escuras e brilhantes, quase como que envernizadas, provavelmente
devido a uma superdevoção no manuseio, e até mesmo a beijos
piedosos, e pode-se compreender as equivocadas tentativas de
George Mullen, restaurador do manuscrito na década de 1820, de
limpar as margens e acrescentar tinta branca para melhorar a
nitidez. As diferenças de preservação entre as páginas de figuras e
as de texto não ficam evidentes nos fac-símiles, onde todos os
acabamentos se apresentam iguais. As figuras decerto pareciam ser
mais impressionantes quando estavam imaculadas.
Contudo, as páginas de texto do Livro de Kells são muito mais
bonitas e requintadas do que jamais esperei. O texto, em caligrafia
maiúscula insular, é impecável em sua regularidade e controle total.
É impossível não se maravilhar com o traçado da pena. É caligráfico
e tão preciso quanto uma impressão, e ainda flutua e se configura
no espaço disponível. Às vezes infla e parece estar tomando fôlego,
no final das linhas. A decoração é mais extensiva e arrebatadora do
que se possa imaginar. Praticamente toda linha é adornada com
cores ou ornamentos. Toda sentença começa com uma inicial
caligráfica complexa preenchida com elementos artísticos
policrômicos, como joias incrustadas de esmalte. Frequentemente
consistem em (ou têm nelas incluídas) formas de animais e criaturas
estranhas. As maiúsculas dentro do texto são iluminadas com tinta
clara. A cor dominante parece ser variável, como numa exibição
sincronizada de fogos de artifício, de modo que numa página os
destaques podem ser em amarelo-brilhante, e em outras eles se
tornam vermelhos, ou de um intenso verde-pálido, de acabamento
metálico. O efeito em seu todo é fluido e está sempre em
movimento, como o mar, em seu fluxo e refluxo. Lembraram-me
ondas na maré alta avançando entre pedras, redemoinhando e
retrocedendo, deixando bolhas de espuma que se tornam miríades
de pontos vermelhos e turbilhões em círculos (e às vezes até
mesmo peixes e monstros das profundezas do mar). Há rostos,
leões, panteras, lebres. Bernard Meehan chamou a atenção para o
leão trabalhado à pena, no fólio 40r, que está reproduzido na nota
de cinco libras irlandesa. E há as famosas imagens de gatos
(enquanto digito isso, nosso próprio gato está na poltrona atrás de
mim, tentando me fazer lembrar que São Jerônimo trabalhava com
um leão a seus pés: a julgar por minha experiência, isso não teria
acontecido, pois o leão se instalaria confortavelmente na poltrona
antes que São Jerônimo chegasse até ela). E, acima de tudo, há
minúsculos ornatos e entrelaçados celtas, da maior delicadeza e
complexidade, desenhados à pena. Bernard ofereceu-me uma lupa,
que aceitei relutante, pois esse é um livro em escala grande e creio
ter uma visão razoável, mas é extraordinário o que ela revela nos
mínimos detalhes. “The Poetic Faculty”, poema de Hugh
MacDiarmid (1892-1978), diz num verso que o Livro de Kells só
pode ser estudado com um microscópio. Escribas modernos fizeram
experimentos para saber como as volutas e os entrelaçamentos
devem ter sido desenhados, mas mesmo que se apare uma pluma
numa ponta muito fina, é uma realização técnica quase
inimaginável.

Nota de cinco libras irlandesa emitida em 1976, incluindo um


detalhe reproduzido do topo do fólio 40r do Livro de Kells.

Existe uma descrição medieval de um manuscrito parecido com o


Livro de Kells que é citada em tantos compêndios sobre arte insular
que seu uso se tornou quase um lugar-comum. No entanto, sou
obrigado a incluir aqui uma parte dela. Gerald de Gales (c. 1146-c.
1223), viajante e cronista, viu um manuscrito em Kildare em 1185,
que provavelmente não era o Livro de Kells, pois sabemos onde ele
estava no século XII, e não era em Kildare, mas deve ter sido algo
muito semelhante. Gerald escreveu que o precioso manuscrito que
haviam lhe mostrado era cheio de figuras e ornamentos tão ricos
que chegava a ser arrebatador. “Mas se você se der ao trabalho de
olhar bem de perto”, ele escreveu, “e fizer seus olhos penetrarem
nos segredos de sua arte, vai perceber tantas complexidades, tão
delicadas e sutis, tão próximas uma da outra, e tão bem tricotadas,
tão envolvidas e unidas, e ainda tão frescas em seus coloridos, que
não hesitará em declarar que todas essas coisas devem ter sido
obra não de homens, mas de anjos.”

Os sumários do Evangelho de Lucas, descrevendo o anjo que


aparece ao sacerdote Zacarias, como reproduzido em The Book
of Kells, de Sir Edward Sullivan, 1914.

A probabilidade de que Gerald de Gales tenha examinado um


manuscrito similar, mas agora perdido, nos faz lembrar que o Livro
de Kells provavelmente não era, em algum momento, o único. Dizer
que o Livro de Kells é um entre inúmeros Livros de Evangelhos
irlandeses poderia sugerir que tais manuscritos são hoje comuns.
Não são. Eles estão absolutamente entre as mais raras e mais
valorizadas de todas as obras de arte medievais. Contudo, o Livro
de Kells é tão famoso que é fácil deixar passar o fato de que o
Trinity College em Dublin possui não menos que cinco outros
antigos Livros de Evangelhos irlandeses que são ainda mais velhos.
Podem ter menos decoração, mas são assim mesmo relíquias
admiráveis e preciosas da civilização insular e, na verdade, essa
meia dúzia de manuscritos, juntos, forma quase todo o corpus
integral desses sobreviventes da antiga Irlanda medieval. O mais
antigo de todos é um fragmento muito danificado com cerca de 180
folhas, conhecido, de modo deselegante, como Codex Usserianus
Primus, escrito talvez na Irlanda no início do século VII. Seu
ornamento é simples, inclusive os contornos em pontos vermelhos,
que se tornaram tão característicos dos manuscritos insulares. Seu
companheiro, o Codex Usserianus Secundus, mais poeticamente
chamado de “Grinalda de Howth”, tem duas páginas inteiras
ornamentadas, mas são “excepcionalmente bárbaras”, nas palavras
do paleógrafo E. A. Lowe, que o data entre os séculos VIII e IX. No
entanto, não há quem duvide da qualidade do Livro de Durrow.
Pode-se atribuí-lo à segunda metade do século VII. Assim como o
Livro de Kells, ele carrega uma lenda, de que foi copiado por são
Columba, e pertencera à igreja de Durrow, cerca de cem
quilômetros a sudoeste de Kells, fundada pelo próprio são Columba.
Tem também um conjunto de tábuas canônicas, seis elaboradas
páginas-tapete, cinco páginas inteiras com imagens dos símbolos
dos evangelistas (uma no fólio 2r mostrando todos os quatro, as
outras no começo de cada Evangelho), cinco iniciais muito grandes,
cada uma no tamanho de uma página inteira, e iniciais menores
muito numerosas. O Livro de Durrow não é tão elaborado quanto o
Livro de Kells, nem tão grande, mas mostra todas aquelas
características incipientes dos rodopiantes entrelaçados e
preenchimentos celtas. Finalmente, o Livro de Mulling e o Livro de
Dimma são ambos atribuídos à segunda metade do século VIII.
Incluem também retratos e símbolos dos evangelistas, e enormes e
maravilhosas iniciais. Qualquer um deles teria sido uma celebridade
do mais alto grau, não tivessem sido eclipsados por seu irmão mais
moço e maior de Kells.
Neófitos em manuscritos perguntam às vezes o que esses livros
nos contam sobre as sociedades que os criaram. Num sentido
explícito, os Livros de Evangelhos nada descrevem, pois não são
crônicas locais, e sim traduções padrão para o latim de textos
religiosos provindos de muito longe. Ao mesmo tempo, em si
mesmos são extraordinariamente reveladores quanto à Irlanda.
Ninguém sabe como o alfabetismo e o cristianismo chegaram às
ilhas da Irlanda, pelo norte da África, talvez. Não era, é claro, um fim
do mundo, mas uma civilização que agora era capaz de ler latim,
apesar de nunca ter sido ocupada pelos romanos, e que de algum
modo estava familiarizada com textos e formas artísticas que tinham
inegáveis paralelos nas igrejas coptas e gregas, como páginas-
tapete e tábuas canônicas. Embora o próprio Livro de Kells seja tão
unicamente irlandês quanto se possa imaginar, ele é um texto
mediterrâneo, e os pigmentos usados para fazê-lo incluem
auripigmento, um pigmento amarelo feito de sulfureto de arsênio,
exportado da Itália, onde é encontrado em vulcões. Claramente,
havia linhas de comércio e de comunicação que nos são
desconhecidas.
E nos dois sentidos. Os monges da Irlanda eram incansavelmente
itinerantes. Missionários cruzaram o mar da Irlanda para a Escócia e
para a Inglaterra no final do século VI e entraram em contato, nunca
havido antes, com cristãos italianos enviados de Roma (veja o
capítulo 1). Existem também alguns belos Livros de Evangelhos
feitos fora da Irlanda moderna, nos estilos irlandês ou insular, porém
contaminados pela nova exposição aos manuscritos romanos
encontrados na Inglaterra. Como na genética, as questões de
etnicidade pura quase nunca são simples. O melhor deles, e o único
que de fato compete com o Livro de Kells como obra de arte, são os
Evangelhos de Lindisfarne, feitos na Nortúmbria provavelmente no
início do século VIII e um dos itens supremos da Biblioteca Britânica,
em Londres. Parece inteiro irlandês em sua escrita e seus
ornamentos, e contudo, como vimos no capítulo anterior, seu retrato
de são Mateus é copiado da figura de Esdras também usada no
Codex Amiatinus, um manuscrito de incontestável ancestralidade
italiana. Os mesmos missionários viajaram muito além da Inglaterra,
atravessando as terras da Europa continental, exportando suas
tradições nativas de produção de livros e mesclando-as com as dos
países distantes da Irlanda como a Alemanha, a Áustria o e norte da
Itália. Alguns Livros de Evangelhos insulares, feitos provavelmente
nas Ilhas Britânicas, foram levados para o continente, como os
Evangelhos de Echternach para Paris, ou os Evangelhos de
Barberini para Roma; outros foram feitos pelos escribas em suas
viagens, como um manuscrito em Viena que foi ornamentado em
Salzburgo pelo escriba Cutbercht, que deve ter sido irlandês.
Esses e outros (todos eles tesouros) incluíam algumas das
características que fizeram o Livro de Kells, nascido e criado em
casa, tão famoso — uma monumental escrita maiúscula insular,
elaboradas páginas-tapete e imagens dos evangelistas e de seus
símbolos, iniciais decoradas com complexos entrelaçamentos, e
uma incrível qualidade artística. No entanto, o Livro de Kells é o
último e mais elaborado de todos nessa verdadeira linha de coro
cheia de estrelas. É a cantora de ópera protagonista, que finalmente
faz sua reverência quando todos os outros já foram aplaudidos e
deram um passo atrás, e que no fim da noite é ovacionada de pé, a
diva dos manuscritos insulares, que apenas sabe que ninguém se
lhe iguala. Depois as luzes se apagam no palco. Vikings, peste,
fome e a luta pela sobrevivência são as preocupações do país.
Quase nenhum manuscrito importante sobreviveu na Irlanda após o
Livro de Kells. Quando o resto da Europa começou a despertar para
as artes da iluminação de manuscritos, a Irlanda tinha sumido de
vista.

No momento em que o Livro de Kells chegou pela primeira vez ao


conhecimento popular, no início do século XIX, ainda se supunha
que datasse do século VI, uma vez que são Columba tinha morrido
em 597. Os recortes de imprensa de 1874, já citados, o chamavam,
convictos, de “o livro mais antigo no mundo”. Acreditava-se que a
Irlanda tinha sido cristã desde os primeiros tempos e que depois
fora isolada dos acontecimentos no corpo principal da Europa, como
nessas histórias sobre vales perdidos onde ainda vagueiam
dinossauros. Assim como na Etiópia, onde o cristianismo realmente
ainda preserva muitos costumes antigos em grande medida intactos
como resultado de seu isolamento geográfico, houve no início a
esperança de que o texto do Livro de Kells provesse uma versão
dos Evangelhos que seria mais antiga, e portanto mais autêntica, do
que qualquer outra em qualquer outro lugar. O mais antigo estudo
sério sobre o manuscrito foi o de John Obadiah Westwood em seu
Palaeographica Sacra Pictoria, publicado em 1843-5. Ele escreveu:
“As várias leituras desse manuscrito são tão importantes quanto
suas iniciais ornamentadas”. Westwood chamou a atenção para
uma frase incluída no texto de João 3,5-6. É a passagem em que
Nicodemos pergunta a Jesus como uma pessoa pode renascer
espiritualmente, e Jesus responde que o que nasce da carne é
carne, mas o que nasce do espírito é espírito. O Livro de Kells
acrescenta: “pois Deus é espírito e é nascido de Deus” (“quia deus
spiritus est et ex deo natus est”). Isso está no fólio 297v, linhas 5-6.
Essas palavras adicionais foram citadas por Tertuliano (c. 160-c.
225), um dos primeiros padres da Igreja, mas não constam mais na
Bíblia moderna. Westwood observou que há um registro de santo
Ambrósio (c. 339-97) de que a frase foi expungida do Evangelho
pelos arianos,** que não aceitavam a crença na Trindade. Com essa
leitura como amostra, portanto, o Livro de Kells parece representar
um texto autêntico e não expurgado de extrema antiguidade.
Na realidade, não é tão simples assim. A Irlanda, é claro, não era
tão remota quanto às vezes parece ser, mesmo agora. O Livro de
Kells, assim como os manuscritos dos capítulos 1 e 2, é um texto da
Vulgata padrão com tradução de São Jerônimo, completada em
384. Como os Evangelhos de Santo Agostinho no capítulo 1, ele é
às vezes contaminado por leituras da versão mais antiga e
defeituosa em latim antigo, mas desta vez as variantes não são
intencionais. O latim antigo também era conhecido na Irlanda: o
Codex Usserianus Primus, a Grinalda de Howth e o Livro de Dimma
são todos versões dele. Muitos escribas irlandeses teriam aprendido
primeiro as Escrituras em latim antigo e devem ter sabido frases de
cor. O Livro de Kells inclui numerosas palavras que foram talvez
inseridas inconscientemente devido a uma familiaridade, desde a
infância, com seu fraseado. O “quia deus spiritus est” é uma dessas
expressões, usada no latim antigo que Tertuliano conhecia, e não é,
no que tange às Escrituras, nada autêntico. Na medida em que
temos exemplos suficientes para divisar um padrão, o Livro de Kells
pertence a um segmento irlandês da Vulgata, similar ao do Livro de
Durrow, a que se acrescentam camadas de múltiplas e pequenas
excentricidades derivadas da memória ou de descuido. Um pequeno
exemplo desse último caso está em Lucas 3,26, na lista dos
antepassados de Cristo, desde José, marido de Maria, de volta a
Adão. O verso bíblico enumera “Maat, que era [filho] de Matatias,
que era [filho] de Semei”, e assim por diante, que num latim correto
seria “Maath qui fuit Matthathiae, qui fuit Semei”. O nome Matatias,
longo e não familiar, pode ter sido quebrado ao fim de uma linha no
manuscrito que serviu de modelo. O escriba deduziu que se tratava
de duas pessoas e extrapolou “Maath qui fuit Mattath, qui fuit Iae,
qui fuit Semei”, inventando equivocadamente um antepassado
adicional, Iaus. Isso está no fólio 200v. Não é uma grande falha
doutrinária, mas está errado.

A cláusula adicional “quia deus spiritus est et ex deo natus est”,


“pois Deus é espírito e é nascido de Deus”, suplementando o texto
de João 3,5-6 no Livro de Kells.

Na verdade, então, o Livro de Kells é um pobre e degradado


testemunho do texto do Evangelho, frequentemente inconsistente e
por vezes até mesmo quase ininteligível. Assim como o material
preliminar em seu início, é de supor que não fosse de fato destinado
a ser lido com nenhum enfoque erudito ou crítico. Só esse fato já
nos diz muito quanto ao propósito original do manuscrito. Um
Evangelho insular era uma obra de arte. Era um objeto sagrado e
um símbolo tangível de divindade, fechado num cumdach para
sacralizar uma igreja, para ser levado em procissões, para ser
usado em juramentos e para ser venerado. Era um catalisador de
religião e um componente central da liturgia, mas não destinado
primordialmente ao estudo do texto. Uma mera leitura era
secundária. Para a maior parte do público moderno, fazendo filas
para ver o tesouro no Trinity College hoje em dia, não é muito
diferente.

O antepassado de Cristo, Matatias (Matthathiaus), erradamente


mencionado no Livro de Kells como sendo duas pessoas
diferentes, Matat e Ias (Matthath e Iaus).

O manuscrito já não está mais completo. Ele começa, como


vimos, no fim da lista de nomes hebraicos, e provavelmente estão
faltando cerca de doze folhas no início. As últimas folhas estão
muito desbotadas e corrigidas, e a página final é quase ilegível. Ela
se interrompe em João 17,13. Em meus próprios cômputos (pois os
cálculos diferem), faltam pouco mais de dez folhas no final para que
o texto chegasse até o fim daquele Evangelho. Dentro do corpo do
livro é relativamente fácil fazer a comparação, já que as inserções
feitas por Roger Powell marcam de forma muito clara a separação
na maior parte dos cadernos.*** O problema é com as folhas
isoladas, pois não podemos ter certeza absoluta de que foram
identificadas e inseridas com acerto em seus lugares originais. Do
mesmo modo, a falta de uma figura onde se poderia esperar haver
uma, como a do retrato de Marcos após o fólio 129, não significa
necessariamente que alguma vez ela esteve lá.
Há duas observações a serem feitas. Uma é que as figuras de
página inteira são todas únicas em sua folha — estão nos fólios 7,
27, 28, 32, 33, 34, 129, 188, 290 e 291 —, enquanto as grandes
iniciais de página inteira, como as aberturas de Mateus, Marcos e
João, estão geralmente em folhas que se completam com páginas
de texto. De algum modo, portanto, a produção das figuras deve ter
constituído uma atividade distinta. De fato, as páginas ilustradas não
precisavam necessariamente ser executadas no mesmo tempo e
lugar das folhas com texto, e poderiam (em teoria) ter sido
concebidas em momento posterior ou até mesmo transferidas para
o Livro de Kells de outro manuscrito. A segunda observação é que
era comum haver mudanças de escriba entre os cadernos. No
Codex Amiatinus ocorria a mesma coisa. O Livro de Kells é em geral
assumido como obra de quatro escribas diferentes, às vezes com
diversos períodos de atividade cada um, quase todos divididos de
acordo com os diferentes cadernos. A divisão de trabalho, mediante
sua distribuição por cadernos, é uma evidência de um organizado
scriptorium de certa sofisticação. Isso pode ter relevância quando
especulamos onde e em que condições foi criado o manuscrito.
Em várias fases de sua história, o Livro de Kells teve folhas
perdidas. Há uma anotação do século XVII no alto do fólio 337r,
“here lacketh a leafe, beinge ye begini[n]ge of ye xvi chapt[er] of St
John” [aqui falta uma folha, que é o começo do capítulo xvi de são
João], à qual outra mão acrescentou “This Leaf found 1741” [Esta
folha foi achada em 1741]. Quando as folhas foram cuidadosamente
contadas por James Ussher em agosto de 1621, ele chegou a um
total de 344, como anotou na margem inferior do fólio 334v. O
manuscrito tem hoje 340 folhas. Não é impossível que quatro folhas
tenham caído e se perdido ou sido passadas adiante desde o século
XVII. Mas é tentador pensar que entre elas podem estar incluídos
retratos de página inteira de Marcos e Lucas, que poderiam ter
precedido os fólios 130 e 188. Há também seis folhas de texto que
certamente estão faltando. Qualquer afortunado leitor deste livro que
descobrir nem que seja uma dessas em sua posse poderia, se
quisesse, com o resultado de sua venda, se aposentar e ter uma
vida de luxo sem limites. É até mesmo possível que algumas tiras
das margens superiores ainda sobrevivam. Quando o manuscrito foi
reencadernado em 1825-6, George Mullen aparou as bordas muito
drasticamente, às vezes cortando fora as extremidades da
decoração original no topo e no pé das páginas — “encadernador
ignorante e daninho”, foi como se referiu a ele Sir Edward Sullivan
em 1914. O manuscrito já era uma relíquia famosa na época de
Mullen. Quando outro ícone nacional, o Livro de Domesday, foi
reencadernado em Londres no século XIX, o encadernador aparou
suas bordas, mas foi-lhe permitido guardar as aparas como
souvenirs pessoais. Se o seu sobrenome é Mullen e você tem em
casa um envelope com tiras de pergaminho, por favor, me avise, e
decidiremos juntos se informamos ou não o Trinity College.

Anotação antiga na margem superior registrando a perda de uma


folha e sua subsequente descoberta e reinserção no manuscrito,
em 1741.

Como vimos, o Livro de Kells já estava em Kells no início do século


XII. Ainda estava lá no século XV, quando um poema desconexo,
numa caligrafia cursiva irregular, foi acrescentado na folha branca
ao final do Evangelho de Lucas. Parece ser um voto contra a
cobrança de imposto sobre terreno da igreja em Meath e invoca o
apoio do livro famoso, e acima dele foi acrescentado o nome
“Columba”, “que é venerado nos altares entre as relíquias da igreja”,
assim dito: “qui inter reliquias templi venerat[ur] ad aras”. O
manuscrito evidentemente era uma relíquia sagrada com status
semimágico. Se ainda pudesse ser invocado na Irlanda para não se
pagar imposto hoje em dia, sem dúvida seria. Era visto por visitantes
da igreja em Kells, alguns dos quais escreviam nele seus nomes.
Entre estes estava um tal George Plunkett, de Dublin, que rabiscou
algumas observações medíocres numa escrita do século XVI,
inclusive um verso ruim que encaixou num arco da tábua canônica
no fólio 4v: “This work doth pass all mens conyng/ that now doth live
in any place./ I doubt not therefore in anything/ but that the writer
hath obtained god’s grace”. Uma das anotações de Plunkett está
datada de 1568. Foi ele quem se referiu, no fólio 337r, à falta de
uma folha, citada acima. O não identificado Plunkett, mau poeta
como parece ter sido, marca na verdade a primeira etapa da
transição do Livro de Kells, de talismã eclesiástico a tesouro
artístico.
O manuscrito também foi inspecionado em Kells por James
Ussher (1581-1656), preeminente estudioso da Bíblia e depois
arcebispo de Armagh e primaz de toda a Irlanda. Ele talvez seja
mais conhecido hoje (um pouquinho injustamente, em nosso mundo
moderno) por ter calculado que o mundo teria sido criado na noite
de sábado para domingo, de 22 a 23 de outubro de 4004 a.C.
Ussher também escreveu no Livro de Kells, inclusive sua
numeração das folhas, em 1621, ano em que foi designado bispo de
Meath. Providenciou que se fizesse uma cópia do documento na
língua irlandesa, agora também no Trinity College, na qual o nome
“Livro de Kells” foi usado pela primeira vez. Em seu livro sobre as
antiguidades da Grã-Bretanha, publicado em 1639, Ussher
mencionou o manuscrito, observando que o povo de Kells, no
condado de Meath, acreditava que tinha sido feito por são Columba
e que o consideravam sagrado (“eidem… sacrum habent”).
Afirma-se às vezes que o próprio Ussher tinha adquirido o Livro de
Kells. Era um esplêndido colecionador de manuscritos, mas o Livro
de Kells não era dele. (Ainda bem: seria uma pena se tivesse se
tornado conhecido como meramente o Codex Usserianus Tertius.) O
manuscrito permaneceu na cidade de Kells, que ficou muito
danificada durante a rebelião de 1641, e provavelmente em 1653 o
precioso livro foi enviado pelo conde de Cavan, governador de Kells,
para ficar em segurança em Dublin. Quando o sobrinho de Ussher,
Henry Jones, se tornou o bispo de Meath, assumindo a jurisdição
sobre a igreja em Kells, ele o transferiu para o Trinity College, junto
com o Livro de Durrow. Parece que o ano exato da chegada desses
dois manuscritos ao College não foi registrado, a não ser que se
considere como indício o fato de que Jones foi bispo de 1661 a
1682. Espantosamente, a princípio os manuscritos estavam
disponíveis para empréstimo, como todos os livros na biblioteca. Em
1686-7, Richard Acton, o vice-reitor, tomou emprestado “um
manuscrito comumente chamado Evangelhos de São Columba”
mediante uma caução de três libras e dois xelins, muito
provavelmente o próprio Livro de Kells, que figurava no catálogo do
Trinity College em 1688, ainda atribuído à autoria de são Columba.
James Ussher (1581-1656), arcebispo de
Armagh, quem primeiro estudou o manuscrito
e usou o termo “Livro de Kells” pela primeira
vez.

Como vimos, a ascensão do manuscrito ao estrelato internacional


começou no início do século XIX e foi, em parte, de cunho político. A
antiga atribuição a Columba, que morreu em 597, data-o
supostamente do século VI. Aquele ano foi importante, pois foi
também em 597 que Santo Agostinho chegou à Cantuária vindo de
Roma, como vimos no capítulo 1, trazendo alfabetismo e
cristianismo à Inglaterra. A data da morte de Columba parecia dar
ao manuscrito uma precedência irrefutável no debate sobre a
autoridade relativa da Igreja irlandesa e da romana, o que (ao
menos na memória dos irlandeses) não ficou esquecido desde o
banimento da delegação irlandesa no Sínodo de Whitby, em 664.
O Livro de Kells provavelmente foi mostrado a George IV quando
de sua visita ao Trinity College, em 1821. Com certeza foi exibido à
rainha Vitória e ao príncipe Albert em 1849. A rainha registrou essa
ocasião em seu diário, relatando como o bibliotecário, J. H. Todd,
“nos mostrou alguns manuscritos e relíquias antigos dos mais
interessantes, inclusive um Livro de são Columba (no qual
escrevemos nossos nomes)”. A associação com são Columba foi
claramente enfatizada aos visitantes reais para demonstrar que o
cristianismo era mais antigo na Irlanda do que na Inglaterra. Esse foi
o único detalhe do qual Vitória se lembrou depois. O manuscrito foi
mostrado a seu filho, o príncipe Alfred, em 1861. Eduardo VII e a
rainha Alexandra também o viram, em 1903. O College convidou
todos esses visitantes reais a assinar o Livro de Kells, embora numa
folha acrescentada depois, não nas páginas antigas. Essas folhas
autografadas hoje são encadernadas em separado. O manuscrito
havia se tornado um símbolo da primazia cultural da Irlanda, e era
como se, ao assiná-lo, a rainha da Inglaterra estivesse
subscrevendo isso. Num único ano, 1877, pouco depois de sua
controversa viagem de ida e volta ao Museu Britânico, ele foi trazido
e mostrado a W. E. Gladstone, quatro vezes primeiro-ministro da
Grã-Bretanha e incansável defensor da independência irlandesa (foi
mostrado na “sala interior”), e, em outras ocasiões naquele ano, ao
arcebispo da Cantuária, Archibald Tait, a Pedro II, imperador do
Brasil, e ao embaixador chinês, que veio em agosto com o lorde
prefeito de Dublin: “o Livro de Kells suscitou sua mais calorosa
admiração”, relatou o Freeman’s Journal and Daily Commercial
Advertiser. Dois anos mais tarde ele foi exibido ao general Ulysses
S. Grant, presidente dos Estados Unidos de 1869 a 1877.
Assinaturas de visitantes reais no que foi a
folha de guarda do Livro de Kells, inclusive a
da rainha Vitória com o príncipe Albert, de
Eduardo VII com a rainha Alexandra, e do
príncipe Alfred.

A incomparável e distintiva qualidade artística do Livro de Kells


arrebatou a imaginação do Renascimento celta. O professor de
Oxford e entomologista John Obadiah Westwood (1805-93), já
mencionado antes, publicou seus próprios traçados das páginas
iluminadas em seu Palaeographica Sacra Pictoria em 1843-5. De
maneira chocante, Westwood escreveu, sem constrangimento, seu
monograma e a data numa margem interna do próprio manuscrito
em 1853 (fólio 339r). Essa é a última folha do manuscrito,
desgastada e desbotada. Seria possível que a folha tivesse se
perdido, sido entregue a Westwood, e posteriormente trazida de
volta? O Livro de Kells está incluído em todos os grandes livros
ilustrados sobre iluminuras medievais do século XIX, como o de H.
N. Humphreys e Owen Jones, The Illuminated Books of the Middle
Ages, 1849; o de Owen Jones, The Grammar of Ornament, 1856; o
de Henry Shaw, A Handbook of the Art of Illumination, 1866; o de W.
J. Loftie, Lessons in the Art of Illuminating, 1885, e outros. Estes, por
sua vez, foram usados como modelos para inúmeras cópias e
adaptações vitorianas. O Livro de Kells tornou-se a fonte de
elegantes discursos ornados com iluminuras (como, entre muitos, o
que foi presenteado ao cardeal Newman em 1880), e para trabalhos
em metal (inclusive uma caixinha ornamental comemorativa dada ao
vice-rei, Lord Carlisle, pelas damas da Irlanda em 1858), bordados
(uma exposição percorreu a Inglaterra e a Escócia em 1886),
mobiliário, vestimentas, encadernação, escultura, cerâmica, e assim
por diante. Em 1890, a loja de departamentos irlandesa Robertson,
Ledlie e Ferguson anunciou um padrão de adamascado de nome
Columbkille, inspirado no Livro de Kells. Os joalheiros de Dublin
Hopkins & Hopkins lançaram como promoção para o Natal de 1896
broches de ouro que reproduziam as iniciais do manuscrito, a 21
xelins cada um.
Hoje parece incrível que iluminadores vitorianos tenham tido
permissão para fazer cópias diretamente do Livro de Kells, com
suas caixas de tinta e seus jarros de água em cima da mesa, ao
lado do manuscrito original. A sra. Helen Campbell D’Olier (1829-
87), de Dublin, passou muitos anos copiando as iniciais iluminadas.
Em 1884 ela cativou grandes audiências no Alexandra College com
imagens de suas requintadas pinturas do manuscrito projetadas por
lanterna mágica e luz de oxi-hidrogênio. Algumas de suas cópias
estão preservadas na biblioteca do Trinity College. O iluminador e
colecionador C. Lindsay Ricketts (1859-1941), que estava em Dublin
em julho de 1908, registrou que ele foi a última pessoa a quem se
permitiu fazer fac-símiles em aquarela do próprio manuscrito. Nessa
época, é claro, a fotografia já era, na prática, uma alternativa. Em
1888-9, a biblioteca já vendia coleções de fotografias do Livro de
Kells, em Dublin e no Museu de South Kensington, em Londres.
Cópias detalhadas de capitulares do manuscrito, feitas em
aquarela por Helen Campbell D’Olier e reproduzidas em The Book
of Kells, de Sullivan, 1914.

Um livro ilustrado muito popular, The Book of Kells, de Sir Edward


Sullivan (1852-1928), filho do lord chancellor, o chefe do Poder
Judiciário da Irlanda, foi publicado em 1914, com 24 gravuras todas
em cores. Curiosamente, cinco dessas gravuras foram fotografadas
não do próprio manuscrito, mas daquelas cópias de Helen D’Olier. O
livro de Sullivan tornou-se uma aquisição obrigatória nos lares
irlandeses, que então incluíam um grande número nos Estados
Unidos. Uma cópia pertenceu a James Joyce (1882-1941), o mais
irlandês de todos os escritores. Joyce descreveu-o a Arthur Power
no início da década de 1920: “Em todos os lugares nos quais estive,
Roma, Zurique, Trieste, eu o levava comigo, e ficava apreciando [a
arte de] seu acabamento durante horas. É a coisa mais puramente
irlandesa que temos, e algumas das grandes letras iniciais que se
balançam atravessando uma página têm a qualidade essencial de
um capítulo de Ulysses. Realmente, pode-se comparar grande parte
de minha obra a essas intricadas iluminuras”.
Em Finnegans Wake, publicado em 1939, Joyce menciona
nominalmente o Livro de Kells. Não tenho a pretensão de dizer que
compreendo o texto de Joyce, que para mim é tão ilegível quanto
devem ter sido algumas páginas do próprio Livro de Kells, mesmo
quando o manuscrito estava novo. Esse tem sido um tema
recorrente de nosso exame do manuscrito, talvez um tema não
antecipado. O Livro de Kells é um artifício de primeiríssima ordem,
mas nunca deve ter sido um texto a ser lido como uma narrativa
sequencial. É simplesmente rico e sobrecarregado demais, assim
como demasiado é tudo que carrega consigo. As palavras se
encadeiam de modo estranho, ou se destacam ou se tornam
inencontráveis em labirintos de página inteira. Finnegans Wake tem,
conscientemente, paralelos. Em uma passagem, numa única e
vasta sentença, Joyce ecoa o texto da introdução um tanto
exagerada de Sullivan e menciona paleógrafos, a interpolação dos
segundos melhores pãezinhos nas famílias de manuscritos, a
“tenebrosa página Tunc do Livro de Kells” — ele alude aqui a
Mateus 27,38, fólio 124r do manuscrito, lâmina XI de Sullivan — e
“the toomuchness, the fartoomanyness of all those fourlegged ems:
and why spell dear god with a big thick dhee (why, O why, O why?):
the cut and dry aks and wise form of the semifinal; and, eighteenthly
or twentyfourthly, but at least, thank Maurice, lastly when all is zed
and done, the penelopean patience of its last paraphe, a colophon of
no fewer than seven hundred and thirtytwo strokes tailed by a
leaping lasso…” [a abundância, a excessividade de todos esses
emes de quatro pernas; e por que grafar divino senhor com um D
gordo (por quê, por quê e por quê?): o x, o y seco e a forma discreta
da semifinal; e em décimo oitavo lugar ou em vigésimo quarto, mas,
por fim, graças a Maurice, depois que tudo tenha sido zelado e foito,
a paciência penelopeia do último parágrifo, um colofão de não minus
de setecentas e trainta e duas páginas, arre matadas e cauda em
ágil laço…],**** e muito mais.
Fac-símile do fólio 8r do Livro de Kells,
copiado provavelmente do original em 1908
por C. Lindsay Ricketts, iluminador e
colecionador de Chicago.
Então, enfim, onde e quando de fato foi feita essa “coisa mais
puramente irlandesa”? A política e um senso de identidade nacional
estão tão incorporados ao Livro de Kells que mesmo o mais
experiente dos medievalistas aprendeu a pisar nesse terreno com
muito cuidado. Hoje em dia ninguém aceita realmente que o
manuscrito esteja na caligrafia de são Columba, embora tenha
importância o fato de que carregou consigo essa tradição desde sua
primeira aparição, em 1007. O próprio Columba tinha trazido uma
comunidade de monges da Irlanda para a pequena Iona, nas ilhas
ocidentais da Escócia, e lá estabeleceu um mosteiro em 563. Até
hoje é um lugar remoto que desperta reverente temor, em sua ainda
forte atmosfera religiosa. Nos séculos VII e VIII, Iona foi o principal
posto de comando para disseminação do cristianismo irlandês em
terras britânicas, e daí por toda a Europa, e teria sido necessário
manter um scriptorium. Ele foi rico e produtivo durante dois séculos.
Contudo, os vikings atacaram a ilha em 795. Queimaram o mosteiro
em 802. Atacaram de novo em 806, e 68 monges foram mortos.
Segundo os Annals of Ulster, a maior parte da comunidade, ou toda
ela, abandonou então Iona e voltou para a Irlanda. Estabeleceu-se,
provavelmente em 807, num lugar em Kells, condado de Meath, que
eles chamaram de “novo assentamento de Colum Cille”. A igreja lá
foi completada em 814. Não há dúvida de que o Livro de Kells era
propriedade dessa igreja quando foi roubado, em 1007. Era então
considerado a principal relíquia da comunidade de são Columba, e
sua autoria era, com segurança, atribuída ao próprio fundador.
James Joyce em 1934, e a “tenebrosa página Tunc” do
manuscrito, como reproduzida em The Book of Kells, de Sullivan,
pertencente a Joyce e citada em Finnegans Wake.

Concluir se o Livro de Kells foi feito em parte ou ele todo em Iona,


ou feito ou completado em Kells, na Irlanda, depende totalmente da
data que se atribui a isso. Paleógrafos têm alegado datas diferentes,
que variam do final do século VII a meados do século IX. Na média,
o consenso atual a situa no final do século VIII. A inigualável
sofisticação desse empreendimento e a coordenação entre seus
artífices indicam que foi produzido numa comunidade grande e
organizada, não num grupo de imigrantes refugiados. Até mesmo
conhecemos o nome do mestre escriba em Iona, o abade
Connachtach, que lá morreu em 802. Se foi ele quem o projetou,
jamais saberemos, mas pode ter sido. Uma possível origem em Iona
não compromete o puro caráter irlandês do manuscrito, pois era
uma comunidade exclusivamente irlandesa numa ilha muito
acessível da Irlanda, ainda não classificada pelas fronteiras políticas
modernas. No entanto, historicamente é provável que o Livro de
Kells, a mais irlandesa de todas as obras de arte, tenha na realidade
sido criado num lugar que hoje é da Escócia; e, afinal de contas,
Finnegans Wake foi escrito em Paris, e sua condição de irlandês
tampouco é posta em dúvida.

* Modo de cortar as pranchas de madeira transversalmente em relação às camadas de


crescimento na espessura de uma árvore, a partir da uma tora de árvore cortada
longitudinalmente em quatro segmentos. (N. T.)
** Refere-se a seguidores do arianismo, corrente do início do cristianismo que acreditava
ser Jesus filho de Deus, mas sem conferir-lhe divindade. (N. T.)
*** Com o manuscrito corretamente encadernado, o alceamento segue esta ordem: i3 [com
numeração desconhecida, todo de folhas soltas], ii8+1 [o fólio 7 é uma folha solta], iii10,
iv4+2 [talvez 4+3, faltando uma folha após o fólio 26, fólios 27-28 ambos são folhas soltas],
v10+3 [fólios 32-34 são todos folhas soltas], vi8+1 [fólio 41 é folha solta], vii-viii10, ix8, x10,
xi8+2 [fólios 91 e 96 são folhas soltas], xii-xiii10, xiv6+1 [fólio 120 é folha solta], xv4+1 [fólio
129 é folha solta], xvi10+1 [talvez 10+2, provavelmente faltando uma folha antes do fólio
130, fólio 140 é folha solta], xvii8+2 [fólios 143 e 149 são folhas soltas], xviii10, xix8, xx6+3
[fólios 170, 172 e 175 são folhas soltas], xxi9+1 [de 10 + 1, faltando i, uma folha antes do
fólio 178, fólio 180 é folha solta], xxii10+1 [talvez de 10+2, provavelmente faltando uma
folha antes do fólio 188, fólio 188 é folha solta], xxiii10, xxiv4+4 [fólios 210 e 212-14 são
todos folhas soltas], xxv6+1 [fólio 219 é folha solta], xxvi10, xxvii9 [de 10, faltando vii, uma
folha após o fólio 230], xxviii2+6 [fólios 243-45 e 248-50 são todos folhas soltas], xxix8+1
[fólio 253 é folha solta], xxx-xxxi8, xxxii2+9 [fólios 277-85 são todos folhas soltas], xxxiii4
[todos folhas soltas], xxxiv10+1 [fólio 291 é folha solta], xxxv10, xxxvi12, xxxvii8
[provavelmente de 10+1, faltando viii-x após o fólio 330, fólio 331 é folha solta], xxxviii8. Há
dois fólios com o número 36, e assim são 340 folhas no total, e não 339, como são
numeradas.
**** James Joyce, Finnegans Wake/ Finnícius Revém, v. 3, trad. de Donaldo Schüller. São
Paulo: Ateliê, 2001.
4

O Arateia de Leiden
início do século IX
Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat. Q 79

Consideremos toda a questão relativa a cópias. Todo manuscrito


medieval, a menos que seja o primeiro rascunho do texto
autografado pelo autor, é necessariamente a cópia de outra coisa.
Os escribas reproduziam manuscritos que já existiam, e aprenderam
a copiar o mais cuidadosa e conscientemente que podiam. Os
iluminadores tinham como base de suas ilustrações as de seus
predecessores. As próprias transcrições podiam depois tornar-se
por sua vez modelos, e o processamento de cópias assim
prosseguia através dos séculos. Nem todos os manuscritos
reproduziam com exatidão cada aspecto de seus modelos, pois o
talento dos artífices e as circunstâncias e exigências da encomenda
podiam variar muito, e os estilos artísticos evoluíam de uma geração
a outra. Alguns manuscritos, no entanto, são notavelmente
semelhantes aos que os antecederam. O volume que é o objeto de
nossa investigação aqui, o Arateia de Leiden, um poema sobre
astronomia antiga, foi, até onde podemos saber, um fac-símile
quase idêntico de seu modelo, que datava então de muitas centenas
de anos. O que ele seria, e o que nos conta sobre as aspirações e o
gosto dos carolíngios, são perguntas de extraordinário interesse.
No mundo moderno, o simples ato de copiar encerra um conceito
pejorativo, sobretudo quando aplicado à literatura e à arte.
Escritores e artistas hoje em dia empenham-se, em vez disso, em
sua originalidade. O plágio é um anátema. Na Europa medieval, no
entanto, a cópia era objeto de admiração. Artistas eram treinados
em imitar as obras de arte uns dos outros. Modelos e fórmulas
herdados de outrem eram devidamente repetidos sem referência à
realidade. A autoridade (auctoritas) era sempre respeitada e
invocada. Autores recorriam a escritores anteriores, com frequência
ocultando a efetiva originalidade numa pretensão de que tudo já fora
dito antes. Até mesmo em ficção criativa, autores como Boccaccio e
Chaucer começavam suas histórias alegando ter descoberto suas
narrativas em livros antigos. Textos científicos, como os de medicina
ou história natural, eram mais respeitados se reproduzissem
conhecimento transmitido de um passado distante. O estudo do
mundo clássico era especialmente apreciado. No decorrer da Idade
Média, havia uma permanente noção de que os gregos e os
romanos tinham sido superiores no aspecto cultural e que os antigos
sabiam coisas agora esquecidas ou só vagamente preservadas.
Havia uma melancólica nostalgia de uma desaparecida e
despreocupada era de estudo da Antiguidade clássica.
A palavra “Renascença”, comumente se refere a três períodos da
história europeia, e em todos se praticava a cópia. O extremo caso
de amor com clássicos na Itália do Quattrocento será tratado no
capítulo 11. O fascínio com a Antiguidade verificado no século XII e
no início do século XIII constará nos capítulos 8 e 9, na era
conhecida apropriadamente como “Românica”. Por agora,
concentremo-nos na primeira Renascença, uma imitação encenada
da civilização clássica que ocorreu sob os governantes carolíngios
na Europa ocidental na primeira metade do século IX.
Carlos Magno (c. 742-814), rei dos francos com ambições
maiores, dispôs-se de caso pensado a pesquisar e copiar a
administração e a cultura da Roma antiga. Ele inventou o conceito
do Sacro Império Romano e em 800 fez-se coroar em Roma, pelo
papa, como o primeiro de um novo tipo de imperador cristão. Ele era
Augusto recriado para uma nova religião. Adotou costumes da
Antiguidade. Ordenou que se fizesse um Livro de Evangelhos em
pergaminho púrpura, alusão a uma suposta prática de antigos
imperadores. A capela de seu palácio em Aquisgrana seguiu o
modelo da do imperador Justiniano em Ravenna, antes de a antiga
dinastia ter emigrado para o leste. Tanto Carlos Magno como seu
co-herdeiro Luís, o Piedoso (778-840, imperador conjunto a partir de
813), foram sepultados em sarcófagos romanos originais. Carlos
Magno mandou buscar o erudito inglês Alcuíno (c. 735-804) para
que o assessorasse num reflorescimento do estudo clássico em
seus domínios. Alcuíno, que veio de York, representava uma
conexão com o passado, com aquele período de estudos
mediterrâneos no extremo norte da Inglaterra que tinha produzido o
Codex Amiatinus um século antes. Sob sua orientação, os
assessores de Carlos Magno criaram uma espécie de biblioteca no
palácio. Esta provavelmente chegou a incluir textos de autores como
Lucano, Estácio, Terêncio, Juvenal, Tibulo, Horácio, Claudiano,
Marcial, Sérvio, Cícero e Salústio. Parece que, de tempos em
tempos, Carlos Magno e Luís, o Piedoso, tomavam posse de
manuscritos autênticos, então sobreviventes de uma Antiguidade
mais recente. Só se podem vislumbrar obscuramente os detalhes,
mas é o primeiro indício de uma coleta de livros antigos na Idade
Média. Dois manuscritos originais desse tipo ainda existem,
evidentemente trazidos para a França para uso da corte carolíngia,
vindos, supõe-se, da Itália. São as famosas cópias ilustradas de
Virgílio, do século IV, as quais foram mais tarde, de algum modo,
alienadas das coleções do palácio para custódia das abadias de
Tours e de Saint-Denis, respectivamente. Ambas estão hoje no
Vaticano. Outros manuscritos do período clássico só nos são
conhecidos porque foram imitados na corte carolíngia, e sua
memória ainda existe, em certa medida, em tentativas de fac-símiles
a partir deles, feitas no início do século IX. Os preciosos originais
estão hoje perdidos. Eles incluíam, é claro, o “Calendário de 354” de
meados do século IV, um almanaque cristão antigo com figuras (que
não mais foi visto desde o século IX e só conhecemos de desenhos
muito posteriores tirados da imitação carolíngia); o volume das
comédias de Terêncio do quarto ou quinto século, com 150 figuras,
hoje apenas reproduzidas numa cópia do século IX recriada pelo
escriba Hrodgarius, e agora também no Vaticano; um manuscrito do
tratado ilustrado sobre o levantamento topográfico de Roma
conhecido como Agrimensores, talvez do sexto século (mais uma
vez, acessível somente de um fac-símile carolíngio); e dois
manuscritos bem diferentes de Arato, sobre astronomia antiga. Um
destes foi modelo para uma cópia carolíngia hoje depositada na
Biblioteca Britânica. A outra é a superlativa Arateia de Leiden, um
dos mais importantes manuscritos ilustrados carolíngios. Esse é,
portanto, o volume que vamos examinar nos Países Baixos.
Figura em bronze de um imperador, do século
IX, aparentemente representando Carlos
Magno ou seu filho Carlos, o Calvo, hoje na
Catedral de Metz.
O Virgílio do Vaticano, início do século IV, um
manuscrito clássico tardio, provavelmente
trazido para a França para a biblioteca do
palácio de Carlos Magno; a cena mostra a
serpente do mar estrangulando Laocoonte.

Minha primeira solicitação para ver o manuscrito de Arateia na


Universiteistsbibliotheek em Leiden teve como resposta que isso
nem seria necessário, uma vez que existe um fac-símile de alta
qualidade publicado desde 1989, e, de qualquer maneira, o livro
completo foi digitalizado e está disponível on-line a quem quiser
acessá-lo. Foi uma resposta que se enquadrava perfeitamente na
temática da cópia. Se você fizesse uma requisição aos bibliotecários
do palácio de Aquisgrana no início do século IX para ver o Terêncio
da Antiguidade tardia, eles quase com certeza lhe assegurariam que
você ficaria melhor com sua linda e nova cópia, feita pelo escriba
Hrodgarius. Após um pouco mais de persistência, no entanto, o dr.
André Bouwman, curador dos manuscritos ocidentais, acedeu
gentilmente a meu pedido, em parte porque os holandeses são em
geral muito obsequiosos, e em parte porque em breve eu estaria em
Leiden para uma das assim chamadas Palestras de Lieftinck, sobre
manuscritos, e assim (como aleguei) a universidade me devia um
pequeno favor. Eles cederam com grande delicadeza. O polímata
francês Joseph Justus Scaliger (1540-1609) fez uma famosa
referência a Leiden: “Est hic magna commoditas Bibliothecae, ut
studiosi possint studere”, “O grande benefício da biblioteca é que
[nela] os estudiosos podem estudar”, o que ainda hoje é verdade.
Leiden é uma encantadora cidade mercantil holandesa, a sudeste
de Amsterdam, com pitorescas ruas antigas e canais do século XVI.
Sua universidade foi fundada em 1575, a mais antiga dos Países
Baixos. Chovia torrencialmente durante minha visita, e eu estava
muito molhado quando cheguei a pé pela Witte Singel, a avenida
que acompanha o canal em torno da fronteira da cidade medieval.
Era o tipo de clima que faz você se perguntar como qualquer
manuscrito da Idade Média pode sobreviver na Europa setentrional.
A principal biblioteca da universidade é um vasto prédio moderno,
projetado entre 1977 e 1983 pelo arquiteto Bart van Kasteel. Por seu
aspecto, não é imediatamente óbvio que se trata de uma biblioteca,
e é difícil encontrar a entrada entre pilares de concreto que se
projetam para cima como trompetes invertidos. Há uma boa
quantidade de concreto mosqueado e cromados brilhantes. Daí a
pouco eu estava pingando água no balcão de informações em
vermelho e branco, enfiando meu encharcado chapéu de lã no bolso
do casaco e tentando parecer o tipo de pessoa que pode ser
autorizada a ver o livro mais valioso do país.
É fácil e agradável passar pela segurança da Biblioteca da
Universidade de Leiden. A equipe é imperturbável, responde
fluentemente num inglês coloquial. Há estudantes por toda parte.
Ainda há um quê de hippie nas universidades holandesas, como se
todos tivessem acabado de sair da cama, algo que infelizmente falta
agora na mais focada juventude britânica ou americana. Um
assistente da biblioteca tira uma fotografia com uma câmera que se
projeta do balcão de admissão (a minha parecia ser a de um
assassino enlameado que acabou de matar alguém a machadadas),
e ela de imediato se transforma num cartão de biblioteca em plástico
azul-claro, que depois o faz passar pelos portões eletrônicos. Dobre
imediatamente à direita e caminhe ao longo da biblioteca, num salão
bem iluminado com centenas de computadores com seus lânguidos
navegadores web, e siga adiante entre pilhas de livros, onde todos
os volumes nas estantes são avivados por tiras de papel colorido
que se projetam de entre suas páginas (imagino que seja um
sistema de classificação, mas o aspecto é muito festivo, como o dos
floridos campos holandeses). Finalmente, você toma a escada em
espiral no centro ou o elevador para ir ao segundo andar. É nesse
patamar que ficam os livros raros. Há armários para os casacos
úmidos das pessoas, cheios de chapéus encharcados.

Biblioteca da Universidade de Leiden, construída em 1977-83, que


sucedeu a uma biblioteca muito mais antiga, fundada
originalmente aqui em 1575.

Esperavam minha visita. “Não costumamos tirá-lo do lugar”, disse


o vigia, bastante impressionado, enquanto me estendia a caixa
revestida de tecido amarelo-mostarda que contém o Arateia. “Sente-
se onde quiser”, acrescentou, fazendo um gesto que abrangia a sala
de leitura em forma de L, inteiramente vazia. Há longas mesas
pretas guarnecidas com aço prateado, com pequenas cadeiras
estofadas em cinza ou laranja, dotadas de rodinhas. Há enormes
janelas que dão para o canal da cidade, e a chuva batia nos vidros
do lado de fora. Não havia suportes para os manuscritos, mas após
algum tempo o vigia trouxe-me uma grande almofada branca para
nela apoiar o livro. Usei um lápis, embora não tivessem me pedido
isso; na verdade, tinham me dado uma esferográfica para assinar o
registro de leitores. Nada dessa bobagem de calçar luvas. Dá para
ver por que todo mundo gosta dos holandeses.
O Arateia é bem pequeno, tem 95 folhas com cerca de 23 por 20
centímetros, um formato quase quadrado (voltaremos a tocar nesse
ponto). É inesperadamente pesado, mas quando se levanta a capa
fica evidente que o peso vem da espessura da encadernação de
madeira. O manuscrito foi reencadernado em 1989 por uma freira
beneditina de Oosterhout, Lucie Gimbrère, que fez muitos trabalhos
para a biblioteca em Leiden. Parece que foi necessário desmontar o
livro para fazer as fotografias do fac-símile que foi publicado naquele
ano (outro aspecto da cópia de manuscritos, com o qual se
envolvem os restauradores hoje em dia). Naquela época ele
também foi exibido na América, quando as folhas separadas
permitiam que fossem vistas muitas páginas ao mesmo tempo. A
nova encadernação é agora uma imitação bem passável daquela
que o Arateia deve ter tido no século IX. Tem um couro acamurçado
amarelo-acastanhado revestindo grossas pranchas de madeira cujo
corte se alinha com as bordas das páginas. A lombada apresenta
traços de ondulações em que é atravessada por quatro linhas de
costura por baixo do couro, e há duas tiras rendadas que se
projetam no topo e no pé. As capas estão agora envoltas
frouxamente em papel, talvez para evitar que a irmã Lucie se
sujasse na capa de couro e as manchas não se infiltrassem sem
serem convidadas nas folhas de guarda. As bordas não são
aparadas, provavelmente do século XVII, mosqueadas de vermelho
e carimbadas na diagonal em preto, “ACAD.” e “LVGD.”, “Academiae
Lugdunensis” da Universidade de Leiden, por misericórdia não
aparadas pela irmã Lucie… Disseram-me, no entanto, que ela não
conseguiu conter o ímpeto de limpar com cuidado as margens dos
manuscritos com um apagador, razão pela qual as páginas desse e
de muitos livros de Leiden apresentam uma desconcertante
ausência de desbotamento.
O Arateia começa com uma folha de guarda, em branco exceto
por uma nota de aquisição por Jacob Susius (1520-96), que
examinaremos mais tarde. A folha foi antes uma guarda colada na
capa, e preserva como vestígio marcas das dobras internas do
couro na encadernação medieval. Vire essa página e mergulhamos
direto no texto. A primeira linha é escrita em tinta vermelha, e
começa com Júpiter, deus do céu, “Ab iove Principiu[m] magno
dedux[it] aratus…”. Aqui, num manuscrito feito na corte radicalmente
cristã de Carlos Magno, hoje um santo canonizado, ou de seu filho
Luís, cognominado “Piedoso”, está um texto que sem pejo invoca
uma antiga deidade pagã. A blasfêmia só é evitada pela
ambiguidade. “Arato”, ele diz em latim (Arato foi o autor original),
“começou com o grande Júpiter…”, mas o poeta dirige-se aqui a um
“você” sem nome, maior e mais divino de todos, supostamente no
original antigo um imperador romano, mas taticamente também
aplicável a seu imitador carolíngio. Enfim, sob a lei benigna desse
“você”, diz o poeta, podemos erguer nossos olhos aos céus e
estudar a posição e os movimentos dos corpos celestiais e das
estrelas, que ajudam o marujo na navegação e o lavrador na
previsão das estações do ano.
A característica mais marcante a princípio é que o texto do Arateia
está escrito em convincentes letras “capitais rústicas”, capitalis
rustica, escrita característica de manuscritos literários no Império
Romano. O adjetivo “rusticus” significa “simples”, “comum”, “normal”,
pois essa já foi uma escrita normal, ou do dia a dia. Motes políticos,
rabiscados nos muros de Pompeia, com frequência eram escritos
em capitais rústicas. É uma caligrafia muito densa e vertical, toda
em maiúsculas, como também sugere seu nome, com grande
contraste entre os traços grossos e os finos e com pequenas e
características saliências, ou serifas, no topo e no pé de linhas
verticais. Capitais rústicas são lindas, graciosas, caligráficas, fáceis
de ler e foram as preferidas dos romanos para textos seculares, por
serem muito diferentes das arredondadas unciais, as quais se
tornaram a escrita mais sofisticada dos primeiros textos cristãos,
como os Evangelhos de Santo Agostinho e o Codex Amiatinus.
Quando os carolíngios tentaram dar uma autenticidade definitiva às
suas recriações de livros clássicos, eles preservaram essa distinção.
Imitaram as unciais para textos bíblicos, como o Saltério de Utrecht,
do século IX, mas as reverteram para capitais rústicas na literatura
do mundo da antiga religião, que é o caso aqui.
Trata-se, primordialmente, de um livro com figuras das
constelações, como os gregos as conheciam. O nome “Arateia” —
você estava desesperado para perguntar, mas é muito educado
para interromper — indica que é um texto derivado da tradição que
envolve o astrônomo Arato de Solos (c. 315-240/39 a.C.), expresso
em latim. O manuscrito compreende na atualidade 39 ilustrações de
página inteira, todas em páginas de verso, seguidas por passagens
de texto que descrevem o tema tratado, dispostas em forma de
poesia, cada linha começando com uma maiúscula em vermelho.
Em alguns casos os versos são tão curtos que são pouco mais que
legendas. As figuras são na maioria quadradas, dispostas contra
fundos azul-escuros que representam o céu noturno. São
emolduradas num laranja-claro, que decerto foi acrescentado
depois, uma vez que a cor ultrapassa as bordas do azul. É como se
fossem reproduções de pinturas emolduradas, e é concebível que
sejam, pois os protótipos finais podem ter sido efetivamente figuras
penduradas nas paredes de uma casa romana ou grega. Os
campos azuis do céu variam de um quase preto a um turquesa
esbranquiçado. Em contraluz, pode-se ver que o azul foi aplicado
em riscas verticais, e depois horizontais.
Página de abertura do Arateia, escrita em
maiúsculas rústicas, começando com “Ab iove
Principiu[m] magno dedux[it] aratus…”, “Aratus
tomou seu início de Júpiter…”.
As figuras no Arateia são, para dizer o mínimo, estranhas. Para os
carolíngios, devem ter representado um conhecimento encapsulado
que não estava claro nem para eles. O único modo de preservar
essa antiga sabedoria arcana seria, portanto, copiá-la com exatidão,
mesmo com detalhes que não tinham uma relevância imediata e
compreensível.
A primeira figura está no fólio 3v. Mostra uma longa serpente rosa
e cinzenta ziguezagueando página abaixo, com dois pequenos
ursos saltando e rolando entre os anéis formados pelo corpo
ondulado da serpente. Em pontos aparentemente aleatórios da
composição (mas na realidade nem um pouco aleatórios), a página
é salpicada de pequenos quadrados folheados a ouro. São as
estrelas na constelação que está sendo descrita. O texto, que se
estende por várias páginas, explica que as estrelas giram
incessantes entre os polos celestiais, e que estes são guardados
pelos ursos de Creta, animais que tinham protegido um Júpiter bebê
de seu pai canibal Saturno, em troca do que tinham sido postos no
céu para marcar os polos. São conhecidos como Helice das sete
estrelas, e Cinosura, que nunca decepcionou os marinheiros
fenícios guiados por ela. Entre eles, continua o texto, oscila uma
monstruosa serpente, como um rio, com estrelas ao longo de seu
corpo, em torno dos ursos. A Estrela Polar fica no menor dos ursos.
Essas são as constelações que conhecemos hoje como a Ursa
Maior, ou Arado, e a Ursa Menor.
A segunda figura mostra um jovem bem barbeado dando um
passo à direita, e olhando para trás sobre seu ombro. Veste uma
túnica curta rosa com ornamentos dourados e calça elaboradas
sandálias. Em sua mão direita segura um bastão dourado com uma
extremidade em gancho, e uma pele de leão com pontos verdes
pende de seu braço esquerdo. Essa pele o identifica como Hércules.
O nome não é citado no texto adjacente, o qual descreve um
homem que é o guardião dos ursos, mas embora ele tenha muitas
estrelas, “de modo algum indistintas”, só uma tem o nome
mencionado, Arturo, no ponto em que sua vestimenta está
amarrada. Arturo é na verdade a estrela mais brilhante no
hemisfério norte.
A terceira é uma imagem de uma clássica guirlanda de folhas
douradas e marrons, amarradas com fitas vermelhas pendentes. O
texto a chama de “Corona”, ou grinalda, usada nas bodas de Baco e
Ariadne. Após a morte prematura dela, Baco jogou a grinalda para o
céu, onde virou uma constelação. A figura seguinte é a do Portador
da Serpente. É um homem nu, visto principalmente de trás, usando
uma touca preta apertada, que mais parece uma touca de banho, de
pé em cima de um escorpião, e segurando uma serpente que se
contorce. Os versos que se seguem contam que o Portador da
Serpente está de costas para Grinalda, cuja estrela mais brilhante
está sobre seus ombros, e ela mantém o brilho mesmo durante a lua
cheia. Continue virando as páginas. A figura que encontramos a
seguir parece ser outra vez a de Hércules. É apresentado como um
jovem musculoso segurando um bastão na mão esquerda, como se
quisesse interromper o tráfego. No entanto, agora falta a folha que
devia acompanhar essa figura, com o texto explicativo. No
manuscrito Arateia a numeração dos fólios a lápis leva em conta
essas lacunas, e assim não existe um fólio com o número 13, que
deveria ser este, com uma miniatura agora perdida em seu verso. O
texto subsequente revela o que a imagem faltante mostrava,
evidentemente Virgo, a Virgem. É descrita como a serena deusa
que uma vez reinou no mundo na Idade do Ouro, quando se
desconhecia a guerra e ninguém tinha de navegar para regiões de
outros homens. Ela raramente descia do Olimpo na Idade da Prata,
exceto quando mergulhada em tristeza; e na corrupta Idade do
Bronze da degradação, quando se começou a comer carne e a se
usar o ferro, ela abandonou a Terra e tornou-se uma constelação no
céu, perto de Arado. O quadro é o mesmo para Gemini, os gêmeos.
Agora estamos no fólio 16v. Dois jovens bronzeados usam toucas
brancas, encimadas por cruzes douradas, e estão nus exceto por
mantos jogados sobre um ombro e botas elaboradas. Um segura
uma lança e um cajado, o outro uma harpa e um plectro para tangê-
la. As figuras e os versos que as acompanham continuam assim,
com Câncer, o caranguejo, que fica embaixo do meio de Helice, e
com Gemini debaixo de sua cabeça; Leo, o leão, embaixo das
pernas traseiras de Câncer, advertindo que quando o carro do Sol
toca o signo de Leo no verão a água fica escassa na agricultura e os
marinheiros não devem se aventurar no mar azul; Auriga, o
cocheiro, mostrado com três cabritos azuis, que são maus
presságios para os marujos; Taurus, o touro; Cefeu; Cassiopeia,
cuja túnica escorregou de um seio, felizmente oculto por uma estrela
dourada; sua filha, Andrômeda, com os braços estendidos e
amarrados a colunas de rocha; e assim por diante, todos
entremeados de versos que descrevem as cenas e contam suas
histórias.
Seguindo-se às 36 figuras de constelações, há duas ilustrações
compósitas. A primeira representa os cinco planetas conhecidos,
apresentados como cabeças destacadas, quatro masculinas e uma
feminina, com halos claros, como se fossem santos. Está no fólio
80v. O texto adjacente explica que os planetas eram conhecidos
como “estrelas errantes”, e que eles operam sob uma lei diferente,
“e em seu movimento independente adotam jornadas opostas sobre
a Terra e se movem para fora de seu lugar e mudam seus cursos”.
Seus nomes não são mencionados aqui, mas eles são Saturno,
Júpiter, Mercúrio, Vênus e Marte. Vênus é, portanto, a cabeça
feminina. Hoje compreendemos por que os movimentos dos
planetas em nosso sistema solar são diferentes dos das estrelas
visíveis de galáxias distantes, mas isso intrigava muito os
astrônomos medievais, que não sabiam nada sobre órbitas
planetárias em torno do Sol.
Algumas folhas mais adiante há uma figura semelhante, com
quatro cabeças femininas no céu, representando as quatro
estações. Mais uma vez, como conhecemos a translação da Terra
em torno do Sol,* as diferentes estações nos são facilmente
explicáveis, mas isso não era tão óbvio na Idade Média. O extenso
verso que se segue é complicado (pelo menos para mim), mas a
essência é que há múltiplas rodas de estrelas que orbitam e cortam
o firmamento, inclusive a Via Láctea (usando essa metáfora,
descrevendo-a como tendo a cor do leite — “lactis ei color” — e
como a maior que se revolve no céu), e que o Sol viaja através das
órbitas dessas várias estrelas circulantes, e assim sua potência é
afetada e o ano se divide em quatro estações, e de acordo com elas
se distribuem as durações dos dias. Uma dessas grandes rodas que
giram é a do zodíaco, e o Sol a atravessa em doze pontos durante o
ano, causando os efeitos mutantes do tempo e do clima. Por isso as
estações são diferentes. Meu latim é satisfatório, mas meu
conhecimento das estrelas não é bom o bastante para eu
compreender tudo que está sendo explicado.
É provável que a nossa geração seja a primeira, em dezenas de
milhares de anos, que não reconhece as constelações. Até um
momento bem avançado no século XX, os céus estavam
relativamente não poluídos à noite, e ainda vivia mais gente no
campo do que nas cidades. A assombrosa e emocionante
experiência de olhar para cima e ver milhões de estrelas à noite já
não é comum em nossa época, e a maioria de nós já fica satisfeita
se conseguir pelo menos identificar o cinturão de Órion no
firmamento (aqui está Órion, filho de Poseidon, avançando
virilmente a passos largos no fólio 58v do Arateia: “sic balteus exit”,
diz o verso na folha seguinte, “seu cinturão avança assim”, com três
grandes estrelas brilhantes enfileiradas). Contudo, desde o início da
consciência humana, pessoas têm olhado fascinadas para o céu
noturno, procurando padrões e significados nesse espetáculo. É
difícil não associar os céus com uma majestade e uma divindade
infinitas. O arco descrito pelo Sol, num percurso que se move
durante seis meses para a esquerda e seis meses para a direita,
durando exatamente um ano em seu ciclo, foi para todas as
civilizações a primeira medida do tempo e das estações.
O mais antigo texto grego sobrevivente com os nomes e posições
relativas das estrelas e dos planetas foi o Phaenomena (“Aparição”),
por Arato de Solos, no século III a.C. É um poema, quase com
certeza derivado — embora nem todos os estudiosos concordem —
de uma obra perdida de Eudoxo de Cnido, aluno de Platão cem
anos antes. A informação fornecida por Arato e Eudoxo sobre os
nomes e as lendas das constelações sem dúvida retrocedia
infinitamente mais longe, a tradições orais e “conversas em torno da
fogueira” que estão muito além de qualquer alfabetismo conhecido.
Os Phaenomena de Arato tornaram-se um texto imensamente
popular no mundo antigo, tanto como texto que ensinava sobre o
universo e a mitologia quanto como um guia prático de
memorização de estrelas para uso em navegação. Há o fato
incomum — que o distingue de um poema clássico grego — de ter
sido citado no Novo Testamento. Quando São Paulo estava
pregando em Atenas, ele observou para sua audiência que o Deus
único criara o mundo inteiro e que era nele que vivemos e nos
movimentamos e temos nossa existência, “como alguns dos vossos,
aliás, já disseram: ‘Por que somos também de sua raça’” (Atos
17,28). Essa citação grega é da linha 5 de Phaenomena, e na
verdade refere-se a Júpiter, com quem Arato começa, como vimos
na linha de abertura do manuscrito de Leiden. Talvez o apóstolo
levasse um texto de Arato em suas viagens, para a navegação no
Mediterrâneo.
Espécime de abertura dupla do Arateia mostrando Arturo Maior e
Arturo Menor, pequenos ursos rolando entre os anéis de uma
serpente, marcando o polo Norte.
Espécime de abertura dupla do Arateia mostrando Hércules segurando a pele
de um leão.
Espécime de abertura dupla do Arateia mostrando Boieiro, o condutor de bois,
ou boiadeiro, seguido do texto sobre Virgo, pois falta uma folha nesse ponto.
Espécime de abertura dupla do Arateia mostrando Gemini, identificados como
Castor e Pólux.
Espécime de abertura dupla do Arateia mostrando Leo, o leão.
Espécime de abertura dupla do Arateia mostrando os cinco planetas,
mostrados como as cabeças de Saturno, Júpiter, Mercúrio, Vênus e Marte,
cujo movimento é diferente do das estrelas.
Os Phaenomena foram traduzidos ou adaptados para o latim pelo
menos três vezes na Antiguidade. A primeira versão foi feita por
volta de 80 a.C. por Cícero (106-43 a.C.), o grande estadista. Há
evidência de que um manuscrito clássico incompleto dessa tradução
foi adquirido pela biblioteca da corte carolíngia, onde foi copiado
com exatidão, a maior parte em capitulares rústicas. A nova cópia
do século IX chegou à Inglaterra anglo-saxônica no século X, hoje
encadernada num volume compósito que está na Biblioteca
Britânica, como antes mencionado. Uma característica maravilhosa
é que as linhas do texto foram configuradas para caberem dentro do
contorno das figuras das constelações, e assim é essa escrita
concentrada, e não a cor, que preenche o desenho.
Uma segunda e muito mais popular tradução para o latim foi feita
por Júlio César Germânico. Só conhecemos seu nome devido a
umas poucas referências ocasionais, inclusive o comentário das
Epístolas de São Paulo por São Jerônimo, pois Jerônimo
reconheceu aquela citação em Atos 17,28. Supõe-se, conquanto na
verdade não se saiba, que o tradutor seja identificado como
Germânico (15/16 a.C.-19 d.C.), que era neto de Marco Antônio e
filho adotivo do imperador Tibério. Há outros candidatos com o
mesmo nome. Essa versão é o principal texto usado no Arateia de
Leiden. Antes mesmo de começar sua longa jornada de transmissão
textual, ele foi, então, uma imitação por Germânico de uma imitação
por Arato de um texto de Eudoxo.
Uma terceira tradução latina do original em grego de Arato foi feita
em algum momento do século IV por Rúfio Festo Avieno, sobre o
qual quase nada se sabe com certeza. É a mais longa das três
versões. No manuscrito de Leiden há, aqui e ali, curtas
interpolações da tradução de Avieno dentro da de Germânico. A
descrição de Gêmeos, por exemplo, suplementa o breve texto de
Germânico após quatro palavras, com a inserção de sete linhas da
redação mais longa de Avieno. O relato sobre Câncer, o caranguejo,
no manuscrito é quase todo tirado do de Avieno. Essa contaminação
do texto com pedaços vindos de outro lugar não é incomum na
transmissão de um manuscrito (vimos exemplos nos Evangelhos de
Santo Agostinho e no Livro de Kells), mas o que isso indica é que o
manuscrito clássico mais tardio, que tinham adquirido e estavam
replicando na corte carolíngia, não era mais antigo do que a época
em que viveu Avieno. Na verdade, provavelmente era do fim do
século IV ou do início do século V.
À primeira vista, pode-se até acreditar que o volume em Leiden
era com razão um manuscrito original do fim do Império Romano. O
estilo geral das pinturas, em pinceladas de cores ricas e escuras, às
vezes borradas e até beirando o impressionismo, é uma boa
imitação da arte romana: os afrescos em Pompeia e os retratos de
sarcófagos do Egito, por exemplo, nos são familiares como modelos
disso. A escrita, em belas capitulares rústicas, parece ser autêntica.
O formato quase quadrado é absolutamente clássico também.
Decerto o manuscrito era em sua origem ainda mais quadrado, a
julgar pelo corte selvagem de pequenas legendas em algumas de
suas margens externas.
O formato quadrado de livros antigos merece uma breve
digressão. Até o século I d.C., todos os textos literários teriam sido
escritos em rolos, às vezes feitos de couro ou de pergaminho (como
são a maioria dos Rolos do mar Morto), mas comumente de papiro.
O deus rio no fólio 68v do Arateia é apresentado segurando o que
deve ser um broto da planta do papiro. Por volta da época na qual o
cristianismo chegou ao Ocidente, os escribas usaram primeiro o
formato de códice, ou seja, manuscritos no formato de um livro
moderno, com folhas presas e articuladas por suas bordas internas
de modo que pudessem ser viradas uma após outra, com texto
escrito nas duas faces. Foi uma invenção que representava grande
vantagem em textos que precisavam ser consultados para a frente e
para trás, sem necessidade de serem lidos de ponta a ponta, e foi
especialmente útil na liturgia cristã e nos manuscritos que tratavam
de leis. (Ainda usamos o termo “codificar” um texto de lei, que
significava originalmente transferi-lo para o formato de códice.) Nos
séculos III e IV, o códice estava se tornando padrão para a maioria
dos livros no Império Romano tardio.
Para se fazer um caderno para um códice bem antigo, pegava-se
uma folha de papiro, que era dobrada ao meio, e de novo ao meio.
Podia então ser cortada ao longo de uma borda para formar ou um
grupo de quatro folhas, ou dois bifólios, um dentro do outro. Como o
papiro é feito comprimindo-se tiras de junco superpostas numa
direção e depois na outra, a folha original antes de ser dobrada era
quadrada, e com isso o códice resultante era quadrado também. O
Arateia de Leiden é descendente de um manuscrito feito
provavelmente de papiro. No entanto, após a queda do Império
Romano e o colapso do comércio de papiro do Egito, os escribas
recorreram em vez disso ao uso de pele de animal (o que, de
qualquer maneira, é melhor para um códice, uma vez que o papiro
tende a estalar quando se vira a página). A maioria dos mamíferos e
de suas peles tem um formato oblongo. Uma folha retangular de
pergaminho dobrada e depois cortada em aberto produzirá
necessariamente um livro oblongo ou vertical, que evoluiu para o
formato padrão dos manuscritos na Europa medieval. Quando mais
tarde se introduziu o papel na Idade Média, os escribas estavam
àquela altura tão acostumados a dobrar e cortar suas folhas dessa
maneira, que o papel era fabricado artificialmente nas proporções
oblongas da pele de animais, e ainda o é. Pode-se no mínimo
aventar que o motivo pelo qual todos os livros modernos, inclusive o
que está agora em suas mãos, são verticais e não quadrados é pelo
fato de o pergaminho ter substituído o papiro no Mediterrâneo
clássico tardio.
O alceamento do Arateia de Leiden não apenas demonstra como
foi dobrado, mas também que agora lhe faltam cinco folhas.**
Sabemos de que assunto tratam, porque foram todas copiadas
desse manuscrito para outro, agora depositado em Boulogne-sur-
Mer, na França, e ao qual vamos chegar dentro de alguns minutos.
As páginas perdidas mostram Júpiter com uma águia, Virgem, o
centauro, Hélio (o Sol) numa carruagem, e Luna (a Lua). As folhas
com figuras são às vezes de um pergaminho perceptivelmente mais
grosso (assim como, desnecessariamente, são as páginas que com
elas formam par). É provável que isso se devesse a razões práticas:
fazer o fundo de uma figura encharcando de tinta uma folha de
pergaminho um pouco pequena faria a superfície se encurvar se o
suporte fosse fino demais. É mais um motivo para indagar se o
exemplar clássico que estavam usando era em papiro, caso em que
isso não seria um problema. Acho que o caderno viii (fólios 57-64) é
de um artista diferente, que usou pigmentos ligeiramente diferentes.
Uma das consequências de examinar o original de um manuscrito
muito famoso é que se espalha rápido pela biblioteca a notícia de
que o icônico objeto está exposto, como um pássaro raro avistado
por um ornitólogo, anunciado numa rede social. No início da tarde,
um grupo de estudantes de pós-graduação de Leiden se
materializou na sala de leitura, e eles perguntaram com deferência
se podiam ficar atrás de minha cadeira enquanto eu continuava a
virar as páginas. Logo me vi dando um seminário sobre o Arateia de
Leiden.
Quando fiz um comentário sobre a fidelidade verdadeiramente
extraordinária com que os escribas carolíngios tinham copiado com
clareza a aparência e o formato de seu exemplar clássico, um
estudante perguntou como sabíamos que essa era de fato uma
cópia do século IX, e não o original do fim do Império Romano. É, de
fato, uma pergunta muito difícil de responder. Uma resposta é a
espessura e a textura do pergaminho (como dito acima), que é
consistente com as dos pergaminhos do século IX. O pergaminho
clássico, quando era usado, era comumente muito fino, quase sem
peso, com tendência a se enrugar ao menor calor, como
testemunhamos no capítulo 1. Uma segunda resposta é que as
miniaturas, embora de plausível antiguidade, têm o aspecto
característico de pintura carolíngia, sobretudo nos rostos. É curioso:
o cérebro humano é tão instintivamente treinado em reconhecimento
facial que, não raro, são os olhos que descobrem falsificações ou
pastiches anacrônicos na arte. O rosto de Cefeu no Arateia, por
exemplo, é quase inteiro copiado no retrato do rei Davi no Saltério
de Lothair, na Biblioteca Britânica, feito por um membro da família
imperial em Aquisgrana, na década de 840. Enfim, há uma página
escrita integralmente em minúsculas carolíngias, escrita essa que
seria inconcebível antes de 800.
O planetário, mostrando os planetas mais o
Sol e a Lua em órbita em torno da Terra,
dentro de um anel apresentando os doze
meses e os signos do zodíaco.
Ei-la no fólio 93v, já chegando ao fim do manuscrito. É um delicado
planetarium de página inteira, com um diagrama circular com os
planetas e o Sol e a Lua em posições exatas de suas órbitas em
torno da Terra, dentro de uma roda de constelações em volta de sua
borda. O estilo de sua feitura é muito preciso e diferente do das
outras figuras no Arateia, mas ele compartilha o mesmo e
característico pigmento que o artista usa no caderno viii (compare-
se com o cão no fólio 60v). Um planetarium não é parte da temática
arateiana, embora, é claro, seja relevante para a astronomia. O
desenho é feito com extremo cuidado, com as múltiplas órbitas
meticulosamente mostradas em tinta vermelha. Se você olhar o
manuscrito contra a luz, verá pequenos orifícios nos lugares em que
se apoiou a ponta do compasso. A Terra está no centro. Saturno,
Júpiter e Marte estão em órbitas elípticas em torno da Terra. É de
notar que Vênus e Mercúrio são mostrados à esquerda em órbitas
não em torno da Terra (conquanto fosse nisso que todos
supostamente acreditavam, até Copérnico), mas, corretamente, em
torno do Sol, o qual está, ele mesmo, também em órbita. Nos
percursos dos planetas estão inscritas citações da Historia naturalis
de Plínio em linhas de pequeninas e elegantes minúsculas
carolíngias, a escrita inventada de caso pensado durante as
reformas culturais do início dos anos 800. A Historia naturalis foi um
texto que Alcuíno tinha explicitamente recomendado a Carlos
Magno. Em volta do contorno externo do planetarium há uma faixa
de cor que contém os signos do zodíaco, alternados com medalhões
com figuras sobre fundo dourado, representando os doze meses. A
importância dessas pequenas figuras reside no fato de terem sido
copiadas não do exemplar do Arateia, mas do antigo “Calendário de
354”, o manuscrito do século IV então também na posse da
biblioteca do palácio carolíngio, antes mencionada. O Calendário
original não sobreviveu, nem, até onde se sabe, o fac-símile que
dele foi feito no século IX (que não foi visto desde a morte de seu
último proprietário registrado, Nicolas-Claude Fabri de Peiresc,
astrônomo e antiquário que morreu em 1637), mas temos ótimos
desenhos dele dos séculos XVI e XVII, o melhor dos quais está no
Vaticano. O uso do Calendário como fonte pictorial para a estrutura
do planetarium no Arateia é a segunda evidência de que a
composição dessa figura, única no manuscrito, foi uma invenção, no
século IX, da corte carolíngia.
O terceiro motivo para datar o diagrama no século IX é o mais
excitante. A aparente precisão de seus detalhes atraiu muito a
atenção de astrônomos modernos. Suponhamos que as posições
relativas dos planetas e do Sol na figura não sejam aleatórias, e sim
medidas de uma efetiva observação dos céus, o que, sabemos, os
carolíngios eram capazes de fazer. Existe um cativante artigo dos
irmãos Richard e Marco Mostert publicado em 1999. Ele imagina
uma divisão do anel externo do planetarium no Arateia de Leiden
em 360 graus. Desenhando linhas a partir dos planetas até o centro
do diagrama e localizando-as em relação às estrelas fixas aqui
indicadas pelo zodíaco no anel externo, os irmãos Mostert foram
capazes de sugerir uma data factual na qual os planetas vistos da
Terra teriam estado exatamente nas posições mostradas no
desenho. Era terça-feira, 18 de março de 816. Obviamente o
planetarium aqui é pouco maior que um pires, e as medidas podem
não ser absolutas. Para pô-las em contexto, no entanto, os autores
explicam que se as posições dos planetas estão de fato indicadas
aqui com precisão científica, essa configuração exata dos planetas
só ocorre uma vez a cada 17 trilhões de anos. Se permitirmos uma
variação de até cinco graus (bem grande), então, dizem eles, a
probabilidade de voltar a acontecer essa configuração limita-se a um
dia a cada 216 milhões de anos. A se permitir uma tolerância de até
quinze graus, a ocorrência dos planetas nas posições aqui
mostradas aumenta para uma vez em cada 98 mil anos. Num artigo
suplementar de 2007, Elly Dekker alega que os planetas poderiam
ter estado em quase exatamente as mesmas posições no outro
extremo do mesmo mês lunar, em 14 de abril de 816. Não sou
capaz de avaliar os méritos de cálculos de variantes astronômicas
de pouco menos de quatro semanas, numa ou noutra direção, mas
é certo que não há nada estilisticamente implausível em se sugerir
que o Arateia de Leiden foi criado em 816, ou, para ser mais
cauteloso, no primeiro terço do século IX (mas não antes de 816).
Possa ou não uma dessas datas ser nominalmente aceita, 18 de
março era um aniversário muito importante. De acordo com os
cálculos no De temporibus, de Beda (c. 672-735), que ainda é o
texto padrão para os calendários no século IX, ela foi a data da
criação do universo. Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento
do céu para separar o dia da noite; que eles sirvam de sinais, tanto
para as festas como para os dias e os anos” (Gênesis 1,14) e, como
publicado por Beda, Deus completou sua obra em 18 de março:
“Assim foram concluídos o céu e a terra” (Gênesis 2,1).
Se essa interpretação está correta, ela poderia explicar em grande
medida qual o propósito do manuscrito. As figuras expressam um
conhecimento clássico da astronomia do mundo antigo, que os
carolíngios admiravam, mas (até onde isso lhes dizia respeito) os
céus, assim mesmo, foram originalmente concebidos e postos em
movimento por Deus. O planetarium, no entendimento deles, mostra
sua configuração no aniversário da data em que Ele os tinha criado,
e portanto o mais próximo possível do momento em que Deus
declarou que sua criação era perfeita. (Eles tinha suficiente
conhecimento da movimentação dos planetas para saber que 18 de
março de 816 não era necessariamente, em termos astronômicos,
idêntico a 18 de março de 3952 a.C., ano sugerido por Beda para a
Criação; porém, assim como a Páscoa e o Natal eram, a cada ano,
de algum modo espiritual, os dias efetivos da ressurreição e do
nascimento de Cristo, assim cada 18 de março era de fato o dia da
Criação, e a data é registrada com frequência nos calendários
medievais.) O Arateia de Leiden pode abrir com Júpiter, mas ele
termina com Cristo, em sua última página: “Vale, fidens in domino
xpisti vestitutus amore”, “Adeus, fé no Senhor Cristo, vestido de
amor”. A suposição medieval era de que Deus criara tudo no
universo com um propósito, e para o uso da humanidade. Era dever
dos cristãos estudar e decodificar esse propósito divino. Saber como
as estrelas e os planetas foram criados para ajudar as pessoas
provendo as estações e o clima e a navegação teria sido uma forma
de teologia, ou mesmo de exercício devocional.
Não há nada explícito no manuscrito que identifique “o fiel ao
Senhor Cristo” ao qual ele é dedicado além daquilo que sabemos
com certeza sobre o governante imperial a quem Germânico se
dirige no prefácio original. Se a data de 816, ou posterior a ela, é
válida, isso exclui Carlos Magno, que morreu em 814. Geralmente
se supõe que o patrono do Arateia tenha sido seu filho e sucessor,
Luís, o Piedoso, ou um membro imediato de sua família. É bem
provável que ele tenha sido feito em Aquisgrana, onde devia ficar a
biblioteca da corte. A forma masculina “vestitutus” na dedicatória
deve excluir Judite da Baviera, com quem Luís se casou em 819, a
qual às vezes se sugere ter sido uma possível proprietária do
manuscrito. O próprio Luís foi coroado imperador em 816
(infelizmente em outubro, não em março), e está atestado que se
interessava por religião e por astronomia. A história contemporânea
da vida de Luís, o Vita Hludowici, parece não conter mais do que
uma infindável sucessão de batalhas e escaramuças. Quando Luís
vencia, isso era uma evidência de que Deus estava a seu lado;
quando perdia, era uma prova de traição. O Vita foi escrito por um
membro íntimo da casa imperial, conhecido para a posteridade
como o “Astrônomo”, por suas referências a constelações. Por
exemplo, ele registra um cometa no signo de Auriga, o cocheiro, em
817, mas a descrição mais famosa é a do que hoje conhecemos
como cometa Halley, visto em 837, mostrado em Virgem, embaixo
da Serpente, e cruzando para o leste através de Leão, Câncer e
Gêmeos, até a cabeça do Touro, sob os pés de Auriga (esse escritor
conhece suas estrelas, ou seu Arateia). Sua órbita era diferente, ele
diz, das de outros astros errantes (os planetas). Ele relata que Luís
convocou o autor, “que era tido como um conhecedor desses
assuntos”, como ele escreve sobre si mesmo, e os dois saíram para
uma sacada adjacente ao palácio para discutir se aquilo era um
prodígio divino ou um fenômeno natural, e o imperador concluiu que
na verdade não fazia diferença. Neste ponto é indiscutível que o
Arateia foi de fato muito relevante. O imperador e o astrônomo
talvez estivessem com o manuscrito, naquela sacada. Talvez isso
seja até mesmo um eco consciente da história do imperador
Augusto observando prodígios no céu, com a sibila Tiburtina.
Luís, o Piedoso, provável patrono do Arateia, mostrado entre dois
embaixadores imperiais num manuscrito da crônica de Adémar de
Chabannes, do final do século XI.

O interessante quanto às imitações de manuscritos antigos feitas


na corte carolíngia é que nunca mais se ouviu falar dos originais
romanos tardios. Os únicos códices antigos sobreviventes que bem
podem ter passado pela biblioteca da corte, os dois códices
virgilianos do século IV agora no Vaticano, só foram mantidos
porque não se fizeram cópias deles. Quanto aos outros, uma vez
disponível um novo manuscrito, os exemplares antigos eram
evidentemente considerados sem valor. Talvez fossem difíceis de
ler, ou frágeis demais com seu papiro se esfarelando, e eram
simplesmente descartados. No entanto, as novas versões do
Arateia, as de Terêncio e os Agrimensores tornaram-se elas
mesmas modelos. Começaram a ser feitas reproduções delas e
esse processo tem uma vida própria, como o nascimento dos netos.

Já no meio da tarde a chuva cessou em Leiden e o sol apareceu.


Por alguns minutos, antes que um bibliotecário baixasse
devidamente as venezianas, o manuscrito esteve exposto à luz
direta e escorchante do sol. Naquele momento, eu avistei algo que
não é visível em reprodução alguma. Foi algo similar ao modo como
uma fotografia aérea ao amanhecer ou ao crepúsculo pode revelar
entalhes arqueológicos numa locação histórica, invisíveis em terra.
Naquela luz brilhante ficou claro que os contornos de muitas figuras
tinham sido impressos com uma profundidade que não era natural
nas páginas de pergaminho. Uma vez tendo percebido isso, vê-se
que é uma característica muito óbvia de pouco mais de metade das
miniaturas do Arateia. Ficou claro que os contornos (apenas os
contornos) das composições tinham sido cuidadosa e firmemente
retraçados com um instrumento cego ou um cálamo, imprimindo seu
desenho através do pergaminho e sem dúvida em outras folhas que
ficavam por baixo dele. Os versos de muitas dessas páginas
preservam esses contornos numa imagem de espelho, no que
parece ser grafite. Marcas similares têm sido observadas no reverso
de algumas iluminuras em manuscritos insulares, inclusive os
Evangelhos de Lindisfarne, do século VIII, na Biblioteca Britânica. No
Arateia provavelmente foi inserido algo como papel-carbono para
transferir essas composições para páginas novas. São, a rigor,
apenas as linhas do contorno, e não incluem estrelas ou rostos.
Notem esse detalhe, pois ainda voltaremos a ele. Esses desenhos
que foram transferidos poderiam depois ter se tornado folhas que
serviram de modelo para mais reproduções das figuras.
É bem sabido que o Arateia de Leiden foi copiado por volta do ano
1000 para outros dois manuscritos, talvez preparados, ambos, na
Abadia de São Bertino, departamento de Pas-de-Calais, no noroeste
da França. Um deles está na biblioteca municipal de Boulogne-sur-
Mer. Foi feito para o mosteiro de São Bertino, quase cinquenta
quilômetros a leste de Boulogne, na época de Odbert, abade de 986
a c. 1007. Não saiu de lá para muito longe durante mil anos. O
segundo manuscrito, provavelmente pouco tempo depois, pode ter
sido feito em São Bertino, mas logo depois foi ofertado à Catedral
de Estrasburgo por Werinhar, bispo de lá em 1001-28. Migrou para a
biblioteca pública de Berna, na Suíça, onde se encontra hoje. Em
geral, supõe-se que o manuscrito de Leiden tenha sido propriedade
de São Bertino e que ambas as cópias foram feitas no scriptorium
da abadia, com a participação do próprio Odbert.
Para verificarmos isso, tivemos de fazer uma breve visita a
Boulogne, facilmente acessível de Londres pelo túnel sob o canal da
Mancha, o Eurotúnel. Dessa vez minha esposa veio comigo, e
saímos de Calais de carro num ameno e enevoado dia de
primavera. A biblioteca municipal central fica agora no que era, no
século XVII, um albergue para peregrinos que vinham visitar o
santuário da Virgem da Boulogne. Ela fica na Place de la
Résistance, calçada com pedrinhas, no centro da cidade antiga.
Você entra e avança em diagonal atravessando claustros internos
até a sala de leitura, no canto mais afastado do “Patrimonie”,
dedicado principalmente à história local, de onde a assistente,
Virginie Haudiquet, me levou por uma escada a uma sala vazia com
mesas compridas, que mais parecia uma sala de aula (ela me disse
que essa parte do prédio era basicamente do século XIII), na qual
uma mesa solitária tinha sido preparada para mim, com um suporte
para livros azul-escuros e um par de luvas brancas. Ela foi buscar o
MS 188. O manuscrito é um volume grande e fino, com cerca de 35
por 30 centímetros, com o rótulo “Calendrier” escrito à tinta na
primeira capa. É uma coleção de textos e tabelas de calendários
astronômicos e inclui instruções para calcular a data da Páscoa. A
tabela no fólio 10v é feita de exemplos para o próximo quarto de
século, a partir do ano de 999, o que é um modo bastante crível de
datar o manuscrito (o milênio que estava na iminência de começar
fez reviver o interesse popular pela cosmologia, como veremos no
próximo capítulo). O Arateia está copiado com exatidão nos fólios de
20v em diante no manuscrito de Boulogne.
As figuras são assombrosamente similares às do manuscrito de
Leiden, como num desses sonhos nos quais você reconhece algo
que mesmo assim é, de certo modo, em tudo diferente. Desta vez
elas estão dispostas duas em cada página, uma acima da outra,
com o texto de Germânico copiado ao lado, à direita. A escrita não é
mais capitalis rustica, mas ainda é em maiúsculas, o que pode ser
um sinal diferencial para esse aspecto incomum do exemplar. Eu
tinha levado meus próprios traçados (feitos a partir do fac-símile, eu
lhe asseguro) para checar se os desenhos tinham sido calcados
diretamente dos contornos endentados de Leiden, e a resposta é
não. Foi um pouco decepcionante. A escala dos desenhos é um
pouco menor, para caberem dois numa página, e alguns detalhes e
proporções específicos foram mudados. São cópias quase idênticas,
mas não duplicadas com as mesmas medidas. Algumas das figuras
que hoje faltam no manuscrito de Leiden, como a primeira, que
mostra Júpiter sobre uma águia, estão fielmente reproduzidas na
cópia em Boulogne e evidentemente ainda estavam quando a cópia
foi feita no original. Outras foram aqui omitidas por motivos não
óbvios, como a da lebre e a das quatro estações, que integram o
volume de Leiden. O planetarium foi transferido para a cópia em
Boulogne, mas foi expandido para incorporar as zonas latitudinais
da Terra, movimentos do Sol e um mapa do mundo muito simples,
dividido entre Ásia, Europa e África. Não é mais um fac-símile, como
o manuscrito de Leiden foi de seu próprio modelo antigo, e sim uma
versão atualizada e adaptada para uma finalidade diferente,
principalmente um agora monástico controle do tempo.
Além disso, muitas vezes as cores são bem diferentes. Por
exemplo, o primeiro dos Gêmeos tem aqui um manto verde sobre o
ombro esquerdo, enquanto em Leiden ele é vermelho; seu gêmeo
agora tem na mão uma harpa delineada em laranja, ao passo que
em Leiden a harpa é vermelha e dourada. Cefeu, no manuscrito de
Boulogne, tem um manto marrom pendente sobre uma túnica cinza
e branca, mas no Arateia de Leiden era vermelho sobre uma túnica
marrom. A pele de leão de Hércules mudou de verde para preta, e
assim por diante. Essas diferenças não afetam a iconografia, mas
sugerem que as imagens foram copiadas das linhas de um desenho
intermediário, e não diretamente do modelo colorido. Lembre-se
também de que os desenhos calcados do manuscrito de Leiden
tinham contornos, mas não incluíam rostos. Isso teve uma estranha
consequência. As figuras em Boulogne são feitas por um artista,
mas todas as características faciais — olhos, narizes etc. — foram
claramente inseridas por mãos diferentes, e provavelmente em
ocasião posterior. As primeiras estão em tinta marrom num estilo
típico anglo-francês de cerca de 1100; o rosto de Órion é deixado
todo em branco (fica no fólio 27v); e a totalidade dos rostos a partir
daí são completados com uma tinta preta bem irregular. Esse
detalhe sugere também que eles usaram como modelo não o
manuscrito que está hoje em Leiden, mas o conjunto intermediário
de desenhos de contorno, sem rostos, e que a princípio o artista em
São Bertino entendeu erroneamente que as cabeças não
caracterizadas por rostos eram um requisito do projeto.

Cópia do Arateia feita no tempo de Odbert, abade do mosteiro de


São Bertino de 986 a c. 1007, agora na biblioteca municipal de
Boulogne-sur-Mer.

Essa observação, se estiver correta, exclui a hipótese de que o


manuscrito de Leiden em si esteve em posse de São Bertino, e de
fato ele não está listado no catálogo dos séculos XI a XII da
biblioteca da abadia. Pode até ter estado por algum tempo na
Inglaterra. Ao que parece, a biblioteca da corte carolíngia não
sobreviveu além do século IX. Muitos de seus grandes manuscritos
acabaram indo para a Inglaterra anglo-saxã, inclusive o Saltério de
Utrecht e aquela outra tradução de Arato por Cícero, e há vários
percursos pelos quais isso poderia ter acontecido, inclusive através
de Judite, neta de Luís, o Piedoso, que se casou em 856 com
Etelvulfo, rei de Wessex e pai do rei Alfredo. Outro caminho pode ter
sido através de Grimbald de São Bertino (m. c. 901), o erudito
trazido para a Inglaterra por Alfredo, como Alcuíno foi para a França,
enviado por Carlos Magno, para ajudar na reforma cultural. Existiu
claramente uma espécie de intercâmbio intelectual entre as cortes
francesa e inglesa, que passava a cada vez por São Bertino,
caminho para o cruzamento do canal. É procedente que Odbert, que
era abade quando a cópia foi feita, mandou trazer exemplares de
manuscritos e também artistas tanto da Inglaterra como da França.

Voltemos agora à biblioteca em Leiden. Uma característica muito


invasiva que desfigurou o manuscrito do Arateia é o fato de, por
volta de 1300, o texto ter sido recopiado seção por seção no mesmo
livro numa caligrafia gótica pequena e apertada, adjacente à original
em capitulares rústicas. Essa feia escrita preenche muitas páginas
em branco do manuscrito e os generosos espaços que tinham sido
deixados entre versos. A transcrição foi malfeita, muitas vezes com
erros de puro descuido. Nessa instância da cópia, com efeito, o
manuscrito medieval mais tardio e seu modelo mais antigo
aparecem no mesmo volume, até nas mesmas páginas. É evidente
que para a maioria dos leitores no final do século XIII as belas
maiúsculas antigas não tinham melhor legibilidade. Vimos algo
semelhante no Livro de Kells, onde as impenetráveis páginas de
texto com monogramas foram reescritas muito mais tarde num latim
legível, em suas margens inferiores. O Arateia, por certo, ainda tinha
alguma função quatrocentos anos depois de ter sido feito, mesmo
quando já se perdera a familiaridade com sua escrita arcaica. O
manuscrito já era, naquela data, mais antigo do que o original do fim
do século IV tinha sido para os carolíngios. Evidentemente ainda era
considerado útil, e precisava ser tornado legível.

Inscrição que atribui propriedade a Jacob Susius, registrando que


ele comprou o manuscrito Arateia da escola de um pintor em
Gante, em 1573.

O Arateia provavelmente não esteve numa biblioteca monástica ou


institucional em toda a Idade Média mais tardia. Na folha de rosto do
fim há um registro desbotado de um preço, escrito com uma pluma,
talvez no século XIV ou XV, “xxii lb. xix s.”, 22 livres e 19 sous.
Qualquer que fosse o valor da moeda, era muito dinheiro. Era ou um
preço anotado para ser vendido, ou o registro do preço pago na
compra, ou pode ter sido uma avaliação de referência para um lance
ou um empenho. Apesar da caligrafia reescrita, o manuscrito
provavelmente era valorizado por suas figuras, que podem ter sido
usadas como modelos para outras obras de arte, ou até mesmo de
arquitetura. Esteve, claramente, nas mãos de algum tipo de artífice.
Há um número de esboços marginais para iniciais ornamentadas,
tais como uma floreada letra “A” no fólio 63r, e a figura de um
homem de pé no fólio 82v, rabiscada contra o fundo a miniatura,
invisível a menos que se segure a página à contraluz. Alguns
símbolos acrescentados à pluma me parecem ser marcas típicas de
pedreiros da Idade Média tardia.
O manuscrito sem dúvida pertenceu a uma oficina de artista
quando seu provável primeiro dono o adquiriu. No topo da folha de
guarda na frente há uma inscrição do século XVI, “Sum Iacobi
D[anielis] F[ilius] P[atris] N[icholai] Susii, E pictoris pergula emptus
mihi” — esta última palavra inserida acima da linha — “Gandavi
Anno a Chr[ist]o corporato MDLXXIII, Mense Januario, Machilina bis
capta care[n]ti, καὶ παροικᾦ”, “Eu pertenço…” (é o livro que fala) “…
a Jacob filho de seu pai Nicolaus Susius, comprado por mim…”
(agora fala Susius) “… da escola de um pintor em Gante, no ano da
encarnação de Cristo 1573, no mês de janeiro, [quando eu estava]
no exílio, estando havia muito ausente das duas vezes capturada
Mechelen”. Ele era Jacob Susius, ou Suys (1520-96), humanista e
filólogo, de passagem por Gante em seguida ao saque de Mechelen
pelos espanhóis em 1572. O manuscrito foi mencionado por Susius
numa publicação de 1590 dirigida a seu amigo Janus Dousa (1545-
1604), primeiro bibliotecário em Leiden. Susius ali lhe promete que
providenciará uma edição do antigo Arateia quando conseguir
encontrar um gravador adequado para copiar as figuras.
Isso foi finalmente realizado dez anos depois por seu precoce
aluno, Hugo Grócio (1583-1645), mais tarde célebre classicista e
jurista. Grócio tinha escrito seu primeiro livro com dezesseis anos de
idade, uma edição de Marciano Capela publicada em 1599, logo
seguida por uma do Arateia, que ele intitulou Syntagma Arateorum,
Opus poeticae et astronomiae utilissimum, publicada em Leiden em
1600. Grócio não diz que o manuscrito pertenceu a ele
pessoalmente, mas é claro que pertenceu, como é relatado mais
tarde por Andreas Cellarius (c. 1596-1665) em seu Atlas Coelestis,
1661, observando que o original tinha sido adquirido por Grócio dos
herdeiros de Jacob Susius mediante a ajuda de Dousa. Grócio foi
um grande colecionador e acabou formando uma biblioteca
maravilhosa. Em 1618, seu desalinhamento teológico levou a que
fosse condenado à prisão perpétua no castelo de Loevestein, no
centro dos Países Baixos. Com a ajuda de sua diligente esposa,
tramou uma dramática fuga da prisão em 1621, escondido numa
caixa de livros, e o casal fugiu para Paris com sua biblioteca. Ali
foram contatados por Christina da Suécia (1626-89). Três anos após
a morte de Grócio, sua viúva concordou em vender para Christina a
biblioteca do marido en bloc, por 24 mil florins. A coleção chegou a
Estocolmo em meados de outubro de 1648, e é de supor que o
Arateia estivesse incluído nessa remessa.
Christina, assim como Joana de Navarra e Margarida da Áustria,
com quem nos encontraremos em capítulos posteriores, pertenceu a
essa classe improvável das reines bibliophiles. Era a única herdeira
de Gustavo Adolfo, rei da Suécia de 1611 a 1632, a quem sucedeu
no trono com a idade de seis anos, assumindo o controle de seu
reino escandinavo a partir do 18o aniversário, em 1644. Era
fascinada pelos aspectos extremos da religião, da ciência e do
ocultismo, e as figuras esotéricas e enigmáticas do Arateia, então
com novecentos anos, se enquadravam bem nesse seu enfoque. A
rainha Christina reunia livros e manuscritos com a mesma
assiduidade com que cultivava aqueles que os estudavam. Suas
coleções tiraram extraordinário proveito dos espólios suecos da
Guerra dos Trinta Anos, inclusive no que tange a alguns dos mais
belos manuscritos otonianos. Mais tarde, em 1654, Christina
abdicou, tornou-se católica em 1655, e se transportou, junto com
cerca de 2 mil manuscritos incrivelmente importantes, para Roma,
onde os Codices Reginenses, os códices da rainha, ainda estão
entre as glórias da biblioteca do Vaticano.
Quando ainda em Estocolmo, Christina tinha trazido eruditos à sua
corte, para que fossem seus tutores e bibliotecários e para
ornamentar seus salões, entre eles o filósofo René Descartes, que
estava a seu serviço quando morreu, em 1650. Depois dele o mais
conhecido foi Isaak Voss (1618-89, também chamado Vossius, em
latim). Ele era membro de uma respeitada família de intelectuais
holandeses, classicista e teólogo, que já havia trabalhado num vasto
âmbito de bibliotecas da Europa detentoras de manuscritos. Ele
conhecia James Ussher, o arcebispo de Armagh que foi o primeiro a
chamar a atenção para o Livro de Kells, e também Hugo Grócio, em
Paris. Voss recebeu o chamado real de Christina no verão de 1648.
Chegou a Estocolmo em março de 1649: em sua primeira audiência,
ele se dirigiu a ela em latim, e ela respondeu em holandês. No início
foi tudo muito cordial. Voss ensinou-lhe grego. Ele trouxe sua
própria coleção de livros de referência para a Suécia e a pôs à
disposição da rainha, acabando por se tornar indistinguível dos
livros dela mesma. Contudo, os relacionamentos com monarcas
absolutos são sempre arriscados. Em momento posterior, no outono
de 1653, ao menos segundo o relato de Voss, a rainha Christina pôs
fim unilateralmente a seu contrato e lhe sugeriu escolher livros de
sua grande biblioteca em lugar de salários não pagos e como
compensação pelos livros dele que ela havia incorporado aos seus
próprios. A nenhum bibliófilo se deveria apresentar tal tentação.
(Sinto que devo fazer uma pausa agora para permitir que eventuais
colecionadores sonhem com o que poderiam escolher se
estivessem na mesma situação.) Dez baús com livros retirados da
biblioteca real foram despachados via Hamburgo para Amsterdam
em março de 1654, e mais uma remessa seguiu em junho do
mesmo ano. Compreensivelmente, houve rumores em Estocolmo de
que Voss tinha assaltado a biblioteca da rainha, o que ele negou
com veemência. Sua presa, no entanto, incluía não só o Arateia
como também o grande Codex Argenteus do século VI, os
Evangelhos na língua dos godos, que Voss prontamente revendeu e
hoje estão na biblioteca da universidade de Uppsala. O Arateia,
contudo, ele manteve consigo. Após sua morte ele foi vendido, em
1690, junto com o restante de sua coleção, para a Universidade de
Leiden. Ao pé da primeira página do manuscrito há uma etiqueta
impressa numa tira de papel, “Ex Bibliotheca Viri Illust. Vossii”, à
qual se acrescentou à tinta o número 296. Na lombada da caixa na
qual eu posteriormente devolvi o Arateia de Leiden ao vigia da sala
de leitura, há um retângulo vermelho com um rótulo em papel, “IS.
VOSSII Codex Latinus Qto No 79”.
Reine bibliophile: Christina, rainha da Suécia
de 1632 a 1654, representada em c. 1649-50
pelo pintor flamengo Erasmus Quellinus como
a deusa Atena, padroeira da sabedoria.

A cópia exata dos manuscritos não terminou junto com a Idade


Média, e não está terminada nem mesmo agora. A edição do
Arateia por Grócio em 1600 foi, até onde permitiam a tecnologia e o
bom gosto, fac-símile (ou cópia) do manuscrito. As figuras gravadas
estão muito próximas daquelas do exemplar do século IX. Alguns
detalhes foram mudados, como o comprimento dos chifres do Touro,
e todos os fundos se transformaram em céus com nuvens
ondulantes, sem bordas delineadas. Grócio não teve escrúpulos
para melhorar a sequência das gravuras, de acordo com suas
leituras do Almagesto de Ptolomeu, e inventou figuras que estavam
faltando no manuscrito, como as de Libra e de Virgem. Como o
frontispício de Júpiter já estava faltando, ele o substituiu pelo
planetarium de Leiden, impresso de cabeça para baixo (ao menos
naquele que eu examinei). Fundamentalmente, no entanto, a escala
e a solenidade das figuras do modelo arcano carolíngio (e,
retrocedendo ainda mais, do romano tardio) foram mantidas em sua
integridade. Não se pode dizer isso da reprodução seguinte do
planetarium, que foi ampliada num grande mapa de página dupla
quando recopiado de uma gravura de Grócio para o Atlas Coelestis,
em 1661, agora enfeitado com uma magnífica borda barroca, com
putti*** sustentando os títulos e astrônomos exóticos discutindo e
medindo globos celestiais e terrestres. Esse atlas monumental dos
céus foi dedicado a Carlos II, rei da Inglaterra de 1660 a 1685, e há
certo e secreto prazer em imaginar o rei Carlos olhando uma figura
derivada do manuscrito do Arateia carolíngio.
A história da impressão de fac-símiles de manuscritos traz a
prática da cópia de manuscritos diretamente para a era moderna. O
Virgílio do Vaticano do século IV, que escapou de ser reproduzido na
França do século IX, tornou-se um dos primeiros fac-símiles
impressos, publicado em 1741 usando gravuras das figuras
copiadas do original por Pietro Santi Bartoli, no século XVII. A
invenção da fotografia no século XIX revolucionou a possibilidade de
reprodução de manuscritos medievais, assim como fez o escâner
digital em nossa época. A técnica da cromofotolitografia foi
aperfeiçoada na década de 1860. Muito rapidamente abriu-se todo
um campo de novas possibilidades para a reprodução de
manuscritos iluminados, como nunca antes desde a Idade Média.
Fac-símiles notáveis incluíram o Breviário Grimani (1862, e outra
vez em 1903-8); o Saltério de Utrecht (1874); o Livro do Apocalipse
do século XIII, Biblioteca Bodleiana MS Auct. D. 4.17 (1876), primeiro
fac-símile de manuscrito do Roxburghe Club;**** o Antigo
Testamento Siríaco do século VI, na Biblioteca Ambrosiana em Milão
(1876); o Codex Alexandrinus da Bíblia grega, em Londres (1879-
83); o Codex Egberti em Trier (1884); o manuscrito de Sófocles na
Biblioteca Laurenziana (1885); Miracles de Notre-Dame, de Miélot,
na Bodleiana (1885); o Niebelungenlied de Munique (1886); o Livro
de Ballymote, na Academia Real Irlandesa (1887); o Fechtbuch de
Talhofer, em Gota (1887); o Codex Manessee (1887); as Regras de
Leiden de Chrodegang de Metz (1889); o Codex Vaticanus bíblico
do século quarto (1889); os Evangelhos Otonianos em Hildesheim
(1891); a saga de Edda dos Anciãos (1891); O Livro de Horas de
Bona Sforza (1894); o Livro de Horas de Henessey (1895, e
novamente em 1909); os então recém-identificados Evangelhos de
Santa Margarete da Escócia (1896); as miniaturas dispersas do
Livro de Horas de Étienne Chevalier (1897); os fragmentos do
século V de Itala de Quedlinburgo, em Berlim (1898); a Hagadá de
Sarajevo (1898); o Codex Bezae em Cambridge (1899); o Livro da
Coroação de Carlos V (1899); o Pontifical de Metz (1902); o Saltério
de São Luís, em Leiden (1902); o Très Belles Heures do duque de
Berry (1904); o Missal de Stowe (1906-15); o livro de esboços de
Villard de Honnecourt (1906); o Térence des Ducs na Bibliothèque
de l’Arsenal (1907); o Livro de Horas de Ana da Bretanha (1909); o
Breviário de Filipe, o Bom (1909); o Livro do Apocalipse do Trinity
College (1909); o Benedicionário de santo Etelvoldo (1910); Os
Evangelhos de Goslar (1910); a Bíblia de Carlos, o Calvo (1911); o
Codex Sinaiticus (1911-2); os Evangelhos de Freer (1912); O
Saltério da rainha Mary (1912); e muitos, muitos outros. Assim como
a cópia de manuscritos na Idade Média, algumas dessas produções
eram, a rigor, acadêmicas e algumas foram feitas primordialmente
para o prazer estético de seus adquirentes.
O planetário do manuscrito Arateia copiado numa gravura de
Syntagma Arateorum, de Hugo Grócio, publicado em Leiden em
1600.
O planetário copiado novamente com enfeites em volta, no Atlas
Coelestis seu Harmonica Macrocosmica, publicado em
Amsterdam em 1661.
A produção de dispendiosos “fac-símiles de belas-artes” de
manuscritos medievais famosos foi popularizada em especial na
segunda metade do século XX e hoje constitui uma vasta indústria,
particularmente para colecionadores na Alemanha, na Suíça e na
Espanha. A firma Faksimile Verlag, fundada em Lucerna em 1974,
publicou um fac-símile em cores do Arateia de Leiden para o
mercado de luxo, em 1989. A publicação desse livro moderno é, em
si mesma, outro estágio na história das cópias do manuscrito de
Arateia, que é uma cópia do século IX de um códice do século IV ou
V, derivado, com toda a probabilidade, de um original na corte da
Roma imperial, que copiou um manuscrito da Grécia antiga. A
maioria das reproduções modernas publicadas do Arateia agora não
é mais obtida diretamente do precioso manuscrito em Leiden, mas
sim de um fac-símile suíço ou de versão on-line digitalizada.
Portanto, estas, por sua vez, tornaram-se modelos. Esse processo
ainda continua. Os donos dos fac-símiles frequentemente dizem que
possuem um “original” numerado, mas a definição de originalidade
tem sido sempre complexa quando se trata de manuscritos
medievais.

* Combinada com a inclinação do eixo de rotação da Terra. (N. T.)


** A ordem do alceamento é: i7 [de 8, faltando i (número do fólio, “1”)], ii7 [de 8, faltando v
(número do fólio, 13)], iii-viii8, ix2+6 [i.e., um par de folhas (fólios “69” e “71”) + 6 folhas
soltas], x7 [de 8, faltando ii (número do fólio, “74”)], xi10+1 [fólio “81”, no início, é uma folha
solta], xii8 [de 10, faltando iv (número do fólio, “95”) e vii (sem número no fólio)]. Como
observado acima, a numeração moderna a lápis geralmente leva em conta as folhas que
faltam, o que é um tanto confuso já que o frontispício original se perdeu e o manuscrito
começa naquele que agora é numerado como fólio 2.
*** Figuras de meninos rechonchudos, muitas vezes com asas, mais parecendo anjos,
usadas em pinturas ou esculturas. (N. T.)
**** A mais antiga sociedade de bibliófilos do mundo. (N. T.)
5

O Beato de Morgan
meados do século X
Nova York, Biblioteca e Museu Morgan, M 644

As regras de procedimento enviadas com vários dias de


antecedência a pessoas que solicitam ver os manuscritos da
Biblioteca Pierpont Morgan incluem uma instrução que não
encontrei em nenhum outro lugar: “Por favor, evite usar esmalte
colorido nas unhas, pois pode deixar marcas no material raro que
você está manuseando”. É uma regra tão intrigante quanto
incomum. Brilho frívolo e consciência cultural andam de mãos dadas
na maravilhosa Babel moderna que é Nova York. Eu tinha escrito à
biblioteca pedindo permissão para ver seu manuscrito ilustrado do
século X sobre o fim do mundo, como previsto no Livro do
Apocalipse. Esse manuscrito, Morgan M 644, é famoso por suas
grandes cenas gráficas de tumulto e ruína, e pelos esperados
julgamento e destruição da civilização. Enquanto caminhava pela
Madison Avenue, em meio ao incessante barulho da cidade, a fúria
dos táxis amarelos e o uivo dos carros de polícia, o clangor de
construções, as irrupções de um vapor satânico de respiradouros
subterrâneos aquecidos e todo o estridente frenesi do comércio,
consegui evocar muitos filmes de catástrofes apocalípticas
ambientados entre essas torres que se elevam aos céus. Tudo aqui
parece ser imaginável. Manhattan é certamente a metrópole mais
urbana do mundo ocidental. O Apocalipse 18,16 e 18 lamenta: “ó
grande cidade, vestias linho puro, púrpura e escarlate, e te
adornavas com ouro” — olhem para cima e vejam o dourado Life
Insurance Building quando passamos pela 26th e pela 27th Street —
“pedras preciosas e pérolas […] ó grande cidade, com tua opulência
se enriqueceram todos os que tinham navios no mar”. O texto
bíblico não se refere a Nova York, é claro, mas essa descrição é
compatível com ela. É um lugar sofisticado e estimulante, com um
quê de pecado, e excitante de se visitar. Encontra-se
permanentemente barulhenta e ocupada. É a única cidade na
América em que há grande número de pedestres ao longo das
calçadas, surgindo depressa e se agrupando em cada esquina
quando muda a luz do sinal de trânsito, embora ninguém pareça
saber agora para onde está indo, pois a maioria segura um café
para viagem e olha para baixo, para seu celular, lendo e enviando
mensagens de última hora enquanto segue em frente, às cegas.
Tudo em Nova York parece estar numa corrida apressada contra o
tempo. Enquanto eu também avançava pela avenida, parecia ser
uma oportunidade adequada para refletir sobre o fim do mundo.
No decorrer da história, as pessoas frequentemente acreditaram
estar vivendo os últimos dias do mundo. Essa visão ainda tem hoje
seus adeptos. Uma crença comum do cristianismo no início da
Idade Média foi a de que a duração do universo devia ser dividida
em seis épocas iguais, das quais a sexta e última estava levando,
então, com certeza, a seu iminente fim. Isso tinha como base uma
interpretação dos seis dias da Criação como uma prefiguração de
um plano divino. Como 2a Pedro 3,8 equipara explicitamente um dia,
nos olhos de Deus, a mil anos na terra (isso, por sua vez, um eco do
Salmo 90,4), esperava-se, portanto, que a criação durasse 6 mil
anos, do início ao fim. Após a conclusão do milênio final, previa-se
que o diabo seria confinado num buraco por mais mil anos, durante
o reinado de Cristo (como é descrito com algum detalhe no
Apocalipse 20), antes do Juízo Final. As durações de tempo
apresentadas nas genealogias do Antigo Testamento podem ser
somadas, situando a data da Criação em cerca de 5500 a.C., e
assim havia uma presunção lógica de que o sexto milênio poderia
chegar a seu fim por volta de 500 d.C. Essa era, por exemplo, a
expectativa de Hilariano, autor da Chronologia sive Livellys de
mundi duratione, escrita em 397, que estimava só restar pouco mais
de cem anos antes do antecipado cataclismo final. Outros, inclusive
seu contemporâneo Santo Agostinho de Hipona (354-430),
sugeriram que a sexta era já teria com certeza terminado com a
encarnação de Cristo, e que o mundo estava agora na contagem
regressiva dos mil anos de acorrentamento do diabo. No entanto,
Agostinho também acautelou contra uma interpretação demasiado
literal das pistas numéricas que se espalham nas Escrituras, e citou
os textos nos quais aparentemente nem mesmo o próprio Jesus
sabia com precisão quando o prenunciado fim ocorreria (Marcos
13,32 e Atos 1,7).
Não obstante, o último livro da Bíblia, o Apocalipse, ou Livro da
Revelação, descreve uma visão muito precisa do fim do mundo,
como revelado na ilha de Patmos a são João, o Divino. Fala de
signos que marcarão a realização de suas profecias, inclusive o
advento de um persuasivo Anticristo que surgirá como um animal de
dentro da terra e enganará até mesmo os fiéis (Apocalipse 13), e a
chegada da Prostituta da Babilônia, adornada com ouro e joias (e,
sem dúvida, esmalte de unhas colorido), embriagada do sangue dos
santos (Apocalipse 17). Foi fácil, em todas as épocas, identificar
prodígios como esses com pessoas e lugares factuais de seu
próprio tempo, e equiparar o caos contemporâneo com o que se
desenrolava na realidade dos eventos apocalípticos vividamente
previstos na Escritura.
Estamos prestes a olhar para uma interpretação do Apocalipse
compilada na Espanha pelo monge Beato de Liébana (talvez c. 740-
c. 800), membro, ao que parece, do mosteiro de São Martinho de
Turieno, hoje chamado São Turíbio de Liébana, a meio caminho
entre León e Santander, no norte da Espanha. Embora Beato esteja
documentado como escritor, seu nome na verdade não ocorre em
nenhum dos manuscritos. Contudo, sua autoria foi atestada na
Idade Média tardia e tem sido aceita universalmente. Pistas que
consistem em outros escritos do Beato sugerem que seu comentário
sobre o Apocalipse foi iniciado por volta de 776 e que foi revisado
durante a década seguinte. Esse foi um período da história em que
a destruição prevista no Apocalipse deve ter parecido, terrivelmente,
estar em curso, sobretudo na Espanha. Era flagrante que a antiga
civilização romana hispânica estava em ruínas. Berberes
muçulmanos do norte da África atravessaram em hordas o estreito
de Gibraltar em 711. O Califado Omíada foi estabelecido em
Córdoba em 756. Não foi difícil aos monges cristãos espanhóis
identificar Maomé com o Anticristo apocalíptico. Os contra-ataques
de Carlos Magno começaram em 778, e foram considerados
batalhas bíblicas entre o bem e o mal. Outros cálculos das datas da
criação do mundo situaram esse evento por volta de 5200 a.C.,
permitindo com isso que o fim do sexto milênio fosse ajustado para
o ano de 800 d.C., o que deve ter parecido crível ao menos para
Beato de Liébana na Espanha, quando o século VIII se aproximava
do fim.
A popularidade de determinados manuscritos pode
frequentemente transmitir uma clara noção das preocupações de
uma cultura. Não sobrevivem cópias do comentário do Beato no
período de vida do compilador. O fatídico ano de 800 passou sem
que sobreviesse a catástrofe. Durante cem anos o texto quase não
foi lido. Só se conhece uma única folha decorada do fim do século
IX, que sobreviveu por sorte na biblioteca monástica em Silos,
província de Burgos, no norte da Espanha. Os primeiros
manuscritos ilustrados do Beato começaram a aparecer em gotas,
que se tornaram uma torrente moderada entre meados e a segunda
metade do século X, já com o ano do milênio, 1000, à vista. O mais
antigo manuscrito do Beato datável, feito durante o período que
culminaria em seu novo prazo apocalíptico, é a cópia que estamos
prestes a ver na Biblioteca Morgan.
A Biblioteca (“e Museu”, agora acrescentado ao nome numa
tentativa de parecer menos intelectualmente elitista) Morgan ocupa
todo um quarteirão de frente para a Madison Avenue entre a 36th e a
37th Street. Seu coração é a biblioteca construída num estilo
renascentista italiano em 1902-6, para o banqueiro John Pierpont
Morgan (1837-1913), completada e entregue ao público por seu
filho, J. P. Morgan Jr., em 1924. Suas coleções reunidas são mesmo
de primeiríssima classe, tão sofisticadas e abrangentes quanto
qualquer uma na Europa. Os prédios foram expandidos em diversas
etapas, mais recentemente numa dramática e inconcebivelmente
dispendiosa remodelação feita pelo arquiteto Renzo Piano, e
completada em 2006. Como eu devia chegar antes do horário
normal de abertura da biblioteca, as instruções que me foram dadas
por Roger Wieck, curador de manuscritos, foram que me dirigisse à
entrada do pessoal, dobrando a esquina do antigo prédio de arenito
pardo para chegar à 24 East 37th Street. Apertei a campainha e,
tendo uma voz perguntado o que desejava, fui admitido num
vestíbulo que mais parecia um espaço de carga e descarga, com o
balcão da segurança por trás de uma porta corrediça de vidro.
Escrevi meu nome num livro, ao lado de um número, no meu caso
“ID # 1214”, que também estava escrito no crachá de plástico que
recebi, do tamanho de um cartão de crédito. Aqui, não querem
correr riscos. Após uma breve espera fui escoltado por um homem
vestido como um condutor de trem de uniforme vermelho-escuro
com o logo da biblioteca no bolso da jaqueta até o espaçoso átrio
aberto de Piano, tão alto quanto o próprio prédio. Tem janelas
decoradas com quadros translúcidos de cores claras, como recortes
de papel, e imensas placas de vidro plano suspensas do teto,
refletindo as janelas e para sempre girando no ar. Há dois
elevadores com paredes de vidro um ao lado do outro, e
aparentemente nenhuma escada. Meu guia me orientava, e me
segredou que tínhamos de ir ao terceiro andar. Você desliza para
cima através do espaço, num percurso bem acima das áreas de
visitação pública e sem dúvida nada prazeroso para os acrófobos, e
dobrando à direita emerge na Sala de Leitura Sherman Fairchild. É
um vestíbulo duplo com portas trancadas em cada extremidade,
como a entrada dos cuidadores na jaula do leão num zoológico, e
mais uma mesa para a segurança, com mais livros a assinar na
hora da chegada e da saída. Em meu segundo dia (aqui dei um
salto à frente) fui solicitado pela assistente a declarar se tinha
lavado as mãos. “É uma exigência ou uma medida de proteção à
saúde?”, perguntei, fingindo espanto. “É o regulamento”, ela replicou
formalmente, ignorando o sarcasmo, e eu notei que de fato havia
uma pequena pia acessível aos usuários na entrada da biblioteca,
junto a um conjunto de armários para bolsas e pastas dos leitores.
Na verdade, não é uma má ideia, preferível a usar luvas, e,
obediente, cumpri a obrigação.
Sala de Leitura Sherman Fairchild na Biblioteca Morgan, aberta
em 2006 para a consulta a livros raros e manuscritos.

