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1868

LIBRARY

THE UNIVERSITY
OF CALIFORNIA
SANTA BARBARA

FROM THE LIBRARY


OF ANTONIO DA CRUZ
|

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A

DIVINA COMEDIA

O INFERNO
LIGIIGIRI

RITRATTO DALL' AMICO SUO GIOTTO NELLA CAPPELLA DEL POTESTA IN FIRENZE
DISCOPERTO L'ANNO 1841
A

DIVINA COMEDIA
DE

DANTE ALLIGHIERI

Dante Rex Poetarum !


( LEÃO XII) .

VERSÃO PORTUGUEZA COMMENTADA E ANNOTADA


POR

JOAQUIM PINTO DE CAMPOS


PRELADO REFERENDARIO DE SUA SANCTIDADE , MEMBRO DA ORDEM DE MALTA
COMMENDADOR DA IMPERIAL ORDEM DA ROSA E DA REAL ORDEM MILITAR DE N. S. DA CONCEIÇÃO DE VILLA VIÇOS A
SOCIO CORRESPONDENTE DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAPHICO DO RIO DE JANEIRO
DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA
DA ACADEMIA CATHOLICA DE ROMA, DA ACADEMIA PROPERCIANA DE ASSIS
DA ACADEMIA DE SCIENCIAS E ARTES DOS ARDENTES DE VITERBO, DA ACADEMIA DA ARCADIA DE ROMA ,

ANTIGO DEPUTADO DA NAÇÃO BRAZILEIRA EM SETE LEGISLATURAS


ETC. ETC. ETC.

LISBOA

IMPRENSA NACIONAL

1886
A SUA MAGESTADE IMPERIAL

IMPERATRIZ DO BRAZIL

em homenagem a mais profunda, e sincera ás suas excelsas virtudes

O. C. D.

( ) TRADUCTOR.
PQ
4319.2
PE

Estampando na frente d'este livro a carta, com que gentilmente


me obsequiou o Ex.mo Sr. Conselheiro Henrique de Barros Gomes,
actual ministro dos negocios estrangeiros, não cedo a nenhum senti
mento de vaidade pessoal , molestia de que o meu espirito nunca
adoeceu . Embora muito penhorado do lisonjeiro conceito, que S. Ex.a
exprime acerca dos meus estudos dantescos, não me abalançaria a
vulgarisal-o, si não visse, d'envolta com tão auctorisado juizo, a mais
esplendida glorificação á memoria do immortal cantor da Divina Co
media. Seria mesmo imperdoavel, si eu escondesse aos olhos do publico
um documento, que tanto honra o seu auctor, como a sua nação ;
porque n'elle brilham todas as louçanias do bello dizer portuguez,
todas as flores de uma erudição variada , e por sobre tudo os rever
beros de uma crença robusta , não envergonhada, nas mais puras dou
trinas catholicas, que alicerçam a molle immensa do sacro Poema de
Dante Allighieri, até hoje tão invertido, e transvertido pela ignorancia ,
ou má fé de grande parte de seus interpretes !
Sirva, pois , a importante carta do Sr. Conselheiro Barros Gomes ,
não só de prova authentica de que Portugal não se deixa ficar atraz
no estudo do monumento intellectual de maior vulto da edade media ,
e dos seculos posteriores, mas tambem de pharol na peregrinação, que
o meu livro vae fazer através de terras, e de mares .
Não menos lhe darão azas as palavras auctorisadas do vene
rando, e erudito dantofilo, o Ex.mo Sr. Conselheiro Antonio José Viale,
tão
parco em louvores, quanto sincero em distribuil-os . Em outro
logar confesso -me assás devedor a S. Ex. do proveitoso auxilio,
que me prestou espontanea , e desveladamente na revisão das provas
typographicas do Commentario . Em uma das occasiões em que me
devolveu provas correctas, declarou -me, em carta de 28 de maio, com
a mais nobre franquez.ı, e singular modestia, o seguinte : « As notas
do sabio expositor brazileiro têem -me instruido acerca do sublime Poeta ,
e do seu poema, mais do que todas as minhas leituras até agora, e 1sso
sem o tempo, e o trabalho, que a intelligencia de ambos tem custado a
V. Ex.a, que é sem contestação o maior elucidador de Dante em lingua
portugueza ».
Palavras taes, não sei a quem mais honram , si a quem as escre
veu , ou si a quem foram dirigidas !
Ellas confirmam o juizo, que ha dous annos, com egual isenção, e
bondade, registrou S. Ex.a em nota ás suas bellas Tentativas dantes
cas, n'estes termos :
« Está presentemente preparando uma traducção do primeiro dos
tres poemas da Divina Comedia o sabio brazileiro , Monsenhor Joa
quim Pinto de Campos ......
« A traducção, em elegante prosa portugueza, é precedida de uma
extensa introducção, e acompanhada de importantes annotações elu
cidativas, historicas e apologeticas. Tanto no pródromo como nas
notas , o douto escriptor põe a mira principalmente em vindicar a
orthodoxia do altissimo poeta contra as injustas accusações dos que
pretendem represental-o como inimigo do pontificado romano.»

O TRADUCTOR .
Lisboa, 17 de agosto de 1886.— Ex.me Rev. " Monsenhor
Joaquim Pinto de Campos . — São do Florentino, que os dirige
a Virgilio, seu mestre e guia atravez das regiões sombrias do
Inferno, os dous conhecidos versos estampados no atrio, a bem
dizer, d'essa construcção maravilhosa por seu auctor denomi
nada Comedia, denominação engrandecida pela posteridade,
como V. Ex." tão doutamente o demonstra, com o epitheto de
Divina .
Vagliami 'l lungo studio e 'l grande amore
Che m ' han fatto cercar lo tuo volume.

Applicára a si o conceito, justificando-se por tal forma de


haver emprehendido mais uma versão da immortal trilogia, o
finado Rei João da Saxonia, o commentador eruditissimo , que,
sob o pseudonymo de Philaletes, não só conseguiu enriquecer
os fastos da litteratura allemã com uma das mais fieis reproduc
ções do texto da Divina Comedia''), como julgou dever ainda
i projectar sobre o Poema, enfeixando-os a todos, os raios da in
tensa luz emanada quer de proprias e fundas investigações ,

(1) Existem na Allemanha, alem da traducção do Rei da Saxonia, a que acima


i se faz referencia, as seguintes, de Kannegiesser, Streckfusz, Kopisch, Blanc, Witte,
1
Eitnen, Bernd von Greck-Krigar, Hoffinger e Notter. Esta simples relação prova
que o labor de Joaquim Pinto de Campos veiu solver, por parte da lingua portu
gueza, uma divida em aberto para com a obra prima da litteratura italiana , divida
que o Conselheiro Viale apenas resgatára parcialmente.
quer dos trabalhos então recentes de Blanc, Schlosser, We
gele, Francesco de Buti, e tantos outros. ( 1 ) E como por si
elles não bastassem para alcançar a mais plena e lucida com
prehensão do poema, especialmente do segundo e terceiro
canticos, o Purgatorio e o Paraiso, foi dos escriptos e trata
dos de Pedro Lombardo, de Alberto Magno, e mais que tudo e
acima de todos da Summa Theologiæ , da obra maxima do Dou
tor Angelico , que o Rei João conseguiu desentranhar o seu
notavel commentario, a um tempo minucioso e alevantado,
abundante em factos, e profundissimo nos conceitos.
É á sombra de commentarios d'esse valor, amparado por es
teios tão valentes que o espirito de quem lê pode deixar arreba
tar-se ás eminencias d'essa mais do que vertiginosa concepção
metaphysica , e conceber até a plena harmonia attingida por dous
espiritos de eleição, taes como o foram S. Thomaz de Aquino e
o Alighieri; o primeiro , a personificação suprema da sciencia e
do pensamento catholicos, este outro , o mais sublime represen
tante da poesia moderna, engrandecida e espiritualisada ao
clarão da fé. É assim que essa poesia nos apparece candente
ainda do reflexo com que a revestiram os fulgores da visão
eterna e clarissima do supremo ideal e a contemplação extatica
em que, chegado ao termo da sua carreira , o Poeta se abysma,
vendo desenhar-se em traços luminosos, no seio da esphera de
fogo, a mesma imagem e similhança do homem , fundida por
tal forma na immensidade de Deus a inteira humanidade,
( 1 ) Blanc, Tentativa de uma explicação meramente philologica de varias passa
gens obscuras e disputadas da Divina Comedia .
Schlosser, Estudos sobre o Dante, 1856 .
Wegele, Vida e obras de Dante, 1852 .
Francesco de Buti , Commentario, 1862.
Este ultimo commentario, é precioso pelos pormenores interessantes e espe
cialissimos por quanto toca a Pisa e suas relações.
(2 ) Dissera o nosso Camões :
Desce do Céu immenso Deus benino
Para encarnar na Virgem soberana
Porque desce o divino a cousa humana ?
Para subir o humano a ser divino.
( Soneto cxcvili, edição Juromenha.)
e traspassado, aquecido, vivificado tudo pelo amor divino, em
si incommensuravel , eterno, e infinito !
O luce eterna, che sola in te sidi,
Sola t intendi, e da te intelletta
E intendente, te ami ed arridi ! ( 1 )
Quella circulazion, che si concetta
Pareva in te, come lume reflesso,
Dagli occhi miei alquanto circonspetta ,
Dentro da se, del suo colore istesso,
Mi parve pinta della nostra eſige, (2)
Perchè il mio viso in lei tutto era messo .
Qual è 'l geometra che tutto s' afſige
Per inisurar lo cerchio, e non ritrova ,
Pensando, quel principio ond ' egli indige ;
Tale era io a quella vista nuova :
Veder voleva, come si convenne
L'imago al cerchio, e come vi s' indova ;

(1) Allusão evidente ao dogma da Trindade. Descança o Padre em si proprio,


em si proprio tem a razão da sua existencia ; conhecendo -se, gera o Filho ; do amor
reciproco entre ambos provém o Espirito Santo . É conhecido o trecho de Bossuet,
que se lê no capitulo xix da segunda parte do seu discurso acerca da Historia uni
versal. Diz a Aguia de Meaux : « En effet, si nous imposons silence à nos sens, et que
nous nous renfermions pour un peu de temps au fond de notre âme, c'est -à -dire,
dans cette partie où la vérité se fait entendre , nous y verrons quelque image de la
Trinité, que nous adorons. La pensée, que nous sentons naitre, comme le germe de
nôtre esprit, comme le fils de nôtre intelligence, nous donne quelque idée du Fils
de Dieu, conçu éternellement dans l'intelligence du Père celeste. C'est pourquoi ce
Fils de Dieu prend le nom de Verbe, afin que nous entendions qu'il nait dans le
sein du Père, non comme naissent les corps, mais comme nait dans notre âme cette
parole intérieure, que nous y sentons quand nous contemplons la vérité.
« Mais la fécondité de notre esprit ne se termine pas à cette penséc intelle
ctuelle, à cette image de la vérité qui se forme en nous. Nous aimons, et cette pa
role intérieure, et l'esprit où elle naît; et en l'aimant, nous sentons en nous quel
que chose qui ne nous est pas moins précieux que notre esprit et notre pensée, qui
est le fruit de l'un et de l'autre, qui les unit, qui s'unit à eux, et ne fait avec eux
qu'une même vie .
« Ainsi, autant qu'il se peut trouver de rapport entre Dieu et l'homme, ainsi,
dis-je, se produit en Dieu l'amour éternel qui sort du Père qui pense, et du Fils
qui estsesaetpensée,
heureu parfaitepour
.» faire avec lui et sa pensée une même nature également
Este trecho, que no dizer de Chateaubriand constitue um formoso commenta
rio ás palavras do Genesis : « Façamos o homem á nossa imagem e similhança », re
sume e exprime o que sobre a Trindade já haviam escripto, entre outros, S. João
Evangelista, S. Gregorio Nazianzense, Santo Hilario, Santo Agostinho, Pedro Lom
bardo, S. Thomaz de Aquino e Tertuliano. Provam-o, em relação a muitos d'elles,
as proprias notas que acompanham o texto de Bossuet .
(2) Allusão ao Verbo incarnado e feito homem.
Ma non eran da ciò le proprie penne ;
Se non che la mia mente fu percossa
Da un fulgore, in che sua voglia venne .
All' altua fantasia qui mancò possa :
Ma già volgeva il mio disiro è 'l velle,
Si come ruota che igualmente é moss17,
L'Amor che muove il Sole e l'altre stelle.
( Paraiso , C. XXXIII.!

Versos estes sublimes que nos descrevem o ardor da graça


divina traspassando o Dante, e o desejo summo do Poeta sa
ciado na contemplação da Trindade Augustissima, na plena in
telligencia da alliança em Christo das duas naturezas, na con
sciencia de que a propria vontade e as suas mais intimas aspi
rações se confundiam com a vontade e o sentir divinos, e dei
xavam estes sobrepor- se -lhes. O espirito do Poeta, que os tor
mentos pavorosos do Inferno haviam aterrado, e as visões
lacrymosas e indecisas do Purgatorio tinham confrangido, esse
espirito, que percorrêra os circulos celestiaes e subira á man
são dos eleitos, serenava emfim . Coubera -lhe em partilha a
celeste beatitude, e é no goso d'esse bem supremo, em plena
incandescencia produzida pelo summo amor que termina a
visão, e com ella o poema todo .
De taes deslumbramentos é pois susceptivel o texto da Di
vina Comedia, mas para poder seguir após o Dante até essa altura
sublime é mister, como a principio o affirmei, que nos valham :

il lungo studio e'l grande amore


Che han fatto cercar lo suo volume.

Ora estes versos do Dante que a si applicára o Rei da Sa


xonia , bondoso monarcha e espirito dos mais cultivados do
nosso tempo, esses versos pode hoje e deve V. Ex . applical-os
afoutamente a si proprio, ao acrescentar as opulencias da
nossa litteratura nacional com a sua opulentissima versão do
Inferno, acompanhando-a, tambem por seu lado, de um com
mentario por tantos titulos interessante e valioso. Pois em ver
dade e como succede com o de Philaletes, não se encon
trarão a par d'elle muitos outros, nem tão elucidativos das
frequentes obscuridades do texto, nem mais abundantes em
referencias a factos historicos e a pormenores locaes e da
epocha, nem ainda tão engenhosamente combinados para es
clarecer e interpretar essas allegorias profundissimas, que,
embora para os pensadores um dos encantos maiores do poe
ma, constituem, no commum dos leitores levianos e distra
hidos de nossos dias, a causa do enfado com que repellem
de si, desdenhando-a, a obra prima da litteratura italiana.
Para quantos, ainda mesmo cultores das boas lettras, se
não resume, em verdade, a inteira Divina Comedia , nos poucos ,
aliás bellissimos, tercetos em que o Dante esculpiu a sen
tença fatal que pune com a eterna desesperança os que pe
netram no Inferno ! Quantos não haverá que se limitam , quando
muito, a reter na memoria esse outro trecho inspirado, em
que Francisca de Rimini, associada, aquelle
1

che mai da se non ſia diviso

1
affirma, suspenso por momentos no espaço o turbilhão em
que fluctuam os espiritos oppressos dos dous amantes, não
haver

Nessun maggior dolore,


Che ricordarsi del tempo felice
Nella miseria :
(Inferno, c. v .)

ou ainda, e finalmente, os tercetos d'esse episodio supremo, que


enche o canto xxxii, e, emmoldurado nos gêlos sinistros, deixa
entrever o fiero pasto ajuntando na eternidade os dous crimi
nosos, Arcebispo Roggero e Conde Ugolino, ao ultimo dos
quaes o excesso da dor, como V. Ex." o nota, tolhe até o resfol
legar unico do pranto, visto poder affirmar de si , segundo narra
o Poeta :
Io non piangeva ; sì dentro impietrai,
Piangevan elli ; ed Anselmuccio mio
Disse : Tu guardi si, padre: che hai ?
Però non lacrimai, né rispos' io
Tutto quel giorno, né la notte appresso ,
Infin che l'altro Sol nelmondo uscio .
(Inferno, C. XXXIII . )

Expressão suprema da angustia humana, que mais tarde


faria tambem exclamar ao nosso epico, na mais bella das suas
canções, a xi :
Quem me dará sequer que fóra mande
Lagrimas e suspiros infinitos,
Iguaes ao mal que dentro na alma mora ?
Mas quem pode algum ' hora
Medir o mal com lagrimas ou gritos ?
e pouco mais adiante :
Chegae, desesperados, para ouvir -me ;
E fujam os que vivem d'esperança,
Ou aquelles que n'ella se imaginão ;
Porque Amor e Fortuna determinão
De lhes deixar poder para entenderem
Á medida dos males que tiverem .