Finalmente, eles destrancam a segunda porta, e você entra na


extremidade da sala de pesquisa. É retangular, sem janelas, com
livros de referência alinhados pelas paredes e em torno de uma
galeria em mezanino com teto de vidro. O teto inteiro é uma
claraboia velada. Há uma meia dúzia de compridas mesas de
madeira polida, cada uma com três cadeiras de estrutura cromada e
preta, com assentos vermelhos. Sobre as mesas há elegantes
luminárias Anglepoise. Escolho um assento junto a um suporte de
livros ajustável de madeira, de frente para o balcão de serviço, e
abro o suporte na expectativa de um manuscrito muito grande.
Expressões de desaprovação percorrem o rosto dos vigias. Em
silêncio passam-me uma folha plastificada com instruções. “Regras
para manuseio de manuscritos encadernados” (a Biblioteca Morgan
é totalmente diferente da Biblioteca Laurenziana em Florença), que
inclui o trecho: “Os livros devem ser vistos nos suportes para evitar
danos às encadernações. Não ajuste os suportes. Se quiser mudar
o posicionamento para um livro, peça a um membro da equipe, que
determinará se isso pode ser feito com segurança”. Um jovem,
talvez com um terço de minha idade, reajustou o suporte para a
posição vertical, sem me perguntar. Eu via o manuscrito do Beato
esperando por mim no balcão, dentro de uma grande caixa forrada
de tecido cinza. “Quer primeiro o volume I?”, perguntou uma mulher
com um penteado primoroso e um estiloso paletó azul. Eu disse que
não sabia que ele agora estava em dois volumes. Outra mulher,
vestida da mesma forma com roupas caras (isto é Nova York) e
suspeitando que eu nada sabia, perguntou se eu também queria ver
uma cópia da descrição do livro, datilografada pela própria
biblioteca: eu respondi que ficaria muito grato. Também me
trouxeram uma grande lupa, que eu não tinha pedido, mas fiquei
contente por dispor dela, e réguas de plástico macio para tirar
medidas, já que as minhas tinham sido examinadas e consideradas
um perigo potencial. Havia também lastros para manter os
manuscritos abertos, feitos de correntes de metal revestidas de
veludo azul e macio. Por fim consideraram que eu estava pronto
para prosseguir, e o primeiro volume foi trazido até mim.

A odisseia do manuscrito, da Espanha a Nova York, envolveu


aventuras que teriam assustado seus atuais vigias. Tomei
conhecimento de algumas delas naquela descrição em três páginas
datilografadas, que li primeiro, com cuidado. Havia evidência de que
desde pelo menos 1566 ele pertencera à ordem militar de Santiago
de Uclés, província de Cuenca, na Espanha central. Aparentemente
está listado no catálogo da biblioteca da ordem, do século XVIII, item
39, como tendo sido dado à ordem por Martin Pérez de Ayala (1504-
66), bispo de Guadix, de 1548 a 1560, e de Segóvia, de 1560 a
1564, e arcebispo de Valência de 1564 a 1566. A ordem foi
suprimida em 1837. O que aconteceu depois pode ser em parte
reconstituído de uma anotação num papel azul-claro dobrado, que já
esteve incluído no próprio manuscrito, mas que hoje faz parte de um
maço de cartas e documentos na Biblioteca Britânica em Londres,
onde eu já o tinha visto. Está assinada por Guglielmo Libri e datada
em Londres, 19 de abril de 1848. Ela nos conta que esse manuscrito
do Beato foi uma vez propriedade de Roberto Frassinelli (1811-87).
Ele era um cientista natural nascido na Alemanha que se tornara
comerciante de livros em Madri. A nota alega que ele obteve o
manuscrito, sem encadernação alguma, do abade de Valcavado, no
reino de Leão, em troca de seu relógio de prata, que fora avaliado
em trinta francos. Poder-se-ia demonstrar que isso, ao menos em
parte, não era verdade. Valcavado, onde o próprio Beato,
reputadamente, foi monge, de fato teve uma vez uma cópia desse
texto, mas ele deixou o mosteiro quando o lugar foi abandonado no
início do século VIII, e ela hoje se encontra na biblioteca da
universidade em Valladolid. Essa alegação ou foi por engano
confundida com a memória do outro manuscrito ou foi inventada na
esperança de ligar, plausivelmente, esse manuscrito ao autor
original. A nota relata que Frassinelli ofereceu seu manuscrito para
revenda, a um preço elevadíssimo, a diversas instituições, inclusive
as bibliotecas nacionais em Berlim e Paris, que declinaram de
comprá-lo se não o vissem (uma resposta tática que poderia estar
ocultando milhares de incertezas quanto à legitimidade do título), e
que Frassinelli recorreu então à assessoria de um intermediário,
professor Francisque Michel (1809-87), de Bordeaux, editor do
Roman de la Rose e de Chanson de Roland. Michel o vendeu em 6
de maio de 1847 ao autor da nota no papel azul-claro, conde
Guglielmo Bruto Icilio Timoleone Libri-Carruci dalla Sommaia (1802-
69), colecionador de livros, falsário e ladrão, que concordou
alegremente com o preço pedido por Frassinelli, pagável em Madri,
mais uma comissão de quinhentos francos para Michel.
Anotação assinada por Guglielmo Libri, antes incluída no
manuscrito do Beato, alegando que uma vez ele fora trocado por
um relógio de prata.

Libri, como o conhecem historiadores do livro, seria um tema


maravilhoso para um romance de capa e espada, ou mesmo um
musical. Ele era exuberante, corpulento, calvo mas com bastas
costeletas, desgrenhado, “como se nunca tivesse usado sabão e
água ou uma escova” (como descrito por Sir Frederic Madden, do
Museu Britânico), mas vestia-se com excentricidade, usava uma
capa, carregava um estilete — alegava ter medo de ser assassinado
— e era ao mesmo tempo infinitamente encantador e totalmente
amoral. Libri tinha sido professor de matemática, numa interminável
licença da universidade de Pisa, e um revolucionário fracassado na
Toscana. Vivia desde 1831 como exilado na França, onde conseguiu
nomeações para a Sorbonne e mais tarde para o Collège de France.
Foi eleito cavaleiro da Legião de Honra em 1837. Em 1841 tornou-
se secretário encarregado do Catalogue général des manuscrits des
bibliothèques publiques des départements, que ainda é texto de
referência padrão que lista os manuscritos nas bibliotecas
municipais da França, muitas das quais ele visitou por dever de
ofício. Assim como um touro que tivesse sido vendido para ser
reprodutor, Libri estava no céu. Ele foi — e nesse aspecto eu o
defendo, pois ele tem muitos e ferozes detratores, mesmo agora —
um esclarecido paleógrafo e estudioso de livros raros, e um
colecionador engajado com um olho maravilhoso para raridades. Foi
um dos primeiros conhecedores da história da escrita e da
encadernação de livros antigos como artefatos por si mesmos.
Podem-se imaginar as quantidades verdadeiramente assombrosas
de manuscritos antigos não registrados que rolavam desordenados
no mercado livre para a custódia relutante de municipalidades locais
assediadas e despreparadas durante aquele meio século de
turbulência revolucionária na Europa. Libri não só aproveitou
oportunidades para aquisições interessantes, como a do Beato, mas
também ajudou as coleções públicas ao aliviá-las de tesouros que
não desejavam. Em alguns casos essas transferências podem ter
ocorrido com o consentimento não oficial dos guardiões locais, que
já não sabiam o que fazer com eles. Pelos padrões modernos julga-
se Libri de modo muito diferente. Ele é o ladrão mais conhecido na
história dos manuscritos. Hoje sabe-se que Libri roubou das
bibliotecas de Dijon, Lyon, Grenoble, Carpentras, Montpellier,
Poitiers, Tours, Orléans, Autun e de outros lugares, e até mesmo da
Biblioteca Real em Paris. Ele mutilou manuscritos de seus melhores
trechos. Obscureceu as proveniências, desmembrando livros e os
reconstruindo de modo irreconhecível, apagando inscrições antigas
e falsificando outras, com a ajuda de falsários profissionais em
Paris. Sem dúvida divertiu-se imensamente. Era tudo um jogo
glorioso e viciante, conjurando, para seu próprio prazer, muitos
níveis de enganação e ilusão. Libri pode muito bem ter inventado a
conexão entre o Beato e Valcavado simplesmente por esporte. Ele
também fez reparos no manuscrito e remendou suas bordas
danificadas, e encadernou tudo num veludo púrpura de aparência
antiga.
Guglielmo Libri (1802-69), colecionador e
dissidente, dono do Beato, desenho em cores
de c. 1850 atribuído a Édouard-Louis Dubufe.

Colecionar livros, mesmo com o suplemento de livros roubados, é


um passatempo caro para um homem que tem um estilo de vida
bem acima do que permite sua renda. Na época em que adquiriu o
Beato, em 1847, Libri já estava em negociações avançadas para
vender sua coleção de manuscritos en bloc ao Museu Britânico, em
Londres, por uma quantia que não era significativamente mais baixa
do que a que ele mesmo tinha avaliado, de 10 mil libras. No último
momento, foram levantadas dúvidas quanto às proveniências, e,
quando as conversações vacilaram, lorde Ashburnham interveio e,
com a mediação do livreiro William Boone, comprou
oportunisticamente toda a biblioteca de Libri por 8 mil libras. Ou na
mesma ocasião, ou durante o ano, ou quase, que se seguiu, Libri
desfez-se também do agora aprimorado manuscrito do Beato
passando-o à custódia do conde, no valor de 12 mil francos. Ele foi
listado como no XV na biblioteca de Ashburnham Place, próximo a
Battle, East Sussex, em 1853.
Bertram, quarto conde de Ashburnham (1797-1878), podia ser
tudo menos um espadachim fanfarrão. Era aristocrático, orgulhoso,
altivo, honrado, da Alta Igreja Anglicana, inflexível e impecavelmente
moral. Em grande parte devido à aquisição de coleções inteiras, ele
formou um honroso acervo com quase 4 mil manuscritos, muitos de
grande antiguidade e na maioria iluminados. Ele pode não ser uma
figura cativante ou amistosa na memória da posteridade, mas não
merecia ser sobrecarregado com as cada vez mais embaraçosas
mercadorias de um aventureiro continental cuja reputação terminou
em desgraça. Em 1850 as cortes francesas sentenciaram Libri, à
revelia, a dez anos de prisão, e o destituíram da Legião de Honra,
mas ele fugiu para a Inglaterra, lá se casou duas vezes, e morreu na
ensolarada Fiesole, nos arredores de Florença, em 1869. Enquanto
isso, Ashburnham e seu herdeiro, o mais descontraído quinto conde
(1840-1913), eram alvos de insinuações e ameaçados com
processos legais, culminando com uma negociação que pôs os
manuscritos italianos à disposição da Biblioteca Laurenziana em
Florença, em 1884, e os contestados manuscritos franceses, na da
Bibliothèque Nationale em Paris, em 1888. O Beato espanhol, não
sendo um nem outro, foi relegado ao assim chamado “Appendix”,
grupo de uns duzentos manuscritos de origem supostamente
inocente, enfim vendido em 1897 pela família Ashburnham, por 30
mil libras, a Henry Yates Thompson (1838-1928).
Yates Thompson era praticamente um colecionador profissional de
manuscritos. Mesmo para um homem que herdara uma fortuna e
com uma mulher rica, 30 mil libras era na época uma quantia
colossal. Yates Thompson concebeu a ideia de limitar sua biblioteca
a exatamente cem manuscritos, da mais alta qualidade possível,
sempre aprimorando sua coleção quando se ofereciam
oportunidades, descartando itens menores quando apareciam no
mercado exemplares melhores, mantendo o total em exatos cem
volumes. Manuscritos rejeitados do Appendix de Ashburnham foram
consignados à Sotheby’s (1o de maio de 1899); outros foram
excluídos depois, durante as constantes atualizações feitas por seu
novo dono. O volume do Beato sobre o Apocalipse manteve seu
lugar nos “Cem” de Yates Thompson ao longo de muitas rejeições, e
era o número 97 quando foi descrito para ele por M. R. James,
paleógrafo e escritor de histórias de fantasmas, no Descriptive
Catalogue of the Second Series of Fifty Manuscripts, o catálogo do
colecionador, publicado em 1902. Para isso, o manuscrito tinha sido
simplesmente empacotado e enviado pelo correio da casa de Yates
Thompson em Portman Square, zona oeste de Londres, para o
King’s College em Cambridge, onde James cobrava cinco guinéus
por descrição, não importasse o seu tamanho. O relato sobre o
Beato atingiu 27 páginas impressas, o mais longo texto sobre um
único item que ele jamais escrevera.
Numa medida que chocou M. R. James e outros, que supunham
que a coleção se destinava a ser patrimônio público na Grã-
Bretanha, Yates Thompson decidiu posteriormente vender seus
manuscritos na Sotheby’s, numa série de leilões que começou em
1919. Diz a tradição familiar que o fato de tê-los perdido de vista
roubou-lhe o prazer de possuí-los. Era exatamente o momento em
que o jovem J. P. Morgan (1867-1943) estava suplementando e
aprimorando a grande coleção do pai e fazendo planos para seu
futuro. Yates Thompson escreveu em 8 de setembro de 1918 para
Belle da Costa Greene, bibliotecária do sr. Morgan (que também a
herdou de seu pai), informando-a da iminente venda. Ainda antes de
sua carta chegar a Nova York, essa notícia sensacional foi
precedida por um telegrama de Bernard Quaritch, livreiro de
Londres. Greene escreveu de volta para Yates Thompson dizendo
que “houve um audível suspiro na biblioteca”. A primeira venda
estava marcada para 3 de junho de 1919. O Beato era o lote XXI
(todos os números eram em algarismos romanos). A descrição do
catálogo, escrita pelo próprio Yates Thompson, visava mobilizar
todos os tipos de interesse, comparando suas iluminuras com a de
manuscritos irlandeses e celtas, bem como com a arte bizantina e
“sarracena”, como ele a chamou. O Morgan mais velho tinha tido
uma cópia do século XIII do Beato (M 429), mas o filho e a
bibliotecária estavam os dois conscientes de que a coleção da
família era fraca em manuscritos muito antigos. Esta parecia ser sua
oportunidade para reparar essa falha. Assim, da venda de Yates
Thompson em 1919, J. P. Morgan, por intermédio de Quaritch,
assegurou para si sete lotes antigos, inclusive o Beato, que foi
comprado por 3 mil libras. Yates Thompson congratulou-se mais
tarde com Belle da Costa Greene (a carta está no arquivo da
biblioteca): “Eu não poderia desejar para os sete itens um lar mais
digno e encantador do que o que vão encontrar na Biblioteca
Morgan”, acrescentando que a quantia total que eles tinham
despendido por aqueles manuscritos “era mais ou menos a mesma
que fora paga por um certo francês entusiasmado, cujo nome não
posso revelar, pelo de Joana de Navarra”. Esse livro de horas e a
identidade de seu adquirente na venda de Yates Thompson serão
assunto do capítulo 9, mais adiante.

J. P. Morgan (1867-1943), que herdou e expandiu a grande


biblioteca de seu pai e a tornou pública em 1924; Belle da Costa
Greene (1883-1950), persuasiva bibliotecária de ambos os
Morgan e primeira diretora da Biblioteca Pierpont Morgan.
Henry Yates Thompson (1838-1928), que vendeu o manuscrito do
Beato em 1919, fotografado em 1906; o ex-líbris de Yates
Thompson, transferido da encadernação anterior do Beato,
registrando que adquiriu o manuscrito em 1897 da biblioteca do
conde de Ashburnham.

É assim que esse manuscrito do século X do Beato de Liébana


está agora diante de mim na Biblioteca Morgan, em Nova York. Não
está mais coberto com o veludo púrpura de Libri, pois foi
reencadernado na biblioteca em dois volumes, arbitrariamente, por
Deborah Evetts, em 1993, em couro fresco branco amaciado com
pedra-ume, sobre placas de madeira. Esse é o estilo que também
usamos agora na Biblioteca Parker para novas encadernações, mas
William Voelkle, hoje curador de pesquisa sênior, que àquela altura
veio me cumprimentar, comentou com um risinho de desaprovação
que ele agora parecia um álbum de fotos de casamento. O
manuscrito é grande, com cerca de 40 por 28 centímetros, o que por
si só nos diz que é um livro para exibição pública, para uso
comunitário em seu mosteiro e não para estudo íntimo e privado.
Quando completo em um só volume, compreendia trezentas folhas,
o que deve tê-lo feito quase tão impossível de manusear e levar nos
braços quanto o Codex Amiatinus.
Do lado de dentro da capa da frente há um ex-líbris em cinza com
letras brancas: “The Pierpont Morgan Library”. Abaixo dele,
transferida de uma encadernação anterior (não com facilidade, pois
as bordas se esfiaparam quando foi descolada), está a etiqueta
vertical de Yates Thompson em letras douradas sobre papel preto,
“EX MUSÆO HENRICI YATES THOMPSON”, com seu número, 97, e
“bsee.e.e, The Earl of Ashburnham May 1897”. Seu código privado
para o preço era “bryanstone”, onde “b” = 1, “r” = 2, “y” = 3 e assim
por diante, e portanto sua aquisição em 1897 tinha custado 1600
libras.
A julgar pelo registro do alceamento, a lápis, provavelmente na
caligrafia de Libri, as primeiras quarenta folhas tinham sido uma vez
encadernadas numa ordem diferente e caótica, e o tomo era aberto
no que é hoje o fólio 10, com o começo do prefácio do Beato. Essa
folha está muito danificada pela umidade ou por desintegração de
suas bordas. Aquelas manchas escuras persistem, diminuindo
gradativamente nas páginas que seriam as subsequentes. Nota-se
com clareza que o manuscrito ficou desencadernado durante algum
tempo e que suas folhas iniciais ficaram expostas aos elementos ou
a roedores.* Os cadernos ainda estavam muito misturados quando o
manuscrito foi alceado pela primeira vez por M. R. James.
Suponhamos (tenho certeza, com bons motivos) que as folhas
estejam agora reunidas a contento e encadernadas na sequência
correta do século X. O volume começa de fato com um agrupamento
de guardas feitas de grossos pergaminhos modernos, uma delas
desagradavelmente amarrotada, e depois o manuscrito original abre
com um losango ornamentado com uma moldura floral que contém,
num tabuleiro de xadrez, um acróstico de letras repetidas em
vermelho, azul e dourado, formando em todas as direções as
palavras “s[an]c[t]i micaeli lib[er]”, “livro de são Miguel”, indicando
propriedade ou patrocínio de um mosteiro dedicado ao arcanjo
Miguel. Segue-se depois uma série de retratos dos quatro
evangelistas, como os dos primeiros Livros de Evangelhos (ver
capítulos 1 e 3), ou de pares de anjos segurando entre eles livros de
Evangelhos. Em seguida há uma sequência de quadros
genealógicos de personagens do Antigo Testamento, de Adão a
Jesus, unidos por correntes de círculos e arcos coloridos. Adão e
Eva aparecem no canto superior esquerdo dessa abertura, nus e
com joelhos nodosos, numa cor rosa-pálido, como ingleses de férias
recém-chegados às praias espanholas. Os quadros refletem as
primeiras cinco idades do mundo, de Adão a Noé (embora a
segunda folha agora esteja faltando), de Noé a Abraão (“Incipit
secunda etas seculi”, anuncia), de Abraão a Davi, de Davi ao
cativeiro na Babilônia, e do cativeiro à Encarnação. A completação
dessas cinco primeiras idades do mundo leva à suposição de que a
atual sexta idade, a final, já está em curso e prestes a culminar no
Apocalipse e no fim dos tempos, que é o tema primordial do
manuscrito.
A primeira página do manuscrito, com um
elaborado acróstico que soletra o nome do
patrono, “sancti micaeli liber”, “o livro de são
Miguel”.
Sendo um Livro de Evangelhos antigo, o Beato
abre com retratos dos evangelistas: este é São
Lucas, transmitindo seu Evangelho a uma
testemunha.
As genealogias do Antigo Testamento, que
dividem a história do mundo em cinco eras,
começam com Adão e Eva.

Tudo isso era preliminar, como aqueles textos suplementares


acrescentados antes das aberturas dos Livros de Evangelhos. O
prefácio do Beato para o Apocalipse começa na folha que
atualmente é a décima. Há uma letra “I” muito alta, preenchida com
flores e entrelaçados coloridos, com a dupla função de começar
uma invocação (“In nomine domini…”, “Em nome do Senhor”) e o
cabeçalho de abertura (“Incipit liber revelationis…”, “[Aqui] começa o
livro da revelação…”). A inicial se assemelha à de abertura do
Gênesis numa Bíblia. O autor explica que decidiu apresentar as
principais profecias da Escritura, para poder confirmar a divindade
de Cristo, e fortalecer os fiéis e confundir os infiéis (uma alusão,
sem dúvida, aos muçulmanos na Espanha). Vimos no capítulo
anterior como autores medievais sempre alegam que seu trabalho é
copiado de escritores anteriores. Beato assevera devidamente que
as interpretações não são suas, e sim — isso no topo da segunda
coluna — que as tirou de Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Fulgêncio,
Gregório, Ticônio, Irineu, Apríngio e Isidoro. Suas fontes são na
verdade ainda mais amplas do que ele declara, e se estendem
retroativamente a Quintiliano, Salústio e Virgílio. Beato desculpa-se
por seu estilo precário, e espera que o Santo Padre Etério, a quem
dedica o livro, possa perdoá-lo. Esse nome está no defeituoso e
manchado canto inferior esquerdo, e eu jamais o teria encontrado
sem ter ao lado a edição impressa do texto.
Com efeito, Beato tem razão. A maior parte de sua compilação é
de fato extraída literalmente de escritores anteriores, sobretudo de
Ticônio, um comentarista da Bíblia norte-africano do fim do século
IV. Até mesmo grande parte do prefácio é copiada de sentenças
usadas alhures por Isidoro de Sevilha (c. 560-636), com o nome de
Etério, bispo de Osma em 785, substituído pelo da irmã de Isidoro,
Florina, no prefácio de seu Contra iudaeos. Estou consciente,
enquanto digito isto, de que muito do que posso dizer sobre
manuscritos do Beato é tirado, de modo semelhante, de numerosos
livros e artigos sobre o tema, do professor John Williams, que
morreu em 2015 quando este capítulo estava sendo esboçado, e
assim eu também pertenço a uma contínua tradição de deferência a
uma autoridade precedente. Beato organizou seu texto em doze
livros, cada um com seu prólogo próprio. Entre esses livros, o
Apocalipse é dividido em 68 storiae, ou seções de narrativa bíblica
de tamanhos variados, seguidas por longos comentários alegóricos,
cada um com um enorme cabeçalho em maiúsculas vermelhas e
azuis, às vezes em verde e púrpura também, “explanatio
supraescripte historie”, “interpretação da narrativa escrita acima”. As
passagens de cada storia são muitas vezes escritas em parte em
tinta vermelha, às vezes também em azul.
O prefácio ao comentário do Beato, explicando
o propósito desse comentário sobre o
Apocalipse e listando suas fontes. Por muitos
anos isso foi encadernado como a primeira
página, o que resultou em sérios danos.
Assim, por exemplo após os vários prólogos de Jerônimo, cada
um com seu comentário, a primeira storia abarca o Apocalipse 1,1-
6. A esta altura estamos no fólio 22v, pois o autor não está com
pressa de chegar a este ponto. A explanatio que a acompanha
conta que o livro se chama “Apocalipsis” (a palavra de abertura em
latim), porque trata de coisas ocultas, e “Apocalipse” significa a
revelação de segredos. Deus enviou seu anjo — isso é ainda do
primeiro versículo na Bíblia — numa indicação de que o livro não foi
concebido por reflexão ou a partir de textos falsos, mas diretamente
do mensageiro da verdade “para seu servo João”, o mais santo dos
apóstolos, a quem foi revelada a divindade de Cristo (como consta
em 1a João 1,1-2), que escreve a cada uma das sete igrejas da
Ásia, e não a uma somente, citando Malaquias 1,11 (“entre todas as
nações”), e há um mistério no número sete, pois seis e sete são
números divinos e, assim como houve seis dias para a Criação e um
para descanso, assim há as seis idades do mundo mais uma além
do fim do mundo, e daí as sete igrejas representam cada uma
dessas idades, e elas estão na Ásia, porque a palavra “ásia”
significa “elevado”, o mundo é elevado por Deus, de quem João traz
a graça, como em Êxodo 3,14 e João 1,1-2 e que preenche a terra
(Jeremias 23,24) e faz todas as coisas (Eclesiastes 24,8), e assim
por diante, citando Sabedoria 1,7, Atos 7,8, Isaías 40,12 e muito
mais. Isso é apenas um breve resumo. Preenche quatro páginas
enormes. A segunda storia é o texto de Apocalipse 1,7-11, no qual
aquele que vem com as nuvens declara ser o Alfa e o Ômega, quem
era, quem é e quem será. Sua explanatio por Beato diz que Deus
veio na forma de uma pomba, como a Pomba Sagrada que baixou
no batismo de Cristo, e que a palavra “pomba” em grego é
“peristera”, cujas letras têm um valor numérico tradicional e que
somadas dão oitocentos, que também é o valor da letra “ômega”, e
que a letra “alfa” em grego se escreve com três traços de igual
comprimento, simbolizando a Trindade, mas que um ômega em
latim se desenha com um círculo quase completo, que contém e
protege todas as coisas, e muito, muito mais. É exasperante, mas,
sendo muito justo, é um modo fascinante e caracteristicamente
monástico de estudar qualquer texto bíblico sob todos os ângulos,
palavra por palavra, buscando até os confins as camadas de
significado que pode haver em cada traço da pena.
Tudo isso faz supor uma estreita familiaridade com toda a Bíblia.
As miríades de citações das Escrituras são, na maior parte,
apresentadas sem referências. Espera-se que o leitor reconheça
suas fontes. Há também palavras no alfabeto grego, o que faz
pressupor um público com ao menos um conhecimento básico na
leitura dessa língua. Os mosteiros na Espanha do século VIII, com
todos os seus temores de que a civilização estava desmoronando
em volta deles, ainda se instruíam nos estudos clássicos. Algumas
citações bíblicas no manuscrito são escritas em tinta vermelha ou
são indicadas usando-se o diple. Essa é uma palavra grega que
significa “duplo”. Consiste em fileiras de pequenos símbolos curvos
que correm na vertical ao longo da margem junto a uma citação.
Sua primeira ocorrência aqui é no fólio 27v junto a um longo excerto
de Jeremias 31,33-34. O interesse desse antigo diple é que ele foi
mais tarde revivido pelos primeiros tipógrafos, para os quais a
impressão em cores era proibitivamente cara, e os descendentes
desse recurso sobrevivem hoje como esses símbolos elevados que
chamamos de aspas de citação ou de fala. Outra característica
cativante mas apenas decorativa do trabalho desse escriba em
particular é o uso de fileiras de pequenos corações vermelhos, como
esses que aparecem nos cadernos escolares de adolescentes
apaixonadas, enchendo linhas e dando vida a seu caráter
explicitamente ornamental.
O Beato da Morgan é escrito na caligrafia conhecida pelos
paleógrafos como minúsculas visigóticas. Para explicarmos isso,
temos de retroceder às origens do latim na antiga Roma. Havia duas
distintas classes de escrita comuns na Antiguidade romana. A
primeira delas empregava maiúsculas com alto grau de visibilidade,
como as letras “S.P.Q.R.” em monumentos clássicos, de fácil
legibilidade para nós, e capitais rústicas em livros, como as imitadas
no Arateia de Leiden. Na outra extremidade da escala havia
caligrafias cursivas rápidas — “letra de mão”, como dizem as
crianças — usadas nos papiros em documentos administrativos. Em
seu nível mais simples — era muito mais complicado, na realidade
—, as maiúsculas romanas evoluíram ao longo dos séculos para as
unciais, e mais tarde (passando por mutações sutis e graduais,
como na genética) vieram dar nas modernas tipologias europeias,
inclusive as usadas neste livro. A cursiva, no entanto, foi exportada
junto com a burocracia imperial para as províncias romanas, onde
se reproduziu independentemente em muitas variantes locais de
escrita à mão, tais como as minúsculas merovíngias de estranha
aparência aracniforme na França; as minúsculas alemânicas no
oeste da Alemanha etc. Estas foram depois disseminadas por
Carlos Magno no início do século IX, num programa que tinha a
intenção de padronizar a escrita por todos os seus vastos domínios,
substituindo a famosa minúscula “carolíngia”, ou “carolina”. Apenas
nos limites exteriores da Europa, além do alcance da autoridade
carolíngia, as obstinadas descendentes da cursiva romana
conseguiram permanecer, como animais pré-históricos que
sobrevivessem em alguns vales ficcionais isolados do mundo
exterior. As mais conhecidas desses fósseis vivos são as
minúsculas beneventanas no sul da Itália e nas orlas extremas da
costa oriental até a Croácia e a minúscula visigótica em grande
parte da Espanha e de Portugal. O fato de que essas escritas
perduraram, contra a tendência geral, até mesmo nos séculos XI e
XII, nos diz muito sobre as fronteiras culturais da política
contemporânea.
As minúsculas visigóticas, que não têm nada a ver com as
analfabetas tribos de visigodos a não ser uma associação
compartilhada com a Ibéria pré-muçulmana, são caligraficamente
belas e exasperadamente difíceis de ler. São cheias de ligaduras
fluentes, herdadas da cursiva romana, como na junção de “e” com
“r”, que parecem ser uma única letra. O “a” em caixa-baixa tem a
parte de cima aberta, como um “u”, e o “s” parece um “r”, e o “t” é
mais como um “a” moderno. Ler essa caligrafia visigótica me faz
lembrar de quando era criança nos primeiros dias das férias de
verão. A gente corria de pés descalços e doloridos pela estrada e
sobre as pedrinhas na praia, fazendo de conta que era fácil e
simulando indiferença; no fim das férias de fato já não havia
dificuldade alguma. A cada novo verão recomeçava toda essa
agonia. Olhe em desespero para uma página de impenetráveis
minúsculas visigóticas, faça um esforço letra por letra, e no fim da
tarde, em geral quando a biblioteca estiver prestes a fechar, ela se
tornará, enfim, surpreendentemente legível; na manhã seguinte
estará de novo totalmente ilegível. Isso pode explicar em parte por
que o Beato teve uma circulação tão limitada fora da Espanha no
início da Idade Média.
A escrita visigótica é a estranha caligrafia dos
antigos manuscritos ibéricos. Os doze
medalhões simbolizam o silêncio de meia hora
no céu (Apocalipse 8,1).
O M 644 está escrito em duas colunas numa caligrafia que flui
com rapidez, em geral com 32-4 linhas por página. O padrão de
pautação é acentuadamente marcado, às vezes permanecendo
branco por completo onde a superfície do pergaminho se tornou de
um amarelo sujo. Há perfurações em sentido vertical, como nos
Evangelhos de Santo Agostinho, em fileiras únicas entre colunas,
parecendo orifícios de punção feitos com a ponta de uma faca.
Contudo, não é o texto ou a caligrafia que faz a grande fama das
cópias do Beato, e sim suas estupendas ilustrações. O manuscrito
de Nova York tem 68 páginas enormes com figuras de página
inteira, grandes como pinturas em painéis, e 48 ilustrações
menores, bem como inúmeros diagramas decorados e ornamentos.
Meus colegas que faziam pesquisa na Biblioteca Morgan naquele
dia estavam todos olhando de modo submisso para arquivos
marrom-claros e pequenos livros impressos; já eu estava virando
páginas enormes de pergaminho com mil anos de idade, estalando
em suas cores claras e imagens assombrosas. Era difícil não sentir
uma certa empáfia.
Há pelo menos uma figura para cada storia, seguindo bem de
perto o texto bíblico, tanto no tema tratado quanto na posição na
página, no sentido de que estão situadas após as passagens
escriturais que ilustram. Isso é curioso, pois na maioria dos livros as
ilustrações vêm antes, seguidas do texto. Algumas figuras desse
manuscrito incorporam legendas que chamam a atenção para
detalhes das cenas que representam, pois diferentemente de
algumas obras de arte medievais, essas imagens não se destinam a
analfabetos. A storia 1 vem de Apocalipse 1, 1-6. Sua figura, que se
segue no fólio 23r, está em dois registros, com Cristo acima de seu
trono dando encargos a dois anjos, um dos quais traz o que talvez
seja uma tabuinha revestida de cera para João, abaixo dele. Ao lado
do anjo que está mais embaixo, há palavras em letras capitais, “UBI
PRIMITUS IOHANNES CU[M] ANGELO LOCUTUS EST”, “Onde João fala
com um anjo pela primeira vez”. Isso soa mais como instruções de
cena num palco de teatro. A segunda storia vem de Apocalipse 1,7-
8. No fólio 26r Cristo paira numa nuvem de impressionante fluidez, e
“e todo olhar o enxergará” é apresentado como nove santos olhando
para cima de olhos arregalados. É tudo muito literal. A terceira é
Apocalipse 1,10-20. Assim como João, que olha do canto inferior
esquerdo, nós vemos na figura que o acompanha o Filho do Homem
em seu trono, vestido em verde-oliva com uma faixa dourada, com
sete candelabros pendurados acima dele identificados solícita mas
desnecessariamente em letras maiúsculas brancas como “SEPTEM
CANDELABRA”, e as sete estrelas à sua direita, e João caindo a seus
pés enquanto Cristo o reconforta mantendo consigo as chaves da
morte, e depois João é levado para ver sete arcos redondos
inscritos com os nomes das igrejas da Ásia — Éfeso, Esmirna,
Pérgamo (incidentalmente, a cidade que deu seu nome ao
pergaminho, pergamenum, em latim), Tiatira, Sardes, Filadélfia e
Laodiceia.
Cristo, na divisão de cima, pede a dois anjos
que levem as revelações a são João, embaixo.
O prólogo do livro I é ilustrado, de modo bem inesperado, com um
deslumbrante mapa retangular do mundo, em página dupla, nos
fólios 33v e 34r. Antes de discorrer sobre as mensagens a cada uma
das sete igrejas, Beato faz uma digressão sobre as regiões às quais
cada um dos doze apóstolos levou o Evangelho. Era de especial
interesse de seus conterrâneos que são Tiago, o próprio discípulo
de Jesus, fosse creditado como aquele que trouxe o cristianismo
para a Espanha. O mundo é mostrado envolto por uma larga
moldura de um mar amarelo com peixes azuis e com uma estranha
serpente do mar ao sul da África. Na faixa do mar, à esquerda e
embaixo, desenhos clássicos de navios estão riscados na superfície
do pigmento, quase invisíveis em reproduções. O mundo está
orientado (atenção a esta palavra) com o leste/oriente voltado para
cima, lugar do jardim do Éden, onde Adão e Eva são mostrados
junto a uma árvore espinhosa. As massas de terra estão divididas
pelo Mediterrâneo em Europa, África e Ásia. Numa cartela
retangular no oceano no canto inferior esquerdo, bem na borda,
consigo ler com a ajuda da lupa da biblioteca as palavras “Britannia
Insula”, e junto a outra ilha, a alguma distância mais para o sul,
“Scotia Insula”, na verdade a Irlanda. A Espanha, o que é
compreensível, destaca-se no primeiro plano, margeada por
montanhas com árvores no topo. A África tem dois enormes países
separados pelo Nilo — a Líbia e a Etiópia (onde vivem monstros e a
fênix). Jerusalém é mostrada como um pequeno portão de castelo, e
é a única cidade apresentada. As ilhas do Mediterrâneo são todas
quadradas. Tudo é extremamente ingênuo e baseado em ecos da
geografia romana, mas, quando se olha bem e se pinçam nomes de
lugares — Narbo, Alemanha, Roma, Macedônia, Constantinopla —,
descobre-se certo respeito pela compreensão do formato das coisas
a largas distâncias, num tempo em que a mais alta perspectiva do
mundo era a que se obtinha nada mais nada menos do que subindo
uma colina ou numa árvore.
O Filho do Homem com os sete candelabros e
as sete estrelas à sua direita (Apocalipse 1,12-
16) e são João com os arcos das sete igrejas.
Mapa do mundo, com um mar amarelo; o leste está no topo, a
Europa embaixo à esquerda, a África à direita, e a Espanha em
primeiro plano.
Continuemos a virar as páginas. O pergaminho é geralmente
grosso e de textura áspera, o lado do pelo normalmente de cor
creme ou amarela, ondulado por ter sido exposto, há muito tempo, à
umidade. Tem muitas falhas de origem e grandes buracos de
formato elíptico causados por esfolamento ou preparação
descuidada (alguns são enormes, como os de um queijo Emmental),
em torno dos quais os escribas escreviam. Como a maior parte dos
cantos inferiores externos está danificada pela degradação e agora
remendada com pergaminho novo, na realidade quase sempre se
manuseia o manuscrito tocando nas partes substituídas e não nas
partes originais do século X.
A Arca de Noé com seus animais, inclusive a
pomba com o ramo de oliveira e o corvo
comendo um cadáver, tudo parte de uma
digressão inserida no fim do Livro II.
Aí estão, por exemplo, as figuras das igrejas da Ásia, exóticas e
multicoloridas tanto quanto as mesquitas; chegamos à Arca de Noé,
que parece um modelo para criança com prateleiras, e que inclui um
elefante amarelo malhado e duas girafas, simbolizando a Igreja
durante o cataclismo (girafas são verdadeiras raridades na arte
medieval); há o Cordeiro de Deus segurando uma cruz dentro de
uma grande roda policrômica com criaturas e anciãos, orlada com
estrelas e movida por arcanjos; há os sete anjos tocando clarins
enquanto fogo é atirado, como flechas, para baixo e sobre a terra,
contra um céu tornado amarelo; montanhas sendo arremessadas ao
mar, numa torrente de fogo, com corpos nus lançados nas
profundezas entre destroços de navios e peixes em disparada; o Sol
e a Lua e as estrelas voltando-se em parte para a escuridão, com
uma grande águia voando pelo céu e bradando “Aflição, aflição,
para os habitantes da Terra”; pragas de gafanhotos, grandes como
monstros; e, na última ilustração do que é hoje o volume I, as
testemunhas encapuzadas de Apocalipse 11,3, vestidas em
aniagem com capuzes e profetizando, fogo a sair de sua boca. Isso
está no fólio 149r, a folha final no modo como está dividido agora, e
ainda estamos apenas na metade do percurso através do
Apocalipse.
Inadvertidamente, levei o primeiro volume de volta ao balcão e
pedi que trouxessem agora o segundo. Fui repreendido por ter eu
mesmo levado o livro. Parece que eu deveria ter pedido a um vigia
que fizesse isso. Os manuscritos da Biblioteca Morgan são
acompanhados de tiras soltas de papel com um código de barras e
um “registro de ID”, um número com seis algarismos que a
assistente escaneia quando confere o volume devolvido. Comentei,
em tom coloquial, que nunca tinha visto antes coisa igual. Ela me
mirou com um olhar de comiseração e contou que todas as grandes
bibliotecas agem assim agora, para controlar o paradeiro de
manuscritos e registrar as estatísticas.
O segundo volume abre no fólio 150 com a storia de Apocalipse
11,7-10. A primeira figura mostra o Anticristo — seu rosto foi
raspado vingativamente por um ultrajado leitor (espero que muito
tempo atrás) — esquartejando as testemunhas em repugnantes
pedaços sangrentos, enquanto, acima disso, Jerusalém está sendo
esmagada pelos seguidores do Anticristo. Vai ficando mais terrível a
cada página, e cada vez mais depressa. São Miguel luta com a
serpente de sete cabeças numa batalha no céu em uma abertura de
duas páginas, atirando corpos mortos para o chão lá embaixo; uma
hedionda besta com chifres ergue-se da terra; um anjo listrado
desliza através do firmamento, e Babilônia é destruída e membros
desnudos, amputados, voam por toda parte; as sete pragas chovem
sobre a Terra, inclusive rios que se transformam em sangue e
relâmpagos que caem como implacável granizo de lanças rubras; a
Prostituta da Babilônia compartilha uma taça de vinho com reis
sorridentes da Terra que fornicaram com ela (este é o fólio 194v, ela
também teve o rosto riscado, isso combina bem com ela); Babilônia
arde, um mosaico complexo de cor e fogo; o diabo é acorrentado e
jogado no abismo, e num enorme Juízo Final que se estende por
duas páginas, os incontáveis mortos estão diante do trono de Deus,
e os condenados à danação são lançados por uma abertura no
assoalho ladrilhado do Céu, caindo nus num poço púrpura de fogo.
Quando o texto do comentário do Apocalipse finalmente surge no
fólio 233v, é como se os escribas do manuscrito fossem incapazes
de interromper seu impetuoso frenesi de visão e profecia bíblicas.
Escrevendo, eles lhe dão prosseguimento. O volume entra no
comentário de Jerônimo sobre o livro de Daniel. Este é também
visionário e profético, mas, em comparação, marcadamente menos
denso e mais suave. As figuras incluem o sonho de Nabucodonosor;
o festim de Baltasar, com a mão de um escriba a emergir de um
castiçal para escrever a profecia da destruição (em minúsculas
visigóticas) na abóbada do salão real; e Daniel, não muito
angustiado, na cova do leão.
O estilo de pintura é o que se costuma chamar de moçárabe,
associado com a mescla de tradições cristãs, judaicas e islâmicas
na Espanha ocupada por muçulmanos. Na prática, manuscritos em
árabe e hebraico não eram ilustrados, certamente não nesse
período, e manuscritos em latim iluminados são tão raros na Ibéria
daquela época que mesmo nesse caso é difícil fazer comparações.
O esplendor de cores primárias e os padrões abstratos exóticos do
manuscrito do Beato podem com certeza ser comparados aos
ladrilhos e mosaicos da arquitetura islâmica, e aos tapetes e
trabalhos em metal do Magreb, na costa setentrional da África. As
faixas de amarelo-intenso e laranja-profundo são muito marcantes e
diferentes de qualquer coisa encontrável ao norte dos Pireneus, e
são todas muito mais claras no manuscrito original do que em
quaisquer reproduções publicadas. O verde-pálido, incomum, é
vibrante e belo. Alguns blocos de cor exibem traços de uma
aplicação vigorosa, como se tivessem sido aplicados e espalhados
não com um pincel macio, mas com uma espátula.
Historiadores da arte chamam a atenção para detalhes orientais
no Beato de Morgan, como as palmeiras e o divã acolchoado no
qual se reclina a Prostituta da Babilônia (a figura está no fólio 194v).
No entanto, os paralelos mais próximos, em especial no caso das
figuras, são na verdade com a arte copta e sobretudo com os
manuscritos e a arte da pintura etíopes, mesmo a de hoje em dia.
Não sou o primeiro a observar isso. Sydney Cockerell, que
colaborou com M. R. James e nos catálogos de Yates Thompson,
anotou de próprio punho em sua cópia da descrição: “São muito
etíopes em seu caráter” (Cockerell será um dos heróis do capítulo 9,
e lá seremos apresentados a ele com a devida atenção). Rostos
claramente comparáveis, com grandes e semelhantes olhos
arregalados, ocorrem nesses dois Livros de Evangelhos
recentemente descobertos no mosteiro de Abba Garima, no norte da
Etiópia, do século VI, ao que parece (veja a p. 54). Se isso parecer
inconcebivelmente remoto em relação à Espanha do século X,
lembre-se o mapa clássico do mundo que descreve a Etiópia como
o maior país na Terra, apresentado como estando mais próximo da
Espanha do que (digamos) da Grécia. A Arca de Noé inclui aqui
uma girafa. A África tinha a ver com a vida cultural da Europa no
século X mais do que tem a ver hoje.
A arte dessas figuras pode ser considerada boa? Elas não são
nem de longe tão sofisticadas quanto até mesmo as piores e mais
desvairadas composições no Livro de Kells. M. R. James, que
apreciava mais a graça da pintura gótica do século XIV, não estava
impressionado com sua qualidade. Ele escreveu em sua descrição
no mesmo catálogo de 1902: “O traço de seu desenho é rude
demais: os olhos das figuras são de uma grandeza anormal, suas
posturas, absurdamente rígidas”. Isto é, contudo, um estilo teatral
que de certa forma é muito eficaz para sua finalidade de ilustrar
esse texto específico e assustador. As cores brilhantes e o
incompreensível temor são de um poder espantoso. Há uma
sensação de urgência, que beira o pânico. É uma arte idealmente
apropriada para visões terrificantes e de pesadelo de um horror
inimaginável, e para a rodopiante cacofonia caleidoscópica de um
desastre cataclísmico, tão brutal e inesquecível quanto Guernica, de
Picasso.
Abertura do segundo volume, como é hoje
encadernado, mostrando a matança das
testemunhas e o Anticristo raspado por um
leitor no manuscrito.
Os fogos de artifício e a total estranheza das figuras nos
manuscritos do Beato podem na verdade ter uma finalidade prática.
O método monástico de estudar as Escrituras era ler uma sentença
ou duas em voz alta, depois meditar sobre o texto, palavra por
palavra, buscando lentamente múltiplas camadas de significado.
Isso era chamado de lectio divina. Essa ruminação meditativa era
em si mesma um ato de devoção. Se o monge conseguisse olhar
para a página e memorizá-la, então essa lenta reflexão piedosa
poderia continuar em sua mente muito depois de o manuscrito
original ter sido fechado e colocado de volta em sua caixa, no
claustro. Passagens seguidas apenas com texto escrito,
especialmente, talvez, as que estão em minúsculas visigóticas com
poucas separações entre palavras, são difíceis de serem
visualizadas depois, mas páginas com ilustrações complexas tão
dramáticas e tão perturbadoras como essas são impossíveis de
apagar da memória. Sua ingenuidade é uma vantagem. O brilho de
suas cores e o espantoso drama de sua narrativa têm um valor real.
Eles serviam como dispositivos mnemônicos para permitir que a
reflexão sobre a Revelação continuasse para muitos leitores ao
mesmo tempo, a qualquer hora do dia ou da noite.
Deixei de mencionar até agora uma das mais notáveis
características desse manuscrito famoso. Nós não só sabemos
quem o desenhou e pintou, como também por quê, e possivelmente
quando. Há um colofão em versalete ao longo da metade superior
do fólio 293r. Ele começa:
Cristo aparecendo numa nuvem no céu, à
vista de todos — pintura num estilo
curiosamente similar ao da arte etíope.
Resonet vox fidelis, resonet et concrepet. Maius quippe pusillus,
exobtansq[ue] iubilet, et modulet, resonet, et clamitet. Mementote enim mihi,
vernuli xp[ist]i, quorum quidem hic degetis cenobii summi dei nu[n]tii
Micahelis arcangeli. Ad paboremq[ue] patroni arcisummi scribe[n]s ego,
imperansq[ue] abba victoris equidem ud[u]s amoris ui[u]s libri visione
Iohanni dilecti discipuli…

Que a voz do fiel soe forte, soe forte e ecoe! Possa Maius, embora pequeno
e esperançoso, rejubilar-se e cantar e ressoar e gritar! Lembrem-me,
servidores de Cristo, vocês que vivem no mosteiro do arcanjo Miguel, o
supremo mensageiro de Deus. Eu mesmo escrevi isso em honra do
arquigrande patrono, por ordem do abade Victor [ou “do abade dos
vitoriosos”, como veremos dentro em breve], e também por amor ao livro da
visão de João, o discípulo amado…

Temos, assim, o nome do escriba, Maius, “grande” (ele faz um


jogo de palavras com o próprio nome, referindo-se modestamente a
ele mesmo como “pequeno”), que trabalha para os monges no
mosteiro de São Miguel Arcanjo. As iniciais que abrem cada
segunda linha do colofão, lidas no sentido vertical de “Memento”
para baixo, também se leem “M”, “A”, “I”, “U” e “S”. O nome também
aparece no fim do texto do Beato no fólio 233r, “Maius Memento”,
“lembrem Maius”: essas duas palavras me parecem estar em
escritas ligeiramente diferentes, e podem ter sido acrescentadas
comemorativamente em sua homenagem, e não pelo próprio Maius.
Por uma feliz coincidência, outro manuscrito do Beato, hoje nos
arquivos nacionais em Madri, foi completado por seu pupilo e
sucessor, o escriba Emetério, que escreveu um colofão
reconhecendo seu falecido mestre e colaborador naquele livro de ter
sido o “arquipictor” Maius, escriba do mosteiro de San Salvador de
Tábara, que morreu — conta-nos Emetério — em 30 de outubro de
968. Ter tantos dados sobre a vida de qualquer escriba é uma
raridade. O título Arquipictor, “mestre pintor”, significa sem dúvida
que Maius tinha sido tanto escriba como iluminador. No verso da
mesma folha em Madri, Emetério fez também um desenho de si
mesmo trabalhando no scriptorium numa torre de Tábara. A figura
está bem danificada nas bordas no manuscrito, que estão
fragmentadas, mas ela foi cuidadosamente copiada 250 anos depois
em mais um manuscrito do Beato, que já pertenceu à igreja de Las
Huelgas, em Burgos. Em mais uma agradável coincidência, essa
mesma cópia é a que foi comprada por Pierpont Morgan pai em
Londres em 1910, e assim ela também se encontra na Biblioteca
Morgan em Nova York (M 429). Sem sair de minha cadeira na Sala
de Leitura Sherman Fairchild, pude contemplar uma reprodução do
início do século XIII de uma figura do século X de quem fez um
manuscrito do Beato em Tábara, por alguém que conheceu e
trabalhou com o próprio escriba Maius.

Verso do colofão do Beato de Morgan, assinado e datado pelo


escriba Maius para um mosteiro de São Miguel, talvez o abade de
São Miguel de Moreuela.
A figura mostra uma torre com sinos, ou campanário, com
tocadores de sino em escadas. Isso pode parecer um autoengano
otimista, mas seria prazeroso imaginar que as referências de Maius
a “ressoar” sejam alusões a esses sinos. Anexo ao lado direito da
torre há uma extensão com dois andares, revestida de ladrilhos. O
andar térreo é de pedra, tem janelas muito estreitas e uma porta
com uma tranca: talvez seja a biblioteca, ou uma sala-forte.
Imediatamente acima dela há um estúdio, onde os escribas
trabalham. Um deles está sentado numa cadeira, segurando uma
pena e uma faca enquanto escreve um livro sobre um suporte
inclinado. Ao lado dele outro escriba perfura um pergaminho com
um par de compassos. Numa pequena beirada do lado de fora, um
menininho está cortando pergaminho com um par de tesouras.
A colaboração assim descrita entre o escriba principal e dois
assistentes é uma característica dos manuscritos monásticos.
Embora Maius receba o crédito por tudo que é hoje o M 644, os
cinco primeiros cadernos incluem o trabalho ocasional de um
segundo e menos talentoso escriba. Isso também é consistente com
a produção num scriptorium organizado, e não com o trabalho de
um gênio isolado.
Tábara fica no noroeste da Espanha, a noroeste de Zamora, no
antigo reino de Leão. Sua igreja medieval ainda tem um antigo
campanário de pedra, não muito diferente do que foi descrito por
Emetério. Apesar de não haver dúvida quanto a nosso manuscrito
ter sido feito lá, ele foi claramente destinado a um mosteiro dedicado
a são Miguel Arcanjo. Costuma-se asseverar que deve ter sido à
Abadia de San Miguel de Escalada, cerca de 125 quilômetros a
norte-nordeste de Tábara, perto da cidade de León. O manuscrito
frequentemente é chamado de Beato de Escalada. Isso tem como
base mais do que o fato de que no século XII Escalada se tornou
uma das dependências do cânone agostiniano de são Rufo de
Avinhão, e há uma nota, mais tardia, de uma morte, acrescentada
ao fólio 293v do manuscrito, “obit petrus levita Cus Si Ri”, que pode
(ou não) se referir a “canonicus sancti Rufi”. Isso é uma evidência
muito parca para algo que não tem o suporte de alguma outra
probabilidade. Devo a William Voelkle a oportunidade de ter lido um
texto datilografado de John Williams que visava ser usado no
catálogo de uma planejada exposição na Morgan, citando Ferreo-
Gutiérrez, que faz uma identificação muito mais sedutora. Ele
observa que San Salvador de Tábara foi estabelecida por são
Froilán de Leão, que também fundou uma segunda casa, San
Miguel de Moreuela, apenas seis quilômetros e meio a sudeste de
Tábara. Esse é um patrono infinitamente mais provável do que uma
abadia sem nenhuma conexão, a vários dias de viagem para o
norte, em terreno montanhoso. Com o vento na direção correta,
Moreuela estaria ao alcance do som dos sinos aos quais Maius
pode ter aludido. Em nenhuma dessas duas casas dedicadas a são
Miguel consta ter havido um abade chamado Victor, mas é provável
que a palavra, nesse contexto, se refira simplesmente a um abade
anônimo do próprio arcanjo, triunfante e vitorioso sobre Satã no
Apocalipse.
Beato de Las Huelgas, em Burgos, do início do
século XIII, com uma cópia de uma ilustração
mais antiga mostrando o escriba Emetério
trabalhando num campanário em Tábara.

Contudo, isso não é tudo que temos no colofão de Maius. Há mais


ainda por vir. Ele continua:
[…] inter eius decus verba mirifica storiariamq[ue] depinxi per seriem, ut
scientibus terreant iudicii futuri adventui peracturi s[e]c[u]li. Ut suppleti
videlicet codix huius inducta reducta quoq[ue] duo gemina […] ter terna
centiese, [et] ter dena bina era. Sit gl[or]ia patri soli filioq[ue] sp[irit]u simul
cum s[an]c[t]o trinitate, per cuncta sec[u]la sec[u]lis in finitis temporis.

[…] como parte dessa decoração, pintei numa sequência as incríveis


palavras dos textos, de modo que pessoas sensatas possam temer o juízo
que virá no fim da era. Para suplementar a completude do presente
manuscrito dois gêmeos foram trazidos também […] Na era de três vezes
trezentos [e] três vezes duas vezes dez. Glória ao Pai e a seu único Filho e
Espírito, com a Santíssima Trindade, por todas as idades até o fim dos
tempos.

Antes de mais nada, Maius nos conta que ele mesmo ilustrou o
manuscrito. Isso não é tão inesperado num livro daquela época: a
clara separação entre a arte do escriba e a do artista não se tornou
de fato a norma até o século XI ou XII. Mencioná-lo é que é
totalmente incomum. Este é o mais antigo manuscrito conhecido do
Beato em qualquer ciclo de pinturas. Está nos dizendo que ele
mesmo inventou e concebeu as imagens? Soa como algo assim.
Afinal, ele teve a reputação póstuma de ser o “artista mestre” desse
texto. Pode ser que nesse manuscrito tenhamos um dos mais raros
momentos na história da arte medieval, quando um determinado
ciclo de composições é efetivamente criado, por um artista
conhecido, em vez de derivar de alguma tradição já existente. Além
disso, Maius nos conta por que fez isso: para fazer as pessoas
temerem o fim do mundo.
A sentença seguinte é difícil. Ele parece estar dizendo que está
suplementando o manuscrito sobre o Juízo Final com dois
acréscimos complementares, ou gêmeos, supostamente os que
agora se seguem ao comentário do Beato: o texto curto sobre graus
de parentesco, o De affinitatibus et gradibus de Isidoro, e depois o
bem mais longo comentário a Daniel, de Jerônimo. Outros, no
entanto, inclusive M. R. James, um latinista muito melhor do que eu,
considera essa menção como parte da data na qual Maius está
arrematando o manuscrito no ano duas vezes dois… e depois o
resto, que é três vezes trezentos mais três vezes vinte. Isso seria
então 4 + 900 + 60 (= 964) ou, se os dois gêmeos são textos e não
anos, mais simplesmente 900 + 60 (= 960). Contudo, Maius usa a
palavra “era”, o sistema unicamente espanhol de datação, que
estava 38 anos à frente da datação tradicional. Assim, subtraindo, a
data seria 926, ou, mais provavelmente, 922 d.C.
Isso seria crível, se Maius morreu em 968 (ele teria 25 anos
quando escreveu o manuscrito de Morgan e 71 quando morreu),
mas uma carreira de escriba de quase cinquenta anos é improvável,
sobretudo antes da invenção dos óculos de leitura, dos quais quase
todos nós precisamos após uma certa idade. No manuscrito original
há claramente um espaço com mais de dois centímetros antes das
palavras “ter terna”, que transcrevi acima após reticências. É
evidente que algo foi apagado. Não sei dizer se foi uma alteração
contemporânea do próprio Maius (o escriba desenhado por
Emetério usa uma pena e uma espátula de raspar), ou se alguém
como, digamos, o trapaceiro Libri retirou algumas palavras para que
o manuscrito parecesse ser ainda mais antigo do que é. A maioria
dos historiadores de manuscritos data hoje cautelosamente o Beato
de Morgan em algum momento entre a década de 920 e 968,
decerto por volta do segundo quarto do século.
Outros oito manuscritos subsistentes de comentários do Beato
podem ser atribuídos à segunda metade do século X, até o ano
1000. Todos recaem principalmente nas duas “famílias” de texto
relacionadas, quase sempre referidas como “IIa”, que inclui o
manuscrito da Morgan, e “IIb”, uma prima em primeiro grau, embora
não esteja muito claro se todo esse ramo descende da obra de
Maius no Morgan M 644, ou se ambas as famílias derivam de um
único avô comum que não mais sobrevive. Esse progenitor perdido,
se é que houve um, poderia também, é claro, ter sido feito por Maius
numa data anterior (como 922), e assim sua reivindicação de ter
inventado a iconografia não seria invalidada por completo mesmo
que M 644 não seja a fonte única de ambas as famílias.
Os manuscritos na família IIa incluem: Valladolid, Biblioteca de la
Universidad, de Valcavado, escrito pelo escriba Obecus, datado
entre 8 de junho e 8 de setembro de 970; Lérida, Museo Diocesá de
La Seu d’Urgell, inv. 501, segunda metade do século X, na Catedral
de Urgell em 1147; Escorial, Real Biblioteca del Monasterio, & II.5,
possivelmente de San Millán de la Cogolla, c. 1000; Madri,
Biblioteca Nacional de España, ms Vitr. 14-2, escrito e
provavelmente pintado pelo escriba Facundo, datado de 1047, que
pertenceu a Fernando I de Leão e Castela e a sua mulher, Sancha
de Leão (ambos m. 1065), um livro maravilhoso; e Londres,
Biblioteca Britânica, Add. MS 11695, escrito pelos escribas
Domênico e seu parente Núnio, iniciado c. 1073 e completado em
1109, na Abadia de Silos. Os da família IIb incluem: Madri, Archivo
Histórico Nacional, Cod. 1097B, escrito pelos escribas Mônio e
Sênior, pintado pelos artistas Mágio e Emetério, terminado em 27 de
julho de 970, que é o manuscrito de Tábara, com o retrato de
Emetério em sua torre, acima descrito; Gerona, Museu de la
Catedral, inv. 7 (11), escrito pelo escriba Sênior e pintado pelos
artistas Emetério e Ende, “pintrix” (uma mulher), terminado em 6 de
julho de 975, na Catedral de Gerona em 1078; e vários manuscritos
do século XII e início do XIII, inclusive o M 429 na Biblioteca Morgan
de Nova York, datado de 1220, a data mais tardia atribuível a
qualquer manuscrito do Beato, do mosteiro de Las Huelgas, em
Burgos.
Notem-se quantos desses manuscritos são efetivamente datados
e assinados por aqueles que os fizeram, inclusive um pintado por
uma iluminadora mulher, talvez uma freira. O registro dos nomes de
quem os fez, não tão comum em manuscritos, pode se dever ao fato
de que esses são textos sobre o Juízo Final, ocasião em que cada
um quer ser lembrado favoravelmente. A proporção altamente
incomum de datas exatas sugere também um texto para o qual
cálculos do milênio nunca estiveram longe do pensamento dos
patronos. O manuscrito de Valladolid preserva as datas em que foi
iniciado e terminado, mostrando que o escriba levou 93 dias para
escrever suas 230 folhas, excluindo os domingos, o que dá mais de
duas folhas por dia, um ritmo vigoroso.
No caso, o mundo não acabou no ano 1000. Alguns cronistas do
século XI, como Adam de Bremen, observaram com aparente alívio
que ele passou “feliciter”, sem causar danos. Byrhferth, monge da
Abadia de Ramsey, na Inglaterra, escreveu por volta de 1011 que “o
milésimo ano agora se completava, de acordo com os cálculos da
raça humana, mas isso ainda restava a ser determinado na
presença do Salvador”: talvez as somas dos anos de algum modo
não estivessem exatamente corretas. Houve a conclusão,
modificada, de que o milênio final talvez devesse ser previsto não a
partir da encarnação de Cristo, mas da data da Paixão, o que
suscitou uma ansiosa atenção ao ano de 1033. Este também
passou sem uma catástrofe apocalíptica. Os manuscritos tardios do
Beato sobre o Apocalipse são maravilhosamente exuberantes e
decorativos, mas falta-lhes aquele terror intenso e urgente que
conseguimos divisar pelos olhos de Maius no século X.
As expectativas apocalípticas não cessaram com Beato, e ainda
são recorrentes em nossa própria época. Apocalipse 12,6 descreve
a mulher com um filho homem, comumente identificados com a
Virgem e Jesus, fugindo para o deserto por um período de 1260
dias, antes da guerra no céu que, assim se prevê, marcará o fim dos
tempos. Segundo o princípio de que um dia é um ano aos olhos de
Deus, no ano de 1260 veio a lume uma torrente de Apocalipses
ilustrados, especialmente na Inglaterra, que se estendeu até cerca
de 1260 anos após a Crucificação (1293), quando esses
manuscritos começaram a ficar fora de moda. Reapareceram como
livros impressos por blocos** nos Países Baixos e na Renânia a
tempo da temida metade do milênio, o ano 1500, e Albrecht Dürer,
que nunca deixava passar uma momentosa oportunidade de
marketing, publicou sua incomparável gravura Apocalipse, em 1498:
ela propiciou sua fortuna. Todos nos lembramos do popular e
crescente milenarismo à medida que se aproximava o ano 2000.
Essa data também passou, até mesmo sem o colapso dos
computadores no mundo, como estava popularmente previsto. Um
dia, no entanto, o mundo vai acabar, não já (é a nossa esperança), e
todos os manuscritos de Beato de Liébana serão destruídos.
* A estrutura dessas primeiras folhas ainda é complicada, mas o alceamento ao longo das
duas partes parece ser: i5 [de 6, faltando ii após o fólio 1], ii4 [provavelmente de 6, faltando
i e vi, após fólios 5 e 9], iii6 [provavelmente de 8, faltando iv-v após fólio 12], iv8, v6 [de 8,
faltando iv-v após fólio 26], vi2 [de 8, faltando ii-vii, após fólio 30], vii3 [de 8, faltando ii-vi,
após fólio 32], viii-xi8, xii6 [completo], xiii-xvi8, xvii7 [de 8, faltando ii, após fólio 105], xviii-
xxi8, xxii6 [de 8, faltando ii e v, após fólios 144 e 146], xxiii8 [agora encadernado fora de
ordem, mas foliado corretamente], xxiv7 [de 8, faltando v, após fólio 161], xxv7 [de 8,
faltando vii, após fólio 170], xxvi-xxvii8, xxviii7 [de 8, faltando iv, após fólio 190], xxix7 [de 8,
faltando ii, após fólio 195], xxx7 [de 8, faltando viii, após fólio 208], xxxi-xxxiii8, xxxiv6
[aparentemente], xxxv-xl8, xli7 [aparentemente de 8, viii ao que parece faltando ou
cancelado, após fólio 293], xlii6; com números contemporâneos nas últimas folhas, do
terceiro caderno (fólio 15) em diante, com frequência seguidos da letra “q” ou “Q”
(quaternio).
** Block-books, livros impressos a partir de matrizes que eram blocos inteiriços, e não a
partir de tipos móveis, já existentes então. (N. T.)
6

Hugo Pictor
final do século XI
Oxford, Biblioteca Bodleiana, MS Bodley 717

Enigmas e adivinhas eram passatempo popular mil anos atrás. O


manuscrito mais antigo ainda restante na biblioteca da antiga
Catedral de Exeter, em Devon, extremo sudoeste da Inglaterra, é o
assim chamado “Livro de Exeter”. É uma miscelânea do século X
com diferentes textos na língua inglesa antiga (ou anglo-saxão), e
foi ofertado à catedral por Leofrico, bispo de Exeter de 1046 a 1072.
Inclui uma seção com 95 descrições crípticas e poéticas de objetos
de uso diário, e o leitor tem de adivinhar quais são. Assim como as
adivinhas apresentadas por Gollum a Bilbo Baggins em O Hobbit,
sua enganosa obscuridade é parte do prazer de resolvê-las. Uma
começa assim: “Mec feonda sum/ feore besnyþede/ woruldstrenga
binom/ wætte siþþan, dyfde on wætre…” — é quase inacreditável
que isso seja realmente inglês. — “Alguns demônios tomaram minha
vida e a força terrena também, depois molharam, mergulharam na
água…”; o objeto é depois posto ao sol, perde seu pelo, é raspado,
cortado e dobrado. A resposta correta, como você com certeza já
adivinhou, é um manuscrito, pois esse é o processo de produzir e
dobrar pergaminho. Depois, continua a charada, a “delícia de uma
ave (uma pluma) corre pela superfície, deixando traços escuros e
tinturas das árvores, e isso tudo é coberto por tábuas e peles e se
torna uma ajuda para os homens e em si mesmo sagrado”. Outra
adivinha no Livro de Exeter começa com: “Ic seah wrætlice/ wuhte
feower…”, “Eu vi quatro coisas numa bela configuração…”,
aparentemente descrevendo uma pluma numa rápida jornada na
companhia de três dedos, deixando pegadas escuras e vívidas à
medida que viajam percorrendo juntos o pergaminho.
Última página do antigo manuscrito com o
comentário de Jerônimo sobre Isaías, da
Catedral de Exeter, com um autorretrato do
escriba, assinado “Hugo Pictor”.
O manuscrito que examinaremos neste capítulo foi também, em
sua origem, parte daquela mesma biblioteca medieval em Exeter,
provavelmente adquirido pela catedral no tempo do sucessor de
Leofrico, Osberno, bispo de 1072 a 1103. Foi reunido, escrito e
encadernado mais ou menos como está descrito naquelas adivinhas
em anglo-saxão. Sua importância reside no fato de que não
somente sabemos o nome do homem cujos três dedos seguravam a
pena no final do século XI, mas temos até mesmo uma figura dele
fazendo isso, e por terminar com o que em geral se considera ser o
mais antigo autorretrato assinado na arte inglesa. O manuscrito é o
MS Bodley 717 da Biblioteca Bodleiana, em Oxford. É uma cópia do
comentário em latim do livro de Isaías, do Antigo Testamento, feito
por São Jerônimo, tradutor da Bíblia Vulgata. Em sua última página
está um famoso desenho em cores de um homem sentado, fazendo
uma pausa enquanto prepara um manuscrito. É mostrado
mergulhando sua pena num tinteiro em forma de chifre, segurando a
pluma delicadamente entre o polegar e dois dedos da mão
esquerda. Seu nome aparece ao lado da cabeça, “Hugo pictor”,
“Hugo, o Pintor”, e há uma segunda legenda mais acima, “Imago
pictoris & illuminatoris huius libri”, “Retrato do pintor e iluminador
deste livro”, tudo aparentemente claro e inequívoco. A figura é
apresentada como um monge tonsurado; parece ser canhoto, e tem
cabelo verde. Pelo menos um desses fatos está errado, talvez os
três. Como as adivinhas no Livro de Exeter, Hugo nos deixou rastros
falsos e pistas desafiadoras, que este capítulo tentará resolver.
O Bodley 717 é parte do legado do fundador à Bodleiana, a
atualmente imensa biblioteca da Universidade de Oxford. O número
que é o código de acesso ao livro, como a própria gigantesca
instituição, leva o nome de Sir Thomas Bodley (1545-1613), o filho
mais velho de um impressor e editor puritano originário da mesma
cidade de Exeter. Fato incomum na época, Bodley escreveu uma
autobiografia em 1609, publicada em 1647. Nela, ele conta como
sua família se mudou para o exterior durante o regime
agressivamente católico da rainha Mary (1553-8), estabelecendo-se
em Genebra em 1557, quando ele tinha doze anos. Há um detalhe
marginal (afinal, nosso tema são artistas ingleses), o de que as
crianças Bodley foram acompanhadas em seu exílio por Nicholas
Hilliard (c. 1547-1619), então com dez anos, que foi mais tarde o
mais famoso miniaturista de retratos da Renascença no norte. Em
Genebra, relembra Thomas Bodley, ele assistiu a palestras de
Calvino e de Beza. De volta à Inglaterra durante o reinado mais
esclarecido e reformador de Elizabeth I (1558-1603), Bodley foi
admitido no Magdalen College, Oxford, tornou-se membro do
Merton College e por breve tempo ensinou grego lá. Grande parte
de sua carreira, no entanto, ele passou em embaixadas reais na
Europa, em especial na Alemanha e nos Países Baixos. Naquela
época, a diplomacia era uma profissão rendosa. Ele aumentou sua
riqueza casando-se, em 1586, com a viúva de um bem-sucedido
mercador de peixe de Devon. Não tiveram filhos.
Em 1598, Thomas Bodley abordou pela primeira vez o vice-reitor
de Oxford para tratar do estabelecimento e patrocínio de uma
biblioteca de referência geral para a universidade. Tinha havido
antes uma biblioteca ali, subvencionada pelo príncipe Humfrey
(1390-1447), duque de Gloucester, mas seus donativos e as
subsequentes aquisições escoaram em empréstimos e em
negligência, como acontece com livros (especialmente durante
reformas), fazendo com que restasse no edifício “the rome it selfe
remaining” [apenas o aposento], como a carta de Bodley a Oxford o
expressou. Ele se ofereceu para “assumir as atribuições e os
encargos da biblioteca, restituí-la a seu uso anterior e pô-la em
condições, embelezá-la com assentos, estantes e mesas”. Hoje em
dia, essas iniciativas filantrópicas seriam dificultadas por anos de
análise por comitês da universidade e pelo planejamento das
aplicações. Em 1598, a universidade aceitou em três semanas. Os
encarregados, por Bodley, da construção começaram
imediatamente, restaurando o prédio da biblioteca, edificação do
século XV doada pelo duque Humfrey, e depois acrescentando o
adjacente pátio quadrangular jacobiano,* ainda uma das principais
atrações turísticas em Oxford. Em junho de 1599 Thomas Bodley
escreveu a Thomas James, bibliotecário por ele nomeado,
descrevendo a atividade dos “carpinteiros, marceneiros,
entalhadores, vidraceiros e toda essa turba ociosa”; em um ano —
pelo jeito, não tão ociosos —, eles já estavam fazendo o
acabamento das novas estantes de carvalho, dotadas de correntes
e cadeados, em função da segurança, e Bodley e James
começaram a procurar livros em quantidade suficiente para encher
as novas estantes.

Sir Thomas Bodley (1545-1613), pintado por


seu amigo de infância Nicholas Hilliard em
1598, ano em que Bodley propôs estabelecer
uma biblioteca para Oxford.

Diz-se com frequência que Thomas Bodley, assim como Matthew


Parker, buscou livros que pudessem se tornar defensores simbólicos
da Reforma. Embora isso seja consistente com seu contexto
puritano, na verdade não houve nada estritamente protestante, ou
de fato necessariamente cristão em todas as incessantes aquisições
durante toda a sua vida e que abrangeram livros de todo o mundo,
até mesmo do Médio e Extremo Oriente. Bodley, que tinha vivido
nos Países Baixos, certamente tinha conhecimento da moderna
biblioteca renascentista na Universidade de Leiden, aberta em 1594,
que visitamos no capítulo 4. A impressão é de que houve urgência
para abastecer uma biblioteca universal em Oxford o mais
abrangente e o mais prontamente possível. Um dos primeiros coups
da Bodleiana foi a aquisição de quase toda a biblioteca medieval da
Catedral de Exeter, realizada em 1602. O próprio Bodley era de
Exeter, e seu irmão mais moço, Laurence (c. 1547-1615), um
clérigo, era cônego na catedral. Combinando esforços, eles
persuadiram o deão e o cabido de que seus livros mais antigos
teriam melhor uso em Oxford. Oitenta e um manuscritos foram
transferidos através da Inglaterra para a Bodleiana, inclusive o
célebre Missal do Bispo Leofrico e o Jerônimo com o retrato de
Hugo Pictor. O Livro de Exeter, com suas adivinhas em anglo-saxão,
foi ignorado e deixado para trás em Devon, ou porque não constava
na biblioteca principal ou porque foi considerado frívolo demais. A
maior parte dessas aquisições para Oxford é de textos intelectuais,
não meramente itens de antiquário ou belas curiosidades. O fato de
que eram livros da Idade Média católica foi irrelevante. O manuscrito
de Jerônimo foi listado no primeiro catálogo impresso da Bodleiana,
publicado em 1605, quando ele ficava no lado sul da biblioteca, na
estante H, prateleira 2, ao lado dos nove volumes da edição, por
Erasmo, das obras de Jerônimo, publicados na Basileia em 1526.
Quando era estudante de pós-graduação, escrevi minha tese
naquela mesma sala da biblioteca, ainda conhecida, desde sua
construção original, como “Biblioteca do duque Humfrey”, ou só
“Duke Humfrey”, exatamente como fora restaurada e mobiliada por
Sir Thomas Bodley. Era então a sala de leitura regular para
manuscritos e impressos antigos. Meu orientador era o guardião dos
manuscritos na Bodleiana, Richard Hunt (1908-79). Os Jerônimos
impressos ainda estavam nas prateleiras, embora todos os
manuscritos tivessem então sido levados para fora das vistas, para
a segurança de afastadas estantes subterrâneas, no que era
chamado de “Pavimento J”. O acesso a Duke Humfrey se fazia pela
escada jacobiana de carvalho no canto do Quadrângulo das
Faculdades, subindo para o setor das Artes, e levava a uma barreira
frouxamente articulada, atrás da qual tinham de se postar os
visitantes, em respeitosa reverência. Alguém recolhia pilhas
vacilantes de manuscritos do balcão de serviço à direita, cada um
deles com um rótulo verde saliente com seu nome e um “H”, de
Humfrey. Eu gostava de me sentar nessas mesas do período
elisabetano tardio, anexas às estantes da Bodleiana ao longo da
sala medieval, ao lado das altas janelas góticas, cercado por meu
ninho de manuscritos românicos. Eu estava lá durante a escassez
de energia, no inverno, em fins de 1973, quando fazia tanto frio que
nos envolvíamos em nossos sobretudos e tínhamos de ir embora
por volta das quatro horas, quando ficava escuro demais para ler.
Os dedos ficavam entorpecidos ao segurar uma caneta sem luvas
(naquela época ainda se permitia o uso de tinta na Biblioteca Duke
Humfrey), e recapturamos naqueles dias de dezembro o que deve
ter sido uma experiência comum a todos os escribas no norte da
Europa durante um milênio, ou algo assim, antes que a erudição e o
estudo fossem totalmente transformados pela eletricidade e pela
calefação central.
Restauradores e conservadores de documentos modernos pouco
ligam para os aspectos românticos. Arrastar manuscritos preciosos
de sua toca subterrânea ao longo de uma ferrovia em miniatura, e
depois por vários andares num elevador trepidante, lhes parecia
arriscado demais. A Biblioteca Duke Humfrey foi fechada em 2011
para leitores de livros raros, para a consternação de medievalistas
em todo o mundo, que nunca mais irão se sentar naquelas mesas
em que o antiquário de Oxford Gerard Langbaine (1609-58) acabou
morrendo de frio. Durante quatro anos, quem fosse consultar
manuscritos era banido para uma triste sala de leitura num subsolo
próximo ao museu da universidade. Tinham sido investidos 80
milhões de libras na remodelação do que costumava se chamar
Nova Bodleiana, a construção de pedra clara no estilo da arquitetura
municipal, de 1937-40, projetada por Sir Giles Gilbert Scott (1880-
1960), em frente ao Clarendon Building no início da Broad Street, no
outro lado da rua da Bodleiana original. Agora com o nome de
Biblioteca Weston, em reconhecimento à doação de 25 milhões de
libras, em março de 2008, da Garfield Weston Foundation. Willard
Garfield Weston (1898-1978) foi um fabricante de biscoitos
canadense, um aporte não inadequado à fortuna de Sir Thomas
Bodley, obtida com a indústria da pesca.
Fui até lá, tristonho, pela primeira vez quando estava quase
terminada e começara a admitir leitores, achando que ia detestá-la e
me ressentir com sua mudança para um prédio moderno. Na
verdade, foi uma surpresa maravilhosa. Os leitores ainda entravam
pelo que costumava ser a porta da frente, em Parks Road, em frente
ao pub King’s Arms, ou por uma escada com degraus baixos, ou por
uma rampa. O que fora o escritório de informações da Nova
Bodleiana, à esquerda, era agora um saguão com armários para as
bolsas e casacos dos usuários, operados mediante inserção de
moedas. Dois afáveis homens de meia-idade no posto da segurança
me indicaram que subisse a escada para chegar aos livros raros, só
perguntando, como se lhes ocorresse tardiamente, se eu tinha um
ingresso de leitor. Durante essa visita, o trabalho de construção
ainda estava em andamento no andar térreo, no que desde então
ficou sendo o Salão Blackwell, e o prédio estava cheio de ruídos de
furadeira e do cheiro de concreto molhado, onde eu não me
lembrava de ter havido qualquer espaço aberto. Provavelmente não
era muito diferente de quando carpinteiros, marceneiros,
entalhadores e vidraceiros trabalhavam atarefados por ali, só
quatrocentos anos antes. Alguns meses depois, quando estive lá de
novo, estava tudo completado, e o manuscrito de Hugo Pictor já
estava numa exposição intitulada Marks of Genius, um maravilhoso
tesouro dos grandes livros da biblioteca.
Um andar acima, ao longo da fachada do edifício Weston paralela
à Parks Road, há uma espécie de espaço comum aberto, agora
chamado Salão Samsung (patrocinado basicamente pela Coreia do
Sul), com sofás baixos verdes ou amarelos e mesinhas de café, e
bancadas com computadores. A nova Sala de Leitura Mackerras se
projeta desse espaço em ângulos retos, atrás de portas de vidro. No
vestíbulo de entrada, um rapaz com sotaque estrangeiro pediu para
ver meu cartão de leitor e copiou meu nome e a hora de chegada,
com vagar, num livro de escrituração. É reconfortantemente
antiquado. Ele teria de fazer a mesma coisa, de modo inverso,
quando eu fosse embora. O longo salão à frente, destinado
sobretudo a livros e manuscritos sobre música, recebeu o nome
como homenagem a Sir Charles Mackerras (1925-2010), regente
principal da Orquestra Sinfônica de Sydney, Austrália. O alcance
internacional do estudo moderno com certeza teria deliciado Sir
Thomas Bodley. Dei meu nome no balcão central e, em troca da
retenção, por segurança, de meu cartão, uma mulher trouxe das
estantes que ficavam atrás uma grande e maltratada caixa coberta
de um tecido claro de cor vermelhão-alaranjada com as palavras
“MS BODLEY 717” estampadas em ouro ao pé da lombada. Tinha
sido reservado para mim por Martin Kauffmann, do Departamento
de Manuscritos Ocidentais. Perguntei à mulher se importava onde
eu me sentasse, e ela respondeu com bom humor: “De modo algum,
mas pode ser que haja mais espaço na sala seguinte”. Saí de lá
com a caixa em meus braços.
Paralela à Sala Mackerras fica o que costumava ser a antiga sala
de leitura PPE da Nova Bodleiana. Agora ela está remodelada para
a consulta daqueles livros raros que antes se estudavam no outro
lado da rua, na Biblioteca Duke Humfrey. Ela se estende por quase
todo o comprimento do prédio, com sete janelas altas e divididas em
pequenas esquadrias envidraçadas ao longo da parede norte, que
dá para os jardins do Trinity College. A sala, que ainda não tem
nome (“veja só que oportunidade”, disse-me Martin Kauffmann mais
tarde, esperando que eu mencionasse esse fato aqui), preserva
muitos dos ajustes e das características projetadas para ela no final
da década de 1939 por Gilbert Scott, inclusive as magníficas traves
de madeira lá no alto incrustadas de temas de marchetaria que
parecem ter sido pintados por índios norte-americanos. Não são tão
espetaculares quanto os painéis dourados Tudor que brasonavam o
teto alto de Duke Humfrey repetidamente com as armas da
Universidade de Oxford, mas ainda assim são imponentes e
impressionantes. Há quatro enormes lustres art déco, dois em cada
extremidade. As mesas compridas de Gilbert Scott, com cinco
cadeiras para leitores de cada lado, foram habilmente alargadas
para abrir espaço a dispositivos eletrônicos centrais, o que seria
inimaginável para Sir Thomas Bodley. Encostadas nas paredes há
espaçosas estantes de madeira escura com altura de quatro
prateleiras, ainda não abarrotadas, como eram as do antigo setor
Selden, na extremidade mais afastada da Biblioteca Duke Humfrey,
onde um incontrolado excedente de novos livros de referência
costumava transbordar organicamente ao longo dos profundos
peitoris das janelas e das extremidades das mesas. No alto das
estantes, há câmeras de televisão de circuito fechado, mas afora
isso não existe uma vigilância intrusiva. Uma inesperada vantagem
de ser uma única sala aberta, em vez das fendas ocultas de nichos
elisabetanos, é que se pode ver outros leitores e acenar para eles.
Fiquei contente de divisar no lado mais afastado Richard Gameson,
de Durham, cujo artigo sobre Hugo Pictor, publicado em 2001, é
uma de minhas principais fontes para o Bodley 717. Naquela manhã
eu tinha uma fotocópia desse artigo em minha pasta.

Biblioteca Duke Humfrey na Bodleiana, biblioteca medieval


remobiliada por Bodley e usada como sala de leitura de livros
raros até 2011.
Instalei-me e abri a caixa. O manuscrito é muito pesado. Mede
cerca de 37 por 25 centímetros e tem cerca de oito centímetros de
espessura, incluindo a encadernação. O número “717” está escrito
numa caligrafia do século XVII ao longo da borda externa superior
das páginas, de modo que as figuras estejam no sentido correto
caso alguém apoie o livro em seu corte exterior com a lombada para
cima. Supostamente era assim que no início o guardavam na
estante na Biblioteca Bodleiana, como se estivesse nas mãos, ou
sobre os joelhos. A ideia de pôr os livros de pé numa prateleira com
a lombada para fora, como fazemos agora, era quase desconhecida
antes do final do século XVII. O monumento funerário de Sir Thomas
Bodley na capela do Merton College apresenta o busto do grande
homem numa moldura arquitetônica que é sustentada por pilares
feitos de livros com seus cortes exteriores para fora, como sem
dúvida ficavam em sua própria biblioteca. O MS Bodley 717 é
encadernado em couro amaciado, do século XVII, discretamente
gravado a seco com uma moldura em volta e flores nos cantos. O
volume, de modo nada simpático, tinha sido reforçado pela
Bodleiana com couro marrom brilhante, pelo visto em março de
1950, a julgar por uma data no pé do lado interno da capa. Meu
palpite é que esse reparo tem algo a ver com o resgate de Hugo
Pictor da obscuridade, feito por Otto Pächt (1902-88), que se
refugiou da Viena ocupada em Oxford, e publicou o manuscrito em
The Bodleian Library Record no outono de 1950. O pé da nova
lombada está estampado em ouro com o número “MSS.BODL./717” (a
rigor errado, uma vez que MSS é plural): ao menos isso demonstra
que no mínimo àquela altura o manuscrito era posto na estante de
pé.
Nova sala de leitura de livros raros da Bodleiana, na Biblioteca
Weston, originalmente projetada em 1930 por Sir Giles Gilbert
Scott.

Eu escorei bem o livro e o abri. Sendo humano, é claro que fui


imediatamente à última página, que é o fólio 287v, para ver o
original da icônica imagem de Hugo Pictor, encurvado debaixo de
seu arco num compartimento delimitado por linhas em zigue-zague
vermelhas e verdes, à direita do afunilado final do texto. A figura,
curiosamente, é pequena e delicada, enfiada com discrição num
cantinho interno da página. Esse modesto e privado autorretrato de
Hugo hoje é reproduzido em todo o mundo por métodos e para
finalidades inconcebíveis na época de Hugo, e é inclusive
escaneado e impresso em camisetas, mousepads, protetores de
tela e capas para celular.
Autorretrato de Hugo Pictor, que o mostra segurando uma faca e
mergulhando uma pena num tinteiro de chifre preso à sua cadeira.

Depois voltei, como devia ter feito no início, à parte frontal do livro.
As páginas de abertura são ilustradas espetacularmente, o que é
incomum para um texto tão rotineiro quanto um comentário
patrístico das escrituras. Eu de fato não estava esperando isso. O
primeiro reverso é um enorme frontispício de página inteira, como
esses retratos de evangelistas que prefaciam os primeiros Livros de
Evangelhos. Aqui a figura é do profeta Isaías, mostrado por inteiro,
sentado num banco sob um arco apoiado por pilares listrados feitos
de pedra, talvez num templo, tendo acima os telhados de uma
grande cidade, provavelmente imaginada como a antiga Jerusalém.
Numa demonstração de que o artista levou em conta a arquitetura
(o que deve ter acontecido, já que a Primeira Cruzada foi pregada
em 1095, e Jerusalém estava presente na mente das pessoas), ele
mostra a linha do horizonte da cidade santa entre domos
convenientemente orientais, embora encimados por cruzes pouco
apropriadas para a época de Isaías, que viveu lá no século VIII a.C.
O profeta tem um halo, como tem Esdras no Codex Amiatinus. Um
certo exotismo do Antigo Testamento é expresso por seu bizarro
cabelo penteado em tranças, partido no meio, que daria bom crédito
a qualquer rastafári. Seus braços estão abertos, como os de um
budista em meditação, e sustentam um longo rolo, cujas
extremidades o identificam inequivocamente, “ISAIAS P[RO]PHETA”, e
que tem escrito em todo o seu comprimento, em maiúsculas
vermelhas, “ECCE VIRGO CONCIPIET ET PARIET FILIUM, ET
VOCABITUR NOMEN EI[US] EMMANUEL”, “Eis que a jovem está
grávida e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel” (Isaías
7,14), para o cristianismo, a mais importante sentença no livro de
Isaías, citada em Mateus 1,23.
Ao lado, pois se trata de uma abertura em página dupla, há um
cabeçalho ornamental: “Aqui começa o [‘primeiro’, acrescentado]
livro de São Jerônimo, o Padre, sobre Isaías, o Profeta…” (mas em
latim, é claro), em três fileiras de iniciais ornamentadas em vermelho
e verde com uma figura de meia página que mostra dois corredores
de um claustro, com teto de telhas. Debaixo do primeiro arco há um
alto clérigo tonsurado, com um halo, com seu nome identificado em
cada lado de sua cabeça, “HIERONIM[US]”, Jerônimo, erudito bíblico
e tradutor e agora canonizado como um dos quatro grandes
doutores da Igreja. Eusébio Jerônimo (c. 342-420) nasceu em
Estridão, na província romana da Dalmácia — sua localização exata
é disputada entre as modernas Croácia, Eslovênia e Bósnia —, e foi
um dos primeiros eruditos cristãos verdadeiramente internacionais,
tendo passado algum tempo na Gália, Antioquia, Síria,
Constantinopla, Roma e Egito, antes de enfim estabelecer-se em
Belém. Ele aqui é apresentado como um padre vestido com uma
batina azul, e não como um cardeal, como é usual e
anacronicamente mostrado na arte ocidental do século XIII em
diante. (Não havia cardeais, no sentido moderno, antes do século
VIII.) Jerônimo aqui está escrevendo um longo rolo no qual estão
inscritas as primeiras palavras do prefácio de seu comentário sobre
Isaías. Este paira no corredor adjunto do claustro, onde é recebido
por aquela a quem é dedicado, Eustóquia [em latim, Eustochium],
que está sentada, também tem um halo e também é identificada
com seu nome em capitulares vermelhas. Santa Eustóquia (m. c.
419), mulher e freira, apesar da terminação neutra de seu nome em
latim, era filha da especial amiga de Jerônimo, santa Paula (m. 404);
as duas devotas acólitas do erudito tinham deixado Roma juntas e
mais tarde se estabelecido perto da casa de seu mestre, em Belém,
onde fundaram depois dois mosteiros. Isso é relevante quando
viramos a página. Nesse segundo reverso há a mesma abertura do
prefácio de Jerônimo, aqui completo. “Expletis vix longo tempore…”,
com uma complexa inicial “E” que ocupa meia página, preenchida
com figuras entre as folhagens. Descrições diversas do Bodley 717
têm sugestões diferentes sobre a quem poderia se referir. No texto
do prefácio dirigido a Eustóquia, Jerônimo lhe conta que, tendo
terminado não havia muito tempo de escrever exposições sobre os
doze profetas e o livro de Daniel, ele agora estava abordando
Isaías, uma vez que fora isso que prometera a Paula antes da morte
dela. Na parte inferior da inicial, dois homens estão, evidentemente,
sepultando santa Paula, na igreja da Natividade em Belém.
Jerônimo continua, escrevendo que ele também tinha obrigações
com aquele homem instruído, Pamáquio, cunhado de Eustóquia. E à
esquerda um santo tonsurado está escrevendo: com certeza é
Jerônimo outra vez, olhando com deferência para uma jovem mulher
e um homem no centro e na direita, de novo com halos, que devem
ser Eustóquia e Pamáquio.
O prefácio de Jerônimo anuncia que ele explicará o texto de Isaías
principalmente quanto ao que o profeta nos conta sobre a vinda do
Cristo, aqui proclamado como Emanuel, que nascerá de uma virgem
e se tornará o salvador de todo o povo. Diferentemente do Beato,
que versa sobre o Apocalipse e chega às raias do absurdo na busca
de camadas de significado ocultas e místicas que seu autor original
nunca poderia ter imaginado, Jerônimo é sensível e racional,
buscando saber não mais do que aquilo que Isaías de fato quis
dizer, palavra por palavra, e como suas palavras se aplicam ao
cristianismo. Jerônimo se vale de — e até mesmo exibe — seu
imenso conhecimento de línguas e sua experiência por ter traduzido
a Bíblia para o latim. Por exemplo, veja-se este comentário de Isaías
1,3, em que o Senhor fala ao profeta: “O boi conhece o seu dono, e
o jumento a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de
conhecer, meu povo não é capaz de entender”. Jerônimo compara
com o texto da Septuaginta grega (“Israel não me conhece, e meu
povo não me compreende”) e com a extensão da metáfora no texto
hebraico (“Israel não conhece seu dono”, e “o povo não
compreendeu a manjedoura de seu senhor”). Ele observa que os
israelitas não são comparados aos cães, por exemplo, que são
animais inteligentes e domesticados, mas a bestas de fraco
entendimento. O boi que carrega o jugo da Lei representa os judeus,
e o burro com o fardo do pecado é um símbolo dos gentios. Ambos
são animais de carga e quem está sendo rejeitado por seu povo não
é tanto Deus, mas Cristo, que disse: “Vinde a mim todos os que
estais cansados sob o peso do vosso fardo…” (Mateus 11,28), e
assim por diante. Isso, hoje em dia, poderia ser um sermão
perfeitamente normal em qualquer igreja cristã.
Uma das questões mais controversas em todos os profetas
bíblicos é o que significa a predição de que o Salvador nascerá de
uma “virgem”, como profetiza o rolo apresentado no frontispício do
manuscrito. Jerônimo discute isso no livro III, capítulo 16. Está nos
fólios 29v-30r do manuscrito, e um leitor medieval traçou uma
hesitante linha que desce pela margem junto a essa passagem.
Embora a palavra usual para “virgem” em hebraico seja “betulah”,
Isaías usa “almah”, termo empregado ao longo da Septuaginta
significando simplesmente “jovem mulher”. Os judeus, portanto,
concede Jerônimo, negam que Isaías estava profetizando o parto de
uma virgem no sentido literal. Contudo, continua a explicar Jerônimo
longamente, citando não apenas múltiplas formas da palavra no
Antigo Testamento mas também a versão grega do Gênesis pelo
judeu convertido Áquila, no século II, que a palavra tem um segundo
significado em hebraico, indicando algo oculto, como uma virgem
cujos pais a mantêm escondida e que portanto nunca foi vista por
um homem, que é o significado de “almah” na língua púnica, que na
verdade deriva do hebraico, e assim por diante, caso em que era
realmente a uma factual pureza virginal que Isaías estava se
referindo. O escriba do Bodley 717 translitera as palavras hebraicas
para o alfabeto latino, mas depois desenha uma linha acima delas
para mostrar que são exóticas, assim como nós usamos o itálico. O
conhecimento multilíngue de Jerônimo é muito impressionante, até
mesmo pelos padrões atuais, e ele inspira credibilidade.
Frontispício com Isaías entronizado em Jerusalém, ao lado de um
retrato de meia página de Jerônimo escrevendo à sua discípula, a
freira Eustóquia.
Para um comentário bíblico, gênero que figura entre as classes
mais austeras de texto medieval, esse é excepcionalmente
suntuoso. A abertura do texto principal é marcada com uma grande
inicial que mostra Isaías profetizando para os israelitas, que são
reconhecíveis por estarem usando o Judenhut, o característico
chapéu pontudo usado pelos judeus medievais no Sacro Império
Romano. Cada um dos dezoito livros começa com uma grande e
elaborada inicial feita de inquietos caules de plantas e corolas de
flores, às vezes com dragões e leões, todos contra um fundo feito
de blocos preenchidos de cor. Cada página tem pequenas
capitulares em vermelho ou verde, algumas ornamentadas. É um
manuscrito muito ornamental e com aparência de ser muito caro.
Um aspecto interessante é que as margens das páginas parecem
nunca ter sido aparadas, e (especialmente) muitas margens
inferiores preservam as curvas naturais e as ondulações das bordas
da pele animal usada para fazer o pergaminho. Às vezes, no canto
exterior, nota-se o inequívoco arco formado pelo pescoço ou pela
espádua do bicho, e até mesmo as linhas onduladas paralelas onde
a beirada da pele foi esticada com força e suspensa durante o
processo de sua fabricação. A adivinha de Exeter aludia aos
estágios da feitura de um pergaminho, como o encharcamento com
água, o branqueamento ao sol, a remoção dos pelos e a raspagem
com uma faca. O princípio da preparação do pergaminho é que a
pele ensopada de água se descasca e se afina seguidamente à
medida que vai secando aos poucos, suspensa e esticada por todos
os lados com uma tensão considerável. Se a pele é de ovino ou
caprino, a raspagem toda é feita enquanto a peça está molhada. Se
é pele de bezerro, o pergaminheiro continua a raspá-la quando já
está seca, mas ainda esticada na moldura. Uma ilustração desse
processamento final ocorre no famoso frontispício de um manuscrito
de santo Ambrósio do início do século XII, que está na
Staatsbibliothek, em Bamberg. É uma vinheta que mostra um
pedaço de pele preso e esticado numa moldura de madeira,
enquanto um monge o raspa com uma lâmina curva especial presa
a um cabo. Esse implemento é chamado de “lunellum”. Pode
acontecer, de vez em quando, que a lâmina perfure acidentalmente
a superfície. Como a pele está sendo puxada com força em todas as
direções, mesmo uma falha pequena ou um talho acidental pode
sem dificuldade se alargar num orifício redondo ou oval. Podem-se
ver exemplos disso no Bodley 717, nos fólios 36 e 53, e em outros
lugares. No entanto, se o pergaminheiro for capaz de desamarrar e
afrouxar o pedaço de pele de sua moldura rápido o bastante, poderá
costurar o corte antes de ele ser esticado e se abrir mais. Há
reparos desse tipo no fólio 42, delicadamente costurado com linha
branca, e no fólio 188, com linha verde. São costuras sem dúvida
originais, feitas na oficina do pergaminheiro muito antes de as folhas
de pergaminho serem enviadas ao escriba. Essas costuras não são
raras em pergaminhos do período românico, mas ainda assim essa
prática nunca foi estudada sistematicamente, como merece, no
mínimo porque essa é a costura dos bordadores contemporâneos à
Tapeçaria de Bayeux. De todas as belas artes da Idade Média, o
trabalho com agulha é um dos menos preservados, exceto
(insuspeito e não registrado) em páginas de manuscritos como
esse.
Comentário de Jerônimo sobre Isaías 7,14, profetizando que uma
virgem daria à luz um filho, marcado embaixo à esquerda com
uma linha à margem e a anotação “contra iudeos”,
“contrariamente aos judeus”.
Desenho do início do século XII de um pergaminho de pele sendo
amarrado fortemente sob pressão, e um buraco no manuscrito de
Hugo Pictor causado por ter a superfície do pergaminho sido
cortada por descuido.

Depois da raspagem, o pergaminho era cortado e dobrado, como


descrito na adivinha, e juntado em cadernos.** Esse volume do
Hugo Pictor está completo, um dos poucos manuscritos medievais
totalmente intactos que encontraremos neste livro. Na moderna
anotação a lápis do alceamento, o “165” é repetido por acidente, e
assim a numeração depois disso (que aqui seguimos) fica com uma
unidade a menos que o total efetivo de folhas. Há 38 linhas por
página, pautadas com furos ou com uma pluma, com orifícios
claramente preservados nas três margens externas. O texto é
escrito em coluna única, o que é típico do século XI, mas incomum
no XII, quando um volume desse tamanho seria apresentado em
duas colunas.
O exame do manuscrito em si mesmo revela que ele
aparentemente mantém o cerne de sua encadernação original. As
margens, em sua totalidade, nunca foram aparadas, como
acabamos de ver, e não têm nenhum desses cortes lisos e salpicos
das bordas comuns em reencadernações do século XVII. Os
cadernos são costurados em três faixas de costura apenas, que
eram o mínimo para um livro desse tamanho no século XVII, mas
padrão no século XI; as posições dessas linhas de costura
correspondem às tênues saliências nas folhas de rosto medievais —
coladas na parte interna das capas — onde apareciam essas linhas
de costura. Há um pedaço de um marcador de livros medieval
largado solto entre os cadernos 19 e 20 (após o fólio 152): deveria
ter escapado caso alguma vez os cadernos houvessem sidos
separados para uma reencadernação. Onde a encadernação cedeu
em parte, entre os fólios 129 e 130, permitindo um vislumbre da
parte interna da lombada, não há traços visíveis de uma recostura.
O que provavelmente aconteceu foi que em 1602 o manuscrito
ainda estava fixado com cavilhas em suas grossas e
contemporâneas placas de madeira cobertas de couro, estágio final
da encadernação de livros mencionada na adivinha de Exeter.
Talvez a fim de torná-lo mais leve para transporte, as cavilhas foram
suprimidas e as pranchas de madeira, descartadas. Depois, após a
chegada a Oxford, o miolo original do século XI foi simplesmente
recosturado em novas e baratas capas de papelão, e recuperado. A
despercebida estrutura de mil anos de idade que existe por baixo
ainda funciona à perfeição.
Um corte à margem do pergaminho, feito por acidente durante sua
preparação, reparado pelo pergaminheiro com uma costura em fio
verde.

A transferência do manuscrito para Oxford está documentada, e


sua proveniência anterior em Exeter também está fora de qualquer
dúvida. Na margem superior da página com o frontispício há uma
inscrição, aparentemente feita por John Grandison, bispo de Exeter
de 1327 a 1369, “lib[er] Ecc[lesi]e Exon[iensis] de [commun]ib[us]”,
“o livro da igreja de Exeter, da coleção comunitária”, repetida depois
como “lib[er] Ecc[lesi]eExon[iensis]”, no alto das duas páginas
iniciais da abertura. Um inventário dos bens da catedral feito para
uso do subtesoureiro em 1327, logo antes de Grandison assumir o
cargo, inclui duas cópias de Jerônimo sobre Isaías, sendo uma
descrita como pequena, avaliada em treze xelins e quatro pence
(um marco, em moeda medieval), e uma dita grande, mas avaliada,
mais modestamente, em dez xelins. É possível que esta aqui fosse
a mais cara das duas, já que é difícil imaginar uma que fosse mais
bela. Os preços nos catálogos das bibliotecas medievais costumam
representar o valor de ressarcimento caso quem levasse um livro
emprestado o perdesse. Os empréstimos foram cancelados em
Exeter por volta de 1412-3, quando foi construída uma nova
biblioteca e os livros foram acorrentados às estantes. Àquela altura
só restava uma cópia do comentário de Isaías por Jerônimo. A outra
bem pode ter sido emprestada e jamais devolvida. O manuscrito
sobrevivente está listado no inventário da catedral de 1506, e pode
ser absolutamente identificado pelo costume medieval de citar as
palavras de abertura da segunda página de um manuscrito, já que
todas as cópias do mesmo texto começam de modo idêntico, mas
quase toda transcrição chegará à segunda página num ponto
diferente. O Jerônimo de Exeter é descrito como “2 fólio eiusque
sapiencia”, que são de fato as palavras com as quais começa a
página 2 do manuscrito. O volume era o nono livro na nona entre
onze mesas no lado sul da biblioteca. Há uma clara saliência verde
de um fecho para corrente ao pé da última folha de rosto do volume,
embora pudesse também ser de uma corrente usada na Bodleiana
no século XVII.
Independentemente disso, o texto também é atribuído a Exeter, no
início do século XIV. Naquela época, os franciscanos em Oxford
preparavam o que eles chamaram de “Registrum Anglie de libris
doctorum et auctorum veterum”, tipo de catálogo unificado
interbibliotecário dos principais textos teológicos e patrísticos
levantados em quase cem casas religiosas da Inglaterra, Escócia e
Gales, ordenadas por autor. O comentário de Jerônimo sobre Isaías
era amplamente registrado e relatava-se sua presença em nada
menos de 24 bibliotecas britânicas, uma quarta parte das
recenseadas, inclusive na da Catedral de Exeter.
No final do século XI, no entanto, ele era uma novidade rara. Não
se conhecia mesmo nenhum manuscrito com esse texto na
Inglaterra anglo-saxã tardia. Jerônimo de fato menciona a Grã-
Bretanha, discutindo a dispersão dos habitantes da terra ao
comentar Isaías 40 (é estranhamente gratificante saber que
Jerônimo, escrevendo em Belém, tenha ouvido falar do país). Por
volta de 1090 os três primeiros manuscritos de Jerônimo sobre
Isaías apareceram na Inglaterra quase que ao mesmo tempo.
Foram adquiridos pelas catedrais de Exeter (nossa cópia), Cantuária
e Salisbury. A questão é: como — e na verdade por quê — o
comentário de Jerônimo sobre Isaías entrou subitamente na
Inglaterra? A resposta nos leva ao cerne da história política e social,
pois o final do século XI foi uma época de inimaginável reviravolta e
mudança na Inglaterra.
Peça a qualquer pessoa na Grã-Bretanha que cite uma data na
história. Afora umas poucas pessoas que nunca se recuperaram da
emocionante vitória da Inglaterra na Copa do Mundo de futebol em
1966, a maioria dirá “1066”. As esquadras normandas atracaram em
Pevensey em 28 de setembro daquele ano sob o comando de
Guilherme, duque da Normandia, como descreve a Tapeçaria de
Bayeux. Os invasores derrotaram os exércitos anglo-saxões e
mataram o rei Haroldo na Batalha de Hastings, em 14 de outubro. O
duque Guilherme, depois cognominado Guilherme, o Conquistador,
foi coroado rei da Inglaterra na Abadia de Westminster no dia de
Natal, 25 de dezembro de 1066. O resultado foi absolutamente
devastador para a vida anglo-saxã, mas também catapultou a
Inglaterra para a história maior da Europa. A data marcou de tal
modo a consciência inglesa que nunca foi esquecida. A conquista e
a subsequente ocupação normanda transformaram completamente
muitos aspectos da governança, da propriedade de terras, dos
privilégios, da língua e da identidade social, e tudo isso ainda tem
consequências duradouras na Grã-Bretanha de hoje. A paisagem
moderna, também, ainda preserva edificações construídas
desafiadoramente pelos conquistadores daquela época — grandes
castelos de pedra dominando cidades medievais, e catedrais e
mosteiros no sólido estilo românico importado da Europa. Até
mesmo as pedras eram às vezes trazidas através da Normandia. As
estruturas eram ocupadas por normandos, e novos bispos e abades
eram nomeados exclusivamente a partir de nomeações prévias na
Normandia. Não era de todo ruim.
O monge Guilherme de Malmesbury (c. 1080-1143) é autor de
uma descrição famosa de como os conquistadores insuflaram um
vigor e uma vida nova nos declinantes padrões monásticos da
Inglaterra anglo-saxã. Foram fundados muitos mosteiros. No tempo
decorrido desde a conquista até a morte, em 1135, de Henrique I,
filho mais moço do Conquistador, o número de instituições religiosas
na Inglaterra aumentou de cerca de sessenta para mais de 250, e
todas elas precisavam de livros.
Vemos essa renovada atividade refletida dramaticamente no
número de manuscritos sobreviventes. Dos cinco séculos anteriores
de cristianismo e atividade monástica nas Ilhas Britânicas, entre a
chegada de santo Agostinho e 1066, até mesmo fragmentos de
manuscritos são raros. No entanto, no período de 64 anos entre a
Conquista e 1130, registram-se quase mil livros subsistentes. De
então até o final do século XII, os números eram grandes demais
para que alguém tentasse contá-los. Sua enorme quantidade é uma
evidência tangível de uma atividade realmente extraordinária na
feitura de manuscritos e na formação dos acervos de bibliotecas na
Inglaterra como sequela da invasão normanda.
Os anglo-saxões não eram desprovidos de livros, mas seu
repertório e as oportunidades de aquisição tinham sido limitados. Os
velhos tempos de erudição de estilo mediterrâneo em Wearmouth e
Jarrow havia muito tinham acabado, e os mosteiros sofriam com as
implacáveis incursões dos vikings. O bispo Leofrico, doador do Livro
de Exeter, tinha presenteado sua catedral com um interessante
conjunto de livros; mas afora a liturgia e alguns volumes em inglês
antigo, eram na maioria textos que ele sem dúvida pegara a esmo
durante seus estudos em Lotaríngia, e muitos dos cônegos de
Exeter provavelmente os olhavam com frustração e falta de
interesse. Contudo, não fosse ele, a posterior Exeter anglo-saxã
quase não teria livro algum.
A padronização era uma característica dos normandos. Quando
eles assumiram o comando das instituições eclesiásticas na
Inglaterra ou fundaram outras, foi quase como se tivesse sido
expedida uma diretriz com uma lista de textos de referência
uniformes e obrigatórios. A urgência é comparável à de Thomas
Bodley por volta de 1600, mas a lista de compras era mais precisa.
De repente, esperava-se que toda biblioteca monástica possuísse
coleções similares dos principais textos de teologia cristã tradicional.
Todo o alfabetismo voltou ao latim, a língua internacional. As
fundações normandas foram devidamente abastecidas com
abrangentes séries das mesmas obras patrísticas dos padres da
Igreja, sobretudo de Ambrósio, Jerônimo, Agostinho, Cassiodoro e
Gregório. Essas exigências básicas em geral incluíam o comentário
de Lucas por Ambrósio (c. 339-97), e talvez seu Hexameron sobre
os seis dias da Criação, as cartas e comentários de Jerônimo (c.
342-420), o De civitate dei de Agostinho (354-430) e seus escritos
sobre o Gênesis, sobre os Salmos (frequentemente em três
volumes) e sobre o Evangelho de João; o comentário sobre o
Saltério de Cassiodoro (c. 485-c. 580); e o longo e discursivo
Moralia de Gregório (c. 540-604), um comentário sobre o livro de Jó
que incorpora muitas ideias sensatas sobre a vida humana. Muitos
desses textos tradicionais tinham tido antes pouca presença nas
bibliotecas inglesas, se é que tiveram alguma. Os livros eram feitos
em grandes números em curtos períodos de tempo, e assim como
os prédios das igrejas normandas se parecem todos uns com os
outros, se pareciam também seus novos manuscritos. Pouco mais
da metade de uma biblioteca inteira enviada da Catedral de Exeter
para Oxford em 1602 compreendia manuscritos que tinham sido
escritos no breve período que ia do fim do século XI ao início do
século XII: incluíam quatro volumes de obras de Ambrósio, três de
Jerônimo, quinze de Agostinho e nove de Gregório, hoje todos eles
na Biblioteca Bodleiana. Muitos deles se parecem com o estilo do
Jerônimo de Hugo Pictor. O catálogo da biblioteca da Catedral de
Exeter de 1327 registra ainda mais textos patrísticos, inclusive onze
de Jerônimo, 22 de Agostinho e quinze de Gregório. A maioria
desses textos estava indisponível em Exeter antes do final do século
XI, e alguns — como o de Jerônimo sobre Isaías — não tinham
nenhum precedente na Inglaterra. Os modelos para esses livros
teriam de ser encontrados em algum lugar. Com toda a
probabilidade, os modelos vieram todos da Normandia.
A tradição de texto à qual pertence o Bodley 717 é a assim
chamada família “galicana” de Jerônimo sobre Isaías, amplamente
representada no norte da França, incluindo cópias do final do século
VIII das abadias de Corbie, próximo a Amiens, Saint-Amand, entre
Lille e Valenciennes. Acredita-se que derivem todas de um
manuscrito perdido, que talvez tenha estado na biblioteca do palácio
de Carlos Magno. Dentro dessa família genérica há algumas
esquisitices no texto do Bodley 717, e houve quem notasse isso na
Exeter medieval. Por exemplo, nos fólios 7r-7v há uma longa
passagem inserida no comentário a Isaías 1,12. Um revisor do final
do século XI acrescenta uma nota de advertência na margem, “Istud
non est de Jeronimo”, “Isto não é de Jerônimo” (o que é bem
correto, e não consegui encontrar uma fonte para a passagem
contestada). O mesmo revisor sugere leituras alternativas em vários
lugares. Entre os exemplos perto do início se incluem: a) no fólio 3r,
onde o texto interpreta a palavra “Isaías” [em hebraico Ieshaiahu]
como significando “salvator domini”, o revisor propõe em vez disso
“salutari domini”; b) no fólio 6r, sobre Isaías 1,8, o texto diz que
Paulo escreveu mais sobre o tema, “scribensque dicit, ‘Ergo
numquid…’”, e o revisor sugere, corretamente, que deveria ter dito
“… scribensque, ‘Dico ergo, numquid…’ (está em Romanos 11,1); e
c) no fólio 9r, o texto refere-se a “ministeria vini” e o revisor oferece
“misteria vini” como alternativa mais plausível. No fólio 227r o revisor
deixa uma anotação para si mesmo, “huc usque emendatum est”,
“corrigido até aqui”, e depois continua a trabalhar, esquecendo de
apagar sua anotação.

Um leitor de manuscrito, supostamente de Exeter, comparou o


texto com outra cópia e anotou que o trecho que ele marcou não
era de Jerônimo.
O revisor que checou o texto fez uma anotação para si mesmo no
fólio 227r, de que o manuscrito estava corrigido até aquele ponto.

Embora a maioria dos manuscritos de Exeter esteja na Bodleiana,


há outras catedrais na Inglaterra que ainda preservam grande parte
de suas bibliotecas medievais in situ, quase intocadas desde a
Idade Média. Para entender 0 Bodley 717, vamos fazer uma
excursão a duas delas. A primeira é em Salisbury, a linda catedral
com seu pináculo gótico em Wiltshire, cerca de 140 quilômetros a
sudoeste de Londres, a meio caminho de Exeter. A construção
começou na década de 1220, na mudança da catedral de um lugar
menos satisfatório no topo de uma colina nas proximidades de Old
Sarum. A atual biblioteca foi construída em cima da ala oriental do
claustro, em 1445. Entra-se por uma porta medieval de carvalho,
sem marcações, na extremidade do transepto sul da própria
Catedral de Salisbury, subindo por uma estreita escada de pedra em
espiral até outra porta medieval, guarnecida com tachões de metal e
uma maçaneta no formato de um anel de ferro. Lá fui recebido pela
bibliotecária, Emily Naish. Meu nome foi o primeiro a ser registrado
no livro de visitantes em quase um mês. Há um pequeno espaço
para trabalhar numa mesa octogonal de madeira, separada das
estantes, que são isoladas por um portão, como o coro numa igreja.
Emily já tinha preparado para mim o MS 25, sua cópia
contemporânea do comentário de Jerônimo sobre Isaías, adquirida
para a locação anterior da catedral em Old Sarum, na época de são
Osmundo, chanceler de Guilherme, o Conquistador, e bispo de
Salisbury de 1078 a 1099. Osmundo, a quem se atribuem os ofícios
de escriba e encadernador, veio de Séez, na Normandia, e fica claro
que foi ele quem conduziu a aquisição e a cópia dos livros que
estavam na lista normanda de textos. Quando a nova cidade de
Salisbury foi construída, no início do século XIII, os bens da velha
Catedral de Osmundo foram levados para seu novo e aprimorado
lugar, três quilômetros para o sul, junto ao rio Avon. É prazeroso
manusear um manuscrito que não mudou de dono em quase mil
anos e nunca viajou mais do que uns poucos quilômetros. O
manuscrito de Salisbury parece ser totalmente diferente do Bodley
717. É um texto meticulosamente utilitário esse que se apinha em
suas páginas, com uma decoração insignificante. Procurei e
encontrei as quatro passagens que acabei de citar no manuscrito de
Exeter. A passagem interpolada não está aqui. Todas as três
melhorias sugeridas pelo revisor de Exeter correspondem aos textos
originais no manuscrito de Salisbury. Em outras palavras, os dois
manuscritos foram copiados de modelos independentes, mas, numa
data muito antiga, um escriba de Exeter cotejou o manuscrito de
Hugo Pictor com a cópia de Old Sarum, ou algo muito parecido com
ela, e acrescentou essas mudanças nas margens de sua própria
cópia. Isso nos revela um momento na história intelectual dos
normandos. Salisbury e Exeter estão ambas entre as nove catedrais
“seculares” da Inglaterra medieval — isto é, não monásticas — e é
muito provável que todas elas, no sudoeste da Inglaterra, se
conhecessem bem e comparassem umas com as outras as
aquisições que faziam. Não há dúvida de que essas conexões
existiam na época do bispo Osberno de Exeter, já que a cópia de
sua catedral do Livro de Domesday de Exeter foi feita por um
escriba de Salisbury. É característico da Idade Média o fato de que,
ao comparar seus respectivos manuscritos de Jerônimo, o revisor
de Exeter não tenha alterado o texto: ele notou as discrepâncias e
apenas acrescentou a palavra “vel”, “alternativamente”, sem tomar
uma decisão.
A cópia do mesmo texto adquirido no fim do
século XI para a Catedral de Salisbury é um
manuscrito menos luxuoso, com um mínimo
de ornamentos e muitos buracos originais no
pergaminho.
A Catedral de Durham e o castelo, imponentes símbolos da
uniformidade e autoridade dos conquistadores normandos,
fotografados das proximidades da estação.

Em busca de paralelos com a produção do manuscrito de Hugo,


nossa segunda excursão nos levou a um lugar tão no nordeste da
Inglaterra quanto Exeter está no sudoeste, a catedral em Durham.
Atualmente, esse lugar que um dia foi um posto avançado está a
apenas três horas de trem de King’s Cross. Quando o trem de
Londres entra na estação de Durham tem-se uma visão de tirar o
fôlego de uma realização da conquista normanda na montanha logo
em frente — o formidável castelo, iniciado em 1072, e a catedral
adjacente, combinando com ele em sua construção de pedra
arenosa marrom, refundada em 1093, ambos enormes e
inexpugnáveis à beira do penhasco que domina uma grande curva
do rio Wear, muito abaixo, em sua jornada para Wearmouth e o mar
do Norte. Da estação você desce a colina, passa pela casa de
Richard Gameson, pela ponte Milburngate e sobe a íngreme
Saddler Street para a cidade medieval. A biblioteca dos manuscritos
normandos ainda está em grande parte intacta no que eram os
alojamentos monásticos da catedral. Você atravessa a nave da
igreja e sai novamente, dando a volta para chegar ao lado mais
afastado do claustro, de onde sobe uma escada que leva à
biblioteca. O bibliotecário é um australiano. Seu assistente é
neozelandês.