Fujam os que vivem de esperança, e o que é essa esperan


ça lenitivo unico , na successão das gerações , da humanidade
afflicta? Diga - o ainda Camões atado á fiel columna do soffri
miento seu :
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando -lhes diante
Uma esperança em vista de diamante : .
Mas quando das mãos cahe se conhece
Que é fragil vidro aquillo que apparece.

e assim , insensivelmente, fui impellido ao fallar do Dante a


citar Camões, como, porém , discorrer de poesia entre nós sem
que desde logo acudam á memoria o nome e as obras do nosso
grande epico ?
E porventura não serão dignos um do outro os dous Poetas ?
Asseverava eu ha pouco a V. Ex .", que tanto por si o aprecia ,
ser encanto dos doutos e constituir regalo dos pensadores essa
mesma obscuridade tantas vezes assacada contra o Dante como
origem de insanavel inferioridade para o vate de Florença . Aos
que assim imaginam poder deprimil-o, bastará, porém, trazer á
lembrança o que de si narra , para se condemnar, o grande
Bispo de Hippona nesse outro substractum do pensamento e da
psychologia catholicas intitulado As Confissões. Refere ali algu
res Santo Agostinho, como, levado do desejo ardente de repa
rar erros passados e de se fortificar no proposito presente de
santificação e arrependimento, procurára uma vez a Santo An
selmo, solicitando d'este prelado, eminente em doutrina e virtu
des, lhe indicasse qual dos livros do Sagrado Texto deveria
preferir em suas leituras, para mais cedo se tornar digno de re
ceber o dom da graça. Condescendêra o Bispo de Milão apon
tando o Propheta Isaias, talvez por prever. mais claramente o
Evangelho e de antemão annunciar a conversão das gentes,
como sendo o que melhor satisfazia os intentos de Santo Agos
tinho. Succedeu, porém, que, trepidando nas primeiras obscuri
dades do texto, receiando que estas se aggravassem ao prose
guir na leitura, e de certo, e mais que tudo ,por não ser ainda
chegado o momento em que a plenitude da graça tinha de bai
xar sobre a sua fronte com a santificação das aguas lustraes do
baptismo, succedeu, repito, que Santo Agostinho, desagradecido
ao conselho que pedira, afastou de si com enfado e desde logo
esse mesmo livro , que mais tarde veiu a ser o seu enlevo, e um
dos alimentos predilectos do espirito ardente d'aquelle tão grande
luminar da Egreja latina .
Ora quantos de entre os nossos compatriotas não procederão,

ainda hoje, em face da Divina Comedia como procedeu Santo


Agostinho, ao perpassar distrahidamente essas folhas para elle
mudas e descoradas a principio , mas que de feito põem em tão
saliente relevo as visões apocalypticas do grande propheta he
breu, d'aquelle que « via a terra oscillar, como trepida um ho
mem ebrio, e ser transportada no espaço qual tenda de campa
nha erguida para abrigo de uma noite ?,
A alguns, pelo menos, d'entre esses acode, porém, agora
V. Ex .", solícito pela grandeza do pensamento nacional, que só
mente conseguirá fortificar e robustecer -se ao sopro vivificante
das obras primas do espirito humano, entre as quaes a Divina
Comedia occupa um dos primeiros, senão o primeiro de todos
os logares. Animado de piedoso affecto, traspassado de res
peitosa e perenne admiração pela obra do altissimo vate, offe
rece-nos V. Ex.", aos que fallamos a lingua portugueza nos dous
hemispherios, na sua traducção eminentemente vernacula e
no abundantissimo commentario que a acompanha, meio facil
de penetrarmos na intelligencia verdadeira d'aquelle Poeta que
narra haver visto, em as regiões intermediarias ao primeiro e
segundo circulos, e após as almas de tantos outros, caminharem
para elle :

quattro grand ' ombre


Sembianza avevan nè trista nè lieta .
Lo buon Maestro commincionimi a dire :
Mira colui con quella spada in mano,
Che vien dinanzi a ' tre sì come sire .
Quegli è Omero, poeta sovrano,
L'altro è Orazio satiro che viene,
Ovidio è il terzo, e l'ultimo è Lucano.
Perocchè ciascun meco si conviene
Nel nome che sono la voce sola ,
Fannomi onore, e di ciò fanno bene.
Cosi vidi adunar la bella scuola
Di quel signor dell'altissimo canto,
Che sovra gli altri com’aquila vola .
Da ch'ebber ragionato insieme alquanto,
Volsersi a me con salutevol cenno :
E'l mio Maestro sorrise di tanto .
E più d'onore ancora assai mi fenno,
Ch'essi mi fecer della loro schiera ,
Si ch' io fui sesto tra cotanto senno. ( 1 )
(Inferno, canto iv .)
Mas não nos limitaremos, os Portuguezes e Brazileiros, que, por
intervenção de V. Ex. viermos a travar relações com o Floren
tino, a reconhecer quanto elle foi justo apreciador do proprio
merito associando o seu aos nomes dos mais laureados genios
poeticos da antiguidade classica . Serviço mais alto, beneficio de
superior transcendencia nos virá prestar V. Ex.º com o seu for
moso lavor litterario. Em meio das preoccupações materialistas,
do individualismo exclusivo e mesquinho que assignala a se
gunda metade do seculo xix, deprimindo e atrophiando quantas
aspirações nobres e alevantadas o espirito e o coração podem
alimentar, talvez que o douto commentario de V. Ex . e o texto
do Poeta por elle esclarecido, explicado e posto ao alcance de
todos, consigam fazer reconhecer de alguns , senão de muitos, o
que os pensadores sempre proclamaram , isto é, quanto vale e o
que significa o symbolismo, como unico meio de que o homem
dispõe para exprimir o transcendente e o ideal, tão vivos na

(1) Não receia affirmar de si o epico portuguez, alludindo ao que do seu en


genho poderia arrancar o favor da sua dama :
Podeis fazer que cresça d'hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que d'Homero se engrandece.
Podeis fazer tambem que o mundo veja
Soar na rude frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
(Camões, egloga iv . )
e ainda :
Em quanto eu apparelho um novo esprito ,
E voz de cysne tal , que o mundo espante ,
Com que de vós, Senhor, em alto grito
Louvores mil em toda a parte cante ;
Ouvi o canto agreste em tronco escrito,
Entre vaccas e gado petulante :
Que, quando tempo for, em melhor modo
Ha de m'ouvir por vós o mundo todo .
(Camões, egloga v. )

como
A mesma consciencia do valor proprio, inseparavel de tão grandes genios
foram Dante e Camões, faz clamar a este ultimo, dirigindo-se a El- Rei
D. Sebastião no canto
x dos Lusiadas :

A minha já estimada c leda Musa ,


Fico, que em todo o mundo de vos cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja ,
Sem á dita de Achilles ter inveja .

e com este justo pregão da propria fama, fecha a estrophe e o poema.


consciencia humana quanto incompletos na concepção e ma
neira de os representarmos, cingidos como estamos pelos limites
estreitos dos sentidos e provada deficiencia da linguagem .
As artes plasticas, mais do que ellas ainda a poesia, enco
brem, comtudo, tal deficiencia, e fazem por vezes estalar esses
limites'; d'ahi o justo apreço em que uma e outras devem ser
tidas . E chegado a este ponto, consinta -me V. Ex.a desenvolver
por inteiro e explicar o meu sentir, acrescentando, com um emi
nente pensador contemporaneo, ( " ) que, se nas relações da sciencia
apenas deparamos com fragmentos da verdade , em numero pro
gressivamente crescente, mas sempre fragmentos, nos systemas
philosophicos e mais que tudo na religião vemos surgir em face
de nós uma imagem d'essa verdade representada em seu con
juncto, embora tambem permanecendo sempre e unicamente uma
imagem , variavel até na sua forma segundo a phase da nossa
comprehensão. E por isso, como de toda a religião positiva é
inseparavel a idea de dogma e de mysterio, como a todas anda
invariavelmente ligado um symbolismo transcendente, de todas
se tornam expressão a poesia e as artes .
Coube ao Dante, já acima o escrevi, repetindo, aliás, o que
tão magistralmente nos é demonstrado por V. Ex. ", a summa glo
ria de fazer do seu poema essa expressão poetica e a mais levan
tada do dogma e do symbolismo catholicos. Na propria aprecia
ção do Papa Pio VI , por V. Ex . " citada na bellissima introducção
ao canto i do Inferno, é a Divina Comedia tida por catechismo da
fé, a despeito de algumas discrepancias com relação a pessoas,
acrescenta em verdade Pio VI , lembrado talvez dos tormentos
a que o Dante não duvidou sujeitar nem menos de quatro de
seus predecessores, os Soberanos Pontifices Nicolau III, Bonifa
cio VIII , Clemente V e João XXII . E por isso tambem , n'essa
qualidade de catechismo da fé, a obra prima de Alighieri, lida
e commentada outr’ora sob as naves mysteriosas, á luz baça

( 1 ) Lange .
das cathedraes gothicas da meia-edade, constitue ainda hoje , e
constituirá sempre , assumpto predilecto de meditação e estudo
para quantos veneram e acatam o pensamento catholico , para
todos os que se acolherem e esperam morrer á sombra da Cruz
e no seio da Egreja Universal , depositaria das promessas de
Christo e guarda infallivel da sua fé.
Traduzindo e commentando o Dante com a sciencia e con
sciencioso empenho posto n'esse trabalho por decurso de um
tão largo periodo da sua vida,V.Ex." fez pois obra de patriota e
de catholico . Outros o felicitarão pelo valor litterario da sua tra
ducção ; apreciando-a, quanto sei e posso , nos fragmentos nume
rosos que se dignou enviar-me a medida que íam saindo do
prelo, não ouso proferir a seu respeito um juizo, menos ainda
exercer sobre ella a minha critica. Fallecem-me para tanto au
ctoridade e saber. Por mim, limitar-me-hei a exaltar quanto ha
de
generoso e alevantado na tentativa, formulando votos para que
V. Ex.“ a leve a bom termo, e possa, sob fórma litteraria tão ac
curadamente lapidada, confessar assim mais uma vez aquella fé,
que o Dante , cercado de bemaventurados, amparado a Beatriz ,
interrogado pelo Principe dos Apostolos, soube e pôde definir
n'estes versos sonorosos, applaudidos pelo inteiro côro celestial :
tu vuoi ch'io manifesti
Laforma qui del pronto creder mio,
E anche la cagion di lui chiedesti.
Ed io rispondo: «Credo in uno Dio
Solo ed eterno, che tutto 'l ciel move,
Non moto , con amore e con disio ;
E a tal creder non ho io pur prove
Fisiche e metafisiche, ma dalmi
Anche la verità , che quinci piove
Per Moisè, per profeti, e per salmi,
Per l'evangelio, e per voi che scriveste,
Poichè l' ardente Spirto vi fece almi;
E credo in tre Persone eterne, e queste
Credo una essenzia sì una e sì trina,
Che soffera congiunto sono et este .
Della profonda congiunzion divina
Ch' io tocco mo, la mente me sigilla
Più volte l' evangelica dottrina.
Quest ' è il principio, quest' è la favilla
Che si dilata in fiamma poi vivace ,
E, come stella in cielo, in me scintilla .
Come il signor ch' ascolta quel che i piace ,
Da indi abbraccia 'l servo , gratulando
Per la novella , tosto ch ' ei si tace ;
Cosi, benedicenomi cantando ,
Tre volte cinse me, sì com ' io tacqui,
L'apostolico lume, al cui comando
Io avea detto ; sì nel dir gli piacqui.
( Paraiso , canto xxiv .)

e com este trecho esplendido, com este « Symbolov, que não


sendo o apostolico, nem o de Nicea , resume como elles a pura
doutrina catholica, terminarei eu esta já demasiado longa epis
tola, affirmando mais uma vez a V. Ex . o reconhecimento pela
summa deferencia que se dignou dispensar-me, proporcionan
do -me, como ante- goso, a leitura e conhecimento de alguns dos
mais limados e formosos trechos da sua versão, e dando -me oc
casião a que por tão penhorante fineza me confesse agora e
sempre

De V. Ex.a

Attento venerador, servo devotado e obrigadissimo,

Henrique de Barros Gomes.


PROLOGO

Nunca me custou tanto escrever um prologo ! Sei bem o


que devo dizer : mas o modo por que hei de dizer, é todo o
meu embaraço ! Sinto acanhamento de confessar, que commetti
uma temeridade ! Acho -me verdadeiramente entre o rolo, e
a resaca ! Como saír do barranco ? Hoc opus! Na jurispru
dencia criminal, ha duas alternativas, ou negar a falta ar
guida, ou confessal -a . Adoptarei este ultimo alvitre, apresen
tando as minhas attenuantes. O leitor, que me vá ouvindo
com benevolencia. Confesso pois, que fui temerario, não por
audacia, mas por uma especie de fascinação, que eu não
percebia , e que me foi arrastando insensivelmente até onde
não sonhára chegar ! Este phenomeno não é isolado na natu
reza humana. Quando Julio Cesar moveu das Gallias o seu
exercito em direcção á capital do mundo, ha quem pense,
que não era o seu designio levar a conflagração ao seio da
patria, mas tão somente amedrontar com aquella evolução
os inimigos, que contra elle machinavam em Roma. Che
gando ás bordas do Rubicon , encontrou Curião, que o se
duziu com tantas perspectivas de victorias, e triumphos, que
A

1
VIII PROLOGO

fascinado transpoz o váo defeso ! Por esse conselho parricida,


Dante metteu Curião no Inferno entre os traidores da patria.
Um philosopho classificou em duas categorias as temeri
dades, que o homem póde praticar: temeridades voluntarias,
e temeridades necessarias, ou fataes . A esta ultima categoria
pertence a que eu commetti. Asseguro, que não houve preme
ditação. Inconscientemente achei-me ante um abysmo: preci
pitei- me n’elle !
Eis -aqui com a mais lisa verdade como entrei no Inferno
Dantesco !
O caso deu-se assim : - Não me passou jamais pelo cerebro
a idea de metter -me com a vida de Dante Allighieri, cujo nome
de per si me inspirava terror ! Sabia por leituras vagas, que exis
tiu na edade media um Poeta florentino, que tinha composto
uma trilogia nebulosa, inextricavel, sob o titulo de Divina Co
media . Na primeira viagem , que fiz a Europa em fins de 1869.
comprei este livro, como quem compra , por mera curiosidade,
um objecto de arte qualquer. Levei- o para o Brazil; colloquei- o
na minha estante, sem nunca lhe tocar. Era um urso de papel ,
que eu conservava, dil -o -hei francamente, por impostura litte
raria .

Correram os tempos , até que chegou um dia em que, por


alternativas da minha vida, ou por altos designios de Deus, re
solvi deixar a minha tão querida patria. Dispuz então de todos
os meus livros, e, não sei porque, a Divina Comedia escapou !
Dei por ella aqui no fundo da mala, onde continuou a dormir
tranquillamente .
Em uma das minhas habituaes locomoções , apanhou-me o
hynverno em Roma . Affeito ás minhas rabiscas litterarias , dei
me a traduzir a India Christan . Terminado esse trabalho, sujei
tei-o á critica illustrada do meu sempre memoravel compatriota ,
e amigo Visconde de Araguaya. Ao restituir -me o autographo,
PROLOGO IX

disse-me : « Bem : agora, que está concluida a presente tarefa ,


resta-lhe metter hombros a outra de maior importancia .» « Qual?,
perguntei. « A traducção da Divina Comedia, de que não ha ainda
traducção alguma em lingua portugueza, havendo -as aliás em
todas as linguas cultas. » « Eu traduzir a Divina Comedia ? Oh
seria um dos casos de dizer : Mais facil seria passar um ca
mello pelo fundo de uma agulha !»
Apoz este breve dialogo, despedi-me do eminente poeta phi
losopho, para nunca mais o tornar a ver ! Sai de Roma para
Munich, onde, nas minhas perlustrações, costumo demorar -me
algum tempo, attrahido principalmente pela doce convivencia
dos illustres membros actuaes da Nunciatura Apostolica, que
todos estiveram no Brazil, de cuja abençoada região con
servam gratas reminiscencias . Um dia, recebi uma carta do
meu particular amigo, o sr. Visconde de Castilho, pedindo -me,
que lhe desse o meu juizo sobre certa traducção portugueza,
que outro fizera, do celebre episodio de Francisca de Rimini.
Cai das nuvens com tão inesperada consulta, que teria tomado
por um epigramma, si não conhecêra a seriedade d'aquelle
amigo! Eu, que nunca tinha sequer aberto a Divina Comedia !
Occorreu -me logo á lembrança uma anecdota , que se conta de
Platão, o qual, achando-se desterrado em Syracusa, foi chamado
para partejar uma mulher, que estava em grande perigo. « Eu
parteiro ?, respondeu o philosopho. Instado disse : « Irei, para ver
de que modo eu nasci » . Foi , e, por não se mostrar de todo biso
1 nho in officio obstetricio, mandou cozer umas hervas, cujas quali
dades therapeuticas ignorava de todo, e fez dar a beber o extra
cto á parturiente, que deu logo á luz a salvamento ! Platão
ficou d'ali por diante havido por bom parteiro, e as hervas de
Platão ainda vivem na tradição .
Acoroçoado por esse exemplo, disse commigo : « Si Platão,
que era Platão, fez de charlatão esculapino, não admirará que
х PROLOGO

eu faça de charlatão dantesco . » Travei pois da Divina Comedia ,


com o mesmo desaso com que D. Quixote feriu os primeiros
combates ! Consumi boas horas a ler, a reler, e , quanto mais lia,
e relia, mais se me nublavam os conceitos do Poeta ! Fechei o
livro, e fui dormir. Dormir ? Qual dormir, si eu tinha a cabeça
em agua ! No dia seguinte , voltei á justa , e, apoz novos exerci
cios de gymnastica intellectual, pude pescar a custo o enredo
do drama . Então me pareceu que a versão portugueza, não só
não era fiel ao texto, como até havia sido calcada em alguma
traducção franceza. Isto mesmo respondi , ainda que mal seguro,
ao meu amigo Visconde de Castilho, a quem me queixei dos
apuros em que me poz com tal consulta ! Desde então não
abri mais o livro do intractavel Allighieri .
Regressando a Portugal, parei alguns dias em Madrid . Uma
noite, ao deitar-me, disse ao creado, que me trouxesse um dos
livros, que estavam na minha mala de viagem . Em vez de ou
tro, acertou de trazer-me a Divina Comedia.
« Já agora , disse eu , chamarei o somno com esta imperti
nente leitura . ) Abri ao acaso o canto iii , que começa por estas
horriveis palavras :
Per me si va nella città dolente,
Per me si va nell'eterno dolore,
Per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto Fattore :


Fecemi la divina Potestate,
La somma Sapienzia e il primo Amore.
Dinanzi a me non fur cose create,
Se non eterne, ed io eterno duro :
Lasciate ogni speranza, voi che entrate.

Levei a roer estes tercetos até as duas horas da manhã !


Não nego, que acabei por perceber mais ou menos o sentido
geral. A minha maior confusão era não poder atinar quem fosse
a pessoa, ou pessoas, que falavam aqui. Depois de muito tra
PROLOGO XI

ctear a mente, e a paciencia, pareceu-me, que Dante queria


dizer, que por elle, ou pela sua Divina Comedia, se entrava na
cidade das dôres. Quanto ao verso :

Lasciate ogni speranza, voi che entrate ,

comprehendi que o Poeta prevenia áquelles, que entravam no


estudo da Divina Comedia, que deviam perder toda a esperança
de saír -se bem da empreza. « É assim ? Pois então não entrarei
n'ella. Dizendo isto, protestei deveras não abrir mais similhante
livro.

No seguinte dia, puz-me de marcha para Portugal. Não


tendo companheiro nenhum no meu wagon , procurei matar o
tempo com alguma leitura. Na vespera tinha comprado um
livrinho, em que o auctor referia certos episodios importantes da
vida intima de Filippe II, Rei da minha birra (que ainda estou
por saber, si bem , ou mal fundada). Lembrei-me que tinha pos
to o livro na malinha de mão. Ao abril-a , que livro pensa o
leitor, que eu encontrasse ? O de Filippe II ? Não, a Divina Co
media, que eu suppunha ter mettido com outros livros na mala
grande ! Reconheci então, que a fatalidade me arrastava para o
Inferno de Dante ! Na falta de outro, enristei-me novamente com
!
elle, voltando a ler o canto m . Após umas tres horas, com
prehendi melhor a cousa ! Comprehendi, que n'aquelles tres ter
cetos, que me haviam na vespera quebrado os miolos, havia uma
magnifica prosopopea, e que no primeiro terceto era a porta
do Inferno, que falava, e nos dous ultimos o proprio Inferno,
que concluia por dizer que quem n'elle entrasse devia deixar
fóra toda a esperança de saír :

Lasciate ogni speranza, voi che entrate .

Não se faz idéa dos exultes do meu espirito quando conheci,


que tinha desatado a difficuldade ! Não preciso dizer, que
XII PROLOGO

d'aquelle ponto por diante o meu animo correu mais alegre pela
leitura dos outros tercetos, verificando - se em mim o axioma ·
espartano: Quem comigo lucta, minhas forças aguça . Por volta
da tarde, achei que tinha avançado mais alguns passos na de
lettreação do ferreo texto de Allighieri! Chegando a Lisboa na
manhã de 11 de dezembro (saudoso anniversario da minha saída
da patria !), n’esse mesmo dia muni -me de um diccionario ita
liano portuguez, muito mais rico, do que o outro , que me acom
panhava. Então começei a ler o sacro Poema de principio, não
ainda com idea assentada de o traduzir, mas como a mariposa,
que esvoaça em torno da luz, que lhe ha de queimar as azas . A
verdade é , que me fui entranhando insensivelmente na selva até
que a final cheguei ao fim do canto 11. E vendo n'este, que Dante
se mostrara amedrontado de proseguir na viagem pelo reino es
curo , em presença das difficuldades, e perigos, que começou a
encontrar, não deixei de participar dos mesmos temores de pro
seguir na traducção. Mas, vendo tambem que Dante, confortado
pelos conselhos de Virgilio, recebeu alma nova, e proseguiu, re
solvi procurar dous amigos os srs . Conselheiro Antonio José
Viale, e Visconde de Castilho, aos quaes annunciei a medo o
proposito de traduzir a Divina Comedia. Ambos pareceram sorrir
sardonicamente. Mas, depois de lhes mostrar os dous primeiros
cantos, não traduzidos á lettra , mas paraphrascados, me anima
ram a ir por diante, fazendo por essa occasião judiciosas obser
vações, que me aproveitaram . Era isso por vesperas de Natal.
Raiando o dia 2 de janeiro do anno novo , entreguei-me total
mente todo ao estudo de Dante . Até o canto v , recorri nas mi
nhas duvidas ao dito sr. Conselheiro Viale, com quem ha sempre
que aprender. De bom grado prestou -se. Mas as suas occu
pações me fizeram escrupulisar de continuar a importunal-o.
Procurei d'ali por diante, até o canto xxv, o auxilio do illustrado
Padre Prosspero Luiz Peragallo, cuja proficiencia no idioma
PROLOGO XIII

italiano, que é o seu , dava -me toda a esperança de seguro con


selho. Com effeito, tanto , quanto lhe permittiam seus deveres
parochiaes, acudiu sempre com toda a benevolencia a esclarecer
qualquer duvida, que lhe submettia, no tocante ao sentido litte
ral , que era o de que propriamente me occupava. Folgo em dar
aqui publico testemunho de reconhecimento a estes dous distin
ctos litteratos.
Resolvido a levar ao cabo a minha arriscada tentativa ,
deliberei seguir para a Italia , patria do Poeta, e onde a Divina
Comedia é explicada em cadeiras publicas. Parti : e de caminho
fuia Compostella, fazer uma romaria ao venerando sepulchro
do grande Apostolo Thiago. Ali, encantado das bellezas do lo
gar, e das maravilhas artisticas do celebre Sanctuario, demo
rei-me alguns dias, durante os quaes traduzi o canto xxvi. Voltei
ao Porto onde traduzi o canto XXVII. Segui para Madrid, onde
traduzi os cantos XXVIII, e xxix. O calor então n’aquella cidade
era de queimar a pelle ! Arranquei-me para S. Sebastião. A
melhora de temperatura convidou - me a permanecer lá duas
semanas . Comecei a traduzir o canto xxx . Aconteceu achar - se
no mesmo hotel um illustrado homem de lettras N. D., creio
que de Cadiz . No correr da nossa convivencia, ouvia -lhe uma
vez por outra recitar algumas estrophes da Divina Comedia com
o accento verdadeiramente italiano. Então, disse commigo : « Eis
um homem , que me póde bem auxiliar. Não hesitei em pe
dir-lhe algum soccorro. De boamente se me prestou : exigiu,
que lhe confiasse por aquella noite o meu exemplar, com indi
cação do canto, que de presente eu traduzia. Dei-lh’o com todo
o prazer. No dia seguinte, estando-me a vestir, para ir dizer
Missa, bateu-se-me na porta. Era o sr. Dr. N. D. , que vinha
! me restituir o livro, dizendo, com a lhaneza de um homem
honesto : « Levei toda a noite a ler o seu Dante, e confesso, que
perdi o meu somno, e o meu tempo : Nada entendi! O Dante ,
XIV PROLOGO

que tenho lido é o traduzido por Lamenais. As estrophes que sei


de cór, sabe-as toda a gente, que as entende tanto como eu » .
Admirei sinceramente a nobre franqueza de homem tão
estimavel, não deixando por isso de reconhecer n'elle profunda,
e variada instrucção em mais de um ramo do saber humano .
De Madrid remetteu-me uma traducção em hespanhol , que não
li , pelo proposito , que tinha feito de me não servir de traducção
alguma : proposito, que cumpri religiosamente.
De S. Sebastião fui-me a Lourdes, onde traduzi o canto xxXI .
De Lourdes passei a París, onde a final traduzi os cantos XXXII,
XXXIII, e xxxiv. Parti depois para Munich , onde adquiri tres
commentadores italianos dos mais acreditados . Pesquizei na bi
bliotheca da cidade tudo o que me podesse esclarecer, sendo
em todas essas diligencias acompanhado pelo digno Vice
Consul do Brazil, M. de Rossipal , negociante ali de primeira
ordem . Extrahi notas de alguns livros latinos, e italianos antigos,
que me pareceram aproveitaveis. Estive n'aquella capital um
mez , e onze dias. Durante todo esse tempo, levei a copiar os
commentos dos tres interpretes, que havia comprado ; formando
assim um bom peculio .
De Munich transportei-me a Italia , demorando-me vinte e
quatro horas em Bolsano, bella cidade do Tyrol. Hospedei-me
no sumptuoso Mosteiro Benedictino, que pompeia na eminencia
de um monte, d'onde se contempla o mais bello, e grandioso
quadro da natureza ! N'aquella feliz habitação, de par com o
mais affavel acolhimento do venerando Abbade, encontrei ver
dadeiros sabios, especialmente o Padre Bernardo, que gostosa
mente se encarregou de extractar boas notas da Summa Theo
logica, de San Thomaz de Aquino em os pontos de que se
serviu Dante na Divina Comedia , notas que me remetteu para
Florença .
Em Trento tive a fortuna de encontrar o Marquez de ... ,
PROLOGO XV

um dos fidalgos mais amaveis, e prazenteiros d'aquella celebre ,


e sancta cidade. Sendo elle grande enthusiasta de Allighieri,
instrui-me de muitas particularidades da vida do immortal
Poeta, conservada nas tradições dos Tridentinos, a cuja região
vinha, durante o seu exilio, beber consolações, e ao mesmo tempo
colher material para a sua obra . O referido Marquez , cujo nome
sinto ter perdido de memoria, teve a extrema bondade de ir com
migo no caminho de ferro até o logar, onde ha uma ruina, occa
sionada pelo desabamento de um alto monte em tempos anti
quissimos , e que Dante toma por termo de comparação, quando
descreve um despenhadeiro do Inferno, em cuja borda está
espojado o monstro Minotauro . Em logar proprio falarei de
espaço d'essa ruina, cuja presença orientou -me assás na repro
ducção do quadro traçado pelo Poeta.
Despedimos-nos, e, tres horas depois, achei-me em Verona,
onde Dante, nos primeiros annos do seu exilio, parava frequen
temente na côrte dos Scaligeros . Demorei-me quatro dias , não

para respirar aquellas auras, que tantas vezes bafejaram o
grande scismador florentino, como para rastrear alguma tradi
ção. A idéa do Poeta enche ainda aquelle vacuo ; todos falam
de Dante, como de um personagem , que vivêra ha pouco entre
elles ! Mostram certos logares pintorescos ás bordas do Adige,
onde no verão costumava elle contemplar o deslisar suave da
lympha crystallina. Em Verona comprei mais outros livros de
commentarios da Divina Comedia, e prosegui para Bolonha,
outra cidade familiar do Poeta . Durante uma semana , levei a
copiar ininterruptamente commentos, e mais commentos. Na
vespera da minha partida para Florença, fui despedir -me de um
livreiro, que eu frequentára nos dias da minha demora ali. Po
dendo conhecer pela nossa conversa, que me achava ufano de
haver feito grande peculio de erudição dantesca, perguntou-me,
si eu já tinha lido as Obras Menores de Allighieri? « Obras Me

1
XVI PROLOGO

nores de Dante ! Pois Dante escreveu outras Obras alem da


Divina Commedia, e que tenham com esta alguma relação ?, O
livreiro calou -se, entrou em uma das lojas da livraria, e quando
voltou disse : « Eis -aqui a resposta á sua interrogação, que tanto
me surprehendeu ». E acto continuo, apresentou -me a Vita Vuora
( Vida Nova), o Cowito (Banquete ), a Epistola a Can Grande
della Scala , a Monarchia, etc. Comprei-as, e corri para o hotel ,
a fim de saber logo, que novidades podia encontrar . Não devo
omittir, que fiquei bastante enfiado de me haver mostrado tão
ignorante das Obras Menores do Poeta , quando eu já me sup
punha sabedor consummado de tudo o que a elle se referia !
Chegando ao hotel, em logar de arrumar a mala, para diri
gir-me a Florença, atirei-me aos livros com verdadeira gana,
começando pela Vila Nuova. Á porporção que ía lendo, fui per
cebendo a explicação de muitos conceitos da Divina Comedia,
principalmente no que concernia ao amor do Poeta a Beatriz.
Cresceu a minha surpreza quando conheci, que Beatriz era uma
entidade real, e não ficticia ou simplesmente allegorica, assim
como que não havia sido uma amante no sentido vulgar da
palavra.
Concluida a leitura da Vita Nuova, passei-me ao Convito .
Oh que novas surprezas ! Cada pagina era um commentario
vivo da Divina Comedia ! Terminada a leitura , parecia -me quasi
ter lido o sacro Poema em prosa ! Parti-me para Florença, lendo
em todo o trajecto o tractado da Monarchia . Novas, e repetidas
surprezas ! Chegando a Florença, não me entreguei a outras in
vestigações, sem primeiro acabar de ler a Monarchia, a Epistola,
a Can Grande, Volgar Eloquenza, etc. Compulsado tudo isso ,
reconheci que Dante era oo unico, e verdadeiro interprete de si
mesmo , e que o volumoso peculio de commentarios, que eu
tinha feito era um mixtiforio indigesto ! Salvando um , ou outro
commento, que directa ou approximadamente attingia o conceito
PROLOGO XVII

do Poeta, condemnei ás chammas tudo o mais, lamentando


tanto trabalho inutil , tanto tempo perdido !
Desde o dia pois, em que ardeu a Troia das minhas illusões,
os meus estudos dantescos mudaram essencialmente de direc
ção. Tive por conseguinte de rever toda a minha traducção dos
trinta e quatro cantos do Inferno, que, na sua generalidade, foi
reformada, em vista das novas luzes, que a leitura das Obras
Menores do Poeta derramou sobre o seu complicado enredo.
Duas semanas depois da minha chegada a Florença, resol
vi procurar o grande dantofilo da Italia , que n'aquella cidade