Títulos dos livros dados à Catedral de Durham por Guilherme de


Saint-Calais, bispo de 1081 a 1096, listados na folha de guarda de
sua Bíblia.

Os bispos medievais de Durham eram considerados príncipes por


direito próprio, governantes de domínios seculares assim como das
propriedades da Igreja. Era uma diocese muito rica. Quem foi
designado pelos normandos para o bispado foi Guilherme de Saint-
Calais (às vezes chamado de são Carilef), bispo de 1081 a 1096.
Nasceu em Bayeux, no interior da Normandia. Saint-Calais, de onde
tirou o nome, era um mosteiro no noroeste da França, a leste de Le
Mans, onde tinha sido prior e mais tarde abade, antes de ir para a
Inglaterra seguindo o Conquistador, sob o patrocínio de Odo de
Bayeux, meio-irmão do novo rei. O segundo volume de sua Bíblia
ainda sobrevive na biblioteca da Catedral de Durham, um
manuscrito do final do século XI de tamanho generoso, com estilo
notavelmente semelhante ao do Jerônimo de Hugo, na Bodleiana.
Em sua primeira folha há uma lista de 49 livros doados pelo bispo
Guilherme de Saint-Calais à sua nova catedral, a começar pela
própria Bíblia. Parece mais uma lista de conferência dos textos com
os quais os normandos se dispuseram a equipar as instituições que
fundavam. Lá estão todos eles: Agostinho sobre os Salmos, em três
volumes; De civitate dei, de Agostinho, e seu comentário sobre o
Evangelho de João; Jerônimo sobre os doze profetas (mas não
sobre Isaías, neste caso); Moralia de Gregório, em dois volumes, e
seu comentário sobre Ezequiel; Rábano Mauro sobre Mateus. E
obras de Orígenes, Beda, Ambrósio, e assim por diante. Cerca de
vinte desses livros ainda são claramente identificáveis nas estantes
da Catedral de Durham. É uma sobrevivência fortuita. Um deles, o
terceiro volume de uma coleção de Agostinho sobre os Salmos,
termina com um longo colofão em verso, registrando que ele foi
encomendado pelo bispo Guilherme durante a época em que havia
se retirado de seu próprio bispado, assim expresso: “tempore quo
proprio cessit episcopio”. É uma declaração precisa e preciosa, pois
data o livro no estreito intervalo entre o fim de 1088 e setembro de
1091, período no qual o bispo fora forçado a se exilar de Durham e
voltara para casa, na Normandia. (Ele tinha se envolvido numa
rebelião liderada por seu patrono Odo de Bayeux contra Guilherme,
o Ruivo.) Isso é totalmente consistente com a declaração do
historiador da catedral, Symeon de Durham, que escreveu entre
1104 e 1107 (até onde se lembrava) que Guilherme de Saint-Calais
tinha enviado livros da Normandia antes de seu retorno do exílio em
1091.
Os versos no manuscrito de Agostinho continuam. Dizem que os
materiais para a sua escrita foram fornecidos a expensas do bispo,
mas o trabalho, por encomenda sua, foi de alguém que tinha o
mesmo nome que ele, Guilherme: “Materies sumptu sed labor
imperio/ Nominis eiusdem confers Willelmus”. Assim temos o nome
do escriba, ao menos o desse volume. Há mais informação no
segundo volume da mesma coleção em três partes, ainda em
Durham. Uma de suas iniciais, muito semelhante em estilo àquela
de Hugo Pictor, inclui um desenho em cores de um bispo de pé com
seu nome acima de sua cabeça, “villem[us] episcop[us]”, o próprio
Guilherme de Saint-Calais, alto e imponente numa casula verde, e
uma figura encurvada ajoelhada a seus pés, também com seu
nome, “Rob[er]t[us] Beniamin”. Ele se parece com Hugo Pictor, com
uma tonsura clerical e uma roupa azul. Aponta para o bispo com um
dedo comprido e tem na mão um longo rolo com palavras dirigidas a
seu patrono, rogando que o bispo seja recompensado na vida
futura, porém, de modo mais prático, desejando que ele mesmo, o
pintor, possa receber sua recompensa em forma de pagamento, “et
pictor mercis maxima dona”.
Guilherme de Saint-Calais retratado na
capitular de um de seus manuscritos com o
artista Roberto Benjamim ajoelhado a seus
pés.
De tudo isso, podemos dizer que a coleção de manuscritos de
Agostinho sobre os Salmos da Catedral de Durham foi
encomendada na Normandia entre 1088 e 1091, que o bispo
forneceu os materiais a suas próprias expensas, que um dos
escribas também se chamava Guilherme, e que entre os artistas se
incluía certo Roberto Benjamim, que esperava ser pago e era
portanto, evidentemente, mais um profissional do que um monge
devoto trabalhando de graça. A extrema raridade de autorretratos de
iluminadores cujos nomes são conhecidos faz desse um par
adequado para aquele de Hugo Pictor, e pode constituir um desafio
à alegação de Hugo de ter criado a mais antiga dessas figuras num
manuscrito, na Inglaterra.
Como se pode imaginar, uma informação tão detalhada chamou a
atenção de historiadores da produção inglesa de livros românicos,
especialmente dos paleógrafos Michael Gullick, Richard Gameson e
Rodney Thompson, todos amigos e colegas com os quais tenho
uma dívida imensa. Em diferentes ocasiões passamos horas juntos,
noite adentro, discutindo esses livros sob todos os ângulos. Quando
se comparam detalhadamente os manuscritos em Durham com os
de Exeter, podemos ver que foram os mesmos escribas que não só
contribuíram para os livros destinados a essas catedrais inglesas
como também para manuscritos que sem dúvida foram feitos para
uso doméstico na Normandia, onde Guilherme de Saint-Calais
passou seu exílio, provável e principalmente em Bayeux, onde
nascera. Por exemplo (essas descobertas são na maior parte de
Michael Gole), o principal escriba da Bíblia de Guilherme de Saint-
Calais com certeza ainda vivia em Bayeux mais de trinta anos mais
tarde, uma vez que escreveu um texto em nome da Catedral de
Bayeux para o rolo mortuário*** do abade Vitalis de Savigny,
expressando as condolências da catedral pelo passamento de
Vitalis, que morreu em outubro de 1122. O rolo está preservado nos
arquivos nacionais franceses, em Paris. O mesmo escriba fez
contribuições para a coleção de Agostinho sobre os Salmos, em
Durham (ornamentada em parte por Roberto Benjamim) e, o que é
mais relevante para nossa história, escreveu uma cópia de
Lanfranco, que estava na Catedral de Exeter e agora está em
Oxford, e dois volumes de Gregório, ainda na biblioteca municipal
em Bayeux. Além dissso, um dos escribas que corrigiram a Bíblia de
Guilherme de Saint-Calais também atuou na revisão do manuscrito
de Orígenes, que o bispo Guilherme doou também à Catedral de
Durham. O escriba principal do Orígenes, por sua vez, escreveu um
Gregório para Durham, um Agostinho para Exeter, e provavelmente
parte de outro Agostinho, que ainda está na Normandia, onde
pertenceu uma vez à Abadia de Jumièges, próximo a Rouen, cerca
de 137 quilômetros a leste de Bayeux. Nas equipes de artífices que
colaboraram figurava Roberto Benjamim, que tinha acrescentado
seu retrato ao Agostinho de Durham. Até onde podemos julgar,
considerando seu estilo, Roberto Benjamim também pintou a inicial
que abre a Bíblia de Guilherme de Saint-Calais, contribuiu no
Agostinho de Exeter e nas cópias de Gregório, de Bayeux; também
ornamentou um manuscrito de Agostinho sobre João, hoje em
Rouen, onde pertenceu à abadia local de St. Ouen. Está claro aqui
que se trata de uma operação internacional maior do que seria a de
algum iluminador isolado em Exeter, e que ela envolve uma notável
triangulação entre Durham, Exeter e a Normandia.

Com tudo isso em mente, voltemos à Bodleiana, em Oxford, onde o


MS Bodley 717, assinado por Hugo Pictor, ainda está em segurança,
reservado para nós no balcão de atendimento da Sala Mackerras.
Agora podemos ver como ele se parece fantasticamente com os
manuscritos de Durham e os normandos, com sua metódica
caligrafia continental de letras de serifas retorcidas e suas
capitulares com desenhos de plantas complexos e agitados feitos na
maioria em vermelho, preenchidos com azul-escuro, verde e
vermelho. Também deve ter sido feito na Normandia. Talvez eu
esteja enganado quanto a um detalhe (antiquários locais podem me
corrigir), mas a cobertura que encima a moradia de Hugo é
claramente feita de telhas: em Devon, as coberturas tradicionais
eram de sapé, enquanto na Normandia eram quase sempre de
telhas ou de sarrafos. Michael Gullick me diz que o pergaminho do
manuscrito tem uma textura totalmente europeia, diferente da das
peles macias inglesas que sem dúvida se usavam em Exeter, e que
o padrão de alinhamento com quatro linhas verticais entre colunas é
característico dos franceses, onde os escribas ingleses teriam com
certeza usado três linhas. São pequenos detalhes, mas,
cumulativamente, importantes, que confirmam o que já sabemos
sobre Durham e a Normandia. O assim chamado autorretrato inglês
de Hugo Pictor é, na realidade, continental.
O Bodley 717 foi escrito por quatro escribas, mas foi todo
ornamentado por um único artista. Os quatro escribas são os que
escreveram 1) fólios 1r-8v, caderno 1; 2) fólios 9r-144v, cadernos de
2-18; 3) fólios 145r-185v, linha 18; e 4) fólios 185v, linha 19, até o
fim do manuscrito, que se encerra com o retrato de Hugo Pictor no
fólio 287v. Note-se, como é tão frequente em nossa jornada entre
manuscritos, como as separações entre os escribas correspondem
à divisão em cadernos. Os escribas pautavam seu pergaminho
usando implementos diferentes, o que é uma evidência de que eram
eles que preparavam suas próprias folhas (os escribas 1 e 4
riscavam suas linhas com vigor; os escribas 2 e 3 marcavam suas
linhas com um traçador ou uma ponta de chumbo). A suposição
universalmente aceita entre historiadores de manuscritos é que o
escriba 4 é o próprio Hugo Pictor, mas será mesmo verdade?
Temos razões para fazer essa pergunta. A experiência com o
Agostinho de Durham nos relembra a divisão de trabalho nesse
manuscrito entre a atividade de seu escriba, Guilherme, e a de seu
artista, Roberto Benjamim. Mais do que isso, o retrato de Hugo está
identificado explicitamente como sendo do “pintor e iluminador”, sem
nenhuma menção de ser um escriba. Creio que podemos aceitar,
diante disso, que Hugo foi pintor do manuscrito inteiro, uma vez que
a decoração ao longo dele é totalmente consistente com a do
autorretrato. No entanto, Hugo na verdade está se descrevendo na
figura como um escriba. Há pouca dúvida quanto a isso. Com uma
mão está pautando o manuscrito, ação preparatória para a escrita
(tarefa realizada por escribas, como acabamos de ver), com a outra
mão está mergulhando sua pena de pluma num tinteiro, e fica claro
que não é um pincel em tinta de pintura. A confirmação de que ele
foi de fato tanto um escriba como um artista está no formato dos
espaços deixados para a inserção de capitulares. Os escribas 2 e 3
(vamos excluir 1 por um momento) deixavam simples espaços em
branco retangulares onde as capitulares seriam pintadas mais tarde,
sem considerar qual seria seu formato ou sua composição, e
acrescentavam nas margens indicações de quais letras deveriam
ser acrescentadas. Quando Hugo veio preencher esses espaços,
suas capitulares exuberantemente fluidas e multitentaculadas se
encaixaram com incômodo nessas grandes e arejadas aberturas
quadradas. Contudo, ao longo do espaço escrito por esse escriba,
do fólio 185v em diante, as bordas da mancha escrita são
modeladas, linha a linha, para se adaptar às curvas e aos
componentes das capitulares pintadas, e elas se juntam e se
aconchegam com conforto, como um casal recém-casado na cama.
O texto e a ornamentação devem ter sido feitos ao mesmo tempo
pela mesma pessoa. Em resumo, o escriba 4 deve ter sido Hugo.
Assim como no caso dos escribas identificáveis de Durham, a mão
de Hugo Pictor, seja como escriba, seja como artista, pode ser
encontrada ou sugerida em vários e diferentes manuscritos. Nestes
se incluem outros dois que foram de Exeter para a Bodleiana (De
civitate dei de Agostinho e De cura pastoralis de Gregório);
provavelmente o comentário de Jerônimo sobre os profetas
menores, doado a Durham por Guilherme de Saint-Calais;
fragmentos de homilias de Agostinho que de algum modo chegaram
à Suécia, talvez através da Inglaterra; e, o mais revelador de todos,
um manuscrito com as obras menores de Anselmo, hoje em Rouen,
que pertenceu ao abade de Jumièges, na Normandia. O Anselmo é
significativo porque seu texto atribui sua autoria ao arcebispo da
Cantuária, com isso estabelecendo sua feitura numa data não
anterior à da nomeação de Anselmo para esse cargo em 1093, e,
com boa margem, após o retorno de Guilherme de Saint-Calais a
Durham. Isso quer dizer que Hugo não imigrou para a Inglaterra
com o séquito do bispo que retornava, como houve quem sugerisse,
permanecendo em casa, na Normandia. A mão de Hugo Pictor
como artista, mas não como escriba, aparece quase com certeza
em outro manuscrito de Jumièges, um volume sobre vidas de
santos, hoje em Rouen. É possível que tenha pintado um fragmento
de um hinário do fim do século XI, atribuído a Jumièges unicamente
devido a seu estilo, hoje na Bibliothèque Nationale, em Paris. Essa
atribuição é especialmente tentadora porque no hinário há uma
pequena figura de um clérigo cantando e abençoando, seu nome
escrito em vermelho, “Hugo levita” (que parece significar Hugo, o
Levita, ou Diácono). A pintura é muito semelhante à de autoria de
Hugo no Bodley 717, e o nome é similar, mas será que de fato se
refere ao mesmo homem? Não consigo convencer a mim mesmo
por completo, mas bem poderia ser.
Considerando tudo isso, a evidência obtida nos manuscritos de
Durham parece apontar mais para Bayeux do que para Jumièges
como o provável lugar em que esses escribas e ornamentadores
que colaboraram mutuamente e foram tão próximos forneceram os
manuscritos para as duas catedrais inglesas. O escriba da Bíblia do
bispo Guilherme de Saint-Calais ainda estava trabalhando para o
cabido da Catedral de Bayeux trinta anos mais tarde. Exeter, como
Salisbury, não era uma catedral com priorado beneditino, mas uma
fundação secular, equipada com cônegos, assim como Bayeux. De
certo modo é mais fácil imaginar o cabido de Exeter fazendo
arranjos com uma catedral irmã na Normandia do que com um
mosteiro beneditino. Bayeux não era tão alienígena e inacessível
quanto poderia parecer. Está exatamente à mesma distância de
Exeter que Londres, e de navio o acesso a ela é muito mais fácil. Se
Hugo estivesse, ele também, associado com alguma oficina de
exportação em Bayeux, então a Abadia de Jumièges, no lado mais
afastado da Normandia, poderia, pela mesma lógica, ter sido outro
cliente externo, como Exeter e Durham. Esse é o período do qual
encontramos as primeiras e nebulosas referências documentais, na
França e na Inglaterra, a mosteiros que contratavam escribas e
artistas para ajudar nas encomendas de manuscritos, que atingiam
proporções sem precedentes.
Duas capitulares no manuscrito bodleiano, pintadas por Hugo
Pictor: quando o próprio Hugo também copiava o texto, como à
direita, o texto e as capitulares se ajustavam perfeitamente, mas
quando o texto já tinha sido escrito antes disso por um escriba,
como à esquerda, eles não se encaixavam bem.

Há até mesmo indícios de que as oficinas talvez tivessem acesso


a manuscritos em parte previamente preparados, esperando as
encomendas, ou (talvez com mais acerto) algum grande projeto
anterior que fora abandonado antes de se completar. Há quem
sugira que Guilherme de Saint-Calais assumiu o patrocínio do
Agostinho de Durham quando ele já estava na metade de seu
segundo volume, no ponto em que Roberto Benjamim retrata a si
próprio ao lado do bispo. Algo semelhante ocorreu no Bodley 717.
Quando Hugo Pictor entrou no empreendimento pela primeira vez, o
texto já estava escrito até o fólio 185v, mas não ornamentado. Hugo
terminou então de escrever o manuscrito e voltou ao início do
volume inteiro, inserindo iluminuras onde os escribas anteriores só
tinham deixado espaços. Um pequeno detalhe na estrutura do livro
nos conta que a ornamentação foi suprida subsequentemente, e que
foi um aprimoramento consciente. Lembre-se o alceamento acima
descrito, com quatro folhas inseridas no início antes do fólio 1 (foram
nomeadas fólios iii-vi por quem fez a numeração na Bodleiana). Eu
disse que nelas se escondia uma parte importante da história.
Quando Hugo assumiu a responsabilidade pelo projeto, talvez
houvesse uma modesta abertura de uma página antes do que é
hoje o fólio 1, que uma vez começava: “Unde orationum tuorum…”
(linha 13 na edição impressa moderna, de 1933). Em vez disso,
Hugo removeu essa folha e inseriu um novo começo com uma
elaboração sem precedente, acrescentando essas quatro folhas
extras com novas figuras de página inteira, todas pintadas por ele
mesmo, que enfatizavam o papel de Eustóquia e sua mãe como as
pessoas que tinham encomendado o comentário de Jerônimo.
Quando chegou ao pé do fólio vi verso, como agora se apresenta,
Hugo Pictor começou a se dar conta de que essas linhas alternadas
em vermelho e azul não iam se encaixar exatamente no espaço que
restava até “Unde orationum…”, que então já devia estar escrito. Ele
começou a comprimir as linhas, cada vez mais apertadas. Depois
desistiu, acrescentou uma linha extra de texto acima de “Unde
orationum…” no fólio 1r, e mesmo assim não houve um ajuste
perfeito, e ele teve de apagar e reescrever. Agora, pelo menos, a
abertura tem uma sequência fluente.
Fragmento de um hinário ornamentado na
Normandia por um artista muito similar a Hugo
Pictor, que se assina aqui “Hugo Levita”, talvez
(ou não) a mesma pessoa.
Não sabemos, na verdade, se Hugo foi ou não um monge. Nem
ele nem Roberto Benjamim se tratam por “irmão”, como seria de
esperar (a forma de tratamento deveria ter sido “frater Hugo”…). A
única razão para supor que tenham sido monges é, muito
simplesmente, porque ninguém imagina de fato que qualquer outra
pessoa estaria produzindo manuscritos no século XI, e, mais
exatamente, porque ambos se representam com tonsuras. É assim
também que faz o segundo mais antigo iluminador a deixar um
autorretrato identificado num manuscrito inglês, Guilherme de
Brailes, documentado no comércio de livros em Oxford, c. 1230-52,
que pintou a si mesmo num livro de horas e nas folhas de prefácio
de um saltério; e sabemos com certeza que De Brailes não era um
monge, porque ele tinha uma esposa, chamada Celina, e uma casa
própria em Catte Street. Um autorretrato com tonsura talvez não
seja mais do que um aceno a um status clerical e a uma
reivindicação de ser autor de livros sagrados. Não é
necessariamente mais autêntico, num sentido autobiográfico, do que
se Hugo Pictor se representasse com cabelos verdes ou Roberto
Benjamim com um halo, como de fato ele faz.
Voltemos ao autorretrato no Bodley 717. A aparente tautologia de
Hugo, “pictor & illuminator”, é curiosa, pois essas denominações de
atividades parecem ser sinônimas. A rigor, um iluminador era quem
decorava um manuscrito com ouro ou prata, que cintilam na luz (daí
o termo), mas não há ouro aqui, em nenhum segmento dos livros de
Exeter-Durham-Normandia. O termo aqui deve significar, com a
imprecisão que tem em outros contextos, uma pessoa que
ornamenta um manuscrito. “Pictor”, “pintor”, é supostamente uma
coisa um pouco diferente. Não pode se referir a um escriba. Ao que
sabemos sobre as carreiras de iluminadores medievais, eles eram
com frequência ao mesmo tempo criadores de pinturas murais ou de
outras pinturas ou obras de arte que lhes fossem requeridas. Hugo
pode com efeito ter sido um artífice profissional em áreas múltiplas,
além da produção de manuscritos. Foi talvez o idealizador do
projeto como um todo. No manuscrito de Durham, Roberto
Benjamim, pictor, é apresentado numa discussão com o patrono, e
não efetivamente pintando. Roberto e Hugo decerto foram os
diretores e coordenadores profissionais de seus respectivos
empreendimentos.
Na realidade, não é provável que Hugo fosse canhoto. Sua escrita
não apresenta nenhuma inclinação para trás, como é frequente
detectar na escrita de pessoas canhotas. É bem possível que tenha
se desenhado olhando sua imagem num espelho, e esquecido de
ajustar a imagem (ou sabia que estava invertida, e por isso a
chamou de “Imago”, “reflexo”). O mais provável é que esteja
mostrando a si mesmo no autorretrato com a pluma na mão
esquerda porque a figura não pretende primordialmente descrevê-lo
ao escrever ou pintar, e sim ao projetar a página. Ele a está
pautando com linhas-guia, usando para isso a mão direita. A pena
está na mão esquerda de reserva, para ser usada quando ele
estiver pronto.
Se Hugo Pictor foi um mestre artífice em Bayeux, isso pode
fornecer uma pista para o patrocínio daquela notável coleção de
livros para a Catedral de Exeter. Ao contrário de Roberto Benjamim,
Hugo não diz o nome de quem lhe pagava. A encomenda de uma
ornamentação desse tamanho e extensão, mais ricamente ilustrada
do que qualquer coisa adquirida até mesmo pelo príncipe-bispo
Guilherme de Saint-Calais, teria sido muito dispendiosa, sobretudo
se fosse parte de uma coleção de pelo menos nove volumes que
combinavam entre si. É razoável supor que esses manuscritos
tenham chegado a Exeter durante o período final do episcopado de
Osberno, que foi bispo ali de 1072 a 1103. A limitada avaliação
contemporânea do bispo Osberno não sugere que fosse um homem
extravagante, ou de uma notável generosidade pessoal para com
sua cátedra, ao contrário de Guilherme de Saint-Calais, e em seus
últimos anos Osberno padeceu de doença e de cegueira. Era, no
entanto, membro de uma família normanda nobre, primo em
segundo grau, por parte de mãe, de Guilherme, o Conquistador, e
foi o irmão mais moço de Guilherme FitzOsbern (m. 1071),
companheiro e íntimo do Conquistador na Batalha de Hastings, mais
tarde primeiro conde de Hereford e logo um dos homens mais ricos
da Inglaterra. Ainda mais importante, os dois irmãos eram primos de
Odo de Bayeux, filho da mãe do duque Guilherme. Odo lutou ao
lado de Guilherme FitzOsbern em Hastings, e foi bispo de Bayeux
de 1049 a 1097. Era ainda mais rico do que os FitzOsbern,
superado apenas pelo Conquistador. Pode ter sido a figura-chave na
encomenda dos manuscritos de Exeter e de Durham. Em 1088 ele
voltou da Inglaterra para Bayeux na companhia de Guilherme de
Saint-Calais, e a história conta que os dois, juntos, atestaram
escrituras para a cidade em 1089. Odo é mais famoso como o
provável patrocinador da Tapeçaria de Bayeux. Você já é capaz de
adivinhar o que vem depois. Hugo, pictor, desenhista, artífice, muito
possivelmente estava ligado à casa de Odo. As similaridades totais
entre as ilustrações narrativas de Hugo em Bodley 717 e a
Tapeçaria de Bayeux são intrigantes: figuras com olhos que
parecem contas brilhantes, nariz comprido e boca pequena em
cenários de arquitetura complexa, identificadas por legendas em
grandes letras capitulares em cores alternadas. Hugo foi um
iluminador — isso é aceito —, mas “pictor”? É concebível que ele e
Roberto Benjamim tenham participado da equipe do bispo que
projetou a Tapeçaria de Bayeux.
O manuscrito original começava modestamente; Hugo Pictor o
aprimorou acrescentando uma abertura luxuosa, mas lutou para
fazê-la juntar-se à página da direita, que já estava escrita, com
uma sensação de continuidade. Na capitular, o próprio Jerônimo é
mostrado à esquerda do escriba.
Uma pequena vantagem de se investigar uma história de quase
mil anos atrás é permitir que se especulem possibilidades sem
necessidade de ter evidências que estejam além de uma razoável
plausibilidade. O Agostinho de Durham e o Jerônimo de Exeter
parecem ter sido assumidos respectivamente por Roberto Benjamim
e Hugo Pictor quando já estavam preparados pela metade, por volta
de 1088. Pode ser que alguns dos livros que foram para Exeter e
aqueles que foram dados a Durham sejam remanescentes fortuitos
salvos de alguma campanha interrompida de produção de livros em
Bayeux. Se foi assim, pode ser que os manuscritos tenham sido
começados para Odo de Bayeux, talvez para sua própria catedral. O
abandono do trabalho pode estar conectado à exclusão de Odo do
favor real, em 1807, com a perda de sua fortuna. Naquele momento
Guilherme de Saint-Calais, com seu dinheiro, estava
convenientemente à mão, assim como alguém de Exeter. Este, é
possível, era membro da família FitzOsbern. A viúva do primeiro
conde e a maioria de seus filhos morreram cedo demais para terem
se envolvido na encomenda feita a Hugo Pictor, exceto sua filha
Emma, que ainda estava na Normandia em 1095, onde morreu,
tendo feito votos de se juntar à primeira Cruzada com Odo de
Bayeux. É concebível que alguém como Emma FitzOsbern tenha
patrocinado manuscritos luxuosos para a diocese de seu tio,
especialmente quando os frontispícios inseridos em Bodley 717,
únicos no gênero, enfatizam o patrocínio de duas mulheres, e
mostram cenas da Terra Santa.

Enfim, voltemos ao autorretrato de Hugo Pictor, e perguntemos se


ele nos diz alguma coisa (qualquer coisa) sobre a prática da feitura
de manuscritos no final do século XI. Hugo está sentado numa
cadeira que tem furos na extremidade de cada um de seus braços.
Frouxamente inserido em um desses furos há um tinteiro em forma
de chifre, bem longe do manuscrito, pois parece estar em perigosa
insegurança. Se os dois furos fossem usados, um escriba poderia
se munir de tintas de cores diferentes. A caneta aqui é claramente
uma pena (a “delícia de uma ave”, na adivinha de Exeter), muito
provavelmente de ganso, e suas rebarbas ainda estão presentes,
embora a maioria dos escribas modernos insista em que elas são
sempre aparadas antes de se escrever com uma pluma. A tinta
devia ser ferrogálica, que se prepara esmagando bolotas de
carvalho — rebentos esféricos como bolas de gude feitas de
madeira, que se produzem quando uma vespa parasita põe seus
ovos no galho de um carvalho — e misturando com copperas, isto é,
sulfato de ferro. A adivinha também alude a tinturas de uma árvore,
que poderia ser essa tinta preta oriunda de um carvalho, ou ser
vermelha, proveniente do pau-brasil ou da garança, que são ambos
vegetais (outros pigmentos vermelhos, como o vermelhão,
provinham de minerais). O manuscrito que Hugo está preparando
aparece separado, num atril inclinado, envolto num pano para
proteger o livro e talvez dar-lhe estabilidade. A inclinação é para que
a pena possa abordar a página num ângulo de 45 graus, para não
soltar a tinta de modo demasiado rápido e confuso, erro que a
maioria de nós comete na infância, quando, de brincadeira,
tentamos escrever com penas de pássaros que achamos na praia. A
faca é para pautar, fazendo linhas (o próprio Hugo as marcava com
muito peso nas páginas), para manter a página firme sem a gordura
natural que absorveria se fossem usados os dedos, e para aguçar a
pena várias vezes por dia. (Hoje em dia seria um canivete, é claro.)
Há duas outras figuras de escribas no início do manuscrito, ambas
mostrando Jerônimo no ato de escrever. A primeira é quase uma
gêmea do autorretrato de Hugo, um paralelismo que pode
representar uma consciente autoidentificação com o industrioso
santo, especialmente considerando que os patrocinadores, em
ambos os casos, eram mulheres. Os dois estão vestindo túnica azul
semelhante, com mangas soltas e capuz, sobre roupa de baixo
branca. Os dois têm nariz comprido e curvo, manchas cor-de-rosa
na face, rosto bem barbeado e tonsura nos cabelos verdes. A cor
verde pode ter a intenção de representar o cinza. A primeira figura
de Jerônimo mostra o autor sentado numa almofada, sobre um
banco. Lembremos que o manuscrito está escrito em uma só
coluna, com linhas muito compridas. Os escribas preferiam usar um
banco em vez de uma cadeira, pois é menos cansativo escorregar
ao longo dele de um lado para outro do que torcer o corpo inteiro
para cá e para lá ao escrever em toda a largura da página. O
segundo Jerônimo, agora mais moreno e com barba, menos
parecido com Hugo, é mostrado numa cadeira cujos braços têm
arremates na forma de cabeças de dragão. As bocas abertas dos
dragões são as aberturas nas quais se encaixam o tinteiro de chifre
e o atril móvel. Cadeiras com arremates em forma de cabeças de
dragões aparecem duas vezes na Tapeçaria de Bayeux.
Note-se, em todas as três figuras, como a pena é segurada.
Atualmente se ensina à maioria das pessoas segurar a caneta entre
o indicador e o médio, mantida ali pela pressão do polegar. A
movimentação é feita manipulando-a com o polegar e o indicador.
Nas imagens aqui, em quase todas as que mostram escribas em
manuscritos medievais, a pena é segurada pelo polegar apoiado no
lado de baixo dos dois primeiros dedos, mais como se fosse um
pincel de pintor numa pegada invertida. Os dois dedos menores
estão firmemente encolhidos. Para escrever, a mão inteira tem de se
mover pela página, e isso envolve todo o braço. Uma exclamação
comum aos escribas de manuscritos medievais, inclusive, ao
menos, um do final do século XI na Inglaterra, é “Tres digiti scribunt
totum corpusque laborat”, “Três dedos escrevem, mas o corpo
inteiro trabalha”. Contudo, quando se segura a pena do modo
mostrado na figura de Hugo, seria inegavelmente mais simples girá-
la enquanto se escreve, criando as elegantes linhas grossas ou
finas, e largas ou estreitas, que fazem a delícia da caligrafia
românica. Como nos dizem as adivinhas de Exeter, três dedos e
uma pena fazem todos, em paralelo, uma jornada, deixando
pegadas escuras, para que o manuscrito se torne uma ajuda para
grandes homens, sendo ele mesmo sagrado. Tanto Jerônimo como
Hugo Pictor teriam compartilhado essa experiência, estabelecendo
uma ponte sobre os setecentos anos que separam suas vidas, um
compondo e o outro importando esse texto, junto com os
conquistadores, para a Inglaterra normanda.
* O termo “jacobean” refere-se à época do reinado de Jaime I, da Inglaterra, de 1603 a
1625. (N. T.)
** A sequência do alceamento dos manuscritos de Hugo Pictor é: duas folhas de rosto
medievais + 4 folhas soltas (fólios iii-vi) + i-xxxii6, xxxiii8, xxxiv-xxxv8, xxxvi10 + 2 folhas de
rosto medievais. A maior parte dos cadernos termina com números em algarismos
romanos em suas últimas folhas. Mais tarde voltaremos àquelas quatro folhas preliminares
em separado (fólios iii-vi), pois nela se esconde uma parte importante da história.
*** Rolo de pergaminho todo dedicado à comunicação de um óbito e subsequente texto
dedicado à pessoa falecida. (N. T.)
7

O Saltério de Copenhague
terceiro quarto do século XII
Copenhague, Kongelige Bibliotek, MS Thott 143 2o

Venha, pode entrar — de verdade. Tenha a amabilidade de


apresentar-se primeiro na mesa do supervisor, embora seja provável
que eles nem liguem para isso, não aqui no andar de cima da
Biblioteca Real em Copenhague, pois os dinamarqueses são
invariavelmente afáveis e hospitaleiros. Puxe uma das cadeiras de
escritório, baixas e amarelas, com rodinhas, e olhe para isto com
cuidado. Falemos em voz baixa, pois aqui há outras pessoas
consultando manuscritos também. Diante de nós, aberto sobre a
mesa, apoiado em duas cunhas feitas de espuma, está o mais belo
e mais famoso manuscrito iluminado da Dinamarca. Sente-se a meu
lado e o contemplemos por um momento com admiração. Sem
tocar, só olhar. Seja qual for o modo como o definimos, é uma
incrível obra de arte da mais alta classe, numa condição quase
impecável. O manuscrito é um grande saltério em latim, um livro de
salmos do Antigo Testamento, datado do terceiro quarto do século
XII. A meu ver, esse foi o maior período de produção de livros na
Europa ocidental. Pense no termo “manuscrito iluminado”, e este é o
que a maioria das pessoas esperaria como exemplo disso. Em seu
absoluto refinamento e sua opulência ele supera de longe os
desenhos mais circunspectos de Hugo Pictor, setenta anos antes,
ou as primitivas embora sinceras figuras de Maius de Tábara. Se
manuscritos fossem acompanhados de música, a do Saltério de
Copenhague teria trompetes e um órgão de igreja. Cada página do
manuscrito bruxuleia com seu ouro polido e seus esplêndidos
ornamentos. A escrita é, caligraficamente, magnífica. O volume abre
com doze páginas de um primoroso calendário de dias santos
escrito numa multiplicidade de cores, e depois, antes do começo do
primeiro salmo, há uma sequência de dezesseis páginas com
imagens de página inteira que são mesmo de tirar o fôlego, e
constituem a glória desse manuscrito. Comecemos por elas. Essas
cenas imensas vão se seguindo, página após página de ilustrações,
como um livro de figuras. Essa parte do manuscrito não é
meramente um texto ornamentado, mas uma arte ininterrupta. As
figuras são do tamanho de ícones.
A primeira delas, no fólio 8r, representa a Anunciação. Gabriel e
Maria estão de frente um para o outro, olho no olho, entre dois arcos
de um claustro, ambos com a mão direita erguida para demonstrar
que estão conversando. Pendentes da mão esquerda há rolos em
que se lê o que Gabriel está dizendo: “AVE MARIA GR[ATI]A PLENA
D[OMI]N[U]S T[ECUM]”, e Maria responde: “FIAT MICHI S[E]C[UN]D[U]M
V[ER]BU[M] TUUM” (Lucas 1,28 e 38). Gabriel tem asas púrpura e
marrons, salpicadas de branco, e usa uma túnica azul-clara coberta
com um manto deslumbrante ornamentado de vermelho e verde que
ondula atrás dele, como se tivesse começado a falar enquanto ainda
se movimentava. Tem sobrancelhas cerradas e testa franzida. Está
na ponta dos pés descalços. Assim mesmo, Maria é mais alta do
que ele. Não está vestida de azul, como aparece mais tarde na arte
europeia, mas num manto de um profundo marrom apurpurado, com
lindos padrões do mais fino tecido adamascado, sobre um vestido
colorido que vai até o pescoço. A Pomba Sagrada voa acima de sua
cabeça. O fundo é coberto por um mar de ouro muito polido, no qual
se podem ver nossos próprios reflexos. Acima dos arcos estão os
românicos tetos de telhas de Nazaré, em todas as cores.
Permita-me virar a página para você. No outro lado da mesma
folha está a Visitação. Numa moldura que brilha como se fossem
faixas em esmalte do Meuse, Maria e sua prima Isabel se abraçam
num abraço apertado (Lucas 1,40), de pé entre duas árvores
ondulantes, simbolicamente carregadas de frutos vermelhos, pois as
duas mulheres estão grávidas. Suas roupas mais uma vez têm
cores e padrões maravilhosos, e o fundo também é de um ouro com
acabamento de espelho. As figuras no Saltério de Copenhague não
têm legendas que identifiquem as cenas, assim como ocorre em
muitos manuscritos. Esses temas teriam sido reconhecíveis para
qualquer proprietário medieval — ou talvez um livro de tal qualidade
só pudesse ter pertencido a alguém que tivesse um capelão
particular, que lhe contaria a história bíblica cada vez que abrissem
juntos o manuscrito. Quanto a essa figura, contaria que Maria
estava prestes a declamar o Magnificat, o salmo do Novo
Testamento incluído no final desse Saltério.
A Anunciação, com o arcanjo Gabriel
saudando a Virgem Maria, que responde
anuindo, de acordo com a palavra de Deus.
A Visitação, com a Virgem e santa Isabel se abraçando; e a
Anunciação aos pastores, mostrados como camponeses em estilo
semigrotesco.
A Natividade de Cristo, apresentada num
ambiente luxuoso com uma coroa suspensa
acima da cabeça do Menino, na manjedoura.
Diretamente oposta à Visitação, a cena muda para nove meses
depois. Um imenso anjo de aparência severa sai de uma nuvem
dourada acima de três pastores camponeses grotescos que cuidam
não de ovelhas, mas de cabras macilentas, acompanhados pelo que
parece ser um gato cinzento (ou talvez seja algum pequeno e
deformado cão). É bem chocante, para as sensibilidades modernas,
que os camponeses frequentemente sejam representados na arte
medieval como quase sub-humanos. Não é um idílio pastoral. O
anjo está lhes dizendo, até mesmo a eles, camponeses comuns,
“ECCE ANNUNCIO VOBIS GAUDIUM MAGNU[M]” (Lucas 2,10; note que
não traduzo essa passagem em latim, pois as palavras seriam
familiares a quase todo mundo na Europa do século XII, mesmo aos
semianalfabetos). Vire de novo a página e aí está a razão para o
magno gáudio que lhes é anunciado: o nascimento de Cristo. A
cena não tem nada que se pareça com as condições primitivas de
um estábulo rural. Estamos de volta a um cenário da classe mais
alta, talvez um palácio ou no mínimo uma grande igreja. A Virgem
Maria domina a cena, deitada com uma das mãos sob a cabeça
numa ampla cama em diagonal coberta com um precioso tecido
azul. Não tem um halo, mas, em vez dele, um travesseiro de
damasco carmesim soberbamente adornado. À direita está José,
com uma barba grisalha e usando um chapéu judaico vermelho.
Siga seus olhos e verá que eles contemplam uma caixa azul, como
que um sarcófago a flutuar no espaço dourado, onde está o Filho,
envolto num apertado pano púrpura, acarinhado pelo focinho de um
burro azul e pelo nariz molhado de um boi, dos quais se vê a
cabeça. A cena nos é revelada com a abertura de duas cortinas
vermelhas e brancas, uma enfiada na cabeceira por trás da cama de
Maria, a outra envolvendo as costas de José. Candeeiros pendem
da parede. O que parece ser uma coroa real, ornada com joias
coloridas, está suspensa acima da cabeça do Cristo Menino.
Os Magos, apresentados como três reis
galopando por uma floresta enquanto seguem
uma estrela que os leva ao Menino em Belém.
As quatro imagens seguintes são todas centradas em reis, bons e
maus, numa sequência excepcionalmente completa da narrativa dos
Reis Magos (Mateus 2,1-12). Estão nos fólios de 10r a 11v. Os três
reis, todos coroados, se encontram com Herodes no palácio real e
perguntam onde nasceu o profetizado rei dos judeus. Depois eles
partem a cavalo numa palaciana porém urgente cavalgada,
atravessando uma floresta em direção a Belém, seguindo a estrela.
Há cartões-postais com essa figura à venda na loja da biblioteca, no
andar térreo. (Muitas dessas cenas se prestariam a cartões de
Natal.) Na página adjacente, os reis chegam a seu destino e eles
indicam e cultuam o Santo Filho, que está no colo da mãe
segurando um cetro (já é rei também), sentado num trono. Depois,
Herodes, o rei perverso em seu palácio, ordena o massacre de
todos os bebês da Judeia, vividamente mostrado com todo o seu
horror, as árvores frutíferas ao fundo empretecendo e morrendo.
Aqui haveria histórias a ser contadas também, com exemplos a ser
seguidos ou evitados.
Seguem-se mais figuras. A Sagrada Família foge para o Egito,
conduzida por um anjo. O jovem que segue atrás deles, segundo a
lenda medieval, cresceu para se tornar o Bom Ladrão, crucificado
ao lado de Jesus. O Menino Jesus é apresentado no templo, mais
uma vez sob candeeiros suspensos e coroas ornadas com joias.
Agora adulto, Cristo é batizado por João Batista, de pé entre peixes
nas águas verdes do Jordão. No fólio 13r ele entra humildemente
em Jerusalém montado num burro, aclamado como rei pelos
homens da cidade. Há uma característica estranha nessa figura.
Acima dele um anjo voa para baixo segurando uma cruz de relicário
com um elaborado ornamento de joias. Esse detalhe, que até onde
sei é único na arte medieval, provavelmente é uma alusão à lenda
do imperador bizantino do século VII, Heráclio, que só conseguiu
devolver a Verdadeira Cruz a Jerusalém quando tirou sua coroa e
entrou na cidade sagrada como um penitente descalço, tão humilde
quanto Cristo em seu burro. Depois Cristo é traído em Getsêmani,
crucificado (o signo no alto da cruz o descreve como “rei dos
judeus”), ressuscitado e por fim entronizado em majestade como rei
do Céu. A realeza é um tema recorrente. Na Idade Média,
considerava-se que a encarnação e a vida de Cristo tinham sido
previstas nos Salmos, obra de Davi, que foi ele mesmo rei e
ancestral dinástico. Seu salmo continua, abrindo o fólio 17r, com
uma capitular “B” que preenche quase uma página inteira, uma
agitada floresta de galhos entrelaçados que brotam da boca de um
ogro, iluminada atrás por ouro trabalhado e polido. Inclui um cão que
fareja entre as pernas de um infeliz homem nu tentando atravessar
a vegetação. “Abençoado seja o homem”, começa o texto, “que não
segue o conselho do ímpio…” No Saltério de Copenhague há um
refinamento luxuoso que jamais vi em outro lugar. Na moldura cor-
de-rosa em torno da capitular de abertura há sete grandes estrelas
douradas. No centro de cada uma há (ou havia) uma joia de
verdade, que foi efetivamente colada ou aplicada ao se iluminar o
manuscrito. Isso é extraordinário. São de fato pequenas gemas,
talvez opalas. Se forem, devem ser procedentes da Boêmia ou da
Hungria ou mesmo da Etiópia. A tentação de tirá-las com a ponta da
unha é quase irresistível, e algumas dessas pedras já caíram.
Entrada de Cristo em Jerusalém,
humildemente montado num burrinho,
enquanto um anjo, que desce voando, traz
uma maravilhosa cruz de relicário ornada de
gemas.
Ao examinar manuscritos e me perguntar quem seriam seus
clientes, eu tinha uma regra formulada por mim mesmo, segundo a
qual se você não tiver certeza de que um livro está ligado à realeza,
então ele não está; porque quando manuscritos foram
encomendados para reis ou imperadores medievais, o luxo e as
exibições gratuitas de riqueza são avassaladores e inequívocos.
Houve uma maravilhosa exposição de manuscritos da realeza na
Biblioteca Britânica em 2011, The Genius of Illumination, e dela se
saía quase que moralmente ultrajado com a riqueza que fora
despendida com liberalidade por reis medievais em seus livros
particulares, quando metade da Europa passava fome. Há
manuscritos que constituem eles próprios uma categoria. A
sofisticação e o uso aparentemente ilimitado de ouro e mesmo de
joias no Saltério de Copenhague, assim como a recorrente
representação de imagens de reis ao longo das figuras (e até agora
só vimos pouco mais de uma dúzia de páginas), deixam poucas
dúvidas de que o manuscrito tenha sido feito para um cliente da
realeza.
Atualmente a família real dinamarquesa é admirada por viver
como gente comum, andando de bicicleta e fazendo compras em
supermercados. Na Idade Média, na verdade, deve ter sido muito
diferente. A diferença de estilo de vida entre os muito ricos e os
pobres, quase invisível agora na Escandinávia contemporânea,
deve ter sido extrema na Europa medieval. Sem dúvida era de
esperar que um homem do povo admitido à presença real fosse
esmagado pela exibição de riqueza e de majestade. Eram as
características que definiam a realeza. E não era mera questão de
cobiça pessoal. A preservação da autoridade civil em qualquer
sociedade inquieta e hierárquica dependia de uma constante
reiteração de status e recursos superiores. Eu experimentei um
pouco desse choque de opulência ao virar as páginas de outros
cinco saltérios românicos privados, todos os quais aparecerão no
decorrer deste capítulo. Imagine-os descendo a escadaria num baile
imperial, faiscando em seus diamantes, e permita-me apresentá-los
um por um. Eles são: 1) O Saltério Hunteriano na Biblioteca da
Universidade de Glasgow, cujo patrono será sugerido adiante; 2) o
Saltério da Rainha Ingeborga, esposa de Filipe Augusto, rei de
França de 1179 a 1223, no Musée Condé, em Chantilly; 3) o Saltério
de “Avranches”, possivelmente feito para o próprio rei Filipe, hoje no
Museu Paul Getty; 4) o Saltério da Rainha Branca, de Castela,
esposa de Luís VIII, rei de França de 1223 a 1226, na Bibliothèque
de l’Arsenal em Paris; e 5) o Saltério de Leiden, feito, talvez, para
Godofredo II Plantageneta, filho de Henrique II, rei da Inglaterra, e,
assim como o Arateia, hoje propriedade da biblioteca da
Universidade de Leiden. Os cinco são livros extraordinários. Como o
Saltério de Copenhague, cada um deles é incomparavelmente mais
rico e mais ostensivamente extravagante do que qualquer um dos
primeiros manuscritos monásticos que examinamos até agora neste
livro, e todos eles são adequados a reis. Eles com efeito apregoam
sua condição régia.
Abertura do próprio saltério, com papagaios
semi-heráldicos e leões, e um inserto
circundante com gemas de verdade coladas
no manuscrito.
O manuscrito que estamos examinando hoje ainda pertence à
biblioteca real. Na verdade, no entanto, Det Kongelige Bibliotek,
como é chamada em dinamarquês, é uma coleção nacional. Ela
desenvolveu-se do que fora uma biblioteca privada dos reis da
Dinamarca, fundada por Frederico III no século XVII. Tornou-se
pública em 1793. Um sólido prédio de tijolos foi construído para a
biblioteca em 1906 na ilha de Slotsholmen, ligada ao continente por
uma ponte, a cerca de um quilômetro e meio ao sul da cidade velha
no centro de Copenhague. Passou por uma transformação em 1999
com uma impressionante nova extensão, popularmente conhecida
como “o Diamante Negro” (den Sorte Diamant), ligado ao prédio
anterior por passarelas, e estendendo a biblioteca para o outro lado
da rua e até a beira da água na bacia do porto. A nova parte tem o
aspecto de dois enormes cubos inclinados, não muito retangulares,
de granito negro polido e vidro, projetados pelos arquitetos Schmidt,
Hammer & Lassen K/S. É um dos grandes edifícios da moderna
Escandinávia e foi assombrosamente caro, fato que todo
dinamarquês menciona quando você diz que esteve lá. Nessa
particular manhã eu caminhei, de onde estávamos hospedados no
centro de Copenhague, durante quinze minutos pela Niels Juels
Gade e pela Christians Brygge (que se refere a uma cervejaria, pois
uma fora fundada nas proximidades pelo rei Cristiano VI),
desviando-me de bicicletas e de rajadas do vento que vinha dos
canais, tocado por gotas de chuva. A porta principal da biblioteca
não fica na fachada de frente para os canais, como se poderia
esperar, mas dobrando a esquina, no lado mais afastado do
Diamante. Você entra, passa pela livraria (que também vende capas
de chuva — muito pragmáticos, esses dinamarqueses) para chegar
a um átrio do qual uma escada rolante muito comprida e de
inclinação suave o leva, numa lentidão inimaginável, ao primeiro
andar. Aqui uma mulher de aparência maternal no balcão de
informações me orienta para os elevadores atrás de mim, e subo a
um piso chamado “F Vest”. Você sai e dobra à esquerda por um
corredor com parede de vidro até uma porta à esquerda marcada
“Center for Manuskripter og Boghistorie”; ao entrar por ela você se
vê numa espécie de galeria em forma de mezanino, que é a sala de
leitura de livros raros, de onde se avista o enorme espaço aberto do
átrio da biblioteca muito abaixo. Lembra um pouco o convés
superior de um navio de cruzeiro, de onde se veem os outros
conveses (na verdade outras salas de leitura), cada um se
projetando em relação ao que lhe é superior, ao longo de vários
andares até embaixo. Os jardins suspensos da Babilônia
provavelmente se pareciam com isso também. Bem longe, embaixo,
está o saguão da entrada, atravessado por sua lenta escada rolante,
e no outro lado, à direita, há uma enorme parede de vidro com a
altura do prédio inteiro, dando para as águas claras e ondulantes do
porto, iluminando a biblioteca.
O “Diamante Negro”, nova extensão da
Biblioteca Real em Copenhague, visto do átrio
do outro lado do porto; a sala de leitura de
manuscritos fica atrás da varanda, em cima, à
direita.
Quando cheguei aqui havia um grupo heterogêneo de pessoas,
claramente da área rural, descendentes dos pastores do Saltério de
Copenhague, agrupados em torno do balcão de informações e
falando todos ao mesmo tempo. Não sei ao certo que complicado
pedido estavam fazendo, provavelmente algo a ver com história
familiar, mas o único atendente os estava ajudando com uma
solicitude e uma paciência que quase não consigo imaginar em
alguma outra biblioteca nacional. Enquanto eu esperava, sem saber
quanto tempo isso ia demorar, Erik Petersen, o principal especialista
da biblioteca em manuscritos medievais, apressou-se em me tirar
dali e cumprimentou-me com cortesia. Ele tem cabelos claros e
desgrenhados já ficando ralos, pequenos óculos e é, como muitos
dinamarqueses, uma das pessoas mais simpáticas e menos
presunçosas que se possa esperar conhecer. Usa camisa de
colarinho aberto, como fazem todos eles. Já vinha trazendo debaixo
de seu outro braço o que se revelou ser o próprio grande Saltério de
Copenhague, em sua caixa revestida de um pano verde-escuro. Erik
levou-me a uma fileira de mesas ao longo da beira do mezanino,
que dava para o vazio. Os espaços entre leitores estão separados
por retângulos verticais de vidro, imitando bibliocantos. As mesas
metálicas são de um bronze acinzentado — escandinavo,
gustaviano moderno — com inserções de grossos painéis de
plástico transparente, que proporcionam um apoio mais macio e
mais agradável do que a dureza do metal. Debaixo de alguns há
folhas com informações, não proibições como acontece na maior
parte das bibliotecas, e sim coisas que podem ser úteis, como
informar os leitores de que eles estão autorizados a tirar suas
próprias fotos dos manuscritos, o que eu fiz. Erik acendeu uma
pequena luminária sobre a mesa e dispôs cunhas de espuma para
nelas apoiar o manuscrito. Depositou a caixa diante de mim.
Observei que ainda não sabia o que ia decidir acerca das famosas
origens enigmáticas do manuscrito. Ele suspirou compadecido. “Não
sou historiador da arte”, disse, naquele tom baixo e
compassadamente monótono dos dinamarqueses quando falam
inglês, como se estivesse desferindo o desfecho de uma piada
impassível, “e historiadores da arte chegam rápido demais a
conclusões.” Vamos ter em mente essa advertência ao longo deste
capítulo.
A busca de quem foi o rei (ou a rainha) que encomendou o
Saltério de Copenhague vai nos fazer rondar várias famílias reais do
século XII. A maior parte da Europa se constituía então de
monarquias, e as opções são muito amplas. Comecemos, portanto,
com fatos estabelecidos, alguns dos quais foram descobertos pelo
próprio Erik Petersen. A mais antiga descrição inequívoca desse
manuscrito está no aparentemente improvável contexto das
Meditationes Exegeticae de Johann Heinrich von Seelen, em
Lübeck, 1737, que incluem uma digressão sobre o Saltério (em
latim), observando que ele pertencera antes a Rudolphus Capellus
(1635-84), professor de grego e de história em Hamburgo, no norte
da Alemanha. Sua biblioteca passou para seu filho, Dietericus
Matthias Capellus (1672-1720), e depois de sua morte o manuscrito
apareceu como o lote 566 na venda da Bibliotheca Capelliana em
Hamburgo, 1721, e foi comprado por Michael Richey (1678-1761),
que o emprestou a Von Seelen para que este o examinasse. Foi
visto pelo conhecido bibliógrafo Johann Albert Fabricius (1668-
1736), que transcreveu o calendário. O manuscrito foi adquirido de
Richey pelo voraz colecionador dinamarquês, conde Otto Thott
(1703-85), estadista e membro do conselho privado real
(Gehejmekonseillet). Sua vasta biblioteca, reunida durante toda a
sua vida, chegou a compreender 140 mil itens, inclusive 4 mil
manuscritos. A casa de Thotts em Kongens Nytorv, Copenhague, é
atualmente a embaixada francesa. Ele legou seus livros impressos
antigos e seus manuscritos à biblioteca real dinamarquesa. O
Saltério ainda preserva o nome de seu doador numa etiqueta de
identificação “Thott 143, 2o”, este último número referindo-se a seu
tamanho nas estantes da biblioteca, entre os volumes com formato
fólio.
Fora da caixa, é de fato um livro substancial. As medidas,
incluindo a encadernação, são de cerca de 30 por 21 centímetros,
com cerca de sete centímetros de espessura. A encadernação é em
marroquim vermelho-amarronzado-escuro do século XVIII decorado
com molduras concêntricas em ouro. A lombada tem
compartimentos dourados, sem inscrições. A qualidade do
ferramental é precária, e o cintilante ouro exagera em opulência. A
julgar pela história do livro, ele deve ter sido encadernado no norte
da Alemanha ou na Dinamarca. (Como a encadernação é muito
exagerada e de mau gosto, todo dinamarquês resmungará que deve
ser alemã.) As guardas coladas e as folhas de guarda são de um
vistoso papel vermelho brilhante pesadamente estampado em
dourado com padrões florais que incluem ocasionais querubins e
pássaros, todos com uma impressão profunda. Papel impresso em
ouro do século XVIII é hoje, por direito próprio, item de conhecedores
e colecionadores, mas sempre me faz lembrar os Christmas
crackers.* Na última página do manuscrito há inesperadas e
ásperas irregularidades, oriundas das dobras internas de uma
encadernação anterior, o que mostra claramente que o livro fora
antes coberto com tecido e que houve, alguma vez, duas fitas de
amarrar junto ao topo e ao pé dos cortes externos. Uma das folhas
de guarda tem uma estampa circular, “BIBLIOTHECA REGIA
HAFNIENSIS”, impressa em torno de uma coroa.
O texto compreende um saltério completo, precedido de um
calendário (já mencionado) e sucedido de cânticos bíblicos padrão
com uma litania que envolve os nomes de santos e várias orações
breves. Os salmos em latim, assim como os Livros de Evangelhos,
remontam aos tempos antigos do cristianismo, e até antes disso
(uma vez que os salmos em hebraico fazem parte das Escrituras
judaicas). Monges e clérigos usavam os salmos em latim em suas
devoções diárias. Em momento posterior, os saltérios foram mais ou
menos os primeiros livros encomendados e possuídos por
indivíduos privados, fora das comunidades monásticas. Os inícios
da literatura laica são notoriamente difíceis de documentar. Há
alguns saltérios associados aos imperadores carolíngios e a suas
cortes, como o famoso Saltério Dagulf, do final do século VIII,
encomendado por Carlos Magno para presentear Adriano I, papa de
772 a 795, e hoje em Viena, mas a maioria destes provavelmente se
destinavam a ser dádivas feudais a casas religiosas ou para uso de
capelães no palácio. Na verdade, não foi antes de meados do
século XII que os saltérios começaram a ser possuídos e mantidos
na privacidade de membros individuais do laicato. Muitos dos
primeiros exemplos parecem ser de origem inglesa, uma esquisitice
que nunca foi investigada ou explicada a contento. Entre outras
finalidades, as pessoas usavam os saltérios para aprender a ler.
Esse era possivelmente o costume nos mosteiros também, onde
com frequência os saltérios eram reservados para uso dos noviços.
O Saltério real em Leiden do final do século XII, acima citado, e que
foi feito na Inglaterra, tem uma anotação medieval embaixo do
primeiro salmo afirmando que ele foi usado por são Luís, da França,
quando era criança e estava aprendendo a ler: “Cist Psaultiers fuit
mon seigneur saint Looys qui fu Roys de France, Ou quel il aprist en
s’enfance”. Luís nasceu em 1214, e então isso foi por volta de 1220.
Pode ser bem significativo que o Saltério de Copenhague apresente
uma aparente evidência de que também foi preparado desde o início
para ensinar alguém a ler. Entre os cânticos e a litania ele tem um
alfabeto completo, escrito de modo claro e espaçoso pelo principal
escriba do livro, e que termina com uma fileira das básicas marcas
padrão de abreviação e pontuação usadas na época medieval, que
todo leitor de então teria de aprender. Isso é seguido, como também
é em praticamente todas as cartilhas e quadros de alfabeto para
crianças até o século XIX, do Pai-Nosso e do Credo. Ensinavam-se
as letras às crianças e aos novos leitores, e depois era costume eles
começarem a praticar com o Pater Noster como seu primeiro texto
de leitura.
Até onde é possível deduzir alguma coisa da qualidade da
decoração e de algumas linhas incomuns, é provável, então, que o
manuscrito tivesse como finalidade ser usado por uma criança da
realeza ou por alguma pessoa jovem de status elevado que
estivesse aprendendo a ler. Mas nem mesmo isso reduz tanto o
campo das hipóteses. Um rápido levantamento dos reis na Europa
setentrional por volta de 1170 com filhos em idade apropriada a
receber as primeiras lições de leitura incluiriam Henrique II, rei da
Inglaterra de 1154 a 1189, com filhos nascidos em 1157, 1158 e
1166; Frederico Barbarossa, rei da Alemanha de 1152 a 1190 (e
imperador a partir de 1155), com filhos nascidos em 1164 e 1165;
Luís VII, rei de França de 1137 a 1180, com um filho nascido em
1165; Valdemar, rei da Dinamarca de 1157 a 1182, com um filho
nascido em c. 1183; e até mesmo Magno, rei da Noruega de 1161 a
1184, que nasceu em 1156 e poderia ainda estar recebendo
instrução.
O manuscrito tem três acréscimos que sugerem já ter pertencido à
realeza na Escandinávia numa data anterior. O primeiro é um
obituário que foi acrescentado ao calendário na data de 27 de maio:
“Anno d[omi]ni. Mo cco lxxiio. Obijt illustris dux Jucie Eric[us] filius
Abel regis”. Está no fólio 4r. Refere-se à morte, em 1272, de Erik,
duque da Jutlândia, filho mais moço de Abel, rei da Dinamarca de
1250 a 1252. Tinha sido feito duque de Eslésvico, sul da Jutlândia,
em 1260. Na época, essas comemorações de óbitos em calendários
de manuscritos eram comumente acrescentadas por membros da
família do morto. Nos aniversários da morte a cada ano elas eram
um lembrete para refletir sobre os falecidos e rezar por suas almas.
A mãe do duque Erik, rainha do rei Abel, foi Mechtilde — ou Mette,
em dinamarquês — de Holstein, que morreu em 1288. Supõe-se
que o manuscrito tenha pertencido a ela, ou pelo menos a algum
membro mais próximo de sua família. O motivo para essa
plausibilidade aparece na segunda edição. É uma longa prece
dedicatória acrescentada no fólio 16v do manuscrito. Foi
evidentemente escrita quando o saltério foi confiado a uma
comunidade de freiras no final do século XIII, e quando a doadora
recomenda que o livro seja usado, empregando formas de
tratamento femininas, ela pede que sejam feitas orações pelas
almas de seus parentes, pela alma do duque de Birger (“& p[ro]
anima Byrgeri ducis”), e pelas almas de seus irmãos e irmãs e todos
os seus outros parentes. A conexão é que, após a morte do rei Abel,
Mechtilde de Holstein se casou com Birger Jarl (c. 1200-66), regente
da Suécia e tido como o fundador de Estocolmo. (“Jarl” é um título
de nobreza, como “earl” [conde] em inglês; Birger Jarlsgatan é uma
das ruas principais de Estocolmo.) O fato de Birger já estar morto
quando a oração foi escrita e de Mechtilde não ter sido nela incluída
data essa inscrição entre 1266 e 1288, e pode até ter sido escrita
pela própria rainha depois de enviuvar. Quando, posteriormente,
Mechtilde morreu, foi sepultada com seu segundo marido na abadia
real em Varnhem, no sul da Suécia, sob uma pedra tumular que
mostra a ela, Birger Jarl e seu querido filho, o duque Erik,
mencionado em seu saltério. Quando o túmulo foi aberto, em 2002,
de fato encontraram três esqueletos.

Data comemorativa acrescentada ao calendário, para a morte do


duque Erik, filho do rei Abel, em 27 de maio de 1272.

A terceira e mais instigante inscrição foi acrescentada no Saltério


de Copenhague várias gerações antes. Ocorre no topo da primeira
folha, o fólio 1r, que sem ela estaria em branco. É chamada aqui de
“Reliquiarum enumeratio”, um “inventário de relíquias”. A inscrição,
um pouco posterior ao manuscrito, deve ter acontecido, com boa
folga, dentro do século XII. Listas de relíquias medievais não são
especialmente raras, e com frequência eram feitas em páginas em
branco de todo livro que fosse considerado precioso por seus
proprietários. Uma lista semelhante foi inserida no Livro dos
Evangelhos de Santo Agostinho, descrevendo relíquias guardadas
numa caixa na Abadia da Cantuária, onde era guardado o próprio
manuscrito, como vimos no capítulo 1 (na p. 38). Se
conseguíssemos identificar que coleção de relíquias era essa
mencionada no fólio 1r, saberíamos com efeito quem era o dono do
Saltério de Copenhague no final do século XII.
Inscrição de consagração, do século XIII, que
usa formas femininas e pede orações pelas
almas de membros falecidos da família do
doador, inclusive o duque Birger.
O incomum aqui é que a lista é claramente pessoal. Assim ela
começa: “Has reliquias possidet…”, e então, para nossa imensa
frustração, quase uma linha inteira foi raspada com capricho. No
entanto, a primeira palavra apagada, “dns”, “dominus”, é ainda
bastante legível. O “senhor” fulano — nome e título apagados,
evidentemente um indivíduo — “possui estas relíquias…”. Em geral,
as relíquias mais importantes eram caras e pertenciam a igrejas,
mas era comum que monarcas e pessoas da alta nobreza tivessem
coleções privadas. (No capítulo 9, adiante, veremos relíquias que
pertenceram a Luís IX e Filipe VI, da França.) Os tesouros sagrados
do misterioso proprietário são depois listados: madeira da Vera
Cruz, ou Cruz Verdadeira de Jesus, madeixas de cabelos da Virgem
Maria, relíquias (sem dúvida, ossos) dos santos Jaime, o Apóstolo,
Bartolomeu, Mateus, Laurêncio, Clemente e Hipólito, pedaços das
entranhas de são Remígio, cachos do cabelo de santa Maria
Madalena, relíquias de são Ambrósio, dos reis Magos, dos Quatro
Santos Coroados, um dente de são Bertino, e relíquias de santa
Catarina, Ágata, as 11 mil Virgens, Nicolau, Godard, os Santos
Inocentes, e Maurício e seus companheiros, um pedaço do cajado
de são Malaquias, e uma relíquia de são Tomás, o Arcebispo. Esta
última, um pedaço do corpo de Tomás Becket, provê uma data
absoluta, uma vez que não poderia ter sido listada antes da morte
desse mártir na Cantuária, em dezembro de 1170. São Tomás foi
canonizado em 1173, e o comércio com suas relíquias foi rápido e
internacional.
Lista de coleção privada de relíquias de santos, com o nome de
seu dono original cuidadosamente raspado.

Num artigo que revela uma detecção histórica exemplar, publicado


em 2012, Christopher Norton, da Universidade de York, identifica as
prováveis fontes de quase todas as relíquias listadas no Saltério de
Copenhague. Ele observa que o único fragmento da Cruz
Verdadeira alternativamente conhecido na Escandinávia tinha sido
presenteado em 1110 pelo rei Balduíno de Jerusalém a Sigurd, rei
da Noruega de 1103 a 1130, e que pelo menos em 1153 era
guardado na Catedral de Nidaros (hoje chamada Trondheim), na
Noruega. Ele registra também que relíquias de Hipólito, santo de
relativa obscuridade, constantes no oitavo item aqui listado, foram
provavelmente trazidas para a Escandinávia de Roma, em 1161, e
também que seu único santuário foi em Nidaros. Ele documenta
como quase cada uma das relíquias listadas poderia ter sido
recolhida ao longo dos lugares lógicos de parada nas jornadas para
Jerusalém pelo rei cruzado da Noruega Sigurd, em 1107-10, e para
Roma, por qualquer peregrino norueguês, sobretudo Eystein,
arcebispo de Nidaros, que fez a viagem em 1160-1, e sugere que
esse é um inventário abrangente das relíquias que foram guardadas
na Catedral de Nidaros por Magno V, rei da Noruega de 1161 a
1184, neto de Sigurd, o Cruzado. A conclusão do professor Norton é
que o Saltério possivelmente pertenceu ao próprio rei Magno, e que
é muito provável que tenha sido Magno quem o encomendou. Existe
nisso uma lógica atraente, que alicerça na Escandinávia o patrocínio
do Saltério. Norton sugere que a lista de relíquias no fólio 1r foi
originalmente “Has reliquias possidetdominus magnus rex norvegiae
in ecclesia nidrosiensi”, ou uma variante similar dessas palavras.
E eu, é claro, instalado em meu ninho de águia, de onde se
avistavam os andares mais baixos da biblioteca em Copenhague,
olhava e olhava para aquela linha apagada, usando uma lupa e
virando o manuscrito em todas as direções contra a luz. Muita coisa
depende desse nome que está faltando. Os colegas que estavam
estudando ali comigo no Center for Manuskripter og Boghistorie, se
pudessem ver o que eu estava fazendo, iam considerá-lo excêntrico
ao extremo, perscrutando por mais de uma hora uma palavra
invisível na única página sem iluminuras em um dos livros mais
lindamente ilustrados no mundo. Eu de fato gosto dessas inscrições
quase ilegíveis, mais do que de me atracar com crípticas palavras
cruzadas, em que às vezes se pode chegar a uma solução
experimentando opções, letra por letra, até enfim formar a palavra
correta. Num manuscrito, como nas palavras cruzadas, existe (ou
existiu uma vez) uma resposta, se alguém conseguir encontrá-la.
Embora as palavras que faltem na abertura do Saltério tenham sido
raspadas por completo, algumas das extremidades superiores de
hastes ascendentes das letras ainda são, no limite, visíveis. Depois
de “dominus” há um espaço de duas ou talvez três letras que não
tinham hastes ascendentes. Depois havia uma letra alta que se
elevava acima da linha e dava uma leve saliência à direita,
exatamente como a ponta do “l” em “lignum”, no fim da primeira
linha, ou do início de “laurencio”, na linha 3. Adjacente a ela houvera
uma letra alta que terminava com uma saliência dupla, ambas para
trás, curvando-se na direção do possível “l” e dividindo-se para a
frente também, como no topo do “d” em “de criminibus”, na linha 2.
Depois havia várias letras baixas. Qualquer que fosse o nome,
decerto não era “magnus rex”, que não tem nenhuma haste
ascendente. O nome parece ter a sequência letra-letra-letra-“ld”.
Subitamente, eu descobri. Assim como acontece quando enfim se
resolve uma lacuna em palavras cruzadas, pergunta-se depois por
que aquilo demorou tanto. A primeira das palavras faltantes com
certeza era “uualdemarus”, Valdemar, supostamente Valdemar, o
Grande, rei da Dinamarca de 1157 a 1182 e duque da Jutlândia. Foi
avô do rei Abel, cuja esposa, Mechtilde de Holstein, possuíra o
manuscrito no século XIII. As relíquias com certeza eram dele, assim
como, portanto, o Saltério de Copenhague.

A essa altura — já era quase uma hora da tarde — eu tinha


combinado me encontrar com minha mulher lá embaixo, no ótimo
restaurante à beira-mar da biblioteca, chamado Søren K. Pedimos o
que o garçom nos recomendou como sendo o prato mais rápido e
mais barato, pois não raro o serviço nos restaurantes
dinamarqueses é espantosamente lento (como as escadas rolantes)
e eles são caros de fazer chorar. Pedimos aspargos brancos com
manteiga de urtiga e salmão defumado da casa, Hvide asparges,
brœndenœldesmor & hjemmeroget laks, e um copo de Carlsberg.
Será que alguma outra biblioteca de livros raros no mundo seria
capaz de servir uma refeição como essa? Depois ficamos sentados
ao sol, pois o tempo havia clareado, e era uma oportunidade para
juntar e reler minhas fotocópias de estudos anteriores sobre os
manuscritos, feitos por minha velha amiga Patricia Stimemann, de
Paris.
Então ainda com o nome de Patricia Danz, ela escreveu sua tese
original sobre o Saltério de Copenhague (Universidade Columbia,
1976) quando o manuscrito quase não era conhecido. Ela retornou a
ele em artigos que publicou em 1998, 1999 e 2004. Sua
preocupação principal sempre fora em relação aos vários
iluminadores do manuscrito, e é claro que ela especulava quanto à
sua origem, e foi ela quem chamou a atenção para a significância do
alfabeto para crianças. Sua hipótese, fundada na data da qual
trataremos mais tarde, é que o Saltério foi feito por ocasião de dois
eventos simultâneos que ocorreram na Dinamarca em 1170. Eles
foram: o traslado das relíquias do santo rei recém-canonizado
Canuto Lavard, pai do rei Valdemar, e a coroação no mesmo dia do
rei-menino, filho de Valdemar, também chamado Canuto, que tinha
então sete anos, exatamente a idade em que se espera que um
príncipe cristão comece a aprender a ler. Seu avô, o santo Canuto
Lavard, primeiro duque de Eslésvico, tinha sido assassinado em
1131 na floresta de Haraldsted, próximo a Ringsted, cerca de 65
quilômetros a sudoeste do que hoje é Copenhague. São Canuto foi
canonizado em 1169 e seu corpo foi formalmente trasladado para a
Igreja do Priorado de Ringsted em 25 de junho de 1170, numa
cerimônia dupla com grande caráter político na qual o rei Valdemar
ratificou sua reivindicação dinástica ao trono, inclusive coroando seu
próprio filho e suposto herdeiro, o jovem Canuto, herdeiro do nome
do novo santo. Patricia acredita que foi esse evento que suscitou a
feitura do Saltério. O destinatário visado era o príncipe Canuto, de
seis anos, e o Saltério com seu alfabeto deveria ser sua iniciação
tanto na realeza como no letramento.
Reli as anotações que tinha feito antes do almoço sobre a linha
apagada na lista de relíquias. Christopher Norton tinha sugerido que
as palavras poderiam ter como conclusão a locação em que as
relíquias eram guardadas, por exemplo, numa reconstrução
hipotética: “… in ecclesia nidrosiensi”. Eu tinha quase certeza de
poder estabelecer que a frase que fora apagada terminava com as
letras “… sta”, ainda vagamente visíveis sob determinado ângulo,
talvez com uma marca de abreviação. A letra antes do aparente “s”
parecia ter uma haste descendendo abaixo da linha. Pensara no
início que poderia ter sido algo como “in cista”, “numa caixa”,
embora não houvesse motivo para apagar tais palavras.
Reconsiderando, concluí que seria mais lógico ter sido o nome de
um lugar. Cerca de oito letras antes do fim há a haste ascendente
de uma letra alta que poderia ser um “d”, e a palavra “apud” é uma
candidata. As últimas palavras poderiam, portanto, ter sido “apud
ringsta[dium]”, “em Ringsted”, por ser o nome em latim e
plausivelmente consistente com o que está visível. A lista não inclui
nenhuma relíquia de são Canuto Lavard, já que seu santuário em
separado fica, de qualquer maneira, em Ringsted. Esse, então, seria
o Saltério do Príncipe Coroado, feito para sua coroação, usado
depois para registrar a coleção de relíquias de seu pai no priorado
real de Ringsted, onde o rei Valdemar foi mais tarde sepultado, em
1182. Com a morte de seu pai, Canuto herdou o trono, agora em
seu nome, como Canuto VI, e governou até sua morte, em 1202,
quando também foi sepultado em Ringsted. Seu brasão de armas, o
mais antigo que se conhece na Dinamarca, mostra três leões
correndo: leões heraldicamente muito semelhantes (pode ser
coincidência) aos que correm no lado direito da grande capitular do
Beato, na abertura do Saltério. No correspondente lado esquerdo há
três papagaios. Não conhecemos os emblemas do rei Valdemar,
mas pode-se imaginar um saltério real feito em conjunto para dois
reis dinamarqueses, o pai e seu — agora também coroado — jovem
filho.
Isso não necessariamente invalida a tese do professor Norton de
que pelo menos algumas dessas relíquias pertenceram ao rei
Magno da Noruega e ao tesouro da catedral em Nidaros. Um
aspecto maravilhoso dessas relíquias é serem divisíveis até o
infinito, até as mais ínfimas migalhas, e é fácil imaginá-las sendo
trocadas entre reis escandinavos. Depois de 1180 o próprio Magno
foi levado da Noruega e passou dois anos como hóspede do rei
Valdemar, na Dinamarca. Recompensas e presentes eram a seiva
que alimentava a diplomacia medieval.

De volta ao andar lá em cima e à sala de leitura de den Sorte


Diamant, temos de tornar a abrir o manuscrito. Há mais coisas a lhe
perguntar. Ele começa com um calendário que lista os dias dos
santos de cada mês, de janeiro a dezembro. Essa é uma
característica tão padrão de textos devocionais medievais mais
tardios, como missais e livros de horas (e, de fato, de muitos livros
de oração modernos), que é lícito perguntar por que um calendário
deveria ser, em absoluto, um componente de qualquer saltério. A
leitura dos salmos em nada é afetada pelos dias dos santos. O ano
litúrgico, se é que isso é relevante, começa no primeiro domingo do
Advento, e não em janeiro. Os salmos latinos são conhecidos do
século VI em diante: nos primeiros quatrocentos anos de sua
existência nenhum deles tem um calendário. No capítulo 4
deparamos com o “Calendário de 354”, um antigo almanaque cristão
adquirido pela biblioteca da corte carolíngia. Parece que muitos
textos de lá se disseminaram pela Inglaterra no século X. O norte da
Inglaterra, em particular, preservou certo interesse nos cômputos
eclesiásticos** iniciados por Beda. Os saltérios sobreviventes mais
antigos que têm calendários anexados são ingleses e datam de c.
1000. Os calendários talvez fossem especialmente úteis a
proprietários laicos, já que os monges, de qualquer maneira, teriam
conhecimento dos dias festivos pela missa diária, mas os
proprietários seculares podiam se beneficiar de uma orientação e de
um lugar para registrar óbitos e aniversários na família. No século
XI, sobretudo na Inglaterra, os calendários se tornaram
componentes normais dos saltérios.
O calendário do Saltério de Copenhague deixa transparecer o
inequívoco sabor de sua ancestralidade inglesa. É escrito em tinta
preta, mas as datas festivas significativas são destacadas
vividamente em vermelho, azul ou verde. Embora não seja ilustrado,
seu aspecto é festivo em todos os sentidos. Esses dias especiais,
na ordem de sua ocorrência, incluem os dos santos Cuteberto e
Vilfrido, em verde; João de Beverley, em azul; Dunstan, em
vermelho; Agostinho, apóstolo dos ingleses, em azul (e no mesmo
dia, 26 de maio, Beda, em preto); Botolfo, em vermelho, Albano e
Osvaldo em verde; e Edmundo, rei e mártir, em azul. Os santos
Botolfo de Lincolnshire e Edmundo de Suffolk — que, por ironia,
foram martirizados pelos dinamarqueses — têm ambos uma vaga
conexão com a Anglia Oriental, mas Cuteberto, Vilfrido de York,
João de Beverley (em Yorkshire), Beda e Osvaldo, rei da
Nortúmbria, todos apontam decididamente para o norte da
Inglaterra, ou até mesmo, em especial, para o nordeste. Os santos
Cuteberto, Vilfrido e Osvaldo também são invocados na litania que
segue o texto do Saltério.
O mais impactante é o que não está lá. Nenhuma dessas
festividades inglesas tem uma vigília ou uma oitava, as celebrações
complementares um dia antes e uma semana depois, como têm,
nos mosteiros, as principais festividades. Em outras palavras,
podem ser dias importantes, mas não se lhes atribuem os graus de
importância mais elevados. Os três prováveis centros de iluminação
de livros luxuosos no norte da Inglaterra no século XII eram Lincoln,
York e Durham. Não há nada aqui que seja peculiar a nenhum
desses lugares ou que necessariamente exclua quaisquer outros. A
mais óbvia omissão do calendário é a de são Tomás Becket,
martirizado em 1170 e canonizado em fevereiro de 1173. Seu dia
festivo, em 29 de dezembro, foi de imediato adotado universalmente
por toda a Europa. Seu nome também não aparece na litania. Essa
ausência não constitui uma prova absoluta de que o livro foi feito em
data anterior, pois os escribas medievais, como todos nós, às vezes
deixam passar coisas óbvias por desatenção, ou mesmo por
intencional obstinação. No entanto, uma datação anterior a 1173
seria totalmente consistente com uma produção feita a tempo para
as comemorações reais no Priorado de Ringsted, seis meses antes
da morte de Becket.
O calendário do Saltério de Copenhague, mostrando várias
festividades inglesas, como a de santo Osvaldo, e o alto nível de
veneração atribuído a santo Agostinho, patrono da Ordem
Agostiniana.
A segunda camada característica do calendário é agostiniana. Ela
é ainda mais inequívoca do que sua anglicidade, pois lá está o
próprio santo Agostinho de Hipona, 28 de agosto, em vermelho, com
a oitava, em 4 de setembro, em azul; e lá está o traslado, 11 de
outubro, em azul, a data tradicional do ressepultamento do santo em
Pavia, no século VIII. A ordem dos cônegos agostinianos foi fundada
muito depois da morte de Agostinho em 430, mas segue as regras
de vida estabelecidas por seu santo patrono e tornou-se
especialmente proeminente no século XII.
No capítulo 6 vimos como pode ser difícil distinguir as artes da
Inglaterra e da Normandia imediatamente após a Conquista. Cem
anos depois, os reis e os nobres ainda eram normandos, e muitos
possuíam propriedades na França, mas a escrita e a iluminação de
manuscritos começavam a divergir. É quase certo que a escrita do
Saltério de Copenhague tenha sido obra de um escriba inglês, com
o traço característico da curva no topo do “a”, o “g” com sua curva
inferior não fechada por inteiro e o marcante “e” comercial [&], muito
semelhante ao da escrita, um pouco anterior, das Bíblias de Bury e
de Lambeth. Considerando apenas o estilo, o Saltério de
Copenhague é quase universalmente atribuído à Inglaterra. Foi
premiado com o galardão de ser escolhido para o frontispício em
cores no corpus padrão da iluminação inglesa no século XII, o
Romanesque Manuscripts, 1066-1190, de C. M. Kauffmann,
publicado em 1975. Há muitas razões pelas quais um saltério
luxuoso destinado à família real dinamarquesa poderia ter sido feito
na Inglaterra. As práticas de iluminação de livros nas ilhas britânicas
eram altamente sofisticadas e de longa data, enquanto as da
Escandinávia ainda careciam de maior experiência. O norte da
Inglaterra, sobretudo o nordeste, estava incluído no legado cultural
das ocupações vikings, e provavelmente ainda havia por lá, mesmo
então, alguns residentes que falavam a língua dinamarquesa. Um
Canuto primevo — o rei Canuto II da Dinamarca — fora o rei de toda
a Inglaterra pouco mais de um século antes. Ele tinha enviado
padres ingleses para que organizassem as igrejas escandinavas. A
liturgia da Dinamarca era condicionada aos costumes ingleses. (As
igrejas suecas, em contraste, se miravam na Alemanha.) Havia
muitas conexões em andamento. A vida de são Canuto IV foi escrita
em dinamarquês por um monge inglês, Ælnoth da Cantuária. A lista
de relíquias no Saltério de Copenhague também é evidência dessa
proximidade, pois inclui itens que devem ter vindo da Inglaterra. Por
exemplo, os pedaços de entranhas de são Remígio são
provavelmente de Remígio de Lincoln, cujas relíquias se
dispersaram quando seu túmulo foi aberto na década de 1120. Entre
as raridades da lista de relíquias há pedaços do cabelo da Virgem,
dos quais os espécimes mais renomados estavam em Lincoln e na
Cantuária. As relíquias da Abadia de Santo Agostinho, citadas no
capítulo 1, incluíam espécimes da Cruz Verdadeira, como estas aqui
também. O osso de Becket, é óbvio, veio da Cantuária. Não seria
um fato inesperado um saltério ter sido enviado da Inglaterra, talvez
acompanhado de uma doação de relíquias. Até poderia ter sido um
presente real do rei Henrique II ou de sua família para seus primos
distantes da Dinamarca. A filha de Henrique II tinha se casado com
Henrique de Leão, duque da Saxônia; a filha do próprio Henrique de
Leão, Gertrudes, foi prometida ainda menina em casamento ao
príncipe Canuto da Dinamarca, e eles se casaram em 1177. Tornou-
se rainha da Dinamarca em 1182 (possivelmente nela se inspira a
rainha Gertrudes em Hamlet, de Shakespeare). Todas essas
famílias se conheciam entre si.
Os outros cinco saltérios luxuosos muito antigos de propriedade
privada, listados na p. 318, tinham todos algum tipo de parentesco
uns com os outros, assim como seus patronos eram inter-
relacionados de um modo não claramente definível. Deles, o mais
próximo ao manuscrito de Copenhague é, de longe, o Saltério
Hunteriano, em Glasgow. Seu calendário também é agostiniano,
omite são Tomás Becket e parece apontar para a região geral de
York, ou talvez Lincolnshire. Tem treze páginas inteiras com
miniaturas de grande esplendor. Um de seus artistas trabalhou
também no Saltério de Copenhague, como veremos dentro em
breve, e ambos os manuscritos podem até mesmo ter sido copiados
pelo mesmo escriba. Os dois saltérios não são exatamente gêmeos,
pois há diferenças tanto no texto como na iconografia, mas são às
vezes referidos como manuscritos “irmãos”. Se o Saltério de
Copenhague é real, assim também o é o de Glasgow. Não se sabe,
contudo, quem teria sido seu dono. Está claro que foi usado na
Europa continental, não na Inglaterra, e é registrado explicitamente
pela primeira vez (em 1769) na França.
O seguinte é o Saltério de Ingeborga, em Chantilly. Foi feito na
França para Ingeborga da Dinamarca (1175-1236), filha do rei
Valdemar e irmã mais moça de Canuto. Quando criança, deve ter
conhecido o Saltério de Copenhague. Foi enviada para se casar
com Filipe Augusto, rei de França, em 1195 (ele era sobrinho-neto
do rei Estêvão, da Inglaterra), um matrimônio difícil e solitário, que
no fim fracassou. O estreitamente relacionado Saltério de
“Avranches”, cujo nome se deve ao lugar de sua redescoberta em
1986 (hoje está no Museu Getty), é do mesmo artista do Saltério da
Rainha Ingeborga e pode ter sido encomendado para seu marido,
que era portanto o cunhado do rei Canuto da Dinamarca. O Saltério
de Leiden também é inglês e contém um calendário com uma
aparente ênfase no norte e o acréscimo de uma nota sobre a morte
de Henrique II, em 7 de julho de 1189. Pode ter pertencido a seu
filho ilegítimo, Godofredo Plantageneta, arcebispo de York, meio-
irmão de Matilda, que era esposa de Henrique de Leão, sogro de
Canuto. Pertenceu depois à sua sobrinha, Branca de Castela,
mulher de Luís VIII, que era filho do marido de Ingeborga. A rainha
Branca também possuía, e possivelmente foi quem encomendou, o
grande saltério real que está na Bibliothèque de l’Arsenal, em Paris.
Branca era neta de Henrique II da Inglaterra. Os tênues laços de
família em torno de uma órbita que envolve dinastias reais na
Inglaterra, na Dinamarca e na França, e o emparelhamento dessa
meia dúzia de manuscritos de reis e rainhas, fazem-nos perguntar
se o Saltério Hunteriano poderia ter sido destinado a alguém como
Sofia, de Minsk (c. 1140-98), esposa de Valdemar, o Grande, e mãe
de Canuto VI, ou outro membro próximo de sua família, e se talvez
não tenha sido feito também para as mesmas comemorações de
1170. É uma ideia realmente tentadora. Ouço a voz cautelosa de
Erik Petersen ecoando em minha mente: “Historiadores da arte
chegam rápido demais a conclusões”.
Em 1999, Erik Petersen publicou um volume de ensaios sobre a
cultura do livro medieval na Dinamarca, Living Worlds & Luminous
Pictures, o qual inclui um artigo sobre o Saltério de Copenhague
escrito por Patricia Stirnemann, que é de fato uma historiadora da
arte e que pesa cuidadosamente suas conclusões. Ela começa com
um artista que trabalhou tanto no Saltério de Copenhague como no
manuscrito hoje em Glasgow. Conforme tinha identificado em sua
tese original, o mesmo iluminador fizera as capitulares dos salmos
1-54 e do salmo 80 no manuscrito de Copenhague, e as dos salmos
1-101 no Saltério Hunteriano. Patricia descobrira agora a caligrafia
do mesmo artista em um número de outros manuscritos, de datas
próximas. Eles incluíam dois manuscritos muito antigos das
Sententiae de Pedro Lombardo (c. 1100-60), mestre nas escolas de
catedral em Paris, um deles datado de 1158 (o mais antigo que se
conhece) e o outro não depois de 1169; uma cópia da primeira
recensão da Grande Glosa das Epístolas de São Paulo, de Pedro
Lombardo, na biblioteca da Notre-Dame de Paris, onde o próprio
autor foi bispo de 1158 a 1160; e um manuscrito sobre a vida e os
milagres de Santo Agostinho, feito para (e certamente na) abadia
agostiniana de São Vítor, em Paris. Como probabilidade histórica, é
quase inconcebível que qualquer um desses quatro manuscritos
possa ter sido feito em outro lugar que não Paris.
Manuscrito sobre a vida e os milagres de
Santo Agostinho, iluminado na Abadia de São
Vítor, em Paris, pelos principais artistas do
Saltério de Copenhague.

Nossa atenção se volta então para a Abadia de São Vítor. Ela foi
estabelecida a leste das muralhas da cidade de Paris, em 1110, por
Guilherme de Champeaux (c. 1070-1121), o filósofo e professor de
Abelardo. Os agostinianos eram cônegos, não monges. Eles
interagiam com o mundo secular e estendiam seus estudos aos
temas laicos. Sem dúvida alguma, forneciam manuscritos. O Liber
Ordinis da abadia, espécie de livro de regras internas, menciona
escribas pagos para trabalhar em seu scriptorium. Desde sua
fundação, a casa de São Vítor em Paris manteve escolas
acadêmicas que podiam ser frequentadas por estudantes que não
eram necessariamente membros de ordens religiosas. Professores
famosos nessas escolas incluíram Hugo de São Vítor (m. 1142),
teólogo e autor prolífico; Ricardo de São Vítor (m. 1173), que ao que
parece nascera na Escócia; André de São Vítor (m. 1175), nascido
na Inglaterra; e Adão de São Vítor (m. c. 1177/92), que também
pode ter sido britânico. A história da abadia em seu início mostra
que, surpreendentemente, muitos de seus membros residentes e
doutos visitantes vinham da Inglaterra. Ernius, o abade de São Vítor
de 1162 a 1170, pode ter sido inglês também. Sua irmã era casada
com um norueguês (estou extraindo tudo isso de Patricia
Stirnemann). No ano de sua nomeação, o arcebispo dinamarquês
de Lund, Eskil, rompeu com o rei Valdemar e foi para o exílio na
França, chegando a São Vítor. Trouxe consigo um depósito de 397
marcos de prata, que deixou aos cuidados do abade Ernius. Em
1168 ele resolveu sua desavença com Valdemar, que então o
convidou a presidir o traslado do agora santo Canuto Lavard, e a
coroação do rei-menino em Ringsted, em 1170. Patricia alega que o
Saltério de Copenhague foi encomendado pelo arcebispo Eskil
quando de (ou como resultado de) sua visita a São Vítor em Paris, e
ela insinua que os 397 marcos de prata podem ter algo a ver com o
pagamento pelo livro.
Isso é notável. Um dos maiores manuscritos ingleses do século XII
pode assim, em teoria, efetivamente ter sido escrito e iluminado em
Paris, como também, de fato, poderia ter sido o Saltério Hunteriano,
agora em Glasgow, talvez também encomendado por Eskil para o
mesmo evento. Não há dúvida de que escribas e artistas ingleses
trabalhavam em São Vítor. Conhecemos os nomes de inúmeros
escribas na França do século XII que nasceram e foram treinados na
Inglaterra, inclusive Manerius da Cantuária, que escreveu uma
grande Bíblia, hoje na Bibliothèque Sainte-Geneviève em Paris. O
calendário e a litania do Saltério de Copenhague certamente
parecem ser muito ingleses, mas não são localizáveis dentro da
Inglaterra, no aceno genérico de que são “do norte”, com mais
exatidão do que indicam as placas de sinalização nas estradas
inglesas, as quais, da perspectiva meridional de Paris, poderiam
parecer estar incluindo a Escandinávia. A Abadia de São Vítor era
agostiniana, o que explica a segunda camada do calendário.
Quando comecei a catalogar manuscritos para a Sotheby’s, uma
vez deixei em aberto uma questão de localização, apresentando
múltiplas sugestões. Meu chefe de departamento e mentor para o
resto de sua longa vida, Anthony Hobson, leu aquilo tudo em
desespero e disse em sua voz lânguida: “Você tem de chegar a uma
decisão”. A verdade, no caso em questão, é que não sei. Tenho me
preocupado incessantemente com isso, e não consigo chegar a uma
conclusão. Há outras opções ou variantes. O arcebispo Eskil, se é
que foi ele, pode ter conhecido iluminadores em Paris, mas poderia
tê-los contratado em qualquer lugar, inclusive a Inglaterra. Isso bem
pode ter sido o que aconteceu. O manuscrito poderia ter sido
começado num lugar e terminado em outro, embora o resultado final
pareça estar muito unificado. Gostaria de ser capaz de decidir. Erik
Petersen pode elogiar minha relutância em correr para alguma
conclusão, mas eu gostaria imensamente de saber a resposta.
Existe até uma possibilidade — uma possibilidade remota, mas
persistente — de que o manuscrito tenha sido feito na própria
Dinamarca. Estou sempre voltando a essa hipótese, incapaz de
descartá-la por completo. O arcebispo Eskil voltou para casa em
1168. A data da cerimônia foi marcada para o verão de 1170. Esse é
um livro feito para um rei. Reis medievais não compravam por
encomenda postal. Eles contratavam artistas. Por bastante dinheiro,
uma oficina inteira, com escribas e iluminadores e todo o seu
equipamento, poderia viajar para qualquer lugar, até mesmo para a
corte de um rei da Dinamarca. Quatro artistas e um escriba
trabalhando simultaneamente poderiam fazer sem dificuldade um
saltério como esse em dois dias. Eu gostaria muito que ele tivesse
sido iluminado em Ringsted.
O alceamento do manuscrito parece ser muito simples.*** Até
onde sei, não se reparou antes que provavelmente está faltando um
caderno inteiro com mais miniaturas de página inteira após o fólio 7,
entre os que hoje são os cadernos i e ii. A ponta protuberante da
folha de guarda após o fólio 7 está mal aparada. A dobra interna
desses cadernos está maltratada e torcida no sentido vertical ao pé
do fólio 8, dano que não ocorre em nenhum outro lugar no livro.
Faria sentido concluir que houve aqui a remoção de um caderno
inteiro. Os ciclos de miniaturas de página inteira no início de
saltérios antigos luxuosos começam comumente com cenas do
Antigo Testamento, desde o Jardim do Éden até a vida de Davi,
autor dos Salmos. O Saltério Hunteriano começa assim (embora
também lhe faltem folhas). O propósito era conectar a Queda do
Homem com os salmos, que eram tidos como profecias da vinda de
Cristo. As figuras no Saltério de Copenhague são apenas metade da
sequência, e provavelmente o manuscrito tinha uma vez oito folhas
a mais, com dezesseis figuras do Antigo Testamento. Podem ter
sido removidas ainda no século XIII ou no XIV, quando o culto à
Virgem passou a dominar a devoção privada, e quando talvez se
começou a achar que a Anunciação seria uma página de abertura
mais adequada às freiras do que as figuras nuas de Adão e Eva.
A divisão de trabalho corresponde absolutamente ao alceamento.
É gratificante constatar isso com tanta clareza. O primeiro artista
pintou o que resta do ciclo de miniaturas de página inteira (caderno
ii) e depois retomou o trabalho nos cadernos x-xv, do fólio 72 ao
119. O manuscrito ainda não estava encadernado quando outros
iluminadores trabalharam nele, e os cadernos perdidos devem ter
sido distribuídos entre os artistas. Os dois primeiros pintores
começaram simultaneamente, então talvez o tempo que o primeiro
artista levou para executar as 32 páginas inteiras de miniaturas
tenha sido o mesmo que levou seu colega para pintar as 72 folhas
de texto incumbidas a ele, até que o primeiro estivesse habilitado a
retomar o trabalho. O primeiro artista tinha um magnífico estilo
monumental, pródigo em cores claras e ouro escovado e não
lavrado, liso como vidro. No início, vimos como as miniaturas de
página inteira estão cheias de simbolismo da realeza. Também
poderia haver uma alusão ao patrono em sua capitular para o Salmo
87, que mostra Deus admoestando um homem barbado e com uma
bela cabeleira, talvez inspirada no versículo 8, “tua cólera pesa
sobre mim”: textualmente isso se aplica a Davi, o salmista, mas a
figura de aspecto nórdico pode ser parecida com o rei Valdemar.
Outras capitulares por esse artista incluem Cristo no templo, para o
Salmo 81, um anjo instando um homem a ouvir Deus, como
ilustração para o Salmo 85, e músicos celebrando Deus, para o
Salmo 91. Muitas são puramente decorativas e caprichosas. Entre
elas, um apavorante leão agarrando um homem por trás e
mordendo sua cabeça, um homem sentado de costas sobre um urso
atirando uma lança num burro que toca uma harpa; um macaco se
olhando no espelho; um animal desnudo, talvez um cão, usando um
enorme chapéu laranja e sentado num bode azul enquanto leva um
cão preso a uma correia, seguido por um homem; um par de
gêmeos alados em túnicas laranja sentados no dorso de pássaros
gigantescos; e um monstro de pelo marrom-escuro,
verdadeiramente maravilhoso, talvez um urso, parecendo uma coisa
selvagem ilustrada por Maurice Sendak, de pé sobre as patas
traseiras e olhando para a frente com as patas sob o queixo. Isso
está no fólio 110r. Se o manuscrito foi concebido para uma criança,
essas são imagens alegres, para chamar a atenção e ajudar na
memorização das páginas.
O artista das miniaturas de página inteira
também fez capitulares no Saltério, inclusive
esta, que mostra Deus admoestando um
príncipe de cabelos claros.
O artista das miniaturas de página inteira
também fez capitulares no Saltério, inclusive
esta, que mostra Deus admoestando um
príncipe de cabelos claros.
O segundo artista é um com o qual já nos encontramos, que
trabalhou no Saltério Hunteriano e nos quatro manuscritos
iluminados em Paris. No Saltério de Copenhague ele pintou o
caderno i (o calendário) e os cadernos iii-ix (fólios 16 a 71). Pode ter
colaborado às vezes em outros pontos do manuscrito, como o fólio
103r. O grande Beato inicial é dele, com suas pedras preciosas reais
coladas. Ele usa cores mais pálidas e suaves, e seu ouro escovado
é aqui e ali ornado com padrões, como se fosse metal lavrado. As
figuras feitas por ele incluem grandes capitulares que contêm as
histórias de Samuel coroando Davi, para o Salmo 26, Natan
castigando o rei Davi, para o Salmo 50, inclusive com Betsabeia
apoiada afetuosamente no ombro do rei — ela tem belos cabelos
longos e trançados, muito escandinavos —; e Saul ordenando a
Doeg que mate Abimelec e toda a sua família por deslealdade,
ilustrando o Salmo 51. Embora todos esses temas sejam comuns
nos saltérios, eles teriam sido considerados relevantes para uso
real.
O artista das miniaturas de página inteira às
vezes pintou animais estranhos e monstros,
inclusive esta criatura peluda de pé sobre as
patas traseiras.
O Saltério Hunteriano, em Glasgow, é primo-irmão do manuscrito
de Copenhague, talvez copiado pelo mesmo escriba e certamente
iluminado pelos mesmos artistas.

O terceiro iluminador — ao menos como identificado por Patricia


Stirnemann (não tenho certeza de poder realmente distingui-lo do
primeiro) — pintou os cadernos xvi a xviii. Correspondem aos fólios
120 a 143. Suas capitulares são na maior parte decorativas, mas
incluem um homem lutando com um cão branco, um leão azul
matando um cão verde e um urso de pé.
A mesma cena no Saltério de Copenhague, a
unção de Davi por Samuel, pintada pelo
mesmo artista, ambas ilustrando o Salmo 26
(na numeração da Vulgata).
Detalhe de uma capitular iluminada por Mestre Simon, no final do
Saltério de Copenhague, que mostra um gato tocando uma viola.

O quarto e último artista do Saltério de Copenhague é um dos


mais reconhecíveis e famosos iluminadores do século XII. Na
Inglaterra nós o chamamos de Mestre Simon. Na França é às vezes
conhecido como o Mestre da Bíblia dos Capuchinhos. Seu estilo faz
parte de um grupo descrito por desanimados historiadores de artes
como “Escola do Canal”, porque, francamente, não sabemos se ele
é inglês ou francês. Com ele o Mestre Simon decorou os cadernos
xix-xxiv, correspondentes aos fólios 144 a 191. As figuras de suas
capitulares são de um rei em meio-corpo segurando um rolo, para o
Salmo 137, e os profetas Isaías e Habacuque nos cânticos. Outras
têm características típicas do “Canal”, como leões cor-de-rosa
distorcidos e musculosos; pequenos cães brancos trepando entre
folhagens; gigantes nus e azuis; dragões abocanhando uns aos
outros para tomarem a forma de capitulares; um leão sobre as patas
traseiras lutando com um homem que tem uma espada e um
escudo; gatos com instrumentos musicais; um homem com uma
perna de madeira pelando uma lebre; um homem nu lutando com
leões verdes; e muitas outras.
“O que elas significam, essas monstruosidades ridículas?”,
perguntou retoricamente são Bernardo de Claraval em sua célebre
denúncia da arte na primeira metade do século XII; “Por que esses
macacos imodestos? Que utilidade têm os leões? Monstruosos
centauros? Seres meio-humanos? E tigres mosqueados? Por que
cavaleiros em luta e caçadores soprando em trompas?” O que
significam? Absolutamente nada, seria minha resposta a são
Bernardo, mas eles em muito contribuem para a alegria dos
manuscritos românicos. Mouritz Mackeprang, em seu relato sobre o
Saltério de Copenhague publicado em 1921 (conquanto tenha sido
escrito antes), esforça-se com bravura para relacionar os temas das
capitulares pictóricas aos versículos que elas decoram. O Salmo 16,
por exemplo, abre com um leão que dança sobre o ombro de um
peixe; Mackeprang sugeriu que era uma ilustração do versículo 12:
“Parecem um leão, ávido por devorar”. O Salmo 88 tem como
introdução aquela maravilhosa coisa peluda e selvagem de pé,
mencionada acima: ele a relaciona com o versículo 8 daquele
salmo, “terrível com todos que o cercam”. O Salmo 93 no
manuscrito tem um híbrido de urso ou leão devorando um cordeiro;
Mackeprang aponta para o versículo 6: “[Malfeitores] matam a viúva
e o estrangeiro e assassinam os órfãos”. Se você olhar com
bastante insistência, vai encontrar paralelos textuais para quase
tudo. Com toda a probabilidade, a maioria das imagens são apenas
decorativas, pinçadas dos repertórios da imaginação dos artistas.
Pode ser que um iluminador, ao se perguntar o que vai desenhar em
seguida, talvez depare com a palavra “leão” (por exemplo) em
algum lugar da página, o que seria suficiente para lhe despertar uma
ideia; mas não são ilustrações que descrevem conscientemente o
salmo como tal.
Algumas são desenhos de acervo, encontradas com frequência
em outros manuscritos. Uma figura de Mestre Simon no fólio 171v
do Saltério de Copenhague mostra um gato tocando uma espécie
de viola bastarda, instrumento de cordas tocado com um arco.
Curiosamente, esse é um tema disseminado na arte românica, tanto
na iluminação de manuscritos como na escultura. Deve ser a ele
que se refere a canção infantil que começa “Hey, diddle diddle,/ The
cat and the fiddle”, que figura numa tradição de cantigas de ninar de
enorme antiguidade. Eu costumava suspeitar de que talvez tivesse a
ver com o fato de uma corda de violino ser supostamente feita de
tripa de gato, até que um dia um especialista em música medieval,
Armando Lopez Valdivia, veio jantar em minha casa e trouxe uma
viola bastarda. Assim que começou a tocar o instrumento depois do
jantar, nosso gato, ao ouvir o som, veio correndo como que atraído
por um ímã, rolando pelo chão em êxtase, os olhos rolando também,
patas no ar, a boca aberta, nocauteado e bêbado como um dervixe,
e hilário de se ver. Sem dúvida os gatos medievais reagiam da
mesma forma quando os músicos começavam a tocar suas violas
bastardas no século XII, e essa associação cômica acabou pegando.
No fólio 173v há uma capitular formada por um homem com uma
perna de madeira segurando um par de tesouras acima de uma
lebre ou um coelho. Reflete, sem dúvida, a expressão medieval que
diz que é mais difícil fazer tal e tal coisa do que era, para um homem
com perna de madeira, pelar uma lebre. O fato é que uma lebre era
o animal mais rápido no campo, e pegar uma e segurá-la para
cortar-lhe o pelo era impossível, mas um homem com uma perna de
madeira fazer isso, como mostrado aqui, estava além do impossível.
Era um símbolo daquilo que simplesmente não pode ser feito.
Ocorre também na página iluminada que abre a Bíblia de Bury da
Abadia de São Edmundo, c. 1130, o mais antigo manuscrito na
Inglaterra iluminado por um iluminador profissional independente,
Mestre Hugo (não confundir com Hugo Pictor). Esse livro é tão
incomparavelmente vasto e seu projeto tão complexo que essa
figura foi, com muita certeza, uma alusão irônica de Hugo a uma
tarefa que ninguém acreditava ser possível realizar. Observem seu
posicionamento aqui. A mesma figura ilustra o salmo final do
Saltério de Copenhague. Talvez, também nesse caso, ninguém
achasse que o manuscrito estaria pronto no suposto prazo, 25 de
junho de 1170. É como se Mestre Simon anunciasse que tinham
conseguido o impossível.
A proveniência, o texto e os artistas que colaboraram no Saltério
de Copenhague nos levam todos àquele ponto de inflexão na
história do livro quando o letramento estava se livrando do
monopólio dos mosteiros, quando artistas itinerantes seculares
estavam se infiltrando no negócio mas ainda não tinham
estabelecido oficinas permanentes, e quando os manuscritos
cruzaram a grande divisória, de propriedades inalienáveis da Igreja
que eram, para a categoria dos artefatos luxuosos e adquiríveis pelo
laicato, com um custo definível e um valor comercial. Mestre Simon,
como Hugo na Bíblia de Bury, é inegável, era um iluminador
profissional. É muito possível que tenha começado sua carreira em
São Vítor, Paris. Muitos dos livros que pintou eram do tipo de
compêndio que estudantes nas escolas de Paris poderiam comprar
e levar para casa, o que deve ser a explicação para manuscritos
feitos por ele que pertenceram na Idade Média a mosteiros tão
espalhados como os de Bonport (na Normandia), Liesborn (no oeste
da Alemanha), Klosterneuberg (na Áustria) e Eszterbom (na
Hungria). No entanto, Mestre Simon também viajou. Não há razão
para supor não ter estado na Dinamarca, mediante suas conexões
vitorianas. Ele tira sua alcunha moderna de Simon, abade do grande
mosteiro em St. Albans, no sul da Inglaterra, de 1167 a 1183. Simon
fizera contato com a Abadia de São Vítor em Paris no tocante à
importação de novos textos, e claramente em algum momento de
seu abadado — talvez na década de 1170 —, exemplares e
iluminadores foram trazidos para a Inglaterra, esse artista entre eles.
Pelo menos três livros feitos por escribas locais de St. Albans
durante o tempo do abade Simon têm decorações atribuíveis a ele.
Com toda a probabilidade, Mestre Simon passou a trabalhar para
outros patronos também quando surgiram oportunidades,
possivelmente na Inglaterra, ou talvez tenha retornado à França. O
século XII é o período a partir do qual começamos a ter quantidades
consideráveis de informação, e ainda assim às vezes não sabemos
absolutamente nada.
Capitular para o salmo final, pintada por
Mestre Simon, representando um homem com
perna de madeira pegando e pelando uma
lebre, emblema medieval para uma tarefa
impossível.
Há uma característica do Saltério de Copenhague que não é
exclusiva a esse manuscrito, mas que nunca foi discutida
amplamente como um fenômeno nos estudos de livros medievais.
Acima ou ao lado de cada miniatura e capitular iluminada há
minúsculos orifícios de costura. Está claro que toda iluminação no
Saltério já esteve oculta sob pequenas cortinas protetoras de pano,
que eram costuradas nas páginas. Esses orifícios são muito comuns
em manuscritos iluminados com magnificência, especialmente do
século XII na Inglaterra e no norte da Europa. Cada membro dessa
nossa íntima família de saltérios reais os tem: há orifícios de costura
ao lado de iluminuras no Saltério Hunteriano, no Saltério de
Ingeborga, no Saltério de Avranches, no Saltério de Branca de
Castela e no Saltério de Leiden. Uma vez que se comece a notá-los,
é impactante constatar como esses orifícios de costura estão
disseminados em manuscritos luxuosos dessa época. Não
precisamos duvidar de que são contemporâneos dos livros em si
mesmos. Os orifícios estão ou no topo das páginas, para fixar abas
que deviam ser levantadas, ou ao longo do lado esquerdo de
capitulares, às vezes até mesmo debaixo delas, de modo que as
cortinas fossem afastadas para o lado ou para cima, como
pequenas persianas. Algumas dessas abas de pano, muito
ocasionalmente, sobrevivem em manuscritos românicos, ainda
costuradas em seu lugar. Em geral parecem ter sido costuradas
precariamente, até mesmo de modo negligente. Não eram
destinadas apenas a proteger a iluminura da fricção, como o papel
moderno que hoje se encontra solto entre as folhas no Saltério de
Copenhague, pois num manuscrito que é mantido fechado as
páginas não sofrem fricção. Fosse esse o caso, então uma cortina
só já seria suficiente para cada abertura com duas páginas
iluminadas. Mas, ao contrário, aqui as miniaturas de página inteira
têm todas duas fileiras de orifícios de costura no topo de cada
página, mostrando que as figuras nas duas faces de cada página
dupla aberta devem ter tido suas próprias cortinas em separado.
Estamos acostumados com manuscritos iluminados medievais que
apresentam impressionantes e cintilantes efeitos à medida que as
páginas são viradas ou quando os livros são exibidos abertos em
páginas duplas em suas vitrinas de vidro. Quando os primeiros
donos abriram o Saltério de Copenhague, o aspecto deve ter sido
bem diferente. As iluminuras devem ter estado fora de vista, como
ícones em igrejas gregas, ocultos por trás de cortinas. O ato de
levantar as abas, para revelar imagens sagradas ou decorativas,
deve ter sido por si mesmo parte da experiência devocional. A
Revelação, como as cortinas vermelhas e brancas se abrindo para
mostrar a Encarnação descrita na miniatura do fólio 9v, torna-se
literal. É um lembrete de como é diferente o mundo que habitamos.
Em outros aspectos, esse saltério medieval e suas preces diárias
ainda têm ressonância e relevância nos dias atuais. A maioria de
nós, o laicato na Europa, hoje sabe ler, um desenvolvimento na
educação que remonta àquela nova moda nas cortes reais do
século XII. Essa prática foi baixando gradualmente na escala social
até chegar a gente como nós. Incontável número de homens e
mulheres ainda usa os salmos, e muitas das festas do calendário do
Saltério pontuam nosso ano moderno, mesmo sem levar em conta
religião, como o dia de São Valentim, a Páscoa e o Natal, todos
listados aqui. O manuscrito registra 24 de junho como o dia da
natividade de são João Batista e, no mesmo dia, a palavra
“Solsticium”, ambas as referências destacadas em tinta azul. O dia
23 de junho, véspera do solstício de verão no hemisfério norte,
“Sankt Hans Aften”, como o chamam, ainda é uma festa popular na
Dinamarca e tarde da noite fogueiras são acesas nas praias.
Participei de uma delas na praia de Gammel Skagen, no norte da
Jutlândia, domínio do duque Erik, abraçando, com essa experiência,
uma tradição na Escandinávia que parece ser muito mais antiga que
o cristianismo.
Coletas no final do Saltério de Copenhague, inclusive orações
pela graça de Deus e pela paz, e para se livrar do medo de
nossos inimigos.
Declarações pessoais de fé não são meu assunto aqui. No
entanto, o que entendo por “comunhão dos santos”, invocada como
artigo de fé no fim do Credo (e incluída nesse Saltério), é que isso é
um tipo de parentesco espiritual com correligionários de todas as
eras, compartilhando aspirações e experiências comuns. Senti
subitamente um desses momentos após um longo dia na Biblioteca
Real, lendo uma prece vespertina pela paz nos fólios 193v-194r do
Saltério de Copenhague. Ela começa: “Deus a quo s[an]c[t]a
desideria recta consilia & iusta sunt opera…”, palavras que já eram
então muito antigas e que ainda são empregadas toda noite nas
vésperas na capela do Corpus Christi College e alhures por toda a
cristandade, e que são tão relevantes hoje quanto foram para
Valdemar, o Grande, e Canuto IV, que também as liam, como nós o
fazemos agora. Conforme traduzidas para o inglês no English
Prayer Book, elas dizem: “Ó Deus, de Quem provêm todos os
santos desejos, todos os bons conselhos, e todas as obras justas,
concedei a todos os que vos servem aquela paz que o mundo não é
capaz de conceder… e também que convosco, nós, estando
defendidos do medo de nossos inimigos, possamos passar nosso
tempo em repouso e quietude…”. Esse texto não foi mudado, nem a
necessidade de paz e de libertação do medo, em 850 anos. Nosso
mundo e o deles se dão as mãos por um momento, e o coração
palpita numa prece compartilhada.

* No Natal, espécie de canudos envoltos em papel dourado que, ao serem puxados por
ambas as extremidades, libertam, num estouro, brindes como balas, bombons etc. (N. T.)
** Referência a computus, método para calcular datas, principalmente a da Páscoa. (N. T.)
*** Ele é: i1+6 [a folha de guarda, agora como fólio “1”, com a lista de relíquias, mais o
calendário], ii-xxv8.
8

Carmina Burana
primeira metade do século XIII
Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660

Eu optei pelo latim na escola não porque tivesse uma aptidão


particular para essa língua (eu não tinha), mas porque eu era, em
geral, pior em quase todas as outras coisas. Era uma escola
estadual local para meninos, King’s High School, em Dunedin, Nova
Zelândia, onde, em retrospecto, o currículo era, mesmo então, muito
antiquado. Pelejávamos, como de praxe, com os exercícios de
gramática e tradução. Um dia, na sexta série, nosso professor de
latim — o sr. Dunwoodie — teve a imaginosa iniciativa de trazer de
casa um gramofone e um disco da medieval Carmina Burana
musicada por Carl Orff (1895-1982). Foi inesquecível. Fomos todos
cativados pela música impregnante e pela sensual letra rítmica em
latim sobre garotas e bebida e a manifesta injustiça da fortuna. Para
uma turma de garotos adolescentes em que os hormônios já
latejavam, ali estava um latim que tocava a alma de um jeito que as
Guerras gálicas de César nunca tinham feito. Pedimos ao sr.
Dunwoodie que a tocasse mais e mais uma vez, assegurando-lhe
que ela era educativa. E ele acatou, ganhando pontos conosco.
Logo estávamos sabendo muitos dos versos latinos de cor, e de
alguns ainda me lembro: “o! o! o! totus floreo, iam amore virginali,
totus ardeo!”, “Oh! Oh! Oh!, estou toda em flor, ardendo agora no
primeiro amor”, e assim por diante. Estávamos justamente na idade
apropriada. Essa música era para nós uma sedutora evocação de
estudantes medievais anárquicos e amorosos vagabundeando em
versos pelo século XII na Europa, com um éthos de espírito livre
muito parecido com o de meados da década de 1960. É bem
provável que professores de latim em escolas, em outros lugares do
mundo e na mesma época, tocassem às vezes o mesmo disco para
suas classes, e que toda a nossa geração compartilhasse essa
familiaridade com essas canções de luxúria e rebelião em latim, e
que, para essa finalidade, ainda estaria — apenas — servindo como
língua internacional.
Alguns anos depois, como estudante de pós-graduação em Oxford
no início da década de 1970, passei meus verões com uma mochila
e uma câmera, esta última emprestada da Biblioteca Bodleiana,
percorrendo muitas daquelas mesmas rotas que os eruditos
itinerantes de Carmina Burana tinham percorrido oitocentos anos
antes para Paris, e circulando pelas cidades com catedrais na
França e na Alemanha e pelos mosteiros da Áustria, examinando
manuscritos medievais nas bibliotecas da região. Em geral eu ficava
em albergues para a juventude ou numa barraca. Foi uma
experiência solitária, porém fascinante, mas eu bem que curtia
minha autoimagem, sacudindo grama e insetos de meus cabelos e
sendo o primeiro a chegar aos banheiros das bibliotecas municipais,
onde me barbeava e escovava os dentes, antes de me apresentar
tinindo nos balcões de informação com listas dos preciosos livros do
século XII que eu queria ver. Às vezes encontrava as mesmas
pessoas de sempre nas salas de leitura de muitas bibliotecas, e nos
sentíamos todos parte de uma espécie de confraternização
internacional de estudantes itinerantes de diversas universidades,
trabalhando em nossas várias teses de doutorado. Uma vez,
quando meu alemão me falhou num mosteiro da Áustria, recorri em
desespero ao latim como a única língua comum.
Lembro-me de minha primeira visita, naquela época, à Bayerische
Staatsbibliothek, em Munique. Depois das domésticas e sonolentas
bibliotecas na França rural, onde crianças de escola e senhores
idosos desperdiçavam suas tardes em bate-papos e jornais,
Munique era mesmo de intimidar. A biblioteca estadual fica na
Ludwigstrasse, a grande avenida que vai do Siegestor, o arco
monumental no norte da cidade, até a Odeonsplatz, no centro de
Munique. A biblioteca é um enorme edifício clássico de tijolos
naquela pintura amarela tão ubíqua na Europa central. Ela foi aberta
em 1843. No lado de fora, quatro gigantes esculpidos estão
sentados em seus pedestais: Tucídides (história), Homero
(literatura), Aristóteles (filosofia) e Hipócrates (medicina). Da rua,
você sobe por uma escadaria e entra por uma das três grandes
portas que se abrem para um amplo e alto vestíbulo. É parecido
com o maior banco em que você já entrou. À sua frente, entre
colunas clássicas, surge uma enorme escadaria de mármore
branco. O corrimão de metal é sustentado por leões de bronze. Diz-
se que Ludwig I, rei da Baviera de 1825 a 1848, a planejou para ser
a maior escadaria da Europa e que durante sua vida era a única
pessoa autorizada a usá-la. Quando na década de 1970 eu a
enfrentei nervosamente, senti-me como se tivesse cinco centímetros
de altura. No topo há enormes estátuas de Alberto V,duque da
Baviera de 1550 a 1579, que fundou a biblioteca em 1558, e do
próprio rei Ludwig I. O prédio da biblioteca se dispõe em dois
quadrângulos, de cada lado da escadaria. Para as salas de leitura
de livros impressos em geral você deve seguir em frente. Para
chegar ao departamento de livros raros e manuscritos, deve dobrar
à direita e outra vez à direita, com isso retornando à parte da frente
do prédio, atravessando o Fürstenhall com suas colunas, que fica
acima da entrada, e depois à esquerda ao longo de um corredor
paralelo à Ludwigstrasse, pela porta da sala de exposição dos
tesouros da biblioteca, por uma catraca, mais uma vez à esquerda
(agora afastando-se da rua para o lado mais distante do
quadrângulo), passando por dois espetaculares globos terrestres do
século XVI e pela biblioteca itinerante do rei Ludwig, finalmente
chegando à sala de leitura. Ela tem iluminação natural de cada lado,
filtrada por cortinas translúcidas. Há mesas compridas, ocupadas
por professores de cabeça grisalha que aparentam ter compridos
títulos acadêmicos em alemão. O balcão de atendimento fica na
extremidade mais afastada da sala. Escadas no centro levam a
estantes de livros no mezanino, onde fica talvez a mais abrangente
coleção de livros de referência com livre acesso no mundo (ela
reaparecerá, bem depressa, no capítulo 12). O ambiente é
profissional e intelectual, e o único som é o do laborioso raspar de
lápis no papel. Não há nada de sonolento ou provinciano no que
concerne à Staatsbibliothek em Munique.
A grande escadaria na Bayerische
Staatsbibliothek, a qual, se dizia, só ao rei
Ludwig I da Baviera era permitido usar,
enquanto vivesse.
O manuscrito original, do século XIII, de Carmina Burana, e origem
da cantata de Carl Orff, está aqui desde 1806. É chamado de
“Burana” a partir do nome em latim do mosteiro de Benediktbeuern,
na Alta Baviera, fundado no século VIII, cerca de 65 quilômetros ao
sul de Munique. O manuscrito foi descoberto entre os livros da
biblioteca, sem estar catalogado, após a eliminação do mosteiro em
1803 durante as reformas napoleônicas. Ele contém cerca de 350
poemas e canções — muitos deles encontráveis apenas lá —, dos
quais somente vinte, ou excertos deles, foram mais tarde arranjados
como música moderna por Orff. A maioria é em latim, mas o volume
tem fragmentos em várias línguas europeias e peças importantes
em alto-alemão médio, que estão entre as mais antigas canções em
vernáculo sobreviventes. O manuscrito de Carmina Burana é de
longe a mais bela e mais extensa antologia sobrevivente do verso e
da canção medievais, e é um dos tesouros nacionais da Alemanha.
Devo a permissão que recebi para ver o manuscrito a Wolfgang
Valentine Ikas, chefe do departamento de referência de livros raros
em Munique, o qual tive a sorte de encontrar numa conferência no
Tennessee. Quando comecei a explicar meu pedido, pude sentir seu
temor de que eu estivesse prestes a pedir para ver os Evangelhos
de Otto III, um dos mais valiosos e mais frágeis livros existentes, e
seu alívio quando mencionei Carmina Burana foi palpável.
Entretanto, ele é precioso demais para ser normalmente acessível.
Nem mesmo o próprio dr. Ikas jamais tinha visto o original. Antes de
mais nada, ele teve de consultar os conservadores do Institut für
Buch- und Handschriftenrestaurierung para saber se o manuscrito
estava em condições de ser consultado por um simples leitor. Após
alguns dias de ansiedade, o consentimento foi dado.
Essa visita foi diferente daquelas primeiras incursões do estudante
com sua mochila. Eles abriram mão da necessidade de eu ter um
ingresso de leitor, e fui levado diretamente para dentro. Reconheci
várias pessoas que já estavam lá, inclusive Berthold Kress, do
Instituto Warburg, que estava fazendo fotocópias de um artigo em
russo com imagens do profeta Daniel e não manifestou a menor
surpresa ao me ver, e Günther Glück, que tinha vindo estudar belos
livros, dos quais ele mesmo tem uma coleção privada muito
refinada. Trocaram-se os gracejos de praxe, e eu prossegui para o
balcão de atendimento.

O mosteiro de Benediktbeuern na Alta Baviera, fechado em 1803,


onde foi encontrado o manuscrito de Carmina Burana e do qual
leva o nome.

Como Carmina Burana é classificado como um


“Tresorhandschrift”, o mais elevado grau de importância em
Munique, solicitaram-me que usasse luvas, que eles vendem aos
leitores, os quais podem ficar depois com elas (justiça seja feita,
eles me deram as minhas). São brancas, com o dorso estriado,
orladas em escarlate em torno do pulso: muito estilosas, apesar de
as linhas de cor clara levemente sugerirem que suas mãos foram
amputadas. Fui encaminhado a uma mesa especial isolada por um
cordão à esquerda da mesa do supervisor. Trouxeram pedaços de
espuma no formato de cunhas, envoltas em baeta verde. O
manuscrito e suas folhas suplementares em separado são
guardados em pesadas caixas cobertas de cânhamo.
O livro encadernado tem cerca de 25 por 18 centímetros, e o
volume tem cerca de 4,5 centímetros de espessura. As placas de
madeira fina são do século XVIII, chanfradas em suas bordas
internas à maneira alemã, cobertas com couro marrom estampado a
seco. O estilo da encadernação é idêntico ao de outros manuscritos
uma vez existentes em Benediktbeuern, e é atualmente a única
evidência absoluta restante de que o livro esteve alguma vez
naquele mosteiro. O único fecho de engate é da Idade Média tardia,
e, ao que parece, foi transferido de uma encadernação anterior.
Uma correia está presa na borda da última capa (de novo,
caracteristicamente alemã: numa encadernação francesa ou inglesa
ela estaria, em vez disso, suspensa na primeira capa). A correia,
que está reparada, é de couro curtido em sais de alumínio para ficar
branco, que pode, portanto, ter sido a cor da encadernação
medieval do livro. A lingueta na extremidade da correia e o engate
na primeira capa no qual se encaixa são ambos de latão, gravados
com as palavras, em escrita gótica, “ave” e “ma[r]ia” (o “r” está
oculto pela tachinha que prende o engate na capa). Hoje ele traz um
envoltório de proteção bem sem graça, feito um curativo médico, em
torno do fecho para evitar que cause arranhões em outra coisa
qualquer. Expressões devocionais como “Ave Maria” são bem
comuns em encadernações medievais alemãs e não constituem
necessariamente uma indicação de proveniência, mas são muito
consistentes com um texto que devemos supor ter sido uma vez
destinado a uma comunidade religiosa.
Aperte levemente o manuscrito para soltar o fecho, e o abra
enquanto apoiado no suporte de livros da biblioteca, em sua baeta
verde. Há uma folha de guarda de papel com vários acréscimos,
inclusive um em que se lê “B Buran 160”, a lápis (início do século
XIX, riscado), uma data aproximada “s.XII-XIII” em tinta vermelha
(também riscada), e a atual marca de prateleira, “Clm 4660”, numa
caligrafia grande em giz púrpura. Esse número também está numa
etiqueta de papel na lombada. Na Staatsbibliothek as letras “Clm”
representam Codex latinus monacensis, “manuscrito latino de
Munique”, e assim, em termos estritos, é uma redundância escrever,
como se faz com frequência, “Munich MS Clm” e assim por diante,
pois isso já está incluído nas três iniciais. Os monacenses foram
numerados na ordem de sua chegada. Os que foram trazidos de
Benediktbeuern são os Clm 4501 a 4663, e o 4660 era, portanto, o
160o nessa sequência, o que explica o número anotado a lápis.
Na primeira página do manuscrito está a famosa imagem que lhe
serve de assinatura, a Roda da Fortuna, representando um rei que a
preside no topo e que depois despenca enquanto a coroa cai de sua
cabeça, e finalmente jaz estatelado ao pé da roda. Há ironia,
portanto, no indelével carimbo preto do século XIX estampado à
direita e acima da figura do rei que cai, “BIBLIOTHECA REGIA
MONACENSIS”, “Biblioteca Real de Munique”, já que, no girar da roda
da fortuna, o reino real da Baviera foi abolido em 1918 após a
Primeira Guerra Mundial. Ao pé da página, acrescentadas em seis
linhas minúsculas comprimidas na margem inferior, mesmo não
sendo parte do manuscrito como escrito originalmente, estão as
palavras que se tornaram icônicas nos staccatos, batidas de tambor
e sons de címbalos de Orff, “O fortuna, velud luna, statu variabilis,
semp[er] crescis aut decrescis, vita detestabilis…”, e assim por
diante, “Ó Fortuna, como a Lua, sempre mudando, para sempre
crescendo e declinando, vida detestável…”.
Na realidade, essa não é de nenhum modo a verdadeira abertura
de Carmina Burana. É muito fácil perceber o alceamento do
manuscrito (mesmo usando luvas), pois o pergaminho é em geral
grosso e a costura é bastante visível.* No entanto, o livro não está
de todo em seu estado original. As duas folhas agora no início não
são nada mais que páginas cortadas de outro lugar no manuscrito e
transferidas para o início, supostamente durante a reencadernação
no século XVIII, para prover uma abertura decorativa. Um ajuste
cosmético desse tipo não é incomum em manuscritos pertencentes
a bibliófilos que detestam ver um texto notadamente imperfeito na
primeira página. Mas isso não é tudo, no entanto, pois a sequência
ainda está lamentavelmente desordenada e incompleta.** Algumas
das folhas que faltam, inclusive seis que formam todo um caderno
perdido já no final do livro, foram descobertas por Wilhelm Meyer
(1845-1917), professor em Göttingen, na miscelânea em que
consistia o vasto resíduo de folhas perdidas então não ordenadas,
na Staatsbibliothek. Elas hoje formam o Clm 4660a, conhecido
como Fragmenta Burana, que acompanha o manuscrito principal,
mas ainda em pastas de papel do século XIX, com anotações de
Meyer datadas de 1870, todas num portfólio amarrado num elástico
preto e guardado numa caixa de cânhamo que faz par com a outra.
Uma questão que deve ter sido levantada de tempos em tempos
seria a de desmontar ou não a indiferenciada encadernação do
século XVIII para restaurar todas as folhas à sua sequência própria,
inclusive as folhas soltas encontradas mais tarde, pois não é fácil
formar uma imagem mental do manuscrito original e de seu
conteúdo enquanto estiver em sua ordenação atual.
Às vezes a primeiríssima impressão de um manuscrito qualquer
pode ser inesperadamente informativa. Os manuscritos não se
parecem uns com os outros. Na sala de leitura em Munique eu
podia ver pessoas consultando liturgia otoniana, lei italiana e livros
de horas franceses. Eu conseguia reconhecê-los pelo formato,
tamanho, aparência da escrita (sem precisar ler uma única palavra
do texto) e a escala e cor dos ornamentos. Muitos de nós fazem
essa distinção sem de fato ter de pensar muito. M. R. James (1862-
1936), que provavelmente manuseou mais manuscritos medievais
do que qualquer contemporâneo seu (foi o primeiro a catalogar o
Beato de Morgan, em 1902), transmite algo de seu processo
instintivo na sua história de fantasmas Canon Alberic’s Scrap-Book:
“Antes mesmo de remover o invólucro, Dennistoun começou a ficar
interessado no tamanho e formato do volume. ‘Grande demais para
um missal’, ele pensou, ‘e não tem o formato de um antifonário’…”.
Se eu visse, a alguma distância, alguém estudando Carmina
Burana, poderia pensar que estava examinando um breviário. Se
não for visto de muito perto, é de fato o que o manuscrito parece
ser. Um breviário era (e para muitos monges ainda é) a compilação
padrão de salmos e de textos para o ano inteiro de serviço na igreja,
recitado durante os ofícios diários, das matinas às completas. Era
usado pelo clero e membros das casas religiosas. Um breviário era
um livro de fácil portabilidade, às vezes chamado, por esse motivo,
de “Portiforium”, compacto e ordenado, massudo e grosso, muitas
vezes numa escrita bem informal (diferente da de um missal). Os
breviários mais antigos na Alemanha datam de cerca de 1200,
mesmo período da gênese de Carmina Burana. A semelhança não
se dá apenas no formato e no tamanho, mas também no layout das
páginas, com praticamente toda sentença começando com uma
capitular vermelha, como nos salmos, e a inserção aqui e ali de
linhas específicas de notação musical acima da escrita, como é
frequente nos breviários. Algumas das canções começam
efetivamente com as mesmas palavras de salmos que são
familiares nos breviários, como “Bonum est” e “Lauda”. Comenta-se
com frequência que os poemas de amor de Carmina Burana
seguem uma sequência que vai da primavera ao outono: a mesma
coisa faz o volume de verão de um breviário, da Páscoa até o último
domingo que antecede o Advento. Não sei se algum estudioso
moderno da literatura medieval ou da música secular observou
antes esse paralelo, mas o jogo de palavras visual decerto seria
notado por qualquer um no início do século XIII. Algumas gerações
mais tarde, o trovador franciscano Matfre Ermengau chamou sua
coleção de versos seculares de Breviari d’amor, fazendo igual
associação até mesmo no nome.
A atual página de abertura de Carmina
Burana, mostrando a Roda da Fortuna e o
acréscimo, na margem inferior, da canção “O
fortuna, velud luna”.
Reimaginando as folhas do manuscrito em sua ordem original,
percebem-se quatro grupos de texto claramente sequenciais. São
em geral classificados como: poemas morais e satíricos; canções de
amor, que começam com a introdução “Incipiunt iubili”, “Começam
canções” (isso está no fólio 18v); canções para beber e jogar; e
dramas religiosos. Tomemos um de cada vez.
Muitos dos poemas satíricos tratam dos eternos temas (que não
são exclusivos de nossa época ou de qualquer época) da corrupção
da moralidade em tempos modernos, tais como “Ecce torpet
probitas” (“Veja como a decência está moribunda”), e de como o
mundo não mais é governado pela virtude mas sim pelo dinheiro,
agora o maior dos reis sobre a terra, “In terra nummus rex est hoc
tempore summus”. Há poemas sobre a acerbidade da fortuna, entre
eles “Fortune plango vulnera” (“Canto as feridas do destino”) e o
famoso “O fortuna, velud luna” já mencionado, mas para o qual há
acréscimos nas margens em branco. Alguns versam sobre o
declínio do estudo, como os do fólio 44v:
Grande parte de Carmina Burana lembra, à
primeira vista, um breviário do XIII, com
capitulares em vermelho, textos, o que
parecem ser rubricas e trechos curtos de
neumas musicais.
O poema “Florebat olim studium”, sobre o
eterno tema do declínio do estudo em nossa
época, em contraste com a apreciação da
erudição no passado.
Florebat olim studium
nunc vertitur in tedium,
iam scire diu viguit,
s[e]d ludere p[re]valuit
Iam pueris astutia
contingit ante temp[or]a,
qui p[er] malivolentiam.
excludat sapientiam…

(“A erudição floresceu um dia, agora se tornou tédio; por muito


tempo o conhecimento era apreciado, mas agora se prefere o jogo.
Agora a astúcia domina o garoto antes do tempo, e por
malevolência elimina a sabedoria…”)
Há um fascinante texto que zomba do Evangelho, começando no
fólio 11r, com o título “Ewangelium” em vermelho (o “w” é da
ortografia em alemão), cuja intenção é parecer à primeira vista um
trecho normal do Evangelho de São Marcos lido num breviário ou
num missal, até se perceber que “marcos” se refere à moeda,
marcos de prata, “INITIUM s[an]c[t]i ev[an]g[e]lii se[cu]nd[u]m
marcas argenti, In illo t[em]p[or]e dixit papa…”. É uma narrativa em
prosa difamatória sobre o papa e seus cardeais, que se recusam a
admitir quem quer que seja a não ser que pague enorme quantia
pelo privilégio. O texto é quase todo formado por 31 citações
autênticas da Bíblia latina que foram reunidas totalmente fora de
contexto, recortadas e coladas das palavras das Epístolas,
Evangelhos, Jó, Salmos, Sofonias, Atos, Jeremias, Deuteronômio, e
assim por diante. Isso me faz lembrar um sermão de caçoada que
um ordinando no Knox College uma vez me recitou tarde da noite,
que começava: “Veja, eis que chegaram dois homens sábios, e seus
nomes eram Adão e Eva, e eles saíram ao campo para semear, e
caíram sobre uma mulher fértil, e sua tribo ficou muito numerosa…”,
e havia muito mais (após várias cervejas acho que ainda consigo
me lembrar da maior parte), cujo humor depende de se conhecer a
Bíblia a fundo. Embora a sátira aqui seja uma rude crítica à cúria
papal, ela só é compreensível num contexto religioso.
As canções de amor formam a mais longa e mais famosa seção
de Carmina Burana. Há cerca de 188, dependendo de como são
divididas. Quase todas são copiadas como se fossem blocos
consecutivos de prosa (diferentemente das linhas em verso do
Arateia de Leiden, e do Chaucer de Hengwrt, onde cada verso
começa numa nova linha), e dificilmente se notam os padrões da
rima até que se começa a ler o texto em voz alta. Alguns poemas
descrevem os casos de amor da história, como o de Eneias e Dido,
mas a maior parte pretende relatar experiências pessoais de
encontros românticos ou de paixões não correspondidas. A maioria
começa com descrições dos tempos de primavera, quando os
pensamentos dos jovens se voltam para o amor. Isso era uma
convenção comum nas primeiras linhas da poesia secular medieval.
(A abertura dos Contos da Cantuária “Whan that Aprill…”, “Quando
naquele abril…”, era cômica, pois em vez de amor, como o leitor do
século XIV esperaria em abril, os heróis variegados de Chaucer
desejam, em vez disso, a peregrinação.) Em Carmina Burana há
muitas donzelas pastorais em prados ensolarados e impudentes
rapazes buscando oportunidades ou em anseios vãos. Um bom
exemplo abre-se no meio do fólio 63v e termina no alto da página
seguinte:
Imitação satírica do Evangelho, “Ewangelium”,
formada por frases bíblicas autênticas
reunidas de modo que constituem uma sátira
sobre a corrupção da corte papal.
Abertura da canção “Vere dulci mediante”,
sobre o encontro romântico do escritor com
uma bela pastora na doce época da
primavera.
Vere dulci mediante,
non in maio, paulo ante,
luce solis radiante,
virgo vultu elegante
fronde stabat sub vernante,
canens cum cicuta.
Illuc veni fato dante,
nimpha non est forme tante,
equi pollens eius plante,
que me viso festinante
grege fugit cum balante
metu dissoluta…

(“No meio da doce primavera, não em maio, mas um pouco antes


[isso é uma conjectura, mas é aceita, pois o manuscrito na realidade
diz ‘non in malo’, que faz menos sentido], quando brilhava um sol
radiante, e uma donzela de belo rosto sob verdejante folhagem
tocava uma flauta, lá cheguei levado pelo destino. Não há ninfa com
tal beleza, ou cujo pé desnudo se equipare ao dela. Quando ela me
viu chegar pressuroso [mais uma conjectura, pois o escriba
escreveu ‘que me iusto festinante’], ela fugiu com o rebanho a balir
[evidentemente era uma pastora], tomada de medo…”) No decorrer
dos versos seguintes ele a alcança, oferece-lhe um colar que ela
desdenha, mas assim mesmo ele a sujeita contra o solo, a beija, ou
mais do que isso, e depois a única preocupação dela é que seu pai
e seu irmão jamais o saibam, nem, em especial, sua mãe, a qual,
diz a garota, é pior que uma cobra (“angue peior”). Considerando
como são as canções populares (e as experiências adolescentes),
isso é bem normal.
Uma peça literária de muito maior qualidade é o grande poema
que começa no fólio 23r:
Canção para beber, “In taberna quando
sumus”, a página mais manchada pela
umidade do manuscrito, talvez devido ao uso
efetivo na taberna.
Dum Diane vitrea
sero lampas oritur,
et a fratris roesea
luce dum succenditur,
dulcis aura Zephiri
spirans omnes etheri
nubes tollit, sic emollit
vi chordarum pectora
et immutat cor quod nutat
ad amoris pignora…

É a lua se elevando no crepúsculo, iluminada pelo sol poente:


“Quando a lâmpada de cristal de Diana tarde se eleva e é
incendiada pela luz cor-de-rosa de seu irmão, o doce alento que
sopra no vento do oeste carrega todas as nuvens dos céus, e assim
amacia também as almas com o poder de suas cordas musicais e
transforma o coração que cambaleia nos empenhos do amor…”. É
um poema sobre mergulhar suavemente no sono, após as lides do
amor. Os olhos de poeta cerram-se ao som de rouxinóis e ao
flutuante aroma de pétalas de rosa, sob uma árvore. Diga o que
quiser sobre a música de Carl Orff, mas isso é lindo.
Com as canções para beber somos sacudidos e despertados com
o espocar das canecas de cerveja ou o estalar das calças de couro.
Há canções famosas como “In taberna quando sumus/ non curamus
quid sit humus…”, “Quando estamos na taberna não nos
preocupamos com a natureza da terra…” e sim com o dinheiro para
pagar a bebida: um trago pelos cativos, três pela vida, quatro por
todos os cristãos, cinco pelo mortos, seis pelas irmãs sensuais, sete
pelos soldados da floresta, oito pelos irmãos travessos, nove pelos
monges espalhados, dez pelos marinheiros, onze pelos
contendores, doze pelos penitentes, e treze pelos viajantes; e assim
por diante, cada vez mais inebriante. Essa canção está no fólio 87v
do manuscrito, que está muito manchado de umidade; talvez tenha
sido usado na taberna. Outras canções falam de jogos de aposta
(“Tessera, blandita fueras michi…”, “Dados, vocês foram gentis
comigo [uma vez]…”) e de xadrez (“Qui cupit egregium scachorum
nosce ludum…”, “Quem é que quer conhecer o famoso jogo de
xadrez…”, na verdade uma muito precisa explicação em verso dos
movimentos das peças no tabuleiro de xadrez). Uma das canções
mais longas começa com “Cum in orbem universum…”, a injunção
nas escrituras que insta a sair para o mundo (Marcos 16,15), mas
que aqui se transforma numa chamada a todos os descontentes da
Europa para que desafiem as regras e se juntem à vida jubilosa e
descuidada da estrada, comendo, bebendo e jogando. Foliões são
convocados de todos os pontos cardeais — italianos, bávaros,
saxões, austríacos.
O quarto grupo de textos em Carmina Burana compreende dramas
religiosos. Estes despertam interesse de estudiosos diferentes
daqueles que se interessam por canções seculares, pois são
devocionais. Esses textos são os mais tardios predecessores
medievais do teatro moderno. Conhecem-se peças litúrgicas do
início do século X em diante, baseadas em temas das mais
importantes festas do ano na Igreja, inclusive os dias dos santos. O
primeiro drama aqui é uma peça de Natal, tradição que ainda
sobrevive hoje em dia, ao menos em pré-escolas. O texto no Ludus
de nativitate domini no manuscrito de Carmina Burana começa no
fólio 99r com orientações para encenação no palco, em vermelho. É
muito gráfico e fácil de visualizar num palco. Requer um grande
elenco. Santo Agostinho está sentado em frente a uma igreja
ladeado por Isaías, Daniel e outros profetas do Antigo Testamento.
O arquissinagogo (ou sumo sacerdote) entra pela esquerda, junto
com mais judeus. Isaías canta: “Ecce virgo pariet sine viri semine/
per quod mundum abluet a peccati crimine…” (“Vejam, uma virgem
dará à luz sem a semente de um homem, com o que o mundo será
purgado da mancha do pecado”, mais ou menos o que está em
Isaías 7,14). Daniel canta também, numa advertência, “O iudea
misera, tu cadit unctio…”, quanto aos judeus estarem no escuro. A
Sibila Eritreia aponta para uma estrela e a interpreta como um signo
de que o salvador do mundo nascerá da concepção de uma virgem.
Aarão entra e coloca seu cajado florido no altar, o único que floresce
entre os doze cajados das tribos de Israel (cf. Números 17,8), e
também canta. Balaão chega montado num burro — a plateia devia
adorar esse lance — e relata que uma estrela surgirá de Jacó (cf.
Números 24,17). O arquissinagogo bate o pé e alega a
implausibilidade lógica disso, dizendo aos judeus que um homem
não pode descender de uma virgem mais do que um camelo pode
descender de um boi. Eles todos levam a discórdia a Agostinho, o
qual determina que as profecias não podem estar erradas. O
arquissinagogo resmunga e balança a cabeça, sem estar
convencido. Entra então o arcanjo Gabriel junto com Maria e
anuncia o iminente nascimento. Aparece uma estrela, e o coro canta
“Hodie xpistus natus est” (“Hoje nasceu o Cristo”, a antífona das
vésperas no dia de Natal). Chegam os três reis e discutem o
significado da estrela com o rei Herodes, que é depois
maliciosamente aconselhado pelo arquissinagogo (mais humor
aqui). Os pastores entram em controvérsia com o diabo quanto à
veracidade das notícias. Todos convergem em torno da Criança no
estábulo em Belém. Herodes ordena a morte dos Santos Inocentes.
Ele será mais tarde devorado vivo por vermes ao tombar do trono, e
demônios levam seu corpo (aplausos da audiência). José leva Maria
e a Criança para a segurança no Egito. Há momentos em que isso
não difere muito de uma pantomima cristã moderna.
O Ludus de nativitate domini, texto de uma
peça sobre o Natal, mostrando instruções de
palco e as canções de abertura.
Outras peças aqui são sobre o rei do Egito durante a estada da
Sagrada Família lá e sobre Pôncio Pilatos. O que se tornou depois,
quando musicado por Orff, uma atrevida canção alemã sobre uma
garota de programa pedindo ruge a um comerciante para pintar o
rosto (“Chramer, gip die varwe mier…”) é, na verdade, parte da peça
sobre Pilatos e é cantada, no manuscrito, por santa Maria
Madalena; ocorre no fólio 107v.
O curioso quanto à obrigação de usar luvas brancas na sala de
leitura — você vai pensar que estou obcecado nisso — é que a esta
altura elas ficaram de fato sujas, depois de receberem o equivalente
a oitocentos anos de poeira grudada nas páginas, mesmo eu tendo
tido o extremo cuidado de tocar apenas nos cantinhos das margens.
Ao invés de eu sujar o manuscrito com minha mão, muito ao
contrário, a transferência de sujeira ocorreu no sentido inverso. Por
outro lado, as luvas agora escurecidas tornam-se, com certeza, um
perigo, caso uma delas toque em páginas limpas. Há um triste
adendo a fazer a tudo isso. Com muito cuidado levei as luvas
manchadas por Carmina Burana para casa, como um precioso
souvenir, minha esposa as encontrou e, chocada, levou-as direto
para lavar.
O manuscrito tem oito figuras, habilmente desenhadas, mas
coloridas sem capricho. Vamos examiná-las na ordem em que
aparecem, que não é a exata sequência original. Na atual página de
abertura está a famosa Roda da Fortuna, girando inexorável no
sentido do relógio. À esquerda há um jovem agarrado ao aro da
roda enquanto vai subindo levado por ela, com a palavra “regnabo”,
“Eu governarei”. Quando chega ao topo, ele se torna um rei,
“Regno”, “Estou governando”; à direita ele cai da roda e perde a
coroa, “regnavi”, “Eu governei’; e embaixo ele jaz estatelado, “sum
sine regno”, “não tenho reino”. A roda com seis raios é um círculo
perfeito, com cerca de sete centímetros e meio de diâmetro, mas
não há sinal de um orifício feito por um compasso no centro, como
nas órbitas desenhadas no Arateia de Leiden, e o perímetro talvez
tenha sido desenhado em torno de um disco, da borda de um copo
ou de um jarro. A figura central sentada na roda é interessante.
Sempre é descrita como a representação da própria Fortuna, mas
notam-se duas características estranhas. Primeira, a figura não está
efetivamente fazendo girar a roda de uma posição dela
independente, mas na verdade está sentada dentro dela, estando
assim, supostamente, sujeita também às reviravoltas do destino.
Mais estranho ainda, a figura parece ser de um homem, com a
pronunciada sombra de uma barba e de uma protuberância sobre o
lábio superior. A fortuna, que ficou famosa na Consolação da
filosofia de Boécio (c. 480-c. 524), invariavelmente é feminina.
Olhando para essa figura, de repente me dei conta de que ela
decerto é do próprio rei em exercício em sua maturidade, usando a
mesma coroa que usa sua pequena figura no topo, e envolto no
mesmo manto verde e branco que usa quando cai despencando, à
direita. Essa, que é talvez a mais reproduzida imagem da Fortuna
em toda a arte medieval, não representa absolutamente a Fortuna,
que não aparece em nenhum lugar da figura. Fomos todos iludidos
pelo poema “Ó Fortuna” da margem inferior, que de qualquer
maneira é um acréscimo tardio.
O grande selo de Frederico II, imperador do
Sacro Império Romano de 1220 a 1250, o qual
provavelmente serviu de modelo para a figura
sentada na Roda da Fortuna em Carmina
Burana.
Florestas e bosques como criados por Deus,
com pássaros em cima e animais embaixo,
inclusive a lebre, o veado, o cavalo e o leão.
Além disso, a fonte da imagem é provavelmente identificável e
com certeza era masculina. Os historiadores da arte devem ter
notado (embora eu não me lembre de ter visto menção a isso em
nada do que li) que a figura aqui coroada está modelada de acordo
com a imagem de um rei entronado que era comum no anverso de
um selo real ou de uma bula imperial medievais. Entre todos os
grandes selos da Europa na época, o mais parecido em sua
composição é o de Frederico II como imperador do Sacro Império
Romano, que ele se tornou em 1220. O desenho e o selo do
imperador são quase exatamente do mesmo tamanho. Ambos
mostram o mesmo joelho esquerdo projetado para a frente, os
braços erguidos e as dobras balouçantes das roupas que pendem
do pescoço. A coroa e o cabelo são quase idênticos. Se a figura foi
de fato copiada diretamente de uma carta régia de Frederico II, isso
pode localizar a produção do manuscrito em alguma instituição
importante o bastante para ter recebido ou ter tido acesso a uma
carta régia imperial, e, o que é mais importante, sua data não
poderia ser anterior a 1220.
A segunda figura preenche a página inteira do fólio 64v. Mostra
duas cenas numa mata verdejante. É certamente a candidata
primordial a ser a mais antiga paisagem pura em toda a arte
medieval. Em geral se assume que representa a primavera, cenário
de muitos poemas de amor, mas isso também é um possível erro.
Um poema ao lado começa com: “Ab estatis floribus amor nos
salutat…”, “Das flores da primavera, o amor nos saúda…”. A figura
apresenta-se em dois registros. No nível mais alto, a floresta está
cheia de pássaros. Na divisão de baixo, a floresta inclui animais,
uma lebre toda encolhida, um veado, um cavalo empinado, uma
criatura sobre a vegetação rasteira (talvez um cão de caça) e um
leão. A clara separação dos pássaros dos animais é reminiscente
das miniaturas sobre os ciclos da criação nos saltérios românicos e
nos bestiários, pois, segundo o Gênesis, as árvores foram criadas
no terceiro dia, as aves no quinto e os animais somente no sexto. A
inclusão de um leão aqui é muito mais apropriada a um Jardim do
Éden do que a um familiar dia de primavera nos bosques alemães.
De fato, há dois poemas no fólio 56r que listam, o primeiro, todas as
aves existentes na natureza (gavião-da-europa, capão, cegonha,
pica-pau, pega, abelharuco, andorinha, íbis, rola, coruja, gralha,
abutre, papagaio, pomba, pombo-torcaz, corvo, poupa, papa-figo,
perdiz, pintarroxo e muitos outros), e o segundo, os animais,
começando com o leão, como também fazem os bestiários, e
incluindo “leopardus” (explicado como “Liebart”, em alemão),
“elephantes” (em alemão, “Elephant”) e “ursos” (“Ber”), e outros. As
cenas no bosque são representações da natureza como criada por
Deus, e não simplesmente de uma primavera pastoril da Idade
Média.
As duas ilustrações seguintes tratam mais explicitamente do amor.
A do fólio 72v é longa e estreita, e é preciso virar de lado o
manuscrito para ver um homem jovem e alto vestido de vermelho
oferecendo flores a uma moça num vestido longo verde, com uma
faixa vermelha e branca amarrada na cintura. A linha de texto
imediatamente acima começa: “Suscipe flos florem quia flos
designat amorem…” (“Flor, receba uma flor, pois uma flor representa
o amor…”), tema ainda explorado por floristas no dia dos
namorados. A Virgem Maria segurando uma flor tornou-se um tema
distintivamente alemão na iconografia religiosa do século XIII. A
figura no fólio 77v é a respeito de amor condenado e de traição.
Também está em dois registros, que, no entanto, não formam uma
sequência narrativa. Em cima, Dido encontra Eneias nos arredores
de Cartago, de uma janela no alto ela o vê partir, e depois se
apunhala e cai das ameias numa fogueira. Embaixo, Eneias e seus
companheiros reúnem-se na praia, são levados por uma pequena
embarcação para seu navio, e lá Eneias posta-se na proa quando
ele parte navegando.
Um casal de namorados mostrados de lado,
com um jovem rogando à moça que aceite
flores como símbolo do amor.
Abertura das canções para beber, Potatores,
com homens bebendo num bar e imitando a
bênção sagrada de um cálice na missa.
As quatro figuras restantes ilustram pessoas bebendo e jogando.
No fólio 89v há outra miniatura longa e estreita, que mostra três
homens bebendo e um quarto fazendo o sinal da cruz em cima de
um copo, imitando uma missa. Está acima de uma canção que
começa: “Potatores exquisiti…” (“Excelentes bebedores…”). Duas
mesas de jogos nas quais homens lançam dados são mostradas no
fólio 91r. Isso fica acima do poema “Tessera blandita fueras…”,
citado acima. Na página seguinte são mostrados dois homens
jogando gamão, enquanto outro traz uma bebida. Sem dúvida a
cena se passa numa taberna. A figura final mostra um passatempo
que hoje poderíamos considerar cerebral e recomendável, e não um
vício frívolo: duas pessoas jogando xadrez. Está acima do poema
com as regras do jogo, também já mencionado. Muito incomum na
arte, o tabuleiro na ilustração é apresentado com uma disposição
totalmente verossímil das peças. Eu a experimentei em meu próprio
xadrez. Sou capaz de chegar exatamente a essa posição das peças
em quinze lances, começando com as pretas. Quem fez esse
desenho sabia jogar xadrez e representou um momento num jogo
factual.
Embora as figuras sejam todas muito bem desenhadas e da
mesma data geral do texto escrito, é bastante claro que foram
concebidas depois, num manuscrito que não foi projetado
originalmente para ser ilustrado. Elas ocorrem em lugares estranhos
no texto, às vezes no final do grupo de poemas que tratam do tema
nelas representado. Isso não é normal num manuscrito medieval.
Os estranhos formatos dos espaços em que elas entram não podem
ter sido intencionais. O perímetro cruciforme do espaço ocupado
pela miniatura da Roda da Fortuna está comprimido e muito
malformado ao pé da ilustração e se sobrepõe à primeira linha dos
neumas que lhe ficam abaixo. O tema da Fortuna casa com o da
canção “Ó Fortuna” na mesma página, mas a canção é um
acréscimo na margem e também não está na íntegra; não fica óbvio,
entre figura e canção, o que sugeriu o quê. A imagem dos dois
namorados está tão comprimida que teve de ser inserida na
horizontal. As cenas de Dido e Eneias, no entanto, não preenchem o
espaço disponível. A ilustração com homens bebendo se sobrepõe
não apenas à última linha do texto acima dela como também a uma
parte da capitular vermelha “P”, abaixo. A única explicação é que as
figuras, como muitas das canções acrescentadas nos espaços em
branco e nas margens inferiores, eram refinamentos que não tinham
sido planejados de início quando a cópia começou a ser feita, ou
não estavam presentes no manuscrito que servira de modelo. O
significado disso é que o manuscrito não era uma duplicata rotineira
de um exemplar semelhante e abrangentemente ilustrado, mas uma
obra em andamento que os escribas iam adaptando e aprimorando
à medida que prosseguiam. Em resumo, essa é a antologia original,
e não uma cópia.
Qual foi, então, a fonte dos que compilaram os poemas e as
canções? Essa pode ser a coleção única, pela primeira vez reunida,
mas as peças individuais foram selecionadas de existências
anteriores. Especialistas em música e literatura medievais acabaram
entrando num verdadeiro frenesi de especulações sobre as origens
e datas de poemas, discutindo judiciosamente entre si. São águas
perigosas na academia, nas quais reluto muito em mergulhar até
mesmo o dedão do pé. Scott Schwartz, um alaudista praticante,
chama isso de “Carmina Piranha”, com boas razões. Quase todos
os textos, quando é possível encontrá-los alhures, datam do século
XII, uma geração anterior à do manuscrito que temos aqui. Algumas
peças citam datas específicas. Um poema descreve a Paz de
Veneza entre o papa Alexandre III e Frederico Barbarossa no verão
de 1177, começando com: “Anno xpisti incarnationis…”. Outra se
refere à derrota dos franceses nas Cruzadas de 1187, e lamenta a
queda de Jerusalém diante de Saladino no ano seguinte: “Heu, voce
flebili cogor enarrare/ facinus quod accidit nup[er] ultra mare/ quando
Saladino concessum est vastare/ terram quam dignatus est xp[istu]s
sic amare…”, (“Ah, em voz lacrimosa tenho de relatar o crime que
ocorreu recentemente no além-mar, quando se permitiu que
Saladino devastasse a terra que Cristo pensou ser digna de [seu]
amor…”). Os versos relatam que os valentes cavaleiros cristãos na
batalha foram superados em número a uma razão de trezentos para
um. É fácil imaginar um trovador arranhando essa canção pelas
cortes da Europa, em parte um boletim de notícias, em parte um
romance de heroísmo. O de data mais recente parece ser o poema
“Dum philippus moritur…”, no fólio 52r, que lamenta a morte de
Filipe da Suábia, filho mais moço de Barbarossa, assassinado em
Bamberg pelo ciumento conde palaciano da Baviera. Isso aconteceu
em 21 de junho de 1208.
Poema comemorativo da devastadora derrota
dos franceses nas Cruzadas de 1187, “Heu,
voce flebili…”, mencionando Saladino como
vitorioso.
Apenas em um dos poemas consta o nome de seu compositor,
“Versa est in luctum cythara walteri…”, “A cítara de Walter está
voltada para o luto…” (alusão a Jó 30,31), sobre o grande declínio
da religião e da lei. Um dedo que aponta desenhado na margem
interna do manuscrito recomenda com aprovação esse verso
edificante, que está no fólio 51v. Aceita-se que seu escritor tenha
sido Walter de Châtillon (1135-1204, vitimado pela lepra), teólogo
francês e autor de uma epopeia popular sobre Alexandre, o Grande.
Outros versos são atribuídos com maior ou menor certeza a Hugo
d’Orléans (c. 1160-1236), de Paris e alhures, apelidado “Primas”; a
Pedro de Blois (c. 1130-1212), advogado do clero e servidor público,
secretário de Henrique II da Inglaterra; a Filipe, o Chanceler,
chanceler das escolas da Catedral de Notre-Dame de Paris a partir
de 1217; ao enigmático “Arquipoeta”, como chamava a si mesmo,
membro da casa de Rainald de Dassel, arcebispo de Colônia de
1156 a 1165; e a outros. Uma questão muito discutida é se em
Carmina Burana estariam incluídos versos de Pedro Abelardo
(1079-1142), carismático filósofo e primeiro professor realmente
excepcional nas escolas de Paris. Candidato a ser um desses
poemas é o do fólio 68r, que começa:
Hebet sydus leti visus
cordis nubilo,
tepet oris mei risus,
carens iubilo…
O poema “Hebet sydus leti visus”, que
descreve a cruel separação de um par de
amantes, possivelmente composto por
Abelardo sobre a perda de Heloísa.
(“A estrela feliz de meu rosto é turvada pela nuvem de meu
coração, o sorriso de minha boca torna-se frio, carente de
alegria…”) É o tocante lamento de um(a) amante cruelmente
banido(a) da companhia de sua(seu) amada(o), situação na qual o
próprio Abelardo se encontrou em 1118, para sempre separado de
Heloísa, tanto por decisão judicial quanto por uma castração
indizivelmente cruel. Essa atribuição se articula num jogo de
palavras no qual o autor descreve seu amor como tendo “um nome
como o de Febo”, “cuius nomen est a phebea” (o que é uma
correção no manuscrito), que ilumina o mundo. Febo era o deus do
Sol, helios em grego, que soa um pouco como Heloísa. É uma
plausibilidade um tanto forçada, mas é possível, como uma espécie
de brincadeira íntima entre amantes instruídos nos clássicos.
Orff deduziu que Carmina Burana era uma coleção de canções
informais de menestréis errantes e goliardos (a palavra deriva do
nome de Golias e se refere àqueles que estão além das margens da
sociedade), mas, onde se podem identificar as fontes, elas são
frequente e inesperadamente escolásticas e até mesmo clericais. O
manuscrito é permeado de alusões clássicas e bíblicas. No capítulo
anterior observamos a quebra do antigo monopólio do estudo que
uma vez fora dos mosteiros beneditinos e o surgimento de novas
ordens de clérigos, como a dos cônegos agostinianos (que incluíam
os vitorianos, de são Vítor), que viviam em cidades e interagiam
com o mundo secular, o que os primeiros monges tentavam não
fazer. No século XII houve grandes mudanças na sociedade e nos
níveis de alfabetismo. As catedrais urbanas, também equipadas
com cônegos e não com monges, também se tornavam cada vez
mais centros de estudo, alcançando novas audiências. Escolas nas
catedrais francesas como as de Chartres, Orléans, Montpellier e
Laon atraíam estudantes devido totalmente à reputação daqueles
que na época lá ensinavam. A Roda da Fortuna fez proliferar os
mestres, mas também os dispersou. Os mais duradouros foram os
de Paris, capital da França e sede da corte real. Lá Pedro Abelardo
e Pedro Lombardo (m. 1160) ensinavam nas escolas de Notre-
Dame, e Hugo de são Vítor (m. 1142) e seus sucessores atraíam
estudantes para a escola na margem esquerda do Sena, na abadia
agostiniana de São Vítor, onde pode ter sido criado o Saltério de
Copenhague, a vinte minutos de caminhada a sudeste da catedral.
Essas e outras salas de estudo aos poucos se aglutinaram, no
decurso de cem anos, para se tornarem, na primeira metade do
século XIII, a Universidade de Paris.
Era muito internacional. Estudantes convergiam de todas as partes
da Europa. Uma paz relativa e economias estáveis possibilitavam
isso. A língua não era problema, pois todo o ensino e as conversas
intelectuais se davam em latim. Durante a maior parte do século XII,
antes de as universidades se tornarem entidades corporativas,
muitos pretensos estudantes provavelmente mudavam, com
oportunismo, de uma escola urbana para outra. Às vezes podem ter
ido atrás de mestres que eram, eles mesmos, itinerantes. Ao voltar
para casa, um estudante poderia estabelecer sua própria escola. Na
medida em que esses eruditos itinerantes foram uma realidade, eles
pertencem a esse período. Sem dúvida compartilhavam a natureza
romântica e alto-astral de todo jovem que está fora de casa pela
primeira vez, mas eles não eram, em geral, rebeldes ou anarquistas.
Muitos eram clérigos, pelo menos de ordens menores, visando a
uma das novas carreiras na política ou na administração religiosa, e
alguns eram muito instruídos.
Um exemplo, entre muitos, é o de Pedro de Blois, que primeiro foi
para as escolas da catedral em Tours, na década de 1140, onde
estudou literatura e retórica com Bernardo Silvestre, depois seguiu
para Bolonha, na Itália, para estudar lei romana com Umberto
Crivelli e outros, e finalmente, na década de 1160, foi para Paris,
para o estudo da teologia, onde subsidiou seu aprendizado
aceitando ele mesmo alunos. Depois se tornou sucessivamente
tutor do rei menino da Sicília, secretário do arcebispo de Rouen,
chanceler do arcebispo da Cantuária, arcediago de Bath, redator de
cartas para Henrique II, partícipe da terceira Cruzada, e por fim
arcediago de Londres. Já no final da vida, recebeu uma carta de um
velho amigo, agora monge na Abadia de Aulnay, pedindo que
evocasse memórias da juventude agitada que tinham passado
juntos. Pedro de Blois respondeu que achava mais apropriado
deixar de fora as canções mais lascivas (“omissis ergo lascivioribus
cantilenis”) e em vez disso inseriu uma copla escrita no que ele
chamou de “seu estilo mais maduro”, para animar seu melancólico
amigo e amenizar seu tédio. Por comparação com o estilo dessas
canções, meia dúzia das de Carmina Burana são agora comumente
atribuídas a Pedro de Blois, inclusive “Dum prius inculta/ coleret
virgulta/ estas iam adulta…”, no fólio 36r (“Quando o verão, agora
pleno, ocupa os arbustos que antes estavam nus…”). Narra como o
cantor espia, debaixo de uma limeira, uma linda donzela chamada
Fílis, e ele a segue pelo prado, levado pela esperança. Quando em
sua juvenil inocência ela resiste a seus avanços, ele a possui à força
(“me totum toti insero”, e isso, francamente, é estupro) e depois
sofre as agonias de um amante exausto. Isso, em qualquer
definição, é uma lascivia cantilena. Não é necessariamente o
registro de experiência factual na vida de Pedro de Blois, ao que
parece um clérigo celibatário, mas uma canção cheia de
fanfarronada e imaginação juvenis, que sem dúvida seria cantada
sob estridentes vivas e aplausos. O nome Fílis é clássico, ela é a
nora de Teseu, conhecida no século XII das Heroides, de Ovídio.
Isso situa convenientemente a cena num aceitável mundo ficcional.
O verso clássico era muito conhecido pelos eruditos do século XII.
A Eneida de Virgílio foi a fonte das canções sobre Dido e Eneias.
Não era preciso explicá-las, pois se supunha que todos estivessem
familiarizados com essas histórias. Ovídio tem o nome mencionado
diversas vezes em Carmina Burana. Sua Ars Amatoria e alguns
epigramas de Marcial eram quase tão explícitos e obscenos quanto
qualquer coisa na Carmina Burana, e sua presença era comum nas
bibliotecas monásticas medievais. (Catulo não foi amplamente
descoberto até o século XIV.) Havia uma diferença importante. O
verso clássico é escrito numa métrica quantitativa formal, com as
palavras arrumadas em padrões tradicionais e recorrentes de
sílabas longas e curtas, que têm de ser aprendidas. A maioria dos
poemas na Carmina Burana está numa simples métrica rítmica,
como a maior parte do verso moderno, comumente com rimas no
fim de cada linha ou até mesmo dentro das linhas. O padrão
provavelmente se desenvolveu para a composição de hinos, gênero
que era popular no século XII. É um formato que se presta à batida
de tambores e aos ritmos de marcha ou de dança, o que foi
explorado dramaticamente nas composições de Orff, em que as
rimas são tão insistentes que soam como repetição. Foi sobretudo a
impregnante métrica das canções o que deve tê-las disseminado ao
longo das rotas de comércio e nos repertórios de cruzados,
cortesãos e estudantes que viajavam pela Europa no século XII.
Poemas que talvez tenham começado como declarações privadas
de paixão ou ensinamento moral, mais regionais ou mais sérias,
tornaram-se universais em sua incessante recitação ao longo da
estrada ou após o jantar nas hospedarias. Essa ampla migração de
literatura oral nos diz muito das condições e das rotas de viagem
naquela época. Também pode explicar certa mixórdia de alguns
textos do manuscrito, que muitos estudiosos desdenham por terem
sido reunidos sem nenhum cuidado pelo escriba. Qualquer texto
transmitido de memória vai acumular pequenas variantes ao longo
do percurso, e o compilador da Carmina Burana pode de fato ter
sido meticulosamente consciente ao registrar o texto exato da letra
que chegava aos seus ouvidos.
Como o latim era a língua de letramento internacional, versos
compostos na França eram igualmente compreendidos em Londres,
Colônia, Roma ou Salzburgo, ao menos por homens instruídos.
Contudo, quando os poemas perderam seu contexto, a ponto de
serem reduzidos a canções de dança na qual participavam
mulheres, às vezes se acrescentavam versos extras em língua
alemã. Muitos dos primeiros registros de línguas vernaculares da
Europa estão associados a mulheres, que na época eram em geral
menos latinizadas que os homens. Cerca de quarenta dos poemas
de amor de Carmina Burana têm refrões em alemão, na mesma
métrica do latim. Eram provavelmente fornecidos quando as
canções eram usadas em danças de roda, com as duas diferentes
línguas sendo cantadas ao mesmo tempo por vozes masculinas e
femininas. Cerca de uma dúzia de outros poemas no manuscrito são
parcial ou totalmente em alemão. Isso ocorre demasiado cedo,
considerando o tempo de existência de qualquer literatura
vernacular. Alguns versos em alemão na Carmina Burana são
dirigidos a mulheres, sem dúvida enunciados por admiradores
supondo que sua corte teria mais sucesso se a dama
compreendesse o que lhe estava sendo pedido. Exemplos disso são
“Süziu vrouw min…”, “Minha doce mulher…”, implorando a ela que
desfrutasse dos dardos de Vênus, e “Selich wip, vil süziz wip…”,
“Adorável dama, mui doce dama…”, descrevendo como o escritor
lhe enviara uma carta de amor. Outros são compostos para as
vozes das próprias mulheres, dirigindo-se a homens. Há um poema
encantador no fólio 72r, no qual uma mulher sussurra a seu amante,
que secretamente ficou com ela a noite toda, “Ich sich den
morgensterne brehen…” (“Vejo raiar a estrela matutina…”),
instando-o a ir embora sem ser visto. Lembra Shakespeare, com
Julieta dizendo a Romeu no alvorecer: “O, now be gone! More light
and light it grows” (ato 3, cena V). Numa famosa estrofe de cinco
versos em alemão na Carmina Burana, o protagonista oferece de
bom grado sacrificar a riqueza do mundo inteiro para jazer em bem-
aventurança nos braços da rainha da Inglaterra. Na verdade, o
escriba escreveu originalmente no manuscrito “rei da Inglaterra” —
“chunich van engellant”—, que foi riscado e depois alterado para “a
rainha” (“die chunegin”). A mim parece, na realidade, que faz mais
sentido isso ser desejo de uma mulher, falando alemão. A
formidável Leonor de Aquitânia (c. 1122-1204), rainha da Inglaterra
de 1152 a 1189, foi um improvável objeto da fantasia masculina,
mas seu filho, o galante Ricardo Coração de Leão, era solteiro e
estava nas proximidades, prisioneiro na Áustria de 1192 a 1194.
Essa hipótese proveria uma data e uma localização geral plausíveis
para a composição desse texto em alemão.
Versos em língua alemã no topo da página,
inclusive “Süziu vrouw min”, “Minha doce
mulher”, persuadindo-a ao amor.
É em geral aceito que o manuscrito de Carmina Burana não foi
compilado na própria Benediktbeuern, mas provavelmente um
pouco mais para o sul do que hoje é a Áustria, então parte de uma
Baviera maior. A escrita tem pronunciadas características
italianizadas, como é frequente em livros austríacos, e as páginas
lisas transmitem uma sensação no toque característica do sul,
diferente da textura mais acamurçada do pergaminho alemão. (É
uma avaliação impossível de ser feita a partir de uma fotografia, ou
usando luvas.) Se a figura na Roda da Fortuna é de fato baseada
num selo de Frederico II, como foi sugerido acima, o manuscrito não
pode ser anterior a 1220. No entanto, a escrita começa “acima da
linha do topo”, como dizem os paleógrafos. Isso exige uma
explicação. Antes de escrever uma página de qualquer manuscrito,
um escriba medieval costumava traçar uma grade precisa de linhas
para manter a escrita reta e ordenadamente circunscrita. Antes de c.
1230, o escriba escrevia a primeira linha do texto acima da linha
horizontal do topo. Após essa data, os escribas passaram a
escrever a primeira linha abaixo da linha do topo. Não sabemos por
que ocorreu essa mudança, exceto que foi parte de uma tendência
geral para uma condensação e uma limpeza no estilo gótico, mas
isso aconteceu extraordinariamente rápido, e com consistência, por
toda a Europa. Deve ter havido variações nas práticas locais, mas
como princípio básico, é um critério notavelmente útil para a datação
de manuscritos da primeira metade do século XIII. Com base nisso,
parece justificável atribuir a Carmina Burana uma data entre 1220 e
1230, talvez, com um pouco de flexibilidade, até o início da década
de 1230.
Alusões locais nos textos são consistentes com uma origem num
município do Tirol ou no ducado de Estíria (Steiermark), a leste do
Tirol. Uma canção, anteriormente citada, dá os nomes de estados
vizinhos como sendo de regiões da Itália, da Baviera e da Áustria
(Viena). Outra exalta a inigualável hospitalidade do preboste de
Maria Saal, identificável como Heinrich, designado bispo de Seckau,
na Estíria, em 1232, e alega-se com frequência que o manuscrito
pode ter sido compilado na corte episcopal de Seckau, talvez com o
patrocínio do predecessor de Heinrich, Karl, príncipe bispo de
Seckau de 1218 a 1231. Essa foi a conclusão tentada pelo grande
paleógrafo Bernhard Bischoff em seu ensaio sobre a edição fac-
similar de 1967. Desde então, Georg Steer, da Universidade de
Göttingen, alegou num denso e exaustivo artigo em 1983 que o
dialeto preciso dos versos em alemão aponta mais para o oeste,
para a região entre o sudoeste do Tirol e o leste da Estíria. Usando
paralelos linguísticos que não tenho como negar ou confirmar, ele
sugere uma provável proveniência da casa agostiniana de Neustift,
logo ao norte de Brixen, fundada na década de 1140, entre
Innsbruck e Salzburgo, aproximadamente 88 quilômetros a sudeste
de Munique. Santo Agostinho, patrono da ordem, foi mostrado aqui
presidindo a peça sobre a natividade de Cristo.
Às vezes é sugerido, sobretudo a partir de uma indignada
perspectiva protestante, que Carmina Burana consiste meramente
de canções grosseiras para a casquinada irreligiosa de monges com
mentalidade obscena. Não era esse, absolutamente, o propósito
original. Uma comunidade agostiniana ou uma casa episcopal
deveria esperar ter de se envolver com as fraquezas do mundo
secular. Elas poderiam interpretar os poemas mais grosseiros como
alegóricos, ou até mesmo pastoris, sobre os pecados de modéstia
de pessoas laicas, como aqueles com que se deparavam todos os
dias ao ouvir confissões. No entanto, mais do que isso, deveríamos
considerar Carmina Burana como um produto daquela grande
mudança no século XII: de um estudo exclusivamente monástico à
migração do conhecimento para as ruas no lado de fora. Monges
liam livros devagar de uma ponta a outra, memorizando e
ruminando; os laicos e o clero secular, em contraste, consultavam
livros e buscavam informação. Isso é formidavelmente representado
em novos tipos de manuscritos. Nas décadas que antecederam e
sucederam 1200 encontramos uma massa de recentes
enciclopédias, antologias, florilégios, compêndios e sumários, junto
com destilações populares de conhecimento sobre temas
monásticos tradicionais, como teologia (Pedro Lombardo),
interpretação bíblica (a Glossa Ordinaria), história bíblica (Pedro
Comestor), lei canônica (Graciano) e, não menos importante, liturgia
(breviários e missais), todos eles novas formas de livro. Mesmo os
textos das Escrituras, até então aprendidos em estudos e
memorizações de uma vida inteira, foram reestruturados e divididos
em capítulos numerados, para facilitar a consulta. Era como se o
conhecimento antigo desaparecesse a olhos vistos. A frivolidade do
mundo moderno é tema recorrente em Carmina Burana. Lembremos
aquela observação inicial de que o manuscrito tem o aspecto de um
breviário, o que é relevante aqui. Eles são livros
impressionantemente semelhantes. Os versos e as canções eram,
de início, textos orais, como tinham sido, para os monges, os
salmos e as orações, e estes estavam agora sendo reunidos em
antologias unificadas e portáteis, abrangendo o que não mais se
sabia de cor. Muitos dos poemas em Carmina Burana tinham sido
transmitidos de forma oral durante mais de cem anos. O ímpeto
para registrá-los por escrito surgiu em parte da vontade de pessoas
como o amigo de Pedro de Blois de recapturar e gravar a alegria de
sua juventude distante (um desejo ainda bastante comum no
decorrer de gerações), mas sobretudo da nova moda de fazer o
levantamento e a documentação do mundo. O manuscrito é um
manual enciclopédico, uma antologia ordenada de verso secular e
culto, totalmente de acordo com o espírito religioso do início do
século XIII.
Versos em alemão, inclusive (na segunda
linha) o de uma mulher suplicando a seu
amante que deixe sua alcova, pois já vê
aparecer a estrela matutina.
Não há nada visível no manuscrito que nos mostre como ou
quando ele chegou posteriormente ao mosteiro beneditino em
Benediktbeuern. Se eu tivesse de adivinhar, diria que não foi
necessariamente antes do século XVIII, quando as bibliotecas
monásticas do sul da Alemanha se tornaram repositórios universais
de livros e serviam quase como coleções de referência públicas.
Quando a propriedade eclesiástica na Baviera foi secularizada em
1803, o responsável oficial por inspecionar Benediktbeuern foi
Johann Christoph, barão de Aretin (1773-1824). Ele escreveu que
encontrou lá um esconderijo com livros proibidos, os quais, ao
menos na interpretação protestante acima citada, podem ter incluído
canções consideradas inapropriadas para monges. Tem-se que
Aretin ficou tão encantado com o manuscrito que depois o levava
com ele — na verdade, como um padre leva um breviário — durante
o restante de seu encargo. Em 1896 a biblioteca de Benediktbeuern
foi transferida para a biblioteca estadual em Munique, e o próprio
Aretin tonou-se o bibliotecário principal.
Em outubro de 1843 o tomo da Carmina Burana esteve numa
exposição de tesouros da Staatsbibliothek quando foi visto por
acaso por Jacob Grimm (1785-1863), um dos dois irmãos
antologistas hoje mais conhecidos por coligir contos de fadas. Ele
voltou lá para examiná-la e persuadiu o então bibliotecário, Johann
Andreas Schmeller (1785-1852), a publicar uma edição do texto em
1847, que intitularam Carmina Burana, Lateinische und deutsche
Lieder und Gedichte einer Handschrift des XIII. Jahrhunderts aus
Benedictbeuern auf der K. Bibliothek zu München, título que acabou
sendo o nome moderno da antologia. Essa edição, com todas as
suas falhas, ainda é impressa, embora esteja academicamente
suplantada pelo muito maior texto em vários volumes editados por
Hilka Alfons e Otto Schumann e publicados de 1930 a 1970.
Em 1934, uma cópia da quarta edição do texto de Schmeller, em
Breslau, 1904, foi posta à venda por um vendedor de livros usados
em Würzburg, Helmut Tenner, do Frank’s Antiquariat, pelo módico
preço de 3,50 Reichsmarks, e foi encomendada pelo compositor
pouco conhecido Carl Orff, de Munique. O livro chegou em 29 de
março: “Um dia verdadeiramente memorável para mim”, relembrou
ele mais tarde; “eu o abri e logo na primeira página encontrei a
famosa descrição da ‘Fortuna com sua roda’ e embaixo estavam os
versos ‘O Fortuna/ velut luna/ statu variabilis…’. A figura e as
palavras me fascinaram”. Você e eu sabemos, só de olhar o
manuscrito, que essa de fato não era a primeira página, e que de
qualquer maneira o poema “Ó Fortuna” é acréscimo de um escriba,
mas Orff não sabia disso, nem se importava. Ele ficou cativado.
Começou logo a musicar as palavras. Adotou o título do livro de
Schmeller como sendo o do texto medieval. Uma semana depois
escreveu para seu amigo Michel Hofmann (1903-68), arquivista em
Bamberg, perguntando o que poderia significar “Burana”, pois não
conseguira achar a palavra em seu dicionário de latim. Hofmann
contou-lhe sobre o manuscrito na Staatsbibliothek, mas não há
evidência de que Orff manifestou interesse em vê-lo, ou mesmo em
usar a nova e melhor edição de seu texto por Alfons e Schumann.
Orff e Hofmann logo estariam mantendo uma correspondência
regular a respeito da cantata, que evoluía rapidamente, um
escrevendo a música e o outro aconselhando quanto ao texto.
Começaram a assinar como “Buranus” (Orff) e “Carminus”
(Hofmann). A composição foi enfim completada por Orff em agosto
de 1936 e a primeira apresentação teve lugar em Frankfurt, em 8 de
junho de 1937.
Produção de Carmina Burana, de Orff, no Württemberischer
Staatstheater, em Stuttgart, 1941, com a Roda da Fortuna no
fundo do palco.
Carl Orff (1895-1982), fotografado em 1938,
pouco após completar a partitura de sua
versão de Carmina Burana.

Não se pode olhar hoje em dia para a Munique de meados da


década de 1930 sem uma inferência política. Hitler chegou ao poder
em 1933. Em que medida a musicalização de Carmina Burana por
Orff é ou não uma peça consciente de propaganda nazista é uma
questão debatida a fundo. Em certo aspecto, é tudo que os nazistas
defendiam — um grande texto germânico medieval, único na
Europa, celebrando a juventude e as proezas masculinas, as
Cruzadas e o cavalheirismo, transformado num poderoso
espetáculo de massas com hipnóticas batidas de tambor e um ritmo
insistente. Por outro lado, embora Orff tivesse selecionado um
número descomunal de poemas em alemão, o latim foi visto com
suspeição e a originalidade da música foi recebida por alguns
nazistas como perigosamente moderna e estrangeira. Um crítico do
Reichsmusikkammer chamou-a, notoriamente, de “bayerische
Niggermusik”, “música de crioulos bávara”. A própria identificação
política de Orff era bastante ambígua. Para sua própria desonra,
aceitou, em 1938, reescrever a música de Sonho de uma noite de
verão, de Shakespeare, para substituir a de Felix Mendelssohn,
então difamado por ser judeu. Carmina Burana foi apresentada na
Alemanha durante a guerra, em Dresden, Essen, Colônia, Mainz,
Görlitz, Frankfurt, Göttingen, Hamburgo, Aachen, Münster, Munique,
e sem dúvida em outros lugares. A música e a apresentação, e não
as palavras do antigo manuscrito, certamente tinham captado o
espírito da época. Joseph Goebbels escreveu sobre Orff em seu
diário em 12 de setembro de 1944: “[…] Carmina Burana exibe uma
requintada beleza, e se pudéssemos fazer algo a respeito de sua
letra, a música seria de fato muito promissora. Vou chamá-lo na
ocasião mais próxima possível”. Até onde se sabe, esse encontro
nunca aconteceu. Depois da guerra, Carl Orff — e ele não foi
absolutamente o único a fazer isso — se reimaginou como um
opositor secreto do nazismo, alegando inocência, o que decerto é
falso. Quando Carmina Burana foi encenada pela primeira vez na
Grã-Bretanha no novo Royal Festival Hall, em junho de 1951, o
crítico musical do The Times descartou a ideia de que ainda tivesse
sensibilidade política, sendo “a simplicidade em si mesma — ritmos
de tum-tum, harmonizando em terças, melodias estróficas,
cervejarias alemãs ao ar livre e cantorias de estudantes…
ingenuamente teutônico”. Nunca nos ocorreu uma associação de
Carmina Burana com a Alemanha de Hitler ao ouvir a música tocada
em nossa classe no ginásio do King’s High School, quinze anos
depois, e a imaginamos como autenticamente medieval.
A composição musical de Carmina Burana figura hoje entre as
peças mais apresentadas de toda a música moderna. As quatro
notas de abertura de “Ó Fortuna” talvez sejam tão imediatamente
reconhecíveis quanto as da Quinta Sinfonia de Beethoven. Ouvindo-
a agora, fica claro que a música de Orff não tem absolutamente
nada a ver com uma autêntica canção medieval. As amostras de
notação musical original no próprio manuscrito não sustentam uma
possível relação com as amplas construções orquestrais criadas em
torno das palavras em meados do século XX. A edição e
reordenação dos versos para se adaptarem à música produziram
um texto totalmente diferente de qualquer coisa que tenha sido
cantarolada na década de 1100 por Walter de Châtillon ou Pedro de
Blois. Não obstante, as palavras de Carmina Burana, esse
compêndio com um nome exótico, agora chamado Munique, Clm
4660, inspecionável por leitores autorizados, entre os
Tresorhandschriften na sala de leitura da Staatsbibliothek, têm,
graças a Carl Orff, alcançado mais gente do que os medievalistas
jamais poderiam imaginar. Os números sem dúvida vão mudar por
completo ainda antes de estas palavras serem impressas, mas, no
momento em que são escritas, se você digitasse “Carmina Burana”
no campo de uma ferramenta de busca on-line, obteria por volta de
2,6 milhões de resultados; escrevendo “Livro de Kells”’, teria 1,18
milhão; “Très Riches Heures”, 100 mil; e “Horas de Spinola”, menos
de 6 mil. A Roda da Fortuna ainda tem suas surpresas.

* Conforme a encadernação atual, a sequência é a seguinte: i2, ii-vi8, vii6 [de 8, faltando
vii-viii (duas folhas após o fólio 48)], viii1 [de um número de folhas que se desconhece, uma
única folha restante (fólio 49)], ix7 [de 8, faltando vii (uma folha após o fólio 55)], x-xi8,
xii8+2 [um bifólio (fólios 78-79) inserido após v], xiii-xiv8, depois um caderno inteiro
faltando, xv8, xvi.6 As duas folhas descritas como ausentes após o fólio 48 são aquelas
que foram transferidas para o início, agora chamado caderno “i”.
** A ordem original dos cadernos, como acima numerados, teria sido uma vez vii+i, ii-vi, xiii,
xii, ix-xi, xiii-xvi, faltando pelo menos um caderno no início e outro entre os fólios 98 e 99.
Na numeração dos fólios, essa ordem teria sido: [com folhas faltando], 43-48, 1-42, 49, 73-
82, 50-72, 83-98, [um caderno faltando], 99-112.
9

As Horas de Joana de Navarra


segundo quarto do século XIV
Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145

Berchtesgaden fica no alto dos Alpes bávaros, num canto do


sudeste da Alemanha que se projeta para dentro da Áustria,
próximo a Salzburgo, a cerca de 56 quilômetros da provável origem
de Carmina Burana. Num ponto acima da cidade, região conhecida
como Obersalzburg, Adolf Hitler comprou um terreno no verão de
1933 e construiu uma casa que ele chamou de “o Berghof”, “o
Castelo da Montanha”, para ser um retiro seguro na montanha e um
posto de comando privado, e que dava para um dos mais belos
cenários do mundo. Casas nas adjacências foram adquiridas por
Joseph Goebbels, Albert Speer e outros nazistas de alto escalão.
Quando a Segunda Guerra Mundial chegava a seus últimos dias na
Europa, em 1945, havia a expectativa, tanto na Alemanha como
entre os Aliados, de que Hitler e o seu círculo mais íntimo se
refugiariam no Obersalzburg, que se tornaria então o lugar do
Armagedon final da guerra. Acreditava-se, erroneamente, como se
constatou depois, que fosse maciçamente fortificado para resistir a
um cerco violento e continuado. Em meados de abril de 1945, o
Sétimo Exército americano e o Primeiro Exército francês, sob o
comando conjunto do general Jacob Devers, avançaram sobre
Berchtesgaden, um pelo norte, o outro pelo oeste. Em 25 de abril o
Obersalzburg foi bombardeado pela Royal Air Force. A partir
daquele momento toda autoridade estava perdida, e a população
local invadiu as casas dos nazistas, dissipando os luxuosos bens
privados que encontraram lá. Hitler cometeu suicídio em seu abrigo
subterrâneo em Berlim no dia 30 de abril. Em 4 de maio, os
exércitos aliados entraram em Berchtesgaden e encontraram um
cenário de caos e devastação. O Sétimo Exército incluía
destacamentos da segunda divisão blindada francesa, originária da
África Central, em 1942, e que participara na libertação da
Normandia e de Paris. O Primeiro Exército francês fora formado no
norte da África e tinha participado da invasão do sul da França, em
agosto de 1944. Na tarde de 4 de maio a bandeira da França Livre
tremulava no Berghof de Hitler. As tropas francesas (em especial)
não estavam inclinadas a respeitar as propriedades dos nazistas, e
relatos americanos as acusam de pilhagem, o que foi negado, é
claro, pelos franceses, que, por sua vez, indicaram que artefatos
tirados do Obersalzburg estavam sendo enviados ilegalmente para
os Estados Unidos. Foram dias de desordem e animação sem
precedentes, e sem dúvida jubilosos soldados dos dois exércitos
embolsaram souvenirs de maior ou menor valor. Há vários relatos
de um trem com oito vagões de carga sendo atacado pelos
franceses, que atiravam nele a esmo e forçaram sua abertura. Um
oficial francês da 11a Companhia do Régiment de Marche du Tchad
lembra de ter pisado em algo que lhe pareceu ser um tijolo: ele o
ergueu e constatou que era um manuscrito medieval. Ele o
embrulhou num papel pardo e o guardou. Outro oficial, um médico
militar, tropeçou num segundo manuscrito encerrado numa pequena
caixa oblonga. Ambos os itens foram enfiados nas mochilas, em
segredo. Constatou-se que o trem continha porções do acervo
privado de obras de arte roubadas e reunidas pelo marechal do
Reich Göring, que estavam sendo enviadas para o Obersalzburg por
segurança durante os dias que se antecipavam como sendo os
finais. Quando James Rorimer, membro da seção de Monumentos e
Belas Artes do Sétimo Exército, chegou a Berchtesgaden uma
semana depois, os tesouros remanescentes do trem foram
protegidos pelos americanos e expostos sob um anúncio
improvisado: “Coleção de arte de Hermann Göring — Cortesia da
101a Divisão Aerotransportada”.
De volta à França, o soldado que encontrou o primeiro manuscrito
o mostrou a um velho amigo na Bibliothèque Municipale em
Valenciennes, e com assombro deram-se conta de que tinham nas
mãos o original da famosa Très Belles Heures do duque de Berry,
iluminada em Paris por volta de 1383. Tinha sido adquirido por volta
de 1884 pelo barão Adolphe de Rothschild (1823-1900) e em março
de 1941 fora roubado, em Paris, do cofre do banco do seu sobrinho-
neto, barão Maurice de Rothschild (1878-1957), que comunicou seu
roubo após a guerra. O manuscrito foi devidamente devolvido ao
barão, que, por sua vez, o presenteou à Bibliothèque Nationale em
1956. Ele agora é o ms n.a. lat. 3093 dessa biblioteca.

O trem encontrado em Berchtesgaden no início de maio de 1945,


com partes da coleção de arte roubada pelo Reichsmarschall, o
marechal do Reich Hermann Göring.
Barão Edmond de Rothschild (1845-1934), de
Paris, que formou uma soberba coleção de
manuscritos iluminados, muitos dos quais
foram saqueados durante a Segunda Guerra
Mundial.

Em 1951, o segundo manuscrito subtraído em Berchtesgaden foi


oferecido por quem o achou ao mosteiro de Boquen, na Bretanha
central, onde o ex-oficial tinha passado um período de retiro
espiritual. O mosteiro tinha sido uma abadia medieval, extinta em
1790, mas restabelecida em 1936 por monges cistercienses sob a
direção de dom Alexis Presse. Os detalhes da doação são
obscuros, já que o manuscrito tinha sido recuperado ilicitamente em
1945. Diz-se que dom Alexis, que morreu em novembro de 1965,
tinha confiado a história a seu sucessor, dom Bernard Besret, que
transformou a comunidade num centro de radical renascimento
católico. O relato é tirado da autobiografia de Maurice Rheims
(1910-2003), leiloeiro de arte parisiense e amigo chegado da família
Rothschild. No verão de 1967, lembra Monsieur Rheims, a capela
de Boquen estava precisando de um telhado novo após danos
causados por uma tempestade, e Besret levou o manuscrito para
que fosse avaliado por um livreiro e antiquário em Rouen, que teve
o bom senso de mencioná-lo à Bibliothèque Nationale em Paris.
Três dias depois, portanto, ele foi levado ao exame de Marcel
Thomas, curador de manuscritos, tendo o jovem François Avril, que
se juntara ao departamento naquele ano, como assistente júnior.
Eles o reconheceram imediatamente como o havia muito perdido
Livro de Horas da rainha Joana de Navarra.
O Répertoire des biens spoliés, vasta lista de obras de arte
relatadas como roubadas durante a guerra, com o registro do
Livro de Horas de Joana de Navarra como o quinto item desta
página.

Era o famoso manuscrito com o qual já nos encontramos


brevemente no capítulo 5, que tinha alcançado um recorde mundial
na venda de Yates Thompson, na Sotheby’s em Londres, 1919, para
“um certo francês entusiasmado” que ninguém foi capaz de
identificar. Sabemos agora que o comprador foi o barão Edmond de
Rothschild (1845-1934), de Paris. Ele foi o MS 94 em sua coleção de
102 manuscritos medievais e iluminados. A casa do barão, no no 41
do Faubourg Saint-Honoré, é hoje a residência do embaixador
americano na França, onde o monograma entrelaçado “E.R.” ainda
permanece na porta da frente. Após a morte da viúva de Edmond de
Rothschild, Adelheid, em 1935, sua coleção foi avaliada, para a
partilha pela família, pelo livreiro de Londres Maurice Ettinghasen.
Uma cópia da lista está preservada no arquivo em Waddesdon
Manor, a casa de Rothschild em Buckinghamshire, na Inglaterra.
Nessa lista, o Livro de Horas de Joana de Navarra está avaliado em
3 mil libras e é atribuído à filha de Edmond, Alexandrine de
Rothschild (1884-1965), também de Paris. Ela era uma mulher
excêntrica e reclusa, que vivia numa magnífica biblioteca. Durante a
ocupação da França pelos nazistas, sua coleção de arte, assim
como a de seu irmão mais velho, Maurice (mencionado acima), foi
sistematicamente saqueada em abril de 1940, e o Livro de Horas
simplesmente desapareceu, sem deixar rastros. Isso é relatado por
Madame Alexandrine (como é com frequência chamada) no tocante
Répertoire des biens spoliés pendant la Guerre 1939-1945, um
extraordinário álbum oblongo, encadernado num pano cinza, de
folhas soltas unidas por fechos de metal, publicado logo após a
guerra pelo Bureau Central des Restitutions, que pertencia ao
comando francês na Alemanha ocupada. O Répertoire,
precariamente impresso num papel frágil em francês, russo, inglês e
alemão, era um manual prático para localizar e identificar obras de
arte que a guerra tinha tornado órfãs. Tenho uma cópia apenas do
volume VII, e ela tem quase mil páginas. Lá, na p. 30, sob o no 344,
entre manuscritos medievais perdidos pela França para o regime
nazista, na referência 32 141, temos “Heures — Livre d’heures de
Jeanne II Reine de Navarre ms du XIVe s. 271 feuillets… 108
miniatures, lettres ornées et bordures à sujets humoristiques”,
propriedade da baronesa Alexandrine de Rothschild. Nunca fora
encontrado nos imensos depósitos de objetos saqueados
armazenados em cavernas, minas de sal e castelos na Alemanha e
na Europa central. Por toda uma geração se supôs que fora uma
baixa da guerra. Ao anunciar sua redescoberta durante as
comemorações do setecentésimo aniversário da morte de são Luís,
realizadas em Royaumont e Paris em maio de 1970, Marcel Thomas
descreveu esse reaparecimento na França como pouco menos que
um milagre.
Monsieur Rheims continua sua história. Segundo seu relato, ele
marcou um encontro com o mais jovem barão Edmond de
Rothschild (1926-97), sobrinho e herdeiro de Alexandrine. O barão
perguntou ao abade quando custaria o telhado novo, e a resposta
foi que seriam cerca de 40 mil francos; ele logo fez um cheque com
essa quantia. A Bibliothèque Nationale já tinha lhe dito naquela
manhã o quanto gostaria de adquirir o manuscrito. Rheims descreve
Edmond de Rothschild falando ao telefone com o sr. Oppenheimer
em Johannesburgo, supostamente o industrial de diamantes Harry
Oppenheimer (1908-2000), enquanto acariciava o Livro de Horas,
como o vilão dos filmes de James Bond, Blofeld, fazia com seu gato,
e finalmente encerrando a conversa com a declaração: “Não tenho
tempo nem mesmo para ler a Bíblia, e assim eu bem poderia cedê-
lo a eles”. O “Horas de Joana de Navarra” é hoje “Paris,
Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145”, e estamos a
caminho para vê-lo.

As origens da biblioteca nacional francesa remontam aos reis


medievais, em particular Carlos V e Luís XII, reis da França de 1364
a 1380 e de 1498 a 1515, respectivamente, mas como instituição
pública ela foi produto da Revolução Francesa. A biblioteca real foi
renomeada “Bibliothèque Nationale” em 1795, com um breve
período em meados do século XIX como “Bibliothèque Imperiale”.
Em 1868 ela se mudou para um novo e esplêndido edifício,
encomendado por Napoleão III no lado leste da Rue de Richelieu,
próximo ao Louvre, e projetado pelo arquiteto clássico Henri
Labrouste (1801-75). A ascensão da biblioteca a seu status mundial,
especialmente no que toca a livros raros e manuscritos, deve muito
ao gênio e à energia de Léopold Delisle (1826-1910), diretor da
biblioteca de 1874 até sua aposentadoria, em 1905. Em 1996, as
principais coleções de livros impressos e modernos foram
transferidas para a nova e quase sempre impopular Bibliothèque
François Mitterrand, como costuma ser chamada, em um novo local
a alguma distância rio acima, porém, e alegra-me informá-lo, os
manuscritos medievais ainda permanecem, para consulta, em seu
antigo prédio, onde disponho de um ingresso de leitor há mais de
meio século.
Na verdade, nessa visita para ver as Horas de Joana de Navarra,
ainda havia importantes obras em andamento, que começaram em
2010 com a expectativa de se estenderem por sete ou oito anos. O
acesso para leitores não era mais, como costumava ser, pelo pátio
de entrada na Rue de Richelieu, mas temporariamente pelo
pequeno e formal jardim nos fundos do prédio, na Rue Vivienne.
Isso foi pouco depois dos tiros no escritório do Charlie Hebdo, em
janeiro de 2015, e as medidas de segurança eram um fato, não
bem-vindo, em Paris. Fizeram-me passar por um detector de metais
à beira da calçada. Ele disparou seus alarmes, mas os guardas
pareciam cansados e me acenaram que passasse assim mesmo.
Durante a construção, a entrada se dava pela porta traseira da
biblioteca, que leva a um saguão do qual se eleva uma escadaria do
século XIX. O vestíbulo da entrada principal, à esquerda, estava
fechado naquela ocasião. A “Salle Ovale”, a sala de leitura para
obras de referência em geral, fica no canto mais afastado do andar
térreo. Para as obras raras, segue-se pela grande escada de pedra,
flanqueada embaixo por colunas com cabeças de deusas, subindo
um andar para manuscritos, dois para moedas e medalhas. Eu
procurei a sala de manuscritos onde esperava encontrá-la, uma
grande e familiar sala no primeiro andar, em todo o comprimento do
pátio paralelo à Rue de Richelieu, e ela não estava lá,
temporariamente fechada durante as obras no prédio. Tenho muita
esperança de que, quando este livro estiver publicado, ela esteja
aberta de novo. Enquanto isso, a consulta a manuscritos foi
transferida, atravessando o patamar, para a Galeria Mazarina, no
lado oposto, outra sala comprida que dá para o jardim por onde
entramos na Rue Vivienne. Eu tinha estado lá antes, apenas para
exposições. É uma parte que resta do adjacente Hôtel Mazarin, do
século XVII, construído em 1644-5 pelo grande cardeal Jules
Mazarin (1602-61), para abrigar sua coleção de arte. É um notável
salão com muitos detalhes dourados, decorado com afrescos
pastorais de Gian Francesco Romanelli (m. 1662), inspirado nas
Metamorfoses de Ovídio. Para seu uso atual foi transformado numa
réplica reduzida da “Salle des Manuscrits”: as janelas estão cobertas
por persianas brancas, a maior parte das paredes pintadas foi
coberta por tábuas vermelhas em que se alinham estantes
temporárias de madeira lisa, foram trazidas longas mesas de
laminado e cadeiras de madeira não estofadas, e a sala é iluminada
não mais pelos seis lustres antigos suspensos do teto, mas por
novos e antipáticos conjuntos de lâmpadas fluorescentes.

Galeria Mazarina, provisoriamente adaptada para ser usada como


sala de leitura durante os trabalhos de reforma da Bibliothèque
Nationale em Paris.

Os procedimentos são os mesmos da antiga sala de leitura. Na


entrada há um longo balcão atendido por várias pessoas, todos
homens. Sua obrigação é requisitar seu ingresso de leitor e lhe dar
em troca um pequeno quadrado de plástico vermelho (costumava
ser de madeira quando comecei a usar a biblioteca) com o número
do assento destinado a você. Eu disse que tinha vindo ver um
importante manuscrito iluminado, e deram-me o número 45, perto da
bancada central dos vigilantes da sala de leitura, ocupada
majoritariamente por mulheres. É lá que você preenche à mão um
formulário no qual pede acesso a um manuscrito, fornecendo seu
nome e seu endereço. Mostrei-lhes também o e-mail que tinha
recebido de Charlotte Denoël, Chef du service des manuscrits
médiévaux, autorizando meu acesso ao próprio original. (Em Paris
eles tendem a lhe empurrar um microfilme, sobretudo se suspeitam
que seu francês não será suficiente para contestar.) Quando o
manuscrito chega, você o troca então pela plaquinha quadrada de
plástico. Tudo isso parece ser de uma complexidade desnecessária,
mas é o jeito deles de fazer as coisas.
O Livro de Horas de Joana de Navarra é mais volumoso do que eu
me lembrava da vez anterior em que o tinha visto; tem cerca de 18,5
por 14 centímetros e cerca de 5,7 centímetros de espessura, esta
dependendo da força com que se apertam as capas. Dá para ver
por que pôde ser confundido com um tijolo em Berchtesgaden. Foi
encadernado por volta de 1780 em marroquim amarelo-acastanhado
sobre papelão, com elaborada decoração dourada. O revestimento
do papelão na face interna das capas é de seda carmesim, com
margens douradas. Tem um aspecto precioso. O manuscrito não
mostra sinais visíveis de danos causados numa Alemanha
despedaçada pela guerra, exceto por um ex-líbris na frente, que foi
retirado, sem dúvida o de Henry Yates Thompson (como descrito na
p. 221), deixando uma mancha retangular. Esta teria sido a única
indicação explícita de qualquer proprietário moderno. No canto
superior esquerdo da folha de rosto há uma pequena e fraca
anotação a lápis, “MS 94”, que na verdade é o número de inventário
de Rothschild, embora esteja quase invisível. Há umas poucas
anotações históricas nas guardas, mas nada que pudesse ter
identificado facilmente seu verdadeiro e injustiçado dono quando foi
achado em Berchtesgaden em 1945.
O texto compreende principalmente: 1) um calendário anual da
Igreja, que lista dias de santos, com ilustrações alegóricas no topo e
no pé de cada página; 2) as Horas da Santa Trindade, com figuras
para cada uma das oito horas das matinas às completas; 3) as
Horas da Virgem Maria, também com figuras para cada uma das
oito horas; 4) várias orações curtas, com duas figuras; 5) os sete
salmos penitenciais, com uma litania que invoca os nomes dos
santos, ambas as partes com figuras; 6) as Horas de São Luís, com
figuras para cada uma das oito horas; 7) as Horas da Cruz, também
com figuras para cada uma das oito horas; 8) uma miscelânea de
orações em honra de vários santos, especialmente a Virgem Maria e
a Trindade, em latim e em francês, inclusive as Sete Alegrias da
Virgem, orações para o anjo da guarda da pessoa, orações a santa
Apolônia contra dor de dente, uma oração que se usa na elevação
da hóstia na missa, uma vida de santa Margarete, santa padroeira
do parto, e outras, com doze figuras; 9) sufrágios, ou orações que
invocam determinados santos, com os nomes dos santos Ana,
Nicácio, Martin, Giles, Josse de Ponthieu, e relíquias de todos os
mártires, cada uma com figuras; 10) outras orações curtas, inclusive
os sete Salmos Graduais; 11) os Ofícios, ou Vigílias, para os mortos,
com uma figura de um serviço fúnebre; 12) mais sufrágios,
comemorando a Santa Cruz, são Miguel, todos os anjos e os santos
João Batista, João Evangelista, Pedro, os Magos, Leonardo, Luís de
Marselha (ou Toulouse), Denis e Nicolau, todos com figuras; 13)
variantes especiais das Horas da Virgem para uso no Advento, com
uma figura; 14) variantes especiais das Horas da Virgem para uso
entre o Natal e a festa da Purificação, com uma figura; 15) o Saltério
de São Jerônimo e outras orações; e 16) uma miscelânea de
acréscimos, em caligrafias posteriores, inclusive as Horas do
Espírito Santo.
Esse tipo de texto compósito é o que se conhece como “livro de
horas”, termo que remonta à Idade Média. Os conteúdos exatos
variam de um para outro manuscrito, mas as características que os
definem são os distintos ciclos de orações e salmos a ser recitados
em cada uma das oito “horas” em que se dividia o dia religioso
medieval — as horas de matinas, laudes, prima, terça, nona, sexta,
vésperas e completas. Sete dos componentes desse manuscrito são
exemplos dessas horas. Vamos conhecer outro livro de horas no
capítulo 12 e terei mais a dizer sobre alguns textos. Por enquanto,
basta dizer que um livro de horas era um livro de oração para leigos,
para uso privado em casa ou qualquer lugar durante um dia normal,
mas não especificamente numa igreja. A ideia de ler salmos e
orações em determinados momentos do dia derivava de uma prática
havia muito estabelecida nos mosteiros. Não representava a
totalidade do que os monges faziam, mas sem dúvida era essa a
estrutura em torno da qual se baseava o ritmo diário da vida
conventual medieval. Por séculos, o laicato, vivendo no mundo
secular do lado de fora, tinha bem pouca noção do que acontecia
dentro das paredes dos mosteiros, exceto quanto a um incômodo
sentimento de que os monges ou as freiras estavam de algum modo
usufruindo de benefícios espirituais que eram negados aos não
iniciados. Toda uma série de diferentes mudanças sociais ocorreu
no século XII, incluindo, como vimos em capítulos anteriores, o fim
do monopólio monástico do letramento e da produção de livros, o
surgimento de uma devoção popular provavelmente sentida com
muito impacto e da vontade de uma maior participação na religião
sem a necessidade de se juntar a um mosteiro. Saltérios, como o
que encontramos em Copenhague, tornaram-se os primeiros livros
comumente possuídos pelo laicato, numa imitação das ordens
religiosas.

Canto superior externo da folha de guarda das Horas de Joana de


Navarra, com “ms 94”, seu número no inventário de Rothschild,
escrito a lápis.
Contudo, para os inexperientes, os saltérios eram pesados e de
difícil manuseio. No final do século XIII a moda entre a nobreza
secular era um novo tipo de compêndio devocional portátil no qual
salmos e orações selecionados já estavam pré-arranjados numa
ordem propícia à recitação pelo laicato nas horas do dia que
correspondiam a cada uma das antigas horas monásticas, das
matinas às completas. Esses ciclos curtos eram dedicados a temas
religiosos específicos, ou a santos, sobretudo à Virgem Maria, cujo
culto começava a ser cada vez mais proeminente na Idade Média
avançada. Livros de horas foram feitos posteriormente em
quantidades muito grandes. Muitos milhares deles ainda existem —
só na Biblitothèque Nationale são bem mais de trezentos — e são
agora provavelmente os mais bem conhecidos de todos os
manuscritos iluminados. O Livro de Horas de Joana de Navarra é
um exemplo dos mais antigos; o Livro de Horas de Spinola, que
encontraremos no último capítulo, é um dos mais recentes.
Há dois aspectos muito marcantes nos livros devocionais do início
do século XIV feitos para a família real francesa, tanto saltérios
como livros de horas. Um deles é quão consistentemente esses
manuscritos pertenceram a mulheres. De fato não foram
considerados de uso masculino até a época de Carlos V, rei da
França de 1364 a 1380, e seu irmão mais moço, o duque de Berry
(1340-1416), e até mesmo o afamadíssimo livro de horas
encomendado por esses dois grandes patronos pode ter tido, a
princípio, o propósito de ser distribuído entre as mulheres de suas
casas. O outro aspecto notável é como esses manuscritos reais
prosseguem intimamente associados com as ordens religiosas,
sobretudo os dominicanos e os franciscanos. Era comum que
confessores privados e capelães domésticos na corte fossem
membros de uma dessas duas ordens de frades. Mulheres leigas da
aristocracia, sem dúvida influenciadas pela exposição diária a seus
conselheiros espirituais e confidentes, imitavam-lhes as práticas.
Muitas dessas mulheres foram mais tarde para o retiro em
conventos, após enviuvarem, passando sua velhice em elegantes
casas como a dos franciscanos de Lourcines no subúrbio de Saint
Marcel, em Paris, estabelecida na década de 1270 por Margarete da
Provença, viúva de são Luís, ou a dos dominicanos na Abadia de
Poissy, na saída do rio Sena de Paris, fundada em 1298 por Filipe
IV, filho de são Luís.
O manuscrito que temos diante de nós é fortemente franciscano.
Seu calendário corresponde ao status de “grand double”, o nível
mais alto, para as festividades de são Francisco e do traslado de
seus restos mortais (4 de outubro e 25 de maio), e o mesmo para a
festividade do franciscano são Luís de Toulouse, aqui chamado Luís
de Marselha, “de l’ordre des frères meneurs” (19 de agosto, sendo
que os “frades menores” eram os franciscanos). Isso atribui a
classificação de “feste double” aos santos Antônio de Pádua e
Clara, ambos franciscanos (13 de junho e 12 de agosto), e inclui os
dois festivais aos beneméritos da Ordem Franciscana que se foram
(29 de janeiro e 27 de novembro). A gradação das festas pelo
número de leituras especiais usadas na igreja em determinados
dias, como aqui, é algo que comumente só se poderia esperar num
breviário ou num missal, não no livro de horas de uma pessoa leiga.
O dono original, no entanto, não foi um frade ou uma freira, e sua
identidade não está em dúvida. Cerca de vinte margens incluem
pequenas vinhetas com uma rainha orando ajoelhada, usando uma
coroa de ouro e um manto orlado de arminho, às vezes com um
manuscrito aberto à sua frente. Em outros lugares ela está
ajoelhada em capitulares iluminadas. Em dois lugares aparece
dentro das próprias miniaturas, testemunhando em primeira mão a
Flagelação de Cristo e venerando a Virgem e o Menino em sua
efetiva presença. Muitas das orações no texto são adaptadas para o
uso exclusivo de uma mulher, como se pode depreender de
palavras com desinências específicas de gênero em latim.
Exemplos são “… ut michi indigne peccatrici ancille tue” (“para mim,
sua indigna e pecadora servidora”, todas no feminino), “… concede
michi famule tue (“conceda-me, sua servidora”, onde um suplicante
masculino teria sido “famulo tuo”) e a oração para receber a
comunhão, “Domine non sum digna…” (“Senhor, não sou digna...”,
forma feminina do adjetivo “digno”). Para nossa grande sorte, a
mulher de fato recebe um nome. Está na oração à Virgem Maria que
inclui um pleito para “interceder por mim, sua servidora Joana,
rainha de Navarra”, ou, no original, “ut intercedas pro me ancilla tua
Johanna Navarre regina”. Essas preciosas palavras estão no fólio
151v, facilmente divisáveis bem no meio da página de texto.
Joana (1312-49) foi a única sobrevivente dos filhos de Luís X, rei
de Navarra de 1305 a 1316 e rei da França de 1314 a 1316. Ela
tinha apenas quatro anos quando o pai morreu. Embora não tivesse
culpa, a legitimidade de Joana foi controvertida, pois havia rumores
de que sua mãe, Margarete da Borgonha, tivera casos
extraconjugais, e a antiga Lei Sálica foi rapidamente invocada para
impedir a sucessão de Joana no trono da França. Quanto a isso, o
arcebispo da Cantuária explica em Henrique V, de Shakespeare:
“‘No woman shall succeed in Salique land’/ Wich Salique land the
French unjustly gloze/ To the ralm of France” [“Nenhuma mulher
será a sucessora numa terra sálica”/ e os franceses injustamente
entenderam a terra sálica/ como sendo o reino de França] (ato 1,
cena II). Com essa autoridade, portanto, seu tio, irmão mais moço
de seu pai, coroou-se em vez dela, como Filipe V, rei de França de
1316 a 1322. Ao que parece, ele se tornaria vítima de uma
maldição, que se dizia ter sido lançada sobre a linha sucessória dos
reis capetos por terem queimado o Grande Mestre dos Templários
em 1307. Ficaram conhecidos como Rois maudits, os reis
amaldiçoados. Filipe também morreu sem ter um herdeiro homem,
como também o irmão seguinte, e último, Carlos IV, rei de 1322 a
1328, e Joana estava mais uma vez em posição de reivindicar o
trono. Dessa vez, o primo do pai de Joana tinha subido ao trono
como Filipe VI, rei de 1328 a 1350, o primeiro da dinastia dos Valois.
É uma triste realidade que as princesas medievais nem sempre
tiveram vidas fáceis. Não sei se Joana já foi tema de um desses
apaixonantes romances dourados sobre mulheres de espírito cujo
destino é marcado em seu nascimento, lidos avidamente por minha
mulher e por outras, mas ela deveria ter sido. Foi feito um acordo
com Joana. Ofereceram conjuntamente a ela e a seu marido, Filipe
d’Évreux, o trono de Navarra, o reino liliputiano de montanha na
região basca dos Pireneus, hoje há muito desaparecido, dividido
entre a Espanha e a França. Navarra era um antigo título dos reis de
França, mas estava fora da jurisdição da Lei Sálica, e Joana
finalmente se tornou rainha. Foi coroada em Pamplona, capital de
Navarra, em 5 de março de 1329.
O calendário para o mês de maio nas Horas
de Joana de Navarra, inclusive com o status
de grand double concedido à festa pelo
traslado de são Francisco (25 de maio).
Oração à Virgem Maria, identificando a figura
ajoelhada da capitular como “eu, sua serva,
Joana rainha de Navarra” (linhas 12-3).
As armas de Navarra estão presentes por todo o manuscrito,
definidas em termos heráldicos como “gules [escarlate], uma cruz
em diagonal, e uma dupla orla de correntes, todas conectadas, e
or”.* As armas ocorrem em mais de oitenta das capitulares
iluminadas, e em outros lugares, como nos escudos segurados
pelos gêmeos do zodíaco no calendário e até mesmo por um
macaco, em uma das margens. Também se encontram em alguns
dos fundos das figuras, como o campo quadriculado atrás da
Natividade. Tudo isso, bem como a oração com o nome de Joana
como rainha de Navarra, dão ao manuscrito uma data não anterior à
sua subida ao trono daquele reino, em 1328. Muitas outras
capitulares incluem as armas de Évreux, que Joana adotou quando
se casou, em 1318 (“França antiga com uma curvatura em cores
alternadas, argent [prateado] e gules [escarlate]”). Num outro
extremo, o fato de Joana claramente não ser mostrada como viúva
indica que o manuscrito foi feito durante o período de vida de seu
marido, que morreu em 1343, deixando-a como soberana isolada.
As armas e os retratos de Joana de Navarra
ocorrem ao longo do manuscrito: aqui a rainha
é mostrada distribuindo esmolas aos pobres,
acompanhada de um anjo.
Um componente muito incomum do manuscrito é o ciclo
totalmente ilustrado das Horas de São Luís da França, nos fólios
85v a 105v. São orações e leituras das matinas às completas, como
as de qualquer livro de horas sobre temas mais tradicionais, exceto
que esse texto é em homenagem a uma família santa que teria
vivido no que ainda era (apenas) memória viva, sessenta anos
antes. Luís IX foi rei da França de 1226 a 1270, um cavalheiresco
cruzado e devoto construtor da Sainte-Chapelle. Foi canonizado por
Bonifácio VIII em 1297. Joana de Navarra foi sua tetraneta. Seu
marido, na verdade, era, por uma linhagem diferente, o bisneto do
santo. A presença das Horas de São Luís nos manuscritos limita-se
exclusivamente, até onde se sabe, a livros feitos na primeira metade
do século XIV para membros da própria família do santo. O mais
antigo está nas Horas de Branca da Borgonha (1295-1326), bisneta
do irmão de são Luís e primeira esposa de Carlos IV, ele mesmo
também um bisneto de Luís IX. O manuscrito pertence à Biblioteca
Pública de Nova York. Outro desses livros está no pequeno Livro de
Horas de Joana d’Évreux (1310-71), terceira esposa de Carlos IV e
cunhada de nossa Joana de Navarra, hoje bem distante, no
Metropolitan Museum, em Nova York. Ela também foi uma
descendente direta. Um terceiro está no livro de horas da filha mais
velha de Joana de Navarra, Maria de Navarra (1329-47), rainha de
Aragão, hoje pertencente à Biblioteca Marciana, em Veneza. O texto
ocorre também no assim chamado Horas de Saboia, outro
manuscrito feito para Branca da Borgonha, mas que foi destruído no
terrível incêndio da Biblioteca Nazionale de Turim, em 1904. Esse
volume tem uma introdução que explica que o Horas de São Luís
era para ser recitado especificamente pelos membros daquela tão
sagrada e real dinastia da França: “à personnes qui sont de si sainte
et de si très noble legnié comme est celle de France”.
No manuscrito de Joana de Navarra, aqui diante de nós, o Horas
de São Luís é ilustrado com cenas encantadoras e íntimas do início
da vida do santo, como se fosse um álbum de família. Podemos
virar as páginas, como Joana certamente teria feito com seus filhos,
Maria (nascida em 1329, já mencionada), Branca (nascida em
1330), Carlos (nascido em 1332), Agnes (nascida na década de
1330), Filipe (nascido em 1336) e Luís, com o nome do santo
(nascido em 1341; houve antes outro Luís, que morreu ainda bebê).
Sem dúvida contaram-se histórias e delas se extraíram suas morais.
A primeira figura nessa sequência mostra são Luís como criança
aprendendo a ler e a escrever, sob a orientação de sua mãe, Branca
de Castela, e de um mestre-escola com um chicote. O menino está
segurando um livro. No capítulo 7 encontramos o famoso Saltério
Românico iluminado em Leiden, com uma inscrição do século XIV
afirmando que esse era o livro usado por Luís quando criança (p.
325). Aquele manuscrito em Leiden pertenceu à avó de Joana de
Navarra, à sua tia, e mais tarde à sua filha, e é muito provável que
tenha pertencido uma vez à própria Joana. A figura no Livro de
Horas de Joana que mostra são Luís aprendendo a ler com aquele
mesmo manuscrito é quase com certeza uma alusão direta a uma
relíquia familiar específica daquele santo, servindo também de lição
para crianças boas.
As outras imagens das horas mostram Luís ainda menino
assistindo à missa (laudes); Luís sendo levado a Rheims numa
carruagem puxada por cavalos, para sua coroação em 1226,
acompanhado de uma rainha, que é, claramente, sua enérgica mãe,
já que Luís só tinha doze anos e ainda não estava casado (prima);
sua unção como rei (terça); sua coroação (sexta); Luís ajudando a
carregar a coroa de espinhos em 1239, uma aquisição que
deslanchou a construção da Sainte-Chapelle para abrigá-la (nona);
Luís em sua cama de enfermo em 1244, temendo estar prestes a
morrer e prometendo sair numa Cruzada (vésperas); e Odo de
Châteauroux, núncio apostólico papal, pregando a própria Cruzada
em 1245 (completas). Essas miniaturas, como todas as outras no
manuscrito, estão pintadas dentro de molduras de quadrifólios em
tricoleur, faixas de vermelho, branco e azul, então as cores da
família real francesa e hoje familiares na bandeira da república. O
ponto culminante do ciclo, com o santo empreendendo uma
Cruzada, que é exclusivo desse manuscrito, pode ter a intenção de
ser um paralelo ao anúncio de uma nova Cruzada feito por Filipe VI,
tetraneto de são Luís, em 1333. Se for assim, talvez se possa datar
o Livro de Horas naquele ano, ou muito pouco tempo depois. O
calendário inclui a Páscoa em tinta vermelha, junto à data de 27 de
março. Não é necessário levar em conta como o dia exato, já que
pode indicar não mais que a duração do período pascal, mas o fato
é que o domingo da Páscoa caiu realmente em 27 de março, em
1334. Fazia exatamente cem anos que Luís tinha se casado e
começado a governar a França em seu próprio nome. Em 1334 a
filha mais velha de Joana de Navarra tinha cinco anos, a idade de
começar a aprender a ler.
São Luís ainda criança é levado numa
carruagem para sua coroação em Rheims,
miniatura do raro texto das Horas de São Luís;
ver também o frontispício.
É mesmo notável como esse livro de horas é personalizado. Todos
os outros manuscritos que encontramos nos capítulos anteriores
compreendem textos nos quais a intervenção do patrono original foi
mínima. Aqui, Joana de Navarra entra diretamente no livro. Seu
nome é mencionado numa oração. O manuscrito inclui o santo da
família e talvez outros escolhidos por ela, tais como a oração a
santa Apolônia e a vida de santa Margarete em língua francesa.
Segundo Sydney Cockerell, que escreveu uma longa descrição do
manuscrito para Yates Thompson em 1902, a inclusão da primeira
“talvez indique que Joana… tinha dores de dente”, contra as quais
invocava Apolônia; e a segunda era a santa padroeira do parto, o
que era apropriado para uma jovem mulher com tantos filhos. Todas
as rubricas e cabeçalhos são em francês, a língua vernacular e
doméstica nas casas, usada especialmente por mulheres, como se
o confessor de Joana, ao que parece um franciscano, a estivesse
orientando com gentileza em suas devoções. Algumas rubricas são
bem íntimas e diretas. Uma começa com “Vou devez savoir…”. O
capelão devia estar se dirigindo a ela em voz alta: “Vossa Graça,
deveis saber que segundo o costume da corte de Roma não se diz o
Te Deum laudamus diariamente antes das laudes de Nossa
Senhora…”, e assim por diante. Joana de Navarra está presente
nas orlas iluminadas, olhando das margens das páginas de seu
Livro de Horas através do abismo do nosso mundo para o do divino.
Quando pessoas vivas são representadas pela primeira vez em
livros devocionais medievais, é costumeiro mantê-las distantes e
distintas, em universos diferentes, olhando de fora para dentro, atrás
do véu de uma fronteira ou de uma capitular ilustrada. Aqui, no
entanto, numa cena notável, Joana de Navarra, dona do manuscrito,
entra ela mesma na figura sagrada. Isso está no fólio 118v. Ele
ilustra uma oração francesa à Virgem, “Douce debonnaire vierge…”,
“Doce e bondosa Virgem…”. A Virgem Maria é mostrada voltada
para o Cristo Menino, gesticulando para baixo com sua mão direita
em direção à capitular “D”, onde talvez se esperasse ver Joana,
olhando respeitosamente para cima. Em vez disso, a capitular não
passa de ornamento, e Joana subiu pela moldura da miniatura e
agora se ajoelha logo atrás da Virgem. Aí estão elas, duas rainhas
coroadas juntas. É um passo incrivelmente inovador e ousado na
história da arte religiosa. A Virgem, que só tem olhos para seu filho,
não percebe em absoluto a presença da rainha medieval de Navarra
imiscuindo-se em seu espaço. Em outra miniatura, um anjo entrou
em nosso mundo e é visto louvando Joana de Navarra enquanto ela
dá esmola aos pobres.

Na Bibliothèque Nationale há sempre uma atmosfera de agradável


lentidão. A tradição de um suave antiquarismo sobrevive na França
como em nenhum outro lugar. Os outros leitores de manuscritos
aqui parecem não ter pressa alguma, a menos, é claro, que sejam
americanos de visita, imediatamente reconhecíveis por sua frenética
industriosidade e falta de tempo. Eu me flagrei recostado na cadeira
apreciando o manuscrito por um momento, antes do próximo surto
de anotações. Henry Yates Thompson descreveu este aqui, em
1902, como “um dos mais encantadores de todos os livros de
horas”, e ele é realmente delicioso.
E de repente já se passou uma hora muito prazerosa, eu aqui
sentado e olhando pequenos detalhes nesse microcosmo de
encantamento, como o orbe segurado por Deus nas matinas da
Trindade, encapsulando um mundo inteiro em miniatura, inclusive
um veleiro chegando a um porto com árvores e casas. Na
Anunciação que abre as matinas da Virgem, há seis anjos músicos
não convidados no sótão da casa de Maria em Nazaré, num
desempenho tão vigoroso numa flauta, um tambor, um alaúde, um
saltério e gaitas de fole, que é espantoso que a Virgem consiga se
concentrar em suas orações ou ouvir uma só palavra do que Gabriel
tem a lhe dizer. Um anjo ainda mais ardoroso está tocando timbales
numa capitular, no fólio 163r, tão freneticamente que cruzou seus
braços para percutir os tambores que estão no lado oposto. A Fuga
para o Egito, para as vésperas, inclui duas estátuas pagãs caindo
de uma moldura como se fosse de uma forca, à passagem da
Sagrada Família. O que se pensou fosse de fato uma dessas
estátuas que jazem nas areias do Egito foi assinalado para os
peregrinos medievais: hoje nós a conhecemos como a Esfinge. Há
pequenas vinhetas de pé de página nas bordas de páginas
ilustradas. Algumas parecem ecoar as cenas centrais. Há figuras
grotescas cuidando de seus próprios bebês fora das imagens
sagradas da Natividade, na hora prima. Um menino repreende no
estábulo os cavalos dos reis Magos, na Epifania da sexta. Há belos
e naturalísticos pássaros, incomuns nesse estágio primevo da arte
europeia, incluindo corujas, pintassilgos, pica-paus, andorinhas,
patos e até papagaios. Há borboletas, um morcego, crianças tirando
as meias de um menino, um caçador com arco e flecha caçando
lebres numa toca, um homem caminhando com uma gaiola sobre a
cabeça (essa está no fólio 153r, e não sou capaz de explicá-la), uma
dupla jogando xadrez (nem de longe um desenho tão convincente
quanto o de Carmina Burana), garotos brigando e uma mulher
cortando sua própria garganta, um macaco vestido como um
médico, um homem ajoelhado propondo casamento a uma moça
com um enorme e ridículo anel, e assim por diante. O Répertoire
des biens spoliés os chamou de “temas humorísticos”, mas também
existe aqui um lado sombrio. Há margens com dragões, monstros e
criaturas saídas de pesadelos. Mesmo as páginas mais simples nos
apresentam aquela característica quintessencial de manuscritos
iluminados do alto gótico, as assim chamadas bordas “de folhas de
hera”, formadas por talos e gavinhas com trevos de ouro polido que
cintilam quando se viram as páginas. Um botânico uma vez me
salientou que essa folhagem mostrada nos manuscritos franceses
não poderia ser, absolutamente, de hera, como está sempre
descrita, mas de briônia (Bryonia dioica), uma planta ainda mais
venenosa. É muito perigosa, e nos manuscritos é frequentemente
acompanhada de dragões, leões e monstros terríveis capazes de
matar você. O mundo, nas margens medievais, não é um lugar
confortável, não mais que a vida dourada de Joana de Navarra era
tranquila e segura.
Joana de Navarra entra no âmbito sagrado da
Virgem com o Menino e se ajoelha diante dela,
contra um fundo blasonado com as armas de
Évreux e Navarra.
A Adoração dos Magos, numa ambientação
adequada à realeza, para invocar a rainha
Joana, ajoelhada, embaixo, enquanto um
menino atrás dela admoesta os cavalos dos
Magos, na estrebaria.
Agora, tornemos a nos concentrar. É difícil fazer isso, pois a sala
está aquecida e soporífera no início da tarde. Conferi com zelo o
alceamento do manuscrito e apresento o resultado abaixo.** Há dois
aspectos inesperados. Um é que a folha em branco que
aparentemente está faltando após o fólio 10 é agora, de fato, a folha
de guarda, numerada “a”, antes do fólio 1, e ela apresenta as
mesmas marcas do fólio 1r, supostamente marcas de emblemas de
peregrinos que eram costurados na página de abertura do
manuscrito. Isso pode ser relevante quando olhamos para a história
do livro no século XIV. Mais chocante é a perda do fólio 121. Essa
folha ilustrada com certeza ainda estava presente quando o
manuscrito foi alceado e numerado por Cockerell em 1902 e quando
foi vendido em 1919, e não é provável que estivesse faltando
quando Alexandrine de Rothschild relatou que o manuscrito fora
roubado durante a guerra. Será que Hermann Göring cortou fora
essa folha? Atribuem-se muitos crimes a ele, mas esse é uma
novidade. Assim Cockerell descreve a miniatura existente na folha:
“A Virgem coroada está sentada num trono. Acima de sua cabeça
pende um dossel circular. Ela segura uma flor na mão direita e com
a esquerda sustenta o Menino, que está de pé em seu joelho e se
inclina para a rainha Joana, que se ajoelha para R, com as mãos
entrelaçadas. O fundo, quadriculado em azul, cor-de-rosa e
dourado”. Parece ser maravilhoso, e pode ainda estar emoldurado
na parede de alguém, sem que seu atual dono suspeite do que se
trata.
Uma característica encantadora do Livro de Horas de Joana de
Navarra é seu calendário, ilustrado com cenas complexas e
fascinantes. Examinemos primeiro as margens superiores. Em cada
uma é mostrado um portal gótico fantástico, provavelmente a
entrada do Céu, guardado nas ameias pela Virgem Maria, que
acena com um estandarte. Cada portal suporta um arco, como um
arco-íris, que atravessa a largura da página abarcando uma
paisagem. O Sol se desloca ao longo da curva do arco. Dos portões
vêm os signos do zodíaco — Aquário em janeiro, Peixes em
fevereiro, Áries em março, e assim por diante —, um simbolismo
pagão a emergir do Céu cristão num mundo temporal. À medida que
cada uma das doze constelações vem ao primeiro plano, sua
movimentação no céu afeta o clima da estação, uma antiga crença
astronômica articulada no Arateia de Leiden. A paisagem de janeiro
parece uma fotografia em sépia de Flandres em suas cicatrizes da
Primeira Guerra Mundial, com árvores mirradas e desfolhadas num
mundo de devastação. Fevereiro não é muito melhor, e, além disso,
chove. Em março as árvores mostram minúsculos botões. Em abril
os grãos estão crescendo e as árvores agora têm folhas. Os prados
estão cheios de flores silvestres em maio, e já está quente o
bastante para que Gêmeos se divirtam nus (conquanto,
modestamente, atrás de um escudo). As florestas estão em plena
folhagem em junho. O pasto foi cortado e empilhado em julho, o
trigo colhido em agosto, as vinhas vergam sob o peso das uvas em
setembro (Libra, uma garota com uma balança, poderia estar pronta
para pesá-las), os porcos farejam bolotas em outubro, e as folhas
estão caindo das árvores em novembro. Em dezembro ocorre a
única participação humana visível nesse eterno ciclo, por aqui um
trabalhador rural está cortando lenha das árvores novamente nuas,
sob o duro signo de Capricórnio. Em cada canto superior esquerdo
há uma pequena figura de são Paulo. Presume-se que esteja lá
porque um calendário litúrgico prescreve as festas anuais da Igreja,
com os textos a serem usados em cada uma, e leituras das
Epístolas de Paulo são parte integrante da missa. Contudo, Paulo
escreveu cartas para onze destinatários, não doze, e assim se
completa o número em janeiro com o acréscimo de sua conversão
ao cristianismo, caindo do cavalo e olhando para trás para ver a
mão de Deus surgir do céu (Atos 9,4). Depois disso, a cada mês, ele
se dirige a uma nova audiência, na ordem em que aparecem na
Bíblia, três cartas pequenas aos romanos em fevereiro, várias aos
coríntios em março, três aos gálatas em abril, duas aos efésios em
maio, e assim por diante até uma a Timóteo em setembro, a Tito
com dois amigos em outubro (seus companheiros podem ser Zenas
e Apolo, mencionados em Tito 3,13), uma solitária a Filêmon, em
novembro, e aos hebreus em dezembro.
A Anunciação aos pastores, com uma cena de
pé de página de camponeses dançando ao
som de gaitas de fole, e figuras grotescas e
pássaros na moldura de folhas de hera.
Isso é bastante elaborado, e apresenta ecos que começam na
astronomia antiga e nos levam adiante para o célebre calendário
das Très Riches Heures do duque de Berry, cerca de oitenta anos
depois, e posteriormente para as Horas de Spinola no século XVI,
como veremos com mais detalhes no capítulo 12. Contudo, nada
que se compare com a complexidade teológica das cenas nas
margens inferiores das páginas com calendário nas Horas de Joana
de Navarra.
Em cada margem inferior há uma imagem de um edifício num
elaborado estilo gótico. É a Sinagoga, o templo da Lei Judaica. Ao
lado de cada prédio está um profeta do Antigo Testamento. Junto a
ele, um dos doze discípulos de Jesus, num improvável encontro
social. Eles mantêm uma conversa educada conquanto tensa, o
profeta usando uma adequada citação de seu livro na Bíblia, e o
discípulo respondendo com uma frase correspondente do Credo dos
Apóstolos. Assim, Jeremias diz em janeiro: “Patrem vocavit me”, “O
Pai me chamou” (Jeremias 3,4, e o texto bíblico de fato diz
“vocavis”), e São Pedro responde diplomaticamente: “Credo in
patre[m] omnipotentem creatorem celi et terre”, “Creio no Pai todo-
poderoso, criador do céu e da terra”. Davi cita seus salmos em
fevereiro, dizendo: “Filius meus es tu”, “Tu és meu filho” (Salmo 2,7);
são João Evangelista responde: “Et in ihesum xpistum filium eius
unicum, Dominum nostrum”, “E em Jesus Cristo seu único filho,
nosso Senhor”. Em março Isaías faz sua afirmação: “Virgo concepiet
et pariet filiu[m]” (Isaías 7,14), “A jovem está grávida e dará à luz um
filho”, e são Tiago contrapõe: “Qui conceptus est de spiritu sancto
natus ex m[ari]a virgine”, “Quem foi concebido pelo Espírito Santo,
nasceu da Virgem Maria”, e assim por diante, até Zacarias, em
dezembro, quando o profeta cita a si mesmo no versículo 9,13 de
seu livro sobre o levante de seus filhos e são Matias responde com
a última sentença dos Credo dos Apóstolos sobre a ressurreição da
carne e a vida eterna. Isso não é tudo. Em cada cena o profeta vai
buscar atrás dele e retirar um tijolo da Sinagoga, e depois o passa
ao apóstolo. Os tijolos lembram pequenos livros, como o manuscrito
encontrado pelo soldado em Berchtesgaden, que ele confundiu com
um tijolo. Enquanto ele faz isso, o apóstolo agarra a bainha do
manto do profeta. À medida que cada tijolo é removido, a antiga
Sinagoga começa a ruir, mês a mês, um de seus pilares já
desmoronando em março, uma torre se desprendendo em abril,
todo um lado já em ruínas em junho, e assim por diante, até que
nada resta da Lei Judaica a não ser um monte de escombros em
dezembro. A Igreja Cristã, finalmente, pode ser agora construída
com os tijolos salvos da Sinagoga demolida.
A iconografia desse distintivo ciclo de calendários, assim como a
das Horas de São Luís, é exclusiva de um pequeno grupo de
manuscritos interconectados, todos feitos para a corte francesa. A
provável fonte é outro manuscrito real, o assim chamado “Breviário
de Belleville”, iluminado por volta de 1330 pelo mais famoso e
inovador de todos os iluminadores da corte parisiense no início do
século XIV, Jean Pucelle (m. 1334). Seu calendário é mais ou
menos idêntico, num formato maior. Na verdade todo o Livro de
Horas de Joana de Navarra tem estreita afinidade com vários
manuscritos pintados por Pucelle, inclusive o das Horas de Joana
d’Évreux, já citado, agora no Metropolitan Museum de Nova York,
com certeza atribuído a Pucelle no século XIV. Joana d’Évreux era a
irmã mais moça do marido de Joana de Navarra, e os membros da
família com certeza conheciam os manuscritos uns dos outros e
provavelmente os emprestavam a seus artistas favoritos como
modelos. O Livro de Horas à nossa frente tem detalhes que sem
dúvida foram copiados do Livro de Horas de Joana d’Évreux, talvez
direto dele, inclusive a composição em estilo italianado da cena da
Anunciação, com os mesmos ruidosos anjos músicos no sótão, e
muitos pequenos detalhes das margens, como o mesmo perfil de
um homem com barba grisalha que ornamenta as margens de baixo
e exteriores da Anunciação aos Pastores, em ambos os
manuscritos.
O calendário das Horas de Joana de Navarra,
com sua iconografia muito incomum, é cópia
exata do ligeiramente mais antigo Breviário de
Belleville (na figura seguinte), iluminado pelo
artista da corte Jean Pucelle.
Na verdade, há várias autorias reconhecíveis nas miniaturas do
Livro de Horas de Joana de Navarra. Foram separadas e
numeradas por Sydney Cockerell em 1902, e suas avaliações em
geral ainda são respeitadas. Seus pintores 1 e 2 são, a meu ver,
praticamente indistinguíveis. Esse artista, ou par de artistas, pintou o
calendário (copiando do Breviário de Belleville), as Horas da
Trindade, as Horas de São Luís e muitas figuras individuais
espalhadas pelo manuscrito, inclusive as das santas Apolônia e
Margarete, que seriam santas pessoais de Joana de Navarra. Sua
obra é conhecida por inúmeros outros manuscritos, inclusive livros
datados de 1336 e 1343. O artista talvez tenha sido aluno ou ex-
aprendiz de Jean Pucelle, com acesso aos desenhos de seu mestre.

A Anunciação no Livro de Horas de Joana de Navarra, com anjos


músicos no sótão (à dir.) ecoando a composição na miniatura de
Pucelle nas Horas de sua cunhada, Joana d’Évreux (à esq.).

O artista mais interessante, o terceiro na numeração da Cockerell,


é estilisticamente o mais realizado. Na verdade, é o principal
iluminador aqui. Pintou dezoito das miniaturas, inclusive figuras para
o texto nuclear do manuscrito, as Horas da Virgem (onde
encontramos os dois paralelos de Pucelle recém-citados, a
composição da Anunciação e o homem rústico de barba grisalha),
as Horas da Cruz e muitas figuras individuais, inclusive duas que
mostram a própria Joana de Navarra. É um estilo muito
reconhecível. A mão desse mesmo artista aparece numa variedade
de manuscritos reais sobreviventes feitos em Paris em meados do
século XIV, incluindo livros feitos para Iolanda de Flandres, Carlos V
e o duque de Berry. Felizmente, há bons registros de arquivos com
os salários pagos pela corte francesa. Documenta-se apenas um
pintor contratado por esses três patronos. Chamava-se Jean le Noir.
Foi empregado por Carlos V em 1366, era “illumineur du roi” em
1371 e estava na folha de pagamento do duque de Berry em 1372 e
em 1375. Deve ter sido ele. Aqui, pela primeira vez em nossas
visitas a manuscritos, temos a obra de um artista profissional com
um nome e uma autenticidade histórica verificável.
Conhecemos até mesmo seu endereço. Jean le Noir possuía uma
casa no lado oeste da Rue Erembourg de Brie, na Rive Gauche de
Paris, a cerca de dez minutos de caminhada diretamente ao sul do
palácio real. Hoje se chama Rue Boutebrie. Ainda começa no fim da
Rue de la Parcheminerie, outro nome sobrevivente do comércio de
livro medieval, e se junta ao que é agora o Boulevard Saint-Germain
na estação de metrô Cluny-La Sorbonne. O interessante é que Jean
Pucelle, supostamente seu professor, também morou no mesmo
lado da mesma rua até sua morte, em 1334, e Jean le Noir deve ter
herdado a casa. A primeira referência a ele ocorre pouco antes de
1332, quando “Jehannin Lenoir, enlumineur à pincel” foi preso pelo
suposto roubo de quatro centavos que um tal de Jean de Beauvais
tinha deixado em dois baldes, os quais foram roubados e achados
do lado de fora dos alojamentos de Noir, na margem direita. Depois
disso ele pode ser consistentemente rastreado em vários registros
municipais de Paris até sua morte, por volta de 1380. Sua filha,
Burgot, também era iluminadora.
Tudo que concerne ao Livro de Horas de Joana de Navarra aponta
para Paris. Era a mais rica e maior metrópole da Europa, com uma
população de cerca de 250 mil habitantes. Era a sede da corte real,
o bispado de Paris administrado da Notre-Dame, e da maior
universidade da Idade Média. A riqueza e as necessidades dessas
três instituições fizeram com que Paris atraísse os melhores artistas
e artífices. Havia oficinas na Île de la Cité, entre o palácio real e a
catedral, e nas pontes cobertas sobre o Sena. Foi um período de
primorosos manuscritos, preciosos trabalhos em metal, marfim,
tecidos e joias de infinitos refinamento e custo. Ao mesmo tempo, a
França enfrentava colheitas ruins e pragas implacáveis, que
culminaram na peste negra de 1348-9. O país estava sendo
arrastado para a tremendamente dispendiosa Guerra dos Cem Anos
de 1337, com suas derrotas desastrosas em Crécy (1346) e Poitiers
(1356). No entanto, a julgar pelos manuscritos iluminados, era como
se os membros da família real desdenhassem das dificuldades do
reino. Viviam vidas mansas em castelos e palácios. Seus
manuscritos circulavam quase que exclusivamente entre eles. O
Livro de Horas de Joana d’Évreux e o Breviário de Belleville, por
exemplo, foram ambos herdados por Carlos V e depois pelo duque
de Berry. Como nas dinastias reais só havia casamentos dentro de
círculos sociais muito delimitados, seus bens mais preciosos eram
mantidos em família.
Foi sugerido ainda no século XIX que o Livro de Horas de Joana
de Navarra deve ter sido a princípio presenteado a ela por Filipe VI,
o rei que fechou o acordo pelo qual ele seria o rei da França
enquanto a ela se destinaria o trono de Navarra. O motivo de tal
sugestão é a inclusão de uma miniatura no fólio 150r que mostra um
rei e uma rainha com sua família ajoelhando-se ante as relíquias da
Sainte-Chapelle, sem dúvida reconhecíveis pelos estandartes
heráldicos com borlas como o próprio Filipe VI e sua primeira
mulher, Joana da Borgonha, com quem ele se casou em 1313 e que
morreu em 1348. Na verdade, pareceria mais lógico supor que essa
doação tenha vindo de outra direção. Que o manuscrito foi feito para
Joana de Navarra não há dúvida, já que ela é citada nominalmente
no texto, mas não há evidência de que ela tenha levado o livro para
Navarra, ou de que alguma vez ele tenha deixado a capital. A figura
de Filipe VI e de sua família é obra do quarto artista do manuscrito,
de acordo com a numeração de Cockerell. Esse artista específico
pintou dezessete das miniaturas, que se distribuem em dois grupos
de Sufrágios, todos com retratos de santos. Seu aspecto, no todo, é
diferente do da obra dos pintores anteriores, tanto no estilo como no
acabamento mais bruto. Não sou a primeira pessoa a se perguntar
se elas não representam uma fase posterior na decoração do
manuscrito. Talvez devessem ser datadas da década de 1340.
Joana de Navarra pode ter passado adiante o livro após a morte de
seu marido, em 1343. O retrato do rei e da rainha ajoelhados na
Sainte-Chapelle inclui outros membros de sua família. Estão
acompanhados por um jovem que ergue os braços numa súplica. É
sem dúvida seu filho e herdeiro, o príncipe João (1319-64), depois
João II, rei da França. Logo atrás do príncipe veem-se os rostos de
uma mulher e de um menininho, impossíveis de serem identificados
com exatidão como outros membros da família de Filipe VI em
meados da década de 1330. Se redatarmos essa miniatura para
uma década depois, no entanto, sua presença ali se encaixaria, pois
a mulher seria, nesse caso, Bona de Luxemburgo (1315-49), filha do
rei da Boêmia, que se casou com João em 1332, e a criança seria
seu filho, o jovem Carlos V, nascido em janeiro de 1338.