regia, ha trinta annos, a cadeira publica de explicação da Divina


Comedia, a fim de submetter á sua sábia crítica todo o meu
trabalho. Pedi a um dos mais acreditados livreiros de Florença ,
o sr. E. Cini , que dispozesse as cousas em ordem a se realisar
essa visita . Dados os passos necessarios , avisou -me do dia em
que deviamos ir juntos. No dia , e hora aprazada, achamo-nos
em presença de Giuliani, que por infelicidade não estava de
boa saude. Designou novo dia. Fomos, sobraçando.eu o meu
autographo, que pelo grosso volume não deixou de lhe causar
certo espanto. Devo confessar que, apenas lhe annunciei o obje
cto da minha visita , Giuliani se revestiu de aspecto pouco ani
mador. Estive quasi a desistir da conferencia ! Mas o meu com
panheiro, que percebeu a minha hesitação, fez-me signal que
proseguisse na minha exposição. Entrei em materia , reprodu
zindo fielmente toda a historia, que até aqui tenho referido, com
relação aos primordios dos meus estudos dantescos, levando
n’isso uma hora, sem que Giuliani houvesse articulado uma só
palavra. Quando porém cheguei ao ponto, em que lhe disse que,
tendo eu lido as Obras Menores de Dante, reconheci ser elle o
: unico, e verdadeiro interprete de si mesmo, e que eu havia
condemnado ás chammas quasi todos os extractos , que tinha
feito dos diversos commentadores , que primeiro me caíram nas
XVIII PROLOGO

mãos, Giuliani desenrugou o sobr’olho, levantou-se, e, approxi


mando -se de mim com ar satisfeito, disse : « Agora vejo que não
estou ouvindo um traditore de Dante , mas sim um discreto tra
duttore ,
Depois de explicar franca, e benevolamente a razão do modo
secco, por que me tinha recebido, acrescentou que : « sendo elle
zelosissimo da memoria do divino Poeta, e que havendo reco
nhecido, que a maxima parte das traducções estrangeiras da
Divina Comedia eram outros tantos latrocinios abominaveis (la
trocinii abbominevoli), pensava, que seria eu mais um d'esses la
trocinadores de Dante » .
Por espaço de duas horas durou a nossa conferencia, pres
tando-se o sabio mestre, não só a ouvir-me com a maior deli
cadeza, como tomando o maior interesse no proseguimento dos
meus trabalhos . Prometteu-me levar no dia seguinte algumas das
suas obras , e a indicação de outras , que eu devia consultar, acres
centando ainda : Ma, Monsignore, studiate, studiate in Dante, da
cchè egli è alfa e omega di se stesso. O sabio cumpriu o promet
tido, procurando-me no hotel Cavour, onde me achava, e por
essa occasião ajustámos, que dous dias na semana teriamos con
ferencias em sua casa, e outra publica , a que eu podia ir assistir,
no edificio da municipalidade .
Na nossa segunda conferencia comecei a ler-lhe a minha
traducção, chegando n’esse dia até ao canto v. Conhecedor da
lingua hespanhola, alem das íntimas analogias do italiano com
o portuguez, Giuliani entendia perfeitamente o sentido das mi
nhas palavras, dizendo mais de uma vez , que havia periodos ,
cuja contextura, e forma apenas se differençavam do italiano
em a pronuncia. Demais, sabendo elle Dante de cor, não lhe
escapava a menor falta de exactidão do conceito genuino do
texto . Certo é, que da segunda conferencia por diante elle estava
enthusiasta da lingua portugueza, chegando até a declarar em
PROLOGO XIX

uma das suas prelecções publicas, que o idioma portuguez, «por


sua indole, belleza, e concisão, era o que mais se prestava á versão
da Divina Comedia, segundo a experiencia que acabava de ter » .
Não é mister, que eu diga quanto fiquei commovido, e contente
de tão solemne declaração !
Por mez e meio tive a subida gloria de ter tido por mentor,
não simplesmente um sabio, mas um sancto! Que alma elevada !
Que coração bondoso ! Que tracto amenissimo ! Que precauções
modestas, e delicadas não usava, toda a vez, que era obrigado
a corregir algum erro meu ! Diz Dante em um dos seus cantos,
que ás vezes lhe aprazia errar, só para ter a satisfação de ser
corregido pelo seu doce mestre Virgilio! Outro tanto poderia eu
dizer de Giuliani ! Não paravam n'isto as suas finezas a meu
respeito : em todas as reuniões publicas, e particulares occu
pava-se da minha obscura entidade, e do meu trabalho com
a mais cordial benevolencia ! No excesso de sua dedicação,
prometteu-me escrever o prologo da minha obra, em que havia
de ponderar, que d’ora avante os estrangeiros, que emprehen
dessem traducções da Divina Comedia , se deviam modelar pela
minha versão ; porque era uma das pouquissismas em que o es
pirito de Allighieri se transluzia em toda a sua magestade, e exacti
dão ! Este mesmo juizo elle emittia até em cartas a seus amigos,
de um dos quaes recebi por escripto uma felicitação honrosissi
ma, que escuso publicar, porque tenho outros documentos mais
decisivos, que irei indicando por alto .
Não pôde Giuliani realisar esta promessa, porque a morte
0 atalhou . Tinhamos combinado, que elle escreveria em Roma
o prologo, quando lá fosse em fevereiro fazer a sua ultima con
ferencia sobre a Divina Comedia . A 20 de dezembro segui para
Roma, deixando - o um pouco adoentado. Ao despedir-me d'elle,
achando-se presente o venerando Conde Ambrosio de Lugo, seu
inseparavel amigo, abraçando-me, disse estas memoraveis pala
XX PROLOGO

vras, que me ficaram gravadas no coração : Monsenhor, tudo


quanto tenho sido na vida devo , abaixo de Deus, a Dante : todas
as attenções, com que a sociedade me tem tractado, nascem da
minha dedicação inquebrantavel ao divino Poeta ; agora mesmo
abraço um amigo, que não teria nunca , si não fosse elle ; por
tanto a sua amisade é para mim mais um presente, que d'elle
recebi . » Palavras d’estas não se commentam ...
Chegando a Cidade eterna, soube por cartas do mesmo res
peitavel Conde, que Giuliani empiorára sensivelmente. Escrevi
sem demora a Giulani, pedindo -lhe noticias de sua saude.
Respondeu -me do leito com a seguinte carta (que foi a ultima
que escreveu !):
Illustrissimo Monsignore :
Le mando questa risposta dal letto, dove sono trattenuto dalla
mia aggravata malattia . La ringrazio in prima dell' affetto, e
dalla riverenza, che Ella mi dimostra, e che io non so di meritar
mi. Continui nella sua magnanima impresa, e si tenga a Dante
sempre più fedele, e Dante ľaiutarà per giunger a glorioso porto .
Per me, se ora mi sorride il pensiero di avere atteso si lungamente,
agli studii di Dante, si è per che non cercai altro che di essergli
servo devoto, rivolgendo la sua parola a gloria della Chiesa di
Cristo, ed in publico beneficio. Preghi per me, e m'ottenga dal
Santissimo Padre ľ apostolica benedizione, e mi creda per affet
tuoso e sentito ossequio, e nel nome del divino Poeta, Suo devotis
simo amico -- Giambapttista Giuliani.
Firenze, 4 di Genaio 1874.

Nesta affectuosissima carta sobresáem dous pontos funda


mentaes 1.°, aquelle, em que Giuliani me recommenda, que na
minha magnanima empreza , me ateriha sempre a Dante, com
a certeza de que Dante me ajudaria a chegar a glorioso porto ;
palavras que denotam em Giuliani a convicção de que eu havia
PROLOGO XXI

penetrado no pensamento do Poeta ; 2.', aquelle, em que con 1

firma o que eu ha pouco disse, á saber : que por declaração ver


bal sua se havia estabelecido, por amor de Dante, entre mim , e
elle laços de amizade , e que era em nome do divino Poeta, que se
assignava meu devotissimo amigo. Grave, como era o caracter de
Giuliani; zeloso, como era da gloria de Dante, não podia aggre
gar ao coro dos seus verdadeiros cultores um truão, um impos
tor, etc. , etc.
Logo que recebi esta carta, dispuz -me a voltar a Florença,
para levar eu mesmo a benção do Sancto Padre ao illustre
doente ; mas, horas antes de partir, recebi este doloroso tele
gramma : « O nosso Giuliani vae-se por momentos! Então ex
pedi directamente ao enfermo outro telegramma , enviando -lhe
a Benção Apostolica , acompanhada dos votos do Augusto Pon
tifice de que ella podesse chegar a tempo ao seu destino.
Deus ouviu os votos do seu Vigario ! Giuliani ainda teve o
grande jubilo de receber a extrema absolvição papal . O vene
rando Conde Ambrosio de Lugo, referindo -me com expressões
as mais tocantes os ultimos momentos do glorioso trespasso de
Giuliani,conclue: « Pouco depois de receber o SanctissimoViatico ,
chegou o telegramma em que V. The enviou a benção do Sancto
Padre, e, ao ver-me entrar no seu aposento, me pôde ainda
dizer radiante de celestial alegria : Vedi, vedi là il dispaccio, che
mi spedi da Roma ľ ottimo Monsignore Pinto de Campos ! Quel
degno Prelato, ch ' io stimo ed amo già come un mio vecchio amico,
mi diede anche questa prova della sua solicita , e sincera affe
zione ! Iddio ne lo compensi con ogni più eletto bene ..
Giuliani não se limitou a palavras; quiz que ficasse registrada
em documento indelevel a amizade que me votava. Horas
antes de passar á melhor vida, chamou ao seu leito o dito Conde,
seu testamenteiro, e lhe disse, que, não obstante ter dedicado
as suas Memorias scientificas, e litterarias á sua virtuosa filha
XXIII PROLOGO

D. Bertolini; todavia era sua ultima vontade, que, permittindo


ella, fosse o autographo entregue a mim , depois da sua morte,
não só em prova de amizade , que o amor de Dante ligára a nós
ambos, como pela convicção de que eu, mandando imprimir o
seu escripto, e tiradas as despezas, applicaria o remanescente
do soccorro de algumas pobres familias, a quem elle benefi
ciava .
Effectivamente, voltando a Florença, a virtuosa, e illustra
da sr. D. Bertolini Lugo remetteu -me por seu venerando pae,
e seu respeitavel marido o sr. Bertolini o autographo de Giu
liani , acompanhado de uma enternecida carta, da qual a mo
destia apenas me permitte copiar estas palavras :
Monsignor Pinto de Campos. Con viva commozione dell'
-

animo Le rimetto il precioso Memoriale del nostro compianto, e


venerato Giuliani. Dopo aver egli conosciuta la squisita gentillezza
del cuore de V. S. Ill.ma, e aver in Lei apprezzato uno di più fervi
di e valenti cultori di Dante, significò il disiderio, ch'io Le ne
affidasse il manoscritto, etc.
Deixo que outros avaliem quanto me deveria penhorar esta
prova posthuma da amizade de Giuliani! Recebendo tão pre
cioso legado, mandei -o logo imprimir na officina typographica
de Monier, em Florença , declarando ceder integralmente ás fa
milias favorecidas por Giuliani todo o producto da venda do
livro, cujo proemio encarregou - se de escrever o illustrado Conde
de Gubernatis, amigo íntimo do fallecido. N'este elegante proe
mio, depois de transcrever a carta dedicatoria de Giuliani á
illustrada sr. D. Bertolini, enviando -lhe o manuscripto , explica
a razão de ser elle transferido para mim , dizendo : « Sovvenn
in buon punto al buon Giuliani ď' avere avuto occasione di conos
cere e di pregiari un esimio dantofilo braziliano, il quale s'accinse
ad una nuova compiuta versione portoghese della Divina Commedia,
PROLOGO XXIII

illustrata con quel metodo giudizioso che acquistò già tanta gloria
al nostro concittadino. Questo letterato egregio è monsignor Pinto
de Campos, uomo d'ingegno coltissimo e d'animo benèfico, che
vince intieramente ľ animo del Giuliani, inspirandogli la più affet
tuosa fiducia nella pietà dell illustre Prelado straniero. Consiglio
egli pertanto alla fidissima amica di combinare con monsignor
Pinto de Campos miglior modo di provvedere perchè i poveri ri
traggano dal libretto de' suoipensieri alcun giovamento. La volontà
del venerato estinto fu pienamente eseguita ; il Diario del Giuliani
venne della signora Bertolini Lugo consegnato, in omaggio, e ri
cordo dell' estinto , a monsignor Pinto de Campos, il quale prese
sopra di sè le spese della pubblicazione, dispensandoperchè l' intiero
profitto sia rilasciato a beneficio delle povere famiglie che saranno
designate alla sua carità dell' egregia signora Bertolini Lugo. »
Ha, de envolta com esta verdade historica , tanta amabili
dade para commigo, que a não ouso pôr em portuguez ! Qui
potest capere, capiat.
A predilecção com que Giuliani me honrava tornou-se tão.
publica, e notoria na Italia, que, com espanto meu, li o meu
obscuro nome citado em algumas orações funebres, que se pro
nunciaram em suas exequias em differentes cidades ! Como sei,
que depois da minha morte não terei honras eguaes, consola-me
o ver-me ainda vivo aggregado ao elogio funebre de um sabio,
que era ao mesmo tempo um sancto ! Mas entre todas as men
ções d’este genero, a que mais lisonjeou a minha obscuridade,
foi aquella com que me honrou o notabillissimo sabio Augusto
Conti, presidente da academia da Crusca de Florença ! No elogio
funebre, que pronunciou em obsequio de Giuliani, depois de
referir outras particularidades relativas ás minhas relações com
o illustre morto, commemorou , que na ultima exposição sole
mne, que Giuliani fez da Divina Comedia, perante um nume
roso auditorio, que o applaudia com fervor, declara que eu fazia B
XXIV PROLOGO

parte d'esse auditorio ;, mas em que termos ? Não ousarei tradu


zil -os; aqui vão no proprio original . In detto anno ebbe a Firenze,
nell Instituto di Studii Superiori, la Cattedra d ' Esposizione della
Divina Commedia ; e ľultima lezione, ammirata da numeroso udito
rio, segnatamente dal celebre Monsignor Pinto de Campos, tradut
tòre di Dante, la fece non molto prima dell' 11 di Gennaio, termi
no della sua vita terrena.
Si Giuliani se considerava devedor a Dante das attenções,
que recebia da sociedade humana; por minha vez me considero
devedor a Giuliani de todas as finezas, que recebi na Italia, não
só dos seus panegyristas, como dos jornalistas, que falaram da
sua morte !
Por occasião d'essa irreparavel perda , os Florentinos tra
ctaram logo de abrir uma subscripção com o fim de se levantar
um monumento ao grande interprete de Dante. Incontinenti
vasei no cofre da municipalidade 100 francos. Desejava fazer
mais ; ainda assim fiz mais do que os que mais fizeram . É
que a minha divida para com Giuliani era maior que a de
todos ! Appliquei, por intervenção da referida sr . D. Bertolini ,
egual quantia, em beneficio das familias por elle favorecidas.
Parece que, tendo juiz tão competente coroado os meus estu
dos dantescos com a mais explicita approvação, não deveria citar
abonações benevolas de outros dantofilos. Mas, achando-me
em Roma, e sendo natural que, conversando com alguns, mos
trassem desejos de ouvir a minha traducção, e commentos, não
hesitei em ler aos que, em lingua portugueza, não eram de todo
novatos, pois que me recitavam versos dos Lusiadas. Um d'es
tes, por exemplo, era um dos redactores do Osservatore Romano,
auctorisado orgão da Sancta Sé, e exactamente o incumbido de
fazer extractos dos jornaes estrangeiros, entre os quaes figuram
alguns jornaes catholicos portuguezes. A esse illustrado jorna
lista, que me honrava frequentes vezes com a sua presença, li
PROLOGO XXV

todos os meus trabalhos, a que elle acrescentava observações


utilissimas .