Um dos últimos acréscimos às Horas de Joana


de Navarra, mostrando Filipe VI, rei de França,
ajoelhando-se com sua família ante as
relíquias na Sainte-Chapelle.

Os Sufrágios, todos por esse mesmo quarto pintor, incluem a


figura muito incomum de são Luís de Marselha, bispo de Toulouse,
sobrinho de são Luís de França e, portanto, outro santo na família.
Ele foi canonizado em 1317. Acredita-se que tenha salvado a vida
daquele mesmo príncipe João, quando o menino estava doente e
sem esperança de cura, e seu agradecido pai fez mais tarde uma
peregrinação ao santuário de Luís em companhia do marido de
Joana de Navarra. Já observamos antes as marcas, no começo do
manuscrito, de emblemas medievais de peregrinos que uma vez
estiveram costurados no livro. Portanto, esse é um livro de horas
que foi levado para um santuário. Isso se soma à probabilidade de
que o manuscrito já tenha passado de Joana de Navarra para a
custódia de Filipe VI e sua família. Como a tradição rezava que
esses livros fossem usados principalmente por mulheres, é razoável
supor que foi entregue aos cuidados da princesa coroada, Bona de
Luxemburgo. A figura de seus sogros reais enfatizaria suas
conexões por matrimônio com a dinastia de são Luís, um legado
que ela, por sua vez, passaria a seu jovem filho.
Tanto Joana de Navarra como Bona de Luxemburgo morreram na
peste negra, com uma diferença de poucas semanas, no outono de
1349, a primeira com 37 anos, a segunda com 34. A filha de Joana,
Branca, casou-se depois com Filipe VI, foi sua segunda mulher, e
tornou-se rainha. Entre os filhos de Bona estava Carlos V, rei da
França a partir de 1364, e o famoso duque de Berry. No manuscrito,
o brasão de armas de Évreux foi em muitos casos parcialmente
raspado para deixar apenas o semé*** real francês com as flores de
lis da França. Em um local foi pintado sobre as armas o novo brasão
com três flores de lis, adotado por Carlos V em 1376. É provável que
o manuscrito tenha permanecido na família.
Às vezes a procedência do manuscrito é de uma obviedade tão
incrível que ninguém a enxerga por completo. Voltemos nossa
atenção para uma entrada detalhada no inventário da biblioteca do
duque de Berry em 1402. Ela registra um livro de horas que nunca
foi identificado como qualquer manuscrito sobrevivente. Segundo a
descrição do livro, ele abre com as Horas da Trindade e as Horas da
Virgem, e contém uma extensa série de orações aos santos: “Unes
Heures de la Trinité et de Notre-Dame, ou il a pluseurs
commemoracions de saints…”. É muito incomum que qualquer livro
de horas comece com as da Trindade, como faz nosso manuscrito
logo após o calendário, seguido de imediato das Horas da Virgem,
como está na lista, e o manuscrito tem de fato um número
excepcional de figuras de santos, chegando a trinta, no total. Só isso
já torna a identificação fascinantemente tentadora. Contudo, o
inventário continua. “Estas [Horas], lindamente ilustradas e
iluminadas”, explica a descrição, “pertenceram à senhora duquesa
da Normandia, mãe de sua Senhoria”: “lesquelles furent de ma
dame la duchesse de normandie mere de mons [eigneur], tres bien
escriptes ystoriees et enluminees…”. Não era outra senão Bona de
Luxemburgo, duquesa da Normandia de 1332 a 1349, que aparece
no manuscrito no fólio 150r, e a presumível receptora acima
sugerida. Depois se descreve a encadernação: tem dois fechos
esmaltados e traz as armas da rainha da França e da Baviera. Isso
se refere a Isabel da Baviera (1370-1435), rainha de Carlos VI, que
se casou com ela em 1385. O livro de horas deve, portanto, ter sido
reencadernado para ela, antes de chegar a João de Berry. E ainda
há mais: sabemos até mesmo o que o duque de Berry fez com o
manuscrito. Há uma anotação à margem do inventário: “Doado à
rainha da Inglaterra”. Como essa doação pelo duque não pode ter
sido feita antes de 1402, essa rainha da Inglaterra deve ser Joana
de Navarra (c. 1370-1437), duquesa viúva da Bretanha, que se
casou com Henrique IV da Inglaterra em 7 de fevereiro de 1403.
Pode até mesmo ter sido um presente de casamento, e era
totalmente apropriado. Essa nova rainha inglesa não era apenas
sobrinha de duque de Berry (pois sua mãe era Joana da França,
irmã mais moça dele), mas também uma neta de Joana de Navarra,
para quem o manuscrito fora feito originalmente. Por uma segunda
vez, portanto, a oração “intercedas pro me ancilla tua Johanna
Navarre regina” era aplicável à sua dona, mas dessa vez era uma
Joana diferente, e, em vez disso, rainha da Inglaterra.
Inventário do duque de Berry em 1402 com uma descrição
detalhada de um livro de horas herdado de sua família, quase com
certeza as Horas de Joana de Navarra.
O duque de Berry (1340-1416), cuja irmã se
casou com o filho de Joana de Navarra,
recebendo convidados para jantar, na
miniatura que abre suas Très Riches Heures.

Se essa identificação está correta, é possível preencher uma


grande lacuna na história do manuscrito. O Livro de Horas foi feito
para Joana de Navarra. Ao que parece, foi passado, ainda durante
sua vida, para a família de seu primo, que pode ter empregado o
quarto artista, e para a nora deles, Bona de Luxemburgo. Depois
passou, por intermédio do filho de Bona, Carlos V, para a nora
deste, Isabel da Baviera, que mandou fazer fechos para a
encadernação, e dela para o duque de Berry, que diplomaticamente
o deu para sua sobrinha, uma neta real da proprietária original. Essa
descendência em zigue-zague pela linhagem feminina é muito
característica em livros de horas. O que é significativo nesse caso é
que cada uma das mulheres da realeza era uma descendente direta
— ou casada com um descendente direto — de são Luís. O
manuscrito pertenceu assim a três rainhas de diferentes países e a
uma princesa coroada, assim como ao rei de França e ao próprio
duque de Berry, o maior colecionador de livros da realeza na Idade
Média. Sydney Cockerell venderia a alma para saber tudo isso.
Frontispício do início do século XV por um
artista inglês, acrescentado às Horas de Joana
de Navarra, mostrando uma mulher ajoelhada
em oração, aparentemente uma rainha da
Inglaterra.
Uma prova virtual para identificar o duque de Berry com o
presente oferecido à rainha da Inglaterra é provida por um
frontispício, uma página ilustrada inserida no começo do manuscrito,
o qual, não fosse isso, seria inexplicável. Foi pintada por um artista
inglês por volta de 1420, quase certamente em Londres. Mostra
uma mulher envolta num arminho régio, ajoelhada ante a Trindade e
a Virgem com o Menino, correspondendo os dois aos textos que
definem o manuscrito no inventário do duque de Berry. A mulher tem
um arco de ouro de formato oval acima do cabelo — não pode ser
um halo, e seria com certeza algum tipo de touca alta — e seu
vestido está dividido entre as cores heráldicas da França e da
Inglaterra. Ela segura um rolo no qual se lê, “[mer]cy and grace”, em
inglês. O mesmo artista iluminou o Livro de Horas para Catarina de
Valois (1401-37, filha de Carlos VI e rainha de Henrique V a partir de
1420), e é possível que tenhamos de acrescentar mais uma rainha
da dinastia real francesa à crescente e cada vez mais estrelada
procedência do Livro de Horas de Joana de Navarra.
O próximo passo na história do manuscrito o leva de volta a Paris,
embora não saibamos com exatidão como isso aconteceu. Eu
presumiria que o costume de passar o livro para filhas ou noras da
linhagem de são Luís simplesmente chegou ao fim com Catarina de
Valois, que não tinha nem uma nem outra. Em vez disso, alguém
decidiu, portanto, dar o livro ao convento de Cordelières, na Rue de
Lourcines, no Faubourg Saint-Marcel em Paris, o convento de
clarissas franciscanas cofundado pela viúva de são Luís. Ele atendia
a mulheres da classe mais alta e homenageava a memória do
próprio são Luís. Na falta de descendentes efetivos do santo rei, ele
teria sido um lugar apropriado para abrigar o manuscrito. Fica hoje
na moderna Rue Broca, 13o Arrondissement. As folhas
acrescentadas no final do manuscrito incluem uma litania de uso
indubitavelmente franciscano, numa escrita francesa, e cuja data
não seria anterior a 1481, uma vez que invoca o santo franciscano
Berardo de Carbio, canonizado naquele ano, e as orações têm um
formato apropriado à comunidade feminina. Abaixo da última linha
do manuscrito há uma inscrição apagada em que Cockerell lê “Ces
heures sont a seur anne belline”, o que é possível, embora eu
mesmo não consiga ler. Isso não tem de significar necessariamente
que pertencesse à irmã Anne, e sim que foi destinado a seu uso no
convento.
Por sorte, há uma inequívoca aparição do manuscrito no século
XVII, quando é possível demonstrar que pertenceu às freiras
franciscanas na Rue de Lourcines. O antiquário Nicolas-Claude
Fabri de Peiresc (1580-1637), que apareceu de passagem no
capítulo 4 (p. 190), estava interessado na iconografia de são Luís.
No convento havia pinturas murais medievais sobre a vida do santo.
Quando ele as examinava, uma das irmãs deve ter lhe contado
sobre seu livro de horas, com suas raras e ilustradas Horas de São
Luís. Peiresc foi autorizado a levá-lo emprestado por vários dias, em
1621. As breves anotações à tinta na folha de abertura foram feitas
na caligrafia dele. Peiresc fez um extenso relato do manuscrito
inteiro, com desenhos de muitas de suas miniaturas, e com acerto
identificou o dono original como Joana de Navarra. Essas
anotações, hoje entre os documentos dele na biblioteca em
Carpentras, foram publicadas em Paris em 1882, mas naquela
época não se sabia se o livro de horas nelas descrito tinha
sobrevivido.
Espero que Peiresc tenha realmente devolvido o manuscrito à
biblioteca do convento. Ele era um colecionador de livros
compulsivo e pode ter sido tentado a ficar com ele. Parece que o
Livro de Horas já não estava na posse das freiras antes de a casa
ser finalmente fechada e demolida, em 1796. Sua encadernação em
marroquim com exageradas gravações em ouro tinha todas as
características que marcam a obra de Richard Wier (m. 1792), um
encadernador de Londres de ascendência escocesa que,
juntamente com sua mulher, trabalhava em Toulouse desde 1774.
Eu decalquei as gravações com cuidado, esfregando o lápis num
papel colocado sobre elas, esperando a cada momento que os
vigias me abordassem com a ameaça de um processo e da
guilhotina logo ao amanhecer, mas eles sorriram, condescendentes.
As características das encadernações de Wier incluem
contraguardas de seda colorida orladas com seixas de largura
incomum com ornamentos dourados, como é o caso deste
manuscrito, e faixas de meandros gregos no topo e no pé da
lombada, o uso de grandes flores douradas nos compartimentos da
lombada dentro de losangos com brotos, e os títulos em rótulos
vermelhos e verdes estampados em capitulares inclinadas, com
frequência demonstrando um domínio precário do francês. Nesse
caso, lia-se nos rótulos: “HEURES SUR: VELIN” e
“AVECMINITURES” (sic, e formando uma só palavra, como aqui). O
alcoolismo de Wier recrudesceu. Seu único cliente na França era o
conde Justin MacCarthy Reagh (1744-1811), abastado proprietário
de terras de Tipperary, criado parte do tempo na França, e
posteriormente um dos grandes colecionadores de livros do século
XVIII. Em 1761 MacCarthy vendeu suas propriedades irlandesas e
emigrou para Toulouse. Em 1765 se casou com a filha do dono de
vastas plantações de cana-de-açúcar nas Índias Ocidentais. Em
1776 negociou para si a cidadania francesa e o título de conde. A
grande biblioteca de MacCarthy, rica em manuscritos iluminados e
edições de luxo de livros impressos em velino, foi catalogada pelos
irmãos Bure, livreiros parisienses, em 1815, e essa publicação
também serviu mais tarde como catálogo de um leilão para a venda
da própria biblioteca, em 1817. O Livro de Horas de Joana de
Navarra deve ter sido o lote 392, que foi comprado pela firma de
livreiros londrinos Payne and Foss, de Pall Mall, por 350 francos,
que equivaliam então a treze libras e dez xelins. Devem tê-lo
comprado com intenção de vender a Francis Douce (1757-1834),
para quem tinham comprado seus manuscritos naquele dia, e, se
tivessem conseguido, o Livro de Horas de Joana de Navarra estaria
agora na incomparável coleção de Douce, na Biblioteca Bodleiana
em Oxford.
Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637),
primeiro antiquário que estudou as Horas de
Joana de Navarra e identificou seu proprietário
original.

No início do século XIX não era raro manuscritos caros ficarem no


comércio durante décadas. Payne e Foss ficaram no negócio até
1850. O Livro de Horas foi finalmente vendido em 1874 por 73 libras
e dez xelins por outro livreiro de Londres, Henry George Bohn
(1796-1884), de New Bond Street, para Bertram, quarto conde de
Ashburnham. Foi nesse ano que Ashburnham também comprou de
Libri o Beato do século X, como descrito no capítulo 5. O Livro de
Horas de Joana de Navarra ficou sendo H. 88 na biblioteca de
Ashburnham Place, em Sussex. Assim como o Beato, então, foi
incluído em 1897 na venda, pelo quinto conde, de todo o restante do
“Apêndice de Ashburnham” para Henry Yates Thompson. Foi
avaliado na época em trezentas libras.
O fantasma de Sydney Cockerell (1867-1962) tem pairado neste
capítulo. Ele tinha sido secretário e testamenteiro de William Morris
(1834-96), o grande designer e protagonista da arte medieval, e
entre a morte de Morris e sua nomeação como diretor do Museu
Fitzwilliam em Cambridge, em 1908, Cockerell ganhou a vida como
consultor e catalogador de manuscritos iluminados para pessoas
muito ricas, inclusive Yates Thompson. Ele tornou-se um incansável
paladino do Livro de Horas de Joana de Navarra, que deve a ele
sua importância e fama. Foi Cockerell quem alçou o belo mas não
identificável livro de trezentas libras à reputação de ícone de
dimensão mundial. Ele pegou o livro emprestado durante três
semanas em fevereiro de 1899 e o levou consigo a Paris, onde o
mostrou a Léopold Delisle na Bibliothèque Nationale. Várias
anotações feitas por Cockerell naquela conversa, a lápis, ainda são
visíveis na segunda folha de guarda, em sua característica e
minúscula caligrafia. Pode bem ter sido Delisle quem lhe indicou que
esse era o manuscrito de Joana de Navarra descrito por Peiresc,
conforme publicado em 1882, e cujo rastro se perdera. Mais tarde
naquele ano, sem dúvida equipado com material fornecido por
Cockerell, Yates Thompson patrocinou uma edição luxuosa do
manuscrito para apresentar ao círculo de bibliófilos do Roxburghe
Club, para o qual tinha sido eleito no ano anterior, chamada Thirty
Two Miniatures from the Book of Hours of Joan II, Queen of Navarre,
cujos exemplares foram distribuídos entre os membros, em 1899. O
segundo volume do catálogo de manuscritos de Yates Thompson
(1902), no qual o Beato foi descrito por M. R. James, tem uma
exaustiva introdução de Cockerell sobre o Livro de Horas de Joana
de Navarra, a qual, especialmente durante a subsequente
invisibilidade do manuscrito após 1919, continuou sendo sua
principal descrição. O manuscrito foi exibido em público pela
primeira vez no Burlington Fine Arts Club em 1908.
Sydney Cockerell (1867-1962), assessor de
colecionadores de manuscritos e mais tarde
diretor do Museu Fitzwilliam, Cambridge,
incansável defensor das Horas de Joana de
Navarra.

Em janeiro de 1919, Cockerell, agora representando o Museu


Fitzwilliam, ficou arrasado ao ouvir a notícia de que Yates Thompson
tencionava vender sua coleção (veja acima, na p. 219). Pegou o
manuscrito emprestado pela segunda vez e o levou a um jantar no
hotel Grosvenor House em Londres, em 30 de janeiro, onde
convenceu o mecenas secreto do Fitzwilliam, T. H. Riches, a
oferecer imediatamente 4 mil libras por ele, ficando entendido que
seria doado a Cambridge. O diário de Cockerell, agora na Biblioteca
Britânica, fornece os detalhes. Na manhã seguinte, Yates Thompson
estava inclinado a aceitar. A sra. Thompson, no entanto, disse que
ele com certeza valia 5 mil libras, e o acordo fracassou, para o
ultraje e a decepção de Cockerell. Em 14 de abril de 1919, The
Times anunciou o iminente leilão na Sotheby’s, mencionando o Livro
de Horas de Joana de Navarra e dizendo que tinha sido “descoberto
num convento em Paris pelo famoso Peiresc”, uma observação
aparentemente supérflua que teria um grande efeito no resultado da
venda. O leilão realizou-se em 3 de junho. O Livro de Horas de
Joana de Navarra era o lote V (a numeração era em algarismos
romanos). A venda foi realizada por Sir Montague Barlow, um sócio
da Sotheby’s. Começou com um lance de 2 mil libras. Edmund
Dring, da Quaritch, representava o barão Edmond de Rothschild,
para quem o manuscrito tinha um significado especial, já que ele e
seu filho já possuíam juntos o Livro de Horas de Joana d’Évreux, as
Très Belles Heures do duque de Berry, as Belles Heures do duque
de Berry e o Livro de Horas do primo do duque, Carlos, o Nobre. Os
Rothschild, assim como os patronos reais na França do século XIV,
gostavam de manter matrimônios e manuscritos dentro da família.
No entanto, houve uma competição inesperada no recinto do
leilão, por parte de Charles Hagberg Wright (1862-1940, armado
cavaleiro em 1934). Conquanto bibliotecário de profissão, era um
homem de recursos, um colecionador e membro do Roxburghe
Club, e tinha se casado no mesmo ano com uma próspera viúva.
Mais relevante do que isso, Hagberg Wright era apaixonado por
tudo o que dizia respeito a Nicolas Fabri Peiresc. Tinha publicado
uma biografia dele em 1926, inclusive uma descrição do encontro de
seu herói com o Livro de Horas de Joana de Navarra, em 1621.
Para o inesquecível assombro dos presentes naquele leilão da
Sotheby’s em 1919, Hagberg Wright foi elevando seus lances para o
manuscrito com uma obstinação que beirava a loucura, forçando o
barão de Rothschild a pagar o preço sem precedente de 11 800
libras, que com folga permaneceu durante muitos anos o recorde
para qualquer manuscrito vendido em um leilão. Na mesma venda,
o Beato do século X, avaliado em 1897 em 1600 libras (comparando
com as 3 mil libras do Livro de Horas), alcançou apenas mil libras.
Depois, pela sexta e última vez em sua história, o Livro de Horas de
Joana de Navarra atravessou novamente o canal.

A esta altura estamos prestes a examinar um material


completamente desconhecido. Respondendo a meu pedido de mais
informação, Charlotte Denoël, do departamento de manuscritos na
Bibliothèque Nationale da França, levou-me a seu colega, Aurélien
Coreaux, dos próprios arquivos da biblioteca. Os dois falaram de um
arquivo interno de documentos sobre sua aquisição do Livro de
Horas em 1967-73. Voltei a Paris para vê-lo na nova Bibliothèque
François Miterrand, situada em frente ao terminal da linha 14 do
metrô, a leste de Paris. É um enorme prédio moderno de madeira,
vidro e metal prateado, entre quatro blocos de torres no formato de
livros abertos apoiados em suas bordas inferiores. Você desce
vários andares até chegar às salas de leitura dispostas em torno do
perímetro de um grande subterrâneo central bem iluminado, onde
estão plantadas árvores e samambaias. Fui encaminhado à Salle T
— são todas numeradas alfabeticamente —, que é dedicada à
Documentation sur le livre.
O dossiê é classificado como E38/b221. O arquivo é uma caixa
branca cheia de pastas de papel amarelo, com um único invólucro
de cor púrpura. Há cartas, memorandos, fotocópias antiquadas,
rascunhos de respostas e assim por diante, alguns grampeados, a
maioria em ordem cronológica inversa. As principais figuras
constantes nos documentos são Étienne Dennery, administrador-
geral da biblioteca, Marcel Thomas, guardião de manuscritos, maître
Georges Izard, o advogado da biblioteca, e dom Bernard Besret,
prior da Abadia de Boquen na Bretanha, onde o manuscrito foi
redescoberto, e o barão Edmond de Rothschild, herdeiro de sua tia,
a baronesa Alexandrine. Os documentos no arquivo nos permitem
incluir datas, que até então faltavam, e contam uma história bem
diferente da relatada por Maurice Rheims.
O manuscrito foi depositado por Besert para ser examinado na
Bibliothèque Nationale em 1967, aparentemente em julho. Até então
se pensava que tinha pertencido à família de Anjou, mas foi logo
reconhecido pela equipe da biblioteca como o Livro de Horas de
Joana de Navarra, e foi comparado com a entrada correspondente
no Répertoire des biens spoliés. Pode haver informação bastante
para identificar o que tinha sido efetivamente embolsado em
Berchtesgaden, pois, além de ser oficial médico, aquele descobridor
anônimo foi descrito por Besret como um ex-député das Côtes-d’Or.
Edmond de Rothschild foi devidamente informado dessa herança
inesperada, e há uma carta de Maurice Rheims, do final de 1967,
relatando a Dennery que o barão ficou então inclinado a vender o
manuscrito em leilão, e a dividir os resultados entre a Abadia de
Boquen e uma fundação que ele mesmo estava estabelecendo em
Jerusalém. Em 28 de dezembro de 1967 o barão foi a uma reunião
da Bibliothèque Nationale para discutir os termos sob os quais, em
vez disso, eles poderiam tornar a comprá-lo compartilhando os
resultados com Boquen. Houve uma proposta para uma avaliação
independente pelos livreiros parisienses Giraud-Badin.
A bomba estourou na forma de um memorando datado de 14 de
fevereiro de 1968 e enviado pela sra. Böhm, do Ministério das
Finanças em Berlim. Ela estava fornecendo informações
sensacionais e exatas sobre o manuscrito durante a guerra.
Relatava que ele tinha sido classificado com a referência “R 1550”
no Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg (o ERR), sede da
classificação das obras de arte roubadas estabelecida no museu
Jeu de Paume em Paris, e que de lá tinha sido enviado
pessoalmente (com essa palavra sublinhada) para Hermann Göring
em 10 de março de 1942. Além da história de o manuscrito ter sido
achado junto ao trem estacionado em Berchtesgaden, que tem
Besret como única fonte (inclusive sua carta datada de 12 de junho
de 1968), essa é a primeira evidência independente que temos de
que o Livro de Horas de Joana de Navarra foi requisitado pelo
próprio Göring. Além disso, explicava a sra. Böhm, Alexandrine de
Rothschild já tinha recebido ressarcimento do governo alemão. A
documentação está anexada. O advogado da baronesa, Hans
Deutsch, tinha apresentado uma reivindicação em 29 de março de
1958 pela perda de numerosas obras de arte durante a guerra,
inclusive o Livro de Horas de Joana de Navarra, que para esse fim
fora avaliado pelo comerciante Heinrich Eisemann em 73,2 milhões
de francos franceses, pouco mais de 50 mil libras, ou pouco menos
de 150 mil dólares. Por esse e muitos mais itens que tinham
desaparecido, o ministério em Berlim concordara, em 25 de
setembro de 1958, em pagar reparações no valor total de 17,5
milhões de marcos alemães (cerca de 1,5 milhão de libras, ou 4,2
milhões de dólares), e essa quantia enorme foi transferida para a
baronesa, na Suíça, em 3 de março de 1959. Portanto, como
acontece com qualquer reivindicação comum de seguro quando o
pagamento foi realizado, o inesperadamente recuperado Livro de
Horas de Joana de Navarra já não era propriedade da família
Rothschild e pertencia tecnicamente ao governo da Alemanha
Ocidental, que ressarcira seu valor.

Hermann Göring (1893-1946) com Adolf Hitler (1889-1945)


inspecionando um quadro que aquele pretendia levar para sua
coleção particular de arte.

Há que admirar dom Bernard Besret. Ele não desiste sem lutar, e
prosseguiu reivindicando sua parte no valor, concernente à abadia,
até 1968, e solicitando que lhe devolvessem o manuscrito, coisa que
em junho de 1968 a Oberfinanzdirektion em Munique instruiu a
Bibliothèque Nationale a não fazer enquanto a questão estivesse em
litígio. Por fim, em outubro de 1969, após discutir com Maurice
Rheims, Besret reconheceu a derrota. Em 7 de novembro de 1969,
o barão Edmond, que não tinha tomado conhecimento do acordo de
sua tia com a Alemanha, também recuou educadamente. Em teoria,
se o caso fosse mantido, o governo da Alemanha Federal poderia
ter solicitado o envio do manuscrito para uma biblioteca em Berlim
Ocidental ou em Munique, por exemplo. Talvez com isso em mente,
Marcel Thomas conseguiu, em 1971, que ele fosse designado como
monumento inexportável da cultura francesa.
Enquanto isso, a Bibliothèque Nationale estava numa negociação
aparentemente interminável com a embaixada da Alemanha
Ocidental. Marcel Thomas tinha convocado a ajuda de Florentine
Mütterich, historiadora de manuscritos em Munique e amiga de todo
mundo, e juntos haviam visitado Hans Hauser, o adido cultural da
Alemanha em Paris, enfatizando o espírito de boa vontade
internacional que resultaria de uma solução generosa. Foram feitos
cálculos tendo como base os 365 mil marcos pagos a Madame
Alexandrine, mais juros de 4% desde a data da recuperação do
manuscrito, e em 15 de janeiro de 1973 Herr Hauser finalmente
concordou em escrever, em nome do Ministério Federal de
Finanças, os termos de ressarcimento por parte do governo francês,
pagável em três prestações anuais. A quantia foi paga, e o título foi
transferido. A própria Joana de Navarra nunca conquistou o trono da
França, mas seu aventuresco Livro de Horas está hoje recolhido
com segurança à biblioteca nacional francesa, à qual com justiça
pertence.

* Or, o ouro heráldico, é representado por um campo branco salpicado de pontos. (N. T.)
** i2+2 [acréscimo de um bifólio, fólios 1-2, precedidos de uma guarda em branco e
seguidos por uma miniatura acrescentada em c. 1420], ii7 [vii em branco, de 8, viii
cancelada, um folha em branco após o fólio 10], iii-v8, vi4, vii-xiv8, xv6, xvi8, xvii7 [de 8,
faltando v, numerado “121”], xviii7 [de 8, faltando iii, uma folha após o fólio 126], xix8, xx-
xxi7 [de 8, em ambos faltando vii, folhas após os fólios 145 e 152], xxii-xxvi8, xxvii4
[aparentemente completo], xxviii-xxxiv8, xxxv4 [o final do manuscrito original], xxxvi5 [final
do século XIV, de 6, vi cancelado após o fólio 263], xxxvii8 [final do século XV], a maior
parte com chamadas.
*** Em heráldica, grupo de símbolos no campo (o fundo de um escudo) de um brasão. (N.
T.)
10

Chaucer de Hengwrt
c. 1400
Aberystwyth, Biblioteca Nacional do País de Gales, Peniarth MS 392
D

Não é com frequência que escribas medievais figuram nas primeiras


páginas de jornais nacionais. “Desmascarado o copista desleixado
de Chaucer após 600 anos”, foi a manchete de The Guardian, na
Inglaterra, na terça-feira 20 de julho de 2004. A história, baseada
num comunicado à imprensa do dia anterior, relatava como Geoffery
Chaucer (c. 1343-1400), autor dos Contos da Cantuária, uma vez
tinha escrito um verso curto aparentemente endereçado a seu
escriba particular chamado “Adam”, implorando-lhe que fosse mais
cuidadoso ao copiar; o artigo contava como a caligrafia dos dois
mais antigos manuscritos sobreviventes dos Contos da Cantuária
tinha sido identificada com a de um documento do final do século
XIV assinado por um tal Adam Pinkhurst, agora revelado como o
próprio copista misterioso. A descoberta foi creditada com razão a
Linne R. Mooney, uma americana originária do Maine, hoje
professora no departamento de inglês da Universidade de York. A
professora Mooney, explicava o artigo,
rastreou Pinkhurst estudando sua assinatura num juramento que constava
nos registros mais antigos da Companhia dos Escrivães da cidade de
Londres, e comparando-a com os manuscritos de Chaucer […]. “Muita gente
tinha olhado esses registros antes, mas acontece que não eram pessoas
que estavam trabalhando sobre o tema dos escribas”, disse ontem a The
Guardian a professora Mooney. Não estavam equipados para reconhecer
que a assinatura de Pinkhurst também era a caligrafia dos Contos da
Cantuária […]. Nem tinham feito a formidável imersão que fez a professora
Mooney nos aspectos caligráficos daquele período.
Ainda vamos comentar brevemente por que essa sensacional
identificação iria transformar o que sabemos sobre a circulação
original da maior obra da literatura medieval inglesa, mas, por
enquanto, consideremos a reação pública a essas notícias no verão
de 2004. Em vez de ficar contente, como eu esperava, a
comunidade acadêmica britânica ficou indignada. Em parte, sem
dúvida, houve ressentimento pelo fato de que uma estrangeira, na
verdade uma americana, estivesse sendo festejada como uma
especialista em assuntos tão tipicamente ingleses. Sem terem a
delicadeza de ponderar sobre os indícios que ela apresentou, houve
aqueles que de imediato prejulgaram qualquer identificação feita por
Linne Mooney como inerentemente absurda. Lembrando um pouco
como se costuma fazer com homens que escrevem sobre temas
feministas, Linne foi apenas descartada, como se fosse
desqualificada para se pronunciar sobre o assunto. Isso foi de uma
injustiça terrível e sem dúvida motivo de muita perturbação para ela.
O mundo tranquilo das salas de professores nas universidades pode
ser muito cruel. As controvérsias que se seguiram acerca de Adam
Pinkhurst chegaram a se assemelhar às guerras de panfletos do
século XVIII, alimentadas tanto por crença e inveja como por
racionalidade e verificação histórica.
A partir de 2004, os estudos sobre os manuscritos de Geoffrey
Chaucer se dividem por completo no quesito identificação. Há
aqueles — certamente no que pode ser chamada de “extremidade
Wikipedia” do espectro — que a aceitam como fato comprovado, e
que levaram a questão adiante, atribuindo mais manuscritos ao
escriba e inflando sua carreira e sua importância na disseminação
do grandioso texto de Chaucer. Adam Pinkhurst, desconhecido
durante a maior parte da história, tem agora seu próprio e
considerável verbete no Oxford Dictionary of National Biography,
escrito, o que não é de surpreender, por Linne Mooney, que sem
erro o intitulou “escriba de Geoffrey Chaucer”, e asseverou que sua
“caligrafia é facilmente reconhecível”. Há outros que ainda
hostilizam toda essa sugestão. No melhor dos casos, muitos
paleógrafos britânicos de inclinação conservadora declinaram de se
comprometer. Creio que foi o falecido Malcolm Parkes que, nas
discussões sobre esse assunto, usou pela primeira vez a
diplomática expressão “o júri ainda está debatendo” quanto à
identificação, e essa é ainda a resposta murmurada com frequência
por muitos acadêmicos. Uma vez que os tribunais — e os que
trabalham neles — aparecem recorrentemente tanto nos registros
da vida de Chaucer como no texto de seus Contos da Cantuária,
convoquemos o júri para os propósitos deste capítulo e
interroguemos as testemunhas.
Chaucer era o filho de um taverneiro ou atacadista de vinhos de
Londres. Teve uma boa instrução e era fluente em diversas línguas.
Viajou para o exterior. Foi membro do exército de Eduardo III na
Guerra dos Cem Anos, foi capturado durante o cerco a Rheims em
1359 e resgatado vários meses depois. Casou bem, com uma
mulher que era íntima da casa real. Ocupou vários cargos na
administração régia, sobretudo como fiscal da alfândega para
importação e exportação de lã, peles e couros, no porto de Londres.
Chaucer serviu como diplomata, juiz de paz e membro do
Parlamento. Viveu na geração na qual a língua inglesa finalmente
ganhava respeitabilidade. Antes do século XIV, as classes mais altas
na Grã-Bretanha medieval falavam francês (ou um dialeto chamado
anglo-normando) e a maior parte do letramento era em latim.
Durante trezentos anos, o inglês, oriundo do anglo-saxão, não era
mais que a língua vernacular de camponeses iletrados, que ia
absorvendo palavras do francês à medida que evoluía. Em seguida
à agitação social causada pela peste negra em 1348-50, esse novo
híbrido conhecido como inglês médio começou a subir na escala
social. O círculo de Chaucer pertencia à muito respeitável classe
média alta. Seus primeiros textos literários incluíam o Book of
Duchess, que comemorava a morte em 1368 da esposa de João de
Gante, duque de Lancaster. Foi escrito em inglês. Chaucer fez uma
tradução de A consolação da filosofia de Boécio do latim para o
inglês, a qual intitulou Boece, por volta de 1380, e Troilus and
Cryseide [Troilo e Criseida] — romance de cavalaria em verso
baseado na guerra de Troia — em meados da década de 1380. A
fama de Chaucer hoje em dia se deve principalmente aos Contos da
Cantuária, uma vasta antologia de histórias em verso e em prosa
que ele começou a escrever provavelmente por volta de 1387. Os
contos são apresentados como se tivessem sido narrados por 29
peregrinos sem nada em comum entre eles, que por acaso se
encontram numa jornada de Londres para o santuário de são Tomás
Becket na Cantuária. Segundo o Prólogo Geral do texto, foi sugerido
pelo anfitrião do grupo na Estalagem do Tabardo, em Southwark, e
que era o líder da excursão, que eles deveriam se entreter nas
viagens que faziam juntos contando histórias, duas cada um no
percurso até Cantuária, e duas cada um no caminho de volta para
casa. Como proposto originalmente, a coleção completa deveria
envolver 120 histórias. Apenas cerca de duas dúzias estavam mais
ou menos acabadas na ocasião da morte do autor, já avançado nos
seus cinquenta anos, em outubro de 1400.
Não se conhecem manuscritos do próprio punho de Chaucer. As
duas cópias mais antigas de Contos da Cantuária, com frequência
atribuídas a c. 1400 ou pouco depois disso, constituem o manuscrito
que é o objeto deste capítulo, o assim chamado Chaucer de
Hengwrt, que vamos visitar em Aberystwyth, e uma cópia
notavelmente maior mas um pouco mais tardia, conhecida como
Chaucer de Ellesmere, que pertenceu uma vez à família Bridgwater,
depois lordes Ellesmere, cujos descendentes a venderam em 1917
a Henry Huntington, da Califórnia. Hoje ele é um tesouro estelar em
suas biblioteca e galeria de arte conterrâneas, em San Marino, perto
de Los Angeles, abertas ao público em 1928. É o manuscrito com as
famosas figuras nas margens que mostram diversos peregrinos
montados a cavalo. Quase tudo que se possa razoavelmente saber
sobre o texto original de Contos da Cantuária depende do que
dizem esses dois testemunhos primários, Hengwrt e Ellesmere, e
eles constituem o fundamento de todas as edições modernas. Até
onde se pode fazer uma avaliação, parecem apresentar textos muito
puros e precisos.
Foi sugerido ainda em 1935 que os manuscritos de Hengwrt e de
Ellesmere podem ter sido copiados pelo mesmo escriba. Isso foi
confirmado em 1978 num artigo inovador de Ian Doyle e Malcolm
Parkes, os gigantes gêmeos da principal corrente paleográfica do
inglês médio, e eles acrescentaram dois exemplos posteriores da
caligrafia do mesmo escriba. São um fragmento de Troilo e Criseida,
de Chaucer, nos arquivos em Hatfield House, em Hertfordshire, e
um trecho da escrita de um manuscrito do Confessio amantis, de
John Gower, em inglês médio, copiado por diversos escribas
diferentes e agora na biblioteca do Trinity College, Cambridge.
Identificando-o nessa sequência de diferentes copistas de Gower,
Doyle e Parkes lhe atribuíram o epíteto neutro e incolor de “Escriba
B”. Quem quer que fosse, deve ter sido algum tipo de escriba
profissional que viveu num período muito próximo ao do tempo de
vida de Chaucer, trabalhando na região de Londres, o que é
consistente com sua ortografia. Até agora, isso é incontroverso e de
aceitação mais ou menos universal.
Nossa primeira testemunha a ser chamada ao julgamento de
Adam Pinkhurst tem de ser o próprio manuscrito Chaucer de
Hengwrt. Num tribunal de verdade, as testemunhas devem começar
declarando seus nomes. Hengwrt, que significa “Casa Antiga” em
galês, foi uma vez uma grande casa, agora demolida, perto de
Dolgellau, Gwymedd, cerca de quarenta quilômetros ao norte de
Aberystwyth, em Gales. Rabiscos e às vezes inscrições infantis no
manuscrito mostram que no século XVI ele pertenceu a alguém em
Chester, na fronteira galesa. Em meados do século XVII o
manuscrito tinha sido adquirido por Robert Powell Vaughan (c. 1591-
1667), um antiquário galês, que herdou as propriedades de Hengwrt
da família de sua mulher. Sua biblioteca incluía monumentos
incomparáveis da literatura galesa antiga, como o Livro Negro de
Camarthen, do século XIII, e o Livro Taliesin, do século XIV. O
Chaucer foi catalogado lá em 1658 como “Membrana 154 Chaucer’s
Works very fairly wrotten on vellom. In fol. 4 inches thick”
[Membrana* 154 Obras de Chaucer muito bem escritas em velino. In
fol. 4 polegadas de espessura]. Ficou nas estantes em Hengwrt,
completamente abandonado, até a morte do terceiro baronete, Sir
Robert Vaughan (1803-59), que não tinha filhos, e que legou os
manuscritos da casa a seu amigo William Wynne (1801-80), de
Peniarth, ele mesmo um grande colecionador. Em 1904 as duas
bibliotecas, a de Hengwrt e a de Peniarth, foram compradas do
espólio de Wynne por Sir John Williams (1840-1926), médico e
filantropo, fundador benemérito da Biblioteca Nacional de Gales, e
um dos menos plausíveis entre os muitos candidatos que foram
sugeridos como a identidade de Jack, o Estripador. A locação da
nova biblioteca em Aberystwyth, na costa ocidental, em vez de na
capital Cardiff, deve-se principalmente à condição estabelecida no
legado de Williams, que data de 1909.

O manuscrito de Ellesmere para os Contos da Cantuária, hoje na


Biblioteca de Huntington, Califórnia, copiado pelo mesmo escriba
de Chaucer de Hengwrt.
Pequeno fragmento de um manuscrito perdido
do Troilo de Chaucer, nos arquivos de Hatfield
House, copiado pelo mesmo escriba dos
manuscritos de Hengwrt e de Ellesmere.

A Biblioteca Nacional de Gales (ou Llyfrgell Genedlaethol Cymru)


é realmente um dos mais magníficos e inacessíveis postos
avançados de estudo nas Ilhas Britânicas. Aberystwyth fica a no
mínimo cinco horas de carro de Londres, dependendo do tráfego.
Não há aeroportos mais próximos que os de Birmingham ou
Manchester. De trem, que foi como eu viajei, mesmo a rota mais
rápida leva três horas e quinze minutos saindo de Birmingham, num
pequeno trem parador — que no início do trajeto é tão lotado que
tive de viajar em pé — que passa por Wolverhampton e Shrewsbury
e depois atravessa toda a extensão da Gales central, parando em
pequenas estações com nomes que soam antigos, como Caersws,
Machynketh, Dovey Junction e Borth. É uma paisagem de campos
verdejantes e solitárias casas de fazenda feitas de pedra, que
lembra um desses modelos de trem de brinquedo de muito tempo
atrás. Enfim, o trem, agora quase totalmente vazio, entra devagar
em Aberystwyth, uma encantadora cidade litorânea com casas altas
do século XIX em cores pastel e telhados de ardósia ao longo da
orla. Eu me hospedei no Gwesty Cymryu, na avenida litorânea
Marine Terrace, com vista para o mar e para o pôr do sol.
Aberystwyth transmite uma melancólica sensação de fora de
estação (na verdade, foi em meados de junho), com quase nenhum
tráfego e somente gaivotas na praia, com sua areia crocante e
cinzenta e ondas mansas. Como todos falam galês (e falam
mesmo), impenetrável aos ingleses, tudo parece tão estrangeiro
quanto a Finlândia, e os ocasionais carros com a familiar licença
britânica são um choque, toda vez que passam.

Biblioteca Nacional de Gales, estabelecida em 1907, construída


como um grande palácio na colina que dá para a cidade litorânea
de Aberyswyth.
Na manhã seguinte peguei um táxi para subir o morro até a
Biblioteca Nacional, que fica num lugar espetacular, bem acima dos
telhados de ardósia da cidade, lá embaixo. É um grande edifício
clássico em granito, com uma pedra inaugural ao pé da escadaria
frontal, que comemora sua abertura por George VI em julho de
1937. Soube depois que o prédio tem muitas outras datas
comemorativas, por ter sido expandido e revitalizado em todos os
estilos arquitetônicos, do início do século XX em diante. Entra-se no
andar térreo, e à direita da escada, passando por uma roleta de
vidro, chega-se a um saguão baixo com um balcão de informações
e, em frente a ele, a livraria da biblioteca. Expliquei à recepcionista
de plantão, uma moça com belos cabelos, que tinha vindo ver
Maredudd ap Huw, curador de manuscritos. Ela me respondeu em
inglês, é claro, mas falou com ele ao telefone em galês. Manteve
uma longa conversa, com olhares sérios em minha direção. Eu não
tinha ideia do que estavam tratando, mas imaginei que ela o estava
advertindo quanto a esse visitante muito estranho com um olhar
perigoso e um cabelo desgrenhado, que ela absolutamente não
recomendava, e então sorriu com candura e pediu-me que
esperasse um momento.
Maredudd é um jovem alto e bem-vestido com cabelo escuro
cortado rente e óculos de aro fino. Não poderia ter sido mais solícito
ou receptivo. Na verdade, foi tudo muito embaraçoso. Eu tinha
esperado ser levado em anonimato para a sala de leitura, como em
visitas anteriores, mas em vez disso fui conduzido apressadamente
escada acima até a Sala do Presidente, uma espécie de sala de
reuniões de executivos com vista para Aberystwyth, com um busto
de mármore de Sir John Williams sobre um pedestal, a um canto.
Parecia estar cheia de gente. Lá fui apresentado a Sally McInnes,
chefe de preservação das coleções, Nia Mai Daniel, encarregada de
arquivos e manuscritos, Rhys Davies, arquivista, e até a Aled
Gruffydd Jones, bibliotecária nacional e executiva-chefe.
Aparentemente todos tinham vindo para testemunhar meu primeiro
encontro formal com seu grande manuscrito em inglês médio. Assim
como o Livro de Kells, o Chaucer de Hengwrt está incluído no
Registro da Memória do Mundo, da Unesco, e não é tirado de seu
lugar com frequência. Um fotógrafo flanava ao fundo. Eu poderia
dizer que estava a ponto de desapontar a todos, especialmente se
estivessem esperando por avaliações imediatas e revelações
surpreendentes.
A sala é longa e estreita com uma janela alta de esquadria
metálica na extremidade mais afastada. Suas venezianas tinham
sido erguidas. Fui colocado junto a uma longa mesa com uma
incrustação de couro verde, numa cadeira com um estofamento que
combinava. Em frente a mim havia uma lareira art déco em mármore
amarelo e branco da década de 1930. Já sobre a mesa, uma caixa
revestida de tecido marrom com uma gravação na lombada,
“PENIARTH/ MS; 392D”, talvez uma das menos memoráveis
referências a qualquer manuscrito de importância mundial. Abaixo
do número, uma marca em couro vermelho, indicando (como me
explicou Maredudd) o mais alto nível de restrição de acesso. Deram-
me um par de luvas brancas num pacote rotulado “Made in China”, o
que pode explicar seu tamanho diminuto. Eu primeiro as usei,
diplomaticamente, mas, à medida que o dia avançava, foram
descartadas com discrição.
O comitê de recepção prendeu a respiração quando retirei o livro
da caixa, mas eles logo se entediaram e foram embora. O Chaucer
de Hengwrt está encadernado num moderno marroquim vermelho
de alta qualidade, com uma figura em linhas pretas dentro de uma
moldura e num padrão losangular, com tiras trançadas que saem da
capa inferior e terminam em aros prateados que se adaptam a
encaixes nas bordas da capa superior. As capas são de madeira,
notoriamente maiores que as páginas de texto. O título na lombada
tem uma extensão desnecessária: “THE TALES OF CANTERBURY”,
“GEOFFREY CHAUCER” e “HENGWRT. 154. PENIARTH MS. 392D”, todo
em ouro. A encadernação foi feita na Biblioteca, em 1954. A
Gregynog Press, gráfica privada das irmãs Gwendoline e Margaret
Davies em Gregynog Hall, na Gales central, foi fechada em 1940, e
os estoques de couro não utilizados e materiais excedentes de sua
encadernadora artística foram doados à Biblioteca Nacional em
Aberystwyth por Margaret Davies em 1954. A Biblioteca decidiu usá-
los para reencadernar alguns de seus grandes tesouros, inclusive o
Chaucer. O resultado é muito mais tradicional do que, digamos, o
austero carvalho dos Evangelhos de Santo Agostinho, ou o Livro de
Kells, embora suas encadernações sejam de datas similares. As
frágeis laterais da encadernação medieval anterior do manuscrito de
Hengwrt estão preservadas em separado, e me foram mostradas
também. As antigas capas são quase negras, a nova encadernação
é vermelha. As cores parecem ser um apropriado (conquanto isso
seja, sem dúvida, uma coincidência) eco do erudito de Oxenford,
que segundo o conto de Chaucer tinha na cabeceira de sua cama
vinte manuscritos encadernados em preto e vermelho.
O manuscrito mede cerca de 29 por 21 centímetros. A página de
abertura tem uma borda iluminada em volta do texto, com barras
cor-de-rosa e azul onde brotam, a intervalos, pequenos tufos de
folhagem. A primeira folha está inegavelmente desgastada e agora
bem reluzente de tanta exposição, e o pigmento cor-de-rosa, em
especial, desbotou, mas o ouro ainda brilha sobre uma camada
espessa de gesso branco. Há uma grande capitular “W” com seis
linhas de altura, da famosa linha de abertura, “Whan that Averill wt
his shoures sote…” [Quando abril com suas doces chuvas…].
Embora esse manuscrito não seja tão luxuoso quanto o Chaucer de
Ellesmere e nem remotamente da classe dos textos literários
iluminados seus contemporâneos, que eram feitos na França para
patronos como o duque de Berry, mesmo assim não é um livro
barato. Ele usa ouro. Tem um bom tamanho, sobretudo em
comparação com muitos manuscritos em inglês médio de sua
época, como Piers Plowman ou a Bíblia de Wycliffe, que em geral
são pequenos e pouco imponentes. É escrito em pergaminho, não
papel, que então já era usado na Inglaterra em livros não
dispendiosos, e a pele aqui é de boa qualidade, macia ao toque.
O aspecto que de imediato salta à vista como o mais marcante do
manuscrito, no estado em que hoje sobrevive, é que cada margem
externa superior foi substituída, mais invasivamente do que se nota
em qualquer dos fac-símiles. Pergaminho é proteína, um comestível
para roedores. É provável que quando o livro esteve negligenciado
no século XVIII em Hengwrt os cantos superiores de todas as
páginas tenham sido roídos. (Consigo até vislumbrar por aí uma
história infantil chamada O rato que roeu o Chaucer de Hengwrt.)
Quando o livro foi reencadernado em 1956, essas margens
defeituosas foram substituídas por tiras de pergaminho novo e
branco, sem nenhuma tentativa caridosa de harmonizá-las com as
antigas e esmaecidas páginas adjacentes. O resultado é que a cor
de cada abertura parece a de um cão spaniel malhado em marrom e
branco. Ao mesmo tempo — isso nunca aconteceria hoje em dia —
os cortes superiores foram tingidos de vermelho e depois dourado,
mesmo as bordas das novas inserções, e isso pode ser atribuído
àquela mesma encadernação, como o atestam manchas de
vermelho que respingaram no pergaminho de substituição, no fólio
87.
A maior parte do livro compreende texto escrito, em colunas
estreitas quando é em versos rimados, ou em retângulos verticais
em passagens de texto em prosa, cada página com quarenta linhas,
escritas numa caligrafia inglesa bem grande e espaçada. A escrita
do escriba B é curiosamente similar à tipologia da segunda edição
dos Contos da Cantuária com 38 linhas, impressa por William
Caxton em Westminster, em 1483. O manuscrito tem belas
capitulares ornamentadas em azul com trabalhos de pena em
vermelho, e há marcas de parágrafo num azul intenso por toda
parte. Muitas páginas têm os títulos dos contos nas margens
superiores. Com a ajuda destes, é fácil se localizar no texto. O
tamanho da escrita é tão grande que pode ter sido usada em
recitação pública. Ao refletir sobre isso, lembrei-me do frontispício
de página inteira na cópia do Troilo de Chaucer na Biblioteca Parker,
de c. 1415-20, que aparentemente apresenta o autor lendo ou
declamando seu poema numa festa aristocrática ao ar livre. O
Chaucer de Hengwrt é um livro que se deve ou apoiar num atril ou,
pelo menos, segurar com as duas mãos. Quando eu o consultei, o
tive sobre uma grande e macia almofada cinza.
Página de abertura do Chaucer de Hengwrt,
com a capitular iluminada e a moldura para o
Prólogo Geral dos Contos da Cantuária.
Prólogo dos Contos da Cantuária, uma descrição do proprietário
de terras e do guarda real, na segunda edição dos contos,
impressa em Westminster por William Caxton em 1483.
A mesma passagem do texto no Chaucer de
Hengwrt, mostrando a descrição do
proprietário de terras (a partir da linha 7) e do
guarda real.

Como a encadernação é moderna e o livro abre bem, é fácil


conferir o alceamento.** Eu descrevo isso abaixo de modo bem
incomum, com pausas para indicar que o volume se divide muito
claramente em cinco unidades distintas, quase como cinco
manuscritos separados: 1) cadernos i a viii, 2) cadernos ix a xii, 3)
cadernos xiii a xv, 4) cadernos xvi a xxix e finalmente 5) cadernos
xxx a xxxi. Cada seção parece ter sido feita como se fosse uma
entidade em separado. O fólio 57v, última página da primeira
unidade, se interrompe, sem terminar, na segunda página do “Conto
do Cozinheiro”, deixando um espaço em branco, como se o escriba
estivesse esperando que o texto continuasse. Numa tinta
ligeiramente diferente, o mesmo escriba, agora sabendo que não
havia nada depois disso para ser copiado, anota à margem: “Of this
Cokes tale maked Chaucer na moore” [Deste Conto do Cozinheiro
Chaucer não fez mais nada]. A página seguinte, fólio 58r, na
verdade parece ser a abertura de um novo manuscrito, com seu
próprio cabeçalho, “Here bigynneth the prologe of the tale of the Wyf
of Bathe” [Aqui começa o prólogo do Conto da Mulher de Bath], e
uma grande capitular “E”. Essa unidade termina com o final do
“Conto do Beleguim”, chegando ao pé do fólio 86v, e o fólio 87 é
inteiro branco, como se fosse uma folha de guarda no final do
manuscrito. Depois o fólio 88r começa de novo, como se fosse a
página de abertura de um texto diferente, mais uma vez, com “Here
bigynneth the prologe of the Monkes [tale] [Aqui começa o prólogo
do [Conto do] Monge] (com a palavra “tale”, a última no texto em
inglês, um pouco roída pelo rato), com sua grande capitular própria,
“W”. Essa seção termina com a conclusão do “Conto do Provedor”,
três cadernos depois, no fólio 111, sem nenhuma deixa. A primeira e
a última páginas dessa unidade estão claramente mais sujas do que
os fólios adjacentes 87v e 112r, como se a unidade tivesse circulado
em separado, antes de ser encadernada. Similarmente, o caderno
xxix termina no fólio 234v no que de fato parece ser o final de um
manuscrito, com um colofão caligráfico com o nome do autor, “Here
is endid Chaucers tale of Melibe” [Aqui termina o Conto de Chaucer
sobre Melibeu]. O fólio 235r, adjacente, que é a abertura da unidade
final, “Here bigynneth the Persons tale” [Aqui começa o Conto do
Pároco], também está mais escuro e mais sujo, como se esta
também tivesse sido mantida à parte por algum tempo. Além disso,
essas cinco seções diferentes nem mesmo foram reunidas na
ordem correta. A terceira unidade (fólios 88-111) deveria ter sido
encadernada entre as unidades quatro e cinco, entre os fólios 234 e
235. Nós sabemos isso porque o fólio 88r começa: “Whan ended
was my tale of Melibee…” [Quando terminou meu Conto sobre
Melibeu…], e o “Conto sobre Melibeu” termina efetivamente no fólio
234v, e o fólio 235r começa: “By that the Mau[n]ciple hadde his tale
al ended…” [E com isso o Provedor terminou seu conto…], e o
“Conto do Provedor” termina nessa encadernação no fólio 111v.
O “Conto do Cozinheiro” no Chaucer de Hengwrt, interrompido
com imperfeição, com uma anotação do escriba de que Chaucer
não tinha escrito além dali, seguido da abertura do “Conto da
Mulher de Bath”.
Abertura do “Conto do Monge”, terceiro
componente distinto do manuscrito de
Hengwrt, que aparenta ser a primeira folha de
um novo manuscrito.
Tudo isso é bem sabido pelos estudiosos de Chaucer, mas é muito
perceptível como essas unidades são inequivocamente visíveis no
próprio manuscrito, como se esse volume tivesse sido uma dessas
antologias medievais, conhecidas em alemão como Sammelbände,
as quais os donos originais montavam encadernando múltiplos
textos curtos recolhidos de diversas fontes. A diferença é que esse
composto inteiro de componentes separados foi todo escrito pelo
mesmo escriba.
Não posso oferecer nenhuma explicação razoável para a óbvia
desordem de encadernação de algumas seções do manuscrito,
sobretudo porque preservam fielmente a sequência da
encadernação anterior, que era medieval tardia. Isso não foi,
portanto, um embaralhamento relativamente moderno feito por
algum encadernador precipitado, como é o caso de Carmina
Burana. Uma hipótese seria que as cinco diferentes seções fossem
na verdade cada uma um modelo em separado, praticidade que lhes
permitia ser entregues avulsas a vários copistas de uma só vez,
como se fazia com as unidades chamadas peciae, que eram
encomendadas a escribas pelos livreiros da Paris medieval. Apenas
quando estes tivessem cumprido seu intento é que todas deviam ser
devolvidas ao Escriba B, e depois, talvez após sua morte,
encadernadas pela primeira vez, na ordem aleatória em que os
componentes estivessem empilhados naquele momento.
Devemos ter o cuidado de não entrar demasiado em minúsculos
detalhes, mas é realmente difícil deixar de ter a impressão de que
um escriba recebia e processava textos em prestações, de onde
quer que viessem, sem saber de antemão ao que cada parte iria se
integrar. Alguns cadernos têm tamanhos estranhos. As duas folhas
do caderno vi, seguidas de outro caderno de seis folhas, podem
representar o que foi uma vez um caderno de oito folhas, refeito
com textos substitutos, em duas etapas, à medida que as cópias
iam sendo feitas. Os espaços deixados em branco entre alguns
contos (como os dos fólios 128v, 153r, 153v e 165r) podem se dever
ao fato de o escriba estar ainda esperando trechos de conexão para
unir as histórias, as quais nunca receberam. No primeiro destes (o
fólio 128v), existiu realmente um prólogo para o “Conto do
Escudeiro”, pois ele aparece no manuscrito de Ellesmere, e por isso
o escriba teve razão ao esperar. Dois prólogos no manuscrito de
Hengwrt provavelmente chegaram tarde e foram encaixados. O do
“Conto do Mercador” foi comprimido no fólio 137v, que pode ter sido
deixado em branco enquanto era aguardado. O fólio 153 está numa
folha que foi inserida possivelmente porque a passagem na qual o
anfitrião apresenta o fazendeiro chegou no último minuto. Mais do
que tudo, a evidente espera por mais do que um pequeno fragmento
do “Conto do Cozinheiro”, que se interrompe com aquela
subsequente — mas, na verdade, acurada — explicação “Deste
Conto do Cozinheiro Chaucer não fez mais nada”, mencionada
acima, sugere um desapontamento que não se antecipara quando o
escriba começou a copiar o conto uma página antes disso. A
explicação deriva claramente de uma situação mais informada do
que a de um exemplar defeituoso. Na época em que essas palavras
foram escritas, afinal, o escriba sabia que Chaucer tinha morrido.
Em geral é possível datar a maioria dos manuscritos com bastante
precisão com base apenas no estilo. A evolução constante das
escritas e das modas na iluminação de livros, sobretudo num centro
metropolitano como a Londres medieval, nos permite atribuir datas
prováveis à maior parte dos manuscritos dentro do âmbito de mais
ou menos uma década, às vezes até mesmo de uns poucos anos.
Há uma concordância geral em que o estilo do Chaucer de Hengwrt
aponta para uma época entre (digamos) o final da década de 1390 e
os primeiros anos da de 1400. No entanto, raramente a datação de
um manuscrito foi tão crucial, pois Chaucer morreu, com os Contos
da Cantuária não terminados e não publicados, provavelmente em
25 de outubro de 1400. Naquele momento, estava claro que não
havia uma sequência determinada para muitos dos contos já
completados, e alguns talvez nem sequer estivessem atribuídos às
vozes de determinados peregrinos. Os rascunhos do próprio punho
do autor, que decerto devem ter existido, talvez estivessem em
pequenos pacotes, ou agrupamentos do tamanho de algumas das
unidades do manuscrito de Hengwrt. Se o manuscrito data de antes
de outubro de 1400, poderia, em tese, ter sido a cópia do próprio
Chaucer, preparada profissionalmente para ele, sob sua supervisão
pessoal, seção por seção, à medida que cada unidade de seu
próprio punho era completada e entregue para transcrição; se ele
data de após a morte do autor, então poderia, também em teoria, ter
sido tirada de esboços originais adquiridos dos executores
testamentários de Chaucer na proporção em que surgiam, um a um,
entre seus pertences. Se Linne Mooney estiver certa e o copista for
Adam, que trabalhara com o poeta quando este vivia, a autoridade
de seu texto teria uma importância ainda maior. No estudo de
qualquer obra de literatura precariamente transmitida mediante
intermináveis cópias feitas à mão a partir de cópias feitas à mão, o
sonho de todo estudioso é recuar até o mais próximo possível do
momento primeiro em que as palavras deixam a pena do autor.
Parece-me que o manuscrito foi trabalhado pelo escriba em duas
etapas distintas, possivelmente separadas até mesmo por alguns
anos. Os cabeçalhos e talvez as correções e as passagens de
conexão foram escritos após a finalização do texto e das iluminuras.
Isso não fora observado antes com exatidão. A primeira indicação
disso é o cabeçalho que serve de título na página de abertura. “Here
bygynneth the Book’ of the tales of Cant[er]bury”, que está escrito
acima e do lado de fora da barra iluminada que forma a moldura.
Em manuscritos ingleses daquela época os cabeçalhos estavam de
hábito contidos dentro dos limites da moldura iluminada; o título aqui
é, portanto, posterior à iluminação, e na época em que esta foi feita
não havia espaço dentro da moldura para ele. Isso tem certo
interesse, já que o título “Contos da Cantuária” não aparece na
abertura do manuscrito de Ellesmere. Ele ocorre bem no fim de
Ellesmere, que assim termina: “Heere is ended the book of the tales
of Caunterbury compiled by Geffrey Chaucer of whos soule Ih[es]u
crist have mercy Amen” [Aqui termina o livro dos Contos da
Cantuária compilados por Geoffrey Chaucer, que Jesus se
compadeça de sua alma, amém]. Isso é uma evidência de que
Chaucer já tinha morrido. É de presunção geral que as últimas
palavras compostas por Chaucer sejam uma estranha retratação
acrescentada bem no final do texto (que falta no manuscrito de
Hengwrt), na qual ele renega seus frívolos esforços literários como
uma vaidade terrena, listando várias obras, inclusive os Contos da
Cantuária, “that sownen into synne” [que soam a pecado], que foi o
primeiro uso desse título. Se o manuscrito de Hengwrt foi iniciado
durante a vida de Chaucer, o que pode ter acontecido, talvez nem
sequer se tivesse pensado no título.
Há outro detalhe relacionado a isso. As grandes capitulares azuis
são todas pintadas como preenchimento de pequenas letras-guias
escritas antes pelo escriba. As letras-guias foram sobrescritas
quando as capitulares foram inseridas. Isso é perfeitamente normal
e o que seria de esperar em todo manuscrito medieval tardio feito
por um profissional. Isso confirma (é um aspecto menor) que o
Chaucer de Hengwrt não foi uma realização caseira feita por um
amador isolado, mas produto de uma equipe de produção na qual
um escriba deixou instruções para um iluminador, que era outra
pessoa, trabalhando sem o exemplar diante de si. Um aspecto muito
mais revelador é que as pequenas marcas de parágrafo azuis ao
longo do texto, que se parecem um pouco com este símbolo ¶,
também são solicitadas pelo escriba mediante minúsculos zigue-
zagues, que subsequentemente também foram pintados por cima.
Contudo — acompanhem com atenção — não há indicações de
zigue-zague para as marcas de parágrafo que acompanham
cabeçalhos e explicitações. Em outras palavras, os cabeçalhos não
eram parte do projeto original do escriba na época em que estava
copiando o texto e quando o estava marcando para ornamentação.
Isso é muito significativo. O manuscrito foi evidentemente feito a
partir de uma série de livretos diferentes que continham pequenos
conjuntos de histórias de Chaucer. O fato de a primeira e a última
folha de algumas seções estarem bem desgastadas sugere que por
algum tempo os livretos não estavam encadernados juntos. A
reorganização do manuscrito para trazer os diferentes componentes
a uma única e unificada sequência, agora com cabeçalhos para
orientar o leitor pelo texto e sob o título abrangente de Contos da
Cantuária, aconteceu num segundo empreendimento separado,
após a morte de Chaucer e (anotem isso) quando o manuscrito
ainda estava com o escriba.
Espaço em branco à esquerda do final do “Conto do Magistrado”,
deixado na expectativa de mais texto que o conectasse ao
seguinte, “Conto do Escudeiro”, agora preenchido com as datas
de nascimento da família Brereton, 1605-12.
A esta altura, senhoras e senhores do júri, temos de convocar o
próprio Geoffrey Chaucer para que nos forneça evidências. Imagino
Chaucer no banco das testemunhas como aparece em seu retrato
no manuscrito do Corpus Christi College de Troilo, um homem
barbado com cabelos castanho-claros atirados para trás, usando
uma jaqueta de colarinho alto cor-de-rosa e diante de um púlpito do
qual pende, na frente, um pano vermelho e dourado. Ele lá está com
uma das mãos apoiada na beira do púlpito, e com a outra se dirige à
plateia.
Há um poema curto geralmente atribuído a Chaucer que aparece
num único manuscrito, uma miscelânea hoje depositada no Trinity
College, em Cambridge, datável em c. 1430-2. No original é
intitulada “Chauciers words a Geffrey unto Adame his own
scryveyne”, “Palavras de Geoffrey para seu escriba particular
Adam”. É o verso citado na advertência que abre este capítulo. Nele
se lê:

As marcas de parágrafo azuis no texto (à esq.) são solicitadas ao


escriba com pequenos floreios à pena, mas as dos cabeçalhos
editoriais (à dir.) não têm floreios e devem ter sido feitas em
separado.

Adam scryveyne/ if ever it thee byfalle


Boece or Troylu/ for to wryten nuwe
Under thy long lokkes/ thowe most have the scalle
But after my makyng thowe wryt more truwe
So offt adaye I mot thy werk renuwe
It to corect and eke to rubbe and scrape/
And al is thorugh thy necglygence and rape

(“Adam, escrivão [escriba], se alguma vez lhe ocorrer copiar


Boece ou Troilo novamente, que haja sarna sob seus longos
cabelos se não escrever com mais exatidão e de acordo com minha
composição; tenho de refazer seu trabalho com muita frequência,
para corrigir e também apagar e raspar, e tudo isso devido à sua
falta de cuidado e sua pressa.”)
Em geral, há quem conteste que esse verso seja realmente de
Chaucer, observando que o nome do autor não é mais que um
cabeçalho acrescentado ao manuscrito pelo compilador da
miscelânea, John Shirley (c. 1366-1456). No entanto, num
contrainquérito, Shirley demonstra ser uma testemunha confiável.
Ele foi um culto livreiro londrino, tradutor e escriba, que tinha trinta e
tantos anos quando Chaucer morreu. É muito fácil imaginar que
tenham se conhecido. Mais tarde, Shirley também foi, como
Chaucer, inspetor aduaneiro no porto de Londres. Certamente
trabalhou com todos os principais escribas seus contemporâneos.
Com frequência, assinava seu nome. Ele de fato escreveu nas
folhas de guarda do próprio Chaucer de Ellesmere e no manuscrito
Corpus Christi College de Troilo. Se houve na Inglaterra alguém que
conhecia pessoalmente cada uma dessas pessoas e os
manuscritos, esse alguém foi John Shirley. O poema para Adam
tinha sido impresso junto com as obras de Chaucer desde 1561 e
não há motivo plausível para duvidar de sua autenticidade. Se outra
pessoa o escreveu, o fez em nome de Chaucer, já que Boece e
Troilo são de sua autoria, e falam de um relacionamento que, para
ser entendido, tinha de ser crível.
Chaucer de pé num púlpito dirigindo-se a uma
audiência cortesã, detalhe do frontispício do
Troilo do Corpus Christi College, c. 1415-20.

A única outra possibilidade é que o poema seja meramente


alegórico, no qual o autor, como o Criador, se dirija a Adão, o
primeiro homem no universo, que com sua negligência confundiu
toda uma criação que uma vez fora perfeita. Em tal interpretação, a
sarna ameaçadora sob o longo cabelo de Adão poderia ser os
inchaços no pescoço que eram sintomas da peste negra, que muitos
na época de Chaucer consideravam uma punição divina para o mau
uso que a humanidade tinha feito daquilo que Deus confiara a seus
cuidados.
No entanto, tomemos isso por seu valor literal. Aqui está o poeta
Geoffrey Chaucer falando a “his own scryveyne”, “seu escriba
particular”, que ele conhece pelo primeiro nome. O escriba já copiou
Boece e Troilo e Criseida, textos compostos por Chaucer entre o
início e meados da década de 1380. O fato de Chaucer ter tido
acesso às transcrições para corrigi-las após Adam as ter feito
implica que era ele mesmo o cliente, que encomendara boas cópias,
que seriam depois novamente verificadas antes de se tornarem
exemplares aprovados para publicação. Se foi assim, isso data o
relacionamento na década de 1380. Não temos como adivinhar se a
crítica ao trabalho de Adam é uma brincadeira ou se significa que
ele era de fato um péssimo copista. Se era realmente ruim, não é
provável que Chaucer tivesse pensado em utilizá-lo de novo (e a
menos que seja humorístico, parece ser um poema bem fora de
propósito). O escriba do Hengwrt não dá mostras de falta de
cuidado e de pressa, mas sim do exato contrário.
Que Chaucer tenha precisado dos serviços de um escriba
contratado é uma questão totalmente aberta à especulação. À parte
o desdém que despeja sobre Adam no poema, ele satiriza a
caligrafia “escríbica” em Troilo, e no famoso retrato de Chaucer a
cavalo no Chaucer de Ellesmere, primeira imagem do autor num
volume copiado pelo mesmo escriba do manuscrito de Hengwrt, ele
é mostrado com um estojo de couro para penas pendurado no
pescoço, tradicional símbolo na arte para indicar um escriba
profissional. Nessa evidência, no mínimo, Chaucer era tido por um
contemporâneo seu como um escriba competente.
As tarefas de apagar e raspar mencionadas no poema são
comuns a todos os manuscritos na Idade Média, já que mesmo
escribas conscienciosos precisam corrigir e limpar seu trabalho. O
manuscrito de Hengwrt contém rasuras do tipo aludido por Chaucer,
e por vezes podem-se ver contra a luz palavras ou frases que foram
raspadas e reescritas. Os escribas usavam tanto facas quanto
penas, e ao contrário do papel, o pergaminho suporta grande
quantidade de raspagens. O ato da correção em si não era
incomum, mas a linha no verso provavelmente está mostrando que
o Adam do poema copiava manuscritos em pergaminho, e que
portanto ele era mais do que mero secretário de arquivamento.
Adam não era um nome raro na Inglaterra do século XIV. Muito
antes de Linne Mooney, estudiosos de Chaucer tinham pesquisado
nos arquivos do comércio de livros londrino possíveis candidatos ao
escriba mencionado no poema. O nome de Adam Pinkhurst foi
primeiro proposto, sem outro indício que não a coincidência do
nome, já em 1929. Outra possibilidade, que também corresponde à
data de Troilo, seria Adam Stedeman, registrado em 1384 como
escriba em Londres, e há também um Adam Leycestre, um
conhecido fabricante de pergaminhos em 1382, membro de uma
corporação que frequentemente se envolvia em múltiplas atividades
no comércio de livros. Alusões a apagamentos e raspagens
poderiam também ser uma provocação ao preparo apressado de
pergaminhos por Adam Leycestre.

“Palavras para seu escriba particular Adam”, de Chaucer, única


cópia de um poema curto no qual Chaucer parece estar
castigando Adam por sua falta de cuidado ao copiar Boece e
Troilo, desse autor.

Até aqui — e imaginemos o juiz somando todas as evidências


apresentadas no primeiro dia no tribunal — temos um manuscrito
que parece de fato ter sido copiado profissionalmente por um
escriba que teve acesso ao texto de Chaucer, que não era
conhecido antes nem tinha circulado publicamente, em cinco seções
diferentes, cada uma em seu tempo. Se Chaucer estava vivo
quando o manuscrito de Hengwrt foi iniciado, esse é o aspecto que
deveria ter uma boa cópia feita por um escriba. As correções não
parecem ter sido autorais. Vê-se com clareza que há uma segunda
etapa de manufatura, na qual o escriba retrabalhou o manuscrito de
Hengwrt, ainda em sua posse, inserindo cabeçalhos e o novo título:
Contos da Cantuária, e ele sabia então que Chaucer tinha morrido e
não escreveria mais. O manuscrito poderia ter sido preparado como
um modelo, a ser usado por outros escribas para difundir o texto.
Cerca de quinze anos antes, quando Chaucer tinha precisado de um
escriturário que lhe preparasse, da mesma forma, boas cópias de
Boece e de Troilo, ele aparentemente usou um escriba que conhecia
pela alcunha de Adam. A esta altura não dispomos de meios para
avaliar se eram ou não a mesma pessoa.

Finalmente os meirinhos de nossa corte ficcional, reunida de novo


na manhã seguinte, vão convocar o réu, o próprio Adam Pinkhurst,
para prestar depoimento. Ele o faz sob juramento. Pinkhurst foi um
dos primeiros membros da Companhia dos Escrivães, do final do
século XIV, uma guilda municipal para escribas e escritores de
documentos que ainda florescia como uma das antigas companhias
derivadas de guildas medievais que existiam no coração da cidade
de Londres. Acredita-se ter sido fundada em 1373, e o registro de
seus membros começou em 1392. O único registro disso pertence à
Companhia, mas está depositado a longo prazo na Biblioteca
Guildhall. A maior parte dos antigos arquivos da Companhia foi
destruída no Grande Incêndio de Londres em 1666, e esse é um
dos muito poucos sobreviventes da Idade Média. Para vê-lo, é
preciso ir até o Guildhall, em Aldermanbury, saindo da Gresham
Street, no distrito bancário de Londres, passar ao largo da entrada
principal e seguir margeando o prédio, acompanhando as placas de
sinalização. Você entra quando a placa diz “City Business Library”,
mas depois deve dobrar à esquerda e subir alguns degraus, e
estará na própria Biblioteca Guildhall. É surpreendentemente
moderna, com paredes de concreto, longas mesas brancas e
cadeiras vermelhas, sob brilhantes luzes fluorescentes. As mesas
estão ocupadas por homens de meia-idade com uma aparência
abatida, todos provavelmente em busca de uma história genealógica
ou comercial relativa a Londres.
O MS 5370, como hoje se apresenta, é guardado numa caixa
marrom acolchoada. É encadernado numa antiga capa flexível de
pele escura curtida, todo envolto numa grande faixa de couro como
se fosse uma bolsa de estudante, que se fecha com uma fivela de
metal. O texto começa com os regulamentos da Companhia dos
Escrivães na cidade de Londres. As páginas 53 a 162
compreendem as entradas feitas por novos membros de 1392 a
1600, que escreveram e assinaram seus juramentos de lealdade em
latim, às vezes vários em cada página. A oitava subscrição, que
está na página 56, é a de Adam Pinkhurst, uma das mais longas e
caligraficamente elaboradas de todas as entradas aqui. A julgar por
sua exuberância e loquacidade, pode-se imaginar Pinkhurst como o
tipo de pessoa extrovertida que hoje em dia usaria gravata-borboleta
e um blazer claro com um lenço saindo de um bolso. A entrada, em
essência, diz que Eu, Adam Pinkhurst, cidadão e escrivão judicial da
supracitada cidade, ciente de meu desmerecimento na dita arte ou
ciência, tendo conhecido e memorizado o juramento prescrito e
ordenado por esses homens tão valorosos, e assim por diante
(prolonga-se por 21 linhas), de livre e espontânea vontade
subscrevo os ordenamentos e regulamentos estabelecidos para a
honra e o uso de meu ofício, e escrevi voluntariamente esta página
de meu próprio punho como testemunho de meu juramento de
lealdade e como um registro para a perpetuidade. Assinado outra
vez na margem esquerda em letras grandes e ornamentadas, dentro
de uma moldura, está “Adam Pynkhurst”. Não está datado, mas é
crível supor que seja de meados da década de 1390.
É uma bela inscrição numa caligrafia formosa e grande. Minha
reação imediata, no entanto, foi achar que não se parecia muito com
o Chaucer de Hengwrt. Pus minha cópia do fac-símile ao lado do
juramento de Pinkhurst e fiquei olhando alternadamente para os
dois durante algum tempo. Pode haver várias explicações para uma
aparente discrepância. Primeiro, esse é um texto documental,
escrito em latim, enquanto os manuscritos de Chaucer são textos
literários em inglês em escrita padrão de livros. Na terminologia
paleográfica, a primeira seria chamada de “caligrafia secretarial”, e a
segunda de “anglicana” (ou “anglicana formata”, em seu nível mais
refinado). O fato de as línguas serem diferentes exacerba a
dificuldade de fazer uma comparação, pois há abreviações e letras
de alfabeto que são distintas em cada uma delas, inclusive letras do
inglês médio que não são usadas no latim. Esperava-se que um
escriba profissional dominasse várias escritas. Ainda sobrevivem
algumas folhas com escrita medieval padrão nas quais um único
escritor demonstra sua competência em diversas caligrafias,
dependendo de se está trabalhando (por exemplo) num documento,
num livro litúrgico ou num texto literário. Nisso se incluem também
determinadas práticas específicas da língua que está sendo escrita.
Manuscritos assinados não são escritos todos de maneira idêntica,
e comparar caligrafias não é a mesma coisa que cotejar tipologias.
Manuscritos com aparências distintas podem ser às vezes do
mesmo escriba, e, da mesma forma, manuscritos aparentemente
idênticos podem ser às vezes de escribas diferentes. Em sua
detalhada defesa da identificação do “Escriba B” de Hengwrt e de
Ellesmere com o Pinkhurst do livro de juramentos da Companhia
dos Escrivães, Linne Mooney discrimina doze formatos de letra
específicos muito recorrentes em ambos os escritos, juntamente
com dois formatos específicos de floreios decorativos acima das
linhas da escrita, que se encontram muitas vezes em manuscritos
literários do Escriba B e com abundância no juramento de Adam
Pinkhurst. Para ela, esses floreios são “tão característicos de
Pinkhurst que constituem quase uma assinatura”.
Juramento de lealdade escrito e assinado por Adam Pinkhurst na
década de 1390, no volume com ordenações e admissões à
Companhia dos Escrivães da cidade de Londres.

Quer o júri decida que Adam Pinkhurst é ou não o Escriba B dos


Chaucers de Hengwrt e de Ellesmere, sua entrada no livro de
juramentos da Companhia é uma prova de sua realidade como
figura histórica, trabalhando em Londres como escriba de registros
administrativos. Documentos não assinados que exibem todos os
critérios pelos quais Linne Mooney identifica a caligrafia de
Pinkhurst foram encontrados por ela e por seu grupo de
pesquisadores, datados de meados da década de 1380 a 1415, e
talvez até 1427, especialmente entre os registros oficiais da cidade
de Londres. Entre as tentativas de identificação inclui-se a de uma
requisição, hoje nos Arquivos Nacionais em Kew, na qual Geoffrey
Chaucer, em seu próprio nome, solicita ao rei da França que nomeie
um fiscal para a aduana da lã. Sugere-se, plausivelmente, que
Pinkhurst foi o escriba da petição da Companhia dos Comerciantes
ao conselho real em 1388, acusando o ex-prefeito Nicholas Brembre
de traição, a qual tem como distinção ter sido a mais antiga petição
que se pode datar escrita em língua inglesa. O estilo caligráfico de
Pinkhurst se encontra com muita clareza em vários registros nos
relatórios administrativos da Companhia dos Comerciantes na
década de 1390, e nos livros com cartas da Guildhall de Londres no
início da década de 1400, demonstrando que Pinkhurst, o Escrivão,
era membro íntimo da comunidade de funcionários que trabalhavam
nas guildas e estabelecimentos municipais de Londres. Com a
possível exceção da petição de Chaucer, que é quase conveniente
demais para ser verdadeira (e, como evidência, muito tênue), essas
identificações parecem incontroversas e apontam diretamente para
a atividade de Pinkhurst como redator de documentos. A entrada no
livro de juramentos da Companhia dos Escrivães, como outras
entradas medievais ali, é endossada na margem direita por uma
escrita um pouco posterior, “mortuus”, “falecido”; esse Adam
Pinkhurst existiu e morreu.
Hoje temos outra evidência independente de que existiu um
homem chamado Adam Pinkhurst, cuja mulher atendia pelo nome
de Joanna, que vivia em Surrey em 1355 e aparece de novo em
1370 como um dos arqueiros do rei, recebendo um salário vitalício
de seis pence por dia (o último foi pago em 1400, o que pode ser
explicado por sua possível morte ou simplesmente pela súbita
mudança de rei). Ainda não está claro se se trata de um ou de dois
Adam Pinkhurst. O homem de Surrey pode ter sido um arqueiro na
juventude que se voltou para o trabalho de escriba em anos
posteriores, ou talvez o arqueiro e o escriba fossem pai e filho com o
mesmo nome. Um homem já casado em 1355 não poderia ter
nascido muito depois de 1335, mais velho que Chaucer, o que o
deixaria com pelo menos oitenta anos em 1415, o que é possível
mas improvável para um escriba em atividade. O escrevente deve
ter sido seu filho ou um parente próximo.
Em acréscimo aos documentos, outros manuscritos literários
foram recentemente adicionados ao conjunto de livros atribuídos à
escrita de Adam Pinkhurst. Um deles, Piers Plowman, no Trinity
College, Cambridge, identificado por Simon Horobin e Linne
Mooney, parece ser de fato notavelmente semelhante à escrita de
Pinkhurst em sua entrada no livro de juramentos da Companhia dos
Escrivães, até mesmo nos floreios. Dois outros apresentam grande
semelhança com a escrita B, como ela se apresenta no Chaucer de
Hengwrt. Um, proposto primeiramente por Estelle Stubbs, é uma
cópia antiga de Boece, de Chaucer, que também está entre os
manuscritos de Peniarth, em Aberystwyth, e que por coincidência
dividiu no século XIX uma prateleira com os Contos da Cantuária de
Hengwrt. O segundo é um fragmento de ainda outro manuscrito dos
Contos da Cantuária na Biblioteca da Universidade de Cambridge,
que foi sugerido, com hesitação, por Ian Doyle e mais tarde
acrescido ao conjunto da obra de Pinkhurst por Horobin e Mooney.

Manuscrito de Piers Plowman, provavelmente copiado por Adam


Pinkhurst numa caligrafia muito semelhante à de seu juramento
nos registros da Companhia dos Escrivães.

Em meio a esse número crescente de manuscritos do inglês


médio atribuídos a Pinkhurst, note-se a grande proporção de cópias
de Chaucer — uma de Boece, uma de Troilo, e evidência de pelo
menos três cópias de Contos da Cantuária. Se Adam Pinkhurst
estava realmente trabalhando para Geoffrey Chaucer como uma
espécie de escriba regular, isso agrega uma imensa autoridade
textual a esses manuscritos, pois nos deixa quase cara a cara com
o próprio poeta. É possível que o manuscrito de Peniarth de Boece
date da década de 1380, como agora sugere Linne Mooney, e com
isso torna-se um candidato a ser de fato a cópia aludida por
Chaucer em seu poema a Adam, e devemos supor que foi devolvida
às mãos do autor para que a aprovasse. Isso confere à Biblioteca
Nacional de Gales não um, mas dois manuscritos de extraordinário
significado para a literatura inglesa. No almoço na cafeteria da
biblioteca que tivemos naquele dia, Maredudd ap Huw especulou se
não era improvável demais que isso fosse coincidência, e se ambos
os manuscritos não tinham de alguma forma caminhado juntos
durante grande parte de sua história. Sugeriu que durante o início
do período moderno na atividade de colecionar livros na Inglaterra,
manuscritos escritos apenas em inglês dificilmente eram
considerados sérios, e assim foram parar em lugares mais remotos,
como Gales.
Num contexto mais amplo, se Pinkhurst, escriba de documentos e
funcionário das guildas de Londres, estava preparando, ele mesmo,
os Contos da Cantuária para publicação na época da morte de
Chaucer, isso ajudaria a preencher uma lacuna de nosso parco
conhecimento do comércio de livros ingleses medievais. É
extraordinário quão pouco se sabe sobre a publicação e a
distribuição de textos literários na Inglaterra medieval. Na França e
na Itália, em contraste, havia elaboradas redes de livreiros e
agentes que organizavam a cópia e a venda de manuscritos. Vamos
nos encontrar com um deles, Jacopo di Santo Pietro, no próximo
capítulo. No final do século XIV, o equivalente francês de um autor
com a posição social de Chaucer encomendaria uma cópia
sofisticada de um texto novo, talvez com muitas figuras, que poderia
ser presenteada a um rei ou algum outro patrono com boas
conexões que pertencesse à corte ou à Igreja. Seria projetado para
ter um visual arrebatador. O autor teria produzido o manuscrito por
intermédio de um dos mais conhecidos livreiros da cidade, e mesmo
antes de sua apresentação já teria tido certa exposição na oficina.
Se o destinatário de uma cópia a ele dedicada gostasse dela, ele a
recomendaria aos amigos. Estes, por sua vez, também poderiam
encomendar seus próprios manuscritos, e recorrer ao mesmo
livreiro, que poderia ter ainda um exemplar, ou poderia pegar
emprestado com seu destinatário o manuscrito que fora doado por
tempo suficiente para retranscrevê-lo. Os inventários de Carlos VI e
do duque de Berry mostram evidências de que isso realmente
acontecia. Uma vez iniciado o processo de publicação, ele adquiria
vida própria. Foi assim que a produção literária floresceu na França
e na Itália por volta de 1400.

Representação de uma cena do início do


século XV, em Paris, com a escritora Christine
de Pizan oferecendo seu novo livro a Carlos
VI, na esperança de que o rei o recomendasse
a seus amigos.

O patronato na Inglaterra era diferente, como se sabe. Ricardo II e


Henrique IV possuíam alguns livros, mas quase nenhum era texto
recente. Não havia equivalentes ingleses das opulentas e
semipúblicas bibliotecas de Carlos VI, do duque de Berry, dos
duques da Borgonha, e as do papado e dos governantes dos
estados italianos. O mercado dos livros em vernáculo na Grã-
Bretanha era de classe média e pouco vistoso. Apenas três dos
cerca de 85 manuscritos sobreviventes de Contos da Cantuária
ostentam brasões medievais, prova de que seus proprietários
pertenciam, no mínimo, à nobreza rural; um quarto desses
manuscritos foi impresso em papel, na fase menos dispendiosa da
produção livreira. Nenhuma cópia dos Contos da Cantuára possui
ilustrações narrativas além de umas poucas imagens comuns dos
peregrinos. Isso em muito difere do costume no continente, onde
manuscritos aristocráticos do Roman de la Rose ou de Boccaccio,
por exemplo, com frequência são engalanados com dúzias — se
não centenas — de miniaturas iluminadas. É uma pena, porque as
histórias aventurescas e amorosas em Contos da Cantuária
poderiam nos prover de um maravilhoso repertório de figuras
medievais tardias.
Na França, em particular, foi o livreiro, o dono de papelaria —
libraire, em francês —, quem orquestrou a produção de manuscritos.
O libraire, que pode ter sido às vezes um escriba, obtinha o
exemplar, determinava um projeto gráfico, copiava ou providenciava
a cópia do texto e contratava os iluminadores. Ele era a pessoa que
reunia, ordenava e alceava as páginas e as mandava encadernar, e
era quem entregava o manuscrito finalizado ao cliente, com uma
fatura. Em comparação, na Inglaterra quase não havia papeleiro ou
livreiro a quem um autor ou um cliente pudesse recorrer. Só
conhecemos os nomes de seis pessoas em Londres que, durante a
vida de Chaucer, foram mencionadas como papeleiros, além de
outras ocupações (tais como a de iluminador, fabricante de
pergaminho ou encadernador), e, ao que parece, apenas um deles o
era em tempo integral: Thomas Marleburgh, documentado no
período 1391-1429, com duas lojas em Paternoster Row, no lado
norte da Catedral de São Paulo. Em marcante contraste, só em
Paris sabemos os nomes de 77 libraires ativos no negócio, nos trinta
anos que vão de 1370 a 1400.
Há que se refletir um pouco sobre essa insularidade da Inglaterra
no final do século XIV, isolada por uma língua estranha que era
incompreensível no estrangeiro e devastada pela peste negra. As
artes na Inglaterra, no melhor dos casos os bordados e alabastros,
não se podem comparar às sofisticadas pinturas e joias da Itália e
da França. A Inglaterra ainda era claramente um fim de mundo em
termos culturais. Historiadores do livro têm especulado como pôde
um texto como o de Contos da Cantuária de fato ter sido publicado.
Era comum supor-se que havia scriptoria comerciais para textos
literários em Londres, mas disso não há absolutamente nenhuma
evidência autônoma. Em 1978, Doyle e Parkes sugeriram que o
processo fora muito mais informal e talvez localizado em
Westminster, a oeste de Londres. Eles mostraram como escribas
envolvidos na administração real inglesa trabalhavam à noite na
produção de livros para serem vendidos a membros da corte e aos
que a visitavam. Um deles era o poeta Thomas Hoccleve (c. 1368-
1426), cujo trabalho diurno era como funcionário da Chancelaria
Real no Palácio de Westminster. É de presumir que a localidade
lucrativa fosse parte da lógica comercial de William Caxton, que
estabeleceu sua gráfica dentro do recinto da Abadia de Westminster
no final de 1476, e cujo primeiro livro impresso na Inglaterra naquele
inverno foi quase com certeza Contos da Cantuária. O último
endereço conhecido de Chaucer foi uma casa em Westminster,
arrendada em dezembro de 1399, e ele está sepultado na abadia. A
tumba de Caxton fica na igreja de Santa Margarete, bem ao lado. Se
por um lado Linne Mooney está certa quanto a Adam Pinkhurst ser a
figura-chave na disseminação das obras de Chaucer, agora, no
entanto, todo o foco se desloca para o leste, de volta à cidade de
Londres, para os escribas no entorno de Guildhall, a alguns minutos
de caminhada a nordeste de Paternoster Row. Se Pinkhurst foi o
“own scryveyne”, o “escrivão particular” de Chaucer, ele pode ter
feito isso por lealdade a seu último empregador ou até mesmo em
cumprimento às últimas vontades do poeta. Sem ele, Contos da
Cantuária talvez não tivesse sobrevivido de todo — se é que foi
mesmo Pinkhurst.
Em qualquer investigação histórica existe sempre o risco de que
uma ideia brilhante e inovadora aparente ser possível, e depois de
interminável repetição, sem que percebamos, passe a ser provável;
depois, essa apropriada cautela parece ser posta de lado e o que
resta acaba sendo aceito como verdade. Não há elementos isolados
na identificação de Pinkhurst que sejam individualmente
injustificados, mas cada um requer certas suposições que, uma vez
feitas, fornecem o fundamento para a próxima. Se Chaucer estava
de fato empregando um escriba que não o satisfazia na década de
1380, suposição que depende de se aceitar uma composição
literária como se fosse o relato de um fato, então temos de imaginar
esse mesmo homem, agora transformado em exímio copista e
homem de negócios, ressurgindo como um atarefado editor nas
primeiras décadas do século XV. Isso é possível, de verdade, mas
Adam Pinkhurst, o escrevente registrado da Guildhall, não está
documentado em outra parte no comércio de livros, ou, em geral,
após a década de 1390. De muitos modos, dado o profissionalismo
dos manuscritos Chaucer de Hengwrt e de Ellesmere e o fato de ter
havido colaboração com iluminadores, seria mais simples imaginar
as primeiras cópias do novo Contos da Cantuária sendo preparadas
e disseminadas com o agenciamento de alguém do ramo de
papelaria e de livros, como Thomas Marleburgh ou até mesmo John
Shirley, que morreu em 1456 com a respeitável idade de noventa
anos. Os dois têm as corretas conexões literárias. Thomas
Marleburgh encomendou versos a Thomas Hoccleve, que também
colaborou como copista com o Escriba B no manuscrito de Gower,
que está no Trinity College, e que constituiu a base do estudo de
Doyle e Parkes. John Shirley não foi o Escriba B, mas decerto
manuseou manuscritos de Chaucer, inclusive o Contos da Cantuária
de Ellesmere, e foi Shirley quem, de maneira única, preservou e
identificou o verso de Chaucer a “his own scryveyne”, que devia ser
de propriedade de seu destinatário. São homens do círculo do
Escriba B. Para nós, infelizmente, nem Marleburgh nem Shirley
tinham o nome “Adam”, a menos que esse também seja um
conceito ficcional para proteger o destinatário e se adequar à
escansão.
A identificação de Adam Pinkhust daria um nome e uma realidade
compreensível a um dos enigmas da atividade editorial medieval. No
entanto, o edifício inteiro se sustenta em uma premissa — apenas
uma — que é a de que a caligrafia de Adam Pinkhurst, sem dúvida
uma figura histórica, é idêntica à do Escriba B. O único exemplar
assinado da caligrafia de Pinkhurst é a entrada de meia página em
latim no livro de juramentos da Companhia dos Escrivães. Isso é
tudo que temos, e tudo o mais depende disso. Se a caligrafia não é
a mesma, ou não se tem certeza de que é a mesma, então tudo
desmorona, inclusive a explicação do poema de Chaucer
endereçado a um escriba. Isso é uma tremenda responsabilidade.
Nós, paleógrafos, passamos nossas carreiras cotejando caligrafias e
muitas vezes não temos como confirmar se temos razão, porque, no
fim, as decisões são avaliações modernas feitas por pessoas que
não estavam lá quando os manuscritos estavam sendo escritos.
Malachi Beit-Arié, o principal historiador da escrita hebraica
medieval, contou-me uma vez que ele se imagina chegando ao Céu,
onde finalmente vai se encontrar com os escribas a quem dedicou
sua vida acadêmica na Terra, e lhes perguntará: “Eu estava certo?
Foi você?”. Temo que alguns responderão: “Sabe de uma coisa?
Tudo isso foi há muito tempo, e realmente não consigo me lembrar”.
O primeiro argumento fundamentado contra a identificação de
Pinkhurst como o Escriba B foi publicado por Jane Roberts em
Medium Aevum em 2011. Não devemos cair na armadilha, comum
demais nessa controvérsia específica, de fazer julgamentos
totalmente baseados nas personalidades dos protagonistas, mas
vale notar que Jane Roberts também é uma paleógrafa formidável,
de manuscritos ingleses, em especial, e devemos conceder-lhe a
gentileza de ouvi-la. Talvez devamos imaginá-la no tribunal também,
subindo ao banco de testemunhas. Ela foi, até se aposentar,
professora de língua inglesa e literatura medieval no King’s College,
em Londres. Foi ela quem, em 2004, observou pela primeira vez
similaridades entre a petição da Companhia dos Comerciantes de
1388 e a caligrafia do Escriba B. Contudo, ela não aceita que ele
seja identificado a Adam Pinkhurst. Insinua que as entradas
atribuídas a Pinkhurst nos livros de contabilidade daquela
companhia podem estar na caligrafia de Martin Kelom, que foi pago
para trabalhar naquele manuscrito. Ela toma cada um dos formatos
de letra que Linne Mooney discriminou como característicos da
caligrafia de Pinkhurst e argumenta que ou há tamanha
inconsistência, até mesmo com os manuscritos a ele atribuídos, que
não se pode considerá-los confiáveis, ou, simplesmente, que todas
essas características são comuns entre escribas que tiveram
treinamentos semelhantes no mesmo período. Os típicos floreios
ascendentes, que segundo Linne Mooney constituem uma potencial
assinatura de Pinkhurst, ocorreriam exatamente da mesma forma,
naquela época, em trabalhos assinados por outros escribas. Isso
não quer dizer que Pinkhurst não seja o copista de todos os itens
agora a ele atribuídos, e sim que esses critérios específicos não são
exclusivos dele.
Os paleógrafos frequentemente fundamentam avaliações iniciais
no que eles chamam de “aspecto”, ou dutus, de uma caligrafia. O
que é um pouco equivalente a reconhecer uma pessoa com base na
sua aparência, e não nas medidas que se tiram de seu nariz,
orelhas, olhos, boca etc. O aspecto de uma caligrafia pode incluir o
ângulo com que a mão escreve na página, a pressão, o fluxo, a
percepção de escala, o espaçamento entre letras, e assim por
diante. Essas particularidades formam uma impressão do estilo do
trabalho de um escriba. Com base nisso, portanto, é difícil enxergar
uma personalidade individual única subjacente a todos os
manuscritos agora atribuídos, por detalhes técnicos, a Pinkhurst.
Tive de servir como jurado duas vezes no Tribunal da Coroa, uma
em Cambridge e uma em Southbark, Londres, e ambas foram
experiências fascinantes e estranhamente reconfortantes. Antes de
se retirar para deliberar sobre seu veredicto, o júri recebe
cuidadosas instruções do juiz. Ele diz aos jurados que devem
desconsiderar qualquer opinião anterior que pudessem ter sobre a
probabilidade de o réu ser inocente ou culpado, e tomar sua decisão
apenas com base nas evidências apresentadas na corte. Lembra a
eles que na Grã-Bretanha o suspeito continua a ser inocente até
que se prove efetivamente o contrário. Enfatiza que se um jurado
achar que a evidência deixa uma margem de dúvida, mesmo que
mínima, quanto à certeza de culpa, então ele ou ela tem o dever
legal absoluto de absolver o réu. Pede que os doze membros do júri
cheguem a uma decisão unânime, mas que, se isso se provar
impossível, ele aceitará no fim um veredicto majoritário.
Agora estamos sentados em torno da longa mesa na sala do júri.
Adam Pinkhurst é acusado de ser o escriba do Chaucer de Hengwrt
e de muitos outros documentos e manuscritos literários atribuídos a
ele. Desde 2004 venho torcendo secreta e desesperadamente para
que Linne Mooney esteja certa, e compareci ao tribunal na
esperança de que isso fosse confirmado. Estamos agora
ponderando sobre as evidências apresentadas na corte. Lembramo-
nos do volume em Aberystwyth, reunido por alguém que parece ter
tido acessos fragmentários a exemplares de uma fonte muito
próxima a Chaucer ou ao espólio de Chaucer, ou a ambos, e de que
o manuscrito foi escrito e completado em duas etapas. Lembramos
que Chaucer teria usado um escriba na década de 1380 a quem se
dirigia como Adam. Inspecionamos um atestado assinado por um
escrevente municipal em Londres chamado Adam Pinkhurst. Tudo
isso junto se somaria numa conclusão razoável, se as caligrafias
fossem inquestionavelmente as mesmas. Como enfatizou o juiz, não
pode haver margem para ambiguidade. Decidimos fazer a primeira
votação em volta da mesa, e o primeiro voto cabe a mim. Penso eu
que está provado, além de toda dúvida razoável, que o Escriba B
era Adam Pinkhurst? Todos os olhos se fixam em mim, à espera de
minha resposta. Não, não penso. Realmente não consigo enxergar
isso. Talvez os outros onze jurados ainda me vençam no voto.

Meu inesquecível dia em Aberystwyth terminou com uma excursão


pela Biblioteca Nacional com Maredudd ap Huw. Ele mostrou-me, a
uma distância adequada, as fileiras de cofres de segurança na parte
traseira do prédio, como celas embaixo do tribunal, onde vive o
Chaucer de Hengwrt em sua caixa de tecido marrom, o mais
precioso manuscrito em inglês médio. Na volta, passamos pelas
galerias de exposição. Por telefone, pediram um táxi para me levar à
estação. Maredudd desapareceu por um momento e, quando eu
estava indo embora, presenteou-me com um baralho, uma caneca
de café e um porta-copos de chá, todos ilustrados com a página
iluminada de abertura do manuscrito. Afinal de contas, eu posso não
saber quem escreveu o Chaucer de Hengwrt — mas o porta-copos
e a caneca estão em nossa cozinha.

* Pergaminho muito fino. (N. T.)


** O alceamento é o seguinte: guardas modernas (uma das quais tem o fólio numerado
como “1”) + fólios 2-57 (i-v8, vi2, vii6, viii8), fólios 58-87 (ix-xii8), fólios 88-111 (xiii-xv8),
fólios 112-234 (xvi-xx8, xxi1+8 [segunda folha, fólio 153, uma folha isolada], xxii6, xxiii-
xxviii8, xxix10), e fólios 235-250 (xxx-xxxi8), faltando pelo menos um caderno no fim.
11

O Semideus de Visconti
c. 1438
São Petersburgo, Biblioteca Nacional, Cod. Lat.Q.v.XVII.2

Eis aqui algumas técnicas úteis para o caso de você algum dia se
encontrar numa batalha naval. Ponha víboras venenosas dentro de
garrafas e jogue-as pela amurada dos navios inimigos para que se
espatifem no convés e as cobras possam sair e morder seus
oponentes. Esse dispositivo é recomendado pelas mais
competentes autoridades, e foi proposto originalmente por Aníbal
para Antíoco, o Grande. Enquanto as cobras sibilam e atacam, atire
usando lâminas de metal curvas fazendo as vezes de projéteis, que
cortarão o cordame do navio inimigo, e também bombas
incendiárias, que vão inflamar as velas. Enquanto isso, faça com
que mergulhadores tirem a roupa e nadem furtivamente por baixo
dos navios com verrumas, para que possam abrir buracos no casco
do barco inimigo, que vai afundar. Essas sugestões e muitas outras
são descritas e maravilhosamente ilustradas num tratado prático
para príncipes, sobre armamentos e técnicas de guerra, escrito pelo
humanista e advogado Catone Sacco (c. 1395-1463), de Pavia, que
provavelmente o deu de presente, em 1438, a Filippo Maria Visconti
(1392-1447), conde de Pavia a partir de 1402 e duque de Milão a
partir de 1412. O livro foi intitulado Semideus.
A maior parte da vida profissional do duque Filippo Maria foi
dedicada à guerra, que envolvia as intermináveis mudanças nas
alianças e nas ambições territoriais dos estados italianos. Em 1438,
ele estava engajado no que é denominada de quarta campanha das
guerras na Lombardia, principalmente contra a república de Veneza
e seus aliados. A credibilidade e a sobrevivência de qualquer
príncipe renascentista dependiam de suas aptidões militares. A
motivação para o tratado escrito por Sacco era adular o duque como
o maior defensor da Cristandade contra o Islã, já que as frotas
muçulmanas ameaçavam então o Mediterrâneo oriental. Em 1430
os exércitos do sultão otomano Murad II tinham derrotado
fragorosamente os venezianos que tentavam defender Tessalônica,
e agora avançavam implacáveis nos Bálcãs. A sugestão de usar
cobras venenosas talvez tenha repercutido na família Visconti, uma
vez que o brasão de armas da dinastia, desde que ela tinha
assumido o controle de Milão, no século XIII, ostentava uma víbora
azul devorando uma criança.
Filippo Maria Visconti, duque de Milão, 1412-
47, recebendo a cópia dedicatória de um livro
de seu autor, Galassio da Correggio.

Filippo Maria morreu em 13 de agosto de 1447, sem deixar


herdeiro. Sua única, mas ilegítima, filha, Bianca Maria, tinha se
casado com Francesco Sforza (1401-66), mercenário dos exércitos
de Visconti, que assumiu assim o ducado de seu sogro e
estabeleceu uma segunda grande dinastia milanesa. Francesco
tomou posse das propriedades e coleções de arte de seu
predecessor. A dedicatória manuscrita do Semideus foi registrada
no inventário da biblioteca ducal no castelo de Pavia em 6 de junho
de 1459, como o item 599, “Semideus Catonis Sacchi ad Philippum
Mariam ducem Mediolani”. Pavia fica cerca de quarenta quilômetros
ao sul de Milão, e foi a segunda capital dos domínios do duque. O
manuscrito ainda estava lá quando o castelo foi herdado pelo neto
de Francesco, Gian Galeazzo Sforza, duque de Milão de 1476 a
1494. Outro inventário da biblioteca de Pavia, de 1488, é mais
detalhado. Começa com tesouros raros, como um chifre de
unicórnio, um dente de baleia, um capacete viking com seus chifres,
um casco de tartaruga (quebrado), um relógio astronômico, um
Mappa Mundi montado sobre madeira, e assim por diante,
chegando perto de mil livros, entre os quais Semideus é o item 31,
agora encadernado em veludo carmesim com seis fechos de prata
(dois já quebrados), guardado numa caixa de couro dourado. Foi lá
inventariado novamente em 1490, quando foi descrito mais uma
vez, como o item 22.
Luís XII, rei da França, 1498-1515, ajoelhando-
se, de armadura, com seus santos padroeiros,
pouco antes de invadir a Lombardia, em 1499.
Piotr Dubrowsky (1754-1816), diplomata russo
e oportunista colecionador de manuscritos
medievais durante os tumultos da Revolução
Francesa em Paris.

Gian Galeazzo foi por sua vez sucedido como duque, em 1494,
por seu tio, Ludovico Maria Sforza (1452-1508), conhecido como “il
Moro”, e tudo começou a se desenredar. O novo governante da
França, Luís XII, rei de 1498 a 1515, considerou ser ele mesmo um
reivindicante mais legítimo ao ducado de Milão do que qualquer dos
Sforza, uma vez que era descendente direto de Valentina Visconti
(1371-1408), irmã mais velha do último duque de Visconti, Filippo
Maria. Valentina tinha se casado com Luís de Valois, duque de
Orléans (1372-1407, assassinado), irmão de Carlos VI. Seu filho,
Carlos d’Orléans (1394-1465), foi o pai de Luís XII. Constantes
combates e guerra eram os principais deveres que se esperavam de
todo rei. Luís XII já era um soldado muito experiente e planejou sua
campanha na Itália com um cuidado exemplar nos aspectos
militares. Neutralizou a oposição por parte do sacro imperador
romano e fez uma aliança com os venezianos, velhos inimigos de
Milão. Designou como seu próprio comandante Gian Giacomo
Trivulzio, líder da facção milanesa que se opunha a Ludovico, o
Mouro. Em julho de 1499 um exército, na maior parte francês, com
27 mil homens, inclusive 10 mil a cavalo, invadiu a Lombardia. No
final de agosto os franceses preparavam-se para fechar um cerco
sobre Pavia. Em 2 de setembro de 1499, Ludovico fugiu de Milão e
abdicou de seu ducado três dias depois. Luís XII fez sua entrada
triunfal na cidade como o novo duque em 9 de outubro. Ludovico, no
exílio, mobilizou uma oposição, contra-atacou valentemente e
retomou Pavia em fevereiro de 1500, mas foi por fim derrotado e
levado como prisioneiro para a França, onde morreu.
Ditava o costume que as cidades conquistadas fossem
saqueadas. Como também era moda, os governantes
renascentistas eram, com frequência, colecionadores de livros. Em
1499, ou com mais acerto em 1500, enquanto muitos jubilosos
soldados franceses sem dúvida ocupavam as tabernas da cidade ou
assediavam donzelas italianas, os agentes de Luís XII estavam na
biblioteca no andar superior do castelo em Pavia, esvaziando as
estantes e empacotando livros. Grandes lotes da biblioteca de
Visconti Sforza foram enviados à França, inclusive o manuscrito do
Semideus, e a maior parte desse espólio entrou, como devido, nas
coleções reais francesas em Blois, onde foi inventariada em 1518.
Leonardo da Vinci, um troféu posterior de Milão, morreu por volta de
1519. Bem mais de trezentos desses livros saqueados de Pavia
hoje estão abrigados pacificamente na Bibliothèque Nationale em
Paris, inclusive dezessete manuscritos que uma vez pertenceram a
Petrarca.
Mudemos agora o foco para o período violento seguinte na história
da França, a eclosão da Revolução Francesa, em 1789. Uma
oportuna testemunha desses eventos foi Piotr Dubrowsky (1754-
1816), um colecionador quase tão apaixonado e inescrupuloso
quanto Guglielmo Libri, que conhecemos no capítulo 5. Dubrowsky
nasceu em Kiev e foi educado numa época em que a cultura
francesa era considerada, na Rússia, como a mais sofisticada da
Europa. Em 1777 ele estava morando em Paris. Em 1780 tinha se
incorporado à embaixada russa na capital francesa, ascendendo a
vários postos, até o de secretário. Uma gravura contemporânea sua
mostra de perfil um homem corpulento de aparência afável, com um
nariz comprido e o início de um queixo duplo, usando um casaco
com gola ampla e grandes botões e uma gravata de seda. Quando
Dubrowsky foi obrigado a deixar a França no auge da Revolução,
em agosto de 1792, após o fechamento da legação russa, ele
estava na posse das mais inestimáveis coleções de arquivos
franceses e manuscritos iluminados. Tinham sido quase todas
selecionadas dos espólios da Bastilha, saqueada pela turba em 14
de julho de 1789, especialmente da vasta biblioteca da abadia real
de St-Germain-des-Prés em Paris, que foi sequestrada pelo comitê
revolucionário em junho de 1791 e fechada em fevereiro de 1792.
Quando a antiga biblioteca da abadia foi transferida para o Estado
francês em 1795-6, muitos de seus mais preciosos manuscritos já
estavam na posse de Dubrowsky e tinham sido levados para o
exterior. Não está claro se ele os roubou, como muitos acreditam, se
os levou consigo inadvertidamente, ou se foi uma ambígua
combinação dessas duas hipóteses. Um dos manuscritos era um
belo Tito Lívio, que talvez tenha pertencido a Lorenzo de’ Medici, e
que Dubrowsky alegou ter-lhe sido presenteado pelo filósofo Jean-
Jacques Rousseau (1712-78). Isso parece ser improvável, uma vez
que, como todos os outros, também tinha sido antes propriedade de
St-Germain-des-Prés. No entanto, seja como for, o butim de
Dubrowsky, de uns setecentos manuscritos, incluía joias tão
incomparáveis como a primeira cópia, do século VIII, da Historia
Ecclesiastica, de Wearmouth-Jarrow; um rebuscado Evangelho
carolíngio ilustrado; um bestiário em inglês do século XII; a Bible
Historiale dos reis de Navarra, do século XIV; a incomparável cópia
de L’Estrif de Vertu et de Fortune, de Martin le Franc, iluminada para
Filipe, o Bom, duque da Borgonha; e o Semideus de Pavia.
Dubrowsky voltou para a Rússia em 1800, e estava com pouco
dinheiro. Há relatos de que negociou na Inglaterra a venda de sua
biblioteca. Não pela primeira vez nessa saga, aí estava um
momento que poderia mudar a história da migração de manuscritos.
Contudo, mediante a intervenção do conde Alexander Strogonov,
presidente da academia russa de artes, toda a coleção foi comprada
em 1805 pela biblioteca pública imperial que começou a ser formada
em São Petersburgo pelo tsar Alexandre I. A biblioteca foi aberta ao
público em 1814. Depois da Revolução Russa tornou-se parte do
que foi renomeado em 1932 como a Biblioteca Pública Estatal
Saltykov-Shchedrin em Leningrado, e que desde 1992 é chamada,
com mais simplicidade, de Biblioteca Nacional da Rússia, ou
Rossiyskaia Natsional’naya Biblioteka, em São Petersburgo, que
vamos visitar.

O primeiro obstáculo é o imensamente complicado processo de


obtenção de um visto russo, no qual é necessário listar, entre muitas
outras coisas, cada escola e cada universidade que se frequentou,
cada emprego que já se teve, com datas, nomes para contato,
números de telefone e cada país que se visitou nos últimos dez
anos, com as datas das visitas. É preciso declarar todo
envolvimento com política ou com conflitos armados que se tenha
tido em qualquer fase da vida. Há questões que, é claro, são
delicadas. Ao declarar o propósito de minha tencionada visita à
Rússia, brinquei com a ideia de escrever: “Ter acesso ao
departamento governamental para inspecionar manuais de
armamentos e de estratégia militar”, mas em vez disso pus:
“Turismo”. Levei todos os meus formulários e a devida taxa ao
consulado russo no centro de Londres.
Haviam transcorrido quase 25 anos desde minha única visita
anterior a São Petersburgo, e aquela atmosfera opaca de um
comunismo esgotado tinha desaparecido por completo. Hoje ela é
uma cidade comercial e internacional, como Praga ou Beijing, o
inglês sendo falado tão livremente quanto o russo no entorno do
museu de Hermitage, ou nas lojas de souvenirs na avenida Niévski.
Os táxis ainda são baratos, mas as refeições são tão caras e boas
quanto em qualquer lugar em que estive. O estranho alfabeto é
fascinante, e você fica soletrando compulsivamente os letreiros e
anúncios das lojas com a lentidão e o orgulho de uma criança de
cinco anos, para acabar descobrindo que falou em voz alta palavras
como “Cantina italiana” ou “Coca-Cola”. Fazia pleno verão quando
estive lá, durante o período chamado de “noites brancas”, quando
quase não escurece, pois São Petersburgo fica muito ao norte. Ao
caminhar de manhã cedo na direção leste, subindo a avenida
Niévski e indo do rio Neva para a Fontanka, eu recebia diretamente
nos olhos o brilho fulgurante do sol báltico, e o mesmo acontecia ao
voltar, no fim da tarde.

Fachada da Biblioteca Nacional da Rússia na praça Ostrovskogo,


em São Petersburgo; a sala de leitura de manuscritos fica no
andar térreo, na extremidade direita.

A Biblioteca Nacional fica à direita, num canto da praça


Ostrovskogo, um pequeno parque arborizado dominado por uma
enorme estátua de bronze de Catarina, a Grande, erigida em 1873.
Na extremidade mais distante está o teatro Alexandrisky, uma
grande construção neoclássica em amarelo e branco. A biblioteca é
o enorme prédio do século XIX em pedra cinza ao longo da orla
oeste da praça. Você entra empurrando uma série de pesadas
portas. Todos os avisos e placas estão no alfabeto cirílico. Atrás de
um balcão à esquerda estava uma mulher parecida com a falecida
sra. Khrushchev. Eu arrisquei, bem devagar e claramente em inglês:
“Vim para ver um manuscrito”. Ela vociferou algo em russo e
desapareceu. Logo depois se materializou uma assistente muito
mais jovem, com inglês excelente, emergindo do que pareciam ser
duas portas de armário adjacentes. Ela me fez entrar por uma delas:
“Sente-se por um momento, por favor”, ela disse, e “Passaporte, por
favor”. Enquanto fiquei sentado eu mal podia vê-la no balcão, onde
copiava meus dados. Montes de carimbos de borracha estavam à
vista. Eu lhe apresentei a carta do diretor do Corpus Christi College
em Cambridge que me fora solicitado trazer. Ela ficou
impressionada. “O senhor é professor?”, perguntou. Levou-me a
uma tela de computador à direita e dei-me conta de que ia tirar uma
foto minha. “Pode sorrir, se quiser”, ela disse. “Não seria muito
russo”, sugeri. Não houve resposta. Recebi o mais exótico cartão de
biblioteca que recebera até então, em verde e branco, com meu
nome completo impresso como де амель кристофер фрэнсис
ривeрс. Pediu para verificar os livros que eu levava comigo — meu
caderno de anotações e a edição impressa do Semideus, de Paolo
Rosso, que eu tencionava comparar com o manuscrito. Não, ela
informou com firmeza, não são permitidos livros impressos nas
salas de leitura. Pedi e implorei em vão. “Não sou eu quem faz as
regras”, ela disse, e eu me contive para não resmungar “Isso é
muito russo” de novo, e deixei que ela o tirasse de mim, e o
guardamos, imprestável, no vestiário. Se o professor Rosso por
acaso chegar a ler isso, poderá ter o consolo de saber que nunca
mais nenhum crítico empedernido poderá conferir a exatidão de sua
transcrição comparando-a ao manuscrito.
Ela me escoltou até a catraca de entrada na biblioteca e me
orientou a ir para a direita no andar térreo, e a dobrar novamente à
direita e depois à esquerda por um corredor e através de algumas
portas e algumas outras instruções, a maioria das quais logo
esqueci. O longo corredor tinha um estreito carpete vermelho e um
expositor com livros soviéticos. Pensei ter lembrado que, em minha
visita anterior, ouvi dizer que a biblioteca de Voltaire, comprada para
Catarina, a Grande, ficava nas estantes por trás daquele expositor,
mas posso estar enganado. Encontrei-me, após subir alguns
degraus, num saguão azulejado ao pé de umas escadas, totalmente
perdido. Um homem que parecia ser um bibliotecário passou por
mim. “Manuscritos?”, eu implorei. Ele apontou para outra porta, com
degraus que tornavam a descer, ao longo de um segundo corredor
com as paredes de cada lado em parte cobertas por estantes com
livros, até a sala de leitura, paralela à praça lá fora e chegando até a
esquina da avenida Niévski.
Parece uma aconchegante sala de aula da década de 1930, com
doze pequenas mesas em duas fileiras bem alinhadas. Grandes
persianas brancas impedem a incidência direta da luz solar que vem
da praça. Deve ser diferente no meio do inverno, quando fica escuro
a maior parte do tempo. As paredes são verde-claras, com armários
altos e estantes, com escadas de madeira. Os livros de referência
formam coleções escuras, e nada parece ser recente, nem mesmo
remotamente. Há renques de gavetas com cartões indexadores,
sistema de busca e localização que hoje é raro vermos. O chão de
parquete está muito desgastado e coberto aqui e ali com faixas de
carpete marrom. O teto em abóbada é cruzado por canos e fios
expostos. Há pequenas cadeiras duras de madeira, com assentos
em tecido vermelho. Todas as mesas estão de frente para a longa
mesa do vigilante, na extremidade frontal, ao lado da entrada, como
se fosse a mesa de um professor, naquele dia dominada por um
enorme jarro de crisântemos, atados com fitas cor-de-rosa. Para
completar a imagem de sala de aula só faltaria um quadro-negro
atrás da mesa. Como um bom aluno, escolhi uma mesinha na
frente.
O encontro marcado era com Olga Bleskina, curadora de
manuscritos da Europa ocidental. Ela foi gentil e prestativa, e
conhece seus manuscritos intimamente. Havia mais formulários a
preencher, todos em russo. Cada papel recebe um carimbo oficial
em cada uma das etapas. Falamos principalmente em alemão, em
que ela é melhor do que no inglês. Tinha cabelo curto e escuro,
partido à esquerda, e usava um elaborado colar de vidro e um
suéter verde-claro. Eu lhe mostrei de novo a carta do diretor do
Corpus Christi College, que ela guardou. Trouxe-me, por fim, o
Semideus.
O manuscrito está inserido numa robusta pasta de cartolina,
emissão padrão do serviço civil soviético (tudo que consegui ler da
marca administrativa impressa foi a data de 1959), amarrada com
fitas brancas, que eu desfiz. É muito diferente do estojo de couro
dourado no qual foi guardado em 1488. Havia uma tira de papel
clipada no lado de fora da pasta com meu nome em russo, que eu
estava começando a reconhecer. O volume dentro da pasta está
frouxamente envolto em papel de seda. Está encadernado num belo
marroquim verde com fibras retas, do século XIX, que ficaria bem
com um polimento, decorado em dourado nos lados e na lombada
com linhas sinuosas e pequenos clarões de sol, emblemas
antigamente usados pela família Visconti. Nos cortes dourados
superiores e inferiores das páginas, quando se mantém o livro
fechado com firmeza, aparecem pares de faixas escuras que
atravessam a espessura do volume. Marcas correspondentes não
são visíveis no corte lateral. Devem ser manchas deixadas pelos
seis fechos prateados descritos em 1488, dos quais dois foram
relatados como defeituosos: é evidente que havia dois no topo, dois
embaixo, o par externo já quebrado e faltando. A prata oxidou e
deixou marcas. O manuscrito pode ter ficado inalterado nessa
condição até ser reencadernado na época de Dubrowsky, quando, a
julgar pelos indícios, os cortes medievais com essas sombras
sobreviveram, sem ser aparados.
As folhas de guarda são em papel malva, e na junção da costura,
as da frente se separaram do bloco do texto. Há um ex-líbris do
século XIX em russo, que inclui os números 17, 5 e 2, que suponho
sejam os da estante e de seu lugar na prateleira. Eles se refletem
em sua marcação formal, Lat.Q.v.XVII.2. “Q” é “quarto”, referindo-se
a um tamanho de cerca de 27 por 19 centímetros. Assim como em
muitos manuscritos em bibliotecas da Europa central e oriental, há
uma folha de papel amarelecido inserida, solta, na frente, assinada
por todos que alguma vez examinaram o manuscrito original: há
catorze nomes, nenhum a partir de 2006, todos em russo exceto,
para minha surpresa e delícia, o de meu velho amigo James
Marrow, de Princeton, que preencheu seu formulário em 28 de
agosto de 1996. Eu devia ter imaginado que ele já tinha estado aqui.
Na primeira página do manuscrito, originalmente em branco, há
anotações em francês, do século XVI, listando os nascimentos de
vários filhos da família Burgeney, a começar do bebê Simon,
nascido em 1518, até Jean, nascido em 1537. Estão muito
desbotados e não são fáceis de ler. Constituem de fato a mais
antiga evidência explícita de que o volume estava na França logo
após a pilhagem de Pavia em 1499-1500, e claramente em mãos de
particulares, não na biblioteca real. Assim como os manuscritos
mais preciosos depositados nas igrejas e nos mosteiros eram
outrora usados para inventariar relíquias (ver antes as pp. 38 e 327),
no século XVI qualquer livro mais valioso de uma família francesa
era usado como repositório de datas de nascimento de seus filhos,
trazendo com frequência o registro do dia da semana e a hora do
nascimento, informação que depois poderia ser útil em horóscopos.
Esses registros são às vezes conhecidos como “livres de raison”. Os
manuscritos trazidos de Pavia foram, em sua maior parte, enviados
para a biblioteca do rei, em Blois, destinação comumente marcada
em francês no fim do texto de cada volume: “De pavie ~ au Roi Loys
XII”. Neste aqui não há tal inscrição. Em vez disso, está escrita a
palavra “madame” no fim, numa caligrafia do início do século XVI. O
manuscrito deve ter sido escolhido por sua suprema beleza e
ofertado a uma mulher, plausivelmente Ana da Bretanha, notável
bibliófila e rainha de Luís XII, de 1499 a 1514. Houve um Luís de
Burgeney, senhor de Moléans, que era médico da corte no período
final do reinado de Francisco I, rei de 1515 a 1547, e pode ter sido
um presente para ele ou para sua mulher. Um dos padrinhos
listados dos filhos dos Burgeney é descrito aqui como “de Bloys”, e
assim talvez o manuscrito não tenha ainda sido levado para longe
de seus antigos colegas de prateleira, agora na biblioteca real.
Há rabiscos em francês do século XVI para o XVII, nas margens
das duas páginas seguintes, inclusive três estrofes. Não são obras-
primas de arte literária ou de escrita. A primeira (da qual tentei uma
tradução nas notas de fim) começa:
CHanter je veus en tous lieux
A mon plaisir que les dieux
Rois princes et grandz monarquez
Le monde avec les parquez
Et mesmes tout l’univers
Sans me declarer diverz
Mourount plus tost que de voir
A leur plaisir comme moy
Nefs chasteaux et le devoir
Issant de ceulx que je voy
En ce livre gracieux
Radore pas les haults dieux.