N’esse comenos, recebi de Lisboa um opusculo, em que o


erudito Conselheiro Viale reuníra suas traducções de alguns
cantos da Divina Comedia . Offereci esse opusculo ao meu digno
interlocutor, que na mesma occasião leu o episodio de Francisca
de Rimini com toda a facilidade. Deixamos de nos ver por
alguns dias ; até que na manhã de 23 de abril , li um bello ar
tigo no Osservatore Romano com este titulo : Traduzione dantesche.
Começava assim : « É certamente para nós italianos uma
ufania, e uma gloria singular, ver que os doutos engenhos de
todas as nações se applicam, talvez mais de que nós, ao estudo,
e interpretação do maximo entre os nossos Poetas.
« Não ha povo, que não possua no proprio idioma uma ou
mais traducções da Divina Comedia ; honra, que tiveram com
mum com Allighieri , entre os antigos, Homero, e Virgilio, e ,
entre os modernos, o cantor do Paraiso Perdido.
Faltava até agora uma versão do sublime Poema dantesco
em lingua de Camões, lingua que o Cardeal Mezzofanti repu
tava filha primogenita da latina, e a mais similhante a ella em
concisão, e aurea formosura. Mas esta lacuna será bem depressa
reparada, em honra do summo Poeta, e com grande satisfação
de quantos a cultivam, que é o mesmo, que dizer, de todo o
mundo civilisado .
Recebemos n'estes dias um elegante opusculo , impresso
em Coimbra, e devido á penna do sr. Antonio José Viale, conse
lheiro de S. M. El-Rei de Portugal. Viale é um dos mais illustres
litteratos portuguezes , e tem fama tambem de hellenista, theologo,
etc. O seu livro contém a tradução em terceto portuguez dos pri
meiros cinco cantos do Inferno, e do episodio do Conde Ugo
lino (XXXII),e é precedido de uma elegante carta do finado Rei
D. Pedro V ao auctor a proposito de suas traducções.
XXVI PROLOGO

« O sr. Viale deu ao seu livro o modesto titulo de Tentativas


Dantescas; mas são tentativas felicissimas, coroadas de pleno
successo , e que ajunctam uma nova honra ao seu illustre nome.

« Obra porém de maior folego se prepara . Monsenhor Pinto


de Campos emprehendeu, e realisou uma versão completa da
Divina Comedia .
« O eximio Prelado (que foi um dos mais intimos amigos do
fallecido dantofilo J. B. Giuliani) não tem feito estudos longos, e
profundos somente da Divina Comedia ; mas de todas as outras
obras de Allighieri ; e dest'arte pôde abraçar a synthese do gran
de conceito philosophico -politico -theologico do Poema dantesco.
• Conhecedor insuperavel da lingua portugueza , determinou
resolutamente dar á sua nação uma esplendida amostra de seus
aturados estudos, arrostando uma empreza, que seria ardua
para outros, mas não para elle ; e por fin conseguiu executar,
não uma simples traducção litteral , mas uma plena, e larga
interpretação dos conceitos do divino Poeta .
« Cada canto é precedido de uma ampla explanação geral
do assumpto ; fazendo depois acompanhar cada verso, ou terceto
de copiosas, e doutas annotações, explicando na maior parte
Dante pelo mesmo Dante (in cui per lo più Dante é spiegato con
Dante stesso ).
« Estamos seguros de que este novo trabalho do infatigavel
Prelado Referendario de Sua Santidade, e ex-Deputado da nação
brazileira , é destinado a obter o mais magnifico successo , espe
cialmente entre os nobres povos, portuguez , e brazileiro , aos
quaes faltava até agora uma completa traducção da Divina
Comedia !
Apresso -me a declarar, que a tradução d'este artigo não é
minha. Transcrevo - a do Commercio de Portugal do anno passado .
O meu benevolo amigo o sr. dr. João Chrysostomo Melicio, alma
PROLOGO XXVII

generosa, que parece ter a missão de ajudar os fracos, desde o


começo d'esta minha escabrosa tentativa, a tem sempre bafeja
do com palavras animadoras , já de sua propria lavra , já repro
duzindo as de outros. Assim foi, que não só traduziu , e impri
miu no seu excellente jornal o artigo citado, como traduziu , c
imprimiu outro, em sentido muito mais encomiasta, escripto, e
assignado por Monsenhor Agostinho Bartholini, insigne litterato,
e poeta , que em Roma explica em conferencias publicas na
academia da Arcadia a Divina Comedia. Esse artigo saíu no
Osservatore Romano de 28 de maio, apoz a leitura que lhe fiz
da minha traducção, e commentos . Não o transcrevo por ser
demasiado extenso, e mesmo porque já teve em Portugal larga
publicidade.
Não é por vaidosa ostentação, que tenho registrado n'este
escripto apreciações favoraveis ao meu trabalho ; pelo contrario,
não o tenho feito, senão pela nimia desconfiança de mim proprio .
Orgulho insensato seria, si me persuadisse ser o meu trabalho
tão completo, que dispensasse o beneplacito dos entendidos.
Nenhum homem leal deixará de acceitar de animo espaçoso
esta minha franca declaração.
Conscio pois da inferioridade das minhas forças para levar
ao cabo tão arrojado commettimento, não perdi na Italia occa
sião de ouvir, depois da morte de Giuliani, outros eruditos nas
cousas dantescas, entre outros os respeitaveis Augusto Conti ,
Cesar Guasti, Venturi, Poletto, etc. De todos colhi ensinos uteis.
Quaes fossem as difficuldades com que arquei na minha
traducção, quem quizer póde, já não digo experimental-as, mas
tenteal-as, abrindo qualquer pagina do tremendo livro ! Camillo
Castello Branco, o intrepido desbravador dos assumptos mais
arduos, querendo exprimir o recondito , e abstruso, não me
lembro bem de que materia , disse : Isto é tão escuro como um
terceto de Dante ! Esta phrase diz tudo !
XXVIII PROLOGO

Si alguem entender, que na minha traducção reproduzi o


pensamento fiel de Dante, ficarei contente ; si pelo contrario
entender, que tudo quanto eu disse é parto exclusivo da minha
phantasia, ficarei ainda mais contente ! Creio que acceitar qual
quer das duas hypotheses é mostrar-me o mais docil do mundo !
Dos criticos sisudos haverei como bem vinda toda a correc
ção ; mas não considerarei procedente, si não for acompanhada
da contraprova. Criticar por criticar é officio de ociosos mali
gnos, cujo instincto de mordacidade lhes é tão natural, como é
na vibora o instincto de morder. D'estes taes fala o Espirito
Sancto, por bôca do Psalmista : Acuerunt linguas suas, sicut ser
pentis: Venenum aspidum sub labiis eorum .
Ao leitor intelligente não escapará que o meu livro é fructo
custoso de muito estudo. Seria impossivel traçar a área dentro
da qual giraram as minhas investigações. N'este ponto poderei
imitar a Dante , que deixou ao cuidado dos curiosos o procurar
as fontes, d'onde havia tirado os materiaes com que construiu o
assombroso edificio do seu Poema . Em relação á intelligencia
do texto, não tive outro guia, senão o proprio Poeta , como
se poderá verificar na vasta urdidura do meu trabalho. Em
tudo o que lhe é extrinseco, seria absurdo suppor, que eu po
desse prescindir de me inspirar das investigações accumuladas
no decurso de seis seculos. Exigir originalidade absoluta em
materia tão explorada, e por mil fórmas dynamisada, seria exi
gir um verdadeiro impossivel .
O assumpto da Divina Comedia, é um d'aquelles terrenos,
em que, na bella phrase do nosso Vieira , ninguem póde pôr o
pé, senão por pegada alheia . É verdade, mas não me posso su
jeitar inteiramente a este dictame ; porque ainda que os antigos
commentadores beberam primeiro nas fontes, nem por isso as
esgotaram . Multum egerunt qui ante nos fuerunt, sed non perege
runt, já dizia Seneca . Muito fizeram antes de nós, mas não per
PROLOGO . XXIX

fizeram . Entre o fazer, e o perfazer, ha grandes intervallos. As


sim como elles ampliaram o que tinham dito os mais antigos,
assim tambem podemos nós ampliar, e descobrir de novo o
que elles não acharam, como hão de fazer aquelles , que vierem
depois de nós.
Si em todo caso, nem sempre pude dizer cousas novas , fiz
por dizel-as de modo novo, segundo o conselho de Quintiliano :
Non nova, sed nove. Por toda a parte, onde encontrei flores,
que sorrissem ao meu objecto, fui colhendo-as a meu talante .
Quem for seu dono, que as reclame, que as encontrará todas na
grinalda de que procurei cingir a fronte do divino Poeta. De
mais, que outra cousa têem feito os commentadores em geral?
Todos têem mais ou menos copiado uns aos outros, e nem
sempre indicando as fontes; de forma que de muitas opiniões
se ignoram os verdadeiros auctores !
De minha parte, esforcei-me em não omittir os nomes
d'aquelles , de cujos conceitos me auxiliei na interpretação d'este,
ou d'aquelle verso, ou terceto, salvo quando, não concordando
integralmente com as suas glosas, me satisfiz com aproveitar
uma idea, uma imagem, que , desenvolvendo -a, encarnei no meu
trabalho. Em summa, Dante em tudo, e Giuliani em grande
parte, são os meus guias exclusivos .
Na biographia do Poeta fiz o que todos fizeram : refundi as
antigas. Periodos houve, em que segui textualmente os biogra
phos anteriores ; outras vezes paraphrasiei em cheio os pensa
mentos do proprio Dante ; addicionando muitas particularidades,
que chegaram aliunde ao meu conhecimento.
Bem quizera aqui terminar este cansado prologo ; mas ha
um facto grave introduzido na vida litteraria de Dante, que eu
não
posso, nem devo deixar passar sem reparo ; porquanto,
dizendo eu, que refundi a biographi, que tracei, os factos ge
raes, narrados pelos anteriores biographos do Poeta ; mas não
XXX PROLOGO

encontrando refutado esse facto a que me refiro, julguei indis


pensavel trazel-o á collação, visto como tem sempre actuado
no longo processo das apreciações criticas dos cruditos, não
como uma impostura a desmascarar, mas pelo contrario, como
um episodio revestido de todos os caracteres de verdade his
torica ! Alludo a uma celebre Carta de Frei Hilario, que por
espaço de quasi seis seculos tem passado como documento lit
terario de grande valor, no juizo dos mais abalizados criticos !
Ouçamos, entre outros, o eminente historiador Cesar Cantú ...
« Fr. Hilario, prior do mosteiro de Sancta Cruz do Corvo,
na diocese de Luni, enviando o Cantico do Inferno a Uguc
cião della Faggiola , assim lhe escreve : « Aqui veiu Dante, attra
hido, ou pelo desejo de visitar esta ordem religiosa, ou por outro
qualquer affecto . Apparecendo este homem desconhecido a
mim , e aos meus frades, perguntei-lhe quem era, e a quem pro
curava ? Nada me respondeu, correndo em silencio os olhos
pelas columnas , e traves do claustro. De novo fiz-lhe a mesma
pergunta . E elle, voltando lentamente a cabeça, e fitando- nos
a vista, respondeu : Paz ! Despertou -me cada vez mais o desejo
de saber quem elle fosse : chamei- o de parte, e, apoz algumas
palavras trocadas entre nós, o conheci; porquanto, não obstante
não tel-o visto nunca , de muito a sua fama tinha-me chegado.
Vendo, que eu o olhava , e escutava com toda a benevolencia,
tirou do seio um livro, abriu-o gentilmente, e m’o offereceu di
zendo : « Irmão ( frate ): Eis parte da minha obra, talvez não vista
ainda por ti: deixo-te esta lembrança, a fim de que te não esqueças
de mim » . Recebendo o livro, apertei -o gratissimo ao peito, e
lhe fixei os olhos com grande amor. Mas, ao ver, que era es
cripto em italiano , mostrei -me maravilhado, e , perguntando -me
a razão , respondi : « Que a razão da minha surpreza era, que
elle houvesse cantado n’aquella lingua ; porque parecia cousa
difficil, e incrivel , que assumptos tão elevados se podessem si
PROLOGO XXXI

gnificar com palavras do vulgo, nem me parecia conveniente,


que uma tão grande, e tão digna sciencia fosse trajada d'aquelle
modo plebeu » . « Tens razão, replicou elle ; eu tambem pensava
assim , tanto que, quando as sementes d'estas cousas, talvez in
fundidas do Ceo, começaram a germinar no espirito, escolhi
aquella lingua, que fosse mais digna de manifestal-as, e não só
escolhi, como logo me propuz poetar assim :

Ultima regna canam fluido contermina mundo


Spiritibus quce late patent, quæ præmia solvunt
Pro meritis cuicumque suis. ( 1 )

Mas quando reflecti na condição da edade presente ; quan


do vi o desprezo em que eram tidos os canticos dos antigos
poetas , e que os homens , que deviam escrever cousas no gosto
d'aquelle bom tempo, entregaram (proh dolor !) as artes liberaes
aos plebeus, então puz de lado aquella pequena lyra, de que me
havia munido , e travei de outra , que afinei ao sabor dos ouvidos
modernos, etc. » (2)
O que Cantú quer dizer aqui é , que Allighieri , dirigindo-se a

regiões alem dos Alpes (ad partes ultramontanas ) pela diocese


de Luni, se desviou para o convento do Corvo, e entregou a
um fr. Hilario, prior do mosteiro, o Cantico do Inferno, a fim
de
que em seu nome o remettesse a Uguccião della Faggiola,
visto como lh’o havia dedicado. Cantú pois reproduz a versão
da Carta em latim, escripta por fr. Hilario !
É lamentavel, que homens de tanta erudição, e atilada cri
tica não tenham advertido que essa Carta de fr. Hilario é a

( 1 ) Estes versos não me parece que sejam de Dante, não só porque os não en
contro em nenhuma das suas Obras, como porque estão muito abaixo do aureo
plectro do discipulo de Virgilio ! Creio antes, com todo o fundamento, que são
abortos da phantasia de fr. Hilario. Em todo o caso, os transcrevo constrangido,
por não dever alterar a citação de Cantú .
(2) Storia della Letteratura Italiana, art. Dante, p. 54.
XXXII PROLOGO

mais ridicula impostura! Com razão diz outro critico italiano,


que os olhos de todos os homens não são egualmente perspica
zes para descobrir a verdade : Gli occhi di tutti gli uomini non
sono egualmente acuti a scoprire il vero ! (1)
Encetarei por partes a refutação d'este embuste secular.
Quando fez Dante essa viagem para regióes ultramontanas ?
« Fêl-a, respondem alguns, em 1309 , quando Uguccião della
Faggiola se achava de potestà em Arezzo » . Logo, exactamente no
tempo, em que Uguccião negociava com Bonifacio VIII a no
meação de Cardeal para um filho seu , em manifesto damno dos
Gibellinos , os quaes, reconhecendo- se trahidos por aquelle, a
quem incumbia defendel-os, retiraram-se precipitadamente da
cidade ! Logo, exactamente quando, unido com os Magalottis, (2)
e com outros nobres, Uguccião machinava a ruina dos Gibellinos,
até que, tornando-se gravemente suspeito de perfidia, foi remo
vido do governo de Arezzo ! Logo, exactamente quando, fautor
das demasias tyrannicas de Corso Donati , Uguccião, sempre in
constante na sua vida publica, fazia prova de um valoroso aven
tureiro, avido de fortuna, e de mando ! E era exactamente então,
que Dante, acerrimo inimigo da traição, havia de dedicar o
primeiro Cantico de seu Poema a um homem do caracter de
Uguccião della Fagiola ? « Não, diz Arrivabene, aquella viagem
Dante emprehendêra em 1310, em direcção a Losana , onde se
achava Henrique de Luxemburgo » . Logo, emprehendeu Dante
essa viagem quanto todas as suas esperanças se fundavam
n'aquelle Principe ; quando o sublime sonho de uma regenera
ção politica da Italia occupava todo seu espirito ; quando via
em Henrique o monarcha predestinado, em Roma a resuscitada
capital do mundo . . . Logo, seria n'essa occasião que havia de
( 1) Silvestro Centofanti.
(2) Os Magalottis, pessimi popolani, como os denomina Dino Compagni, eram
inimigos encarniçados de Dante ! Depois da saída de Carlos de Valois, fizeram par
te do governo, que desterrou o Poeta !
PROLOGO XXXIII

passar pela mente do grande desterrado offerecer o primeiro


Cantico da sua Epopea ao caudilho que, trahindo os seus , e
unindo -se aos facciosos, seria forte estorvo á restauração da
ordem social por Henrique ! O Poema sacro não era tambem o
livro da reforma social pensada pelo seu auctor ? Na selva in
fernal não era symbolisada a desordem moral, e politica da
Italia ? Quem havia , pois, de pôr termo efficaz a toda essa des
organisação civil ? Uguccião, ou Henrique ? Uguccião ? O agente
occulto de Bonifacio VIII ? o alliado dos Magalottis ? Risum te
neatis !

« Aquella viagem de Allighieri , diz Boccacio, teve logar


quando Uguccião era senhor de Pisa. , Logo, exactamente o
Poeta a emprehendeu depois da morte de Henrique de Luxem
burgo ! Logo, exactamente quando Frederico, Rei da Sicilia ,
havia provocado o desprezo, e as iras da musa de Dante ! E
esse mesmo Dante diz agora a fr. Hilario, que o Cantico do
Paraiso, não somente é dedicado a Frederico, Rei da Sicilia, mas
lhe deve ser enviado ! Qual seja este Dante da phantasia hilaria
na, confesso que não é bem claro ; sei porém , que o Dante mui
conhecido de todos, pelo que deixou escripto em uma Egloga,
o grão Poema sacro não havia sido terminado em nenhuma das
varias epocas assignadas a essa fabulosa viagem ! Logo, as
razões, que d'aquellas varias epocas excluem a possibilidade de
ter Dante dedicado o primeiro Cantico a Uguccião della Faggiola
são tão fortes, que excluem ipso facto a possibilidade de ter o
mesmo Dante falado com fr. Hilario ! Alem d'isto, quem não
conhece os severos principios de Dante ! Que estabeleceu elle
no Convito ? Estabeleceu, que o homem honesto deve franquear
a poucos a sua presença, e a ninguem a sua familiaridade:
L' uomo buono dee la sua presenza dare pochi, e la familiarità a
meno. Mas o Dante de fr. Hilario é de outra estofa ! Vejamos :
Nunca tinha visto fr. Hilario, nem fr. Hilario o tinha visto
XXXIV PROLOGO

antes d'aquelle dia, como elle mesmo diz na sua Carta : Quem
quamvis illum ante diem minime vidissem : não o procurava dire
ctamente ; pois que o seu destino era as regiões ultramontanas,
ad partes ultramontanas, diz o mesmo fr. Hilario ; mas, dado
o encontro fortuito , e trocadas entre ambos poucas palavras ,
eis o meu Dante amigo antiquissimo de fr. Hilario, a quem ,
em penhor de amizade, deixa o primeiro Cantico do Inferno,
para monumento de eterna lembrança d'elle ! Talia vobis monu
menta relinquo, ut mei memoriam firmius teneatis !
Ora, si Dante tivesse intenção de dedicar o primeiro Cantico
a Uguccião, e de lh'o enviar, antes de saír da Italia , disporia as
cousas com ordem : '1.', teria escripto a dedicatoria ; 2.', teria
providenciado sobre a sua expedição ; 3.°, teria escolhido uma
pessoa da sua intimidade, e confiança, que d'isso se incumbisse.
Não se tractava de negocio de pouca monta ; tractava -se de
nada menos, do que de uma parte do divino Poema. E não
havia em Lunigiana, por exemplo , o marquez Morello Malaspina,
que por mais de uma vez teve por seus hospedes Dante , e o
proprio Uguccião ? A quem mais idoneo do que elle, podia o
Poeta confiar essa commissão ? Ou Dante tinha intenção delibe
rada de offerecer o primeiro Cantico a Uguccião, ou não tinha .
Si tinha, porque não escreveu a dedicatoria ? E si não tinha ,
como admittir, que essa idea lhe occorresse subitamente ao ver
pela primeira vez fr. Hilario ? Seria Dante algum d'estes poe
taços, que ao primeiro quidam , que encontram n’alguma encru
zilhada, lhe entregam seus alfarrabios metricos para os distri
buir ? Segundo a narração de fr. Hilario, póde -se suppor que
Dante, trazendo sempre comsigo por toda a parte um exemplar
da sua obra, a deixava nas mãos de quem elle nunca imagi
naria encontrar ! Que papel triste, e leviano não têem os erudi
tos , extraviados pela fabula hilariana, feito Dante representar
por mais de cinco seculos! Quem ? Dante ? Oh , não ! O homem
PROLOGO XXXV

verdadeiramente digno d'aquella fama, que, por não perdel-a


entre os vindouros, havia supportado com heroica fortaleza todas
as inclemencias do exilio, affrontado todas as soberbas iras dos
inimigos da verdade, rompido com todas as facções politicas do
dia, sem reconhecer outra superioridade, que a da virtude , ou
tras delicias, que as da sciencia, jamais desceria a fazer a figura
de mentecapto diante de um fr. Hilario, que não tinha visto
nunca !
Darei de barato que elle, para expedir a Uguccião o primeiro
Cantico, se valesse do intermedio de um desconhecido ; mas
que o encarregasse de escrever a conveniente dedicatoria, é
isso absurdo intragavel ! Dante é muito infeliz n’estas dedica
torias, que, máo grado seu, ou sem que elle o saiba , os eru
ditos lhe fazem escrever ! Assim como á gloria de Frederico
o fazem consagrar o Cantico do Paraiso, no qual é asperri
mamente estigmatizada a infamia d'aquelle misero Principe,
assim o fazem agora consagrar o Cantico do Inferno a Uguc
cião, sem escrever a dedicatoria ! Esta falta porém é preen
chida, por commissão do Poeta, pelo astuto fr. Hilario, que
diz com toda a anchura : Cujus opus, cum suis expositionibus a
me factis, destinare intendo . Mas deixa as cousas em tal incerteza ,
e obscuridade, que se não entendem ! Porquanto, á primeira
vista, parece que o Cantico do Inferno já andava pelas mãos
de toda gente, quando das palavras, que fr. Hilario põe na
bócca de Dante, este exclue tambem toda a possibilidade de
ter elle visto jamais a primeira parte da sua obra : Pars operis
inei,quod fortè nunquam vidisti. Com effeito, si o Cantico do
Purgatorio já estava nas mãos de Morello Malaspina, e o do
Paraiso nas de Frederico, é que todo o Poema estava com
posto, e fr. Hilario não podia ignoral-o, salvo si se admittir o
absurdo de ter Dante escripto o primeiro Cantico depois dos
dous ultimos. Demais, fr. Hilario diz, que apenas Dante lhe
XXXVI PROLOGO

entregou o livro, e que elle viu ser escripto em italiano, en


cheu-se de espanto de que elle tractasse de assumptos tão altos
em uma lingua do vulgo. Como poderia fr. Hilario saber da
indole dos assumptos tractados por Dante n’aquelle livro, si
elle nunca o tivera lido ? Mentita est sibi iniquitas !
Ainda mais : si fr. Hilario foi o unico amigo a quem
Dante revelou o segredo da dedicatoria, como se explica, que
Uguccião tivera d'ella noticia, antes de recebel - a ? Ou teria
sido já prevenido por Dante, ou tivera alguma revelação divi
na ! O certo é, que da estupenda Carta de fr. Hilario se
percebe claramente, que Uguccião exige o Cantico que lhe
fôra dedicado : Opus ipsum destino postulatum ; palavras que Per
ticari traduziu : E com animo liberal a mesma obra, que exigis
de mim , vol-a envio . Mas aqui ha outra contradicção de fr. Hi
lario. Das palavras destino, e destinare resulta, que elle não en
viava o livro a Uguccião porque este o exigisse, mas fazia - o
de sua propria iniciativa ; o que não se conforma com o dever,
que Dante lhe tinha imposto !
Outra contradicção, e maior ainda : diz fr. Hilario, que Dante
lhe deu o livro como presente gracioso, a fim de que por aquelle
monumento o conservasse sempre em memoria : Talia vobis mo
numenta relinquo, ut mei memoriam firmius teneatis. Mas depois
acrescenta , que Dante, desejoso de recompensar os bons officios
recebidos de Uguccião, não sabia outro meio melhor do que
offerecer-lhe o primeiro Cantico. Este passo é traduzido assim
por um illustre erudito : E Dante mostrò al frate Ilario l opera
sua, anzi gliela regalò affinchè de lui conservasse più fermamemo
ria ... Desideroso l' Allighieri di voler contraccambiare per qualche
i buoni uffici avuti da Uguccione della Faggiola, non sa far
di meglio, che dedicargli la prima Cantica del suo Poema. Como
se explica esta embrulhada ? Dante faz presente do livro a fr.
Hilario, para o conservar como memoria da sua pessoa ; mas ao
PROLOGO XXXVII

mesmo tempo diz a ſr. Hilario que o remetta a Uguccião, em


reconhecimento dos bons officios, que d'elle recebera !
Mas o tremendo embuste não pára aqui : O astuto frade,
depois de figurar Dante falando - lhe com affectuosa doçura , com
uma quasi religiosa uncção (Che gli parla con una affettuosa dol
cezza, con una quazi unzione religiosa) diz que o Poeta acres
centou : Quæ cum dixisset, multum affectuose subjunxit, ut si
talibus vaccare liceret, opus illud, cum quibusdam glosulis, pro
sequerer , et deinde vobis transmitterem . Eis-aqui Dante pro
mettendo a fr. Hilario que, si as perseguições dos Guelphos
lhe permittissem occupar -se de taes cousas, elle proseguiria a
sua obra, ajunctando-lhe muitos commentarios, que depois lhe
remetteria ! O illustre interprete, a quem me referi ha pouco,
lendo esta passagem da celebre Carta de fr. Hilario, con
clue : É claro pois, que fr. Hilario, sem o pensar, adquiriu
a gloria de primeiro commentador do Cantico do Inferno. Onde
é chiaro, che frate Ilario, senza accorgersi, s' acquistò la gloria di
primo chiosatore della Cantica dell'Inferno.
Como assim ? Pois pelo facto de Dante prometter a fr. Hi
lario mandar-lhe os commentos ao Cantico do Inferno, póde
alguem em boa logica assegurar, que fr. Hilario teve a gloria
de ser o primeiro commentador do Cantico do Inferno ? Por
onde consta que Dante cumprisse essa promessa ? E se cumpriu,
não foi fr. Hilario o primeiro commentador, mas sim o primeiro
repetidor das glosas do Poeta ! Mas todas estas hypotheses des
apparecem em face da categorica declaração do mesmo fr .
Hilario, quando diz a Uguccião, que lhe envia o Cantico do In
ferno com os seus respectivos commentarios, feitos por elle :
cum suis expositionibus a mefactis. Logo, Dante não lhe mandou
as glosas promettidas! Salvo, si nos poucos instantes , que con
versou com o Poeta, lográra lhe arrancar do cerebro aquelles
segredos, que mais de cinco seculos de estudos profundos, de
XXXVIII PROLOGO

arduas investigações, não têem podido cabalmente penetrar


atravez das nuvens, que envolvem o alto conceito da Divina
Comedia !

É incrivel , que até Boccacio se deixasse illaquiar na urdi


dura de fr. Hilario ! Porquanto, diz elle na Vida de Dante o se
guinte: « O primeiro Cantico do Inferno dedicou Allighieri a
Uguccião della Faggiola, o qual então na Toscana era senhor de
Pisa admiravelmente glorioso : dedicou o segundo Cantico do
Purgatorio ao Marquez Morello Malaspina: o terceiro Cantico
do Paraiso dedicou a Frederico, Rei da Sicilia . Alguns querem ,
que o Poeta dedicasse todo o Poema a Can Grande della Sca
la ; mas qual d'estas duas versões seja verdadeira , nada pode
mos affirmar com certeza » .
Sem faltar ao respeito devido á auctoridade de Boccacio,
direi que, quanto á epoca em que elle assegura, que Dante
offerecêra o Cantico do Inferno a Uguccião, ha manifesto en
gano, 1.', porque no tempo, em que Uguccião era senhor de
Pisa, Dante ali esteve até o dia, em que o mesmo Uguccião, por
suas ribaldarias, e extorsões , foi expellido do governo por uma
sedição popular, como referirei na biographia do Poeta, o qual
por conseguinte, si tivesse intenção de lhe offerecer o Cantico do
Inferno tel-o-hia feito n’aquella conjunctura, e não por inter
medio de fr. Hilario : 2.º , porque no tempo em que fr. Hilario
diz, que Dante o incumbira da dita dedicatoria, Uguccião era
potestà em Arezzo, como affirmam os eruditos.Engana-se ainda
Boccacio, quando assegura , que o Cantico do Paraiso fôra dedi
cado a Frederico, Rei da Sicilia , visto como contra esta asserção
protestam as palavras do mesmo Dante, que na sua Epistola a
Can Grande declara, que, em reconhecimento aos seus bene
ficios, lhe dedica o sublime Cantico do Paraiso, por não achar
outra cousa mais digna da sua proeminencia : Neque ipsi præ
minentiæ vestræ congruum comperi, quam Comediæ sublimem
PROLOGO XXXIX

Canticam , quæ decoratur titulo Paradisi ; et illam sub præsenti


Epistola, sub epigrammate proprio dedicatam , Vobis adscribo, Vobis
offero, vobisque recommendo .»
É tanto mais incrivel que Boccaccio se deixasse illaquiar na
urdidura de fr. Hilario, quanto é certo que elle conhecia mui
bem a Epistola a Can Grande, da qual se serve no seu Com
mento á Divina Comedia ! Mas tudo isto se explica pela voga,
que a Carta de frei Hilario começou a ter, desde o seu appare
cimento, logo depois da morte de Dante ; e Boccaccio, aliás
admiravel talento, como prosador insigne, era destituido dos in
dispensaveis dotes de critico severo. Terei mais de uma occa
sião de exhibir provas d'isto, firmado no juizo de muitos erudi
tos de boa sombra .

Voltemos porém a fr. Hilario, cuja impostura, embora já


desmascarada em face do que até aqui tenho dito, precisa ainda
de alguns golpes decisivos . Já vimos, que elle quando figura ter
escripto a dedicatoria a Uguccião, diz que o seu fim era enviar
lhe o livro, que lhe fòra destinado por Dante, com todas as
glosas, ou commentos feitos por elle fr. Hilario : Cujus opus,
cum suis expositionibus a me factis, destinare intendo. Lembrar-se
ha tambem o leitor, que fr. Hilario diz n'outra parte de sua
Carta, que Dante lhe promettêra, ao despedir-se d'elle com la
grimas nos olhos, que, si tivesse tempo, proseguiria no seu Poe
ma, ajuntando- lhe algumas glosas , que remetteria ao seu bom
amigo fr. Hilario : Si talibus vacare liceret, opus illud, cum qui
busdam glosulis, prosequerer, et deinde vobis transmitterem . Ora
bem, segundo a passagem anterior a esta, vê-se, que Dante não
cumpriu a promessa, e que fr. Hilario, independente d'isso, fez
commentos ao Cantico do Inferno. Logo, si as explicações de
fr. Hilario não lhe foram ministradas por Dante, como effecti
vamente não foram , as que enviava a Uguccião, como feitas por
elle, eram irremissivelmente falsas, pois que mesmo Dante se
с
XL PROLOGO

reservou o direito de elucidar o sentido de suas Canções ; por


quanto diz no Convito estas terminantes palavras : Movemi desi
derio di dottrina dare, la quale altri veramente dare non può. In
tendo anco mostrare la vera sentenza di quelle (Canzioni), che per
alcuno vedere non può, s' io non la conto ; perchè, è nascosa sotto
figura di allegoria. Quer dizer : « Move-me o desejo de estabele
cer doutrina, que outrem verdadeiramente, senão eu, póde es
tabelecer. Pretendo pois tornar claro o conceito, ou sentido
d'aquellas Canções, que a ninguem é dado penetrar, si eu ll’o
não disser, porque esse conceito está sob o véo da allegoria. )
Ha nada mais positivo ? Mas agora vae o leitor ver cousa me
Thor. Vimos nas palavras, reproduzidas por Cantú, que fr. Hila
rio, vendo com estranheza, que Dante escrevêra a sua obra em
italiano, e não em latim , o mesmo Dante lhe respondêra : « Tu
tens razão ; eu tambem pensava assim , mas quando vi que na
presente edade eram desprezados os cantos dos poetas antigos, e
que os homens generosos, que podiam escrever no gosto d'aquelle
bom tempo da latinidade haviam deixado a litteratura aos ple
beos, deixei de continuar a uninha obra em latim, e comecei a es
crever em italiano .» Que frade temerario ! Saiba agora o leitor,
que estas palavras, embora adulteradas, são de Dante, mas não
ditas por elle a fr. Hilario, a quem nunca viu , mas escriptas
no Convito, d'onde fr. Hilario as truncou ! Dante, com effeito ,
havia bradado contra aquelles Principes, Barões, e cavalleiros ,
e nobres , que, por máo desuso do mundo, tinham deixado a
litteratura aquelles, que, de senhora, a fazem meretriz ... Contro
quei principi, e baroni, e cavalieri, e altra nobile gente, che per
malvagia disuzanza del mondo hanno lasciato la letteratura a coloro,
che hanno fatta di dona, meretrice. Dante, como profundamente
imbuido nas leituras classicas latinas, e como dominado das sau
dosas tradições do Imperio Romano, tinha grande amor á lingua
latina ; achava mesmo, que ella « exprimia muitas concepções do
PROLOGO XLI