As letras de abertura, “Ch”, estão caligrafadas juntas, para incluir


um perfil humano. Corra os olhos verticalmente pelas iniciais de
cada verso e você notará de repente que elas formam um nome,
como num acróstico: “Charles Manier”, suposto dono do manuscrito
ou ao menos quem o inscreveu cripticamente.
A segunda estrofe em francês alega que o texto é superior a
qualquer coisa que Cícero tenha escrito. A terceira diz que ele
ensina como combater nas guerras e como tomar castelos e
cidades, e que se alguém o encontrar deverá voluntariamente
devolvê-lo a seu dono legal, ou enfrentar as consequências.
Il enseigne la maniere / a ceste race guerriere
de prendre chasteau ou ville / Et cequi y est utille
qui donque ci le trouvera / de bon coeur le rendra
a Moy Seul qui le possede / Sil ne vault quon ly procede

A suposição mais provável é de que o manuscrito foi reunido pela


biblioteca de St-Germain-des-Prés, talvez durante o grande período
de aquisição de livros pelos monges, no século XVII. A inscrição
floreada, “Ex Musæo Petri Dubrowsky”, está audaciosamente escrita
pela própria mão do colecionador nas margens dos fólios 1v, 9r e
116r. Há uma descrição sucinta, mas perfeitamente acurada, feita
por ele, numa tira de papel anexada à guarda dianteira.
Voltemos, enfim, ao próprio texto. Ele é todo em latim. O
alceamento é consistente com o fato de o manuscrito ter três partes
distintas.* O primeiro componente é a dedicatória de Catone Sacco
a Filippo Maria Visconti, o segundo é sua fala em louvor à Virgem
Maria, e a parte final e mais longa é o livro III do Semideus do autor,
seu compêndio sobre estratégia militar. Examinemos um de cada
vez.
O prefácio é dirigido ao ilustre príncipe e mui excelente senhor, o
senhor duque de Milão, conde de Pavia de Anghiera, e senhor de
Gênova. Catone Sacco louva o duque por sua devoção cristã,
sabedoria, consistência, magnanimidade, confiabilidade, clemência
e assim por diante (o padrão de sempre), igualando-o aos heróis do
mundo antigo. Lista os lugares sagrados do cristianismo, então nas
mãos de muçulmanos — Jerusalém, cuja conquista pelo duque ele
consegue visualizar, Belém, para onde foram os reis Magos vindos
do Oriente para testemunhar e cultuar com presentes, os lugares do
Egito nos quais Cristo começou a ser criado, lugares amargos para
os sarracenos mas doces para os cristãos, o Jordão, o mar
Vermelho, o monte Sinai, e muitos outros. Ele anseia por vê-los
livres das mãos dos infiéis. Explica que está anexando o terceiro
livro de seu Semideus, sobre estratégia militar, extraída de
autoridades antigas, inclusive Aulo Gélio, Frontino, Catão,
Aristóteles e Vegécio, com acréscimos dele mesmo, mediante cujo
uso, com a ajuda da Virgem Maria, o duque venceria facilmente
qualquer inimigo. Está ciente da própria ignorância, se comparado
com um príncipe instruído, que é ele mesmo um semideus, e cita o
verso de Claudiano no qual Júpiter ri da insignificante tentativa de
Arquimedes de compreender o universo. No entanto, diz o autor,
uma vez que o duque lutara para recuperar as terras na Itália às
quais tinha direito, muito melhor seria livrar a Terra Santa de sua
ruína, especialmente sob a proteção da Virgem, cujo nome ele
carrega. Se uma cidade pequena como Atenas pôde prevalecer na
guerra (aqui ele cita Timeu, de Platão) ou se os guerreiros do Antigo
Testamento conseguiram vencer batalhas contra todas as
probabilidades, quão mais certo não é que o invicto Filipe Maria
(citado nominalmente no fólio 6v), maior que qualquer rei ou
príncipe, com a ajuda da Virgem, subjugará os bárbaros e libertará a
Terra Santa, para se tornar ele mesmo o cavaleiro de Deus Todo-
Poderoso? O autor faz então um cálculo interessante. Ele observa
que a ascendência da Virgem Maria até Adão, segundo as
genealogias bíblicas, contava exatamente sessenta gerações; e que
a ascendência do próprio duque até Saturno completava agora
também sessenta gerações. O destino sobrenatural de Filippo Maria
Visconti está claramente predeterminado nessa coincidência.
Isso explica o estranho frontispício duplo que precede a
dedicatória. No topo da página da direita há um medalhão com a
Santíssima Trindade. A página é preenchida por uma configuração
que lembra um pouco a letra “U” com uma coluna central vertical. O
formato é inteiramente composto de linhas com pequenas figuras
redondas, semelhante a fileiras de contas como as de um rosário,
com microscópicos nomes ao lado de cada uma. O manuscrito está
um tanto desgastado e leva alguns instantes até você se orientar.
Adão está no topo e no centro, com as gerações subsequentes
descendo pela página. Set, Enoque e assim por diante, até Salomão
no pé da página, onde a linha se ramifica, o lado esquerdo
chegando a José no alto desse ramo esquerdo, e a linha da direita
indo até sua esposa, a Virgem Maria. Conte-as, e o total de cada
lado da família é, de fato, exatamente sessenta. Depois compare
com a página ao lado, à esquerda. As contas aqui são até menores,
e vão de baixo até o topo. No pé da página há um monstro verde,
evidentemente Saturno, do qual emerge um rosto coroado cuja
legenda diz ser Júpiter, rei dos deuses. Sua linha de descendentes
vai subindo na página, primeiro até a filha de Júpiter, Vênus, ao filho
dela, Eneias, a Ascânio, e continua, passando pela Roma Antiga e
continuando para cima sem interrupção até Matteo Visconti (1250-
1322), Stefano (1287-1327), Galeazzo (1354-78), Gian Galeazzo
(1378-1402), e finalmente seu filho, no ponto mais alto, Filipe Maria
Visconti, sessenta gerações a partir de Saturno.
É realmente impressionante penetrar na Renascença italiana e vê-
la em ação. Em determinado momento seus protagonistas estão
totalmente comprometidos com o cristianismo, discutindo a
necessidade de recuperar a Terra Santa para a cristandade, com
base em textos bíblicos e sob a tranquilizante proteção da Virgem
Maria. Ao mesmo tempo, o nome de Filippo Maria evoca um rei
guerreiro da Macedônia, bem como a Virgem. Quase toda sentença
do prefácio esteia-se em referências e alusões clássicas, tanto
gregas quanto romanas, e o duque é equiparado a Júpiter e é aqui
documentado, literalmente, como descendente de deidades antigas,
ele mesmo um semideus, como seu semidivino ancestral Eneias,
filho de Vênus. É como se o cristianismo nunca tivesse estado lá.
Um pouco como na Rússia moderna, que agora se reconectou com
sua história cristã e tsarista, como se o comunismo tivesse sido
mera desatenção momentânea, os príncipes Visconti são
apresentados no primeiro frontispício como parte de uma linha
ininterrupta de descendência da antiga Roma pagã, sem quase
nenhum sinal de que, por descuido, tenham resvalado em outra fé.
As bordas iluminadas dessas páginas estão blasonadas com
repetidas representações heráldicas de Filippo Maria, inclusive o
brasão de armas dos Visconti, com a víbora e a criança (o biscone),
que se dizia ter sido usado originalmente por um sarraceno morto
por Ottone Visconti na Primeira Cruzada, partido ou esquartejado,
com a águia imperial, símbolo de Milão, bem como os emblemas
pessoais do duque, com um sol radiante (ou raza), uma coroa ducal
entrelaçada com ramos de palma e de louro e uma coroa com um
pano atado e pendente, como os que cruzados tinham em seus
elmos (o nodo), junto com sua divisa particular, “a bon droit”. Eles
acrescentam um apropriado tom de belicosidade e de cruzadas à
abertura, como se fosse a fanfarra de clarins de um arauto, e
chamariam a atenção daquele a quem eram dedicados.
A linhagem de Filippo Maria Visconti mostrada
no manuscrito Semideus, começando em
Saturno, Júpiter e Vênus, ao pé da página, e
se elevando até Filippo Maria, no topo, abaixo
da Virgem Maria.
Filippo Maria Visconti, que nasceu em 1392, de fato fez parte da
primeira grande geração de príncipes colecionadores de livros,
aproximadamente contemporânea de Cosimo de’ Medici (1389-
1464) de Florença, e um pouco mais velha que a de Francesco
Gonzaga (1395-1444), de Mântua, Afonso de Aragão (1401-58), de
Nápoles, Leonello d’Este (1407-50), de Ferrara, e outros. Todos eles
reuniram bibliotecas maravilhosas. A biblioteca estava virando uma
moda, e o conhecimento literário era admirado entre chefes de
Estado esclarecidos. Já se estava muito distante do século XII,
quando se ensinava aos reis da Dinamarca basicamente o alfabeto,
para que pudessem ler os salmos (capítulo 7). O inventário da
biblioteca de Visconti em Pavia, em 1426, quando o duque tinha
apenas 34 anos, inclui quase mil manuscritos, sendo apenas um
deles um saltério. Os clássicos latinos estão esplendidamente
representados, às vezes em múltiplas cópias. Todos os autores
antigos citados na dedicatória do Semideus estão listados no
inventário, inclusive quatro manuscritos de Frontino sobre a arte da
guerra, o que torna possível que Catone Sacco estivesse mesmo
usando a coleção ducal em Pavia como sua biblioteca de referência.
Há também um número muito grande de crônicas, claramente de
interesse pessoal. Um dos livros existentes encomendados por
Filippo Maria é uma tradução para o italiano da vida dos
imperadores romanos, por Suetônio, hoje em Paris, iluminada por
um artista da corte que ele empregava com muita frequência,
conhecido, a partir desse manuscrito, como “Mestre do Vitae
Imperatorum”.
O catálogo da biblioteca mostra uma grande incidência de teologia
tradicional, e obras devocionais em vernáculo. Lá vemos de novo
esse mundo duplo de classicismo pagão e devoção cristã dividindo
estantes e até um mesmo volume. Nem todos os livros pertencentes
a Filippo Maria foram reunidos por ele pessoalmente, pois muitos
tinham sido parte de coleções ancestrais de sua família, e, onde
sobreviveram, eram com certeza de segunda mão. Foi mais por
sorte do que por gosto que ele herdou grande parte da biblioteca de
Petrarca. Outras aquisições, como o Semideus, foram presentes
não solicitados. Em muitos aspectos, sua abrangência mais ampla é
mais parecida com a da biblioteca real da França, sob Carlos VI, rei
de 1380 a 1422, do que com a do humanismo purista renascentista
dos zelosos florentinos. Uma das encomendas mais extensas e
pessoais por iniciativa de Filippo Maria foi a complementação de um
luxuoso livro de horas conhecido como Horas de Visconti, agora em
Florença, que foi iniciado para seu pai, Gian Galeazzo. Ele também
ostenta em toda a sua extensão as armas do duque e os mesmos
emblemas e as mesmas divisas do Semideus.
Apesar de nosso manuscrito em São Petersburgo ser uma criação
da Renascença italiana, sua escrita não apresenta traço algum da
nova e humanística litera antiqua, então na moda em Florença e em
Roma. O Semideus ainda foi copiado na arredondada caligrafia
gótica tradicional, na verdade muito semelhante à caligrafia litúrgica
das Horas de Visconti e da de um breviário feito para a mulher do
duque Filippo Maria, Maria de Saboia. Estranhamente, a Lombardia
demorou muito a adotar os estilos dos manuscritos humanísticos.
Enquanto o resto da Itália ornamentava textos clássicos com as
populares iluminuras com “vinhas brancas” baseadas em modelos
da Antiguidade, as capitulares de abertura aqui no Semideus ainda
são formais e góticas, como as do Livro de Horas de Visconti.
O segundo texto em nosso manuscrito nos leva de volta ao
cristianismo, mas no estilo de Cícero. Começa no fólio 9r com uma
capitular que conta a história da Anunciação, na qual a Virgem
Maria está sentada numa espécie de terraço ao ar livre, numa
paisagem montanhosa. Há uma moldura larga com folhas de hera
em volta da página, permeada de ouro polido, contendo repetidos
quadrifólios com o brasão de Filippo Maria Visconti, o sol fulgurante
e o pano atado. Na margem inferior o brasão de Visconti é partido,
com as três águias do município de Pavia, e seguro por dois anjos
que pairam em suas adejantes túnicas em azul e rosa. Entre a
moldura e o texto há uma vinheta com um pacífico cervo numa
campina entre dois cães, possivelmente um cão de caça e um
galgo.
O Livro de Horas de Visconti, hoje em Florença, contém muitas
insígnias e padrões de Filippo Maria Visconti, inclusive a víbora
que engole uma criança e a divisa do duque: “a bon droit”.

Não há um título, mas o colofão, no final, dá ao texto o nome de


De laudibus virginis, “Em louvor à Virgem”, por Catone (Sacco). Ele
começa: “Si unquam P.C. ad comendationem cuiusq[ua]m timidus
accesi…”, “Se alguma vez me apresentei timidamente, padres
conscripti (a forma de tratamento para se dirigir a membros do
Senado na Roma Antiga), pela recomendação de certa pessoa…”. É
um discurso sobre a Virgem Maria, com base nas Escrituras e em
autores clássicos, inclusive Aristóteles, Pitágoras, Homero e Platão,
na linguagem de uma corte judicial. “Ouça-me com paciência e
gentileza”, declama em certo ponto o autor (pode-se imaginá-lo
andando pelo recinto, os polegares enfiados sob a gola do casaco),
“para que possam compreender.” Contém duas referências
relevantes. Uma é uma alusão aos 1438 anos desde que os judeus
foram confundidos (ou seja, desde a Encarnação), data que, uma
vez que essa é a cópia de apresentação, corresponde quase com
certeza à data do manuscrito. A outra é uma citação de um sermão
de Bernardino de Siena (1380-1444), aqui mencionado quando
evidentemente ainda vivia, afirmando que o Filho de Deus foi
concebido no Céu sem uma mãe e nasceu na Terra sem um pai. Na
verdade — pois conto com o benefício de uma busca de palavras
on-line, com o qual Catone Sacco não contava —, a citação é
originalmente de Santo Agostinho. A data se confirma porque Sacco
inclui o mesmo discurso numa antologia de textos humanísticos hoje
na Biblioteca Britânica, pertencente no princípio a Thomas
Pirckheimer, humanista de Nuremberg cuja única visita a Pavia se
deu naquele mesmo ano, 1438.
Enfim chegamos ao texto principal do manuscrito. O próprio
Semideus é um diálogo, imaginado como uma conversa entre “A”,
que se poderia supor ser o príncipe ideal, o semideus do título, e
“B”, seu mestre, evidentemente na pessoa do próprio Catone Sacco.
No manuscrito as maiúsculas “A” e “B” são escritas ora em ouro,
com molduras azuis a bico de pena, ora em azul, com molduras
vermelhas. O texto começa aqui no fólio 37r, “Preclarem ego esse
rem militarem conseo…”. O diálogo no início desenvolve-se
vagaroso, abrindo com os dois interlocutores discutindo fontes da
história das guerras. Numa tradução aproximada ele começa assim:
[A:] “Eu pessoalmente considero a arte da guerra como algo nobre, pois
creio que acrescenta brilho a todas as ações.”
B: “É verdade, se for naturalmente regida por prudência e com aptidão. Veja
todos os Césares, os Metelluses, os Fábios, os Cipiões, e todos os Catões,
que homenageamos por sua indubitável fama, campeões nessas artes nas
quais devem ser avaliados os semideuses.”
A: “Surpreende-me que você inclua os Catões.”
Abertura da “De laudibus virginis” no
manuscrito Semideus, uma oração em louvor
da Virgem Maria, santa padroeira de Filippo
Maria Visconti; a assinatura embaixo é de
Dubrowsky.
B: “Por que não os Catões?”
A: “Esses escritores são conhecidos unicamente para tempos de paz.”
B: “Tempos de paz?”
A: “É o que costumam dizer as pessoas informadas.”
B: “Talvez você ache que só a tranquilidade produz sabedoria. Talvez
acredite que eles passam mais tempo no ócio do que na ação, mas para
outras pessoas isso em si mesmo é atividade. Catão e Cipião (aquele que
chamam de Africano) nunca estiveram menos inativos do que quando
pareciam estar, pois ambos contribuíram igualmente para a arte da
guerra…” etc.

A moldura decorativa inclui a Virgem e o Menino cercados por


serafins (coloridos de vermelho) no canto superior direito e o próprio
Filippo Maria ajoelhado no chão no canto inferior esquerdo. Abaixo
do texto, o brasão de armas do duque é segurado por dois anjos
que pairam, dessa vez vestidos de armadura para a batalha, entre o
sol fulgurante com uma pomba e o pano atado. Em torno destes
está a divisa do duque, ou seu grito de guerra, escrito quatro vezes
em letras góticas de ouro polido: “a bon droit”.
A essa altura de meu exame do manuscrito na biblioteca em São
Petersburgo, a tarde já se iniciava e eu estava lá desde que fora
aberta, às nove horas. Espreguicei-me e olhei em volta. A sala de
leitura agora estava cheia. Não havia suportes para acolher e
embalar encadernações (e, certamente, tampouco luvas brancas) e
notei que todos os outros leitores de manuscritos estavam usando
canetas. A vigilante, uma bondosa mulher de meia-idade usando
óculos grandes demais, ao perceber que eu perdera a hora do
almoço, começou por trazer-me chocolates russos com sabor de
uísque, para eu comer ali mesmo na mesa. Não sei qual é seu
nome e ela não falava inglês, mas eu a declaro uma santa entre
todas as bibliotecárias de manuscritos. Eu fiquei lá sentado, abrindo
e comendo os chocolates enquanto virava as páginas (com cuidado)
de um dos mais perfeitos e belos manuscritos da Renascença
italiana que existem. Outros leitores provavelmente poderiam
também fumar, se quisessem.
A terceira parte do manuscrito é o próprio
Semideus, concebido como um diálogo entre
“A” e “B”, sobre a prática da guerra e o pendor
para ela.
Não seria sensato eu ler para você o texto inteiro do Semideus,
pois são 140 páginas num latim complexo. Acompanhemos a
narrativa olhando as maravilhosas figuras, que constituem a
principal característica desse manuscrito principesco, e o qual eu
vou, para sempre, associar ao cheiro e ao sabor de um chocolate
russo levemente grudento numa tarde quente de verão. A primeira
ilustração fica um par de páginas para dentro do texto. O diálogo
que a acompanha discute como eram os grandes homens do
passado quando todos eram soldados. A figura mostra um cavaleiro
de armadura num cavalo branco empinado olhando para cima e
vendo a Virgem e o Menino no céu. O cavaleiro tem as armas de
Visconti em sua túnica, e suas feições são sem dúvida as de Gian
Galeazzo Visconti, o falecido pai de Filippo Maria, com sua
característica barba em ponta e cabelo grisalho já rareando,
exatamente como mostrado de perfil no Livro de Horas de Visconti.
Na segunda figura, na folha seguinte, Catone Sacco defende seus
vários xarás chamados Catão, já apresentados na abertura do
diálogo, que ele considera seus antepassados intelectuais (e talvez
literais). A ilustração parece um amplo chafariz em cascata, cada
nível jorrando para o que lhe fica abaixo e cada um contendo as
várias gerações de Catões, como se fossem banhistas num spa
com uma torre feita de diversas piscinas. Duas folhas depois,
novamente, um príncipe Visconti, sem dúvida o próprio Filippo
Maria, galopa rumo à guerra com espada erguida, sob a proteção da
Virgem Maria. Seu cavalo está todo coberto com um pano verde
blasonado com o biscone dos Visconti.
No fólio 45v chegamos às primeiras cenas de campanhas
militares. À esquerda vemos um exército vestido de vermelho
avançando por um desfiladeiro de montanha, carregando bandeiras
com um escorpião negro contra um fundo branco. Em primeiro plano
estão as tendas que eles armaram. Fica claro que são o inimigo,
pois o mesmo escorpião é levado pelo malévolo exército do faraó
mostrado nas Horas de Visconti, tentando atravessar o mar
Vermelho. Mas eles estão a ponto de encontrar seu oponente. Um
arauto toca um clarim nas ameias de uma torre no alto de uma
colina, no canto superior direito, e outro destacamento, carregando
os estandartes dos Visconti, entra aos brados no combate.
Filippo Maria Visconti, com suas armas e
armadura e o manto cobrindo o cavalo,
galopando rumo à guerra sob a vigilante
proteção da Virgem Maria, sua santa
padroeira.
O inimigo, com a insígnia de um escorpião
negro, acampou num vale entre montanhas,
mas está prestes a ser atacado pelo exército
de Visconti, que desce de uma fortaleza no
cume da montanha.
O exército de Visconti, em aliança com tropas imperiais sob a
bandeira com a águia de seu emblema, ataca a cidade do inimigo
no fólio 59r. A cidade é dominada por um inconfundível minarete. O
texto descreve como se deve avançar sobre uma cidade, com a
ajuda de Deus, munidos de escudos e catapultas e trazendo
estruturas para serem apoiadas nos muros, e o que eu interpreto
como sendo bombardas ou canhões (literalmente, “bronze que
ruge”), com lançadores de chamas, máquinas de arremessar e
outros instrumentos de guerra. São listados muitos termos de
maquinaria destinada a cercos — “tormentis, fundibulis, scorpiis” e
outros: meu pequeno dicionário de latim define cada um deles
apenas como “catapulta”, mas há diferenças sutis só conhecidas por
especialistas em armas de guerra. A figura mostra um grande
círculo de morteiros com cores metálicas sendo rolados para a
frente. Há luta corpo a corpo: a maioria dos que têm escorpiões em
seus escudos está sendo morta, ou está caindo no fosso. O exército
cristão enfim atravessa a ponte levadiça e galopa sem resistência
para dentro da cidade.
Em seguida, as tropas de Visconti estão atravessando um rio num
deserto quente e sem árvores. Alguns dos soldados despiram suas
armaduras, mergulharam no rio e estão bebendo de sua água. A
Virgem observa de um sol ardente no céu (a Virgem e o Menino
também aparecem nas margens de inúmeras páginas). Depois há
uma cena noturna, sob um céu azul-escuro cheio de estrelas. O
inimigo está acampado nas montanhas à direita. Fogueiras ardem
do lado de fora das tendas, e lanças estão cravadas no solo em
torno do acampamento, com suas pontas viradas para cima. Os
cristãos, em suas armaduras, rastejam pelas montanhas, penetram
furtivamente no círculo de lanças e massacram o inimigo,
surpreendido e despreparado em suas roupas de dormir. Uma
batalha campal ocorre no fólio 69r. Destacamentos de tropas
precipitam-se de todos os lados para se juntarem à luta. Muitas
ostentam brasões. Os escudos dos inimigos têm escorpiões ou
cabeças de mouro; os dos cristãos têm uma variedade de
emblemas heráldicos, inclusive dos Visconti e de outros,
especialmente a águia dos gibelinos (“capo dell’imperio”), aliados
dos lombardos. Sem os escudos e com armadura completa, como
aqui, seria impossível saber quem estava de qual lado (ainda mais
dentro da realidade de uma batalha medieval), e a importância da
heráldica é muito evidente. Depois disso, as tropas de Visconti
dispõem de um bem-vindo dia de folga. São mostradas acampando
num bosque junto a um rio. Alguns cavalos estão sendo alojados em
estábulos, outros levados para beber à beira d’água. A maioria dos
soldados removeu suas armaduras. Alguns lutam entre si e fazem
acrobacias, enquanto outros jogam uma espécie de boliche,
conversam sentados ao sol, trepam em árvores ou se ajoelham em
oração do lado de fora de suas tendas. Essa tranquilidade não dura
muito. Na página seguinte, o exército é brutalmente atacado.
Cabeças e membros decepados são arremessados junto com o
sangue vertido na escaramuça. Mas olhe! À direita, dois arautos de
Visconti, a cavalo, apontam para um estreito caminho rochoso numa
montanha, no canto superior esquerdo, de onde reforços vêm
cavalgando montanha abaixo em socorro, bem a tempo. Depois
vemos diferentes usos dos cavalos, carregando armamentos,
trotando, galopando, e assim por diante; homens cortam galhos
numa floresta para lhes dar de comer.
Todos os desenhos são em cores, executados com graça e
imaginação infinitos. As cores são suaves e lavadas. A maioria das
ilustrações derrama-se em torno de pequenos blocos de texto, que
parecem tremular através das cenas como se fossem bandeiras. As
paisagens são totalmente fantasiosas, com montanhas altaneiras e
castelos de contos de fada, entre agrupamentos de árvores verdes.
As realidades do conflito são apresentadas como num romance de
cavalaria. As figuras dos combatentes são minúsculas, e todas
desenhadas com perfeição, atarefadas e levando a sério seus
deveres. Minha nova melhor amiga, a vigilante, trouxe-me uma lupa,
e outro chocolate, e eu estava tão completamente extasiado quanto
deve ter estado Filippo Maria quando ele também teve esse livro
mágico nas mãos pela primeira vez.
As tropas do inimigo acampadas sob o céu
noturno, enquanto soldados cristãos, numa
emboscada, rastejam furtivamente
atravessando o círculo de defesa formado por
lanças.
O exército cristão tirando um dia de folga,
banhando seus cavalos no rio, jogando e
relaxando ao sol.
A figura no fólio 89r é de página inteira, sem texto. Agora estamos,
claramente, no deserto do Oriente Médio, num árido planalto acima
de um desfiladeiro na montanha. A fortificação no centro se parece
muito com o mosteiro de Santa Catarina, nas encostas do monte
Sinai, exceto por ser inequivocamente muçulmana, com domos e
minaretes encimados por crescentes. O escudo com a cabeça de
mouro está acima do portão principal, e a ponte levadiça está
arriada. Soldados ostentando as armas imperiais estão atirando
granadas em chamas por sobre as ameias. Um pequeno bosque à
direita está pegando fogo, lançando labaredas e fumaça sobre o
forte. Algumas tropas inimigas saíram para combater e estão sendo
terrivelmente massacradas. Tudo parece estar pavorosamente
incendiado. Um soldado está armando um enorme morteiro,
apontado para a cidadela. As chamas já saem pelo cano mesmo
antes de o obus ter sido disparado. A logística para manobrar esse
poderoso morteiro europeu e deixá-lo em posição no deserto
deveria ter sido imensa (faz lembrar o imperador Tewodros
arrastando seu precioso canhão de sete toneladas através da
Etiópia em 1867). Uma figura em página dupla logo permite
vislumbrar como foi feito esse transporte. Equipes de soldados,
despidos de suas túnicas e só de justilhos, estão carregando nos
ombros compridas traves, enfiadas em cordas e correntes. As
estrelas estão brilhando; talvez fosse mais fresco fazer esse
trabalho à noite. Esses elementos são montados rapidamente para
formar uma máquina de cerco, que se pode girar para permitir aos
atacantes serem lançados por sobre o fosso e cair no castelo vindo
de cima, no nível das amuradas. A batalha na montanha no fólio 96r
acontece com certeza à noite. Na parte inferior à esquerda há luta
corpo a corpo entre homens negroides e os muçulmanos com
escorpiões nos escudos. Por um passo na montanha vêm as tropas
cristãs em suas armaduras, tocando cornetas e carregando tochas
acesas.
Um ataque a uma cidadela sarracena no deserto, com os
exércitos cristãos lançando morteiros e atirando granadas por
cima das ameias, sendo tudo observado pela Virgem com o
Menino no alto, à esquerda.
As quatro últimas figuras referem-se à guerra no rio e no mar. A
primeira é a cena descrita aqui no início, na qual marinheiros do
navio de Visconti bombardeiam a nau inimiga com serpentes dentro
de jarros e com bombas incendiárias. Alguns estão atirando com
suas balestras. O cenário é o de um rio largo, com a frota inimiga
descendo a corrente. Luta-se também no litoral, e espectadores
alinham-se ao longo da margem do rio para assistir à ação. Mas há
que lembrar o poema de W. H. Auden, “Musée des Beaux Arts”, que
assim começa: “Quanto ao sofrimento eles nunca se enganaram, os
Velhos Mestres…”, mostrando como a vida continua na arte
renascentista mesmo em presença das mais extraordinárias
circunstâncias. A maior figura na ilustração é a de um civil, na parte
inferior direita, que amarrou seu cavalo e está cozinhando seu jantar
numa fogueira, alheio a tudo, de costas para a batalha.
A figura seguinte mostra navios combatendo no mar, usando as
mesmas técnicas de atirar serpentes e de nadar por baixo do navio
do inimigo para abrir orifícios no casco. Algumas páginas depois
vemos métodos para incendiar fortes na margem do rio. Um homem
com um sarilho vai desenrolando uma corda para que uma barcaça
cheia de explosivos desça o rio em direção a uma ponte. À
esquerda, homens acendem fogueiras embaixo dos muros de um
forte, mas os defensores, nas ameias, lançam toras para esmagá-
los. À direita, amontoam-se gravetos e granadas de encontro aos
muros. A cena final mostra como construir um pontão sobre um rio.
É preciso atravessá-lo a nado e amarrar cordas em árvores em cada
margem, e depois amarrar nelas pranchas e feixes de galhos. O
exército à direita está pronto para atravessar o rio. A lua e as
estrelas brilham, pois a cena está ocorrendo à noite. O texto termina
no fólio 116r: “… Catonis sacci papiensis semideus explicit”, com um
desses encantadores bons votos tão comuns nos manuscritos
humanísticos italianos: “lege feliciter”, “aproveite a leitura”.
Embarcações do inimigo no rio são atacadas
com bombas incendiárias e serpentes
venenosas em garrafas, e por homens
submergindo para perfurar os cascos de
madeira.
A lápide do túmulo de Catone
Sacco sobreviveu em Pavia,
num pátio na Corso Strada
Nuova, e mostra o autor
ensinando, de um livro, uma
classe de alunos.

O autor, Catone Sacco, foi um desses humanistas e escritores


menores, mas laboriosos, que ganharam a vida à margem das
cortes renascentistas italianas. Era um classicista e um advogado
civil, e ensinou na universidade de Pavia de 1417-8 provavelmente
até morrer, em 1463. Escreveu comentários para o Codex e o
Digest, os dois principais componentes do corpus justiniano da lei
antiga, e cartas e discursos filosóficos dirigidos aos estadistas. O
Semideus é um texto raro, e sua propagação é incomum. No todo,
foi concebido como três livros, o plano de um tratado abrangente
sobre a arte de governar. O Livro I dizia respeito ao príncipe ideal, o
“semideus”, baseado na história da Roma Antiga. O Livro II era
sobre os deveres de um príncipe em tempos de paz. O Livro III, que
é o que temos aqui, trata das técnicas empregadas por um
comandante militar em ação. Em sua inteireza, o Semideus forma
uma versão muito mais antiga do gênero mais tarde glorificado pelo
Cortesão, de Castiglione (c. 1507), e pelo Príncipe, de Maquiavel
(provavelmente 1513). No entanto, não existe um manuscrito
conhecido ou uma edição impressa antiga de todos os três livros do
Semideus de Catone Sacco juntos. Existem transcrições dos livros I-
II num manuscrito próprio na Hessische Landesbibliothek em Fulda;
há uma cópia do Livro I apenas num manuscrito na Basileia. Esse
dois fragmentos separados são pequenos componentes de
antologias com múltiplos textos datadas de meados ao fim do século
XV, editadas em papel. O Livro III, contudo, está singularmente
preservado nesse luxuoso volume dedicatório em São Petersburgo.
No prefácio, Sacco diz explicitamente a Filippo Maria Visconti que
ele “anexou” esse terceiro livro do Semideus porque é relevante
para seu propósito aqui. Isso está bem no topo do fólio 5r: “attuli
Semidei librum tertium”. Daqui a pouco voltaremos a essas palavras.

De volta a casa, em Londres, envolvi-me numa série de trocas de


ideias e informações, totalmente fascinantes, com Anna Melograni,
historiadora da arte do Ministerio dei Beni e delle Attività Culturali
italiano, a qual tinha dedicado sua vida ao estudo de iluminuras do
século XV na Lombardia. Todos nós que trabalhamos com
manuscritos apoiamo-nos demais na gentileza de colegas, e
compartilhar ideias e possibilidades é uma das alegrias de nosso
métier. Intrigado com a variedade e as inconsistências na decoração
desse manuscrito, fui buscar seu conselho.
A primeira reação dela foi que as ilustrações de cunho militar no
Semideus não podem, na verdade, ser tão tardias, ou seja, de 1438.
Antes, não se suspeitara disso. Anna diz que são muito parecidas —
e talvez até na mesma caligrafia — com os desenhos de pé de
página num manuscrito de De mulieribus, de Boccaccio, e em outros
textos em Copenhague, o qual tem um colofão que registra sua
finalização em Pavia em 10 de fevereiro de 1401, às onze horas da
noite (devia estar muito escuro, no inverno). O volume de
Copenhague é ilustrado por um artista desconhecido, do círculo do
então já falecido iluminador do século XIV Pietro de Pavia. Comparei
reproduções dos dois, o que me fez acreditar que realmente a
mesma mão os desenhou, com suas colinas orgânicas nuas e
selvagens, suas florestas naturalísticas e minúsculas pessoas
teatrais. A julgar apenas pelas fotografias, diz-me Anna Melograni,
ela presumiria que com segurança o trabalho do artista no
manuscrito do Semideus não é posterior a (digamos) 1430 e que
poderia ser consideravelmente mais antigo. As capitulares e
molduras na abertura e o brasão e os emblemas de Filippo Maria
Visconti, no entanto, poderiam todos ser consistentes com 1438, a
data que aparece no prefácio.
O que eu creio possa ter acontecido é o seguinte. Catone Sacco
sem dúvida encomendou orgulhosamente uma cópia mestra
iluminada dos três livros do Semideus completo. Não lhe posso
atribuir uma data, mas posso dizer que o autor estava dando aulas
na universidade em 1418. Assim como os hipotéticos textos de
Boece e de Troilo, que consideramos no capítulo 10, foram
preparados em pergaminho pelo escrevente Adam na década de
1380 e, ao que parece, devolvidos depois ao jovem Chaucer para
correções, essa cópia foi feita profissionalmente para uso do próprio
autor. O manuscrito de São Petersburgo contém numerosas
pequenas emendas que são, quase com certeza, de próprio punho,
numa caligrafia minúscula semi-humanística. Por instrução de
Sacco, o texto foi confinado dentro de retângulos minúsculos no
centro de cada página, com uma altura de quinze linhas, nove por
sete centímetros, não chegando a um oitavo da área da página.
Uma a uma, as enormes margens em branco foram lentamente
preenchidas com ilustrações pelo artista do Boccaccio de
Copenhague de 1401, ou outro de traço muito parecido com o dele.
A intenção, pode-se supor, era ter figuras em volta de todas as
páginas, por todo o texto. Pode ter sido pensado como um presente
extravagante ou talvez uma mera vaidade pessoal, comparável com
a de alguns autores modernos que encomendam encadernações
luxuosas para os próprios exemplares de seus primeiros livros.
Pode-se visualizar o trabalho do ilustrador avançando
vagarosamente na década de 1420. Talvez o artista tenha morrido
ou desistido bem antes de 1430, ou Catone Sacco tenha perdido o
entusiasmo ou os recursos financeiros, e tudo tenha sido posto de
lado, uma tarefa grande demais para ser completada. Todo
acadêmico tem projetos como esse. Então, alguns anos depois, em
1438, o autor de repente vislumbrou uma oportunidade de reformar
o volume abandonado e presenteá-lo a Filippo Maria Visconti.
Decidiu limitar o tema à arte da guerra e à necessidade, naquele
momento, de uma nova Cruzada. Compôs um novo prefácio e o
discurso em louvor à Virgem Maria, a santa mencionada no nome
do duque. Ele retirou os dez cadernos finais da última parte de sua
própria cópia mestra do Semideus, não encadernada, porém
ilustrada, salvando assim apenas o Livro III, única parte agora
relevante, e “anexou” aquela seção, como ele mesmo diz, ao novo
volume. Evidentemente, o mesmo escriba ainda estava disponível,
ou pode ter sido escrita do próprio punho do autor, de modo formal.
É por isso que o caderno iv só tem quatro folhas, já que tinha de
encaixar no caderno v (a partir do fólio 37), que fora escrito alguns
anos antes.
Esse manuscrito compósito foi depois ornamentado para servir de
presente. O artista original estava morto, ou tinha sido retirado do
projeto havia muito tempo. Sua caligrafia não aparecia em lugar
algum nos componentes adicionais. Diversos iluminadores
profissionais foram então trazidos, o que pode sugerir certa urgência
em ter o livro pronto para uma determinada ocasião. Foram
fornecidas as margens com o brasão e os emblemas de Filippo
Maria Visconti no início de cada seção, assim como as páginas de
abertura mostrando que o duque descende de Saturno. Inseriram-se
as numerosas pequenas vinhetas nas margens com a Virgem e o
Menino, irrelevantes num tratado militar mas úteis aqui para chamar
a atenção para um destinatário cujo nome do meio era Maria. Estas
poderiam ser — estou citando Anna Melograni novamente — de
autoria de Michelino da Besozzo, documentado em Pavia, 1388-
1450, um dos grandes artistas de seu tempo. Era também pintor de
painéis e afrescos, em Pavia e em Milão. A capitular inicial da
Anunciação no Semideus, no entanto, lembra muito o estilo mais
antigo de Giovanni Belbello da Pavia (ativo de c. 1425 a c. 1462).
Esse iluminador maravilhoso trabalhou mais tarde em muitas
regiões no norte da Itália, mas começou sua carreira em sua cidade
natal, Pavia, onde as primeiras encomendas incluíam a finalização
do Livro de Horas de Visconti para o duque Filippo Maria e
contribuições para o Breviário de Maria de Saboia. O céu rajado, as
montanhas escarpadas, os panos rodopiantes e, acima de tudo, as
cores são totalmente característicos da obra de Belbello naquele
período de sua vida. O fato de ter contribuído para esse manuscrito
em 1438 acrescenta uma nova e pequenina nota de rodapé à sua
biografia.
Quando o Semideus assim montado ficou pronto e
adequadamente encadernado em seu veludo carmesim com fechos
de prata, acondicionado em seu estojo de couro dourado, pôde ser
presenteado ao duque por seu autor. Vemos uma boa imagem de
como isso aconteceu na cópia dedicatória da Historia Angliae de
Galassio da Coreggio (c. 1368-1442), entre os manuscritos de Pavia
agora em Paris. Seu frontispício mostra Filippo Maria Visconti
usando um grande chapéu de copa achatada e roupas de veludo
marrom-escuras, sentado num trono, envolto num pano vermelho
florido que se desenrola até seus pés. Não se veem cabelos por
baixo do chapéu, e ou o duque era calvo na ocasião ou os cabelos
tinham sido cortados na nuca. Ele se parece um pouco com Vladimir
Putin. Tem um longo pescoço, nariz reto e olhos penetrantes, que
olham diretamente para o autor, ajoelhado diante dele, o chapéu na
mão esquerda, oferecendo-lhe um pequeno manuscrito
encadernado em vermelho com quatro fechos dourados. O duque
está levemente inclinado para a frente, as duas mãos estendidas.
Se Filippo Maria ficou agradecido pelo Semideus, isso não teve
efeito prático. Catone Sacco deve ter ficado desapontado. Nenhuma
Cruzada aconteceu, e não foram feitas outras cópias do novo livro,
seja por requisição do duque, seja pelo do próprio autor. Tampouco
sobrevive manuscrito algum do Semideus original completo em três
livros, porque Sacco tinha agora dado o que deve ter sido sua única
cópia do Livro III. Supõe-se que ele teria ficado com seu próprio
manuscrito das primeiras partes, muito provavelmente ilustradas
pelo artista do Boccaccio de Copenhague, um meio livro órfão, do
qual as transcrições conhecidas em Fulda e na Basileia devem ter
acabado entrando em circulação. Em algum momento após a morte
de Sacco, em 1463, o original se perdeu.

Colofão do livro impresso em Pavia em 1477 por Jacopo de San


Pietro, sem dúvida o mesmo homem que em sua juventude
trabalhou para Filippo Maria Visconti e Catone Sacco.

Como vimos no capítulo anterior, a preparação de manuscritos


iluminados complicados na França e na Itália era, naquela época,
coordenada por livreiros profissionais. Suas tarefas envolviam reunir
os vários contratados: escribas, iluminadores e encadernadores. Um
exemplo especialmente famoso na Itália é o de Vespasiano da
Bisticci (1421-98), de Florença, que parece ter conhecido
pessoalmente cada um que alguma vez comprou ou encomendou
manuscritos humanísticos. Em Pavia, conhecemos uma dessas
figuras, Jacopo de San Pietro, que é tido como o possível
responsável pela montagem do Semideus para ser presenteado. Ele
é descrito como “bedellus”, literalmente “bedel”, termo às vezes
empregado na Paris medieval para agentes literários que
ostentavam algum impreciso status semioficial dentro da
universidade. Quando mais tarde Catone Sacco encomendou uma
cópia, para presente, de sua própria Lectura super quibusdam titulis
libri VI Codicis, um comentário da lei civil a ser presenteado a
Francesco Sforza, ele se valeu novamente de Jacopo de San Pietro.
Esse manuscrito também sobrevive, em Paris. Numa guarda, bem
no fim do livro, está inscrito numa caligrafia miúda: “1458 die XIIIIo
Iunii hoc Opuis Aminiavit et ligavit Jacobus de S[an]ctoPetri
P[a]p[i]e”, “Jacopo de San Pietro de Pavia iluminou e encadernou
esta obra, 14 de junho de 1458”. O livro é modestamente
ornamentado em sua página de abertura, com o brasão e os
emblemas de Sforza. Não foi feito por nenhum dos artistas de
Semideus. Jacopo de San Pietro tinha, claramente, algum tipo de
função contínua na manutenção da biblioteca ducal em Pavia. Pelo
menos quatro livros de Visconti subsistentes foram reencadernados
para a coleção sob sua supervisão, inclusive um comentário de
Boécio sobre Aristóteles que tinha pertencido a Petrarca e estava
registrado no século XV como encadernado por “Jacobus de Sancto
Petro bidelus”. Esse livro já tinha estado na biblioteca antes de ser
reencadernado, uma vez que a encadernação está descrita no
inventário de 1426 como placas revestidas de couro branco, e agora
em pele de bezerro do século XV estampada a seco, supostamente
obra de Jacopo ou de seu subcontratado. Curiosamente, na velhice
Jacopo de San Pietro tornou-se estampador.
A arte de imprimir com tipos móveis foi aperfeiçoada na Europa no
início da década de 1450 por Johannes Gutenberg, de Mogúncia (c.
1395-1468). Há motivos de sobra para aceitar a primazia de sua
reivindicação. Os historiadores culturais enfatizam com razão a
importância verdadeiramente transformadora da invenção de
Gutenberg, comparando-a com a invenção da roda, ou da internet.
Pela primeira vez, o pensamento humano e a língua tornaram-se
suscetíveis a uma reprodução ilimitada em cópias aparentemente
idênticas. O processo de dispor os tipos era mais lento do que
transcrever livros à mão, mas, uma vez dispostos, a impressão
poderia produzir centenas de cópias em massa empregando uma
fração do tempo e do custo antes despendidos para produzir uma
só. No decorrer dessa história de manuscritos, deparamos a cada
instante com problemas de erros de copistas e suas consequências:
na tipografia, ao menos em teoria, a correção de provas eliminou o
erro. A importância da imprensa não pode estar sendo
superestimada quando se pensa na fixação das línguas, no avanço
do letramento do povo, na rápida disseminação do esclarecimento
ou do mal, e no compartilhamento e na transformação da
experiência humana. É notável a velocidade com que a imprensa se
introduziu na Europa. Em 1500, no fim do assim chamado período
dos “incunábulos”, 350 cidades tinham prensas de impressão, 30 mil
títulos haviam sido publicados e cerca de 9 milhões de exemplares
tinham sido impressos. Manuscritos medievais ainda tinham certo
glamour de exclusividade e singularidade; a produção em massa de
incunábulos mesmo agora ainda é muito comum.
A imprensa chegou à Itália muito cedo. A versão aceita é que dois
alemães, Konrad Sweynheym e Arnold Pannartz, estabeleceram a
primeira prensa italiana no mosteiro de Subiaco, nas proximidades
de Roma, em 1465, antes de se mudarem dois anos depois para a
própria Roma, especializando-se na produção de imponentes
edições em latim para patronos humanistas, geralmente iluminados
à mão. Há uma suposição, discutível, de que um impressor
itinerante, talvez Ulrich Han, de Viena, já poderia estar produzindo
efêmeros textos devocionais em italiano, talvez em Bolonha ou
Ferrara, em 1462-3. Dentro de poucos anos já havia oficinas
gráficas bem estabelecidas em Veneza (1469), Foligno (1470),
Ferrara, Milão, Florença, Bolonha e Nápoles (todas em 1471),
Pádua, Parma, Mântua e Verona (todas em 1472), e numa
velocidade crescente em outros lugares. Pode ter havido uma
gráfica em Pavia em 1473. Uma edição rara de um Pseudo-Cícero,
Rhetorica ad Herennium, foi publicada em Pavia em 12 de
novembro de 1477, identificando o impressor como Jacobus de
Sancto Petro. Deve ser o mesmo homem. Agente literário,
iluminador e encadernador, já associado à universidade e à
biblioteca de Visconti em 1438, quando tinha, digamos trinta anos,
em 1477 ele estaria com sessenta e tantos anos, não idoso demais
para imprimir um livro antes de se aposentar, quando o mundo
medieval chegava ao fim.
É claro que a indústria de produção e publicação de livros foi
transformada pela invenção da imprensa e que muitos escribas
profissionais foram excluídos do negócio, ou tiveram de se adaptar,
mas em seus princípios básicos o comércio de livros no século XV
não foi muito alterado. Ainda havia fornecedores de papel e de
pergaminho, criação de exemplares a serem copiados, autores,
editores, designers, encadernadores e livreiros, do mesmo modo
que tinham existido por vários séculos. Muitas dessas mesmas
pessoas, inclusive Jacopo de San Pietro, simplesmente continuaram
a fazer o que sempre tinham feito, com pequenas modificações
mecânicas. Embora a tecnologia seja agora diferente, o amor aos
belos livros e a atividade de fornecê-los ainda florescem nos dias de
hoje.
Outra coisa que não mudou muito desde 1438, mesmo em nossa
época atual, foi a irresistível inclinação humana para o combate e a
necessidade de justificar a guerra com argumentos de justiça
ideológica, seja qual for o lado. Filippo Maria Visconti nunca
convocou uma Cruzada. Anseios quanto a possíveis ameaças à
cultura europeia por parte de forças conjuntas do Islã estão de novo
na ordem do dia, mas serpentes em garrafas provavelmente não
são a resposta.

* A sequência do alceamento é: (a) fólios 1r-8v, a dedicatória, abertura em 2r (i8); (b) fólios
9r-36v, o De laudibus Virginis (ii-iv8, v4), e (c) fólios 37r-116r, o Semideus (vi-xv8).
12

As Horas de Spinola
c. 1515-20
Los Angeles, Museu J. Paul Getty, MS Ludwig IX.18

Minha primeira visita à locação atual do Centro Getty aconteceu em


outubro de 1983, cerca de catorze anos antes de ele ser
efetivamente aberto. O Truste Getty tinha acabado de contratar a
aquisição de um árido terreno no topo de um monte nas montanhas
Santa Monica, nos arredores de Los Angeles. John Walsh, recém-
nomeado diretor do museu que nascia, levou-me de carro por uma
trilha áspera e poeirenta, morro acima, e o escalamos entre pedras
soltas e arbustos de carqueja para admirar a ampla e nebulosa vista
do oceano Pacífico, a oeste, Santa Monica bem longe lá embaixo, e
Hollywood e os arranha-céus do centro de Los Angeles a leste.
Coelhos corriam entre os arbustos. Acho que me lembro de ter visto
gaviões pairando sobre nós, mas posso estar inventando esse
detalhe. Nesse lugar agreste e deserto na montanha, que parecia
estar acima e na beirada do novo mundo, explicou-me John Walsh,
agitando os braços, eles iam construir uma enorme casa para os
tesouros da arte, inclusive, como tinham decidido recentemente,
uma coleção dos melhores manuscritos iluminados da Europa.
Mais de trinta anos depois, eu me vi em Los Angeles, na varanda
de meu hotel ao pé da mesma montanha, o olhar fixo no outro lado
da estrada, na reluzente e moderna acrópole bem acima de mim.
Era um belo dia, é claro, como sempre é no sul da Califórnia.
Quando perguntei no saguão se poderia ir a pé até o Getty, eles me
olharam com aquele ar de simpatia reservado aos ineptos e me
levaram até o ônibus de traslados do hotel. “Não temos muita
calçada”, disse o motorista, quando me desculpei por incomodá-lo.
Eu era o único passageiro na curta viagem subindo o Bulevar
Sepulveda até o primeiro entroncamento, que contornamos pela
esquerda, sob a autoestrada de San Diego, e entramos na área dos
portões de segurança do museu, na base da colina, parecidos com
as cabines de pedágio numa rodovia francesa. Na América,
qualquer sujeito de uniforme deduz que você é um criminoso, até
prova em contrário. Eles pediram meu “número de reserva de
estacionamento”, que eu, é claro, para sua incredulidade e suspeita,
não havia solicitado previamente, já que não tinha carro. Esta é
supostamente uma sociedade sem classes e este é um museu livre,
criado para todas as pessoas de Los Angeles, mas quem não pode
chegar lá de carro está condenado a não ser o tipo de pessoa que o
museu gostaria de admitir.
Há amplos estacionamentos de vários andares na base da colina,
nos portões e também lá em cima, no topo. A não ser que tenha
permissão para subir com o carro, você entra num primeiro
estacionamento à esquerda, sobe um andar de elevador (ninguém
jamais sobe escadas em Los Angeles) e toma um trem automático
(sem maquinista) branco com três vagões, que a cada poucos
minutos sobe deslizando pela encosta da montanha e a contorna
cada vez mais alto por uma artificiosa paisagem que lembra o fundo
de um quadro de Mantegna, até chegar a uma pequena estação à
beira do próprio museu. Só por esse livre percurso de trem já valeu
a pena ter vindo. Saia e ajuste seus olhos à claridade do sol
californiano. Os prédios são muito amplos, mas não especialmente
altos, enroscando-se como uma cidade medieval em volta daquele
mesmo cume de montanha que uma vez escalei entre as pedras
junto com John Walsh. O complexo inteiro do museu, bibliotecas e
centros de pesquisa foi inaugurado em dezembro de 1997. O custo
foi fenomenal, estendendo-se até mesmo além da enorme doação
de Getty. Historicamente, talvez apenas o Escorial ou Versalhes
possam se comparar em visão e dispêndio. Do terminal do trem vê-
se um pátio em vários níveis, onde se poderia encenar uma grande
ópera e que dá para o pórtico do museu ao alto. Há plantas em
arranjos artísticos sobre gigantescos pratos, e esculturas de Maillol
e de Charles Ray. É muito óbvio que isso é de fato um museu,
diferentemente das bibliotecas dos capítulos anteriores. Saia do sol
quente para o saguão da entrada e sinta, na hora, o ar-
condicionado. À esquerda e à direita você tem uma esplêndida
coleção de riquezas, de uma imensidão tão atordoante quanto a de
um cardápio americano, incluindo pinturas, esculturas, artes
decorativas, fotografias, mobiliário e (cintilando no escuro)
manuscritos iluminados. Tudo parece ser tranquilizadoramente sério
e inquestionavelmente caro. Você é guiado por garotas de beleza
impactante e rapazes de aparência bem cuidada, todos com olhos
azuis e dentes muito brancos. Esses devem ser os estágios mais
procurados do mundo, e está na cara que eles gostam de seu
emprego.
Eu disse a um deles que vinha me encontrar com Elizabeth
Morrison, curadora de manuscritos. Enquanto os seguranças
americanos tratam você como um provável criminoso, todos os
outros em Los Angeles consideram-no seu melhor amigo e o tratam
pelo primeiro nome. Como se sua maior alegria fosse me atender,
eles me levaram de volta, novamente, para a pequena estação,
onde eu deveria ter ido para a esquerda, descendo a rampa para a
“Segurança Central” (a essa altura, eu já tinha ouvido metade da
história de suas vidas e suas ambições hollywoodianas). No balcão
ali eles me pediram aquele constante requisito americano,
“identidade com foto”, como eles a chamam, o que nos Estados
Unidos costuma significar uma licença de motorista, pois eu ainda
estava sendo sutilmente avaliado, e me deram um crachá que
equivalia ao passe por um dia. Depois me escoltaram até outro
elevador, desci ao piso L3 e percorri largos corredores internos de
concreto e sem janelas com canos que corriam ao longo dos tetos,
como se fossem os passadiços de algumas penitenciárias,
avivados, porém, por pôsteres de antigas exposições do Getty,
dobrando várias vezes em ângulo reto (agora realmente não faço
ideia do caminho que percorri) até chegar ao Departamento de
Manuscritos e Desenhos. Quase fui aclamado quando me
introduziram lá. O calor com que sempre se é recebido aqui nos
constrangeria em nossas contidas bibliotecas europeias. Membros
da equipe aparecem de toda parte. Apresentações são feitas o
tempo todo. Parece ser um lugar muito feliz, o que diz muito de um
bom gerenciamento.
O Centro Getty, numa colina com vista para Los Angeles,
compreendendo um museu de arte, um instituto de pesquisa e
outras instalações, inaugurado em 1997.

A sala de leitura corre paralela à parede externa do museu. Há


janelas altas e com arco em ponta, como num castelo medieval, das
quais se avistam à distância, através de um vale com ásperos
blocos de pedra, algumas casas na encosta da montanha do lado
oposto. Há persianas brancas, que sem dúvida são baixadas
quando a luz da Califórnia fica muito forte. Estantes de livros em
cada extremidade da sala contêm as mais recentes obras de
referência. Paralelamente a cada estante há uma longa mesa feita
de massudos blocos polidos de madeira escura, com sólidas e
condizentes cadeiras estofadas de couro verde. Uma mesa é para a
consulta de manuscritos, as outras para desenhos. Tudo aparenta
ser muito caro. Como em todas as visitas que fiz antes a essa sala,
eu era o único leitor. A mesa dos manuscritos fora preparada com
antecedência como que para um jantar solitário, com cunhas de
espuma cinzenta, que servem de apoio a encadernações valiosas, e
tiras com lastro que parecem cobras de veludo púrpura, para manter
as páginas do manuscrito abertas sem que se precise tocar nelas.
Há também pesados cordões brancos com pequenos pesos em
cada extremidade. Fui munido de um par de luvas brancas com
estrias no dorso, mas, ai de mim, logo em seguida Beth Morrison me
garantiu que o museu está considerando agora relaxar essa
exigência. São fornecidos lápis para fazer anotações.
O manuscrito que viemos ver já estava esperando num grande
carrinho, tão solitário quanto um milionário no banco traseiro de sua
longa limusine. Está guardado num estojo moderno de marroquim
vermelho polido, com letras douradas na lombada: “The Spinola
Hours” e “Bruges c. 1510”, feitas com a intenção de causar o
máximo impacto quando o manuscrito estava sendo preparado para
venda pelo magistral livreiro de Nova York H. P. Kraus, no final da
década de 1970. Somos imediatamente engolidos por uma
atmosfera de luxo e tentação. Certa vez um jornalista perguntou ao
sr. Kraus se ele poderia explicar em poucas sentenças quem
compra manuscritos iluminados. Kraus resmungou em seu
característico sotaque austríaco: “Posso lhe dizer em duas palavras:
os ricos”. Esse não é meramente “um” livro de horas, mas “o” Horas
de Spinola, título criado por ele para sugerir fama e exclusividade,
apesar de o nome ainda não existir quando o estojo foi feito e o
próprio manuscrito fosse quase desconhecido.
Examinamos um livro de horas real muito antigo no capítulo 9. No
decurso de cem anos, parecia que toda pessoa ilustrada ou até
mesmo semi-ilustrada na Europa também queria possuir um. Eram
livros feitos para indivíduos, que compravam as cópias mais caras
que se pudessem permitir. Livros de horas eram usados em
cenários domésticos, levados pela casa e abertos em pequenas
mesas de oração, ou aninhados no colo de seus donos. Por sua
natureza, eram sempre objetos de posse, íntimos e pessoais.
Frequentemente devem ter sido guardados em mesinhas de
cabeceira, ou em baús junto com as joias da casa e os tesouros da
família, e eram mostrados às visitas. Um museu, de fato,
provavelmente é agora um cenário muito mais adequado para um
livro de horas do que uma biblioteca. Um dos temas deste capítulo é
o luxo, e quanto a isso o manuscrito no Museu Getty não vai
desapontar.
O Livro de Horas de Spinola sempre foi um objeto de luxe, de alto
preço. Começamos esta nossa jornada pela história dos
manuscritos com livros que não tinham, a princípio, um valor
comercial, além dos materiais requeridos para fazê-los. Os primeiros
escribas e decoradores eram membros de ordens religiosas e
trabalhavam sem remuneração. Os manuscritos eram feitos para
uso comunitário e não tinham valor de revenda. Quando escribas
profissionais começaram a se envolver e patronos privados
começaram a encomendar livros (capítulos 6-7), os livros adquiriram
um custo e tornaram-se mercadorias vendáveis. Os melhores
manuscritos iluminados logo se tornaram, de fato, muito caros. A
invenção da prensa reduziu dramaticamente os preços na produção
básica de livros. No entanto, sendo a natureza humana o que é, “os
ricos”, para usar as palavras do sr. Kraus, continuaram a competir
por manuscritos ainda mais magníficos, ainda escritos e iluminados
à mão. Na década de 1470, as grandes oficinas comerciais no sul
dos Países Baixos tinham mais ou menos abandonado a feitura de
livros para bibliotecas institucionais e em vez disso começaram a
explorar o negócio da produção de manuscritos para o mercado de
luxo de príncipes e oligarcas mercantis novos-ricos por toda a
Europa. Longe de serem enxotados de seu ofício, os iluminadores
dos Países Baixos entraram num novo período de sucesso
comercial. Eles agora refinavam conscientemente sua arte, indo a
direções para as quais a prensa nunca seria capaz de ir, e suas
criações tornaram-se ainda mais espetaculares e caras. Sentado ali
no Museu Getty, que é uma das mais ricas instituições culturais no
mundo, estamos a ponto de ver uma das mais belas entre todas.
H. P. Kraus (1907-88), grande negociante de manuscritos, com o
Apocalipse de Dyson Perrins, do século XIII, também vendido para
Peter e Irene Ludwig e hoje também no Museu Getty.

Fora do estojo, o Livro de Horas de Spinola é imediatamente


reconhecível como um item valioso. É maior do que a maioria dos
livros de horas, com cerca de 23,5 por 16,5 centímetros e seis
centímetros de espessura. O volume está encadernado em couro
vermelho-escuro do final do século XVIII, provavelmente italiano, a
julgar pelo estilo. Há uma moldura floral ao longo do perímetro de
cada capa com um padrão repetido de folhas e flores. No centro das
capas, entre festões de ornamentos rococós, há um brasão de
armas embaixo de uma pequena coroa, atestando um contínuo
orgulho de posse e de exclusividade. São as armas da família
Spinola, de Gênova, que é de onde provém o nome moderno do
manuscrito. Voltaremos à identidade dos proprietários mais adiante,
neste capítulo. A lombada do livro tem sete faixas horizontais
salientes, que cobrem as linhas de costura, mas não há palavras
escritas. Isso era desnecessário, pois não foi encadernado para
uma biblioteca, onde teria de ser reconhecido pelo título. Os cortes
são dourados com delicadas inserções de desenhos hachurados de
losangos, em torno do que parecem ser pequenas corolas de flores.
Esse modo de ornamentar é conhecido como “gofragem”. Pode ser
original, uma vez que desenhos muito semelhantes aparecem nos
cortes dourados de um livro que está na mão de santa Maria
Madalena, numa figura já no final do manuscrito. Os cantos da
encadernação estão um pouco amassados, mas, no geral, o livro
está em excelente condição. É um manuscrito que foi
cuidadosamente conservado.
A essa altura, sem querer ofender a sociável vigilante (Christine
Sciacca, naquele dia), com relutância calcei minhas luvas brancas e
abri o livro. O lado interno da capa da frente é forrado com seda
verde-clara. A folha de guarda ao lado é de um pergaminho
bastante espesso, preso sob a dobradura na orla da capa. Tem dois
pequenos ex-líbris modernos impressos que incorporam um
desenho semiabstrato de um perfil que compartilha seus olhos com
o que aparentemente é o rosto de uma coruja, no traço do artista
suíço Hans Erni (1909-2015, portanto com 106 anos ao morrer). Em
um deles lê-se: “Irene & Peter Ludwig, Aachen”, em maiúsculas.
Esses ex-líbris representam quase o único elemento inequívoco na
história prévia do manuscrito, pois esses proprietários, embora
durante apenas cinco anos, foram o dr. Peter Ludwig (1925-96) e
sua mulher, Irene (1927-2010), de Aachen e Colônia, bilionários da
indústria do chocolate e colecionadores de arte, em especial de
pinturas do século XX. Os Ludwig compraram as Horas de Spinola
de Kraus, então no auge de sua carreira. A filha do sr. Kraus, Mary
Ann Folter, contou-me gentilmente que a venda se realizou em
janeiro de 1978, e que a quantia na papeleta de venda da firma foi
de pouco mais de 1 milhão de dólares. Na década de 1970 esse era
um preço extraordinário para um livro. O dr. Ludwig foi durante muito
tempo um muito secreto comprador de manuscritos, quase
exclusivamente de Kraus. Eu me encontrei com ele uma vez, e
minha lembrança é a de um homem alto e calado. A coleção dos
Ludwig era guardada num depósito do Museu Schnütgen, em
Colônia, onde vi pela primeira vez a extensão e a riqueza de seus
manuscritos iluminados, como um monte de ouro sob a guarda de
um dragão, na companhia do élfico catalogador do dr. Ludwig,
Joachim Plotzek. Na publicação posterior do catálogo da coleção, o
Livro de Horas de Spinola ilustra a capa frontal do segundo e
enorme volume em vermelho. Em 1983, numa transação que no
início causou certo mal-estar na Alemanha, toda a coleção Ludwig
de aproximadamente 140 manuscritos iluminados foi levantada e
vendida en bloc ao novo Museu Getty, já que a criação de um novo
departamento tencionava preencher a lacuna entre as antiguidades
clássicas e a arte pictorial da Renascença. Foi como resultado direto
dessa aquisição que naquele ano fui trazido a Los Angeles por John
Walsh.
Ex-líbris de Peter Ludwig (1925-96) e de sua
mulher, Irene (1927-2010), desenhados pelo
artista suíço Hans Erni, na folha de guarda das
Horas de Spinola.
Página de abertura do calendário das Horas
de Spinola, mostrando um homem aquecendo-
se junto à lareira no inverno e saindo
cuidadosamente para o pátio hibernal.
A primeira página do manuscrito propriamente dito está em
branco. Vire-a, e mergulhamos direto no final da Idade Média. As
Horas de Spinola, como a maior parte dos saltérios e livros de
horas, abrem com um calendário dos dias dos santos no ano inteiro.
O texto é em duas colunas, em vermelho e preto. A decoração é de
uma opulência excepcional. Na margem inferior do mês de janeiro
há uma figura de um interior doméstico, com um homem e uma
mulher, no inverno. Difícil adivinhar em que status social se
enquadra esse cenário. O homem, pelo menos, parece estar bem-
vestido e tem uma bolsa amarrada ao pulso; as janelas altas,
cavadas na pedra, são envidraçadas e fasquiadas; a enorme lareira
de pedra é contornada por brasões heráldicos; mas é o que hoje
chamaríamos de apartamento conjugado, no qual o quarto de
dormir, a sala de jantar e a sala de estar se comprimem num só
cômodo. Certamente nenhum aristocrata vivia dessa maneira.
Talvez fosse o aposento de um lacaio num castelo. A mulher está
servindo uma refeição para uma só pessoa, tão solitária quanto
estava eu mesmo naquela mesa comprida do Museu Getty.
Enquanto isso, o homem, acompanhado de seu gato e de uma jarra
com cerveja, aquece na lareira suas mãos e seus pés gelados. Na
extremidade direita, outro homem, ou o mesmo homem vestido de
maneira um pouco diferente, está saindo cautelosamente para a
neve de janeiro, com um cachecol cinza em torno do pescoço e as
mãos ocultas dentro do casaco. A trilha gelada que ele segue em
direção ao portão do pátio foi trilhada antes, e está manchada de
marrom. Em fevereiro, a neve já se foi, e trabalhadores da
propriedade estão arando e fixando estacas para plantas — vinhas,
ao que parece. Em março, um casal de nobres aventura-se a sair do
castelo para o jardim com um cãozinho de estimação branco. O
clima ficou só um pouco mais cálido. Jardineiros preparam canteiros
de flores, mas ainda usam chapéus, casacos e perneiras de lã. Olhe
atentamente e verá que atrás há um fosso, com cisnes que deslizam
em direção a uma mulher numa ponte levadiça. Talvez tenha vindo
para alimentá-los. Em abril os animais domésticos são levados para
fora pela primeira vez, e do terreno da fazenda para os campos. Há
vacas com seus bezerros, ovelhas com cordeiros de primavera, e
galinhas com seus pintinhos correndo ao seu redor. O gado tem
sinos pendurados no pescoço. Uma mulher ordenha uma vaca e
outra mexe manteiga numa batedeira. No alvorecer de 1o de maio, a
antiga celebração do início do verão, nobres cavalgam sobre uma
ponte, e uma embarcação onde acontece uma festa de jovens flutua
preguiçosa pelo rio, levando galhos da árvore de maio (ou
espinheiro-branco) e músicos. Um jovem na popa está bebendo;
outra garrafa pende da borda, para se manter fresca dentro da
água. Nas margens do rio crescem íris. Da janela de nosso
apartamento em Cambridge, na Inglaterra, pode-se ver essa mesma
cena hoje em dia, quase sem alterações, no rio Cam no início do
verão. Em junho temos a tosquia, e um homem descansa num
banco no lado de fora de uma taberna. A grama é aparada e levada
em carroças de feno, em julho. Página por página, o ano medieval
vai se revelando. Em agosto colhe-se o trigo, e fazem-se a aradura
e a semeadura para a nova estação em setembro. E continua assim
até dezembro, quando as neves retornam e a superfície do fosso
está congelada. Trabalhadores no primeiro plano estão
diligentemente abatendo porcos e recolhendo o sangue numa
frigideira para fazer chouriço na cozinha, na extremidade esquerda.
Fazem-se preparativos para o Natal. Tudo é muito familiar, e ainda
assim apresenta-se mágico. Há uma irresistível nostalgia nesse
imutável ritmo anual. Tem a realidade terrena dos quadros de
Brueghel. Peça uma lupa emprestada da vigilante, então o Museu
Getty e o século XXI, ambos, desaparecem, e estamos tocando com
a mão (não fossem essas luvas horríveis) numa cena campestre do
sul dos Países Baixos no início da década de 1500. Até o mais
ínfimo detalhe, lá está ela a nossa frente. Nenhum fac-símile é
capaz de recriar o encantamento desse encontro direto.
Março e abril no calendário, com a poda dos vinhedos nos jardins
de um castelo, e a saída de animais para o pasto em abril.
Maio no calendário das Horas de Spinola,
mostrando uma excursão de barco com
música e bebidas, celebrando o Dia de Maio e
o começo do verão.
Basicamente, os calendários nos livros de horas medievais são
todos descendentes longínquos do perdido “Calendário de 354”, do
século IV. Vislumbramos reflexos desse misterioso manuscrito do
clássico tardio no capítulo 4 (p. 190). Era um almanaque, feito para
um antigo proprietário cristão, numa época da Antiguidade pagã, e
redescoberto no século IX, quando foi admirado e copiado na corte
carolíngia. Ele lançou uma dinastia textual que teve espantosa
duração. As palavras de abertura das Horas de Spinola, “Januaruis
h[abe]t dies xxxi”, “Janeiro tem 31 dias”, derivam, sem modificações,
daquele protótipo de 1150 anos antes. Com as mesmas palavras
começam os calendários do Saltério de Copenhague (capítulo 7), e
as Horas de Joana de Navarra (capítulo 9). De modo similar, os
antigos signos do zodíaco, que não têm nenhuma relevância prática
num livro de orações cristão, estão aqui preservados em figuras nos
cantos inferiores de toda página, ainda agarrados à iconografia de
calendários por transmissão, desde o Calendário de 354.
Ao longo das margens superiores do calendário de Spinola há
brincadeiras de crianças, nem todas reconhecíveis (ao menos não
por mim). São em marrom e dourado, como entalhes em madeira.
Em janeiro as crianças disputam um torneio de gozações,
arrastando barris pelo gelo. Há jogos que parecem ser de dança,
crianças se exibindo em fileiras de conga, umas carregando outras
nos ombros. Em abril parecem estar jogando bola de gude, e em
julho capturando borboletas com o chapéu. Fazem travessuras,
combatem montadas em cavalos de madeira, andam de barco,
capturam pássaros, jogam boliche e brincam com argolas, em
dezembro deslizam na neve com tobogãs. As pessoas
representadas na arte medieval frequentemente nos parecem
solenes e destituídas de alegria, mas essas crianças estão se
divertindo.
Crianças brincando, na margem superior do calendário das Horas
de Spinola, tocando instrumentos de sopro e caçando borboletas.

Os dias de santos especialmente significativos são, na maioria dos


calendários medievais, escritos em tinta vermelha, no que hoje
chamamos de “dias de letras vermelhas”; aqui essas festas
especiais também são ilustradas em medalhões nas margens
externas, alguns pendentes das bordas em pequenas correntes,
como as bolas decorativas na árvore de Natal. Nas Horas de
Spinola essas festas em letras vermelhas são todas universais e,
para nossa decepção, dificilmente reconhecíveis. Os nomes menos
importantes que preenchem esse calendário talvez tenham sido
extraídos menos conscientemente do repertório doméstico do
escriba. Aí estão as santas Aldegunda, Amanda, Walburga,
Gertrude e muitas outras, de culto no norte e local, e os santos
Nicásio, Gungulph, Bonifácio, Erasmo, Severino, Lebuin, Willibald,
Kylian, Donato, Remacle, Lambert, os dois Evaldos, as 11 mil
Virgens, Huberto e Willibord. Considerando apenas esses, com a
ajuda de um dicionário de santos na coleção de referência na sala
de leitura, podemos com confiança contextualizar as Horas de
Spinola na região de Flandres, nos Países Baixos e na Renânia,
embora também pudéssemos ter imaginado isso, na mesma
medida, a partir do estilo da iluminação.
Nomes de santos nos fazem lembrar que livros de horas são,
acima de tudo, textos de devoção religiosa. Vire a página após o
final do calendário e o propósito devocional do manuscrito não
estará em dúvida. Ali estão figuras que se espraiam numa página
dupla. Há imagens primorosas e delicadas da Virgem Maria e de
santa Verônica, os olhos vermelhos e brilhando com lágrimas ao
verem Jesus prisioneiro sendo arrastado por soldados pela Via
Dolorosa, a caminho da morte; na página oposta está o rosto inteiro
do Cristo ascendido ao Céu, segurando um orbe de cristal de rocha,
entre hostes de arcanjos, em ouro e vermelho-pálido. Ele ergue a
mão direita numa bênção imponente. É uma composição já
conhecida de outros manuscritos, que comumente se acredita
derivar de um quadro perdido de Jan van Eyck. É de um marcante
naturalismo. Nas duas páginas, Jesus mira os nossos olhos, os
observadores. Se hoje em dia víssemos figuras modernas como
essa num contexto religioso, nós as desdenharíamos por
constituírem um catolicismo romano meramente sentimental e
açucarado. Leva um instante para perceber que elas têm quinhentos
anos e são pintadas à mão. Na verdade, mesmo aqui já se vê um
prenúncio do espírito da iminente Reforma. São evocações de uma
emoção religiosa que busca uma interação entre o livro e o leitor. A
natureza muito pessoal da devoção cristã já era uma característica
dos Países Baixos. Figuras como Geert Groote (1340-84), fundador
dos Irmãos da Vida Comum, e Thomas à Kempis (c. 1380-1471),
suposto autor da Imitação de Cristo, enfatizaram o relacionamento
muito direto entre o indivíduo leigo e a salvação, sem a
intermediação da Igreja organizada. Uma pessoa comum poderia
olhar, ela mesma, direto nos olhos de Cristo. A prece e a fé em
âmbito privado são temas difíceis para um historiador social, mas
isso não diminui sua importância. Um livro de horas era um critério
para a devoção, e a existência e demonstrável popularidade desses
livros no sul dos Países Baixos podem nos dizer muito sobre um
aspecto esquivo e pouco documentado da vivência diária.
Primeiras figuras grandes nas Horas de Spinola: Cristo
carregando a cruz pela Via Dolorosa, e ressuscitado no céu
abençoando o mundo.
Vamos direto ao texto principal do manuscrito, as Horas da Virgem
Maria. Ele na verdade só vai começar depois de percorrido um terço
do livro. Como na maioria dos livros de horas, pode-se facilmente
encontrar qualquer texto procurando sua característica iluminura de
abertura, que aqui — como é costumeiro nas matinas — mostra a
Anunciação. As páginas não foram originalmente numeradas;
podemos chamá-lo de fólio 92v, o que de fato é, mas os primeiros
donos o localizariam e identificariam por sua figura. Nas Horas de
Spinola é quase como que uma página de rosto, e a figura envolve
um quadro emoldurado com uma inscrição em vermelho: “Incipiu[n]t
hore beate marie virginis secundu[m] usu[m] Romanu[m]. Ad
matutin[as]”, “As horas da Abençoada Virgem Maria estão
começando de acordo com o costume de Roma — nas matinas”. A
cena mostra uma casa com as clássicas colunas de mármore
malva, como um aceno ao período da Antiguidade no qual teve
lugar a Anunciação, mas é basicamente um palácio renascentista
flamengo contemporâneo com paredes de tijolos, num cenário de
um pátio enlameado, um jardim cercado, com uma guarita medieval
e o campanário da cidade mais além, parecido com o de Bruges.
Podemos ver o lado externo do prédio e também, numa moldura
interna, como se usássemos óculos de raios X, penetrar na capela
doméstica da Virgem Maria, na saída de seu quarto de dormir. E
temos a própria Maria, ajoelhada perante seu livro devocional, que
parece um livro de horas com sobrecapa de tecido verde, aberto
sobre uma mesa de orações.
Por um momento, tente se colocar no estado de espírito de uma
mulher devota na Europa do início do século XVI. Ela devia ter sido
ensinada a considerar o evento da aparição de Gabriel a Maria em
sua casa em Nazaré o evento mais impressionante e sagrado em
toda a história da criação (Lucas 1,28). Naquele momento santo, um
mero ser humano — como você — encontra a graça definitiva do
próprio Deus, abençoada entre as mulheres, e ela concebe seu
Filho. Implicitamente, cada cristão devoto desde então tem aspirado
a um estado de absoluta aceitação por Deus. Uma mulher que
tivesse um livro de horas medieval poderia olhar para a figura da
Anunciação e tentar imaginar como realmente seria ter sido aquela
mulher, escolhida acima de todas as outras. A imagem era o foco de
seu pensamento. Ela tentaria se concentrar e replicar o que a
própria Maria poderia ter pensado e experimentado. De modo
semelhante, um homem religioso do final da Idade Média seria
estimulado a se ver participando pessoalmente nos horrores e no
sofrimento da Paixão e da Crucificação de Cristo. A Anunciação e a
Crucificação são, de longe, os temas mais comuns em toda a arte
medieval tardia.
A Anunciação, na qual a Virgem Maria tem sua leitura devocional
interrompida pelo arcanjo, aqui associada a Gedeão, invocando o
orvalho divino sobre a lã virginal, como protótipo do Antigo
Testamento.
No momento sagrado da Anunciação, como mostra a figura no
manuscrito, convencionalmente, a Virgem Maria está ajoelhada
diante de seu livro de orações. Não conseguimos ver as palavras
que ela estava lendo. Todos sabiam, no entanto, que Nazaré ficava
no Império Romano, pois isso está explicitado no início do
Evangelho de Lucas, e que os romanos falavam latim. As pessoas
raciocinariam, como seria muito lógico, que todos os textos das
Escrituras que a Virgem poderia saber teriam de ser do Antigo
Testamento, mais apropriadamente salmos e profecias. Sem estudar
a questão muito a fundo, a maioria das pessoas na Idade Média ia
supor que, sem dúvida, ela os conhecia em latim. Ao ler e meditar
sobre salmos e extratos proféticos nas Horas da Virgem, portanto,
quem tivesse um livro de horas poderia ler exatamente as mesmas
palavras que a própria Virgem tinha recitado e nas quais tinha
pensado. O usuário se ajoelhava em sua casa com o livro de horas
aberto numa mesa de orações, exatamente como se mostra a
Virgem fazer, recriando para si as mesmas condições históricas
daquele pináculo absoluto de todas as vivências religiosas.
Atravessando a figura nas Horas de Spinola estão as famosas
palavras do anjo, “Ave” (sem o nome da pessoa que está sendo
saudada), “gratia plena dominus tecum”, em letras góticas douradas,
“Salve, cheia de graça, o Senhor [está] convosco”. A sentença
também poderia estar sendo dirigida ao leitor.
As palavras contidas nas várias “horas” da Virgem são na maior
parte tiradas de textos do Antigo Testamento, os quais a própria
Virgem poderia conhecer. Eles abrem com sentenças do Salmo
50,17 e do Salmo 69,1-2. As matinas comumente incluem o Salmo
94, “Venite exultemus…” (“Oh, venham, cantemos ao Senhor…”), o
Salmo 8, “Domine dominus noster…” (“Ó Senhor, nosso Senhor…”),
o Salmo 18, “Celi enarrant…” (“Os céus proclamam a glória de
Deus…”), o Salmo 23, “Domini est terra…” (“A Terra é do
Senhor…”), e assim por diante, com três trechos do Eclesiástico
24,11-20, em que o escritor descreve a eternidade de Deus e a
exaltação do seu santo povo. Estes estão intercalados com frases
repetidas, como “Ave Maria gratia plena” (“Ave, Maria, cheia de
graça”) e “Benedicta tu in mulieribus” (“Bendita sois vós entre as
mulheres”), palavras com as quais a leitura dos salmos pela própria
Virgem foi famosamente interrompida pelo arcanjo.
As matinas são lidas num livro de horas antes do alvorecer, na
mesma hora em que Gabriel apareceu a Maria em Nazaré. As
laudes se davam à primeira luz do dia, que foi o momento em que
ela se preparava para visitar sua prima Isabel; a prima era lida de
manhã cedo, na hora aproximada em que Jesus nasceu; a terça, no
meio da manhã, momento no qual os pastores chegaram ofegantes
a Belém, tendo deixado seus rebanhos durante a noite; a sexta era
recitada no fim da manhã, na mesma hora bem aristocrática em que
os três reis se apresentavam com os seus tesouros ao Santo
Menino; a nona (em inglês none, origem da palavra “noon”, que
significa “meio-dia”) era a hora do dia na qual, um pouco mais tarde,
o Menino foi levado aos sacerdotes no Templo para a circuncisão;
as vésperas, o ofício no início da noite, eram lidas na hora do dia em
que a Sagrada Família se preparou no crepúsculo para fugir para o
Egito e escapar da fúria do rei Herodes; e as completas
correspondem à primeira hora da noite, quando a Virgem, no fim de
sua vida terrena, foi elevada para o Céu estrelado. Cada uma
dessas horas tem uma figura que a relaciona com aquela hora — a
da Anunciação (como vimos), da Visitação, da Natividade, dos
Pastores, dos Magos, da Circuncisão, da Fuga e da Assunção.
Esses temas são comuns a quase todos os livros de horas.
O Livro de Horas de Spinola pertence a um pequeno grupo de
livros de horas excepcionalmente luxuosos com datas semelhantes,
suplementados com mais ciclos, das matinas às completas, que
poderiam ser usados adicionalmente em dias da semana diferentes.
As oitenta e tantas folhas que antecedem as centrais Horas da
Virgem são associadas às Horas da Trindade do domingo, às Horas
dos Mortos da segunda-feira, às Horas do Espírito Santo das terças-
feiras, às Horas de Todos os Santos das quartas-feiras, às Horas do
Santo Sacramento das quintas-feiras, às Horas da Cruz (a
Crucificação aconteceu numa sexta-feira) das sextas-feiras e às
Horas da Virgem dos sábados. Outros componentes incluem três
curtas missas votivas: a Missa dos Três Reis (texto que se poderia
associar a suas relíquias em Colônia, ou à realeza); uma missa
contra a peste, pois a mente das pessoas nunca se livrava das
terríveis recorrências da peste negra; e uma missa para viajantes.
A Santíssima Trindade, no domingo das Horas de Spinola,
associada a Abraão e aos três anjos, como prefiguração da
Trindade no Antigo Testamento. Os painéis com texto são
pintados de modo que parecem tiras de pergaminho espetadas na
página.
Em seguida às Horas da Virgem vêm os Salmos Penitenciais, com
a litania que os acompanha. Nesse manuscrito, começam no fólio
165v. Esses sete salmos têm sido parte da liturgia desde o início do
cristianismo. Acredita-se que representem cada um dos sete
pecados capitais, todos os quais foram praticados, em épocas
diferentes, pelo adoravelmente falível autor do saltério, o próprio rei
Davi. No final da Idade Média os Salmos Penitenciais eram
recitados na liturgia das sextas-feiras durante a Quaresma, mas
podiam ser usados a qualquer tempo, quando alguém refletia sobre
os muitos erros e fraquezas cometidos na vida. As litanias que os
acompanham são sempre fascinantes. São invocações muito
antigas, que conclamam o nome dos santos, um após outro,
ritmicamente, como o toque de um sino, repetindo a cada vez “Ora
pro nobis”, “Orai por nós”, o que é seguido por listas de medos e
perigos primitivos, como os do trovão e do relâmpago, o da morte
súbita, rogando-se ao Senhor que nos livre deles. Assim como os
calendários, os textos das litanias têm ancestrais que vêm do
alvorecer do cristianismo. Eles conduzem, logicamente, ao Ofício
dos Mortos, no fólio 184v. A Europa medieval tinha especial
preocupação com a morte. A guerra, a imprevisibilidade das
colheitas, a peste e a impotência da medicina tornavam a vida muito
frágil. As pessoas tinham um medo constante de morrer de repente,
sem terem tempo para a confissão e para os ritos finais. O Ofício da
Morte era uma série de exéquias fúnebres que os leitores tentavam
imaginar como sendo as suas próprias. Era como se, ao participar
do próprio funeral por livre opção, de alguma forma se estivesse
evitando que o Anjo da Morte pudesse vir sem avisar, e era sempre
bom estar preparado.
As Horas de Spinola terminam com muitas orações e leituras
curtas, o Saltério de São Jerônimo e os Versos de São Bernardo,
que são versões condensadas dos salmos para uso de pessoas
atarefadas ou com pressa, uma longa série de memoriais ou
sufrágios dirigidos a santos particulares, e orações para uso privado
antes e depois de assistir à missa. Fosse um simples catálogo das
esperanças e dos temores diários de qualquer pessoa privada cinco
séculos atrás, todo livro de horas já seria um documento de vigor
extraordinário.
Hoje, a maioria das pessoas aprecia os livros de horas
principalmente por suas figuras. É um verdadeiro museu de arte. O
Getty possui mais de trinta manuscritos de livros de horas e
excertos de muitos outros. As miniaturas nesses manuscritos não
ilustram o texto em qualquer sentido convencional. Não são
representações de narrativas (de qualquer forma, num livro de horas
não há muita coisa que se pareça com uma narrativa). As figuras,
como constatamos quando procuramos as matinas, são dispositivos
práticos para localizar e identificar componentes do texto, além de
catalisadores de contemplação espiritual. A grande característica
das Horas de Spinola é que muitas cenas são extraordinariamente
complexas e inovadoras, sem mencionar, é claro, seu virtuosismo
técnico. Quando o livro foi exibido na Royal Academy, em Londres,
em 2003, foi descrito como o “mais pictorialmente ambicioso e
original manuscrito flamengo do século XVI”, elogio nada pequeno
se considerarmos que se refere a um período muito rico em
manuscritos iluminados. Muitas ilustrações fazem par com a página
ao lado, como se fossem um díptico. A cena à direita é às vezes
tipificadora, ou seja, ela descreve um incidente no Antigo
Testamento que prefigura sua posterior realização no cristianismo.
Assim, por exemplo, Abraão e os anjos são mostrados formando par
com a Santíssima Trindade, para marcar as Horas do Domingo da
Trindade. O encontro de Abraão com os três mensageiros de Deus,
descrito em Gênesis 18, foi entendido como um vaticínio da tríplice
unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A coleta do maná no
deserto (Êxodo 16) e Melquisedeque oferecendo pão e vinho aos
soldados de Abraão (Gênesis 14) são, ambos os episódios,
entrelaçados com uma procissão medieval de Corpus Christi, na
qual a hóstia sagrada da comunhão ilustra as Horas da Quinta-Feira
do Santíssimo Sacramento, o pão sobrenatural que sustenta os
cristãos. Moisés e a serpente de bronze, que foi erguida num mastro
e salvou a vida dos israelitas que olhavam para ela (Números 21),
figuram ao lado da Crucificação, na abertura das Horas da Sexta-
feira, da Cruz, e assim por diante. A própria Anunciação, na abertura
das matinas da Virgem, é aqui ilustrada como tendo sido
prenunciada pela história de Gedeão, invocando o orvalho divino
sobre o velo, em Juízes 6, 36-40, um paralelo típico da Virgem
concebendo um filho do Espírito Santo. Há muitos como esse, o que
dá margem a uma ampla extensão de ilustrações tanto do Antigo
como do Novo Testamento. Isso pressupõe um conhecimento
razoável das Escrituras, ou familiaridade com outras obras de arte
que usam essas tipificações, como a Biblia pauperum, popular nos
Países Baixos. Às vezes se encontra uma iconografia similar em
janelas com vitrais flamengos. As cenas do Antigo Testamento
nesse livro de horas reforçam essa analogia, que representa, ao
menos parcialmente, o tipo de mundo devocional que a própria
Virgem Maria pode ter conhecido. Outras figuras nas Horas de
Spinola incluem uma maravilhosa sequência de santos que lembram
retratos reais de pessoas vivas, um par de cenas com uma morte na
corte e um funeral dispendioso, para o Ofício dos Mortos, e o
inevitável Juízo Final, no qual Cristo parece flutuar num firmamento
dourado com seus pés sobre um globo de cristal, em que toda a
humanidade emerge nua de um nebuloso miasma cinzento que
cobre o solo lá embaixo.
O homem rico e Lázaro, para as Horas dos
Mortos da segunda-feira, mostrando o rico
festejando com um macaco no peitoril de sua
janela, enquanto o pobre pede esmola em vão,
morre e sua alma vai para o céu.
Estar sentado ali naquela mesa comprida no Museu Getty,
percorrendo as figuras para a frente e para trás, é uma experiência
muito cativante. As ilustrações podem ou não tocar espiritualmente
um leitor moderno, mas com certeza têm o poder de alegrar o
coração e de, com grande vivacidade, dar vida ao passado remoto.
Olhar essas pinturas é como percorrer de verdade uma galeria de
arte com pequenos quadros de antigos mestres flamengos, nada
inferiores em qualidade aos melhores painéis. Pequenos detalhes
lhes acrescentam uma humanidade e um encantamento que são
irresistíveis. Você fica ansioso por mostrá-los às pessoas, e para
compartilhar comentários. Eis aí um papagaio em sua gaiola, na
sala de jantar de um homem rico. Ao lado dele, um macaco no
peitoril de uma janela; o professor William McGrew, primatólogo que
consultei a respeito disso quando voltei a Cambridge, me diz que o
animal é um macaco berbere, provavelmente originário de Gibraltar.
Jovens anjos roubam flores do jardim da Virgem Maria. São lírios.
Um pastor dança com seu espantado cão ao ouvir as novas da
Natividade. Quando era o dono do manuscrito, o sr. Kraus
reproduziu essa cena como seu cartão de Natal. José enche um
jarro de cerâmica azul e branco numa queda-d’água, num momento
de descanso na Fuga para o Egito, e o jarro se reflete na água
límpida embaixo. É exatamente o tipo de cerâmica que até hoje se
produz na Bélgica. Crianças se esgueiram entre as pernas dos
adultos para assistir à Crucificação, como devem ter feito,
fascinadas com o espetáculo. O menino Davi experimenta um
capacete de adulto grande demais para ele, e o rejeita antes de ir
lutar com Golias. Manchas de umidade descem pelas paredes da
casa do homem moribundo, onde os vasos de flores no peitoril da
janela foram regados com zelo excessivo. Há belas cenas noturnas
de são Julião remando num bote contra o último fulgor do pôr do sol
no horizonte enquanto as estrelas começam a surgir lá em cima e
uma mulher segura uma lanterna que ilumina o santo. Os
estudantes de manuscritos tendem a estudá-los indo somente de
uma montanha a outra, ignorando o vale e as colinas menores (essa
era uma metáfora que o criptógrafo L. M. J. Delaissé gostava de
apresentar a seus alunos em Oxford durante a década de 1960): na
verdade, foi só quando comecei a catalogar rotineiramente livros de
horas para leilões na Sotheby’s que tive total consciência da
superior qualidade desses manuscritos excepcionais e inovadores, e
as Horas de Spinola são sem dúvida uma montanha, um pico tão
altaneiro quanto qualquer um que eu pudesse ter a esperança de
ver.
A Crucificação, para as Horas da Cruz da
sexta-feira, com o texto pintado para simular
um painel que poderia ser girado para trás.
Duas outras características da obra de arte merecem breve
menção, antes de continuar (ainda temos trabalho a fazer). Uma é
que a página de qualquer livro é essencialmente plana e
bidimensional, pois essa é a natureza da escrita. A evolução gradual
da perspectiva é um dos temas padrão da história da arte.
Iluminadores de manuscritos na Europa começavam naquela época
a se esforçar por integrar páginas lineares com ilusões de espaço
tridimensional. Isso se torna uma persistente preocupação das artes
do livro no final do século XV, em especial no nordeste da Itália e no
sul dos Países Baixos. As miniaturas nas Horas de Spinola são
todas pintadas dentro de molduras de madeira trompe l’oeil,
sombreadas em preto e dourado, como se as figuras fossem painéis
tridimensionais diante de nós, ou janelas de verdade, pelas quais
olhamos para um universo paralelo além delas. Os retângulos
centrais que contêm texto, então, inserem-se nessa ilusão. Às vezes
o artista transforma as linhas de escrita, dando-lhes a aparência de
rolos reais que parecem ter caído em cima da página, criando
sombras; às vezes o texto é mostrado como se estivesse escrito em
tiras de pergaminho verdadeiro pregadas nas figuras, tão
naturalísticos que por um segundo os pregos parecem ser reais; às
vezes os próprios anjos nas figuras se inclinam para fora delas e
para dentro de nosso mundo segurando, para nos mostrar, os
painéis escritos; à vezes o texto está sobre painéis oblongos, como
se estivessem pendentes para um lado, como se pudessem ser
enrolados, fazendo as vezes de persianas, para revelar a parte da
pintura que está oculta atrás deles. Os artistas estão jogando e
fazendo experiências com a realidade e a ilusão de modos
inteiramente novos. São efeitos que nunca poderiam ter sido
conseguidos com a impressão.
Outro aspecto do manuscrito que se costuma negligenciar ante
tantas pinturas maravilhosas é que toda página escrita tem o texto
cercado pelos quatro lados por gloriosas molduras em forma de
painel. Molduras tão abrangentes e cheias ao longo de um
manuscrito inteiro são raras até mesmo nas encomendas mais
caras. As margens das Horas de Spinola são excepcionalmente
largas, como as do Semideus. A mancha do texto ocupa aqui
apenas cerca de 10 por 7,5 centímetros, dentro de uma página cujo
tamanho é quase o dobro, com mais de 23 centímetros de altura,
como já vimos. Se amplas margens já eram tidas como um luxo
supérfluo, essas são levadas a um extremo. Algumas das bordas
que emolduram o texto imitam tecido ou madeira entalhada. A maior
parte é no que é vagamente conhecido como estilo “de Gante-
Bruges”, o que significa que são decoradas com flores e bagas
naturalísticas, aparentando terem sido arrancadas e espalhadas em
solo macio dourado ou colorido, lançando sombras à direita. Há
cravos, cardos, centáureas, rosas, violetas, morangos, miosótis e
muitas outras, perfeitamente observáveis nos menores detalhes. Às
vezes, caracóis e insetos também de aspecto real parecem ter se
inserido entre elas. Esse é um tipo de ilusão dupla. As flores são tão
realistas que uma borboleta se engana, pensando que são de
verdade, e pousa na página, e quando tentamos tirá-la dali
constatamos que nós é que fomos enganados.
Hoje em dia não há borboletas nas salas de leitura
hermeticamente controladas do Museu Getty. Os responsáveis pela
conservação dispõem de poderes descomunais nos museus
modernos, no modelo dos responsáveis pela ética e pelo
comportamento nos negócios. Os membros da equipe não têm
permissão nem mesmo para trazer vasos com flores para seus
gabinetes, por temor de que possam clandestinamente trazer
insetos. A própria natureza do conceito das Horas de Spinola
depende de que o manuscrito seja usado num interior com as
janelas abertas ou até mesmo no colo de seu proprietário, num
jardim ao ar livre, uma constatação que nos diz algo mais sobre a
vida cotidiana nos Países Baixos, na Renascença.
O Livro de Horas de Spinola é um príncipe entre os manuscritos
da Flandres renascentista, mas pertence a uma família de primos
reais muito famosos. Em maior ou menor extensão, eles incluem
muitos dos mais importantes livros de horas do período, tais como o
Primeiro Livro de Orações de Maximiliano, sacro imperador romano
de 1508 a 1519 (hoje em Viena); as Horas de La Flora, que
provavelmente pertenceram a Carlos VIII, rei da França de 1483 a
1498 (em Nápoles); as Horas de Jaime IV, rei da Escócia de 1488 a
1513, e de sua mulher, Margaret Tudor, irmã de Henrique VIII
(também em Viena); as Horas de Isabel, a Católica, rainha de
Castela e Leão de 1474 a 1504 (em Cleveland); o Livro de Orações
de Rothschild, na realidade um livro de horas (em Perth, Austrália);
e as Horas de Albrecht de Brandemburgo, arcebispo de Mogúncia
de 1514 a 1545 (propriedade privada); assim como os breviários
reais, como o Breviário de Isabel de Castela (em Londres); o
Breviário de Manuel I, rei de Portugal de 1495 a 1521 (em
Antuérpia); o Breviário de Leonor de Portugal, rainha viúva, m. 1525
(em Nova York); e o Breviário de Grimani (em Veneza). São
manuscritos que pertenceram a governantes da Europa.
O que é muito peculiar quanto a esses e outros manuscritos para
o mercado de luxo no sul dos Países Baixos é o número de artistas
que colaboraram em cada livro. É diferente do de um livro de horas
rotineiro do período, que comumente era iluminado por um único
pintor. Além disso, o mesmo grupo de artistas reaparece
praticamente todas as vezes. Parece que quatro ou cinco
iluminadores contribuíram com páginas em quase todas as
produções mais caras, inclusive as Horas de Spinola. Todos
desempenharam um papel, por menor que fosse, como os
assassinos do Expresso Oriente. É quase como se os patronos
quisessem, conscientemente, que os manuscritos incluíssem
espécimes da obra de cada um dos pintores que estavam na moda
na época.
A outra estranha particularidade da produção de livros desse
período é que quase não temos evidência de que livreiros
coordenassem o trabalho. Diferentemente do que se observava na
França ou na Itália, ou até mesmo na Inglaterra, quase não temos
notícia de agentes encomendando em Bruges, Gante ou Antuérpia,
por exemplo. A princípio, isso era devido aos regulamentos
incomumente rigorosos das guildas nas cidades de mercado no sul
dos Países Baixos. Em Bruges havia duas corporações municipais
envolvidas, as poderosas guildas dos pintores e dos seleiros de São
Lucas, que podiam incluir iluminadores, e a guilda muito menor de
produtores de manuscritos de são João Evangelista, com base na
Abadia de Eeckhout (no local onde fica hoje o Museu Groeninge).
Numa série de regulamentos impostos repetidas vezes pela guilda
dos pintores, um cliente era obrigado por lei a fazer encomendas
aos artistas pessoalmente, e não através de um intermediário. Em
geral, a única exceção era quando os artistas estavam a serviço das
casas ducais.
Essa exceção talvez seja a chave que explica esses manuscritos
tão caros. Clientes reais e principescos contornavam as entidades
que controlavam o comércio de livros. Os gerenciadores de projetos
podem ter sido seus escribas particulares, que projetavam o layout e
cooptavam e coordenavam os pintores de um círculo limitado mas
bem distinto. Ocasionalmente conhecemos os nomes dos escribas e
sua obra em vários manuscritos, como F. Gratianus, de Bruxelas,
que assinou um Livro de Horas para Carlos V, que está na
Biblioteca Morgan, e Johannes de Bomalia, que assinou vários,
inclusive as Horas de Jaime IV. A escrita das Horas de Spinola é
uma caligrafia gótica clara, arredondada, vertical e bem espaçada. A
mim parece ser do mesmo escriba do Livro de Orações de
Rothschild, que é amplamente iluminado pelos mesmos pintores.
Talvez haja uma pequena pista para sua identidade. Tanto o
cabeçalho de abertura no fólio 8v como o final do texto no fólio 312r
terminam com uma inicial em caixa-baixa, “d”, que, ao que parece,
não possui nenhum propósito.
As molduras ilustradas por flores que parecem
tão naturais a ponto de atrair insetos que
pousam sobre elas, só que os insetos também
são pintados.
A esta altura, vamos fazer uma pausa para almoço no Museu Getty.
Beth Morrison e Thomas Kren, a atual curadora e o ex-curador de
manuscritos, me levaram a um dos diversos restaurantes no
complexo do museu. Fica tão longe da Flandres renascentista
quanto se possa imaginar. Tudo nele é maravilhosamente
californiano, com uma comida ostensivamente saudável, clientes
finos como palitos, água mineral gelada e garçons que entendem
que devem nos tratar pelo primeiro nome. A vista de Los Angeles
em plena luz do dia é de tirar o fôlego. Thom Kren dedicou sua tese
à iluminação de manuscritos, e ele é um reconhecido especialista no
campo dos manuscritos do sul dos Países Baixos. Era uma
oportunidade para discutir o manuscrito enquanto nos
debruçávamos sobre um tartar de olhete com abacate.
Thom e seus colegas atribuem agora a iluminação do Livro de
Horas de Spinola, geralmente, ao trabalho de cinco artistas
diferentes. Entre estes, alguns são associados à caligrafia de um
determinado mestre, e alguns à sua “oficina”. Eu, pessoalmente,
não consigo ver a diferença entre essas subdivisões dentro de uma
oficina, exceto na avaliação da qualidade, e, considerando o que
sabemos sobre colaboração na Idade Média e sobre dias bons e
não tão bons na produção de todos os artistas, eu suponho que
nesse caso “caligrafia” e “oficina” são, para qualquer finalidade
prática, indistinguíveis.
Por conveniência, podemos enumerar as cinco caligrafias,
dividindo as 84 páginas totalmente ilustradas das Horas de Spinola
como se segue. 1) Quarenta e sete são do “Mestre de Jaime IV”.
Esse pintor deve esse nome à sua participação no livro das horas
daquele rei, que está em Viena, como acima mencionado. Há uma
evidência cumulativa muito boa, mas totalmente circunstancial, para
identificá-lo com o bem documentado iluminador Gerard Horenbout
(c. 1465-c. 1540), de Gante, pintor da corte de Margarida de Áustria
a partir de 1515. 2) Vinte e duas miniaturas das Horas de Spinola
são do “Mestre do Primeiro Livro de Orações de Maximiliano”. Esse
nome deriva do manuscrito feito para Maximiliano, também listado
acima. Existe, aqui também, evidência plausível, mas não absoluta,
para identificar o artista com Alexander Bening, iluminador de Gante
documentado a partir de 1469 até sua morte, em 1519. Seu filho foi
um iluminador ainda mais famoso, Simon Bening (c. 1483-1561). 3)
Oito miniaturas aqui são do “Mestre da Bíblia de Lübeck”, que se
refere a quem projetou as xilogravuras numa Bíblia impressa em
Lübeck em 1494, mas que antes disso foi, claramente, um pintor de
manuscrito, talvez em Gante. 4) Três são do “Mestre do Livro de
Orações de Dresden”. A rigor, o manuscrito em Dresden a que se
refere o nome é um livro de horas, e não um livro de orações, e é
uma de suas primeiras obras, aproximadamente de 1470. Seu
trabalho nas Horas de Spinola deve ser um dos últimos que fez, e
nem este nem o epônimo manuscrito de Dresden o mostram em seu
ápice. 5) Por fim, duas das miniaturas são do “Mestre do Livro de
Orações de c. 1500”. É um epíteto canhestro para um pintor tão
maravilhoso, em cujas obras se inclui um lindo Roman de la Rose,
na Biblioteca Britânica, e um livro de horas em Viena, que uma vez
pertenceu a Margarida de Áustria.
Só disso já podemos ver que esses cinco artistas das Horas de
Spinola foram todos empregados em círculos de corte do mais alto
nível, que o Mestre de Jaime IV (provavelmente Gerard Horenbout)
foi o principal pintor do manuscrito. O Mestre do Primeiro Livro de
Orações de Maximiliano (talvez Alexander Bening) foi o segundo
maior contribuidor, e os outros três pintores tiveram apenas papéis
menores. Todos eles eram pintores que trabalharam principalmente
em Gante ou Bruges, no que hoje é a Bélgica, ou em serviços
temporários para patronos na região mais ampla do sul dos Países
Baixos.
À tarde, temos de cotejar o alceamento e montar a estrutura das
Horas de Spinola. É notável a dificuldade de fazer isso. O
manuscrito é construído excentricamente e a encadernação é
compacta. A tarefa de identificar a montagem dos cadernos fica
mais difícil devido ao papel de seda que foi inserido entre as folhas,
anexado às margens internas por algum de seus primeiros donos,
bem-intencionado mas equivocado (se eu alguma vez me tornasse
o diretor do Museu Getty, minha primeira satisfação seria ordenar
que fosse removido), e por ser obrigado a usar essas luvas
desgraçadas, que dificultam seriamente os hábeis e muito discretos
puxõezinhos que às vezes são necessários para revelar as linhas de
costura nos vincos internos formados pela dobra dos cadernos.
Depois de muito esforço, creio que o alceamento das Horas de
Spinola é o que é apresentado abaixo.* Ele suscita certo número de
observações. Primeiro de tudo (e não há motivo para que isso fosse
percebido antes), foram duas as mãos que fizeram as bordas florais
em volta das páginas com texto. Uma é a que desenha uma linha de
traço dourado na parte interna da moldura embaixo e à direita das
bordas. Esse iluminador inclina-se a pintar massas de pequenas
flores num fundo amarelo bem claro. O segundo artista a pintar as
bordas traça uma linha vermelha, em vez de dourada, e suas flores
são frequentemente maiores, com talos que avançam sobre um
fundo mais suave. Essa divisão de estilos dá-se inteiramente por
cadernos. O artista da linha dourada nas bordas pintou os cadernos
ii-ix, xi-xiv, xvii, xxviii-xxxii e xl-xli. O artista do traço vermelho pintou
os cadernos x, xv-xvi, xviii-xxii, xxiv-xxvii e xxxvii-xxxix. O caderno i
(o calendário) tem figuras nas bordas; os cadernos xxiii e xxxiii têm
ambos bordas arquitetônicas em estilo bem diferente; e os cadernos
xxxiv-xxxvi são os dos Sufrágios, nos quais as bordas são
diferentes, de qualquer maneira. Portanto, está demonstrado que o
manuscrito foi sendo dividido e distribuído entre os artistas quando
ainda estava na forma de cadernos separados e distintos.
Olhemos agora para os dois artistas principais das figuras. (Por
um momento, ponha de lado os três que fizeram miniaturas
ocasionais aqui e ali; vamos voltar a eles.) O Mestre de Jaime IV
(provavelmente Horenbout) trabalhou nos cadernos i-ix, xiii, xvi, xix-
xxi, xxv e xxxv. O Mestre do Primeiro Livro de Orações de
Maximiliano (talvez Bening pai) trabalhou nos cadernos xi-xii, xxiii,
xxx-xxxii, xxxiv, xxxvi-xxxvii e xxxix. Nunca colaboraram juntos em
um único caderno. Isso é algo inesperado, e sugere que podiam
estar trabalhando em lugares diferentes ou que não estiveram
necessariamente envolvidos no mesmo período de produção.
Tendo como base a divisão das autorias principais por caderno,
creio que é possível propor uma sequência de trabalho plausível.
Suponhamos que as Horas da Virgem foram feitas primeiro, o que é
provável por constituir o núcleo do texto de qualquer livro de horas.
É uma entidade distinta (cadernos xiii-xxii). Suas primeiras
miniaturas, no fim do Terço, foram pintadas pelo já idoso Mestre de
Dresden e pelo Mestre dos Livros de Orações. Essas figuras são
boas, mas convencionais. Depois, bem no início do projeto, houve
uma decisão de fazer um upgrade no trabalho. Talvez tenha havido
até mesmo uma mudança de patrono. Trouxeram um novo pintor, o
presumível Horenbout. A abertura das matinas foi retirada e refeita
por ele. Suas duas primeiras folhas são agora um bifólio em
separado, que forma sozinho um caderno (caderno xiii), o que só
seria fácil de explicar caso tivesse havido esse substituto. Ele pintou
essas folhas com a extraordinária Anunciação e as cenas
inovadoras de Gedeão e o velo. Horenbout completou as Horas da
Virgem, da sexta em diante. Também acrescentou um calendário
(caderno i), as muito incomuns Horas dos dias úteis (cadernos ii-ix),
os Salmos Penitenciais e o Ofício dos Mortos (cadernos xxiii-xxix,
que se apresentam juntos sem uma interrupção entre eles), e uma
seleção de Sufrágios (caderno xxxv). O manuscrito, com efeito,
estava agora completo e tinha ficado realmente muito grande. Logo
depois, no entanto, os Mestres de Maximiliano e de Lübeck foram
contratados também. Acrescentaram os cadernos xi-xii, com as
sequências de Evangelhos. O caderno xii só tem quatro folhas (a
última página em branco), pois tinha de se encaixar com o caderno
xiii, que estava em seu lugar. Eles estenderam os Sufrágios para
que incluíssem um número gigantesco de santas (cadernos xxxiv e
xxxvi). Duas delas são as folhas isoladas acrescentadas ao caderno
xxxvi, com miniaturas das santas Bárbara e Clara, o que parece
sugerir uma continuada atualização, feita à medida que o trabalho
avançava. Duas outras figuras de santos estão em folhas inseridas:
São Jerônimo (fólio 223v) e são João Batista pregando (fólio 276v),
única figura verdadeiramente de página inteira no livro, sem texto
algum, as duas feitas pelo Mestre de Maximiliano. O mais estranho
de todos é o fólio 165, com a miniatura que abre os Salmos
Penitenciais. O cotejo do alceamento revela que também é uma
única folha isolada. Não está ligada à sua aparente outra metade, o
fólio 172, e portanto só pode ser uma substituição. Algo estranho
aconteceu aqui. O fólio 166r mostra cenas da vida de Davi, pelo
Mestre de Lübeck. Seria de esperar que houvesse uma figura sobre
os pecados de Davi, como Betsabeia. O topo do fólio 166r está
raspado e esfiapado. Algo deve ter dado errado com a imagem da
página oposta, que foi cortada e substituída por uma cena um tanto
menos apropriada do Juízo Final (fólio 165v), agora pintada pelo
Mestre de Maximiliano. Só isso já sugere que o Mestre de
Maximiliano foi o último artista nessa encomenda, preenchendo
lacunas e corrigindo problemas que tinham surgido. Tudo isso dá a
impressão de que um patrono já tinha em mãos um livro de horas
muito bom e depois fez uma atualização em etapas para algo bem
diferente e complexo, interferindo, alterando, modificando e vendo o
manuscrito evoluir.
João Batista apontando para Jesus, com quem
depois fala um discípulo (João 1,38), única
miniatura de página inteira no manuscrito,
pintada por Mestre de Maximiliano.
Davi em oração, no início dos Salmos Penitenciais, pintado por
Mestre de Lübeck, bem danificado, o que resultou na substituição
da página ao lado num estilo diferente, pelo Mestre de
Maximiliano.
Nas Horas de Spinola não há mais nenhuma evidência explícita da
identidade de seu patrono original. Deve ter sido alguém
excepcionalmente rico ou com grande senso de oportunidade. Esse
não foi algum manuscrito corriqueiro feito na conjectura de vendê-lo
a algum eventual transeunte. Sua escala, a inovação e seu evidente
custo, tudo isso faz com que ofusque confortavelmente os maiores
livros de horas iluminados daquela época, feitos para imperadores e
monarcas da Europa, acima listados para os quais costumeiramente
trabalharam os mesmos iluminadores. No capítulo 7 já nos
encontramos com a regra de Hamel, segundo a qual se você não
estiver certo de que um manuscrito foi uma encomenda real então
ele de fato não foi, pois esses livros geralmente estão muito acima
de todos os outros. Se o Livro de Horas de Spinola é o mais luxuoso
de todos, deveríamos ir buscar seu patrono no mais alto nível. Entre
os dispendiosos livros de horas do sul dos Países Baixos naquela
época, normalmente só somos capazes de identificar o patrono
original mediante frontispícios que ostentam seu brasão de armas, e
às vezes retratos do seu dono em oração. Os brasões em geral
aparecem logo no início, e às vezes no fim também: os exemplos
incluem as Horas de Isabel, a Católica, as Horas de La Flora, as
Horas de Jaime IV da Escócia e as Horas de Brandemburgo, em
todas as quais o primeiro proprietário só nos é conhecido daquela
maneira. O alceamento das Horas de Spinola revela que foram
extirpadas folhas isoladas em cada extremidade. É exatamente
onde estariam uma vez as armas de um patrono. Também é
estranho que as Horas de Spinola terminem com uma oração
pessoal à Virgem, apropriadamente com uma grande capitular e
uma moldura (fólio 311r), mas sem ter ao lado uma iluminura que
equilibre a composição. Essa abertura está no meio do caderno final
(que tem seis folhas). É muito possível que desse ponto tenha sido
retirado um bifólio com um retrato do dono orando perante a Virgem
Maria.

Fechemos agora as Horas de Spinola sobre a comprida mesa no


Departamento de Manuscritos e Desenhos no Museu Getty e
olhemos de novo sua encadernação, do final do século XVIII. É aí
que a história sofre uma extraordinária reviravolta vinda de uma
direção inesperada. A encadernação das Horas de Spinola é, em
cada detalhe, idêntica à de Très Riches Heures do duque de Berry,
o mais famoso livro de horas no mundo, e a obra-prima dos irmãos
Limbourg, de aproximadamente 1415. Eu mesmo examinei Très
Riches Heures duas vezes no Musée Condé, em Chantilly (e estou
contente de ter feito isso, uma vez que ele é notoriamente
inacessível), e na primeira ocasião, em março de 1981, com o
consentimento do então curador, Raymond Cazelles, fiz cuidadosos
decalques a lápis da encadernação, os quais ainda tenho. A borda
dourada usa exatamente os mesmos padrões de flores. O couro
vermelho é exatamente igual. O forro na face interior é exatamente
na mesma e distintiva seda verde, ao lado de folhas de guarda lisas.
Tanto as Horas de Spinola em Los Angeles como as Très Riches
Heures em Chantilly têm o mesmo brasão de armas no centro de
cada capa, encimada por uma pequena coroa e emoldurada com
rodopiantes festões de ornamento, e estes não são tirados de um
único bloco, como às vezes acontece em encadernações nas quais
os armoriais são produzidos em massa, e sim é aplicado, cada
módulo, individualmente, com a impressão de múltiplas e pequenas
estampas. Os brasões, como sabemos, são da família Spinola, de
Gênova.
É provável, no entanto, que exista um terceiro manuscrito a se
acrescentar a esse assombroso par. O Livro de Orações de
Rothschild, um dos gêmeos das Horas de Spinola de estilo mais
parecido, é encadernado em veludo carmesim do século XIX com
incrustações de prata dourada muito mais antigas, que geralmente
se suspeita terem sido acrescentadas de outro lugar para embelezar
o livro quando ele estava na posse do barão Anselm von Rothschild
(1803-74), outro membro daquela prolífica família de
colecionadores. Ele hoje é a obra-prima da Coleção de Kerry
Stokes, na Austrália Ocidental. Não se sabe nada, absolutamente
nada, de sua história pregressa antes de ter sido registrada na
posse de Rothschild, em meados do século XIX. Tive a feliz
oportunidade de ver mais uma vez o Livro de Orações quando
estava sendo preparado para ser exposto em Melbourne, em agosto
de 2015. Eu o abri e tive o impacto de um reconhecimento. As faces
internas das capas correspondem exatamente às das Horas de
Spinola e às de Très Riches Heures. Estão forradas com
exatamente a mesma e marcante seda verde, ao lado de folhas de
guarda de pergaminho grosso e liso. As bordas decoradas das
páginas são gofradas identicamente, com os mesmos losangos
contendo pequenas flores. Isso é muito estranho. O veludo
carmesim que reveste o Livro de Orações está cobrindo uma
encadernação mais antiga, que tinha sete bandas de costura
percorrendo a lombada, exatamente como nas Horas de Spinola. A
espessura do veludo faz que a encadernação, no todo, seja um
pouco grande demais. Eu apostaria bem alto que tirando todo esse
veludo encontraríamos embaixo aquele mesmo marroquim
vermelho-escuro mais antigo do Spinola. Isso se torna ainda mais
provável com uma observação que só posso relatar de memória.
Quando vi as Horas de Spinola pela primeira vez, em 1975, muitas
das miniaturas tinham anotações a lápis nas margens inferiores,
feitas no início ou em meados do século XIX, com fantasiosas
atribuições a artistas. Elas imputavam determinadas figuras à
autoria de Lucas van Leyden, Hans Memling, Albrecht Dürer e
outros. Essas atribuições absurdas foram apagadas, talvez pelo sr.
Kraus, embora a sombra de seu traçado seja ocasional e muito
vagamente visível, por exemplo, a que atribui a Dürer as miniaturas
da Crucificação e Moisés com a Serpente de Bronze. Uma vez
também tinha havido atribuições idênticas, na mesma caligrafia a
lápis, nas margens inferiores do Livro de Orações de Rothschild, e
agora também foram apagadas. Esses dois livros estavam
evidentemente na mesma coleção, na companhia de nada menos
que as próprias Très Riches Heures, e os três foram uma vez
encadernados de modo a combinarem. Se conseguíssemos saber
por onde andou qualquer um desses manuscritos, teríamos a
proveniência de todos os três.
À ESQUERDA: Última capa da encadernação das Très Riches
Heures do duque de Berry, com as armas de Spinola, idêntica à
encadernação das Horas de Spinola.
À DIREITA: Capa da encadernação do Livro de Orações de
Rothschild, forrada com veludo vermelho provavelmente no século
XIX, e ornada com apliques de prata dourada.

É preciso voltar no tempo. A história dos primórdios de Très


Riches Heures é complicada. Em 1485 o livro pertencia a Carlos I,
duque de Saboia, e à sua mulher, Branca de Monferrato. Os dois
eram descendentes diretos do duque de Berry. Sua filha e depois
única herdeira foi a primeira mulher de Felisberto II de Saboia, por
intermédio de quem o manuscrito passou para sua posterior viúva,
Margarida de Áustria (1480-1530), regente dos Países Baixos. O
exemplar das Très Riches Heures foi, portanto, um dos cerca de
vinte livros da biblioteca ducal da Saboia que Margarida,
subsequentemente, trouxe de volta para os Países Baixos. No
inventário de suas posses em 1523-4, as Très Riches Heures ainda
estavam em cadernos solos. Em 1524 o livro foi encadernado,
provavelmente pela primeira vez, pelo joalheiro da corte de
Margarida, Martin des Ableaux. Nas folhas de guarda em branco no
fim de Très Riches Heures podem-se ver as marcas oxidadas dos
pinos de cobre de dois fechos uma vez lá afixados, que podem ser
daquela encadernação. Com a morte de Margarida, em dezembro
de 1530, as Très Riches Heures ficaram em custódia com Jean
Raffault, senhor de Neufville, seu trésorier général des finances, e
depois disso desapareceram da história por vários séculos.
Para testarmos essa hipótese, especulemos com a ideia de que as
Horas de Spinola e o Livro de Orações de Rothschild também
podem ter pertencido, ambos, a Margarida de Áustria, e que os três
manuscritos podem ter permanecido juntos após sua morte. (A
sugestão de associar as Horas de Spinola a Margarida de Áustria foi
feita pela primeira vez por Joachim Plotzek em 1982.) Há muitas
pistas, muito tênues, inclusive a ênfase nas santas nos Sufrágios,
que foram fornecidas nos estágios finais da produção, e nos nomes
dos santos tanto da Alemanha como da Espanha, o que é
consistente com uma filha do sacro imperador romano e viúva do
herdeiro da Espanha. A litania, por exemplo, invoca santo Ildefonso,
de Toledo. Margarida foi uma das mais ricas e bem relacionadas
patronas de arte na Europa. Crucialmente, o Mestre de Jaime IV, se
aceitarmos sua identidade como Gerard Horenbout, foi nomeado
seu pintor de corte e valet de chambre a partir de 1515. Ele
permaneceu como empregado de Margarida até pelo menos 1522.
Albrecht Dürer o visitou em 1521, em sua viagem aos Países
Baixos. Estilisticamente, esses sete anos, de 1515 em diante,
correspondem exatamente ao período ao qual podem ser atribuídos
esses dois manuscritos e o Livro de Orações de Rothschild.
A Natividade de Cristo, no Livro de Orações de
Rothschild, incluindo José e Maria chegando a
Belém e pastores dançando no campo.
A Natividade de Cristo nas Horas de Spinola, incluindo os
pastores dançando e um cão, pintada pelo “Mestre dos Livros de
Orações por volta de 1500”.

Margarida era filha de Maria da Borgonha (1457-82), única


herdeira do império borgonhês, e de Maximiliano da Áustria (1459-
1519), rei dos alemães e sacro imperador romano a partir de 1508.
(É a ele que se refere o nome do Mestre do Primeiro Livro de
Orações de Maximiliano.) Margarida nasceu em Bruxelas e foi
batizada em Gante. Ainda criança foi prometida ao futuro Carlos VIII
da França, e, assim, foi educada como princesa real da França.
Esse noivado foi revogado em 1491. Em vez disso, Margarida
casou-se com o doentio e frágil príncipe Juan da Espanha, herdeiro
aparente de Fernando e Isabel (era o irmão mais velho, portanto, de
Catarina de Aragão). Morreu com dezenove anos, no decorrer do
ano de 1497. Em 1501, então, Margarida se casou com Felisberto II,
duque de Saboia, que também morreu, três anos depois, sofrendo
um colapso quando, imprudentemente, estava caçando durante uma
onda de calor. O Ofício dos Mortos nas Horas de Spinola é ilustrado
com uma vívida imagem ao pé da página que mostra um homem
ferido pela Morte com uma lança enquanto cavalgava, e depois
deitado na cama, a família angustiada reunida à sua volta. O duque
Felisberto também sobreviveu por alguns dias. Há um relato de que
Margarida, em desespero, esmigalhou seu precioso colar de pérolas
para preparar uma infusão medicinal, que não conseguiu salvar a
vida dele. Em 1506, em seguida à morte de seu irmão, Filipe, o
Belo, Margarida, com 26 anos, finalmente voltou para casa, de
Saboia para os Países Baixos, como regente e governante. Lá ela
estabeleceu uma esplêndida corte renascentista em Mechelen,
entre Antuérpia e Bruxelas, pouco mais de 48 quilômetros a leste de
Gante. Não tinha filhos e nunca voltou a se casar.
Homem atingido pela lança da Morte enquanto
caçava e depois jazendo morto numa cama
sob a vigília da família, pintado nas Horas de
Spinola pelo Mestre de Jaime IV.
Margarida de Áustria reuniu uma maravilhosa coleção de arte.
Entre os quadros que possuía está incluído o incomparável retrato
do matrimônio dos Arnolgini, por Jan van Eyck, hoje um dos maiores
tesouros da National Gallery, em Londres. Tinha cerca de
quatrocentos manuscritos, inclusive o Codex Aureus de Echternach,
do século XI, feito para o imperador Henrique III (preservado na
biblioteca real espanhola no Escorial), presenteado a ela por seu
pai. Erasmo veio a Mechelen para consultá-lo em 1519, e o cita no
prefácio a seu Novo Testamento em grego, de 1522. O primeiro livro
de horas de Margarida havia sido dado a ela quando tinha apenas
três anos de idade, ao ser levada à França para seu noivado com o
delfim. Esse livro bem pode ser o famoso manuscrito que
conhecemos como Horas de Berlim de Maria da Borgonha, que era
sua mãe e tinha acabado de falecer. Seu irmão Filipe, o Belo, deu-
lhe um segundo livro de horas quando ela foi para a Espanha para
se casar com o príncipe Juan, provavelmente hoje identificável com
um manuscrito em Viena. Mais tarde, em acréscimo às Très Riches
Heures, Margarida adquiriu o inacabado Livro de Horas de Bona de
Saboia, viúva de Galeazzo Sforza, duque de Milão (a quem
pertencera o Semideus, descrito no capítulo 11), e o trouxe de volta
a Mechelen, onde providenciou para que fosse finalizado por seu
próprio artista de corte, Gerard Horenbout. Mais tarde ela o deu para
seu sobrinho, o sacro imperador romano Carlos V. Ele hoje
sobrevive na Biblioteca Britânica.
Se tanto o Livro de Orações de Rothschild como as Horas de
Spinola foram encomendados por Margarida de Áustria, o que
provavelmente se segue é que o Livro de Orações veio primeiro,
talvez por volta de 1515, quando Horenbout foi incorporado pela
primeira vez à folha de pagamentos da duquesa. Se essa sequência
no trabalho aqui proposta é a correta, então Margarida devia ter
adquirido as Horas de Spinola semiacabadas, como fizera com as
Horas de Sforza, e depois pediu a Horenbout que as expandisse e
aprimorasse. Se o Mestre de Maximiliano foi mesmo Alexander
Bening, isso não aconteceu depois de 1519, quando ele morreu. O
manuscrito foi provavelmente completado por volta de 1520.
O inventário da casa de Margarida de Áustria em 1523-4, acima
citado, incluía meia dúzia de livros de horas. Um por um, podem ser
eliminados de qualquer possível identificação com as Horas de
Spinola ou o Livro de Orações de Rothschild — pequenos demais,
antigos demais, ou ainda existentes alhures — com exceção de
dois. Um destes foi listado como “une assez grosses heures”, um
livro de horas de tamanho assaz grande (mas evidentemente não
extenso, assim como as Très Riches Heures, aqui descritas como
“Une grande heure”), encadernado em veludo verde com fechos de
prata dourada. Era o no 53 no inventário de Margarida. Outro, aqui o
no 367, é descrito com mais detalhes: “Premier, une riche heure en
parchemin, bien historiee et enlumnynee, couvertes de satin noir,
clouant deux fermilletz d’or, escriptes a la main”. É inconcebível que
“assez grosses heures” fosse o Livro de Orações de Rothschild, pois
este tem na verdade um tamanho ainda mais notável do que o das
Horas de Spinola. Será que o no 367 poderia ser o manuscrito de
Spinola, em sua encadernação original de cetim preto com dois
fechos de ouro? Ele é de fato excepcionalmente rico, bem ilustrado
e bem iluminado, e é escrito à mão.
Margarida da Áustria
(1480-1530) num
painel de um díptico
pelo “Mestre de 1499”,
ajoelhada com um livro
de orações junto a uma
lareira em seu palácio,
acompanhada de um
cão e um macaco.

Esse manuscrito específico foi registrado no palácio em Mechelen


como tendo sido guardado “no pequeno armário adjacente ao
aposento com a lareira, que dá para a galeria da capela”. Há um
díptico que sobrevive no Museum voor Schone Kunsten em Gante
que mostra Margarida de Áustria orando ante um livro de horas
aparentemente numa encadernação preta, ajoelhada de costas para
uma lareira, ao lado de um armário em madeira entalhada. A seus
pés há um cão e um macaco (ambas as criaturas aparecem também
como os animais de estimação do homem rico na miniatura do rico e
Lázaro, nas Horas de Spinola). Em frente a ela, num cenário de
igreja, e como que visto por uma janela, estão a Virgem e o Menino.
A casa Gruuthuse em Bruges, do século XV, ainda preserva uma
dessas galerias domésticas no piso superior, usadas para a oração
privada, com uma janela interna que dá para a vizinha igreja da
Virgem Maria, a Onze-Lieve-Vrouwekerk. O Livro de Horas que está
em Viena, feito para Maria da Borgonha, mãe de Margarida, mostra
a patrona lendo seu manuscrito junto a uma janela assim, que dá
para o coro de uma igreja. Tudo isso forma o cenário para o uso
original de um manuscrito como as Horas de Spinola ou o Livro de
Orações de Rothschild, no palácio de Mechelen.
Os dois manuscritos do inventário descritos como “assez grosses
heures” e o “riche heure” passaram, com a morte de Margarida de
Áustria, para sua sobrinha, Maria de Hungria (1505-58), irmã de
Carlos V, mas, assim como as Très Riches Heures, perderam-se de
vista no século XVI, e nenhum dos três manuscritos estava entre os
livros de Maria de Hungria quando estes foram em seguida listados
na biblioteca ducal borgonhesa, em c. 1569. Como foi sugerido
acima, falta nas Horas de Spinola um frontispício em que deveria
haver um brasão de armas, e bem pode estar faltando um retrato de
sua dona ajoelhada em oração à Virgem; o mesmo acontece com o
Livro de Orações de Rothschild, que não tem frontispício, e do qual
foi subtraída uma folha antes da oração à Virgem, no fólio 145r. Os
dois livros foram descaraterizados da mesma maneira.
Os três manuscritos companheiros, se ainda estavam juntos,
podem ter chegado a Gênova por intermédio de Ambrogio Spinola
(1569-1630), comandante em chefe das forças espanholas nos
Países Baixos, vitorioso nos cercos de Ostende (1603) e de Breda
(1625), diplomata e cortesão, que se retirou para a casa de sua
família em Gênova em 1629, trazendo consigo os espólios da
guerra, acompanhado pelo artista Diego Velázquez, a quem fora
apresentado por seu amigo Peter Paul Rubens, e a quem trazia
para ver quadros na Itália. Quem consulta manuscritos geralmente
não deixa rastros, graças a Deus, mas é possível que Velázquez, e
até mesmo Rubens, tenham folheado as Très Riches Heures, as
Horas de Spinola e o Livro de Orações de Rothschild.
Ao que parece, as encadernações foram feitas para Vincenzo
Spinola di San Luca (1752-1826), de Gênova. Podemos deduzir isso
porque seu herdeiro e executor testamentário foi seu primo — filho
do irmão de sua mãe — Gio Battista Serra (1768-1855), e na
primeira capa de Très Riches Heures o brasão de Spinola foi
coberto por um remendo de couro com as armas de Serra (as armas
de Spinola estão intactas na última capa); logo após sua morte o
manuscrito foi posto à venda. Gio Battista Serra o deixou para o
barão Félix de Margherita, que em 1855 o colocou num lugar no
qual poderia ser inspecionado, num pensionato para moças em
Gênova, e imediatamente pediu que se fizessem ofertas. O barão
Adolphe de Rothschild entrou em negociações, mas seu lance foi
superado em janeiro de 1856 pelo de Henrique d’Orleáns, duque de
Aumale (1822-97). Contudo, o manuscrito, que agora se chama
Livro de Orações de Rothschild, provavelmente foi comprado então
pelo sogro de Adolphe, Anselm von Rothschild, de Viena. As Très
Riches Heures foram depois doadas pelo duque de Aumale ao
Institut de France, no Musée Condé. Se as Horas de Spinola
também foram vendidas em 1856, como é provável, ela depois
sumiu totalmente de vista.
Acontece que eu mesmo fui testemunha de sua redescoberta. Eu
entrei na Sotheby’s diretamente saído da universidade, no verão de
1975. Em meados de outubro daquele ano fui enviado, junto com
Anthony Hobson, a Munique, com uma exposição de pré-venda de
manuscritos da coleção de Sir Thomas Phillipps, agendada para
venda naquele novembro, em Londres. A Sotheby’s tinha aberto
recentemente um pequeno escritório na Galereistrasse 6a, ao lado
do Hofgarten, na Ludwigstrasse. Um açougueiro aposentado de
Berlim tinha ouvido falar da exposição e trouxe um manuscrito de
sua propriedade para mostrá-lo a nós, e estava acompanhado por
sua filha. Lembro-me dele desembrulhando-o de uma manta e o
pondo sobre a mesa, de onde me foi passado, para que o abrisse.
Era, é claro, o volume que hoje conhecemos como Horas de
Spinola. Ficamos assombrados com o que estava diante de nós.
Anthony Hobson sussurrou-me em inglês que qualquer manuscrito
com aquela qualidade com certeza devia ser conhecido, e disse-me
que ia manter o dono falando enquanto eu subia correndo a
Ludwigstrasse até a Staatsbibliothek e averiguava no Die Flämische
Buchmalerei, publicado em 1925, e depois na lista padrão de
manuscritos do sul dos Países Baixos em coleções públicas (foi
Winkler quem inventou nomes do tipo “Mestre do Primeiro Livro de
Orações de Maximiliano” etc.). Eu ainda tinha meu passe de leitor,
pois não havia se passado muito tempo de minhas visitas como
estudante de pós-graduação, como relatado no capítulo 8. Em meia
hora eu estava de volta para relatar que o extraordinário livro de
horas aparentemente não tinha registro.
Seu dono tinha várias histórias sobre sua procedência, uma das
quais dizia que estava em sua família havia gerações, que Hermann
Göring tinha tentado adquiri-lo e eles o haviam guardado durante a
guerra, escondido dentro de um aparelho de rádio que estriparam.
Nós lhe demos um recibo e o levamos para mais inspeções. Uma
extensa investigação na época e em mais de quarenta anos desde
então não revelaram até agora absolutamente nada, seja
reconfortante ou preocupante, sobre o passado do manuscrito no
século XX. Em questão de amor e de procedência, é às vezes uma
questão de cavalheirismo não investigar demais, embora eu me
arrependa de não ter lhe feito mais perguntas. Considerando tudo,
na total ausência de qualquer motivo particular para supor outra
coisa, devemos assumir que o manuscrito passou
irrepreensivelmente pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, em
mãos privadas, em Berlim. Há um carimbo verde moderno na folha
de guarda com iniciais escritas à mão que parecem ser do homem
que conheci em Munique.
O manuscrito foi agendado para uma venda em Londres, em julho
de 1976. Eu compilei um texto para o catálogo, seis páginas densas
impressas, a apresentação mais longa que já escrevi, e nela fiz a
primeira tentativa de discriminar as caligrafias dos artistas. Naquela
época, o mais alto preço já atingido para qualquer livro num leilão, o
que aconteceu duas vezes, foi de 90 mil libras, para o manuscrito
Caxton, de Ovídio (1966), e para o Chaucer de Chatsworth (1974);
alegavam que um teto de seis dígitos era inalcançável. A imprensa
londrina anunciou em abril de 1976: “Manuscrito misterioso pode
chegar a 100 mil libras na Sotheby’s”, o que era uma notícia e tanto,
e relatou: “… há uma pequena onda de agitação no mundo dos
manuscritos que pode culminar num verdadeiro maremoto de
interesse quando esse livro […] for oferecido na Sotheby’s na
segunda-feira, 5 de julho”. Muitas gente veio vê-lo em meu
minúsculo escritório que dava para a St. George Street, no centro de
Londres, inclusive Hans Kraus, que tinha a reputação de ser um
comprador agressivo. Ele descreve o encontro em sua
autobiografia: “Eu […] decidi fazer os lances pessoalmente, para
não correr riscos”. Na manhã do leilão, num dia de verão muito
quente, todos esperávamos ver o sr. Kraus em plena disposição
para a guerra. Porém, ao contrário, permaneceu sentado sem
ânimo, erguendo a mão sem convicção até os lances chegarem a
60 mil libras, e depois, muito visivelmente, balançou a cabeça. De
alguma forma, os lances foram subindo e subindo, com uma
parceria de intrigados livreiros ingleses dando lances cada vez mais
altos de um lado, e o leiloeiro anunciando lances mais altos de um
competidor invisível. Chegaram a 250 mil libras e a 300 mil libras.
Pararam em 350 mil libras. Os livreiros, Frank Hammond e Charles
Traylen, fizeram mais um desesperado lance, mas em vão. Em 370
mil libras bateu-se o martelo. “H. P. Kraus”, anunciou o leiloeiro a
uma sala estupefata, e ninguém estava mais aturdido do que eu. O
sr. Kraus tinha armado previamente sua estratégia com a Sotheby’s.
Ciente de que a sala inteira estava esperando que ele fixasse um
valor, e querendo desestimular a concorrência, ele combinou com o
leiloeiro que, não importava o que dissesse ou fizesse, ele estaria
dando lances enquanto estivesse de óculos. Ele não os tirou
nenhuma vez, e foi assim que comprou o livro de horas. No The
Times do dia seguinte ele teria dito: “‘Eu tive uma conversa com
minha mulher e meu filho antes da venda’, disse, ‘e decidimos ir até
700 mil libras’”. Desde aquele momento, como logo se constatou, as
Horas de Spinola saíram da obscuridade e voltaram para a história.
Catálogo de vendas da Sotheby’s para 5 de julho de 1976, escrito
por Christopher de Hamel, que registrou e descreveu as Horas de
Spinola pela primeira vez.

* i7 [de 8, faltando i], ii-xi8, xii4, xiii2, xiv6, xv-xvi8, xvii8+1 [iii (fólio 118) é uma folha
isolada)], xviii-xxii8, xxiii6+2 [i e viii (fólios 165 de 172) são folhas isoladas], xxiv-xxix8,
xxx6+2 [iii e vi (fólios 223 e 226) são folhas isoladas], xxxi8, xxxii2+1 [ii (fólio 238) é uma
folha isolada], xxxiii-xxxv8, xxxvi6+2 [iii e iv (fólios 266-7) são folhas isoladas], xxxvii8+2 [i e
v (fólios 272 e 276) são folhas isoladas], xxxviii8, xxxix8+1 [i (fólio 290) é uma folha
isolada], xl8+1 [viii (fólio 306) é uma folha isolada], xli5 [provavelmente de 6, com a última
folha em branco cancelada, possivelmente de 8, também faltando iv-v, 2 folhas após o fólio
310].
O forro de seda verde no lado de dentro das
capas da encadernação das Horas de Spinola,
idêntico ao das Très Riches Heures e do Livro
de Orações de Rothschild.
Epílogo

Estamos na sala de espera para embarque, no aeroporto. Ainda há


meia hora de espera, antes de começarem a embarcar pessoas
acompanhadas de crianças, ou quem precise de um tempinho extra
para se ajeitar. Nossas bolsas e sacolas são verificadas, e as
preciosas anotações sobre os manuscritos que vimos estão na
bagagem de mão. Foi uma jornada estimulante a apenas algumas
das grandes coleções de manuscritos que existem pelo mundo. Há
muitas outras bibliotecas que deveríamos visitar, e o faremos em
outras ocasiões. A Biblioteca Britânica, o Vaticano e possivelmente
a biblioteca nacional em Viena foram as nossas três maiores
omissões, embora tenhamos encontrado muitas referências a
manuscritos que se acham em todos esses lugares. Há
maravilhosos tesouros para ver nas coleções nacionais em
Bruxelas, Haia e Estocolmo, e Milão e Veneza, e nos acervos que
começaram como bibliotecas eclesiásticas em Bamberg, Sankt-
Gallen e Verona. Há bibliotecas universitárias de grande riqueza em
Cambridge, Manchester (a Biblioteca John Rylands), Genebra,
Leipzig, Cracóvia, Montpellier, Harvard, Yale e em outros lugares.
Confesso meu apego às consideráveis coleções municipais da
França provinciana em lugares como Troyes, Dijon e Rouen, que
foram transferidas de mosteiros para os cuidados dessas cidades
após a Revolução Francesa. Onde quer que você more,
provavelmente lá existem manuscritos medievais de algum tipo,
assim como os há na Cidade do Cabo, em Tóquio, Manila, Chicago,
Lima (no convento de São Francisco), Melbourne e Auckland. Fiz
algumas de minhas expedições mais bem-sucedidas para ver
manuscritos excepcionais em coleções pequenas, como a grande
Bíblia do século XII ainda na Catedral de Winchester, as Horas de
Boucicaut, no Musée Jacquemart-André, em Paris, o Missal de São
Jorge de Topusko, na sacristia da Catedral de Zagreb, sob a guarda
de uma freira que lhe dá umas estocadas com o indicador para
garantir a você que é ouro verdadeiro, e os dois manuscritos de
Matias Corvino no museu Topkapi, em Istambul, resquício da
ocupação da Hungria pela Turquia, em 1541. Tudo isso renderia
capítulos dramáticos para este livro. Consegui mencionar os
Evangelhos gregos do século VI no museu diocesano em Rossano,
o Saltério de Albani em Hildesheim, o Saltério de Ingeborga, as Très
Riches Heures em Chantilly, e o incrível breviário feito para a família
real portuguesa guardado no andar superior do Mayer van der
Bergh Museum, em Antuérpia. Faça uma sondagem; há
manuscritos que merecem ser vistos. Eu deveria mesmo ter
começado a jornada com os modestos mas absolutamente reais
manuscritos medievais na Biblioteca Pública de Dunedin, no
extremo sul da Nova Zelândia, que tanto me extasiaram quando eu
era adolescente. A equipe permitiu que eu os tirasse de seus
estojos, e passava sábados inteiros a folheá-los com admiração e
encantamento.
Uma questão que emergiu ao longo de todos esses capítulos é o
elemento de puro acaso que levou os volumes aonde quer que
estejam agora no mundo. Poderíamos pensar essas grandes obras
de arte como coisas públicas e estáticas, mas isso não é nem um
pouco verdadeiro no que se refere a manuscritos iluminados. Seu
desassossego tem sido um tema inesperado. Dos doze manuscritos
que entrevistamos aqui, só um — as Horas de Joana de Navarra —
é hoje preservado no país em que de fato foi produzido, ao menos
como definido pelas fronteiras políticas modernas, mas houve vários
momentos em que até mesmo esse manuscrito em específico pode
muito bem ter viajado junto com o legado de Francis Douce para
Oxford, ou como doação de T. H. Riches a Cambridge (mas para a
irritação da sra. Yates Thompson com Sydney Cockerell), sem
mencionar que quase desapareceu soterrado em Berchtesgaden. O
Beato foi oferecido a Berlim e a Paris, mas depois apareceu num
leilão em Londres exatamente quando Pierpont Morgan achou que
precisava de alguma coisa (quase qualquer coisa) mais antiga, e ele
emigrou para a América. O Arateia estava na biblioteca da rainha
Cristina em Estocolmo, e naturalmente se juntaria aos Codices
Reginenses no Vaticano não fosse o oportunismo de um
repentinamente frustrado funcionário em Leiden a quem se permitiu
que selecionasse seus livros favoritos. Se Ceolfrido vivesse dois
meses mais, Amiatinus (sem esse nome) teria chegado a Roma e
muito provavelmente não existiria mais. Se Luís XII tivesse sido
repelido em Pavia em 1499, o Semideus nunca iria parar na Rússia.
As movimentações de manuscritos abrangem os reveses da fortuna
política tanto quanto os deveres da erudição e da filantropia. Cerca
de metade dos que foram aqui selecionados passou, em algum
momento, pelo comércio. Dois deles alcançaram em seu tempo o
recorde mundial de preço para qualquer livro vendido num leilão.
Itens eram guardados como um tesouro ou totalmente descartados,
trocados na Espanha por um relógio de algibeira no valor de trinta
francos, ou abandonados “entre sombras e poeira” numa abadia
deserta da Toscana. O Livro de Evangelhos de Santo Agostinho era
famoso o bastante para já se ter escrito sobre ele no século XIII; as
Horas de Spinola eram completas desconhecidas dos historiadores
até eu desfazer seu embrulho em 1975.
Todos eles começaram como objetos discretos e inanimados. É
uma satisfação catalogar manuscritos não registrados, dando-lhes
vida. Qualquer livro medieval recém-descoberto não tem definição
precisa até ser examinado de cada ângulo, ter seus textos
identificados, sua estrutura cotejada, sua escrita e sua decoração
atribuídas a um lugar crível na cronologia do estilo, e sua
procedência aventada. No fim desse processo o manuscrito tem
uma persona, uma identidade e, muito frequentemente, um nome
que o acompanhará para sempre. É curioso como o ato de atribuir
nomes a manuscritos específicos lhes confere um caráter, como
acontece com animais domésticos. O epíteto “o Livro de Kells” foi
usado pela primeira vez na década de 1620, e sem dúvida foi um
acréscimo na reputação mística atribuída àquele manuscrito. As
pessoas que visitam Dublin hoje não fariam filas tão grandes para
ver um “Livro de Evangelho do final do século XVIII”, por mais belo
que fosse. “Codex Amiatinus” e “Carmina Burana” são títulos do
século XIX inventados por filólogos alemães com treinamento nos
clássicos, que atribuíram subclassificações segundo a proveniência
monástica. Esses manuscritos reentraram no mundo como
entidades novas e definíveis em 1850 e 1847. Sydney Cockerell,
famoso em vida por seu gosto pela aristocracia, começou a usar o
nome “as Horas de Joana de Navarra” em um manuscrito que até
então era considerado um elegante mas anônimo livro de horas de
propriedade privada. O novo título real sem dúvida ajudou sua
passagem, por alto preço, à coleção do barão Edmond de
Rothschild e finalmente à biblioteca nacional francesa. “As Horas de
Spinola” recebeu seu nome de um livreiro que visava a uma venda
de 1 milhão de dólares. Com o propósito de citá-lo neste livro, eu
mesmo fui o inventor do termo “Semideus de Visconti” para designar
um manuscrito documentado mas até então inominado, em São
Petersburgo, e espero que o nome pegue. Ainda não existe um
nome para a cópia do comentário de Jerônimo sobre Isaías
decorado por Hugo Pictor e que foi da Catedral de Exeter, e a falta
de uma nomenclatura reconhecida enfraquece, de certo modo, seu
lugar na história. A Biblioteca Bodleiana deveria usar isso como
mais uma oportunidade de angariar fundos e abrir concorrência para
lhe dar um nome.
Um livro medieval claramente definido tem uma personalidade
única, e parte do que estivemos fazendo em nossas visitas a
coleções tem sido nos relacionarmos com manuscritos como se
fossem indivíduos e descobrir o que podem nos contar, algo que
não se pode aprender em nenhum outro lugar. Às vezes é uma
simples questão de lê-los, pois livros são capazes de falar usando
palavras. Nenhum outro artefato faz isso. Nos versos de Carmina
Burana, bisbilhotamos o que se dizia nas tabernas e nos conventos
no final do século XII. Com medo de um iminente Armagedon, no
Beato ou nas preces em livros de horas, nós nos aproximamos dos
pensamentos íntimos e das esperanças de seus proprietários
originais. O Livro de Kells era quase ilegível, mas nos diz algo
quanto a sua finalidade. Vimos um pouco da técnica da crítica
textual em ação, por meio da qual as anomalias da redação e sua
correção podem desvendar as origens de um texto, abrindo
caminhos para os domínios de Gregório, o Grande, ou as
publicações de Chaucer, ou até mesmo para compreender como
cônegos das catedrais inglesas no século XI devem ter visitado uns
aos outros para comparar suas últimas aquisições da Normandia.
São pequenas notas de rodapé à história. Esses doze manuscritos
originais tiveram coisas a nos contar sobre a conversão da Europa
ao cristianismo e à cultura romana, e sobre a migração de
conhecimento e as ambições de imitar o estilo clássico dos
imperadores carolíngios. Essas não são fontes secundárias:
descemos à própria jazida e, uma vez lá, garimpamos diretamente a
matéria bruta. O status de reis, os efeitos da guerra, o poder das
guildas municipais, a política na Itália e a realidade do inverno nas
fazendas dos Países Baixos se desenrolaram ao longo desses doze
livros originais.
Consideramos que os manuscritos iluminados já são, por si sós,
campos de estudo. Perscrutamos nos pergaminhos escritas
exóticas, como capitulares rústicas e minúsculas visigóticas (eu
insto vocês a fazer referências a isso em conversas de jantar),
iluminuras e encadernações, e os indícios de como os livros foram
copiados e reunidos, o que tem enormes implicações para a
compreensão das origens de artistas profissionais e da publicação
comercial. A importância de se determinar e documentar a estrutura
dos cadernos foi reiterada e demonstrada repetidas vezes. Muito
frequentemente, informação que extraímos de determinados
manuscritos pôde ser ligada depois a outras fontes independentes,
como a Vita Ceolfridi ou os registros de impostos na Paris do século
XIV, e nos prover de nomes e lugares factuais que trazem realidade
à vida dos livros. Poderíamos supor que os iluminadores medievais
eram todos anônimos, mas dispomos de nomes de possíveis (ou
comprovados) candidatos a serem os pintores de cerca de metade
dos manuscritos que encontramos aqui. A história da arte e da
literatura, mesmo de monumentos tão importantes como a Tapeçaria
de Bayeux ou os Contos da Cantuária, teve um pequeno avanço,
ainda que fracionário, ao olhar esses manuscritos.
Você também terá notado quão frequentemente deparamos com
coisas que desconhecemos por completo ou ainda não somos
capazes de resolver. Eu mesmo não faço ideia da origem do Saltério
de Copenhague. Ainda não creio que possamos saber o nome do
escriba do Chaucer de Hengwrt. Palpitei, por exemplo, na identidade
do patrono do manuscrito de Hugo Pictor para as Horas de Spinola,
mas posso ter errado feio. Não vou ficar nem um pouco ofendido (na
verdade, ficarei encantado) se alguém for capaz de encontrar
alguma evidência ou melhores ou mais explicações plausíveis.
Ainda há lacunas nas linhas de procedência da maior parte desses
manuscritos, que sem dúvida serão preenchidas um dia. Pura sorte
ou uma observação aguçada irão contribuir ainda mais. Na
introdução, descrevi este livro como uma conversa imaginária na
qual estamos todos nos encontrando e discutindo os manuscritos
dispostos numa mesa diante de nós. Ficarei muito feliz de ser
procurado por quem quer que tenha novas ideias e informações.
Diferentemente de muitas áreas de investigação histórica, a
paleografia é um campo que oferece infinitas oportunidades para a
descoberta ou para uma revisão completa, à medida que mais
peças de conhecimento vêm à luz, e elas virão, toda vez que
alguém examinar esses e outros manuscritos.
É, pois, com autêntico entusiasmo que convoco novos recrutas a
se apresentarem no campo. Historiadores de manuscritos são
membros de uma agradável confraria de entusiastas que nutrem as
mesmas ideias, transcendendo nacionalidades e contextos, todos
compartilhando o prazer que há no estudo de livros medievais, e
nela é fácil sentir-se em casa. Espero que algo desse
companheirismo internacional tenha sido visto em ação neste livro,
na referência a amigos e colegas mencionados no texto e,
sobretudo, nas notas de fim. Nenhuma das pessoas que consultei
sobre um tema específico deixou alguma vez de ajudar. Há
bastantes manuscritos medievais por aí — chegando provavelmente
a 1 milhão —, de modo que material não falta, e não precisamos
proteger demais nossas áreas de especialização. Muitas coleções
importantes ainda estão catalogadas parcamente, algumas ainda
nem o foram, e há muita coisa por ser descoberta. Qualquer
estudante razoavelmente equipado nesse campo está plenamente
capacitado a fazer novas atribuições e descobertas que
engrossarão o acervo do conhecimento; não existem muitas áreas
de erudição em que isso ainda é possível ou provável. Há boas
carreiras a se seguir nos estudos de manuscritos nas bibliotecas de
livros raros, nas universidades e no comércio de livros antigos, mas
há também oportunidades para entusiastas perceptivos, editores de
texto, colecionadores privados, escribas, artistas e leitores, assim
como tem havido durante mil anos.
As coleções públicas variam muito as respostas que dão aos
pedidos de pessoas que querem ver manuscritos. Para sermos
justos com seus guardiões, é preciso reconhecer que os
manuscritos são frágeis, e às vezes muito valiosos. Nem sempre é
possível ou recomendável permitir o manuseio de cada um desses
tesouros supremos. As bibliotecas têm suas próprias regras de
permissão. Escolha cuidadosamente, e talvez sem muita ambição.
Valha-se de substitutos digitalizados para um trabalho preliminar.
Quando estiver pronto, apresente uma argumentação razoável do
motivo pelo qual precisa de um acesso real, e a maioria dos
curadores vai, ao menos, ouvir você, pois eles também sabem
secretamente que não há substituto para um encontro efetivo,
presencial, com os originais. Mas esteja ciente de que também
existem manuscritos que não são propriedade pública, fato muitas
vezes negligenciado por historiadores. Nossa jornada aqui teve
histórias de sala de vendas e de aquisições, mesmo em nossa
própria época, e chegou a alguns manuscritos em coleções
particulares. Eles continuam a mudar de mãos, e espécimes de
manuscritos medievais nem são necessária ou especialmente caros
(embora possam ser); ao menos alguns fragmentos originais estão
dentro do orçamento de quase qualquer pessoa. Os puristas podem
resmungar à vontade, mas se você olhar por um bom tempo uma
página de uma Bíblia do século XIII, que custa menos do que um
bom ingresso de teatro, você aprenderá tanto sobre a atividade dos
escribas medievais quanto qualquer compêndio sobre o assunto
poderia lhe ensinar. Leia um livro de horas na cama, e será
transportado para quinhentos anos atrás.
Agora anunciaram o embarque para o voo e estamos voltando
para casa. Espero que esses encontros tenham passado alguma
ideia da emoção que é investigar e do simples prazer que é
encontrar um manuscrito original e lhe fazer perguntas e ouvir suas
respostas. Como dizem as palavras de conclusão do Semideus em
São Petersburgo, “lege feliciter”, “aproveite a leitura”.
Referências bibliográficas e notas

Devo dizer, acima de tudo, que foi um grande prazer trabalhar com Stuart Proffit e seus
colegas da Allen Lane, inclusive Ben Sinyor e Richard Duguid, e que tivemos longas e
estimulantes sessões, com a presença frequente da editora de arte Cecilia Mackay e do
designer Andrew Baker. Todos contribuíram imensamente para este livro. Por vezes,
divergimos. Eu, por exemplo, teria preferido meu título original, Entrevistas com
manuscritos, uma vez que “entrevista” me parece ser o termo mais apropriado para
descrever aquilo que realmente empreendemos aqui, mas acatei a experiência dos
editores, e, se esse foi o preço para uma agradável e fascinante colaboração, valeu a
pena.

1. OS EVANGELHOS DE SANTO AGOSTINHO


O Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho está totalmente digitalizado e disponível on-
line em Parker-on-the-Web, uma colaboração entre o Corpus Christi College e a
Universidade Stanford, que são os hospedeiros do site. A principal monografia sobre o
manuscrito é de F. Wormald, The Miniatures in the Gospels of Saint Agustine, Corpus
Christi College MS 286, Cambridge, 1954 (Sandars Lectures, 1948), reimpresso (de
Wormald) como Collected Writings, I, Londres e Oxford, 1984, pp. 13-35. Há excertos
concentrados, todos com bibliografias, em E. A. Lowe, Codices Latini Antiquiores, A
Palaeographical Guide to Latin Manuscripts Prior to the Ninth Century, II, Great Britain and
Ireland. 2. ed., Oxford, 1972, p. 4, n. 126; M. Budny, Insular, Anglo-Saxon, and Early Anglo-
Norman Manuscript Art at Corpus Christi College, Cambridge: An Illustrated Catalogue,
Kalamazoo, Mich., e Cambridge, 1997, pp. 1-50, n. 1; B. Barker-Benfield, St Augustine’s
Abbey, Canterbury, Londres, 2008 (Corpus of British Medieval Library Catalogues, 13),
especialmente III, pp. 1732-33, denso em informações; e N. Morgan, S. Panayotova e S.
Reynolds, A Catalogue of Western Book Illumination in the Fitzwilliam Museum and the
Cambridge Colleges, II, i, Italy & The Iberian Peninsula, Londres e Turnhout, 2011, pp. 18-
22, n. 1.
Ainda não existe uma biografia intelectual séria de Matthew Parker, embora seja
apresentada uma substancial biografia no verbete sobre ele, de David J. Crankshaw e
Alexandra Gillespie, no revisto Oxford Dictionary of National Biography. Ao descrever
Parker como um colecionador, eu me baseei em meu próprio pequeno guia da série de
museus Scala, C. de Hamel, The Parker Library, Londres, 2010, que por sua vez se utiliza
de R. I. Page, Matthew Parker and his Books, Sandars Lectures in Bibliography delivered
on 14, 16 and 18 May 1990, Kalamazoo, Mich., 1993. Existe um debate sobre a posterior
publicação dos trâmites de um simpósio, “Matthew Parker, Archbishop, Scholar, Collector”,
realizado em Cambridge em 17-19 de março de 2016, organizado por Anthony Grafton,
Scott Mandelbrote e William Sherman. Gill Cannell e Steven Archer foram colegas ideais
na Biblioteca Parker desde que me juntei a ela. Eu aqui simplifiquei muito as condições
para o legado de Parker, que especifica perdas que seriam consideradas inaceitáveis, e
que, caso Gonville e Caius perdessem subsequentemente uma quantidade similar, a
coleção deveria ir para o Trinity Hall. Alguns dos livros de Parker, embora não tantos assim,
foram dados por ele à Biblioteca de Universidade de Cambridge. Na p. 27 referi-me a
“uncial” como derivado de “úncia”, polegada; uma alternativa seria que a palavra proveio
primeiro de uma má transcrição dos traços verticais da palavra “initial”, o que fez imaginar-
se que se referia a polegada. Sou grato ao professor Ralph Hanna por nossa conversa
sobre “per cola et commata”. Para a exposição no Museu Fitzwilliam, mencionada na p. 32,
veja P. Binski e S. Panayotova (Orgs.), The Cambridge Illuminations, Ten Centuries of Book
Illumination in the Medieval West, Londres e Turnhout, 2005, no qual o Livro dos
Evangelhos de Santo Agostinho é o no 1, pp. 46-7, descrito por R. McKitterick. O livro do
bispo de Arizona é K. Smith, Augustine’s Relic, Lessons from the Oldest Book in England,
Nova York, 2016. A referência do Glossário do Corpus, citada na p. 28, é do Corpus Christi
College, MS 144, fólio 8v (W. M. Lindsay (Org.), The Corpus Glossary, Cambridge, 1921, p.
14). Para Tischendorf e o Codex Sinaiticus, hoje na Biblioteca Britânica em Londres (Add.
MS-43725), veja o excelente sumário em D. C. Parker, Codex Sinaiticus, The Story of the
World’s Oldest Bible, Londres e Peabody, Mass., 2010. Humfrey Wanley, apresentado na p.
32, emerge de seus escritos como um homem insinuante e estimável; ele visitou a
Biblioteca Parker no “Bennet” College, como era chamado, em 1699 (P. L. Heyworth (Org.),
The Letters of Humfrey Wanley, Palaeographer, Anglo-Saxonist, Librarian, 1672-1726,
Oxford, 1989, p. 138). Ele descreve o Livro dos Evangelhos em H. Wanley, Antiquae
Litteraturae Septentrionalis, Liber alter, Oxford, 1705 (volume II de G. Hickes, Linguarum
Veterum Septentrionalium Thesaurus Grammatico-Criticus et Archaeologicus), pp. 51 e
172-3. O segundo Livro de Evangelho associando Wanley a são Gregório é o atual MS
Auct. D.2.14 Biblioteca Bodleiana, Oxford. Outros relatos de antigos antiquários sobre
ambos os manuscritos são T. Astle, The Origin and Progress of Writing, as well
Hieroglyphic as Elementary, Illustrated by Engravings Taken from Marbles, Manuscripts and
Charters, Ancient and Modern, Londres, 1784, no qual nosso volume é descrito na p. 83 e
é ilustrado como lâmina X; J. O. Westwood, Palaeographia Sacra Pictoria, being a Series of
Illustrations of the Ancient Versions of the Bible, Copied from Illuminated Manuscripts,
Executed between the Fourth and Sixteenth Centuries, Londres, 1843-5, no qual a parte
10, paginada em separado como 1-6, é “The Gospels of Saints Augustine and Cuthbert”; e
J. Goodwin, Evangelia Augustini Gregoriana, An Historical and Illustrative Description of
MSS nos. CCLXXXVI and CXCVII in the Parker Library of Corpus Christi College,
Cambridge, being the Gospels sent by Pope Gregory the Great to Augustine, A.D. DCI,
Cambridge, 1847 (Publications of the Cambridge Antiquarian Society, Quarto series, 3).
Para o Manuscrito Bodleiano, veja Lowe, Codices Latini Antiquiores, como acima, II, p. 31,
n. 230; Barker-Benfield, como acima, pp. 1734-5; e o manuscrito completo em A. N. Doane
(Org.), Anglo-Saxon Manuscripts in Microfiche Facsimile, 7, Tempe, Az., 2002 (Medieval &
Renaissance Texts & Studies, 187). Mantive uma conversa interessante com o professor
Doane em Madison, Wisconsin, sobre se o Auct. D.2.14 foi feito na Itália, ou se foi copiado
na Inglaterra de um exemplar italiano, talvez por um escriba italiano. Os documentos
acrescentados a MS 286, citados na p. 35, estão registrados em P. H. Sawyer, Anglo-
Saxon Charters, An Annotated List and Bibliography, Londres, 1968 (Royal Historical
Society, Guides and Handbooks, 8), pp. 351 e 408, n. 1198 e 1455, e discutidos em S. E.
Kelly (Org.), Charters of St Augustine’s Abbey, Canterbury, and Minster-in-Thanet, Oxford,
1995 (Anglo-Saxon Charters, 4), pp. 95-7, n. 24 (e lâmina 3), e pp. 118-19, n. 31. Relatos
sobre os livros mais antigos na Cantuária incluem R. Emms, “St Augustine’s Abbey,
Canterbury, and the ‘First Fruits of the Whole English Church’”, in: R. N. Swanson (Org.),
The Church and the Book, Papers Read at the 2000 Summer Meeting and the 2001 Winter
Meeting of the Ecclesiastical History Society, Woodbridge, 2004, pp. 32-45. A crônica de
Thomas Sprott ainda não foi publicada; o manuscrito é o MS Add. 2578, Biblioteca da
Universidade de Cambridge. O Speculum Augustinianum de Thomas Elmham é editado por
C. Hardwick, Londres, 1858 (Rolls Series, 8); o original é o MS 1, Trinity Hall, Cambridge.
Uma presença habitual, como a que é mencionada na p. 35, é um regulamento interno dos
deveres e práticas dos membros de uma casa religiosa: como exemplo disso, veja E. M.
Thompson (Org.), Customary of the Benedictine Monasteries of Saint Augustine,
Canterbury, and Saint Peter, Westminster, Londres, 1902 (Henry Bradshaw Society, XXIII),
p. 101. A sugestão de santa Mildred, por Budny, é apresentada nas pp 6-7 e 11, de seu
Illustrated Catalogue, acima citado. O Livro de Evangelho dividido entre Londres e
Cambridge é o British Library Cotton MS Otho C.v e Corpus Christi College MS 197b (veja
Lowe, Codices Latini Antiquiores, como acima, II, p. 3, n. 125, e Budny, pp. 55-73, n. 3). O
termo “siglum X”, mencionado na p. 42, refere-se a leituras providas pelo testemunho
desse manuscrito específico em modernas edições críticas da Vulgata, como a preparada
por H. J. White e J. Wordsworth, Novum Testamentum Domini Nostri Iesu Christi latine,
secundum editionem Sancti Hieronymi, Oxford, 1989, e ainda usada no texto atual editado
por Bonifatius Fischer e outros (3. ed., Stuttgart, 1985). A análise do texto do MS 286 está
em H. H. Glunz, History of the Vulgate in England from Alcuin to Roger Bacon, being An
Inquiry into the Text of Some English Manuscripts of the Vulgate Gospels, Cambridge,
1933, esp. pp. 294-304. Evitei fazer especulações sobre onde exatamente, ou por quem
em Roma, o manuscrito pode ter sido feito; devo ao padre Robert McCulloch, da Sociedade
da Santa Cruz, a possibilidade de que Gregório, o Grande, tenha encomendado livros do
mosteiro de Sant’Andrea em Roma, onde o próprio Agostinho tinha sido prior e que foi
estabelecido por Gregório, antes de se tornar papa, num casarão que pertencia a sua
família. Sobrevive atualmente como uma abadia camaldulense da igreja de San Gregorio
Magno al Celio. A carta de Gregório a Sereno sobre o valor da arte religiosa, citada aqui na
p. 48, ocorre em seu Registrum Epistolarum, livro IX, ep. 13 (Migne, Patrologia Latina,
LXXVII: 1027); a referência era conhecida por Matthew Parker, que a citou numa carta à
rainha Elizabeth em 1559 (J. Bruce e T. T. Perowne (Orgs.), Correspondence of Matthew
Parker, D.D., Cambridge, 1853, p. 89). O relato de Beda sobre o encontro de santo
Agostinho com o rei Etelberto ocorre na Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, livro I, cap.
35 (C. Plummer (Org.), Venerabilis Baedae, Opera Historica, Oxford, 1896, pp. 45-6). Na
citação de Sedúlio no tímpano do retrato de São Lucas, mencionado na p. 49, lê-se, “Jura
sacerdotii Lucas tenet ora iubenci”. “Lucas mantém o direito do sacerdócio na boca de um
boi” (Carmen Paschale, livro I, linha 357). No livro aberto que São Lucas segura está
inscrito, por uma mão posterior, “Fuit homo missus a deo”, que na realidade é do
Evangelho de João (1,6), mas se refere a João Batista, cujo nascimento dá início ao
Evangelho de Lucas. Para as figuras nos Evangelhos de Santo Agostinho veja
especialmente F. Wormald (acima citado), e J. Lowden, “The Beginnings of Biblical
Illustration”, in: J. Williams (Org.), Imaging the Early Medieval Bible, University Park, Pa.,
1999, pp. 9-59, inclusive os outros manuscritos do século VI aqui listados na p. 54. Os
primeiros resultados da pesquisa dos professores A. Beeby e Gameson usando a
espectroscopia de Raman, mencionados na p. 51, estão publicados como A. Beeby, A. R.
Duckworth, R. G. Gameson e outros, “Pigments of the Earliest Northumbrian Manuscripts”,
Scriptorium, n. 59, 2015, pp. 33-59. A encadernação no tesouro, em Monza, é reproduzida,
entre outros lugares, em J. Richards, Consul of God, The Life and Times of Gregory the
Great, Londres, 1980, pl. 13. O Livro de Evangelho de Abba Garima foi anunciado em M.
Bailey, “Discovery of Earliest Illustrated Manuscript”, The Art Newspaper, jun. 2010, mas
sua publicação ainda é imperfeita; assisti a (na verdade, em parte presidi) uma conferência,
“The Garima Gospels in Context”, em Oxford, em novembro de 2013. Os grandes livros de
Evangelhos do século VI listados na p. 54 são os Evangelhos de Rabulla (Florença,
Biblioteca Laurenziana, cod. Plut. I. 56), os Evangelhos de Rossano (Rossano, Museo
dell’Archivescovada), e o Codex Sinopensis (Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms.
supp. grec. 1286). Os manuscritos Rabulla e Sinopensis foram ambos exibidos na Galeria
Sackler em Washington em 2006, quando consegui vê-los: M. Brown (Org.), In the
Beginning, Bibles before the Year 1000, Washington, 2006, pp. 300 e 302, n. 62 e 64. A
história da nova aquisição dos Evangelhos de Rossano está contada em A. S. Lewis, Life
of the Rev. Samuel Savage Lewis, F.S.A., Fellow and Librarian of Corpus Christi College,
Cambridge, Cambridge, 1892, pp. 208-9, e resumida em J. M. Soskice, Sisters of Sinai,
How Two Lady Adventurers found the Hidden Gospels, Londres, 2009, p. 94. Existe um fac-
símile do manuscrito por G. Cavallo, J. Gribomont e W. C. Loerke (Orgs.), Codex
Purpureus Rossanensis, Roma e Graz, 1985-7 (Codices Selecti, 81). O Codex Aureus em
Estocolmo está reproduzido em R. Gameson (Org.), The Codex Aureus, An Eighth-Century
Gospel Book, Stockholm, Kungliga Bibliothek, A. 135, Copenhague, 2 v., 2001-2 (Early
English Manuscripts in Fac-simile, 28-29). O Livro de Evangelhos da Biblioteca Britânica
mencionado na p. 57 é o Royal MS 1.E.VI, feito na Abadia de Santo Agostinho e
supostamente, ao menos em parte, foi copiado da agora perdida Bíblia de Santo
Agostinho; cf. J. J. G. Alexander, Insular Manuscripts, 6th to the 9th Century, Londres, 1978
(A Survey of Manuscripts Illuminated in the British Isles, I), pp. 58-9, n. 32, em que a lâmina
161 ilustra o boi que está no fólio 43r do manuscrito. O Saltério de Eadwine, citado na p.
57, é o MS R.17.1, Trinity College, Cambridge; suas miniaturas preambulares foram
destacadas e estão agora em Londres, Victoria and Albert Museum, 816-1894, Biblioteca
Britânica, Add. MS 37472, e Nova York, Morgan Library, M 521 e M 724 (veja M. Gibson, T.
A. Heslop e R. W. Pfaff (Orgs.), The Eadwine Psalter: Text, Image and Monastic Culture in
Twelfth-Century Canterbury, Londres, 1992, esp. p. 29). Meu filho mais moço chama-se
Edwin, em parte por inspiração naquele manuscrito incomparável. O Saltério Anglo-Catalão
é o ms lat. 8846, Bibliothèque Nationale de France, Paris: veja Psalterium Glosatum
(Salterio Anglo-Catalán), fac-símile, Barcelona, 2004, com o comentário que o acompanha,
de N. Morgan e outros, 2006, discutindo os Evangelhos de Santo Agostinho nas pp. 48-9.
Estou em dívida com Cressilda Williams, arquivista na Catedral da Cantuária, por ter me
permitido ver o texto datilografado sobre a viagem do Livro de Evangelho à Cantuária, em
1961. Meu relato do serviço na Abadia de Westminster foi escrito na época e é reproduzido
aqui com pequenas mudanças do relatório que fiz no Anuário do College, C. de Hamel,
“The Pope and the Gospel Book of Saint Augustine”, The Letter, 89, Corpus Christi College,
Cambridge, período de Michaelmas de 2010, pp. 24-7. Dei um rascunho desse capítulo ao
romancista James Runci, que incorporou alguns de seus elementos, inclusive o palpitar
das páginas quando se cantavam os hinos, em seu conto “Ex Libris”, que descreve um
roubo do manuscrito tendo como cenários a Biblioteca Parker e Canterbury, a ser publicado
em Sidney Chambers and the End of Days, 2017 (The Grantchester Mysteries, 6).

2. O CODEX AMIATINUS
Um fac-símile luxuoso, porém reduzido, do Codex Amiatinus, sem comentários, foi
publicado por La Meta Editore, La Bibbia Amiatina, Florença, 2003. Há também uma versão
em CD-ROM, produzida em 2000 pela Silmel (Società Internazionale per lo Studio del
Medioevo Latino). As principais descrições do manuscrito, com bibliografias, estão em
Lowe, Codices Latini Antiquiores, como acima, III, 1938, p. 8, n. 299; e em Alexander,
Insular Manuscripts, 1978, como acima, pp. 32-35, n. 7.
Para as escavações em Wearmouth e Jarrow, veja R. J. Cramp, “Monastic Sites”, in: D.
M. Wilson (Org.), The Archaeology of Anglo-Saxon England, Londres, 1976, , pp. 201-52,
esp. pp. 229-41. Os relatos de Beda sobre a fundação de Wearmouth e as expedições a
Roma de Bento Biscop e Ceolfrido estão em sua Historia Abbatum (C. Plummer (Org.),
Venerabilis Baedae, Opera Historica, como acima, 1896, pp. 367-8 e 373). O fragmento
dos Macabeus que pode ser de um dos manuscritos trazidos por eles está encadernado na
extremidade da biblioteca da Catedral de Durham, MS B.IV.6: está ilustrado mais
recentemente em R. Gameson, Manuscript Treasures of Durham Cathedral, Londres, 2010,
pp. 22-3, n. 1. A plaqueta que menciona Ceolfrido está descrita em J. Higgitt, “The
Dedication Inscription at Jarrow and its Context”, The Antiquaries Journal, 59, 1979, pp.
343-74. A feitura das Bíblias em Wearmouth-Jarrow é relatada na Vita Ceolfridi, incluída na
edição de Plummer da obra de Beda Opera Historica, p. 395, e a mesma atividade é
descrita por Beda na Historia Abbatum (Plummer, p. 379). Para a produção de manuscritos
em Wearmouth e Jarrow, veja A. Lowe, English Uncial, Oxford, 1960, esp. pp. 6-13,
reimpressão das principais fontes contemporâneas; e M. B. Parkes, The Scriptorium of
Wearmouth-Jarrow, Jarrow Lecture 1982, Jarrow, 1982. A redação da inscrição dedicatória
inserida na Bíblia está registrada na Vita Ceolfridi (Plummer, p. 402). Uma fonte importante
para todo este capítulo foi R. Marsden, The Text of the Old Testament in Anglo-Saxon
England, Cambridge, 2005 (Cambridge Studies in Anglo-Saxon England, 15), esp. pp. 91-8.
Há uma pesquisa geral da antiga Vulgata, inclusive sobre o lugar de Amiatino, em P.-M.
Bogaert, “The Latin Bible, c. 600 to c. 900”, in: R. Marsden e E. A. Matter (Orgs.), The New
Cambridge History of the Bible, II, From 600 to 1450, Cambridge, 2012, pp. 69-92. A
observação de Tischendorf sobre coisas que foram apagadas na página dedicatória ocorre
em sua edição, Novum Testamentum Latine interprete Hieronymo, ex Celeberrimo Codice
Amiatino Omnium et Antiquissimo et Praestantissimo, nunc primum edidit, Leipzig, 1850, p.
ix. A decifração do texto original foi publicada em G. B. de Rossi, “De origine historia
indicibus scrinii et bibliothecae Sedis Apostolicae commentatio”, pp. lxxv-lxxviii, in: H.
Stevenson e G. B. de Rossi (Orgs.), Codices Palatini Latini Bibliothecae Vaticanae, I,
Roma, 1886. O cotejo com a inscrição na Bíblia de Ceolfrido está em F. J. A. Hort, The
Academy, 31, 26 de fevereiro de 1887, pp. 148-9. A citação de H. J. White na p. 73 é da p.
273 de seu “The Codex Amiatinus and its Birthplace”, Studia Biblica et Ecclesiastica, 2,
1890, pp. 273-308. Minha dívida para com Nicolas Barker é bem evidente neste capítulo,
mas além disso ele também leu um primeiro rascunho e fez algumas sugestões muito
úteis. Usei e abusei de R. L. S. Bruce-Mitford, The Art of the Codex Amiatinus, Jarrow
Lecture 1967, Jarrow, 1978 (reimpresso de The Journal of the British Archaeological
Association, 3 ser., 32, 1969, pp. 1-25): a citação na p. 77 que começa “Já tendo se
sentado num banco…” está ali nas pp. 1-2. Meu relato sobre a Biblioteca Laurenziana,
como sobre diversas outras bibliotecas neste livro, inspirou-se na elegante prosa de A. R.
A. Hobson, Great Libraries, Londres, 1970, neste caso nas pp. 84-91. Claire Breay fez
todas as verificações para mim, e deu-me judiciosos conselhos. Scott Gwara, gentilmente,
também leu este capítulo. Creio que o levantamento do alceamento que fiz está exato;
versões anteriores, como a de H. Quentin, Mémoire sur l’établissement du texte de la
Vulgate, Rome, 1922, pp. 438-40, tentam enquadrar a realidade com a numeração errada
dos escribas originais, que eu simplesmente ignorei. Na biblioteca de Cassiodoro e sua
fonte para o Codex Amiatinus, em acréscimo às obras já citadas, veja R. L. S. Bruce-
Mitford, “Decoration and Miniatures”, pp. 109-260, in: T. D. Kendrick (Org.), Evangeliorum
Quattuor Codex Lindisfarniensis, volume que acompanha o fac-símile, Lausanne, 1960,
esp. pp. 143-9, in: Capítulo 3, “The Sources of the Evangelist Miniatures”; e P. Meyvaert,
“Bede, Cassiodorus and the Codex Amiatinus”, Speculum, 71, 1996, pp. 827-83. A
descrição por Cassiodoro de seu “Codex Grandior”, aqui citada na p. 87, é encontrada em
seu Institutiones, I, 14:2-3 (R. A. B. Mynors (Org.), Cassiodori Senatoris Institutiones,
Oxford, 1937, p. 40); ele diz que é formado por 95 cadernos de quatro folhas [ou seja, oito
páginas] e 95 × 8 = 760 páginas, ou 380 folhas. Devo a Gifford meu conhecimento sobre a
estante descrita no Mausoléu de Gala Placidia em Ravenna. O retrato de são Mateus nos
Evangelhos de Lindisfarne ocorre no fólio 25v (o manuscrito é o Cotton MS Nero D. iv, na
Biblioteca Britânica; a bibliografia desse manucrito célebre é vasta demais para tentar
reproduzi-la aqui). A prova de que os escribas do Codex Amiatinus eram ingleses (p. 93,
aqui) foi feita elegante e definitivamente em Lowe, English Uncial, citado acima,
comparando com outros manuscritos, todos atribuíveis a Wearmouth ou Jarrow, como os
fragmentos de dois Livros de Evangelhos (Utrecht, Universiteitsbibliotheek, Cod. 32, fólios
94-105, e da Biblioteca da Catedral de Durham, A.II.17, fólios 103-1111) e uma folha de um
saltério (Biblioteca da Universidade de Cambridge, MS Ff.5.27, folha de guarda). Para o
Evangelho de “Stonyhurst” ou de “St Cuthbert”, agora na Biblioteca Britânica, Add. MS
89000, veja T. J. Brown (Org.), The Stonyhurst Gospel of Saint John, Oxford, 1969, e agora
em C. Breay e B. Meehan (Orgs.), The St Cuthbert Gospel, Studies on the Insular
Manuscript of the Gospel of Saint John, Londres, 2015, que foi publicado depois que
completei este capítulo: os autores tendem a datar tanto o manuscrito do Evangelho como
o Codex Amiatinus no início do século VIII (embora a Bíblia, é claro, não após 716) e o
argumento agora é que o Evangelho foi posto no caixão de Cuteberto depois, talvez muito
depois do enterro de seus restos mortais em 698. Os escribas do Amiatinus foram
destrinçados por D. H. Wright, “Some Notes on English Uncial”, Traditio, 17, 1961, pp. 441-
56. Sobre o fornecimento de pergaminho para o manuscrito, veja R. Gameson, “The Cost
of the Codex Amiatinus”, Notes and Queries, mar. 1992, pp. 2-9. Estou supondo, como todo
mundo, que o Codex Amiatinus foi escrito em pele de bezerro. Jiří Vnouček diz-me que na
verdade os carneiros podem fornecer folhas maiores do que bovinos, já que se pode
utilizar um carneiro adulto para obter pergaminho, ao passo que só bezerros muito
pequenos produzem pele macia o bastante para ser usada. A folha de Greenwell e os
fragmentos que a acompanham, apresentados aqui na p. 97, foram o tema de minhas
primeiras Palestras de Lyell, Oxford, 2009, ainda não publicadas. A Folha de Greenwell foi
primeiro descrita por C. H. Turner em “Iter Dunelmense: Durham Bible MSS, with the Text
of a Leaf Lately in the Possession of Canon Greenwell of Durham, Now in the British
Museum”, Journal of Theological Studies, 10, 1909, pp. 529-44. Devo a Claire Breay a data
de sua aquisição pelo Museu Britânico: agora ela é Add. MS 37777, Biblioteca Britânica. O
primeiro relato das folhas de Middleton foi em W. H. Stevenson, Report on the Manuscripts
of Lord Middleton, Preserved at Wollaton Hall, Nottinghamshire, Londres, 1911 (Comissão
de Manuscritos Históricos, relatório 69), pp. xi-xii, 196-7 e 611-2; eles, por sua vez, estão
na Biblioteca Britânica, Add. MS 45025. As folhas de Greenwell e de Middleton estão em
Lowe, Codices Latini Antiquiores, como acima, II, p. 17, n. 177; a folha de Bankes foi
mencionada nas pp. 351-2 em B. Bischoff e V. Brown, “Addenda to Codices Latini
Antiquiores”, Mediaeval Studies, 47, 1985, pp. 317-66. M. T. Gibson, em The Bible in the
Latin West, Notre Dame, Ind., e Londres, 1993 (The Medieval Book, I), pp. 24-5, n. 3,
afirmam erroneamente que a folha de Bankes pode ser da terceira Bíblia de Ceolfrido. Nas
citações dos Livros dos Kings note-se que o texto da Vulgata em latim tem Reis I-IV,
renomeados em traduções modernas como I-II Samuel seguidos de I-II Reis. Minha cópia
da Vulgata em latim, à qual me referi na p. 101, é de A. Colunga e L. Turrado (Orgs.), Biblia
Sacra iuxta Vulgatam Clementinam, Nova editio, Madri, 1965. A possível participação do
próprio Beda nas emendas em Gênesis 8,7, discutidas na p. 105, foi observada em
Marsden, Text of the Old Testament, como acima, p. 204; veja também R. Marsden,
“‘Manus Bedae’: Bede’s Contribution to Ceolfrith’s Bibles”, Anglo-Saxon England, 27, 1998,
pp. 65-85. Sobre o relicário veja M. Ryan, “A House-Shaped Shrine of Probable Irish Origin
at Abbadia San Salvatore, Province of Siena, Italy”, in: M. Ryan (Org.), Irish Antiquities,
Essays in Memory of Joseph Raftery, Bray, Co. Wicklow, 1998, pp. 141-50, reimpresso em
Ryan, Studies in Medieval Irish Metalwork, Londres, 2001, pp. 574-86. N. X. O’Donoghue
sugere que esses recipientes continham crismas, óleos para manter a hóstia sagrada, e
não propriamente relicários, o que os tornaria ainda mais apropriados para o uso dos
monges itinerantes; veja O’Donoghue, “Insular Chrismals and House-Shaped Shrines in the
Early Middle Ages, in: C. Hourihane (Org.), Insular & Anglo-Saxon Art and Thought in the
Early Medieval Period, Princeton e University Park, Pa., 2011, pp. 79-91, (The Index of
Christian Art, Occasional Papers, 13). A Vita Ceolfridi (Plummer ed., p. 402) diz
simplesmente que alguns do grupo resolveram continuar a jornada após a morte de
Ceolfrido, “iter peregere”, mas não diz se chegaram ou se alguma vez voltaram para casa.

3. O LIVRO DE KELLS
Este capítulo deve muito, de muitas maneiras, a Bernard Meehan, guardião de manuscritos
e chefe de pesquisa de coleções no Trinity College, Dublin. Seu cativante comentário
ilustrado The Book of Kells, publicado por Thames & Hudson, Londres, 2012, fundamenta-
se nas décadas em que ele conviveu com o manuscrito, e foi minha leitura de verão
naquele ano, numa espreguiçadeira arrastada para as dunas de areia no norte da
Dinamarca, antes de minha visita a Dublin. É um magnífico e luxuoso fac-símile do Livro de
Kells, publicado por Faksimile Verlag, The Book of Kells, MS 58, Trinity College Library,
Dublin, Lucerna, 1990. O livro Commentary, editado por Peter Fox, inclui ensaios de
Umberto Eco, Peter Fox, Patrick McGurk (sobre o texto), Gearóid Mac Niocaill (sobre os
acréscimos em irlandês), do próprio Bernard Meehan e de Anthony Cairns (especialmente
sobre a encadernação e os pigmentos). Esses dois livros foram fontes importantes ao
longo deste capítulo. Um fac-símile anterior foi publicado por Urs Graf, Berna, 1951. Desde
2012, uma digitalização exemplar do Livro de Kells tinha livre acesso on-line por intermédio
do site Digital Collections do Trinity College, Dublin. Há descrições de catálogo do Livro de
Kells em Lowe, Codices Latini Antiquiores, como acima, II, p. 43, n. 274; J. J. G. Alexander,
Insular Manuscripts, 1978, como acima, pp. 71-6, n. 52; e M. L. Colker, Trinity College,
Dublin, Descriptive Catalogue of the Mediaeval and Renaissance Latin Manuscripts,
Aldershot, Hants., e Brookfield, Vt., 1991, pp. 106-8. Uma bibliografia exaustiva do Livro de
Kells seria inimaginavelmente longa. Relatos acessíveis sobre suas iluminuras incluem F.
Henry, The Book of Kells, Reproductions from the Manuscript in Trinity College, Dublin,
Londres, 1974; P. Brown, The Book of Kells, Forty-Eight Pages and Details in Colour from
the Manuscript in Trinity College, Dublin, Londres e Nova York, 1980; R. G. Calkins,
Illuminated Books of the Middle Ages, Londres, 1983, esp. pp. 78-92; G. Henderson, From
Durrow to Kells, The Insular Gospel Books, 650-800, Londres, 1985, pp. 131-98; e B.
Meehan, The Book of Kells, An Illustrated Introduction to the Manuscript in Trinity College,
Dublin, Londres, 1994.
Minhas citações do Birmingham Daily Post na p. 109 e de outros jornais britânicos e
irlandeses neste capítulo, inclusive de muitos detalhes sem atribuições, na história do
manuscrito na era moderna, foram obtidas com a busca da palavra “Kells” na base de
dados de Nineteenth-Century British Newspapers, Gale Digital Collections. Para a venda
da cópia de Perkins da Bíblia de Gutenberg em 1873 pelo até então mais alto preço pago
por qualquer livro em mais de sessenta anos, veja p. 302 em R. Folter, “The Gutenberg
Bible in the Antiquarian Book Trade”, in: M. Davies (Org.), Incunabula, Studies in Fifteenth-
Century Books presented to Lotte Hellinga, Londres, 1999, pp. 271-351. O manuscrito dos
Annals of Ulster é o Trinity College, Dublin, MS 1282, e a entrada aqui citada está no fólio
54r; está publicada em S. Mac Airt e G. Mac Niocaill (Orgs.), Annals of Ulster to AD 1131,
Text and Translation, Dublin, 1983, p. 439. Para roubos de manuscritos na Idade Média
devido ao valor de suas encadernações veja C. de Hamel, “Book Thefts in the Middle
Ages”, pp. 1-14, in R. Myers, M. Harris e G. Mandelbrote (Orgs.), Against the Law, Crime,
Sharp Practice and the Control of Print, Londres, 2004. Para a biblioteca, veja P. Fox, Trinity
College Library, Dublin, Cambridge, 2014. O relato dos reparos e reencadernação do Livro
de Kells deriva de um artigo que Edward Cheese me emprestou: é, de A. G. Cairns, “Roger
Powell’s Innovation in Book Conservation: The Early Irish Manuscripts Repaired and
Bound, 1953-1981”, pp. 68-87, in: J. L. Sharpe (Org.), Roger Powell, The Compleat Binder,
Turnhout, 1996 (Bibliologia, 14). Devo a tradução do documento irlandês a G. Mac Niocaill,
“The Irish ‘Charters’”, pp. 154-65, no volume fac-símile do comentário, 1990. A observação
na p. 127 de que a imagem da Virgem e do Menino no fólio 7v é a mais antiga na Europa
deriva de F. E. Warren, The Liturgy and Ritual of the Celtic Church, 2. ed. por J. Stevenson
(primeira vez em 1881), Woodbridge, 1987 (Studies in Celtic History, IX), p. lxxxv, n. 468,
citado por Colker, p. 106. Minha descrição da “maiúscula insular” na p. 136 é muito curta
para ser uma descrição apropriada (eu precisava fazer o parágrafo avançar): para todas
essas caligrafias, veja M. P. Brown, A Guide to Western Historical Scripts from Antiquity to
1600, Londres, 1990, inclusive a insular maiúscula nas pp. 50-1, n. 16. O poema citado na
p. 137 por Hugh MacDiarmid, que começa: “When a person is greatly interested in a
problem…”, consta em seu Complete Poems, org. de M. Grieve e W. R. Aitken, II,
Manchester, 1994, pp. 1389-93. Um relato de um escriba em atividade de como se fez a
escrita no Livro de Kells está em M. Drogin, Medieval Calligraphy, Its History and
Technique, Montclair, N. J., e Londres, 1980, pp. 109-12. A descrição de Gerald de Gales,
citada na p. 138, está em J. F. Dimock (Org.), Giraldi Cambrensis Opera, V, Londres, 1867
(Rolls Series, 21), pp. 123-4; foi traduzida e organizada por J. J. O’Meara, Gerald de Gales,
The History and Topography of Ireland, Harmondsworth, 1982, p. 84. A sugestão de que o
Livro de Kells não foi necessariamente único foi levantada por uma história veiculada na
imprensa, em novembro de 2015, da descoberta numa encadernação, em uma biblioteca
em Berlim, de um pequeno fragmento de Lucas 13,16, muito parecido com ele na escrita e
na decoração. Pode ter sido de um manuscrito que foi parar na Alemanha trazido por
antigos missionários insulares. Os outros grandes Livros de Evangelho insulares em Dublin
são: o Codex Usserianus Primus (concebivelmente escrito, na verdade, na Itália), Trinity
College, MS 55, antes A.4.15 (Lowe, Codices Latini Antiquiores, como acima, II, p. 42, n.
271; e Alexander, Insular Manuscripts, 1978, p. 27, n. 1); o Codex Usserianus Secundus
(Garland de Howth), Trinity College, MS 56, antes A.4.6 (Lowe, II, p. 43, n. 272); o Livro de
Durrow, Trinity College, MS 57, antes A.4.5 (Lowe, II, p. 43, n. 273, que é a fonte do
comentário de Lowe aqui citado; e Alexander, pp. 30-2, n. 6); o Livro de Mulling, Trinity
College, MS 60, antes A.1.15 (Lowe, II, p. 44, n. 276); e o Livro de Dimma, Trinity College,
MS 59, antes A.4.23 (Lowe, II, p. 44, n. 275). Dei os números antigos para enfatizar o
incrivelmente inspirador fato de que todos eles foram uma vez guardados em duas
prateleiras de uma mesma estante, “A”, na sala de manuscritos da biblioteca, com o Livro
de Kells como A.1.6: só essas prateleiras guardaram um dia um valor em ouro maior que o
de muitos bancos nacionais. Os três famosos livros insulares fora da Irlanda mencionados
aqui são o dos Evangelhos de Lindisfarne, Londres, Biblioteca Britânica, Cotton MS Nero
D. iv (Lowe, II, p. 20, n. 187; e Alexander, pp. 35-40, n. 9; e agora um fac-símile com
comentário de Michelle Brown, Das Buch von Lindisfarne, The Lindisfarne Gospels,
Lucerna, 2002); os Evangelhos de Echternach, Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms
lat. 9389 (Lowe, V, 1950, p. 18, n. 578); os Evangelhos de Barberini ou Wigbold, Città del
Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, Cod. Barb. lat. 570 (Lowe, I, 1934, p. 20, n. 63; e
Alexander, pp. 61-2, n. 36); e os Evangelhos Cutbercht, Vienna, Österreichische
Nationalbibliothek, Cod. 1224 (Lowe, X, 1963, p. 18, n. 1500; e Alexander, pp. 62-3, n. 37).
Para pigmentos no Livro de Kells, veja S. Bioletti, R. Leahy e outros, “The Examination of
the Book of Kells using Micro-Raman Spectroscopy”, Journal of Raman Spectoscopy, 40,
2009, pp. 1043-9; alguns cientistas afirmam que foi encontrado lápis-lazúli no Livro de
Kells, o que pressupõe acesso à rota comercial do Himalaia, mas essa identificação não é
universalmente aceita. A Palaeographica Sacra Pictoria de Westwood foi citada na
bibliografia do capítulo 1: a citação na p. 142 é da parte 17, p. 5. A sugestão na p. 145, que
não creio tenha sido feita antes, de que as figuras de página inteira podem ter sido
transferidas de outro manuscrito ganha possível suporte na observação de Roger Powell
de que seu pergaminho foi preparado de modo diferente (cf. p. 4 de R. Powell, “The Book
of Kells, The Book of Durrow, Comments on the Vellum, the Make-up, and Other Aspects”,
Scriptorium, 10, 1956, pp. 3-21); talvez um dia uma análise de DNA nos diga se essas
folhas vêm de um estoque diferente de peles de animal. O labor dos quatro escribas do
Livro de Kells é amplamente dividido segundo a divisão em cadernos; os limites do escriba
1, por exemplo, incluem todo o caderno xvi (fólios 130-140) e os cadernos xxxiv-xxxviii
(fólios 292-339); o escriba 3 termina um lote seu no fim do caderno x (fólio 87) e começa o
próximo no início do caderno xvii (fólio 141); e o escriba 4 escreve os cadernos xi-xiv (fólios
88-125) e termina o segundo lote no final do caderno xxi (fólio 187). Faltam no manuscrito
folhas isoladas de texto após o fólio 26, com parte da lista de nomes hebraicos para o
Evangelho de Lucas; após o fólio 177, de Marcos 14,32 a 14,42; e após o fólio 239, de
Lucas 12,6 a 12,18; e faltam três folhas de texto após o fólio 330, de João 12,28 a 13,19.
Aparas das margens do Livro de Domesday, guardadas como souvenirs pelo encadernador
(mencionado na p. 146), são descritas no Bernard Quaritch Ltd., Catalogue 1348, 2007
(Bookhands of the Middle Ages, VIII), p. 41, n. 47. A transcrição de Ussher dos documentos
no manuscrito, citada na p. 147, é o Trinity College, MS 580; as palavras “livro de Kelles”
aparecem no fólio 59v. A descrição de Ussher está em seu Britannicarum ecclesiarum
antiquitates, Dublin, 1639, p. 691. Meu relato da chegada do Livro de Kells a Dublin foi
reforçado pela oportuna publicação de Fox, Trinity College Library, como acima, esp. pp.
23-4 e 39. A citação da rainha Victoria na p. 149 é de sua Leaves from the Journal of Our
Life in the Highlands, from 1848 to 1861, To which are Prefixed and Added Extracts from
the Same Journal Giving an Account of Earlier Visits to Scotland, and Tours in England and
Ireland, Org. de A. Helps, Londres, 1868, pp. 257-8. As assinaturas reais, que estavam
numa folha de guarda e não nas páginas antigas, agora estão encadernadas em separado.
Sobre livros padrão para iluminação no século XIX veja R. Watson, “Publishing for the
Leisure Industry, Illuminating Manuals and the Reception of a Medieval Art in Victorian
Britain”, in: T. Coomans e J. De Maeyer (Orgs.), The Revival of Medieval Illumination,
Louvain, 2007, pp. 78-107; amostras de ilustrações para o Livro de Kells em W. J. Loftie’s
Lessons in the Art of Illuminating, 1885, p. 97. As cópias em aquarela de Helen Campbell
d’Olier do Livro de Kells são o Trinity College, MS 4729. Duas feitas por C. L. Ricketts,
agora na Biblioteca Lilly, Universidade de Indiana, em Bloomington, estão ilustradas em S.
Hindman e N. Rowe (Orgs.), Manuscript Illumination in the Modern Age, Recovery and
Reconstruction, Evanston, Ill., 2001, pp. 270-1 e pl. 37. Assim como o de Bernard Meehan,
o livro de Sir Edward Sullivan é chamado sucintamente de O Livro de Kells, Londres, Paris
e Nova York, 1914 (a referência ao encadernador daninho, mencionado na p. 146, é da p.
6). A carta de Joyce a Power é citada em R. Ellmann, James Joyce, Oxford e Nova York,
1982, II, p. 545. A citação de Finnegans Wake na p. 154 é tirada das pp. 122-23 da edição
em Londres, 1939. A página “Tunc”, como a chama Joyce, é a narrativa da Crucificação no
Evangelho, “Tunc crucifixerant xp[ist]i cum eoduos latrones”, “Então eles crucificaram dois
ladrões com ele” (Mateus 27,38). A página, realmente, é estranhamente tenebrosa, tanto
no layout, pois todas as palavras estão amontoadas e quase ilegíveis num padrão
cruciforme em X, como na gramática, pois “xpi” (Cristo) não significa nada aqui, e a leitura
padrão na Vulgata seria: “Tunc crucifixi sunt cum eo duo latrones”. Sobre a origem do
manuscrito sobre Jonas, além dos trabalhos já citados, veja P. Meyvaert, “The Book of
Kells and Iona”, The Art Bulletin, 71, 1989, pp. 6-19.

4. O ARATEIA DE LEIDEN
Há um fac-símile artístico, Aratea, Faksimileband, Lucerna, 1978, e, acompanhando-o,
Aratea, Kommentar zum Aratus des Germanicus, MS. Voss. Lat. Q. 79, Bibliotheek der
Rijksuniversiteit Leiden, Lucerna, 1989, com ensaios de B. Bischoff, B. Eastwood, T. A.-P.
Klein, F. Mütherich e P. F. J. Obbema; o ensaio de Mütherich, “Die Bilder”, pp. 31-68, está
reimpresso em seus reunidos Studies in Carolingian Manuscript Illumination, Londres,
2004, pp. 147-265. O manuscrito inteiro está disponível em imagens de alta resolução no
site Digital Special Collections da Universidade de Leiden. Também é ilustrado em W.
Köhler e F. Mütherich, Die karolingischen Miniaturen, IV, Die Hofschule Kaiser Lothars,
Einzelhandschriften aus Lotharingien, Berlim, 1971, lâminas 75-96. Há uma bibliografia
sobre o manuscrito em C. L. Verkerk, “Aratea: A Review of the Literature Concerning Ms
Vossianus lat. q. 79 in Leiden University Library”, Journal of Medieval History, 6, 1980, pp.
245-87. E ainda, valiosa, em G. Thiele, Antike Himmelsbilder, mit Forschungen zu
Hipparchos, Aratos und seinen Fortsetzen und Beiträgen zur Kunstgeschichte des
Sternhimmels, Berlim, 1898, esp. pp. 77-142. Estou em dívida, especialmente, com R.
Katzenstein e E. Savage-Smith, The Leiden Aratea, Ancient Constellations in a Medieval
Manuscript, Malibu, Ca., 1988, publicado para a exposição do manuscrito na América; A.
von Euw, Der Leidener Aratus, Antike Sternbilder in eines Karolingischen Handschrift,
Munique, 1989; F. Mütherich, “Book Illumination in the Court of Louis the Pious”, in: P.
Godman e R. Collins (Orgs.), Charlemagne’s Heir, New Perspectives on the Reign of Louis
the Pious (814-840), Oxford, 1990, pp. 593-604, reimpresso em Mütherich, Studies in
Carolingian Manuscript Illumination, acima citado, pp. 98-117; M. Dolan, “The Role of
Illustrated Aratea Manuscripts in the Transmission of Astronomical Knowledge in the Middle
Ages”, tese de doutorado, Universidade de Pittsburgh, 2007, disponível on-line e excelente;
e E. Dekker, “The Provenance of the Stars in the Leiden Aratea Picture Book”, Journal of
the Warburg and Courtauld Institutes, 73, 2011, pp. 1-37 (ela escreveu também Illustrating
the Phaenomena: Celestial Cartography in Antiquity and the Middle Ages, Oxford, 2012).
Estou contente por ter contado com a ajuda de D. B. Gain, The Aratus ascribed to
Germanicus Caesar, Edited with an Introduction, Translation & Commentary, Londres, 1976
(University of London Classical Studies, 8), evocado para mim por Peter Jones,
bibliotecário do King’s College, Cambridge.
O texto principal na biblioteca da corte de Carlos Magno é B. Bischoff, “Die Hofbibliothek
Karls des Grossen”, pp. 149-69 em seu Mittelalterliche Studien, III, Stuttgart, 1981,
traduzido para o inglês como “The Court Library of Charlemagne”, capítulo 3, in: M.
Gorman (Trad. e org.), Manuscripts and Libraries in the Age of Charlemagne, Cambridge,
2007 (Cambridge Studies in Palaeography and Codicology, 1), pp. 56-75; ainda é
controverso se a lista de textos citados aqui na p. 160 inclui efetivamente os que
pertenciam à própria biblioteca do palácio. Sobre a cultura intelectual de todo o período há
muitos livros de Rosamond McKitterick. Os dois Virgílio do século IV citados nas pp. 160-1
aqui são Città del Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, cod. Vat. lat. 3225 e Vat. lat.
3867. São muito conhecidos: bons sumários de D. H. Wright estão em M. Buonocore
(Org.), Vedere i Classici, L’illustrazione libraria dei testi antichi dall’età romana al tardo
Medioevo, Cidade do Vaticano, 1996, pp. 141-5, n. 1-2 (e também D. H. Wright, The
Roman Vergil and the Origins of Medieval Book Design, Londres, 2002). Para o “Calendário
de 354”, usei M. R. Salzman, On Roman Time: The Codex-Calendar of 354 and the
Rhythms of Urban Life in Late Antiquity, Berkeley, 1990 (The Transformation of the
Classical Heritage, 17). O Terêncio do século IX feito por Hrodgarius e os Agrimensores
também estão, os dois, no Vaticano (cod. Pal. lat. 3868 e Pal. lat. 1564). A famosa
observação de Scaliger citada na p. 162 foi feita para estudantes em Leiden em 1606: veja
K. van Ommen, “The Legacy of Joseph Justus Scaliger in Leiden University Library
Catalogues, 1609-1716”, in: M. Walsby e N. Constantinidou (Orgs.), Documenting the Early
Modern Book World, Leiden e Boston, 2013, pp. 51-82, p. 53, com mais referências. Erik
Kwakkel e Peter Gumbert foram meus convidados para a palestra em Leiden, e
conversamos sobre as encadernações da freira Lucie Gimbrère. Também sou grato pelas
conversas com David Ganz. Sobre a escrita com capitulares rústicas veja Drogin, Medieval
Calligraphy, como acima, pp. 89-92. Para o Saltério de Utrecht, o segundo mais importante
livro carolíngio nos Países Baixos, aqui citado na p. 166, veja o catálogo de exposição, K.
van der Horst, W. Noel e W. C. M. Wüstefeld (Orgs.), The Utrecht Psalter in Medieval Art,
Picturing the Psalms of David, Tuurdijk, 1996 (no qual também se descreve o Arateia, p.
200, n. 13). Na p. 168 eu menciono que os céus são apresentados quase pretos (exemplo
são os fólios 48v e 78v), chegando até o turquesa (como nos fólios 60v e 62v). Ao
descrever as miniaturas nas pp. 168-71 em geral evitei usar os números dos fólios em
benefício da fluência do parágrafo, mas registre-se aqui que são: 1, fólio 3v, Draco, a
serpente, com os ursos Ursus Minor e Ursus Major; 2, fólio 6v, Hércules; 3, fólio 8v, a
grinalda, Corona borealis; 4, fólio 10v, Ofiúco, o portador da serpente, de pé em cima de
um escorpião e segurando uma cobra; 5, fólio 12v, supostamente Boieiro; 6, fólio 16v, os
Gêmeos, juntos; 7, fólio 18r, Câncer, o caranguejo; 8, fólio 20v, Leo, um leão rampante; 9,
fólio 22v, Auriga, o cocheiro, segurando três cabritinhos; 10, fólio 24v, Taurus apresentado
como um touro em meio-corpo; 11, fólio 26v, Cefeu, estendendo os braços; 12, fólio 28v,
Cassiopeia no trono; 13, fólio 30v, Andrômeda amarrada entre as rochas; 14, fólio 32v,
Pégasso, meio cavalo alado; 15, fólio 34v, Áries, o carneiro saltando através de um aro; 16,
fólio 36v, Triângula; 17, fólio 38v, Peixes, apresentado como dois peixes; 18, fólio 40v,
Perseu segurando a cabeça da Medusa; 19, fólio 42v, as Plêiades, sete cabeças de
mulher; 20, fólio 44r, Lira; 21, fólio 46v, Cisne, um cisne sibilante; 22, fólio 48v, Aquário
esvaziando um jarro; 23, fólio 50v, Capricórnio; 24, fólio 52v, Sagitário; 25, fólio 54v, Aquila,
a águia; 26, fólio 56v, Delfim, um golfinho; 27, fólio 58v, Órion, com Lebre entre suas
pernas; 28, fólio 60v, Cão Maior; 29, fólio 62v, Lebre, novamente; 30, fólio 64v, Argo, meio
navio; 31, fólio 66v, Ceto, o monstro marinho; 32, fólio 68v, Erídano, o deus do rio; 33, fólio
70v, Peixe Austral; 34, fólio 72v, Ara, um altar; 35, fólio 76v, Hidra, Corvo e Cratera; e 36,
fólio 78v, Cão Menor. A cópia da tradução de Arato por Cícero, do século IX, mencionada
na p. 198, está encadernada em Londres, Museu Britânico, Harley MS 647, fólios 12v-17v.
Imagens dela estão disponíveis on-line no Catálogo de Manuscritos Iluminados da
Biblioteca Britânica, com bibliografia. É algo à parte, mas uma curiosa demonstração de
fidelidade a seu exemplar original, que o antiquário W. Y. Ottley acreditava ser um
verdadeiro manuscrito do século II ou III (Archaeologia, Miscellaneous Tracts Relating to
Antiquity, 26, 1836, pp. 47-214). Um estudo notavelmente envolvente e perceptivo da
evolução do códice nos primeiros séculos d.C. é H. Y. Gamble, Books and Readers in the
Early Church, A History of Early Christian Texts, New Haven e Londres, 1995. Na p. 187 eu
descrevo como me vi dando um curso não oficial a estudantes de pós-graduação em
Leiden: um deles, Jenneka Janzen, escreveu depois sobre isso no site da universidade. O
paralelo entre o rosto de Cefeu no fólio 26v com o de Davi no Saltério de Lotário (Londres,
Biblioteca Britânica, Add. MS 37768, fólio 4r) é feito por Mütherich em “Court of Louis the
Pious”, como acima, p. 105. O melhor registro sobrevivente do Calendário de 354 é a cópia
por Peiresc, do século XVII, da cópia carolíngia perdida (Biblioteca Apostolica Vaticana,
cod. Barberini lat. 2154). Sobre Alcuíno chamando a atenção de Carlos Magno para a
Historia naturalis de Plínio, como mencionado na p. 190, veja Bischoff, “The Court Library
of Charlemagne”, como acima, p. 57. Os dois artigos sobre a provável precisão
astronômica do planetário no 93v são R. Mostert e M. Mostert, “Using Astronomy as an Aid
to Dating Manuscripts: The Example of the Leiden Aratea”, Quaerendo, 20, 1999, pp. 248-
61; e E. Dekker, “Planetary Observations: The Case of the Leiden Planetary Configuration”,
Journal for the History of Astronomy, 39, 2007, pp. 77-90. A sugestão de que a data de 18
de março seja o aniversário da Criação deriva da tese de Dolan, “The Role of Illustrated
Aratea Manuscripts”, acima citada, p. 220. Li a tradução para o inglês da Vita Hludowici por
A. Cabaniss, Son of Charlemagne, A Contemporary Life of Louis the Pious, Syracuse, N.
Y., 1961. A prática de “decalcar” desenhos no verso de páginas iluminadas nos
manuscritos insulares é descrita em M. P. Brown, The Lindisfarne Gospels, Society,
Spirituality & the Scribe, Londres, 2003, pp. 217-20, nas lâminas 9a-b. As duas cópias do
Arateia feitas por volta de 1000 são: Boulogne, Bibliothèque Municipale, ms 188, e Berna,
Burgerbibliothek, MS 88. Para o patrocínio de Odbert, inclusive Boulogne ms 188, veja M.
Holcomb (Org.), Pen and Parchment, Drawing in the Middle Ages, Metropolitan Museum of
Art, Nova York, 2009, pp. 74-6, n. 16. Gostaria de poder pensar num candidato a ser o
artista em Gante cujas propriedades estavam sendo vendidas em 1573: isso
provavelmente é muito tarde para que ele seja Simon Bening, um dos pintores das Horas
de Spinola, no capítulo 12, que morreu lá em 1561. O termo “bis capta” era uma referência
clássica a Troia. O livro de Súsio que promete editar o Arateia é seu Carmina tam sacra
quam prophana, Leiden, 1590; a referência está na dedicatória. O Syntagma Arateorum de
Grócio, Louvain, 1600, refere-se especificamente ao manuscrito de Leiden na p. 30. Para
ser honesto, é possível que as linhas endentadas, que eu constatei olhando sob uma luz
lateral, tenham sido feitas por Grócio para sua edição, e não na Idade Média. O Atlas
Coelestis seu Harmonica Macrocosmica de Celário, Amsterdam, 1660, tem uma ilustração
do planetário numa página dupla que se segue à p. 54. A biblioteca de Grócio é comentada
em A. Nelson, “Deux Notes concernant la bibliographie de Hugo Grotius”, Nordisk tidskrift
för bok- och biblioteksväsen, 39, 1952, pp. 18-25. Para a rainha Cristina e Vóssio, consultei
C. Callmer, Königin Christina, ihre Bibliothekare und ihre Handschriften, Beiträge zur
europäischen Bibliotheksgeschichte, Stockholm, 1977 (Acta Bibliothecae Regiae
Stockholmiensis, 30), que menciona o Arateia na p. 150, e F. F. Blok, Contributions to the
History of Isaac Vossius’s Library, Amsterdam, 1974, esp. pp. 34-42. Michael Reeve disse-
me que tanto Oxford como Cambridge tentaram adquirir a biblioteca de Voss após sua
morte, 1689, mas perdeu para Leiden. Para a intricada história do primeiro fac-símile de
Virgílio no Vaticano, mencionado na p. 204, veja D. H. Wright, “From Copy to Facsimile: A
Millennium of Studying the Vatican Vergil”, British Library Journal, 17, 1991, pp. 12-35. Há
uma lista de 637 fac-símiles de manuscritos em H. Zotter, Bibliographie faksimilierter
Handschriften, Graz, 1976, já há muito desatualizada, e usei também N. Barker, The
Roxburghe Club, A Bicentennial History, n.p., 2012, capítulo 10, “The Development of the
Facsimile”, pp. 119-37.

5. O BEATO DE MORGAN
Há um fac-símile completo do Beato de Morgan, Apocalipsis de San Juan, Beato de
Liébana, San Miguel de Escalada, Valencia, 2000, acompanhado do Estudio del
Manuscrito, com contribuições em espanhol e em inglês de U. Eco, W. M. Voelkle, J. W.
Williams, B. A. Shailor, L. G. Freeman, A. Del Campo Hernández e J. González Echegaray.
O problema com todos esses comentários que acompanham fac-símiles modernos e caros
é que essa erudição fica além do alcance financeiro da maioria das bibliotecas de
pesquisa. Em vez dele, comprei uma cópia do livro profusamente ilustrado de Williams e
Shailor, A Spanish Apocalypse, The Morgan Beatus Manuscript, Introduction and
Commentaries, Nova York, 1991. Devo dizer, logo de saída, quanto devo a William Voelkle,
e sou grato por ter tido a oportunidade de conversar com Barbara Shailor; para meu grande
pesar, nunca me encontrei, que eu saiba, com John Williams. O principal texto sobre todos
os manuscritos do Beato é o do professor Williams: The Illustrated Beatus, A Corpus of the
Illustrations of the Commentary on the Apocalypse, 5 v., Londres, 1994-2003; desde então,
apareceu mais um manuscrito do Beato, do sul da Itália, agora em Gênova, onde me foi
mostrado por Barbara Roth. Dois textos datilografados por John Williams sobre uma
planejada porém abandonada exposição na Biblioteca Morgan foram generosamente
mostrados a mim por William Voelkle (são mencionados na p. 248); eles incluem “Visions of
the End in Medieval Spain, The Beatus Tradition”, o qual foi especialmente útil, cuja
publicação em 2016 pela Amsterdam University Press foi finalmente anunciada, organizada
por Therese Martin, Visions of the End in Medieval Spain, Catalogue of Illustrated Beatus
Commentaries on the Apocalypse and Study of the Geneva Beatus. Quando eu escrevia
este livro, ainda não tinha sido publicado.
Na p. 210 eu me refiro ao autor do Apocalipse como sendo “são João, o Divino”, o santo
titular da ampla catedral Episcopal em Nova York, e à denominação comumente dada a
João no Livro do Apocalipse, como seu autor (Apocalipse 1,9); se ele e são João
Evangelista foram ou não a mesma pessoa é uma questão na qual a tradição medieval e o
conhecimento bíblico moderno diferem um do outro. Para o contexto da escatologia na
época do Beato, eu me baseei inicialmente em P. Fredriksen, “Tyconius and Augustine on
the Apocalypse”, in: R. K. Emmerson e B. McGinn, The Apocalypse in the Middle Ages,
Ithaca, N. Y., 1992, pp. 20-37; e E. A. Matter, “The Apocalypse in Early Medieval Exegesis”,
pp. 38-50 no mesmo volume; R. Landes, “Lest the Millennium be Fulfilled: Apocalyptic
Expectations and the Pattern of Western Chronography, 100-800 C.E.”, in: W. Verbeke, D.
Verhelst e A. Welkenhuysen (Orgs.), The Use and Abuse of Eschatology in the Middle
Ages, Louvain, 1988, pp. 205-8 (Mediaevalia Lovaniensia, ser. 1, Studia, 15); e K. R. Poole,
“Beatus of Liébana: Medieval Spain and the Othering of Islam”, in: K. Kinane e M. A. Ryan
(Orgs.), End of Days, Essays on the Apocalypse from Antiquity to Modernity, Jefferson, N.
C., 2009, pp. 47-66. Não usei, mas li e recomendo muito J. T. Palmer, The Apocalypse in
the Early Middle Ages, Cambridge, 2014. O principal texto de Santo Agostinho contra uma
interpretação demasiadamente literal das alusões bíblicas ao fim dos tempos, citado nas
pp. 209-10, é sua Epístola 199, dirigida a Hesíquio (Migne, Patrologia Latina, XXXIII: 801-
925). O singular fragmento decorado do Beato do século IX mencionado na p. 211, é o
Silos, Biblioteca del Monasterio de Santo Domingo, frag. 4 (apesar do nome, é uma abadia
beneditina, cujo nome não evoca o de são Domingos [de Gusmão] mas o de um santo
abade que morreu lá em 1073). A identificação do manuscrito da Biblioteca Morgan com o
que pertenceu à ordem de Santiago de Uclès foi feita por G. de Andrés, “Nuevas
aportaciones documentales sobre los códices ‘Beatos’”, Revista de Archivos, Bibliotecas y
Museos, 81, 1978, pp. 543-5. O relato de Libri sobre a aquisição do manuscrito por
Frasinelli é agora o Biblioteca Britânica, Yates Thompson MS 54, antes Add. MS 46200,
fólio 102 (parte de coleção de notas antes incluída nos manucritos de Yates Thompson,
muitos dos quais estão agora na Biblioteca Britânica); o relato também é citado por Voelkle
no volume de comentário sobre o fac-símile. O verdadeiro Beato de Valcavado é o volume
que está agora em Valladolid, Biblioteca de la Universidad, ms 433. Sir Frederick Madden
(1801-1873), que segundo o relato de Libri em 1846, citado aqui na p. 216 foi Guardião de
Manuscritos no Museu Britânico; a citação é das pp. 178-9 de A. N. L. Munby, “The Earl
and the Thief”, in: org. de N. Barker, A. N. L. Munby, Essays and Papers, Londres, 1978,
pp. 175-91. Outros relatos de Accounts of Libri and Ashburnham incluem o sempre útil S.
De Ricci, English Collectors of Books & Manuscripts (1530-1930) and their Marks of
Ownership, Cambridge, 1930, capítulo XI, pp. 131-8; A. N. L. Munby, Connoisseurs and
Medieval Miniatures, 1750-1850, Oxford, 1972, capítulo VII, pp. 120-38; Munby, “The
Triumph of Delisle: A Sequel to ‘The Earl and the Thief’”, em Essays and Papers, como
acima, pp. 193-205; e J. M. Norman, Scientist, Scholar & Scoundrel, A Bibliographical
Investigation of the Life and Exploits of Count Guglielmo Libri, Nova York, 2013. Lord
Ashburnham vai reaparecer no capítulo 9. Quanto a Yates Thompson, ainda estou
orgulhoso de meu perqueno artigo, “Was Henry Yates Thompson a Gentleman?”, in: R.
Myers e M. Harris (Orgs.), Property of a Gentleman: The Formation, Organisation and
Dispersal of the Private Library, 1620-1920, Winchester, 1991, pp. 77-89. Para a
catalogação desse mauscrito por M. R. James (1862-1936), mais tarde reitor de King’s e
Eton, veja R. W. Pfaff, Montague Rhodes James, Londres, 1980, p. 193, “um verdadeiro
ensaio sobre o tema dos comentários do Beato em geral”; está nas pp. 304-30, n. 97, em A
Descriptive Catalogue of the Second Series of Fifty Manuscripts (n. 51 to 100) in the
Collection of Henry Yates Thompson, Cambridge, 1902. Quase todo o parágrafo nas pp.
219-20 é tirado do ensaio de Voelkle que acompanha o fac-símile de 2000 e de conversas
com o próprio William Voelke, amigo infalível de longa data que me ajudou em inúmeras
ocasiões em questões que envolviam a Biblioteca Morgan. Ele trabalhou para quase todos
os diretores da Morgan, exceto a própria Belle da Costa Greene. Existe uma biografia dela,
decepcionante no aspecto de que o autor nada sabe sobre livros raros, de H. Ardizzone,
An Illuminated Life, Nova York e Londres, 2007, e que faz alusão ao episódio nas pp. 367-
8. Para códigos de preço de colecionadores e negociantes, como o “bryanstone” usado por
Yates Thompson, veja I. Jackson, The Price-Codes of the Book-Trade, A Preliminary Guide,
Berkeley, 2010. A edição impressa do texto do Beato sobre o Apocalipse, que eu trouxe
comigo para Nova York, brevemente mencionada na p. 226, é J. G. Echegaray, A. del
Campo Hernández e L. G. Freeman (Orgs.), Beato de Liébana, Obras completes y
complementarias, I, Madri, 2004 (Biblioteca de autores cristianos Maior, 76). Agora ela é
suplantada por R. Gryson (Org.), Beati Liebanensis Tractatus de Apocalipsin, Turnhout,
2012 (Corpus Christianorum, Series Latina, 107). Os valores numéricos atribuídos
tradicionalmente a letras do alfabeto grego, mencionados nas pp. 228-9, são conhecidos
como “isopsefia”, segundo a qual a letra alfa = 1, beta = 2, gama = 3, e assim por diante,
passando por ro = 100, sigma = 200 etc., até ômega = 800. Peter Krakenberger teve a
gentileza de ler o rascunho do capítulo e fez diversas correções ao meu conhecimento do
espanhol, e, generosamente, deu-me um exemplar de sua tradução de S. Sáenz-López
Peréz, The Beatus Maps, The Revelation of the World in the Middle Ages, Burgos, 2014,
que foi extremamente útil naquela 11a hora. A cópia de Cockerell do catálogo de Yates
Thompson de 1902 pertence à biblioteca do Grolier Club em Nova York, onde eu a vi (sua
observação, aqui citada na p. 242, foi acrescentada por ele à margem da p. 315); sobre o
próprio Cockerell, então íntimo com a coleção de Yates Thompson, veja p. 454. Tenho uma
experiência a contar sobre a arte do Beato no Apocalipse. Em 2015 fui a um congresso da
Association Internationale de Bibliophilie, em Madri. Eles tinham posto para nós, numa
grande mesa da Biblioteca Nacional, alguns dos maiores tesouros da biblioteca, inclusive
seus dois manuscritos do Apocalipse do Beato. Nosso grupo foi imediatamente atraído por
estes, como se fosse pela música do flautista de Hamelin, ofegando e exclamando diante
das figuras hipnóticas e brilhantes, ignorando totalmente o fato de que os manuscritos ao
lado, abertos sobre a mesma mesa, eram dois cadernos ilustrados por Leonardo da Vinci,
imperceptíveis, em comparação. Beato teve o poder de desviar a atenção do maior artista
entre todos eles. A cópia do Beato assinado por Emetério, aluno de Maius, descrita nas pp.
246-7, é o Madri, Archivo Histórico Naciónal, Cod. 1097b; a inscrição do escriba está no
fólio 167r. Foi sugerido às vezes que a folha com a figura, em algum momento, foi
transferida para outro manuscrito, o que parece ser desnecessariamente complicado. O
scriptorium em Tábara do Morgan M 429 é reproduzido em J. J. G. Alexander, Medieval
Illuminators and their Methods of Work, New Haven e Londres, 1992, p. 9, fig. 9. Os
“acréscimos gêmeos” por Isidore e Jerome são os que estão nos fólios 234r-237r e 238v-
292v do manuscrito. A citação de Adam de Bremen na p. 252 é da p. 121 em R. Landes,
“The Fear of the Apocalyptic Year 1000: Augustinian Historiography, Medieval and Modern”,
Speculum, 75, 2000, pp. 97-145, e a de Byrhferth é tirada das pp. 31-2 de C. Cubitt,
“Apocalyptic and Eschatological Thought in England around the Year 1000”, Transactions of
the Royal Historical Society, 6 ser., 25, 2015, pp. 27-52.

6. HUGO PICTOR
Apesar de sua fama, não existe um fac-símile, nem mesmo uma monografia individual
sobre o manuscrito de Hugo Pictor. Ele está catalogado em O. Pächt e J. J. G. Alexander,
Illuminated Manuscripts in the Bodleian Library, Oxford, I, German, Dutch, Flemish, French
and Spanish Schools, Oxford, 1966, pp. 34-5, n. 441. O texto clássico sobre produção de
livros nesse período é de N. R. Ker, English Manuscripts in the Century after the Norman
Conquest, Oxford, 1960 (The Lyell Lectures, 1952-53). Qualquer estudo sobre catedral
inglesa e livros monásticos depende totalmente desse guia obrigatório, para este campo,
do mesmo autor, N. R. Ker, Medieval Libraries of Great Britain, a List of Surviving Books, 2.
ed., Londres, 1964 — sou conhecido por tê-lo descrito como o mais interessante livro de
referência já escrito — com N. R. Ker e A. G. Watson, Supplement to the Second Edition,
Londres, 1987.
Para o Livro de Exeter, apresentado na página de abertura deste capítulo, veja N. R. Ker,
Catalogue of Manuscripts containing Anglo-Saxon, Oxford, 1957, p. 153, n. 116; existe um
“fac-símile virtual” digital, B. J. Muir (Org.), com N. Kennedy, The Exeter Anthology of Old
English Poetry, Exeter, 2006. Há uma valiosa visão do contexto desse manuscrito e de
seus companheiros na biblioteca em P. W. Conner, Anglo-Saxon Exeter, A Tenth-Century
Cultural History, Woodbridge, 1993 (Studies in Anglo-Saxon History, IV). Sobre a história
primeva da Bodleiana, veja I. Philip, The Bodleian Library in the Seventeenth and
Eighteenth Centuries, Oxford, 1983; e M. Clapinson, A Brief History of the Bodleian Library,
Oxford, 2015. A autobiografia de Bodley, uma das primeiras na literatura inglesa, foi
reimpressa, organizada por W. Clennell, The Autobiography of Sir Thomas Bodley, Oxford,
2006. Nicholas Hilliard, seu companheiro de infância, pintou o retrato de Bodley em 1598
(K. Garlick, Catalogue of Portraits in the Bodleian Library, by Mrs Reginald Lane Poole,
Completely Revised and Expanded, Oxford, 2004, p. 35; ele foi dado à Universidade de
Oxford in 1897). O texto da oferenda de Bodley à universidade foi impresso várias vezes, a
primeira provavelmente por J. Gutch (Org.), Anthony à Wood, The History and Antiquities of
the University of Oxford, II, Oxford, 1796, p. 266. Atualmente as opiniões divergem quanto
a se a decisão do reitor e do capítulo de Exeter de enviar seus manuscritos a Oxford foi
esclarecida previsão ou “uma conspícua quebra de confiança… ao ignorar os interesses de
seus sucessores no patrimônio de sua Igreja” (A. Clark, A Bodleian Guide for Visitors,
Oxford, 1906, pp. 107-8). Conquanto o Livro de Exeter tenha sido deixado para trás, não
pode ter ficado totalmente fora de vista, uma vez que era conhecido por Matthew Parker
(Cambridge, Corpus Christi College, MS 101, p. 449, anotação à margem). O Jerônimo de
Hugo, tendo sido entregue a Oxford, está listado na p. 70 do Catalogus Librorum
Bibliothecæ Publicæ quam vir ornatissimus Thomas Bodleius eques auratus in Academia
Oxoniensi nuper instituit, Oxford, 1605, reproduzido em fac-símile como The First Printed
Catalogue of the Bodleian Library, Oxford, 1986. Peço desculpas por usar abreviações
locais de vários tipos: a Sala de Leitura “PPE” mencionada na p. 263 refere-se à graduação
exclusiva de Oxford em Filosofia, Política e Economia, que teve como estudantes nesse
antigo espaço Harold Wilson, Edward Heath, David Cameron, Bill Clinton, Benazir Bhutto e
muitos outros. O artigo de Richard Gameson, mencionado na p. 263, é “Hugo Pictor,
enlumineur normand”, Cahiers de Civilisation Médiévale, 44, 2001, pp. 121-38; e o de Otto
Pächt, a quem conheci em sua velhice, é seu “Hugo Pictor”, Bodleian Library Record, 3,
1950, pp. 96-103. A edição do texto que usei de Jerônimo sobre Isaías é M. Adriaen (Org.),
S. Hieronymi presbysteri, Commentarium in Esaiam, Turnhout, 1963 (Corpus
Christianorum, Series Latina, 73); agora há uma nova tradução para o inglês, T. P. Scheck,
Jerome, Commentary on Isaiah, including St Jerome’s Translation of Origen’s Homilies 1-9
on Isaiah, Nova York e Mahwah, N. J., 2015 (Ancient Christian Writers, The Works of the
Fathers in Translation, 68). A ilustração no verso do fólio vi, que descrevo como sendo de
Jerônimo com Estóquio e Pamáquio, é publicada em P. d’Ancona, The Art of Illumination,
An Anthology of Manuscripts from the Sixth to the Sixteenth Century, trad. de A. M. Brown,
Londres e Nova York, 1969, lâmina 37, descrevendo a Virgem Maria no trono entre
Jerônimo e Isaías, o que é certamente errôneo. A imagem, do início do século XII, do
encadernador mencionada na p. 276 é Bamberg, Staatsbibliothek, cod. Msc. Patr. 5; foi
reproduzida um número incontável de vezes, inclusive em meu próprio Scribes and
Illuminators, Londres, 1992, p. 12, fig. 7 (Hugo Pictor, incidentalmente, está lá na p. 64, fig.
55). Graham Pollard foi o primeiro a observar a facilidade com que se podiam extrair pinos
de encadernações românicas de modo que as tiras de costura pudessem ser fixadas em
novas capas: veja a p. 19 de seu “The Construction of English Twelfth-Century Bindings”,
The Library, 5 ser., 17, 1962, pp. 1-22. As duas cópias de Jerônimo no inventário de Exeter
de 1327 estão listadas em G. Oliver, Lives of the Bishops of Exeter and a History of the
Cathedral, Exeter, 1861, p. 302. Para a história da biblioteca medieval, usei A. M. Erskine,
“The Growth of Exeter Cathedral Library after Bishop Leofric’s Time”, Leofric of Exeter,
Essays in Commemoration of the foundation of Exeter Cathedral Library in A. D. 1072,
Exeter, 1972, pp. 43-55. O costume de identificar um manuscrito num catálogo de
manuscritos medievais citando as primeiras palavras da segunda folha começou
provavelmente na biblioteca da Sorbonne no final do século XIII: veja J. Willoughby, “The
Secundo Folio and its Uses, Medieval and Modern”, The Library, 7 ser., 12, 2011, pp. 237-
58. O catálogo da união franciscana, conhecido como Bodleian Library, MS Tanner 165, é
publicado por R. H. Rouse e M. A. Rouse (Orgs.), com R. A. B. Mynors, Registrum Anglie
de Libris Doctorum et Auctorum Veterum, Londres, 1991 (Corpus of British Medieval Library
Catalogues, 2), que cita a cópia de Exeter nas pp. 88-9, n. 6.72. Para a referência de
Jerônimo à Bretanha em seu comentário sobre Isaías, mencionado na p. 278, veja a edição
de Adriaen, 1963, p. 463; em Bodley 717 ela ocorre no fólio 186v. A cópia de Jerônimo
sobre Isaías do Priorado da Catedral da Igreja de Cristo em Canterbury está agora em
Cambridge, como Trinity College, MS B.5.24; a de Salisbury em Wiltshire ainda está lá na
catedral, MS 25, comentada na p. 284. A observação de Guilherme de Malmesbury sobre o
reflorescimento da religião na Inglaterra sob os normandos ocorre em seu Gesta Regum
Anglorum, III: 246: veja W. Stubbs (Org.), Willelmi Malmesbiriensis monachi De gestis
regum Anglorum libri quinque, II, Londres, 1889 (Rolls Series, 90), p. 306. A lista de
manuscritos sobreviventes conhecidos na, ou associados com, Inglaterra anglo-saxã
estendeu-se até 1100, o que inclui o período de Hugo Pictor, e está em H. Gneuss, Handlist
of Anglo-Saxon Manuscripts, A List of Manuscripts and Manuscript Fragments Written or
Owned in England up to 1100, Tempe, Ariz., 2001, com suplementos em Anglo-Saxon
England, 32, 2003, pp. 293-305; e 40, 2012, pp. 293-306; para a geração seguinte,
incomparavelmente mais rica, veja o catálogo de R. Gameson, The Manuscripts of Early
Norman England (c. 1066-1130), Oxford, 1999. Sobre a sistemática construção das
bibliotecas patrísticas pelos normandos, veja Ker, English Manuscripts, acima citado, p. 4; e
R. M. Thomson, “The Norman Conquest and English Libraries”, in: P. Ganz (Org.), The
Book in Medieval Culture, 2, Turnhout, 1986, pp. 27-40 (reimpresso em Thomson, England
and the Twelfth-Century Renaissance, Aldershot e Brookfield, Vt., 1998, n. XVIII); e
Thomson, Books and Learning in Twelfth-Century England: The Ending of the “Alter Orbis”,
The Lyell Lectures 2000-2001, Walkern, Herts., 2006, esp. pp. 48-60 e 101-4. Manuscritos
que estão agora em Oxford, adquiridos pelos normandos para Exeter, contemporâneos do
de Jerônimo sobre Isaías, incluem Ambrósio, Jerônimo e Agostinho (Bodley MS 137),
Pseudo-Atanásio (Bodley MS 147), Agostinho (Bodley MSS 301, 691 e 813), Gregório
(Bodley MSS 707 e 783) e Ambrósio (Bodley MS 739). Para a tradição textual do Jerônimo
sobre Agostinho, veja R. Gryson e outros (Orgs.), Commentaires de Jérôme sur le prophète
Isaïe, I-V, Freiburg, 1993-99 (Vetus Latina, Aus der Geschichte der lateinischen Bibel, 23,
27, 30 e 35-36), que atualiza e corrige B. Lambert, Bibliotheca Hieronymiana Manuscripta,
La Tradition manuscrite des oeuvres de saint Jérôme, Steenbrugge, 1969 (Instrumenta
Patristica et Mediaevalia, 4). Os dois principais manuscritos da família “galicana”
mencionados na p. 282 do texto são Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 11627
(de Corbie), e Salzburgo, Stiftsbibliothek Sanct Peter, a.X.22 (de St-Amand). Para a
produção de livros em Salisbury, veja T. Webber, Scribes and Scholars at Salisbury
Cathedral, c. 1075- c. 1125, Oxford, 1992; e Webber, “Salisbury and the Exon Domesday:
Some Observations Concerning the Origin of Exeter Cathedral MS 3500”, English
Manuscript Studies, 1, 1989, pp. 1-18. Os quatro textos em Salisbury MS 25 estão nos
fólios 4v, 2r, 3v e 5v. Eu também os conferi em Cambridge, Trinity College MS B.5.24, a
cópia da Cantuária. É ligeiramente diferente das duas. Como a de Salisbury, não inclui a
passagem intercalada; “salutare” no fólio 4v, texto de Salisbury, está escrito sobre uma
rasura; há um “scribens” no fólio 7v, como em Salisbury, mas lê-se “ministeria” no fólio 10r,
como no texto de Exeter. A forçosa conclusão é de que os textos de Jerônimo sobre Isaías
em Exeter, Salisbury e Canterbury chegaram à Inglaterra independentemente, e não foram
copiados uns dos outros. Os livros de William de St-Calais, bispo de Durham, apresentados
na p. 287, são descritos em R. A. B. Mynors, Durham Cathedral Manuscripts to the End of
the Twelfth Century, Durham, 1939, pp. 32-45; M. Gullick, “The Scribe of the Carilef Bible: A
New Look at some Late Eleventh-Century Durham Cathedral Manuscripts”, in: L. Brownrigg
(Org.), Medieval Book Production, Assessing the Evidence, Los Altos Hills, Ca., 1990; A.
Lawrence-Mathers, Manuscripts in Northumbria in the Eleventh and Twelfth Centuries,
Woodbridge, 2003, pp. 61-83, esp. pp. 27-48; e R. Gameson, Manuscript Treasures of
Durham Cathedral, Londres, 2010, esp. pp. 50-61, n. 10-12. A Bíblia de Guilherme de
Saint-Calais na Catedral de Durham é A.II.4; a lista de doações no fólio 1r. Volume III de
Agostinho sobre os salmos é o Durham é Cathedral B.II.14; o verso sobre ter sido
encomendado pelo bispo Guilherme está na última folha. A declaração de Symeon de
Durham de que Guilherme enviou livros de volta de seu exílio, referida na p. 288, está em
T. Arnold (Org.), Symeonis monachi opera omnia, I, 1882 (Rolls Series, 75), p. 128. Volume
II de Agostinho sobre os salmos é Durham B.II.13; a capitular com o retrato de Roberto
Benjamim está no fólio 102r. Michael Gullick, gentilmente, leu esse capítulo num primeiro
rascunho e fez sábias sugestões. Quase todas as identificações de escribas nas pp. 290-1
são dele e derivam se seu artigo “The Scribe of the Carilef Bible”, publicado em 1990.
Manuscritos pelo escriba da Bíblia citado aqui são acréscimos a Durham B.II.13, e.g., fólio
23r (Agostinho), Paris, Musée des Archives Nationales, 138 (a entrada sobre Bayeux no
rolo mortuário do abade Vitalis), Biblioteca Bodleiana, MS Bodley 810 (Lanfranc, de Exeter)
e Bayeux, Bibliothèque Municipale, mss 57-58 (o Gregório, em dois volumes). O Orígenes
também corrigido pelo escriba que corrigiu a Bíblia é Durham B.III.1. Seu principal escriba
trabalhou em Durham B.III.10 (Gregório), Biblioteca Bodleiana, MS Bodley 301 (Agostinho,
de Exeter) e provavelmente Rouen, Bibliothèque Municipale, ms A 103 (460) (Agostinho,
de Jumièges). Roberto Benjamim trabalhou no Bodley 301, Bayeux 57-58, já citado, e no
Rouen, Bibliothèque Municipale, ms A 85 (467) (Agostinho de St-Ouen). Não reivindico
originalidade na conclusão de que Hugo Pictor também trabalhou em algum lugar da
Normandia: além dos artigos já mencionados, veja o enganoso e despretensioso catálogo
embrulhado em papel de uma exposição montada conjuntamente pela Biblioteca Municipal
e o Musée des Beaux-Arts em Rouen em 1975, Manuscrits normands, XI-XIIème siècles,
compilado por François Avril, esp. pp. 49-51, n. 42-44; e observações de C. R. Dodwell,
The Canterbury School of Illumination, 1066-1200, Cambridge, 1954, pp. 115-8; e J. J. G.
Alexander, Medieval Illuminators and their Methods of Work, 1992, também acima citado,
esp. pp. 10-1. Na p. 292 descrevo capitulares na primeira parte de Bodley 717 que não se
encaixam nos espaços destinados a elas: exemplos são os fólios 16r, 31v, 61r, 87r, 104r e
outros; os de Hugo Pictor que encaixam justamente estão nos fólios 201v, 216v, 230v, 256v
e 270v. As atribuições de outros manuscritos à autoria de Hugo Pictor, listadas na p. 293,
derivam totalmente de Gullick, Gameson e Thomson sobre a escrita, e de Pächt e Avril
sobre a decoração. Os manuscritos aqui listados são Bodley MS 691 (Agostinho, de
Exeter), Bodley 783 (Gregório, também de Exeter), Durham B.II.9 (Jerônimo, doado por
Guilherme de Saint-Calais a Durham), Estocolmo, Riksarchivet, Frag. 194-95 (homilias),
Rouen ms A 366 (539) (Anselmo, citado como arcebispo nos fólios 1r e 111r, de Jumièges),
Rouen ms Y 109 (1408) (vidas dos santos, também de Jumièges), e Paris, Bibliothèque
Nationale de France, ms lat. 13765, fólio B (fragmento de hinário). Os fragmentos em
Estocolomo são descritos em M. Gullick nas pp. 57-8 de “Preliminary Observations on
Romanesque Manuscript Fragments of English, Norman and Swedish Origin in the
Riksarkivet (Estocolmo)”, em J. Brunius (Org.), Medieval Book Fragments in Sweden, An
International Seminar in Stockholm, 13-16 November 2003, Estocolmo, 2005 (KVHAA
Konferenser, 58), pp. 31-82. Compreendem partes de duas homilias; a lista de textos dados
a Durham por Guilherme de Saint-Calais inclui “II. libri sermonum & omeliaru[m]”, do qual
fora este não se conhece sobrevivente, e um deles deve ter chegado à Escandinávia entre
manuscritos fornecidos a partir do norte da Inglaterra, rota à qual vamos recorrer no
capítulo 7. A sugestão de que Guilherme de Saint-Calais assumiu o patrocínio de Durham
B.II.13-14 mesmo que pela metade, aludida na p. 296, foi feita em Gameson, Manuscript
Treasures, p. 59. Para o tratamento “frater”, “irmão”, usado por um iluminador monástico,
compare “fr. Rufillus” que inscreveu um autorretrato decorando um lecionário do século XII
da Abadia de Weissenau (Genebra, Bibliotheca Bodmeriana, Cod. 127, fólio 244r); cf.
Alexander, Medieval Illuminators, citado acima, pp. 10-20, inclusive uma discussão sobre a
ocupação de Hugo Pictor na p. 10 e exemplos de outros iluminadores profissionais que se
descrevem como “pictor”. Sobre os primeiros escribas e artistas contratados, veja M.
Gullick, “Professional Scribes in Eleventh- and Twelfth-Century England”, English
Manuscript Studies, 1100-1700, 7, 1998, pp. 1-24. Para Guilherme de Brailes, apresentado
na p. 298, veja especialmente C. Donovan, The de Brailes Hours, Shaping the Book of
Hours in Thirteenth-Century Oxford, Londres, 1991; seus dois autorretratos assinados são
British Library, Add. MS 49999, fólio 43r, e Cambridge, Museu Fitzwilliam, MS 330, fólio 3r.
A pesença de Guilherme de Saint-Calais como testemunha em documentos para Bayeux
em 1089 está registrada em V. Bourrienne (Org.), Antiquus cartularius ecclesiae Baiocencis
(Livre Noir), I, Rouen, 1902, pp. 8 e 12. O relato clássico sobre se aparar e segurar uma
pena é de E. Johnston, Writing & Illuminating, & Lettering, Londres, 1906, pp. 51-60 e 64-
70, reimpresso inúmeras vezes. Devo outras observações, inclusive sobre a vantagem de
sentar num banco e não numa cadeira, a conversas com o escriba moderno Donald
Jackson. Para cadeiras com cabeças de dragão nas extremidades dos braços, no entanto,
veja D. M. Wilson, The Bayeux Tapestry, Londres, 1985, pls. 10 e 13. O colofão, “Tres digiti
scribunt”…, ocorre, por exemplo, em British Library, Royal MS 6.A.VI, fólio 109r, um
manuscrito de Aldhelm do final do século XI.