entendimento, que a lingua italiana não póde, como sabem


aquelles, que conhecem ambos os idiomas» : Lo latino molte cose
manifesta concepute nalla mente, che il volgare non può ; siccome
sanno chi hanno l'uno e l'altro sermone. Mas acrescenta logo,
que na lingua italiana, como na latina, se podem exprimir altis
simos, e novissimos conceitos convenieritemente, sufficiente
mente, acommodadamente : Con cui (volgare idioma) altissimi, e
novissimi concetti convenevolamente, sufficientemente, e acconcia
mente; quasi como per esso latino manifestare si ponno ...
O Poeta é ainda mais positivo nas palavras, que se seguem:
« Tornando ao meu principal proposito, direi, que das razões
expendidas resulta que, si eu escrevesse a minha obra em latim,
a poucos aproveitaria o beneficio, ao passo que se estenderá a
muitos, escrevendo - a no vulgar italiano ... Adoptei o vulgar
italiano, e deixei o latino, movido pelo natural amor da propria
lingua (mosso per lo naturale amore della propria loquella) ...
Actuou em mim outra razão não menos forte, para preferir a
lingua italiana : pensando que, no desejo de entender as minhas
Canções algum illitterato, traduzindo o texto latino para o ita
liano, lhe adulterasse o sentido, como fez aquelle, que traduziu
a Ethica do meu mestre Aristoletes, tomei eu mesmo a delibera
ção de explicar os meus conceitos em lingua vulgar, confiando
mais em mim, do que nos outros (fidandomi di me più che d'un
altro)».
Agora compare o leitor estas razões dadas pelo verdadeiro
Dante com as razões dadas pelo Dante phantasiado por fr. Hi
lario! Este, segundo as suas palavras citadas por Cantú, apre
senta o Poeta constrangido pelo máo gosto do tempo a deixar de
continuar a escrever em latim, para escrever em italiano, sendo
vão alimento que é duro preparar para bôcas de creanças de
peito ! (vano essendo il cibo ch'è duro apprestare a bocche di lat
tanti ).
XLII PROLOGO

Precisarei de mais provas para demonstrar, que a Carta


de fr. Hilario foi uma fabula ridicula, por elle concebida , e
propagada depois da morte do Poeta ? Pois saiba finalmente o
leitor que , alem das provas critico -analyticas até aqui adduzidas,
reservei para remate d'esta refutação uma prova de facto, que,
na ausencia de todas outras, seria mais que sufficiente para ferir
de morte essa impostura adornada das cans de mais de cinco
seculos ! Fr. Hilario escrevia a Uguccião vivo depois do falleci
mento de Dante ; mas desgraçadamente Uguccião morreu tres
annos antes de Allighieri, combatendo sob os muros de Padua :
Ilario dunque scriveva ad Ugguccione vivo dopo chè Dante era
spento ; ma disgraziatamente era morto Uguccione tre anni prima
di Allighieri sotto le mura di Padova ! ( 1 )
agora aquelles, que não cessam de repetir a pa
E que dirão

lavra Paz ( Pacem ), que fr. Hilario diz saíra da bocca de Dante ,
quando a este perguntou -lhe no mosteiro do Corvo : « A quem
buscas ?, Pacem !
Ora, esta resposta é tão mais fabulosa, quanto, segundo a
asserção de Arrivabene, Dante n'aquella viagem buscava a guer
ra, e não a paz ; porque elle se dirijia a Losana a reduzir Hen
riquede Lexemburgo a marchar contra os facciosos italianos !
Diz um escriptor, que as imposturas litterarias, posto que
menos prejudiciaes, que as imposturas religiosas, todavia deve
haver todo o cuidado, e esforço em expungir do campo da litte
ratura, e da historia essas hervas de máo succo, principalmente
quando sob a sua folhagem se occultam erros, que passam com
o lapso do tempo á categoria de verdades incontestaveis.

( 1) Estas palavras são copiadas de uma carta do erudito Centofanti a A. Torri,


em 1846. N'essa carta allude a uma analyse critica, que escrevêra contra a celebre
Carta de fr. Hilario ; analyse, que não pude descobrir ; mas em compensação,
encontrei na sua citada, de 1846, argumentos rapidos, que bastassem para corro
borar a minha these contra a falsidade das asserções de fr. Hilario, cujo espirito
contradictorio revela -se a olhos visto !
PROLOGO XLIII

Bem sei quanto é difficil dissipar preoccupações, e erros


arraigados por seculos. A mentira repetida, e perpetuada pela
voz das gerações não deixa de adquirir seus direitos, mas esses
direitos, que equivalem aos dos possuidores de má fé, caducam
ante as reivindicações da verdade, por mais tardias, que possam
ser. O modo, por que fr. Hilario pinta Allighieri, quando ines
peradamente se lhe apresentou no mosteiro de Corvo, denuncia-o
como um vagabundo desvairado, com todas as apparencias
de louco ! A memoria do immortal exiliado exigia um desaggra
vo. Segreda -me a consciencia tel-o conseguido.
Agora, que me desenredei da teia de fr. Hilario do Corvo ,
passarei a finalisar com algumas observações , que julgo indis
pensaveis. Si Dante, em relação aos outros poetas, é sem egual,
em relação a si proprio é desegual . « Não ha riqueza sem min
goa », diz o nosso João de Barros . Mas em · Dante, as horas
menos felizes não provém da mingoa de engenho, e de arte ;
provém da indole defectiva de certos assumptos , que cantou ;
assumptos aridos, como os areaes do Inferno, e escabrosos como
os rochedos, que bordam o caminho, que conduz á cidade de
Dite : che ha nome Dite .

Em a narração, pois, d'estes baixos assumptos, bassi argu


menti, o Poeta foi obrigado a accommodar o estylo á materia :
« Com a materia convem casar o estylo ;
Levante -se a expressão, si é grande a idéa ;
Si a idea é negra, a locução negreje :
E tenue sendo, se attenue a phrase .» (1 )

Assim se explica a forçosa desegualdade, que se nota no


estylo de Allighieri ; sendo certo , que venceu impossiveis, que
nenhum outro venceria, quaes os de poetisar as situações mais
anti-poeticas, que se podem conceber !
(1) Bocage.
XLIV PROLOGO

Dadas estas circumstancias , ninguem estranhará que na mi


nha traducção reine a mesma desegualdade de estylo. Fiz , po
rém , quanto me permittiu a flexibilidade , concisão, e nativa
elegancia do nosso idioma, por amenisar a dicção, variando o
torneio dos periodos, umas vezes seguindo a mesma ordem do
texto, fazendo corresponder tres linhas em prosa aos tres versos
do terceto, outras vezes, para mais facilitar a intelligencia do
conceito, procedi com liberdade de expressão, afastando -me da
lettra, mas não do sentido. Bem ou mal , segui a mesma norma
estabelecida pelo citado Bocage, que assim se exprime em um
dos seus prologos de traducção : « Cuidei em conservar na dicção
toda a fidelidade possivel, excepto nos logares onde o genio
das duas linguas discorda muito ; então, apoderado do pensa
mento do auctor, tractei de o representar a meu modo, confor
mando -me n'isto ao sabido, mas pouco imitado preceito de
Horacio : Nec verbum verbo curabis reddere fidus Interpers .
TRAÇOS BIOGRAPHICOS

DE

DANTE ALLIGHIERI

CAPITULO I

Fontes.— A que fontes deve recorrer quem quizer estudar


ao serio a historia da vida de Dante Allighieri? A dizer a verdade,
muitos são os trabalhos, que deverá percorrer, diversos de cara
cter, e de valor historico. Em primeira plana estão as obras do
mesmo Poeta. Geralmente conhecido, e approvado, é o principio
que, para conhecer um escriptor, é antes de tudo necessario,
conhecer-lhe os escriptos, que são, por via de regra, a fonte pri
mitiva, e o mais fiel espelho do homem, do seu caracter, e do
seu modo de pensar. Mas , poucos são os escriptores, que tenham
estampado nas suas obras a propria individualidade, como fez
Allighieri. Nas diversas creações d'este genio portentoso , temos,
não sómente o genuino retrato do personagem, e a historia au
thentica do desenvolvimento gradual do seu pensamento , como
tambem uma copia de preciosas noticias relativas ás vicissitudes
exteriores da sua vida. Começando pela Vita Nuova, em que o
joven Poeta narra poeticamente, e sob veste allegorica, a historia
de seus infantis amores, até a questão da Agua, e da Terra,
XLVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

ultimo trabalho a que Allighieri poz mão, encontramos por toda


a parte em seus escriptos tantas noticias biographicas, e allusões
ás vicissitudes da sua vida, que o desumir a historia exclusiva
mente d'elles, como já alguem começou a fazer, bastaria para
tornar-nos conhecidos os pontos essenciaes da biographia d'aquelle
Grande. Assim, devendo-se considerar todas as suas obras como
fonte principalissima da sua vida intrinseca, e extrinseca, a ellas
cumpre cingir-se o seu biographo, não esquecendo nunca de ter
sob os olhos os trabalhos de arte, nos quaes é mister distinguir
accuradamente dous elementos, ou partes constitutivas, uma his
torica, outra poetica, e allegorica ; e estudando seriamente aquella,
que o mesmo Dante chamava a arte de desnudar as palavras do
Poeta das vestes da figura, ou da côr rhetorica, de geito a enten
der - se o seu l'erdadeiro conceito.
Emquanto ás principaes, e mais notaveis edições das obras
de Dante, daremos aquellas noticias, que nos parecerem neces
rias, nos paragraphos respectivos.
Da maxima importancia, pois, são os documentos do tempo,
que se acham em relação immediata , ou mediata com o Poeta,
e com a sua familia . O numero d'elles tem -se consideravelmente
augmentado, e é licito esperar, que não poucos ainda ressurgirão
do pó dos seculos . Uma collecção completa dos documentos
authenticos referentes a Dante, e aos seus antepassados, e des
cendentes, ainda está por fazer. Aquelles, que eram conhecidos
no tempo, foram reunidos diligentemente por Pelli, e depois por
Fraticelli. Não poucos descobertos posteriormente estam ainda
dispersos em varios volumes, opusculos, e fasciculos de Revis
tas ; de modo que não será facil conhecêl-os um por um . Alem
de alguns já publicados por Vernon, por Milanesi, etc. , encon
tram -se outros importantes nos trabalhos abaixo indicados (1).
Ao estudo das obras de Dante, e de todos os documentos
( 1 ) Della casa di Dante. Relazioni con documenti al Consiglio Generale del
commune di Firenze. 1865, in-8.°
Cavaltoni Cesare, Documenti fin qua rimasi inediti, che risguardano alcuni
de posteri di Dante. Publicati n'ell'Albo Dantesco Veronense. 1865, in-8.•
Del Lungo Izidoro, Dell'esilio di Dante. Discorso. 1881 , in- 12.° Si conforme
pure l' opere dello stesso autore : Dino Compagni e la sua cronica. 1879.
DE DANTE ALLIGHIERI XLVII

authenticos, que se conhecem, devem-se ajuntar as pesquizas


dos antigos commentadores da Divina Comedia. Sendo este
Poema todo individual na sua vasta universalidade, que abraça
o Céo, e a Terra ; e falando o Poeta tantas vezes de si, e das
vicissitudes de sua vida, aquelles antigos expositores, que lhe
commentaram os versos estranhos (versi strani), não podiam
deixar de dizer-nos tudo quanto colheram . Por isso que foram
elles vizinhos aos tempos de Allighieri, os juizos, que emittiram
devem ter caracter de maior certeza . Assim , o auctor anonymo
do commento intitulado Optimo ( Ottimo), affirma, que conheceu
pessoalmente o summo Poeta, e refere, entre outras cousas,
ter -lhe ouvido, que jamais a rima o obrigou a dizer outra cousa ,
senão aquillo que estava no seu proposito. Enganar -se -ía, comtudo,
quem cresse encontrar nos commentos antigos tanta copia de
materiaes, que bastassem para construir a historia da vida de
Dante. Escassas são as noticias, que nos offerecem aquelles
grossos volumes, e muita precaução deve haver em usar d'ellas ;
porque não raro, para entender os versos da Divina Comedia, é
necessario recorrer a outras fontes de informações. Quam pouco,
em geral, os antigos commentadores sabiam ou procuravam
saber os factos da vida de Allighieri , basta reflectir, que elles não
se achavam de accordo entre si, nem sequer nas cousas mais ele
mentares, como, por exemplo : tractando-se da Beatriz de Dante,
uns entendiam que ella fôra uma entidade real em carne, e osso,
outros, ao contrario, consideravam-n'a uma simples allegoria, ou
encarnação de uma idéa !
Entre as fontes da historia da vida de Dante , devem figurar
os seus antigos biographos, dos quaes o primeiro é o celebre
chronista Giovanni Villani, contemporaneo, e amigo do Poeta,
seu grande concidadão, a quem consagra um capitulo inteiro do
seu livro ( lib. ix, c . 136) . Com muita razão foi dito, que Villani,
no pouco que escreveu acerca de Allighieri , é sem duvida o mais
auctorisado, ou o unico verdadeiramente auctorisado. É grande
lastima, que os biographos posteriores, em vez de se firmarem
com affinco invariavel no seu testemunho, como tambem no in
fallivel depoimento das obras do Poeta, tenham jurado quasi
XLVIII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

exclusivamente nas palavras de Boccaccio ", não obstante ser o


seu trabalho biographico muito importante a certos respeitos,
como terei occasião de demonstral- o . Como elle mesmo diz ,
escreveu um tractadinho ( trattadrello ), em louvor de Dante ; mas
esse tractadinho é a mais extensa de todas as biographias antigas,
e que tem sido a base de todos os trabalhos biographicos suc
cessivos. O Dante, que geralmente se conhece até o dia de hoje,
é, quasi na essencia, aquelle descripto por Boccaccio . Diversos,
e desproporcionados foram , são, e continuarão a ser os juizos,
que se têem feito sobre o valor historico d'esta biographia. Uns
preconisam-n’a como trabalho unico por seus meritos, e como
fonte segurissima da vida de Dante ; outros, ao contrario , consi
deram-n’a como um romance historico, obra mais de um decla
mador, e de um rhetorico, do que de um diligente biographo.
Estudando - a com seriedade á luz da verdadeira critica , vemo - nos
forçados, máo grado nosso , a acostar- nos a estes ultimos (sem