7. O SALTÉRIO DE COPENHAGUE
Imagens digitais de alta qualidade do Saltério de Copenhague, que atualmente só vão até
o fólio 18, estão disponíveis no site da Royal Library: e-manuskripter. Todas as principais
iluminuras estão descritas e ilustradas num enorme volume, M. Mackeprang, V. Madesen e
C. D. Petersen, Greek and Latin Illuminated Manuscripts X-XIII Centuries in Danish
Collections, Copenhague, Londres e Oxford, 1921, pp. 32-42 e pls. 48-60. O manuscrito
está catalogado em C. M. Kauffmann, Romanesque Manuscripts, 1066-1190, Londres e
Nova York, 1975 (A Survey of Manuscripts Illuminated in the British Isles, 3), pp. 118-20, n.
96, e lâminas que incluem o frontispício em cores.
A devolução da Cruz Verdadeira, que provavelmente também fora planejada para a cena
da Entrada em Jerusalém, conforme descrita na p. 317, tem um paralelo parcial no
sacramentário do século XI depositado em Mont Saint-Michel (Nova York, Biblioteca
Morgan, M 641, fólio 155v; cf. J. J. G. Alexander, Norman Illumination at Mont St. Michel,
966-1100, Oxford, 1970, p. 159, n. 1). A exposição da Biblioteca Britância mencionada na
p. 318 está em McKendrick, J. Lowden, K. Doyle e outros, Royal Manuscripts, The Genius
of Illumination, Londres, 2011. Referências básicas aos cinco outros grandes saltérios,
listadas na p. 318, e novamente mencionadas ao longo do capítulo, são 1) o Saltério
Hunteriano (Glasgow, Biblioteca da Universidade, MS Hunter 229): T. S. R. Boase, The
York Psalter, Londres, 1962, Kauffmann, Romanesque Manuscripts, como acima, pp. 117-
8, n. 9; e N. Thorp, The Glory of the Page, Medieval & Renaissance Illuminated
Manuscripts from Glasgow University Library, Londres, 1987, pp. 62-5, n. 14; 2) o Saltério
de Ingeborga (Chantilly, Musée Condé, ms 9): fac-símile, F. Deuchler (Org.), Ingeborg-
Psalter, Le Psautier d’Ingeburge de Danemark, Ms. 9 olim 1695, Musée Condé, Chantilly,
Graz, 1985 (Codices Selecti, 80); 3) o Saltério de Branca de Castela (Paris, Bibliothèque de
l’Arsenal, ms 9): H. Martin (Org.), Psautier de Saint Louis et de Blanche de Castile, Paris,
1909; V. Leroquais, Les Psautiers Manuscrits des bibliothèques publiques de France,
Macon, 1940, I, pp. xcvii-xcviii; e II, pp. 13-7, e, como outros manuscritos, está em I. F.
Walther e N. Wolf, Codices Illustres, The World’s Most Famous Illuminated Manuscripts,
400 to 1600, Colônia, 2001 (oportunidade perdida para um livro que poderia ser
maravilhoso), pp. 162-3; 4) o “Saltério de Avranches” (Los Angeles, J. Museu Paul Getty,
MS 66): [aparentemente F. Avril], Un Très Précieux Psautier du temps de Philippe Auguste,
Paris, 1986 (um catálogo de Ratton e Ladrière, mas até agora a descrição mais detalhada
que foi impressa), e uma breve publicação em French Illuminated Manuscripts in the J.
Paul Getty Museum, Los Angeles, 2007, pp. x-xi e 12-4; e 5) o Saltério de Leiden (Leiden,
Universiteitsbibliotheek, Cod. BPL 76A): N. Morgan, Early Gothic Manuscripts, I, 1190-
1250, Londres e Nova York, 1982 (A Survey of Manuscripts Illuminated in the British Isles,
4), pp. 61-2, n. 14, e agora, como o Arateia, disponível em boas imagens do site Digital
Special Collections, da Universidade de Leiden. Em diferentes ocasiões, eu, pessoalmente,
examinei os cinco manuscritos. A referência completa à primeira descrição do Saltério de
Copenhague, mencionada nas pp. 323-4, está em Johann Heinrich von Seelen,
Meditationes Exegeticae, quibus Varia Utriusque Testamenti, Loca Expenduntur et
Illustrantur, Lübeck, 1737, parte V, pp. 185-95, De Psalterio manuscripto Capelliano ob
singularem elegantiam commemorabili observatio; tenho o orgulho de ter deparado com
essa referência independentemente, mas depois soube que é citada, com outros fatos que
eu nunca teria encontrado, em E. Petersen, “Suscipere Digneris: Et fund og nogle
hypoteser om Københavnerpsalteret Thott 143 2o og dets historie”, Fund og Forskning i Det
Kongelige Biblioteks Samlinger, 50, 2011, disponível on-line. O saltério está listado no
Catalogi Bibliothecae Thottianae, VII, Copenhague, 1795, pp. 287-8. Para o papel dourado
do século XVIII, muitas vezes chamado vagamente de “holandês” (efetiva e comumente,
alemão), veja E. W Mick, Altes Buntpapier, Dortmund, 1979. O Saltério de Dagulf, citado na
p. 325, é o Vienna, Österreichischer Nationalbibliothek, Cod. 1861. O outro saltério muito
importante do século XII, único verdadeiro rival desse manuscrito, é o Albani, ou Saltério de
Santo Albano, hoje em Hildesheim, Dombibliothek (cf. K. Collins, The St Albans Psalter,
Painting and Prayer in Medieval England, Los Angeles, 2013). O alfabeto e o Padre-Nosso
no Saltério de Copenhague, descritos na p. 326, estão no fólio 189v. Exemplo semelhante
mas muito posterior está no compêndio de Cláudio de França, Cambridge, Museu
Fitzwilliam, MS 159, p. 2 (The Cambridge Illuminations, 2005, pl. na p. 230); para quadros
com o alfabeto para crianças e a oração ao Senhor, veja L. Shepard, The History of the
Horn Book, A Bibliographical Essay, Londres, 1977. O artigo do professor Norton, resumido
nas pp. 329-30, é C. Norton, “Archbishop Eystein, King Magnus and the Copenhagen
Psalter, A New Hypothesis”, pp. 184-215 em K. Bjørlykke, Ø. Ekroll, B. Syrstad Gran e M.
Herman (Orgs.), Eystein Erlendsson — Erkebiskop, Politiker or Kirkebygger, Trondheim,
2013. Ao dar ritmo a este capítulo, retive as referências às publicações de Patricia
Stirnemann, até chegar a um ponto em que pudesse trazê-las com um rufar de tambores,
para máximo efeito, o que significa que aparecem menos nestas referências bibliográficas
do que sua importância merece. Elas são P. Stirnemann, “The Copenhagen Psalter”,
dissertação, Columbia University, 1976, fotocópia, Ann Arbor, 1979 (eu tinha comigo uma
cópia na Dinamarca); P. Stirnemann, “Histoire tripartite: Un Inventaire des livres de Pierre
Lombard, un exemplaire de ses Sentences et le destinataire du Psautier de Copenhague”,
in: em D. Nebbiai-Dalla Guarda e J.-F. Genest (Orgs.), Du Copiste au collectionneur,
Mélanges d’histoire des textes et des bibliothèques en l’honneur d’André Vernet, Turnhout,
1998, pp. 301-18; P. Stirnemann, “The Copenhagen Psalter”; in: E. Petersen (Org.), Living
Words & Luminous Pictures, Medieval Book Culture in Denmark, Copenhague, 1999, pp.
67-76; e P. Stirnemann, “The Copenhagen Psalter (Kongel. Bibl. ms Thott 143 2o)
Reconsidered as a Coronation Present for Canute vi”, in: F. O. Büttner (Org.), The
Illuminated Psalter, Studies in the Content, Purpose and Placement of its Images, Turnhout,
2004, pp. 323-8. A associação do saltério com a iconografia da fonte de pedra de 1170 na
igreja de Ringsted, identificando a entrada em Jerusalém como símbolo de coroação real, é
discutida nas pp. 131-3 de K. Markus, “Baptism and the King’s Coronation: Visual Rhetoric
of the Valdemar Dynasty and Some Scanian and Danish Baptismal Fonts”, in: K. Krodres e
A. Mänd (Orgs.), Images and Objects in Ritual Practices in Medieval and Early Modern
Northern and Central Europe, Newcastle upon Tyne, 2013, pp. 122-42. Em acréscimo aos
calendários dos salmos, para a digressão nas pp. 334-5, veja R. W. Pfaff, “Why do Psalters
have Calendars?” em seus ensaios reunidos — na verdade foi uma palestra — Liturgical
Calendars, Saints, and Services in Medieval England, Aldershot e Brookfield, Vt., 1998,
item VI, pp. 1-15; os dois primeiros exemplares são o Saltério de Bosworth (Biblioteca
Britânica, Add. MS 37517, final do século X) e o Saltério de Salisbury (Catedral de
Salisbury, MS 150, c. 969-89). Sobre calendários agostinianos do norte da Inglaterra, não
parecidos com o de Copenhague, veja R. W. Pfaff, The Liturgy in Medieval England, A
History, Cambridge, 2009, pp. 290-3. Carl Nordenfalk, ciente do estilo do norte no
calendário, assim mesmo atribuiu o Saltério de Copenhague à Inglaterra meridional
(Gyllene böcker: Illuminerade medeltida handskrifter i Dansk och Svensk ägo, Estocolomo,
1952, pp. 30-1, n. 24). Na p. 338 eu comparo a escrita com a das Bíblias de Bury e de
Lambeth, que creio terem sido escritas ambas por um único escriba (Cambridge, Corpus
Christi College, MS 2; e Londres, Biblioteca do Palácio Lambeth, MS 3; cf. R. M. Thomson,
The Bury Bible, Woodbridge e Tóquio, 2001; e D. M. Shepard, Introducing the Lambeth
Bible, Turnhout, 2007). A identificação dos restos mortais de Remígio como oriundos do
santo bispo de Lincoln (m. 1092) e não do muito anterior Remígio de Rheims (m. 533)
justifica-se porque estas eram de tecido corporal e não de ossos, como observado tanto
por Stirnemann como por Norton. Na p. 340 eu listo diversos manuscritos nos quais
Patricia Stirnemann reconheceu a mão do artista dos Salmos 1-54 do Saltério de
Copenhague e dos Salmos 1-101 do Saltério Hunteriano: são o Troyes, Médiathèque, ms
900 (Peter Lombard, Sentences, credivelmente datado de 1158); Oxford, St John’s College,
MS 49 (Peter Lombard, Sentences, pertencente a Hilário, bispo de Chichester, que esteve
na França em 1163 e 1164 e morreu em 1169); Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms
lat. 17246 (Grande Comentário de Pedro Lombardo sobre as Epístolas Paulinas); e Paris,
Bibliothèque de l’Arsenal, ms 939 (milagres de Santo Agostinho). As regras no scriptorium
em St-Victor, mencionadas na p. 342 estão publicadas em L. Milis (Org.), Liber ordinis
Sancti Victoris Parisiensis, Turnhout, 1984 (Corpus Christianorum, Continuatio Medievalis,
61), pp. 78-9. Alguns relatos sobre a abadia e sobre a importância dos estudos victorinos
estão em E. A. Matter e L. Smith (Orgs.), From Knowledge to Beatitude: St Victor, Twelfth-
Century Scholars, and Beyond: Essays in Honor of Grover A. Zinn, Jr., Notre Dame, Ind.,
2013. Os três volumes da Bíblia de Manerius, mencionados na p. 342, são Paris,
Bibliothèque Sainte-Geneviève, mss 8-10; seu escriba era de Canterbury e sua família está
documentada; cf. Dodwell, The Canterbury School of Illumination, citados nas notas do
capítulo 6, p. 110; e W. Cahn, Romanesque Manuscripts, The Twelfth Century, Londres,
1996 (A Survey of Manuscripts Illuminated in France, 3), II, pp. 99-102, n. 81. Note-se que
ao me referir a salmos individuais em latim, aqui e em outros lugares deste livro, estou
usando a numeração da Vulgata medieval: a maioria da Bíblias modernas baseia-se no
texto hebraico, mas a Vulgata em latim, tirada da Septuaginta grega, combina os salmos
modernos 9-10 em um só e a partir daí a numeração corre com um número a menos até o
Salmo 147, que ela divide em dois, retornando assim ao total de 150 no fim. A denúncia de
são Bernardo quanto à monstruosidades na arte — e ela vai muito além disso (pp. 350-1)
— é traduzida de sua Apologia dirigida a Guilherme, abade em Saint-Thierry, em 1125 (J.
Leclerq e H. M. Rochais (Orgs.), Sancti Bernardi opera, III, Roma, 1963, p. 106). O homem
que despela uma lebre na Bíblia de Bury, mencionado na p. 353, está em Cambridge,
Corpus Christi, MS 2, fólio 1v, interpretando um provérbio de M. Camille, Image on the
Edge, The Margins of Medieval Art, Londres, 1992, pp. 18-20. Para Mestre Simon, veja W.
Cahn, “St Albans and the Channel Style in England”, in: J. Hoffeld (Org.), The Year 1200, A
Symposium, Nova York, 1970, pp. 187-211 (inclusive o Saltério de Copenhague, na p. 189);
R. M. Thomson, Manuscripts from St Albans Abbey, 1066-1235, Woodbridge, 1982, pp. 54-
62 e 126-8; e D. Jackson, N. Morgan e S. Panayotova, A Catalogue of Western Book
Illumination in the Fitzwilliam Museum and the Cambridge Colleges, III, i, France, c. 1000 —
c. 1250, Londres e Turnhout, 2015, pp. 141-5. Os mosteiros listados na p. 354 como tendo
livros escolásticos de Mestre Simon são Bonport (Livro dos Números interpretado, Paris,
Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 74), Liesborn (Gênesis interpretado, Münster-in-
Westfalen, Universitätsbibliothek, Hs 222), Klosterneuberg (obras de Aristóteles e de
Boécio, Klosterneuburg, Stiftsbibliothek, Cod. 1089) e Esztergom (Esztergomi
Föszékesegyházi Könyvtár, I.21). Os manuscritos atribuídos a Mestre Simon em St Albans
são Cambridge, Corpus Christi College, MS 48 (Bible), Cambridge, Trinity College, O.5.8
(Ralph de Flaix); e Stonyhurst College, Lancashire, MS 10 (Gregório). Na França é
conhecido como Mestre da Bìblia dos Capuchinhos por sua obra em Paris, Bibliothèque
Nationale de France, ms lat. 16743, possivelmente de Troyes; cf. W. Cahn, Romanesque
Manuscripts, The Twelfth Century, Londres, 1996 (A Survey of Manuscripts Illuminated in
France, 3), II, pp. 96-9, n. 79. Permitam-me uma digressão por um momento. Não sabemos
aonde foi Mestre Simon após a morte do abade Simon, em 1183; talvez tenha voltado para
a França. No entanto, sua mão ainda comparece na iluminação de Corpus Christi College,
Cambridge, MS 380, único manuscrito conhecido do Speculum Fidei de Robert de
Cricklade, datável por sua escrita, entre c. 1170 e 1190, e no que é provavelmente a própria
cópia do autor de seu Abbreviatio Plinii (Windsor, Eton College, MS 134). Robert de
Cricklade foi prior da Abadia de St Frideswide, outra casa agostiniana, em Oxford, onde
morreu após 1188, e é quase inconcebível que os primeiros manuscritos de seus textos
tenham sido feitos em outro lugar que não a própria Oxford. Um dos primeiros documentos
que sugerem a presença de qualquer atividade acadêmica em torno do lugar que mais
tarde se tornou a Universidade de Oxford é um contrato que registra a venda de terra em
Catte Street, ao lado da igreja de santa Maria, datado de c. 1180-90, testemunhado pelos
primeiros membros residentes do comércio de livros, inclusive um escriba, dois produtores
de pergaminho e dois iluminadores, estes identificados como Peter e Ralph. Será que um
deles poderia ser Mestre Simon, temporária ou permanentemente em Oxford, e é
concebível que tenhamos deparado com um candidato a esse nome? Para os orifícios de
costura, mencionados nas pp. 354-5, veja breve relato em C. Sciacca, “Raising the Curtain
on the Use of Textiles in Manuscripts”, in: K. M. Rudy e B. Baert (Orgs.), Weaving, Veiling
and Dressing: Textiles and their Metaphors in the late Middle Ages, Turnhout, 2007, pp.
161-90 (uma referência que devo a Michael Gullick). Qualquer leitor aqui que necessite de
um bom tema para um doutorado, que requeira acesso em primeira mão a múltiplos
manuscritos, sem necessidade de saber latim, poderia empreender uma documentação
sistemática de abas de tecido, pois essa prática era sem dúvida muito disseminada.

8. CARMINA BURANA
Existe um fac-símile de aspecto bem sombrio de Carmina Burana, Faksimile-Ausgabe der
Carmina Burana und der Fragmenta Burana, Handschrift Clm 4660 und Clm 4660a der
Bayerischen Staatsbibliothek in München, Munique, 1967, com excelente comentário de B.
Bischoff, Einfuhrung zur Faksimile-Ausgabe, em alemão e inglês. Uma análise detalhada
do manuscrito por Otto Schumann está em A. Hilke e O. Schumann (Orgs.), Carmina
Burana, mit Benutzung der Vorarbeiten Wilhelm Mayers, Kritisch Herausgegeben, II,
Kommentar, Heidelberg, 1930, pp. 3*-95*. Ambos foram textos cruciais para este capítulo.
Para contextualizar, antes de minha visita, comecei com uma velha cópia de Helen
Waddell, The Wandering Scholars, Londres, 1927, e a edição clássica da Penguin, D.
Parlett, Selections from the Carmina Burana, A Verse Translation, Harmondsworth e Nova
York, 1986. Foram-me especialmente úteis P. G. Walsh, Love Lyrics from the Carmina
Burana, Edited and Translated, Chapel Hill, N. C., 1993; T. M. S. Lehtonen, Fortuna, Money,
and the Sublunar World: Twelfth-Century Ethical Poetics and the Satirical Poetry of the
Carmina Burana, Helsinque, 1995; e T. Marshall, The Carmina Burana: Songs from
Benediktbeuern, Los Angeles, 2011. Todas as traduções das canções citadas são minhas.
Também sou grato pela conversa durante uma longa viagem de carro com Anne Azéma, da
Camerata de Boston, que cantou muitas vezes a Carmina Burana.
Sobre a aquisição de livros de Benediktbeuern, veja G. Glauche, Katalog der lateinischen
Handschriften der Bayerische Staatsbibliothek München, Die Pergamenthandschriften aus
Benediktbeuren, Clm 4501-4663, Wiesbaden, 1994 (Catalogus Codicum Manu Scriptorum
Bibliothecae Monacensis, n. III, i), pp. vii-viii. Manuscritos sobreviventes de Benediktbeuern
estão listados em S. Krämer, Handschriftenerbe des deutschen Mittelalters, Munich, 1989
(Mittelalterliche Bibliothekskataloge Deutschlands und der Schweiz, Engänzungband, 1),
pp. 78-9. No mínimo, a sequência das folhas descrita na p. 367 demonstra que o
manuscrito era provavelmente uma ruína desmontada no século XVIII, mas foi reconstruído
para ficar atraente ainda quando na posse da Abadia de Benediktbeuern. As folhas
perdidas e não encadernadas devem ter sido varridas quando os depósitos foram
esvaziados, em 1803. A referência ao cônego Alberico na p. 368 é de M. R. James, Ghost
Stories of an Antiquary, Londres, 1906, p. 13. Sobre a evolução dos breviários, o texto
clássico é V. Leroquais, Les Bréviaires Manuscrits des bibliothèques publiques de France,
Paris, 1934. Os exemplos de canções que começam com as mesmas palavras de salmos,
mencionados nas pp. 373-7, são “Bonum est” (fólio 3r) e “Lauda” (fólio 3v), as mesmas dos
salmos 91 e 146-47; o salmo Bonum est era o último das matinas num breviário, e dois
salmos sucessivos nas laudes começam com “Laudate”. Na p. 370 menciono o Breviari
d’Amor de Matfre Ermengaud (1246-1322): curiosamente, manuscritos desse texto não se
parecem especialmente com breviários, e o jogo de palavras está meramente no nome (cf.
P. L. Ricketts, Le Breviari d’amor de Maftre Ermengaud, Leiden e Londres, 1976). Com a
numeração dos fólios refeita em sua ordem original, os quatro blocos de texto,
apresentados na p. 373, teriam sido 1) poemas morais e satíricos, fólios 43r-48v e 1r-18v;
2) canções de amor, fólios 18v-42v, 49r-v, 78r-82v e 50r-72v; 3) canções para bebida e
jogos, fólios 83r-98v; e 4) dramas religiosos, fólios 99r-112v. Na p. 383 há uma observação
de que a figura na Roda da Fortuna também está sofrendo com a reviravolta no destino: a
própria Fortuna só muito ocasionalmente se encontra na roda, ideia mencionada por
Honório de Autun no início do século XII (H. R. Patch, The Goddess Fortuna in Medieval
Literature, Londres, 1967, reimpressão da edição de 1927, p. 152). O selo imperial de
Frederico II feito em 1220 é descrito em R. Haussherr (Org.), Die Zeit der Staufer,
Geschicte — Kunst — Kultur, Stuttgart, 1977, I, p. 34, n. 50; e III, pl. 20. Na realidade não
se acham paisagens naturalistas na arte europeia antes do século XIV: cf. O. Pächt, “Early
Italian Nature Studies and the Early Calendar Landscape”, Journal of the Warburg and
Courtauld Institutes, 13, 1950, pp. 22-32. Um exemplo de um ciclo de miniaturas sobre a
Criação, como os que são aludidos na p. 387, é o bestiário do final do século XII, Oxford,
Biblioteca Bodleiana, MS Ashmole 1511, fólios 5r (criação de plantas e árvores), 6r (criação
de aves e peixes) e 6v (criação de animais). Devo a Nigel Morgan a observação na p. 387
de que a Virgem Maria que segura uma flor parece ter aparecido primeiro na arte alemã do
século XIII. A carta de Pedro de Blois, citada na p. 395, é Ep. LVII (Migne, Patrologia
Latina, CCVII: 171-72). Para o autor, veja R. W. Southern, “The Necessity for two Peters of
Blois”, in: L. M. Smith e B. Ward (Orgs.), Intellectual Life in the Middle Ages, Essays
Presented to Margaret Gibson, Londres, 1992, pp. 103-17. A demonstração prática da
regra de “acima/abaixo da linha do topo” citada na p. 399 está em N. R. Ker, “From ‘Above
Top Line’ to ‘Below Top Line’, A Change in Scribal Practice”, Celtica, 5, 1960, pp. 13-6,
reimpresso em A. G. Watson (Org.), N. R. Ker, Books, Collectors and Libraries: Studies in
the Medieval Heritage, Londres, 1985, pp. 71-4. Para Bernhard Bischoff (1906-1991),
considerado o gigante entre os paleógrafos, veja S. Krämer, Bibliographie Bernhard
Bischoff und Verzeichnis aller von ihm herangezogenen Handschriften, Frankfurt, 1998
(Fuldaer Hochschulschriften, 27). Suas opiniões ainda gozam de enorme respeito. O artigo
de Georg Steer, mencionado na p. 400, é “‘Carmina Burana’ in Südtirol, Zur Herkunft des
Clm 4660”, Zeitschrift für deutsches Altertum und deutsche Literatur, 112, 1983, pp. 1-37.
Sobre a reordenação do conhecimento no final do século XII, como se reflete no projeto de
manuscritos, veja M. B. Parkes, “The Influence of the Concepts of Ordinatio and Compilatio
on the Development of the Book”, in: Medieval Learning and Literature, Essays Presented
to Richard William Hunt, Oxford, 1976, pp. 35-70; e M. A. Rouse e R. H. Rouse, “Statim
invenire: Schools, Preachers and New Attitudes to the Page”, in: R. L. Benson e G.
Constable (Orgs.), The Renaissance of the Twelfth Century, Cambridge, Mass., 1982, pp.
201-25, reimpresso em Rouse, Authentic Witnesses, Approaches to Medieval Texts and
Manuscripts, Notre Dame, Ind., pp. 191-219. Para a vida de Orff, consultei A. Liess, Carl
Orff, trad. de A. e H. Parkin, Londres, 1966; e, não totalmente abrangente, em W. Thomas,
Das Rad der Fortuna, Ausgewählte Aufsätze zu Werk und Wirkung, Mainz, 1990. A maior
parte da história aqui contada deriva de H. Schaefer e W. Thomas (Orgs.), C. Orff, Carmina
Burana, Cantiones profanae cantoribus et choris cantandae comitantibus instrumentis
atque imaginibus magicus, Faksimile der autographen Partitur in der Bayerischen
Staatsbibliothek München, Mainz e Londres, 1997, inclusive W. Thomas, “‘Fortune smiled
on me…’, The Genesis and Influence of the Carmina Burana”, pp. xvii-xxi, trad. de D.
Abbott; e de F. Dangel-Hofmann (Org.), Briefe zur Entstehung der Carmina Burana, Carl
Orff und Michel Hofmann, Herausgegeben und Kommentiert, Tutzing, 1990. Espero estar
certo da fama das quatro notas de abertura de “Ó Fortuna”: pessoas de certa idade na
Inglaterra podem fazer a mesma alegação em relação a “I’m a gnu”. A resenha do Royal
Festival Hall publicada em 12 de junho de 1951, p. 8, foi encontrada ao se buscar “Burana”
no The Times Digital Archive.

9. AS HORAS DE JOANA DE NAVARRA


Para um editor pioneiro, um fac-símile das Horas de Joana de Navarra seria um
maravilhoso empreendimento. Há algumas imagens digitais, com a expectativa de muitas
mais, no site Mandragore para manuscritos iluminados na Bibliothèque Nationale de
France. A sequência publicada mais abrangente é ainda o livro do Roxburghe Club, de H.
Yates Thompson, Thirty-Two Miniatures from the Book of Hours of Joan II, Queen of
Navarre, A Manuscript of the Fourteenth Century, Londres, 1899; e a descrição padrão
ainda é a de S. C. Cockerell, pp. 151-83, n. 75, em Yates Thompson, A Descriptive
Catalogue of the Second Series of Fifty Manuscripts, 1902, acima citada nas referências do
capítulo 5.
Para Berchtesgaden em 1945, consultei A. H. Mitchell, Hitler’s Mountain, The Führer,
Obersalzburg and the American Occupation of Berchtesgaden, Jefferson, N. C., e Londres,
2007 (a história dos tijolos está na p. 131). A recuperação do Très Belles Heures é contada
por quem o encontrou, Francis Rogé, “Tribulations d’un manuscript à peintures du XVe
siècle”, in: Valenciennes et les anciens Pays-Bas: Mélanges offerts à Paul Lefrancq,
Valenciennes, 1976, pp. 337-40 (Publication du Cercle Archéologique et Historique de
Valenciennes, IX). Eu devia deixar bem claro, pois um leitor desse capítulo poderia ficar
inseguro quanto a isso, que o duque de Berry possuía alguns livros de horas, o que hoje é
popularmente sabido das palavras usadas nas suas descrições em seu inventário, como as
Très Belles Heures (em Paris), as Petites Heures (também em Paris), as Très Riches
Heures (em Chantilly), as Belles Heures (em Nova York) etc.: são todos manuscritos
diferentes. As memórias de Maurice Rheims foram publicadas em inglês como The
Glorious Obsession, trad. de P. Evans, Londres, 1980, pp. 224-7. Devo muito às conversas
que tive, há muito tempo, com Marcel Thomas e François Avril (e muito brevemente com
Maurice Rheims) sobre a aquisição das Horas de Joana de Navarra, quando preparava
minhas aulas Delisle, na Bibliothèque Nationale, 1998, publicadas em inglês como C. de
Hamel, The Rothschilds and their Collections of Illuminated Manuscripts, Londres, 2005
(Berchtesgaden é mencionada na p. 41); uma lista atualizada dos manuscritos do barão
Edmond está em F. Avril, “The Bibliophile and the Scholar: Count Paul Durrieu’s List of
Manuscripts Belonging to Baron Edmond de Rothschild”, in: J. H. Marrow, R. A. Linenthal e
W. Noel (Orgs.), The Medieval Book, Glosses from Friends & Colleagues of Christopher de
Hamel, ’t Goy-Houten, 2010, pp. 366-76. O título completo do Répertoire é Commandement
en chef français en Allemagne, Groupe français du conseil de controle, Répertoire des
biens spoliés en France durant la guerre 1939-1945, VII, Archives, manuscrits et livres
rares, n.p., n.d. As Horas de Joana de Navarra são citadas como de paradeiro
desconhecido em inúmeras referências a elas em M. Meiss, French Painting in the Time of
Jean de Berry, The Late XIV Century and the Patronage of the Duke, Londres e Nova York,
1967; foi até descrito como não tendo sido rastreado, em F. Avril, “Trois Manuscrits de
l’entourage de Jean Pucelle”, Revue de l’Art, 9, 1970, pp. 37-48 (apesar de que quando o
artigo foi publicado ele já teria visto o manuscrito). Numerosas outras publicações de
Monsieur Avril desde então discutiram isso, inclusive Manuscript Painting in the Court of
France, The Fourteenth Century (1310-1380), trad. U. Molinaro, Londres, 1978, esp. pp.
68-73, pls. 15-17; sua apresentação na exposição Les Fastes du Gothique, Le siècle de
Charles V, Galeries nationales du Grand Palais, 9e octobre 1981-1er février 1982, Paris,
1981, pp. 312-4, n. 265; e seu comentário ao fac-símile, Les Petites Heures du Duc de
Berry, Lucerna, 1988-89, esp. pp. 115-23. Este capítulo deve imensamente a todos esses.
Os números dos fólios para os complementos do texto, resumidos na p. 418, são: 1) o
calendário, fólios 4r-9v; 2) as Horas da Santíssima Trindade, fólios 11r-38r; 3) as Horas da
Virgem Maria, fólios 39r-72r; 4) várias orações curtas, fólios 72v-74v; 5) os Salmos
Penintenciais e litania, fólios 75r-85r; 6) as Horas de São Luís, fólios 85v-105v; 7) as Horas
da Cruz, fólios 109r-116; 8) uma miscelânea de preces em honra de vários santos,
especiamente a Virgem Maria e a Trindade, em latim e em francês, fólios 116v-145r; 9)
Sufrágios, ou orações dirigidas a determinados santos, fólios 145v-150r; 10) outras preces
curtas, fólios 150v-158v; 11) o Ofício, ou Vigílias, ou os Mortos, fólios 158v-182v; 12) mais
Sufrágios, fólios 183r-193v; 13) as variantes especiais das Horas da Virgem para uso no
Advento, fólios 194r-219v; 14) as variantes especiais das Horas da Virgem para uso entre o
Natal e a festa da Purificação, fólios 220r-246r; 15) o Saltério de São Jerônimo e outras
orações, fólios 247r-257r; e 16) miscelânea de acréscimos, em caligrafias posteriores,
fólios 257v-271v. O melhor relato sobre os textos do manuscrito está em M. M. Manion,
“Women, Art and Devotion: Three French Fourteenth-Century Royal Prayerbooks”, in: M.
M. Manion e B. J. Muir (Orgs.), The Art of the Book, Its Place in Medieval Worship, Exeter,
1998, pp. 21-66, esp. pp. 24-5 e 45-50 (o Livro de Horas de Joana de Navarra está
ilustrado na primeira capa). Para a história de livros de horas em geral, o texto clássico é a
introdução a V. Leroquais, Les Livres d’heures manuscrits de la Bibliothèque Nationale,
Paris, 1927, pp. i-lxxxv. Há dois belos catálogos de exposição por R. S. Wieck, Time
Sanctified: The Book of Hours in Medieval Art and Life, Nova York, 1988 (para a Walters Art
Gallery em Baltimore); e Painted Prayers: The Book of Hours in Medieval and Renaissance
Art, Nova York, 1997 (para a Biblioteca Morgan). Agora temos também S. Hindman e J. H.
Marrow (Orgs.), Books of Hours Reconsidered, Londres, 2013; inclusive A. Bennett, “Some
Perspectives on the Origins of Books of Hours in France in the Thirteenth Century”, pp. 19-
40; e N. Morgan, “English Books of Hours, c. 1240-c. 1480”, pp. 65-95 (que cita as Horas
de Joana de Navarra nas pp. 68-9). Na p. 421 eu descrevo quão frequentemente as
iluminuras do manuscrito incluem figuras de uma rainha ajoelhada: está em capitulares nos
fólios 68r, 122v, 131v, 152r, e outros) e em miniaturas nos fólios 125v e 137v. O exemplo
que forneci de preces em gênero feminino estão nos fólios 255v, 149v, 150v e 151v. A
menção nominal de Joana no fólio 151v do manuscrito ocorre na oração que começa
“Deprecor te o domina sanctissima maria…”. É um lembrete de que sempre vale a pena
passar os olhos pelas orações em livros de horas na esperança de deparar com os nomes
de seus proprietários. O primeiro livro de horas no qual trabalhei foi o MS 5 na Biblioteca
Pública de Dunedin: uma oração, então despercebida, pede ajuda para “me margeriam
fitzherbert” (fólio 87r); outro, mais famoso, é o Lambeth Palace MS 474, um livro de horas
bem modesto com uma discreta oração invocando a ajuda de Cristo para “me famulum
tuum regem Ricardum” (fólio 182r), identificando o dono como Ricardo III, rei da Inglaterra
de 1483 a 1485 (A. F. Sutton e L. Visser-Fuchs, The Hours of Richard III, Stroud, Gloucs., e
Wolfeboro Falls, NH, 1990). Para as Horas de São Luís veja M. Thomas, “L’Iconographie
de Saint Louis dans les Heures de Jeanne de Navarre”, in: Septième Centenaire de la Mort
de Saint Louis, Actes des Colloques de Royaumont et de Paris (21-27 maio 1970), Paris,
1976, pp. 209-31; e M. C. Gaposchkin, The Making of Saint Louis: Kingship, Sanctity and
Crusade in the Later Middle Ages, Ithaca, N. Y., e Londres, 2008; e seu Blessed Louis, The
Most Glorious of Kings: Texts Relating to the Cult of Saint Louis, Notre Dame, Ind., 2012.
Os três outros manuscritos que incluem as Horas de São Luís, listados na p. 427, são 1)
Nova York, Biblioteca Pública, Spencer MS 56 (as Horas de Branca da Borgonha; cf. texto
de Lucy Sandler em J. J. G. Alexander, J. H. Marrow e L. F. Sandler, The Splendor of the
Word, Medieval and Renaissance Illuminated Manuscripts at the New York Public Library,
Nova York, Londres e Turnhout, 2005, pp. 223-6, n. 46); 2) as Horas de Joana d’Évreux
(Nova York, Metropolitan Museum of Art, Acc. 54.1.2; fac-símile, The Hours of Jeanne
d’Évreux, Acc. N. 54.1.2, The Metropolitan Museum of Art, The Cloisters Collection, New
York, comentário de B. Drake Boehm, A. Quandt, e W. D. Wixom, Lucerna, 2000); e 3) as
Horas de Maria de Navarra (Veneza, Biblioteca Nazionale Marciana, cod. lat. I.104 (12640);
fac-símile, Libro de Horas de la reina María de Navarra, comentário de M. Zorzi, S. Marcon,
e outros, Barcelona, 1996). O Cabeçalho para as Horas de São Luís no agora destruído
Horas de Saboia, em Turim, citado na p. 427, foi impresso por P. Durrieu, “Notice d’un des
plus importants livres des prières du roi Charles V, Les Heures de Savoie”, pp. 500-55, in:
Bibliothèque de l’École des Chartes, 72, 1911, p. 510. A miniatura de são Luís aprendendo
a ler, mencionada na p. 428, está no fólio 85v das Horas de Joana de Navarra; o saltério
que está sendo usado na figura é o Leiden Universiteitsbibliotheek, Cod. BPL 76A, e a
inscrição que o identifica como tendo sido usado por são Luís é mais ou menos da mesma
data das Horas de Joana de Navarra. As orações a santa Apolônia e a vida de santa
Margarete nas Horas de Joana de Navarra, citadas na p. 430, estão respectivamente nos
fólios 131r e 133r-134v do manuscrito. A rubrica que começa “Vous devez savoir…” está no
fólio 43v e impressa em Manion, “Women, Art and Devotion”, como acima, pp. 35-6. A
miniatura de Joana dando esmolas aos pobres está no fólio 123v. Para bincadeiras
marginais, do tipo descrito nas pp. 433-5, os textos clássicos são L. M. C. Randall, Images
in the Margins of Gothic Manuscripts, Berkeley e Los Angeles, 1966, com instigante
interpretação de M. Camille, Image on the Edge, The Margins of Medieval Art, Londres,
1992. Os dois volumes do Breviário de Belleville apresentados na p. 439 são Paris,
Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 10484; não há fac-símile — deveria haver — mas
está ilustrado em Avril, Court of France, pp. 60-3, Walther e Wolf, Codices Illustres, pp.
206-7, e alhures. Pertenceu a Carlos V, mas seu patrocinador original é incerto,
possivelmente Joana de Belleville, mulher de Olivier de Clisson, cujas posses foram
perdidas para o rei em 1343. Carlos V o deu a Ricardo II, da Inglaterra, cujo sucessor,
Henrique IV, presenteou-o de volta ao duque de Berry, quando seu calendário se tornou o
modelo para outra geração de cópias, inclusive as Grandes Heures do duque de Berry
(Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 919). As Horas de Joana de Navarra foram em
certo momento atribuídas a Jean Pucelle, o artista das Horas de Joana d’Évreux (cf. K.
Morand, Jean Pucelle, Oxford, 1962, pp. 20-1 e 48-9); para a relação entre esses dois
manuscritos, veja especialmente Avril, Court of France, p. 68, “Pucelle’s ghost still haunts
the manuscript in a number of places”; e Boehm, “The Cloisters Hours and Jean Pucelle”,
pp. 89-116. O primeiro artista das Horas de Joana de Navarra, descrito na p. 441, foi
identificado principalmente por François Avril em Les Fastes du Gothiques, citando uma
reivindicação legal para o condado de Artois, datada de 1336 (Paris, Bibliothèque Nationale
de France, ms fr. 18437), e duas cópias de Tomás de Aquino, ambas agora na Itália
(Florença, Biblioteca Laurenziana, ms Fiesole 89, e Vaticano, Biblioteca Apostolica, cod.
Vat. Lat. 744, datada de 1343). Outras obras do terceiro artista, identificado por Avril como
Jean le Noir, incluem o Breviário de Carlos V e as Petites Heures do duque de Berry (Paris,
Bibliothèque Nationale de France, mss lat. 1052 e 18014). Para Jean le Noir como
personalidade histórica, veja os totalmente fascinantes volumes de R. H. Rouse e M. A.
Rouse, Manuscripts and their Makers, Commercial Book Producers in Medieval Paris,
1200-1500, Turnhout, 2000, I, pp. 265-7; e II, p. 79. O quarto artista, na numeração de
Cockerell, pintou os fólios 145v-150v e 183r-193v. A sugestão de que esse autor, que pode
ser o artista Mahiet, represente uma fase ulterior na iluminação de manuscritos foi feita por
M. Keane, “Collaboration in the Hours of Jeanne de Navarre”, in: A. Russakoff e K. Pyun
(Orgs.), Jean Pucelle, Innovation and Collaboration in Manuscript Painting, Turnhout, 2013,
pp. 131-48, esp. pp. 131-46 e p. 146, n. 1. A miniatura de são Luís de Marselha,
mencionada na p. 446, está no fólio 191r. A página na qual as armas de Filipe d’Évreux
foram pintadas sobre as de Carlos V é o fólio 52r. A primeira tentativa para identificar esse
manuscrito com o item no inventário do duque de Berry foi feita por F. Avril e P. D.
Stirnemann, Manuscrits enluminés d’origine insulaire VIIe-XXe siècle, Paris, 1987, pp. 177-
8, n. 219. O inventário é o L. Delisle, Recherches sur la librairie de Charles V, roi de
France, 1337-1380, II, Paris, 1907, p. 238*, n. 97. O artista inglês do frontispício é discutido
em K. L. Scott, Later Gothic Manuscripts, 1390-1490, Londres, 1990 (A Survey of
Manuscripts Illuminated in the British Isles, VI), II, p. 214. As Horas de Catarina de Valois,
mencionadas na p. 451, é o Londres, Biblioteca Britânica, Add. MS 65100; antes foi o
Upholland College, Lancashire, MS 42 (Christie’s, 2 December 1987, lote 34). O relato do
manuscrito no convento à Rue de Lourcines, descrito na p. 451, é A. Longnon, Documents
Parisiens sur l’iconographie de S. Louis publiés par Auguste Longnon d’après un manuscrit
de Peiresc conservé à la Bibliothèque de Carpentras, Paris, 1882, pp. 7-11, 21-66 e
lâminas VII-XII com gravuras de desenhos de Peiresc. Como observado na p. 452, o
manuscrito, claramente, não estava mais na posse das freiras quando da Revolução
Francesa; em 1790 a última abadessa declarou que elas possuíam apenas duzentos livros,
todos de natureza religiosa, e os comissários que inspecionaram a biblioteca não relataram
haver algo de valor. (A. Franklin, Les Anciennes Bibliothèques de Paris: Églises,
monastères, colléges etc.., III, Paris, 1873, pp. 401-2.) Sobre MacCarthy, veja C. Ramsden,
“Richard Wier and Count MacCarthy”, The Book Collector, 2, 1953, pp. 247-57; a sugestão
de que as Horas de Joana de Navarra eram um manuscrito de MacCarthy foi feita pela
primeira vez por S. De Ricci, Les Manuscrits de la collection Henry Yates Thompson, Paris,
1926, p. 60, n. 75. A biblioteca foi descrita em Catalogue des livres rares et précieux de la
bibliothèque de feu M. le comte de Mac-Carthy Reagh, I, i, Paris, 1815. A identificação com
o lote 392 na p. 64 é mais ou menos peremptória: foi descrito como um livro de orações
ricamente iluminado com miniaturas e molduras de grande beleza, tamanho pequeno,
encadernado em marroquim amarelo, com 542 páginas, que são exatamente 271 folhas,
totalmente exato, muito preciso para ser coincidência; a única discrepância está em que
acrescenta que muitas miniaturas são “en camaïeu gris”, e não são. A cópia intercalada do
catálogo, hoje no Grolier Club em Nova York, revela que a estimativa era de 150 francos,
mas que foi vendido por 350 (em comparação, o lote anterior, um livro de horas com 33
miniaturas, alcançou trinta francos, e o lote seguinte, outro, com 54 miniaturas, só atingiu
vinte francos; mas note-se que o lote 61, de MacCarthy, a incomparável Bíblia de
Gutenberg em velino, foi vendida por 6260 francos, e hoje é a cópia de Grenville, na
Biblioteca Britânica). Para Douce como comprador na venda de daquele dia, referido na p.
454, veja Munby, Connoisseurs, acima citado, p. 52. Muito se escreveu sobre Sydney
Cockerell, inclusive uma biografia, W. Blunt, Cockerell, Londres, 1964, e as minhas próprias
três conferências de Sandars, publicadas em The Book Collector, 55, 2006, pp. 49-72, 201-
23 e 339-66. Era irmão de Douglas Cockerell, mencionado na p. 25. O catálogo do
Burlington Fine Arts Club é o Exhibition of Illuminated Manuscripts, Londres, 1908: as
Horas de Joana de Navarra estão nas pp. 59-60, n. 130. O volume do diário de Cockerell
citado na p. 456 é o Biblioteca Britânica, Add. MS 52656. Sobre a relação especial de
Cockerell com Thomas Henry Riches (1865-1935), veja S. Panayotova, “Cockerell and
Riches”, The Medieval Book (o livro comemorativo de Hamel citado acima), pp. 377-86.
Devo meu relato do leilão a anotações acrescentadas na cópia do catálogo de venda da
Sotheby’s, Twenty-Eight Manuscripts and Two Printed Books, the Property of Henry Yates
Thompson, Sotheby’s, 3 jun. 1919, que Mara Hofmann me mostrou, e ao relato no The
Times, 4 jun. 1919. Há um texto de Alan Bell sobre Sir Charles Hagberg Wright no Oxford
Dictionary of National Biography; Nicholas Fabri de Peiresc, do Wright’s Roxburghe Club
Book, 1926, p. 7, menciona o livro de horas como “um exemplo de como apreciava
manuscritos raros e belos”. Apropriadamente, bustos de mármore de Peiresc e de Delisle
estão em seus pedestais ao pé da escadaria que leva ao departamento de manuscritos da
Bibliothèque Nationale de France. Expresso novamente minha gratidão a Charlotte Denoël
por ter tornado possível a última parte deste capítulo. Para obras de arte pilhadas
requisitadas por Göring, dispomos hoje de um assombroso inventário fotográfico de Les
Archives Diplomatiques e de J.-M. Dreyfus, Le Catalogue Goering, Paris, 2015, que cobre
apenas pinturas, e portanto não inclui as Horas de Joana de Navarra ou sua miniatura
faltante, mas registra outros itens pilhados de Alexandrine de Rothschild, p. 48.

10. CHAUCER DE HENGWRT


O Chaucer de Hengwrt está totalmente digitalizado e disponível para livre acesso no site da
Biblioteca Nacional de Gales (National Library of Wales). Foi precedido por E. Stubbs
(Org.), The Hengwrt Chaucer Digital Facsimile, um CD-ROM produzido pela Biblioteca
Nacional de Gales em colaboração com o Projeto Canterbury Tales na Universidade de
Montfort, Leicester, publicado por Scholarly Digital Editions, 2001; e por um fac-símile
impresso em preto e branco com tamanho levemente reduzido, que foi o que eu usei
principalmente: P. G. Ruggiers (Org.), The Canterbury Tales, Geoffrey Chaucer, A Facsimile
and Transcription of the Hengwrt Manuscript, with Variants from the Ellesmere Manuscript,
Norman, Okla., e Folkestone, 1979, com essencial acompanhamento de ensaios de D. C.
Baker, A. I. Doyle e M. B. Parkes. As descrições padrão do manuscrito são de J. M. Manley
e E. Rickert, The Text of the Canterbury Tales, Chicago, 1940, I, pp. 266-83; e II, pp. 477-
79; e M. C. Seymour, A Catalogue of Chaucer Manuscripts, I, The Canterbury Tales,
Aldershot, 1997, pp. 31-4.
The Guardian de 20 jul. 2004 está disponível on-line. A primeira declaração acadêmica de
Linne Mooney quanto a sua identificação foi “Chaucer’s Scribe”, Speculum, 81, 2006, pp.
97-138, e ela a põe num contexto maior em L. R. Mooney e E. Stubbs, Scribes and the
City, London Guildhall Clerks and the Dissemination of Middle English Literature, 1375-
1425, York, 2013, esp. capítulo 4, “Adam Pinkhurst, Scrivener and Clerk of the Guildhall, c.
1378-1410”, pp. 67-85. A frase sobre o júri do lado de fora, que se torna o Leitmotiv deste
capítulo, é usada numa resenha deste último livro por A. S. G. Edwards em The Library, 7
ser., 15, 2014, pp. 79-81. O Chaucer de Ellesmere apresentado na p. 465, agora é o San
Marino, Biblioteca Huntington, MS El. 26. C. 9. Creio que se deva a Henry Huntington
(1850-1927), oligarca de ferrovias, não ter sido rebatizado como “Chaucer de Huntington”.
Está disponível um fac-símile em cores, D. Woodward e M. Stevens (Orgs.), The New
Ellesmere Chaucer Facsimile, San Marino, Ca., e Tóquio, 1995, e numa versão
monocromática mais barata publicada no ano seguinte; para sua decoração, veja K. Scott,
Later Gothic Manuscripts, acima citado, pp. 140-3, n. 42, com referência ao manuscrito de
Hengwrt. Pus os olhos em seu estojo de vidro pela primeira vez em 1966, junto à Bíblia de
Gutenberg em velino, mas nunca o manuseei de verdade. A primeira sugestão de 1935 de
que Hengwrt e Ellesmere foram copiados pelo mesmo escriba, mencionada na p. 465, é da
p. 128 em J. S. P. Tatlock, “The Canterbury Tales in 1400”, Proceedings of the Modern
Languages Association, 50, 1935, pp. 100-39. O artigo seminal de Doyle e Parkes, citado
na p. 466 chamando o copista de “escriba B” é o A. I. Doyle e M. B. Parkes, “The
Production of Copies of the Canterbury Tales and the Confessio Amantis in the Early
Fifteenth Century”, pp. 163-210, in: M. B. Parkes e A. G. Watson (Orgs.), Medieval Scribes,
Manuscripts and Libraries, Essays Presented to N. R. Ker, Londres, 1978; suplementado
por A. I. Doyle, “The Copyist of the Ellesmere Canterbury Tales”, in: M. Stevens e D.
Woodward (Orgs.), The Ellesmere Chaucer, Essays in Interpretation, San Marino, Ca., e
Tóquio, 1995, pp. 49-67, o volume de comentários acompanhando o fac-símile. Os dois
outros manuscritos discutidos inicialmente por Doyle e Parkes como sendo o trabalho do
mesmo escriba são o Hatfield House, biblioteca de Lord Salisbury, Cecil Papers, Box S/1
(Troilus) e Cambridge, Trinity College, MS R.3.2 (Gower). Apenas para registro, o escriba
não pode ter sido o próprio Chaucer, já que o manuscrito de Gower tem quase com certeza
uma data posterior à da morte do poeta em 1408, oito anos após a do próprio Chaucer.
Malcolm Parkes nunca aceitou a identificação do escriba B como sendo Pinkhurst, como
me diz sua executora testamentária Pamela Robinson enviando-me fotocópias de suas
anotações finais sobre o assunto; Ian Doyle, até onde sei, declinou de se comprometer em
público, mas talvez por estar inclinado a ser simpático. A absurda acusação de que Sir
John Williams tenha sido Jack, o Estripador, aludida aqui na p. 468, apresentada por T.
Williams com H. Price, em Uncle Jack, Londres, 2005, quase não merece ser mencionada,
exceto para manter a atmosfera imparcial de um tribunal. Estou em dívida com Maredudd
ap Huw por ter lido um rascunho deste capítulo, e por corrigir minha ortografia em várias
palavras do galês, inclusive, e me embaraça dizê-lo, a de seu primeiro nome, que é
extremamente raro e antigo. Devo-lhe a informação na p. 471 de que o manuscrito foi
reencadernado em Aberystwyth usando material da encadernadora Gregynog Press. Na p.
472 eu observo que a caligrafia do escriba B é estranhamente similar à tipologia da
segunda edição, de Caxton, do Chaucer de 1483. É concebível que isso não seja
coincidência. Pinkhurst, se é que foi ele, era escrevente na Companhia dos Comerciantes
da qual Caxton era membro. Caxton escreve no prefácio que um conhecido seu lhe trouxe
um manuscrito (agora perdido) “that was very trewe and according unto hys [Chaucer’s]
owen first book by hym made” [“que era muito autêntico, e de acordo com o próprio
[Chaucer], o primeiro livro feito por ele”], o qual ele usou depois para sua nova edição, e
pode ter sido contactado por intermédio da Companhia. O manuscrito Troilus na Biblioteca
Parker, no Corpus Christi College, Cambridge, mencionado primeiramente na p. 474 é MS
61; há um fac-símile editado por M. B. Parkes e E. Salter, Troilus and Cryseide, Cambridge,
1978. Um criterioso guia dos códigos e do alceamento do Chaucer de Hengwrt, antes de a
questão do escriba se tornar controversa, é R. Hanna, “The Hengwrt Manuscript and the
Canon of the Canterbury Tales”, English Manuscript Studies, 1100-1700, 1, 1989, pp. 64-
84. Para a cópia de unidades chamadas peciae na Paris medieval, mencionadas na p. 480,
veja especialmente J. Destrez, La Pecia dans les manuscrits universitaires du XIIIe et du
XIVe siècle, Paris, 1935, e para exemplares sobreviventes de antigos peciae sendo
subsequentemente encadernados somente quando sua utilidade expirou, veja J. Destrez e
M. D. Chenu, “Exemplaria universitaires des XIIIe et XIVe siècles”, Scriptorium, 7, 1953, pp.
68-80. O poema de Chaucer dirigido a Adam, citado na p. 487, ocorre em Cambridge,
Trinity College, MS R.3.20, p. 367. Um debate recente sobre se as palavras devem ou não
ser entendidas literalmente, ou mesmo se são em geral de Chaucer, é travado em B. Mize,
“Adam, and Chaucer’s Words unto Him”, The Chaucer Review, 35, 2001, pp. 351-77; A.
Gillespie, “Reading Chaucer’s Words to Adam”, Chaucer Review, 42, 2008, pp. 269-83; J.
Sánchez-Marti, “Adam Pinkhurst’s ‘Necglygence and Rape’ Reconsidered”, English
Studies, 92, 2011, pp. 360-74; e A. S. G. Edwards, “Chaucer and ‘Adam Scriveyn’”, Medium
Aevum, 81, 2012, pp. 135-8. Sobre Shirley, que compilou o volume no qual o verso se
encontra, veja A. I. Doyle, “More Light on John Shirley”, Medium Aevum, 30, 1961, pp. 93-
101, e, num pequeno acréscimo a essa luz, M. Connolly, John Shirley, Book Production and
the Noble Household in Fifteenth-Century England, Aldershot, 1998. A sátira de Chaucer
sobre uma caligrafia “escrevencial” está em Troilus, livro II, linha 1026. O retrato de
Chaucer usando uma caneta está no fólio 153v do manuscrito de Ellesmere. O mesmo
atributo é ainda mais evidente no retrato medieval tardio de Chaucer que está na National
Portrait Gallery, no qual se vê o poeta manuseando uma caneta, o que F. W. Steer
identificou como uma evidência de que Chaucer era tido como um escrivão (A History of
the Worshipful Company of Scriveners of London, Londres, 1973, p. 68 e lâm. 1). Exemplos
de palavras no manuscrito de Hengwrt escritas por cima de rasuras, como mencionado na
p. 489, incluem “fader at the table” (fólio 3r) e “ypolita the queene” (fólio 14r), atribuíveis a
nada mais do que erros de cópia conscientemente corrigidos. No século XIV o nome
“Adam” era o 14o primeiro nome mais popular na Inglaterra, à frente de Peter, Ralph,
Geoffrey, Philip e outros; veja p. 106 de V. Davis, “The Popularity of late Medieval Personal
Names as Reflected in English Ordination Lists, 1350-1540”, in: D. Postles e J. T. Rosenthal
(Orgs.), Studies on the Personal Name in Later Medieval England and Wales, Kalamazoo,
2006, pp. 103-14 (Medieval Institute Publications, Studies in Medieval Culture, 14).
Tentativas anteriores para identificar o Adam do poema com uma pessoa real do comércio
de livros incluem a de B. M. Wagner em The Times Literary Supplement, 13 jun. 1929, p.
474; e de C. P. Christianson, A Directory of London Stationers and Book Artisans, 1300-
1500, Nova York, 1990, p. 149. David Pearson facilitou minha visita à Biblioteca Guildhall.
Para os juramentos feitos por membros da Companhia, veja Steer, Scriveners, como
acima, pp. 4-5. A entrada de Pinkhurst no registro é convenientemente reproduzida em
Mooney e Stubbs, Scribes and the City, como acima, p. 66, fig. 4.1. Os textos dos
compêndios nos formatos da escrita “anglicana” mencionados na p. 492 estão em M. B.
Parkes, English Cursive Book Hands, 1250-1500, Oxford, 1969, compactos a ponto de
beirar a ilegibilidade; mencionam o Chaucer de Ellesmere na p. xxiii, n. 1. Os doze tipos de
letra identificados por Mooney ocorrem num apêndice em seu artigo de 2006 “O escriba de
Chaucer”, pp. 123-5; a citação sobre o floreio ser “praticamente uma assinatura” é a última
linha na p. 125. O pedido que Chaucer fez ao rei por um vice está em Kew, National
Archives, C 81/1394/87, mas não chega a ter duas linhas, sobre as quais qualquer
avaliação é quase impossível. A discussão a favor e contra a identificação de Pinkhurst
como Escriba B ocorre em A. J. Fletcher, “The Criteria for Scribal Attribution: Dublin, Trinity
College, MS 244, Some Early Copies of the Works of Geoffrey Chaucer, and the Canon of
Adam Pynkhurst Manuscripts”, Review of English Studies, 58, 2007, pp. 597-632; e na
resposta, de S. Horobin, “The Criteria for Scribal Attribution: Dublin, Trinity College MS 244
Reconsidered”, Review of English Studies, 60, 2009, pp. 371-81; D. W. Mosser, “‘Chaucer’s
Scribe’ Adam and the Hengwrt Project”, in: M. Connelly e L. R. Mooney (Orgs.), Design and
Distribution of Late Medieval Manuscripts in England, York, 2008, pp. 11-40; S. Horobin,
“Adam Pinkhurst and the Copying of British Library Additional 35287 of the B Text of Piers
Plowman”, Yearbook of Langland Studies, 23, 2009, pp. 61-83; S. Horobin, “Adam
Pinkhurst, Geoffrey Chaucer, and the Hengwrt Manuscript of the Canterbury Tales”, The
Chaucer Review, 44, 2010, pp. 351-67; A. J. Fletcher, “What did Adam Pynkhurst (Not)
Write? A Reply to Dr Horobin”, Review of English Studies, 61, 2010, pp. 690-710; L. R.
Mooney, “Vernacular Literary Manuscripts and their Scribes”, in: A. Gillespie e D. L. Wakelin
(Orgs.), The Production of Books in England, 1350-1500, Cambridge, 2011, pp. 192-211; e
R. F. Green, “The Early History of the Scriveners’ Company Common Paper and its so-
called Oaths”, in: S. Horobin e L. R. Mooney (Orgs.), Middle English Texts in Transition, A
Festschrift Dedicated to Toshiyuki Takamiya on His 70th Birthday, Woodbridge, 2014, pp. 1-
20. Os três manuscritos listados na p. 495 como agora atribuídos a Pinkhurst são
Cambridge, Trinity College, MS B.15.17 (Piers Plowman), Aberystwyth, Biblioteca Nacional
de Gales, MS Peniarth 393B (Chaucer’s Boece), e um fragmento encadernado, na
Biblioteca da Universidade de Cambridge, MS Kk.1.3 (Canterbury Tales). Onde os
dedicados caçadores de Pinkhurst ainda não buscaram seriamente sua caligrafia foi em
livros contemporâneos em latim, pois seria de esperar que um escriba profissional
trabalhasse com as duas línguas (e Pinkhurst usa o latim no Livro do Juramento); nesse
sentido, a aparentemente alta incidência de manuscritos de Chaucer no grupo a ele
atribuído pode não refletir sua produção como um todo. Nas modestas bibliotecas de
Ricardo II e Henrique IV, comparadas na p. 497 com suas equivalentes na França, veja S.
H. Cavanaugh, “Royal Books, King John to Richard II”, The Library, 6 ser., 10, 1988, pp.
304-16 e J. Stratford, “The Early Royal Collections and the Royal Library to 1461”, in: L.
Hellinga e J. B. Trapp (Orgs.), The Cambridge History of the Book, III, 1400-1557,
Cambridge, 1999, pp. 255-66. Minha contagem de 77 libraires em Paris, na p. 498, foi
tirada de Rouse e Rouse, Manuscripts and their Makers, citado na bibliografia do capítulo
9; as estatísticas contrastantes para a Inglaterra são de Christianson, London Stationers
and Book Artisans, como acima. Para a escolha de Westminster por Caxton, em vez de
Londres, e a evidência de que o Chaucer de Caxton foi o primeiro livro impresso na
Inglaterra, agora datável no final de 1476 ou início de 1477, como na p. 499, veja L.
Hellinga, Caxton in Focus, The Beginning of Printing in England, Londres, 1982, pp. 67-8 e
80-1; e G. D. Painter e L. Hellinga, Catalogue of Books Printed in the XVth Century now in
the British Library, 11, England, ’t Goy-Houten, 2007, pp. 8 e 104. O principal argumento
contra a tese de Pinkhurst ser o Escriba B está em J. Roberts, “On Giving Scribe B a
Name, and a Clutch of London Manuscripts from c. 1400”, Medium Aevum, 80, 2011, pp.
247-70. Um razoável meio-termo é L. Warner, “Scribes, Misattributed: Hoccleve and
Pinkhurst”, Studies in the Age of Chaucer, 37, 2015, pp. 55-100, um artigo muito bom pelo
qual estou grato a Kari Ann Rand e ao próprio Lawrence Warner. O autor aceita que
Pinkhurst copiou o Trinity College B.15.17, mas não que ele foi o Escriba B de Hengwrt e
Ellesmere, o que eu acredito ser muito convincente. Finalmente, tenho um anúncio a fazer.
Achei que devia enviar um rascunho preliminar de meu capítulo à própria Linne Mooney.
Ela o leu com uma rapidez e um cuidado exemplares, fez várias sugestões úteis, a maioria
das quais incorporei, e, embora lamentasse minha conclusão, deu-lhe seu generoso
imprimatur. Isso é uma demonstração de nobreza e magnanimidade, e eu a saúdo sem
reservas.

11. O SEMIDEUS DE VISCONTI


Não há reproduções que abranjam todo o Semideus. Há boas fotografias de páginas
selecionadas em A. de Laborde, Les Principaux Manuscrits à peintures conservés dans
l’ancienne Bibliothèque impériale publique de Saint-Pétersbourg, I, Paris, 1936, pp. 83-4, n.
81; T. Voronova e A. Sterligov, Western European Illuminated Manuscripts of the 8th to the
16th Centuries in the National Library of Russia, St Petersburg, trad. de M. Faure,
Bournemouth e São Petersburgo, 1996, pp. 258-63, lâminas 334-47; e em The Art of XV-
XVI Century European Manuscripts, catálogo de exposição, Museu Estatal Hermitage, São
Petersburgo, 2005, pp. 260-5, n. 60, texto em russo. O manuscrito é descrito em Lublinsky,
“Le Semideus de Caton Sacco”, in: O. Dobiaš-Roždestvenskaja (Org.), Srednevekov’e v
rukopisjach publicnoi biblioteki, II, Leningrado, 1927, pp. 95-118 (Analecta Medii Aevi), em
russo com sumário em francês; e em O. Bleskina, Catalogus Codicum Manuscriptorum qui
in Bibliotheca Publica Petropolitana asservantur, São Petersburgo, 2011, p. 280, n. 713.
Devo várias dessas referências à própria Olga Bleskina, que gentilmente me forneceu
fotocópias. No entanto, o relato mais extenso do manuscrito é de longe a edição do texto
em P. Rosso, Il Semideus di Catone Sacco, Milão, 2001 (Quaderni di studi senesi, 95), esp.
pp. ccxxxvii-ccxlix.
Para a biblioteca de Visconti e seus inventários, usei o clássico E. Pellegrin, La
Bibliothèque des Visconti et des Sforza, ducs de Milan, au XVe siècle, Paris, 1955
(Publications de l’Institut de Recherche et d’Histoire des Textes, V), com o suplemento de
M. G. Ottolenghi, “La biblioteca dei Visconti e degli Sforza: gli inventari del 1488 e del
1490”, Studi Petrarcheschi, n.s., 8, 1991, pp. 1-238, que descreve o Semideus nas pp. 19-
21 e na lâmina V. A víbora que come uma criança, mencionada na p. 506, sobrevive no
emblema dos automóveis da fábrica Alfa Romeo, sediada em Milão. A descrição do
manuscrito em 1488 é “Item Semideus Catonis Saci papiensis cum cantonis sex argenteis
et claviculis duabus incompletis in carta cum coperta veluto cremesili et cum capsa una ex
coreo deaurato” (Ottolenghi, p. 32). Para o contexto da conquista da Lombardia, consultei
F. J. Baumgartner, Louis XII, Stroud, 1994; e M. Mallett e C. Shaw, The Italian Wars, 1494-
1559: War, State and Society in Early Modern Europe, Harlow, 2012. Para a transferência
da biblioteca de Visconti Sforza para Paris, veja L. Delisle, Le Cabinet des Manuscrits de la
Bibliothèque impériale, I, Paris, 1868 (Histoire générale de Paris), pp. 125-40; o Semideus
é referido na p. 133, n. 3. Não consigo resistir a contar que usei a maior parte do
adiantamento da editora Allen Lane para escrever este livro na compra de um fragmento do
manuscrito de Dante também dado em 1438 a Filippo Maria e da mesma forma saqueado
de Parma durante a ocupação francesa, estando agora a maior parte deles na Bibliothèque
Nationale de France, ms ital. 2017: mesmo agora o que foi disperso por aquela guerra
ainda não voltou, inteiro, às origens. As notáveis aquisições de Dubrowsky em Paris são
relatadas em P. Z. Thompson, “Biography of a Library: The Western European Manuscript
Collection of Peter P. Dubrovskii in Leningrad”, The Journal of Library History, 19, 1984, pp.
477-503; a gravura mencionada na p. 509 está na p. 13 de The Art of XV-XVI Century
European Manuscripts, acima citado. O Tito Lívio com o que parecem ser as armas dos
Medici, adquirido por Dubrowsky, é agora Cod. Cl. Lat. F.v.2 em São Petersburgo
(Voronova e Sterligov, pp. 264-5); os outros tesouros aqui listados são Lat.Q.v.I.18 (Beda),
Lat.Q.v.I.26 (Livro de Evangelho púrpura), Lat.Q.v.V.1 (Bestiário), Fr.F.v.I.I/1-2 (Bible
Historiale) e Fr.F.v.XV.6 (Martin le Franc). Um relato de minha única visita anterior a São
Petersburgo é C. de Hamel, “The Colloquium of the International Association of Bibliophilie
in Saint Petersburg, 12th-18th September 1994”, Bulletin du Bibliophile, 1995, pp. 11-5.
Para pesquisas dos manuscritos medievais em São Petersburgo, além dos catálogos
acima listados, veja T. P. Voronova, “Western Manuscripts in the Saltykov-Shchedrin
Library”, The Book Collector, 5, 1956, pp. 12-8 (que cita o Semideus na p. 14), e O.
Kristeller, Iter Italicum, Accedunt Alia Itinera, A Finding List of Uncatalogued or Incompletely
Catalogued Humanistic Manuscripts, V, Londres e Leiden, 1990, pp. 177-96 (que lista o
Semideus na p. 191). Não teria como dar referência exata alguma a Luís de Burgeney,
senhor de Moléans, sugerido na p. 516: era simplesmente inverificável, e a sorte bateu
numa busca na internet. Não compreendi inteiramente o primeiro dos poemas franceses
nas margens do que são hoje os fólios 2v-3r, impressos nas pp. 516-7 e que posso ter
transcrito rápido demais de sua atroz caligrafia, mas o teor é mais ou menos o seguinte:
“Chanter! Eu quero cantar em todos os lugares,/ No entanto quero que os deuses/ Reis,
príncipes e grandes monarcas/ No mundo inteiro e em seus jardins/ Tão diferentes que não
preciso dizer,/ Que a morte virá cedo demais para ver/ em seus próprios termos assim
como eu:/ O poder de navios e de castelos/ Como os vejo todos/Surgindo neste belo livro/
Independentemente dos deuses no céu” (Espero que tenha notado que as iniciais de minha
versão de cada verso em inglês formam o nome “Christopher”). Os poemas compartilham
as páginas com o cabeçalho do prefácio no fólio 2r, e com a abertura da dedicatória no fólio
2v, que começa: “Virginis laude esse omnem tuum…”. Kristeller, Iter Italicum, V, p. 191,
imprime a primeira palavra, que está manchada, como “Legis” e Rosso imprime a segunda
como “laudem”. O verso de Claudiano mencionado na p. 518 também aparece na última
página do manuscrito, e começa: “Iupiter in parvo cum verteret ethera vitro…”, Claudiano,
Carmina minora, LI, linhas 1-6). O famoso manuscrito de Suetônio, de Filippo Maria
Visconti, referido na p. 521, seguiu a mesma rota, por intermédio de Luís XII, para Paris, e
está hoje na Bibliothèque Nationale de France, ms ital. 131. Seu prolífico artista é
conhecido, nesse livro, como o Mestre de Vitae Imperatorum; cf. A. Melograni, “Appunti di
miniature lombarda: ricerche sul ‘Maestro delle Vitae Imperatorum’”, Storia dell’Arte, 70,
1990, pp. 273-314, e o verbete sobre F. Lollini em M. Bollati (Org.), Dizionario biografico dei
miniatori italiani, Secoli IX-XVI, Milão, 2004, pp. 587-9. As Horas de Visconi, citadas na p.
522, são divididas em dois volumes, ambos tendo chegado por rotas diferentes à Biblioteca
Nazionale em Florença, I, Banco rari cod. 397, e II, cod. Landau-Finaly 22; por
conveniência usei M. Meiss e E. W. Kirsch, The Visconti Hours, Londres, 1972, mas agora
existe um fac-símile, Il libro d’ore Visconti, Modena, 2003, acompanhado de um comentário
de A. Di Domenico e M. Bollati. O Breviário de Maria de Saboia é o Chambéry, Bibliothèque
Municipale, ms 4 (C. Heid-Guillaume e A. Ritz, Manuscrits médiévaux de Chambéry, Textes
et enluminures, Paris e Turnhout, 1998, pp. 30-43, com läminas). O De laudibus virginis,
descrito na p. 523, começa no fólio 9r e termina no fólio 36v; a citação de “Ouça-me com
paciência…” é do fólio 18r; a alusão a 1438 anos desde a Encarnação ocorre no fólio 13v.
A antologia na Biblioteca Britânica em Londres é Arundel MS 138 com o mesmo texto dos
fólios 220r-225v. A ilustração aqui descrita na parte III, o Semideus, ocorre nos fólios 39r (o
cavaleiro contemplando a Virgem e o Menino), 40r (a Fonte dos Catões), 42r (Filippo Maria
Visconti), 45v (o exército no passo da montanha), 59r (ataque à cidade), 64r (a travessia de
um rio), 69r (uma batalha encarniçada), 74v (um dia de descanso), 79v (ataque num vale),
84r (cavalos), 89r (ataque a uma cidadela no deserto), 91v-92r (condução e montagem de
maquinaria de cerco), 96r (uma batalha noturna), 99r (bombardeio de navios), 100r (uma
batalha naval), 103r (incêndio de fortes no rio) e 106v (construção de um pontão). As
comparações feitas com as Horas de Visconti nas pp. 528 e 531 estão no volume I do
manuscrito, fólio 40r (retrato de Gian Galeazzo Visconti), e no volume ii, fólio 101v (exército
do faraó). Os livros I de II de Sacco, Semideus, mencionados na p. 540 estão, sem o livro
III, em Fulda, Hessische Landesbibliothek, MS C. 10, fólios 168r-185v; um livro I sozinho
também existe na Basileia, Offentliche Universitätsbibliothek, MS F. IV. 2, fólios 160r-183r.
Sinto que devo acrescentar uma nota registrando minha dívida para com Anna Melograni,
que citei e a quem agradeci na p. 541. Ela sabia que eu provavelmente a citaria, o que faço
com imensa gratidão, mas também devo enfatizar que ela não tinha visto pessoalmente o
volume em São Petersburgo, e que se baseava apenas em eventuais imagens escaneadas
das fotografias publicadas. Qualquer um de nós que faça observações provisórias sobre
manuscritos que não examinamos o faz com extrema desconfiança. Se o que eu concluí se
demonstrar, com o tempo, estar totalmente errado, a culpa será minha, e não dela. Além de
Anna Melograni, sou grato aos conselhos de Kay Sutton quanto aos artistas lombardos
daquele período. O manuscrito em Copenhague é o Kongelige Bibliotek, MS Gl. Kgl. S
2092 4o. Está ilustrado em G. Algeri, “Un Boccaccio pavese del 1401 e qualche nota per
Michelino da Besozzo”, Arte Lombarda, n. 116, 1996, pp. 42-50. Embora o manuscrito de
Copenhague esteja datado de fevereiro de 1401, pode ser que, de acordo com o
calendário medieval, que sempre terminava em março, aquele ano seja na verdade o que
chamamos de 1402. Os iluminadores mencionados aqui nas pp. 543-5 aparecem todos em
Bollati, Dizionario biografico dei miniatori italiani, acima citado, com bibliografias. Pinturas
de Michelino da Besozzo incluem o painel Casamento da Virgem no Metropolitan Museum
em Nova York, Maitland F. Griggs Bequest, acc. 43.98.7. O quadro que apresenta Galassio
da Coreggio Historia Angliae, descrito na p. 544 está em Paris, Bibliothèque Nationale de
France, ms lat. 6041 D, folio 8 ter: veja M. Natale e S. Romano (Orgs.), Arte lombarda dai
Visconti agli Sforza, Milão, 2015, p. 230, n. III, 19 e lâmina na p. 203, que meu deu
gentilmente Francesco Radaeli. O possível envolvimento de Jacopo de San Pietro no
Semideus, introduzido aqui na p. 545, foi proposto primeiramente por Maria Grazia
Ottolenghi (“Biblioteca dei Visconti”, 1991) e foi aceito sem questionamento por Paolo
Rosso em sua edição do texto. Lectura, de Sacco, iluminado e reunido por Jacopo em
1458, é o Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 4589; sua inscrição está no fólio
366r (Alexandre Tur, da Bibliothèque Nationale, forneceu-me figuras, assim que pedi). O
Beato do século XI encadernado por ele é o Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 6400
A, com inscrição no fólio 107v, “Jacobus de Sancto Petro bidelus ligavit”. Um argumento
convincente de que a imprensa foi introduzida na Itália em 1462-3, como mencionado na p.
547, é apresentado em Christie’s, 23 nov. 1998, lote 18, que descreve um item hoje na
Biblioteca Scheide, Princeton. Para a obra de Jacopo de San Pietro como estampador, veja
R. Proctor, An Index to the Early Printed Books in the British Museum, from the Invention of
Printing to MD, Londres, 1898, pp. 482-3; e A. Coates, K. Jensen, C. Dondi, B. Wagner e H.
Dixon, A Catalogue of Books Printed in the Fifteenth Century, now in the Bodleian Library,
II, Oxford, 2005, p. 796, n. C-216.

12. AS HORAS DE SPINOLA


As Horas de Spinola, assim como as Horas de Joana de Navarra, é um sério candidato a
fac-símile de fina arte; ainda não foi tema de nenhuma monografia. Excelentes imagens
estão disponíveis no site do Museu J. Paul Getty (vá para “Getty guide” e depois “Art
object, details”). A descrição mais detalhada em catálogo ainda é J. M. Plotzek, Die
Handschriften der Sammlung Ludwig, II, Colônia, 1982, pp. 256-85. O manuscrito foi
exibido como n. 124 em T. Kren e S. McKendrick, Illuminating the Renaissance, The
Triumph of Flemish Manuscript Painting in Europe, Los Angeles, 2003, pp. 414-7, com
extensa bibliografia na p. 529.
As numerosas visitas ao Museu Getty ao longo dos anos foram agradáveis graças à
hospitalidade de Thom Kren. Sua sucessora como Curadora de Manuscritos, Beth
Morrison, teve a generosidade de ler o rascunho deste capítulo e fez úteis sugestões. As
Horas de Spinola nunca apareceram num catálogo publicado de Kraus, mas sua passagem
pela firma foi comemorada em seu In Retrospect, A Catalogue of 100 Outstanding
Manuscripts sold in the last four decades by H. P. Kraus, Nova York, 1978, pp. 224-7, n. 91.
Esse volume foi a primeira revelação do dr. Ludwig como um colecionador. Os brasões de
Spinola foram primeiramente identificados por Hertha Bauer, a bibliotecária de referência
em H. P. Kraus, como me diz Roland Folter, ex-diretor administrativo da firma. Sua mulher,
Mary-Ann Folter, filha do sr. Kraus, gentilmente leu também uma versão inicial deste
capítulo e me contou do preço de venda do dr. Ludwig. Acrescentou que ele tinha o hábito
de chegar sem aviso prévio, de olhar os manuscritos e depois fazer ofertas para todo um
grupo de itens de uma só vez, e com isso valores individuais só eram citados para fins
contábeis. Sobre a história da oração privada, como se reflete num livro de horas, aludida
na p. 568, veja E. Duffy, Marking the Hours, English People & their Prayers, 1240-1570,
New Haven e Londres, 2006. Sobre o uso de livro de horas como catalisador para imaginar
a Virgem Maria com efetiva participação nas orações da Virgem Maria, veja C. de Hamel,
“Books of Hours, Imaging the Word”, in: J. Sharpe e K. Van Kampen (Orgs.), The Bible as
Book, The Manuscript Tradition, Londres, 1998, pp. 137-43. Os sete Salmos Penitenciais
mencionados na p. 576 e também listados antes entre os componentes das Horas de
Joana de Navarra são, na numeração da Vulgata latina e com sua associação a cada um
dos pecados mortais, os Salmos 6 (orgulho), 31 (cobiça), 37 (ira), 50 (luxúria), 101 (gula),
129 (inveja) e 142 (preguiça). A citação do catálogo de exposição da Royal Academy na p.
577 está em Illuminating the Renaissance, como acima, p. 414. A metáfora de L. M. J.
Delaissé sobre os montes e o topo da montanha, evocada na p. 581, é usada na p. 209 de
sua revisão do primeiro volume de M. Meiss, French Painting in the Time of Jean de Berry
(citada nas referências do capítulo 9, acima), The Art Bulletin, 52, 1970, pp. 206-12,
referência que devo a Sandra Hindman. O problema de integrar a natureza bidimensinonal
de uma página e um manuscrito com o atual realismo tridimensional, mencionado nas pp.
581-2, foi primeiramente expresso por Otto Pächt (em seu The Master of Mary of Burgundy,
Londres, 1948; e Buchmalerei des Mittelalters, Eine Einführung, Munique, 1984, pp. 198-
202) e pelo maior de seus alunos, Jonathan Alexander (em, por exemplo, seu The Book of
Hours of Engelbert of Nassau, Nova York, 1970, páginas não numeradas). As
extraordinárias camadas de ilusão nos manuscritos de Gante-Bruges são discutidas em J.
H. Marrow, Pictorial Invention in Netherlandish Manuscript Illumination of the Late Middle
Ages, The Play of Illusion and Meaning, Louvain, 2005 (Corpus of Illuminated Manuscripts,
Low Countries Series, II), incluindo muitas referências às Horas de Spinola. Na p. 582, eu
menciono painéis de texto nas Horas de Spinola que se tornam ilusões em três dimensões:
páginas que servem de referência a isso são os fólios 8v-9r (rolos caídos sobre a página),
fólios 10v-11r (texto pregado na página), fólios 40r e 165v (anjos segurando o texto) e fólios
56v-57r (textos articulados como uma persiana). Para as molduras em Gante-Bruges veja
C. Fisher, Flowers in Medieval Manuscripts, Londres, 2004; e A. M. W. As-Vijvers, Re-
Making the Margin, The Master of the David Scenes and Flemish Manuscript Painting
around 1500, trad. de D. Webb, Turnhout, 2013, a qual não é tão diretamente relevante
quanto sugere seu título. As sombras das flores caem na direita porque os artistas
trabalhavam tendo a janela à direita, para dar o máximo de luz a uma pessoa destra, como
é mostrado nos dois autorretratos do iluminador de Bruges Simon Bening (cf. S. Hindman,
The Robert Lehman Collection, IV, Illuminations, Nova York e Princeton, 1997, pp. 112-9, n.
14). Já me perguntei uma vez se seria possível datar a execução das molduras florais dos
manuscritos de Gante-Bruges aos meses específicos em que flores específicas estavam
em floração, mas todas as estações do ano estão misturadas, o que demonstra que os
artistas não copiavam diretamente de modelos vivos em suas oficinas, por mais
naturalistas que pareçam, mas de esboços pré-preparados. Os livros de horas famosos
que são primos em primeiro grau das Horas de Spinola, listados na p. 583, são: Viena,
Österreichische Nationalbibliothek, Cod. 1907 (o primeiro livro de orações do imperador
Maximiliano, c. 1486): fac-símile, W. Hilger (Org.), Das ältere Gebetbuch Kaiser Maximilians
I, Cod. Vind. 1907, Graz, 1973 (Codices Selecti, 39); Nápoles, Biblioteca Nazionale di
Napoli, Ms I.B. 51 (as Horas de La Flora, não posterior a 1498): fac-símile, Horae Beatae
Mariae Virginis, La Flora, Napoli, Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuel III, Ms I.B.51, Turim,
2008; Österreichische Nationalbibliothek, Cod. 1897 (as Horas de Jaime IV, c. 1502-3): fac-
símile, F. Unterkircher (Org.), Das Gebetbuch Jakobs IV von Schottland, Graz, 1987
(Codices Selecti, 85); Cleveland, Ohio, Museum of Art, Leonard C. Hanna Jr. Fund,
1963.256 (as Horas de Isabel, a Católica, não posterior a 1504): fac-símile, The Hours of
Queen Isabella the Catholic, The Cleveland Museum of Art, Cleveland/Ohio, Leonard C.
Hanna Jr. Fund, 1963.256, Commentary Volume, Gütersloh e Munique, 2013,
acompanhado de um volume com comentário de L. De Kesel, 2013 (estou em dívida com
Lieve De Kesel não só por ter me dado um exemplar de seu livro, que tem muitas
referências às Horas de Spinola, mas também por ter lido um dos primeiros rascunhos
deste capítulo e pelas úteis sugestões, especialmente nas atribuições a artistas); Perth,
Austrália, Coleção Kerry Stokes, LIB.2014.017, antes Viena, Cod. Ser. Nov. 2844 (o Livro
de Orações de Rothschild, c. 1515): fac-símile, E. Trenkler (Org.), Rothschild-Gebetbuch,
Cod. Vind. S.N. 2844, Graz, 1979 (Codices Selecti, 67), F. Unterkircher, Das Rothschild-
Gebetbuch, Die schönsten Miniaturen eines flämischen Stundenbuches, Graz, 1984; e
coleção particular, antes de lorde Astor (as Horas de Albrecht de Brandemburgo, c. 1522-
23), vendida por último na Sotheby’s, 19 de junho de 2001, lote 36, catalogada por mim. Os
primos de segundo grau, por assim dizer, são os Breviários reais. Os aqui listados são:
Londres, Biblioteca Britânica, Add. MS 18851 (o Breviário de Isabella de Castela não
posterior a 1497): fac-símile, The Isabella Breviary, The British Library, London, Add. Ms.
18851, Barcelona, 2012, acompanhado de comentários de S. McKendrick, E. R. García e
N. Morgan; Antuérpia, Museu Mayer van der Bergh, inv. n. 946 (provavelmente breviário
para Manuel I de Portugal, c. 1500): cf. B. Dekeyzer, Layers of Illusion, The Mayer van den
Bergh Breviary, trad. de L. Preedy, Gent e Amsterdam, 2004; Nova York, Biblioteca
Morgan, M 52 (o Breviário de Leonor de Portugal, início do século XVI); e Veneza,
Biblioteca Marciana, Ms. lat. XI. 67 (o Breviário de Grimani, c. 1515-20); cf. A. Mazzucchi
(Org.), Breviario Grimani, Ms Lat. I 99 = 2138, Biblioteca Nazionale Marciana, Venezia,
Roma, 2009. Para regulamentos da guilda que exigem que clientes negociem diretamente
com os artistas, na p. 584, veja M. Smeyers, Naer nature ghelike, Vlaamse Miniaturen voor
Van Eyck (c. 1350-ca.1420), Louvain, 1993, p. 93 (referência que devo a Evelien
Hauwaerts). Para a isenção concedida a artistas empregados pela corte, veja p. 191 em L.
Campbell, “The Art Market in the Southern Netherlands in the Fifteenth Century”, Burlington
Magazine, 118, pp. 188-98. Para escribas conhecidos por livros de horas do sul dos Países
Baixos inclusive os dois mencionados na p. 586, veja R. Gay, “Scribe Biographies” in: E.
Morrison e T. Kren (Orgs.), Flemish Manuscript Painting in Context, Recent Research, Los
Angeles, 2006, pp. 182-8. O Livro de Horas de Carlos V é o Nova York, Biblioteca Morgan,
M 491. Sobre o almoço no Getty (p. 586), fui lembrado de uma observação casual que fiz
em meu livro A History of Illuminated Manuscripts, Oxford, 1986, pp. 168-9, referindo-me à
derrocada do comércio de manuscritos em Paris durante a ocupação militar, “Pessoas
famintas não compram livros”: numa visita anterior ao Departamento de Manuscritos do
Getty fiquei encantado ao ver essa sentença fotocopiada e ampliada num pôster na parte
de trás de uma porta. A divisão de trabalho entre os cinco principais artistas das Horas de
Spinola, listada nas pp. 586-7, é a seguinte: 1) o Mestre de Jaime IV pintou os fólios 1v-65r,
92v-109v, 130v-149r, 184v-185r, 256v-257v e 259v-260v; 2) o Mestre do primeiro Livro de
Orações de Maximiliano pintou os fólios 85v-89v, 165v, 223v-245v, 248v-255v, 264v-270v e
276v-290v; 3) o Mestre da Bíblia de Lübeck pintou os fólios 83v-84r, 153v, 166r, 247v, 258v,
261v e 272v; 4) o Mestre do Livro de Orações de Dresden pintou os fólios 110r-120r; e 5) o
Mestre do Livro de Orações de c. 1500 pintou os fólios 125v-126r. O próprio “Livro de
Orações” de Dresden é o Dresden, Sächsische Landesbibliothek Ms A 311, um manuscrito
decepcionante, bem estragado pela umidade. Teria sido melhor mencioná-lo depois do
muito melhor Livro de Horas de Carpentin, pouco conhecido até recentemente e ainda de
propriedade privada, para o qual indico A. Bovey, Jean de Carpentin’s Book of Hours, The
Genius of the Master of the Dresden Prayer Book, London, 2011; veja também B.
Brinkmann, Die Flämische Buchmalerei am Ende des Burgunderreichs, Der Meister des
Dresdener Gebetbuchs und die Miniauristen seiner Zeit, Turnhout, 1997, que discutem as
Horas de Spinola, especialmente nas pp. 325-9. Os outros belos manuscritos do Mestre
dos Livros de Orações de c. 1500, mencionados na p. 587, são Londres, Biblioteca
Britânica, Harley MS 4425 (Roman de la Rose) e Viena, Österreichische Nationalbibliothek,
Cod. 1862 (as Horas de Margarida da Áustria). O incomparável Très Riches Heures do
duque de Berry frequentou, entrando e saindo, vários capítulos deste livro. Ele aqui está de
volta, na p. 595. Atualmente é o Chantilly, Musée Condé, ms 65. Há inúmeras reproduções
e estudos sobre ele, inclusive o fac-símile, R. Cazelles e J. Rathofer (Orgs.), Les Très
Riches Heures du Duc de Berry, Lucerna, 1984, que também reproduz a encadernação. O
Livro de Orações de Rothschild, acima mencionado, foi o Christie’s, Nova York, 29 de
janeiro de 2014, lote 157, e agora está descrito em K. Sutton e M. M. Manion, Revealing
the Rothschild Prayer Book, c. 1505-1510, Canberra, 2015; e K. Challis, in: M. M. Manion
(Org.), An Illumination, The Rothschild Prayerbook and Other Works from the Kerry Stokes
Collection, c. 1280-1685, Perth, 2015, pp. 14-35, n. 1. Estou em grande dívida com a
própria Kate Challis e especialmente com Kerry e Christine Stokes e sua curadora, Erica
Persak, por me facultarem o exame do manuscrito quando estava em Melbourne. Os
inventários de Margarida da Áustria estão publicados em M. Debae, La Bibliothèque de
Marguérite d’Autriche, Essai de reconstitution d’après l’inventaire de 1523-1524, Louvain e
Paris, 1995; os itens que podem ser o Livro de Orações de Rothschild e as Horas de
Spinola estão na p. 88, n. 53, e p. 494, n. 367. Para a vida de Margarida, consultei J. de
Iongh, Margaret of Austria, Regent of the Netherlands, trad. de M. D. H. Norton, Londres,
1954. Para seu patrocínio de manuscritos, veja D. Eichberger, “Devotional Objects in Book
Format: Diptychs in the Collection of Margaret of Austria and her Family”, in: Manion e Muir
(Orgs.), Art of the Book, acima citado para o capítulo 9, pp. 291-323 ; D. Eichberger, Leben
mit Kunst — Wirken durch Kunst, Sammelwesen und Hofkunst unter Margarete von
Österreich, Regentin der Niederlande, Turnhout, 2002; e H. W. Wijsman, Luxury Bound:
Illustrated Manuscript Production and Noble and Princely Book Ownership in the
Burgundian Netherlands (1400-1550), Turnhout, 2010, esp. pp. 201-7. A presença das Très
Riches Heures na posse de Margarida da Áustria explica como as figuras de seu famoso
calendário foram copiadas no Breviário de Grimani por volta de 1515-20, bem
possivelmente para a própria Margarida antes de passar à posse do cardeal Domenico
Grimani (1461-1523). O Codex Aureus de Echternacht ou os Evangelhos Dourados de
Henrique III mencionados na p. 601 é agora o El Escorial, Biblioteca de San Lorenzo, Cod.
Vitr. 17; é um dos manuscritos mais espetaculares que já vi, e poderia facilmente ter
merecido um capítulo neste livro, exceto pelo fato de que outros dois Livros de Evangelhos
já foram apresentados; As Horas de Berlim de Maria da Borgonha é o Berlim, Staatliche
Museen und Preussischer Kulturbesitz, Kupferstichkabinett, 78.B.12. Contém uma imagem
única em seu Ofício dos Mortos, no fólio 290v, mostrando uma mulher aristocrata num
cavalo a galope perseguida por esqueletos com lanças: Maria da Borgonha morreu num
acidente de montaria em 27 de março de 1482, quando sua filha tinha dois anos de idade.
O manuscrito que pode ter sido dado a Margarida da Áustria mais tarde por Filipe, o Belo, é
o Österreichische Nationalbibliothek Cod. 1862, mencionado há pouco. Devo essas duas
sugestões de identificação dos primeiros Livros de Horas de Margarida a Wijsman, como
acima, pp. 202 e 206. As Horas de Bona de Saboia completadas para Margarida da Áustria
é o Londres, Biblioteca Britânica, Add. MS 34294, para o qual veja M. L. Evans, The Sforza
Hours, Londres, 1992, e o fac-símile Das Stundenbuch der Sforza, com um volume de
comentários de M. L. Evans e B. Brinkmann, Lucerna, 1994. Em julho de 2015 o retrato de
Margarida da Áustria do Museum voor Schone Kunsten em Gante, descrito na p. 603, foi
colocado, num empréstimo a longo prazo, no Kunsthistorisches Museum em Vienna. As
Horas de Viena de Maria da Borgonha é o Viena, Österreichische Nationalbibliothek, Cod.
1857; sua famosa miniatura da duquesa sentada a uma janela que dá para uma igreja está
no fólio 14v. Para a exata identificação dos membros da família Spinola que possuíram as
Très Riches Heures e para as circunstâncias da venda em Gênova, sou imensamente grato
a Emmanuelle Toulet por seu conselho e por uma visão prévia de seu artigo então
projetado “Du ‘manuscrit de Gênes’ aux ‘Très Riches Heures du duc de Berry’” que seria
incluído em P. Stirnemann e I. Villela-Petit (Orgs.), Les Très Riches Heures de Jean de
Berry, a ser publicado por Edizioni Panini em Roma; para o envolvimento de Rothschild
veja R. Cazelles, Le Duc d’Aumale, Prince aux dix visages, Paris, 1984, p. 197.
Encontramos outros colecionadores Rothschild no capítulo 9. Para o barão Adolphe, veja
meu Rothschilds and their Collections, pp. 5-7, e para o barão Anselm, pp. 7-12. Devo dizer
que minha ideia de que os três grandes manuscritos aqui podem ter viajado juntos desde o
século XVI até 1856 não está definitivamente provada, mas se quaisquer leitores deste
puderem dar uma explicação melhor, eu ficaria muito contente de ouvi-la deles. O livro que
consultei na Staatsbibliothek em Munique em 1975, como relatado na p. 606, foi de F.
Winkler, Die Flämische Buchmalerei des XV und XVI Jahrhunderts, Leipzig, 1925; a edição
atualizada, G. Dogaer, Flemish Miniature Painting in the 15th and 16th Centuries,
Amsterdam, 1987, realmente inclui e ilustra as Horas de Spinola nas pp. 165-6. O artigo
com o título “Mystery Manuscript Could Top £100,000” estava em Antiques and Art Weekly,
26 abr. 1976, p. 21. O relato de H. P. Kraus está no capítulo 43, “One Manuscript for
$750,000”, de sua autobiografia, A Rare Book Saga, Londres, 1979, pp. 319-23 (a citação
de ter feito o lance pessoalmente é da p. 320). O manuscrito foi a Sotheby’s, 5 jul. 1976,
lote 68, pp. 36-41 do catálogo de venda.
Créditos das imagens

Os números de página desta seção referem-se à primeira edição impressa.

Frontispício. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 85v, detalhe
p. 18. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, primeira capa na encadernação,
mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66 (© The Master and Fellows,
Corpus Christi College)
p. 21. Matthew Parker, detalhe de uma gravura colada no lado de dentro da última capa de
Cambridge, Corpus Christi College, MS 582, Estatutos da faculdade (© The Master and
Fellows, Corpus Christi College)
p. 22. Biblioteca Parker, Corpus Christi College, Cambridge (© The Master and Fellows,
Corpus Christi College)
p. 25. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, fólios 129v-130r, fotografado por Steven
Archer (© The Master and Fellows, Corpus Christi College)
p. 29. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, fólio 1r (© The Master and Fellows,
Corpus Christi College)
p. 31. Cambridge, Corpus Christi College, MSS 286, fólio 125r (© The Master and Fellows,
Corpus Christi College)
p. 33. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, folha de guarda traseira, fólio v recto(©
The Master and Fellows, Corpus Christi College)
p. 34. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, fólio 129v (© The Master and Fellows,
Corpus Christi College)
pp. 36-37. Cambridge, Corpus Christi College, MS S 286, fólios 74v-75r (© The Master and
Fellows, Corpus Christi College)
p. 38. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, folha de guarda traseira, fólio i verso,
detalhe (© The Masterand Fellows, Corpus Christi College)
p. 39. Cambridge, Trinity Hall, MS 1, fólio 77r, detalhe (cortesia da Master and Fellows,
Trinity Hall)
pp. 44-5. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, fólios 133v-134r (© The Master and
Fellows, Corpus Christi College)
p. 46. Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, fólio 235v, detalhe (© The Master and
Fellows, Corpus Christi College)
p. 51. A história da visita da rainha de Sabá a Salomão, pintada em 1965 (© Royal Asiatic
Society, Londres, e Bridgeman Images)
p. 53. Livro de Evangelhos de Theodelinda, primeira capa. Museo e Tesoro del Duomo,
Monza (© 2016, Scala, Florença)
p. 56. Estocolmo, Kungliga Biblioteket, MS A 135, fólio 9v (© Biblioteca Nacional da Suécia)
p. 58. (à esq.) Cambridge, Corpus Christi College, MS 286, fólio 125r, detalhe (© The
Master and Fellows, Corpus Christi College); (à dir.) Bayeux, Musée de la Tapisserie
(Alamy)
p. 62. Papa Bento XVI venerando os Evangelhos de Santo Agostinho (Getty Images)
p. 66. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, primeira capa na
encadernação (Todas as imagens desse manuscrito são reproduzidas com a permissão
de MiBACT; reproduções a partir destas são estritamente proibidas)
p. 70. Igreja de Jarrow (Alamy)
p. 71. Pedra inaugural, igreja de Jarrow
p. 75. San Salvatore (Alamy)
p. 78. Sala de leitura, Biblioteca Laurenziana, Florença (com a permissão de MiBACT;
reprodução a partir desta estritamente proibida)
p. 81. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, encadernação
pp. 82-3. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, fólios 1v-2r
p. 84. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, fólio 796v
pp. 88-9. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, fólios 6v-7r
p. 92. Londres, Biblioteca Britânica, Cotton MS Nero D.IV, fólio 25v (© The British Library
Board)
p. 95. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, fólio 11r
p. 98. (à esq.) William Greenwell (com permissão do cabido da Catedral de Durham); (à
dir.) British Library, Add. MS 37777 (© The British Library Board)
pp. 102-3. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, fólios 303v-304r
p. 104. Londres, British Library, Add. MS 45025, fólio 2v (© The British Library Board)
p. 106. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, Ms Amiatino 1, fólio 15r, detalhe
p. 107. Caixa relicário, Museo San Salvatore, Abadia San Salvatore, Toscana (cortesia de
Don Giampaolo rev. do Riccardi, padre na paróquia da abadia. Salvatore no Monte
Amiata)
p. 110. Dublin, Trinity College, MS 58, primeira capa da encadernação mostrada na mesma
escala do Codex Amiatinus na p. 66 (© The Board of Trinity College, Dublin. Nenhuma
das imagens desse manuscrito pode ser reproduzida a partir de software. Para
reprodução, devem ser feitas solicitações ao chefe de Recursos Digitais e Serviços de
Imagem, Trinity College Dublin, pelo correio ou e-mail para digitalresources@tcd.ie)
p. 115. O Salão Longo, Trinity College, Dublin (Alamy)
p. 119. Estojos de madeira para o Livro de Kells (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 121. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 1r (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 122. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 2v (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 124. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 6v (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 126. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 7v (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 129. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 12r, detalhe (© The Board of Trinity College,
Dublin)
pp. 130-1. Dublin, Trinity College, MS 58, fólios 28v-29r (© The Board of Trinity College,
Dublin)
p. 133. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 34r (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 134. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 83v (© The Board of Trinity College, Dublin)
p. 137. Cédula irlandesa de cinco libras, reverso (Getty Images)
p. 138. Fotografado da lâmina III em Edward Sullivan, The Book of Kells, 1914
p. 143. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 297v, detalhe (© The Board of Trinity College,
Dublin)
p. 144. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 200v, detalhe (© The Board of Trinity College,
Dublin)
p. 146. Dublin, Trinity College, MS 58, fólio 337r, detalhe (© The Board of Trinity College,
Dublin)
p. 148. James Ussher, pintado por Cornelis Jansen, 1641 (© Jesus College, Oxford)
p. 149. Dublin, Trinity College, MS 58, folha de guarda anterior, detalhe (© The Board of
Trinity College, Dublin)
p. 151. Fotografado da lâmina XX em Edward Sullivan, The Book of Kells, 1914
p. 153. C. Lindsay Ricketts, cópia do fólio 8r do Livro de Kells (cortesia da Biblioteca Lilly,
Universidade de Indiana, Bloomington)
p. 155. (à esq.) James Joyce, 1934 (Roger-Viollet, Paris / Bridgeman Images); (à dir.)
Edward Sullivan, The Book of Kells, 1914, lâmina XI
p. 158. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, primeira capa na
encadernação, mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66 (cortesia da
Universiteitsbibliotheek, Leiden)
p. 160. Figura em bronze de Carlos Magno, detalhe. Musée du Louvre, Paris. (© RMN-
Grand Palais (musée du Louvre) / Jean-Gilles Berizzi)
p. 161. Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, cod. Vat. Lat. 3225, fólio XLI recto (© 2016.
Photo Fine Art Images/ Heritage Images/ Scala, Florença
p. 164. Biblioteca da Universidade de Leiden (© SV, Países Baixos)
p. 167. Biblioteca da Universidade de Leiden, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólio 2r
pp. 172-3. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólios 3v-4r
pp. 174-5. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólios 6v-7r
pp. 176-7. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólio 12v ao lado de 14r
(falta o fólio 13)
pp. 178-9. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólios 16v-17r
pp. 180-1. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólios 20v-21r
pp. 182-3. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólios 80v-81r
p. 188. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólio 93v
p. 193. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 5927, fólio 157r
p. 197. Boulogne-sur-Mer, Bibliothèque Municipale, ms 188 fólios 29v-30r (© Bibliothèque
Municipale, Boulogne-sur-Mer)
p. 199. Leiden, Universiteitsbibliotheek, Cod. Voss. Lat, Q 79, fólio 1r, detalhe
p. 202. Christina da Suécia como Minerva, quadro de Erasmus Quellinus. Musée de la
Chartreuse, Douai (Bridgeman Images)
p. 205. Grotius, Syntagma Arateorum, 1600 (The Hague, Bibliotheek van het Vredespaleis);
Cellarius, Atlas Coelestis, 1660 (Wikimedia Commons)
p. 208. Nova York, Biblioteca Pierpont Morgan, MS M. 644, primeira capa na
encadernação, mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66
p. 212. Sala de leitura Fairchild, Biblioteca Pierpont Morgan (© 2007, The Morgan Library &
Museum. Photo: Schecter Lee)
p. 215. Londres, Biblioteca Britânica, Add. MS fólio 46 200, fólio 102r-103v (© The British
LibraryBoard)
p. 217. Guglielmo Libri, desenho atribuído a Éduouard Dubufe (cortesia de Arthur Freeman
e Janet Ing Freeman)
p. 220. (à esq.) John Pierpont Morgan, Jr. (Biblioteca do Congresso, Washington, D.C.); (à
dir.) Belle da Costa Greene (Getty Images)
p. 221. (à esq.) Henry Yates Thompson, fotografia de Sir Benjamin Stone (© National
Portrait Gallery, London); (à dir.) Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, ex-líbris
dentro da primeira capa.
p. 223. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 1r
p. 224. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 2v
p. 225. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio, 4v, detalhe
p. 227. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 10r
p. 231. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 133r
p. 233. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 23r
p. 235. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 27r
pp. 236-7. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólios 33v-34r
p. 239. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 79r
p. 243. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 151r
p. 245. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 26r
p. 247. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 644, fólio 293r, detalhe
p. 249. Nova York, Pierpont Morgan Library, MS M. 429, fólio 183r, detalhe
p. 255. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, primeira capa na encadernação,
mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66 (Todas as imagens desses
manuscritos estão reproduzidas por cortesia da Biblioteca Bodleiana, Universidade de
Oxford)
p. 256. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 287v
p. 259. Sir Thomas Bodley, miniatura por Nicholas Hilliard (Biblioteca Bodleiana,
Universidade de Oxford)
p. 264. Biblioteca do duque de Humfrey’, Biblioteca Bodleiana, Universidade de Oxford
(Alamy)
p. 265. Sala de leitura de livros raros e manuscritos, Weston Building, Biblioteca Bodleiana,
Universidade de Oxford (© Will Pryce)
p. 266. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 287v, detalhe
pp. 270-1. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólios v verso — vi recto
pp. 274-5. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólios 38v-39r
p. 276. (à esq.) Bamberg, Staatsbibliothek, cod. Msc. Patr. 5, fólio 1v, detalhe (foto: Gerald
Raab); (à dir.) Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 36r, detalhe
p. 277. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 188r, detalhe
p. 282. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 7r, detalhe
p. 283. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 227r, detalhe
p. 285. Salisbury, Cathedral Library, MS 25 (com permissão do deão e do cabido da
catedral de Salisbury)
p. 286. Catedral de Durham (Alamy)
p. 287. Durham, Cathedral Library, MS A.II.4, fólio 1r, detalhe (com permissão do cabido da
Catedral de Durham)
p. 289. Durham, Cathedral Library, MS B.II.13, fólio 102r, detalhe (com permissão do
cabido da Catedral de Durham)
p. 294. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 104r, detalhe
p. 295. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólio 270v, detalhe
p. 297. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 13765, fólio B recto
pp. 300-1. Oxford, Bodleian Library, MS Bodley 717, fólios vi verso — 1 recto
p. 307. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, primeira capa na
encadernação, mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66
p. 309. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 8r
pp. 310-1. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólios 8v-9r
p. 312. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 9v
p. 314. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 10v
p. 316. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 13v
p. 319. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 17r
p. 321. Vista do átrio da Kongelige Bibliothek, Copenhague (Getty Images)
p. 327. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 4r, detalhe
p. 328. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 16v
p. 330. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 1r, detalhe
pp. 336-7. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólios 5v-6r
p. 341. Paris, Bibliothèque de l’Arsenal, ms 939, fólio 57r
p. 345. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 109r
p. 347. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 110r
p. 348. Glasgow, University Library, MS Hunter 229, fólio 46r, detalhe (Bridgeman Images)
p. 349. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 40r
p. 350. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 171v, detalhe
p. 352. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólio 173v
pp. 356-7. Copenhague, Kongelige Bibliothek, MS Thott 143 2o, fólios 193v-194r
p. 360. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, primeira capa na encadernação
mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66
p. 362. Escadaria da Bayerische Staatsbibliothek, Munique (Bayerische Staatsbibliothek,
Munique)
p. 365. Benediktbeuern (Alamy)
p. 369. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 1r
p. 371. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 64r
p. 372. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 44v
p. 375. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 11r
p. 376. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 63v
p. 378. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 87v
p. 381. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 99r
p. 383. Grande selo de Frederico II, ilustração de Jean-Louis Alphonse Bréholles, Historia
diplomatica Friderici Secundi, 1852, volume II, parte I
p. 384. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 64v
p. 386. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 72v
p. 388. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 89v
p. 391. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 15r
p. 393. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 68r
p. 398. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 65v
p. 401. Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 4660, fólio 72r
p. 404. Apresentação de Carmina Burana em 1941 (akg-images)
p. 405. Carl Orff, fotografia de Otto Moll (© Carl Orff-Stiftung, Archiv Orff-Zentrum, Munique)
p. 409. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, primeira capa na
encadernação mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66
p. 411. Trem em Berchtesgaden (Getty Images)
p. 412. Edmond de Rothschild (Getty Images)
p. 413. Bureau Central des Restitutions, Répertoire des biens spoliés durant la Guerre
1939-45, p. 30 (coleção do autor)
p. 417. Galeria Mazarina, Bibliothèque Nationale, Paris (© J. C. Ballot/ BnF/ Oppic)
p. 420. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, folha de guarda, verso,
detalhe
p. 423. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 6r
p. 424. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 151v
p. 426. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 123v
p. 429. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 97r
p. 432. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 118v
p. 434. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 55v
p. 437. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 53r
p. 440. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 9v
p. 441. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 10484, fólio 6v
p. 442. Nova York, Metropolitan Museum of Art, Acc. 54.1.2, fólio 155r
p. 443. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 39r
p. 446. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 150r, detalhe
p. 448. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms fr. 11496, fólio 80r, detalhe (Gallica)
p. 449. Chantilly, Musée Condé, ms 65, fólio 1v, detalhe (Bridgeman Images)
p. 450. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms n.a. lat. 3145, fólio 3v
p. 453. Nicholas-Claude Fabri de Peiresc, pintura atribuída a Ludovicus Finson. Château de
Versailles (Heritage Image Partnership/ Alamy)
p. 455. Sydney Cockerell, fotografia de Walter Stoneman (© National Portrait Gallery,
London)
p. 459. Hermann Göring e Adolf Hitler, provavelmente em Berlim, 1938 (© 2016. Photo
Scala, Florence/ bpk, Bildagentur für Kunst und Geschichte, Berlin)
p. 462. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D primeira capa na
encadernação mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66 (Todas as
imagens desses manuscritos estão reproduzidas com a permissão de Llyfrgell
Genedlaethol Cymru, Biblioteca Nacional de Gales)
p. 466. San Marino, Huntington Library and Art Gallery, MS El. 26.C.9, fólios 153v-154r
(Bridgeman Images)
p. 467. Hatfield, Hatfield House, Cecil Papers, Box S.1, detalhe (com permissão da
marquesa de Salisbury, Hatfield House; a fotografia é cortesia de Linne Mooney)
p. 469. Biblioteca Nacional de Gales (Alamy)
p. 473. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D, fólio 2r
p. 474. Chaucer, Canterbury Tales, Caxton, 1483, fólios 4v-5r (© The British Library Board)
p. 475. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D, fólio 3r
pp. 476-7. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D, fólios 57v-58r
p. 479. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D, fólio 88r
pp. 484-5. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D, fólios 128v-129r
p. 486. Aberystwyth, National Library of Wales, Peniarth MS 392 D, fólio 41r, dois detalhes
p. 487. Cambridge, Corpus Christi College, MS 61, fólio 1v, detalhe (© The Master and
Fellows, Corpus Christi College)
p. 489. Cambridge, Trinity College, MS R.3.20, p. 367, detalhe (The Master and Fellows of
Trinity College, Cambridge)
p. 493. Londres, manuscrito da Companhia dos Escrivães, depositado na Biblioteca
Guildhall, MS 5370, p. 56, detalhe (London Metropolitan Archives, reproduzido com
permissão da Worshipful Company of Scriveners)
p. 495. Cambridge, Trinity College, MS R.3.14, fólios 1v-2r, detalhe (The Master and
Fellows of Trinity College, Cambridge)
p. 497. Londres, British Library, Harley MS 4431, fólio 178r, detalhe (© The British Library
Board, All Rights Reserved/ Bridgeman Images)
p. 505. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, primeira capa
na encadernação mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66
p. 506. Paris, Bibliothèque Nationale de France, ms lat. 6041 D, fólio 8 ter (De Agostini/
Bridgeman Images)
p. 507. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS 79a, recto, detalhe
p. 508. Piotr Dubrowsky. Museu Estatal Hermitage, São Petersburgo (© The State
Hermitage Museum. Photo: E. N. Nikolaeva)
p. 512. Biblioteca Nacional da Rússia, São Petersburgo (© National Library of Russia)
p. 520. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 1v
p. 523. Florença, Biblioteca Nazionale Centrale, MS Landau-Finaly 22, fólio 78v, detalhe
(De Agostini/ Getty Images)
p. 525. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 9r
p. 527. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 37r
p. 529. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 42r
p. 530. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 45v
p. 533. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 66r
p. 534. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 74v
p. 536-7. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólios 88v-
89r
p. 539. São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, Cod. Lat.Q.v.XVII.2, fólio 99r
p. 540. Monumento a Catone Sacco. Universidade de Pavia, Pátio Alessandro Volta
(cortesia da Universidade de Pavia)
p. 545. Oxford, Bodleian Library, Auct. P.3.13, última folha impressa, detalhe
p. 550. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, primeira capa na
encadernação mostrada na mesma escala do Codex Amiatinus na p. 66
p. 553. Centro Getty, Los Angeles (© The J. Paul Getty Trust)
p. 555. Hans Peter Kraus (Getty Images)
p. 557. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, ex-líbris de Hans Erni, úlima
folha (© Estate of Hans Erni)
p. 558. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 1v
pp. 560-1. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólios 2v-3r
p. 562. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 3v
p. 565. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 4v, detalhe
pp. 566-7. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólios 8v-9r
pp. 570-1. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólios 92v-93r
pp. 574-5. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólios 10v-11r
p. 578. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 21v
p. 580. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 56v
p. 585. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 254r
p. 590. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 276v
pp. 592-3. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólios 165v-166r
p. 596. (à esq.) Chantilly, Musée Condé, MS 65, última capa na encadernação (© RMN-
Grand Palais (domaine de Chantilly)/ René-Gabriel Ojéda); (à dir.) Perth, Kerry Stokes
Collection, LIB.2014.01, primeira capa na encadernação (© Christie’s/ Bridgeman Images)
p. 598. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 125v
p. 599. Perth, Kerry Stokes Collection, LIB.2014.01, fólios 108v-109r (© Christie’s/
Bridgeman Images)
p. 600. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 184v
p. 603. Margarida da Áustria, detalhe do lado direito de um díptico pelo Mestre de 1499.
Museum voor Schone Kunsten, Gante (© Lukas — Art in Flanders VZW/ Bridgeman
Images)
p. 607. Catálogo do leilão na Sotheby’s em 5 de julho de 1976, Lote 68. (coleção do autor)
p. 609. Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, revestimento interno na
capa da encadernação. Pesquisa por Cecilia Mackay
Publicado originalmente em língua inglesa por Penguin Books Ltd, Londres
Copyright do texto © 2016 by Christopher de Hamel
O autor assegura seus direitos morais.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Meetings with Remarkable Manuscripts

Capa
Victor Burton

Imagem de capa
Los Angeles, J. Paul Getty Museum, MS Ludwig IX.18, fólio 3v

Projeto gráfico
Andrew Barker Information Design

Preparação
Cássia Land

Revisão
Huendel Viana
Isabel Cury

ISBN 978-85-5451-011-4

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
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As damas do século XII
Duby, Georges
9788580867442
384 páginas

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Pode o amor arrebatado de uma mulher provocar a


derrocada do governo de Deus sobre os homens, a
desagregação das leis e linhagens e a confusão entre
os Estados?A resposta é sim, a julgar como o século
XII europeu, no espaço da sociedade de nobreza
feudal que se consolidava, via as mulheres e seus
papéis na nova ordem das coisas.É a partir da história
de Heloísa e Isolda que Georges Duby, esse
reconhecido mestre de narrativas históricas
exemplares, começa a trilogia que dedicou às
mulheres na Idade Média - composta de Heloísa,
Isolda e outras damas do século XII, A lembrança das
ancestrais e Eva e os padres.Se o grande historiador
havia dito que a Idade Média era a idade dos homens,
mostrou aqui no entanto que, de certa maneira, a
Idade Média foi também uma idade das mulheres. Ou
pelo menos de algumas delas. Em A lembrança dos
ancestrais, o segundo volume da série, revela que a
essas mulheres que sobressaíam à massa anônima, a
essas damas do século XII, se deve a própria
identidade de determinadas famílias nobres.No
terceiro volume da trilogia, Duby analisa as relações
entre as mulheres e a Igreja católica na era medieval,
com ênfase no mesmo século XII. Foi aí que a Igreja
criou a confissão, sacramento que lhe permitiu reger a
intimidade e, desse modo, pôr seu jugo sobre
pensamentos e gestos que até então ninguém
considerava pecaminosos. Paradoxalmente, os
mesmos padres responsáveis pela reforma da moral
desenvolveram toda uma literatura que celebra os
vínculos extraconjugais. Na Idade Média, um vasto
repertório de sortilégios deixava os homens
apavorados, à mercê das mulheres. Avara, leviana e
ciumenta, considerava-se que a natureza da mulher a
levava inevitavelmente a pecar. Era preciso, então,
criar formas de trazê-las sob controle.Fino prosador,
Duby reconstitui com sagacidade e ironia esses
tempos recuados e mostra o que eles ainda têm a nos
dizer.

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Folha de lótus, escorregador de mosquito
Reinach, Fernando
9788554510701
332 páginas

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Nesta segunda coletânea de crônicas do biólogo


Fernando Reinach, reencontramos sua fórmula única
de humor, boa prosa, inventividade e rigor científico.A
curiosidade apaixonada do biólogo Fernando Reinach
o faz percorrer semanalmente as principais revistas
científicas do mundo, procurando casos singulares e
inspiradores que ele compartilha com os leitores de
sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo. São
descrições divertidas e ricamente ilustradas de
diversos comportamentos que nossa espécie
observou nos seres vivos, em si própria e até mesmo
em sua mente. Publicadas entre 2010 e 2017, as
crônicas reunidas neste volume são tão informativas
quanto cheias de graça. Reinach discorre sobre a
visão 3-D das aranhas, o sexto sentido das baratas, a
sexualidade das várias espécies, o comportamento de
macacos diante do espelho, experimentos de
neurociência com pastilhas M&M's ou a sociedade de
cupins em que os idosos explodem para defender o
ninho. Folha de lótus, escorregador de mosquito é um
passeio inesquecível pelas lentes de microscópios dos
principais cientistas do mundo, em que conhecemos
também um pouco mais sobre nós mesmos.

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A descoberta da escrita
Knausgård, Karl Ove
9788543810256
624 páginas

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No quinto volume da série Minha luta, Knausgård


expõe com maestria e riqueza de detalhes seus anos
de formação como escritor.Aqueles que acreditam que
o talento literário se resume a uma vocação inata não
podem deixar de ler A descoberta da escrita, quinto
volume da série que ultrapassou as fronteiras da
Noruega para ganhar o restante do mundo,
consagrando-se como um dos maiores sucessos
literários dos últimos tempos. Neste romance
autobiográfico, o autor percorre seus anos de
estudante de escrita criativa na cidade universitária de
Bergen. Com a honestidade que lhe é característica,
explicita as dificuldades e frustrações que permeiam o
caminho de todo aspirante a romancista: "eu sabia
pouco, queria muito e não conseguia nada", confessa
o narrador. Às intempéries da formação de escritor
somam-se os conflitos e inseguranças da juventude,
permeados por episódios de bebedeira, brigas,
insucessos românticos e toda sorte de golpes ao
narcisismo pueril daquele que viria a se tornar o maior
escritor vivo da Noruega.

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A cidade dorme
Ruffato, Luiz
9788554510589
128 páginas

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Em vinte narrativas, uma reflexão sobre o Brasil, as


relações familiares e a memória.Luiz Ruffato adentra o
labirinto das formas breves neste A cidade dorme. O
volume reúne vinte narrativas escritas nos últimos
quinze anos pelo autor. Juntas, compõem um painel
poderoso sobre a passagem do tempo e as dinâmicas
da família e da memória.A partir de um ponto de vista
pouco presente na literatura brasileira, o do
trabalhador urbano, Ruffato tece uma reflexão
contundente sobre o Brasil dos grandes centros e
periferias. O percurso é claro: da infância à idade
adulta, da margem ao miolo nervoso das metrópoles e
da linguagem. A meninice nos anos 1960; histórias
sobre futebol e a ditadura; questões ligadas à violência
urbana; o universo das drogas, tudo vai se mesclando
neste livro, que confirma o lugar único de Luiz Ruffato
na literatura contemporânea brasileira.
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O instante certo
Harazim, Dorrit
9788543806242
384 páginas

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Com olhar arguto e sensível, a jornalista Dorrit


Harazim fala de algumas das mais importantes
fotografias da história.Há cliques que alteraram o rumo
da história e os costumes da sociedade. Neste O
instante certo, a premiada jornalista Dorrit Harazim
conta as histórias de alguns dos mais célebres
fotogramas já tirados. Assim, registros da Guerra Civil
Americana servem de base para analisar os avanços
tecnológicos da fotografia; uma foto na cidade de
Selma conta a história do movimento pelos direitos
civis; e uma mudança na lei trabalhista brasileira tem
como fruto um dos mais profícuos retratistas do país.
Em seu primeiro livro, Harazin nos guia não apenas
através das imagens, mas de um universo de histórias
interligadas, acasos e aqueles breves momentos de
genialidade que só a fotografia pode captar.

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