( 1) Giovanni Boccaccio , filho de Boccaccio Chellino, que de Florença se trans


ferira para França, onde se entregou á vida commercial, nasceu em Paris em
1313. A familia dos Boccaccios era de Certaldo , terra da provincia florentina, e
d'ahi o appellido de Certaldese, dado a Giovanni Boccaccio, o qual com Dante, e
Petrarca, fórma aquelle triumvirato toscano, a quem tanto deve a lingua, e a litte
ratura italiana. Compoz Boccaccio um grande numero de obras escriptas em latim ,
e italiano, em prosa , e verso . Vale, porém , muito mais como prosador, do que como
poeta , salvo o merito de haver inventado a oitava rima, melhorada depois por Po
liziano, e levada á ultima perfeição por Ariosto.
A sua principal obra é o Decamerone, palavra que quer dizer obra de de ; dias .
N'este livro imagina, que sete senhoras, e tres mancebos, contam cem novellas em
dez dias, a dez por dia, e que essa scena se passa em uma povoação a 2 milhas
de Florença, onde finge que se reuniram , para escapar ao flagello da peste, que
desolou Florença em 1348. As novellas são precedidas de uma admiravel descripção,
que o auctor faz dos estragos do tremendo contagio. É porém deploravel, que as
graças da lingua, e do estylo, e os predicados da narração, sejam no Decamerone
deturpados pelas mais repugnantes obscenidades ! O proprio Boccaccio tanto o re
conheceu, que mesmo em sua vida teve remorsos, e por sua morte deixou em tes
tamento, que o livro fosse condemnado ás chammas. Muitos criticos consideram
Boccaccio o Voltaire da edade media ; mas a comparação não é exacta ; porque ,
si Boccaccio foi obsceno como Voltaire, não foi impio, e blasphemo como elle, nem
como elle morreu na impenitencia final ; pois consta de documentos authenticos,
referidos, entre outros, por Cesar Cantú, que Boccaccio nos seus ultimos tempos
deu evidentes provas de sincera conversão, deixando muitos legados pios a egre
jas, e a religiosos de sua amizade. No seu commentario á Divina Comedia revela
se theologo de muito sã doutrina :
DE DANTE ALLIGHIERI XLIX

embargo de reconhecermos, que de não poucas e preciosas no


ticias somos devedores a Boccaccio) ( ). Porquanto seria necessa
rio fechar de proposito os olhos, para não ver que o loquaz Cer
taldese estava mui longe da consciencia exacta do historiador
grave, e, si não inventava os factos, que referia, para dar maior
peso ás suas declamações , como alguns criticos severos não he
sitaram de lhe exprobrar, não curava nem muito, nem pouco,
de averiguar a verdade historica, nem a exactidão dos factos,
que expunha. É preciso, pois, não admittir como historicas as
narrações d'elle, sem amplo uso da critica, e sem o beneficio de
inventario.
Menos importante é a Vida de Allighieri, escripta por Filippe
Villani , sobrinho do chronista, e celebre jurisconsulto, e que em
Florença explicava a Divina Comedia. Atendo -se principalmente
a Boccaccio, a quem alguma vez contradiz, Filippe não fez senão
um magro compendio, em que não se encontra uma só noticia,
que se não leia nos mais antigos trabalhos. Parecendo a Leonardo
Bruni d’Arezzo, secretario da republica florentina, e famoso lit
terato do seculo xv, que Boccaccio deixára na Vida de Dante
muito a desejar, e a reparar, propoz-se a escrever de novo a
vida do Poeta, com noticia de cousas estimaveis, não para de
rogar Boccaccio, mas para fazer um supplemento á sua obra . A
biographia de Dante, escripta por Leonardo Bruni, é, com effeito,
de um valor historico incontestavelmente maior do que a de
Boccaccio ; é incontestavelmente a mais completa, que se escre
veu até aquelles tempos .
Si bem que mais prolixa, a Vita di Dante escripta por Gian
nozo Manetti, não é, todavia, em substancia, senão um extracto
(1 ) Da biographia escripta por Boccaccio temos dois textos diversos, o segundo
dosquaes, mais compendioso, e menos conhecido, geralmente se crê ter sido re
copilado por algum escriptor, que não se sabe quem fosse, nem onde vivesse.
Outros, porém, opinam que ambos os textos são feitura de Boccaccio, o qual, no
segundo teria abreviado, e modificado o primeiro. Esta opinião, recentemente de
fendida com muita agudeza por Scheffer Boichorst, não pareceu de nenhum modo
admissivel. Em 1300, observa Scartazzini, não era uso refazer um trabalho para a
segunda edição, e o modo por que o mesmo Boccaccio cita a sua obra no incom
pleto Commento da Divina Comedia, nos induz a concluir, que elle não conhecia,
senão um só texto do seu Trattadello in laude di Dante Allighieri.
TRAÇOS BIOGRAPHICOS

do que haviam escripto Boccaccio, e Leonardo Bruni. Póde- se


dizer o mesmo das breves, e compendiosas biographias compi
ladas por Siccone Polentano, por Domenico di maestro Bandino
d'Arezzo, por Landino, Vellutello, Daniello, e outros. Não se en
contram novidades no trabalho de Giovanni Mario Filelfo,
litterato do seculo xv ; antes as novidades por elle contadas não
são outra cousa, senão partos da sua phantasia . Com razão dizia
o marquez Giangiacomo Trivulzio : « Citar Filelfo como aucto
ridade, seria tão ridiculo, como seria citar o auctor do Dom
Quichote para confirmar um facto historico ! Basta recordar
que, não tendo provavelmente visto nunca os tractados da
Monarchia, e de Volgare Eloquenza, e não querendo confessar a
propria ignorancia, ousou inventar -lhes os preliminares, os quaes
naturalmente nada têem de commum com os preliminares das
obras do grande Allighieri .
Biographias modernas de Dante.— Grandissimo é o numero
d'aquelles, que nos tempos recentes, hão escripto biographias de
Allighieri dentro, e fóra da Italia . A nossa tarefa não é n'este
logar fazer uma resenha de todas ellas, mas somente indicar as
principaes, e mais importantes . Recolhendo quasi todos os docu
mentos até então conhecidos, Giuseppe Pelli, patricio florentino,
lançou os fundamentos da biographia scientifica do summo vate .
Mas, si Pelli empregou muita diligencia no seu trabalho, negli
genciou de outro lado o fazer uso conveniente da critica , como
aliás seria necessario ; d'onde vem , que por toda a parte andou
restolhando, sem desprezar mesmo as imposturas do leviano Fi
lelfo ! O marquez Dionisi de Verona, e o conde Carlos Troia,
inseriram nos seus livros importantissimos subsidios, em parte
mui desprezados , para a historia da vida de Dante, e de sua
epocha . Grande, e bem merecido successo alcançou a Vida
de Dante, escripta pelo conde Cesar Balbo, até o presente o
melhor trabalho d'este genero . É um verdadeiro modelo de con
sciencia litteraria, e historica . Superficial, e fastidioso é o grosso
volume Milchiorre Missirini , o qual, talvez por que fosse frivolo ,
e banal , teve a fortuna de se lhe tirarem quatro edições ! Reno
vando o trabalho de Pelli , e completando-o, Fratricelli escreveu
DE DANTE ALLIGHIERI LI

uma Historia da vida de Dante, preciosa, mais pelos documentos,


que reuniu, que pelo trabalho proprio do diligente compilador.
Biographias mais compendiosas temos em grande quantidade,
tanto em opusculos especiaes, como em introducções nas edições
da Divina Comedia. Mas em toda essa multidão de pequenas
biographias, mal se poderia discernir um só trabalho, que me
reça alguma attenção, e se eleve acima da mediocridade, e su
perficialidade commum a tantos livros, e opusculos dantescos,
cujo numero vae crescendo de anno em anno .
Não é só na litteratura italiana, que abundam biographias
de Dante ; todos os povos civilisados da Europa têem pago este
tributo ao summo Vate. Mas, á excepção da douta Allemanha,
poucos trabalhos originaes encontramos, que sejam alguma cousa
mais, que uma compilação mais ou menos aprimorada. Entre
os trabalhos biographicos escriptos em lingua ingleza, mencio
nâmos os de Vericour de Mignaty, de Botta, e de Rossetti . Em
França escreveram mediocres biographias do Poeta Chaba
non ,Artaud, Magnier, Dauphin, e outros. Na litteratura allemā,
pondo de lado todos os trabalhos congeneres de longo folego,
sobresáe o erudito, e aprimoradissimo trabalho, que Blanc es
creveu para a gigantea Encyclopedia das Artes, e das Sciencias.
As biographias allemás de Dante mais completas, e mais co
nhecidas são as de Wegele, e de Scarcatazzini; mas n’estas
mesmas se encontram bem poucas cousas, que mereçam ser
consideradas como resultados de investigações novas. O pri
meiro segue no essencial os passos de Balbo, o segundo os de
Dionisi, e de Fratricelli . Tão vasto, e uberoso é o campo, quanto
difficil é a sua cultura ! Mas facil, e roteavel será no futuro,
quando a litteratura dantesca se tiver enriquecido de um bom
numero de monographias biographicas . De algum tempo a esta
parte já se cuida d'isto. Já se tem começado a bater a poeira das
bibliothecas em busca de documentos authenticos , que até aqui
têem jazido na obscuridade. Os eruditos das duas nações, italiana,
e allemã afanam -se á porfia por estabelecer definitivamente a
verdade dos factos concernentes á vida, e aos tempos do divino
Poeta. A quem hoje quizer conhecer os resultados das indaga
LII TRACOS BIOGRAPHICOS

ções scientificas sobre o assumpto não basta já o estudo das


obras de Dante , e de algumas biographias modernas; mas deve
tambem entregar-se á improba fadiga de percorrer um par de
centenas de monographias, dispersas em outros tantos volumes,
opusculos, e fasciculos de revistas nacionaes, e estrangeiras. Mui
longo seria fazer um elenco minucioso de tudo isso ; mas não
escapará á diligente, e assidua investigação dos estudiosos.

CAPITULO II

O PRIMEIRO PERIODO DA VIDA DE DANTE

Do seu nascimento até a morte de Beatriz ( 1265-1290 ).- Periodo de fé,e de innocencia

SI

A Estirpe de Allighieri — Durante a sua viagem extatico


symbolica pelos tres reinos da eternidade, Dante encontra no
Céo de Marte 0 seu trisavô Cacciaguida , e lhe pergunta :
« Dizei-me : Quem foram os vossos antepassados?» Cacciaguida
responde-lhe, que os seus antepassados, e elles nasceram 110
bairro da porta de S. Pedro em Florença ; mas quanto a dizer -lhe
quem elles eram , e d'onde vieram , era mais honesto calar, que
falar. Logo as tradições relativas á estirpe de Dante não remon
tam alem do seu trisavô .
O mesmo Cacciaguida conta, que a sua mulher veiu do
valle do Pó; e que d'ahi se originou o sobrenome de Allighieri.
Com effeito, diz Boccaccio : A Cacciaguida , na sua mocidade, foi
dada por esposa uma donzella nascida dos Allighieris de Ferrara,
e tão prendada por belleza, e costumes, como por nobreza de
sangue : viveram muitos annos, e tiveram filhos. D'ella veio
o sobrenome de Aldighieri, segundo costumam as mulheres se
DE DANTE ALLIGHIERI LIII

desvanecerem de renovar nos seus descendentes o nome dos


antepassados. Aldighieri era o nome primitivo ; mas, o tempo
suprimindo -lhe o d , ficou sendo depois Allighieri. « Mas, acres
centa Scartazzini, não se encontram memorias de alguma fami
lia florentina, que tivesse tal nome. Os maiores de Dante não
tinham ainda um nome de familia, não se appellidavam , senão
pelo nome pessoal , e pelo de seus paes, como se usou longo
tempo entre a classe media , e por mais longo tempo ainda no
povo miudo . Giovanni Villani, diligentissimo collector de memo
rias de sua cidade, não nomeia nunca os Allighieris, sendo aliás
seu contemporaneo ; o que indica, que a familia, que deu ao
mundo Dante, era não só de origem popular, como tambem
de nome obscurissimo . )
Confesso, que não sei bem harmonisar esta conclusão com a
expressa declaração de Boccaccio de ter sido a trisavó de Dante
prendada de belleza, e de nobreza de sangue. O grave Tomaseo
commenta de outro modo as palavras de Boccaccio. Eis o que
elle diz : « Attesta Boccaccio, que Cacciaguida, trisavô de Dante,
casou com uma senhora dos Allighieris, a qual era de condição
decente, isto é, de uma das familias florentinas mais illustres.
Nem os parentes d'elle eram homens de não ambicionar estas
cousas, nem elle mesmo as desdenhava. No sacro Poema brada
contra a gente nova , que gerou em Florença damnoso orgulho;
e é verdade, que quando os novos ricos não se esforçam por se
tornar benemeritos por virtudes civicas, mas por titulos vãos, ou
por predominio dos empregos, que exercem , augmentam as
chagas da nobreza, e as diffundem por todo o estado . É este
o mal dos nossos tempos ; pois, quando os pergaminhos das an
tigas linhagens vão sendo devorados pela traça do tempo, surge, e
cresce fraldosa uma nova miseravel aristocracia de timbre com
mercial, de saber fraccionado, de luxo mercante, de vicios affron
tosos, etc. E por isto soberbo, mas não indesculpavel, foi o brado
do Poeta contra Florença, não já pura, porém inçada de fo
rasteiros
cidade
suburbanos, que traziam de seus valles pestifero odor
á .
« Qual fosse a imagem da nobreza, que Dante formava na
LIV TRACOS BIOGRAPHICOS

mente, dil-o a Canção , que começa ; Le dolci rime , na qual re


prova o juizo falso, e vil do vulgo baixo, e do vulgo patricio :
chama- o vil porque é fortificado pela vileza do animo. E no acto
de commentar outra Canção entre amorosa, e moral, entra em
disputas philosophicas, em citações sacras , em indicações poli
ticas, todas elementos de um só conceito .
Discorrendo a respeito dos nobres corrompidos, atira-se con
tra os tyrannos: nega que possa haver nobreza , tantos nos pri
meiros, como nos segundos. Virtude, e nobreza são nomes corre
lativos. Para mostrar como Allighieri punha acima da nobreza
do nascimento , das riquezas, e das posições a nobreza da virtude,
e do pensamento, no sentido do vocabulo maior, comprehendia,
não só o poder imperial, como a dignidade philosophica. Tem
perava os inconvenientes do gibellinismo partidario com o gibelli
nismo philosophico. Elle não queria que o philosopho, emquanto
philosopho, fosse sujeito a magestade imperial: o que quer dizer,
que as doutrinas do justo, e do injusto, toda a moral, e a mais alta
parte da politica, devem ser independentes dos arbitrios regios .
Distinguia a dignidade do homem da qualidade do cidadão.
“ Tinha -se pois em conta de nobre ; mas não prendia a sua
nobreza á cepa carcomida da humanidade enferma; entroncava
a sua genealogia no Céo entre as delicias dos sanctos, e as har
monias das espheras. Máo grado seu porém , a sua genealogia
terrena subia mui alto. « Os meus antepassados, e eu , disse Cac
ciaguida, nascemos no bairro da porta de S. Pedro .» « Eis
a prova da antiguidade de sua progenie, observa Lami. O
terem nascido, e habitado no coração da antiga cidade de
Florença é signal evidente de que eram antigos . » Os Allighieris
eram mais nobres, e mais antigos de que os Buondelmontis, os
Bardis , e os Albizzis . Mas quem fossem os maiores de Caccia
guida, e d'onde viessem, é mais honesto o silencio, que o dis
curso . Outros pretendem , que Dante se envergonhasse de que os
Frangipanis tivessem sido mais humildes servidores da Curia
romana , do que a honra permittia. Mas eu penso, que elle guar
dou silencio ácerca de seus antigos , porque d'elles nada sabia
(e quem nos diz , que soubesse , que um ramo d'estes Fran

+
DE DANTE ALLIGHIERI LV

gipanis, e talvez o seu tronco,era Slavo, e tinham dominios nas


costas da Damalcia ?). Pode ser ainda que calasse a sua ori
gem por modestia, como quando por occasião do colloquio dos
quatro poetas no Limbo, disse , que elles falavam a respeito de
cousas, que era bello calar. Si alguem porém quizesse reconhe
cer em Dante um descendente dos Frangipanis poderia achar a
razão do seu silencio, não na adhesão d’estes á côrte papal, mas
principalmente na traição de um d'elles ao misero Corradino, o
qual, arribando nas plagas de Roma, em uma terra dos referidos
Frangipanis, quando em seu bergantim navegava para Si
cilia, aquelle Frangipani, « vendo (diz Villani) que os naufragos
eram quasi todos allemães, homens guapos, e de gentil aspecto,
julgou, ao saber do naufragio, que era azada a occasião para enri
quecer : immediatamente prendeu a infeliz tripulação, na qual
achava -se Corradino , e os levou ao Rei Carlos , o qual , em reco
nhecimento da presa , doou ao traidor a terra , e senhorio de Pilosa
entre Napoles , e Benevento . « Ora Dante inimigo de toda perfi
dia, de toda vil traição , não podia certamente deixar de dar -se
por deshonrado de pertencer á familia Frangipani , por mais
nobre de sangue que ella fosse .
Cesar Balbo, que passa com justo titulo por ser o mais veri
dico, e esmerado de todos os biographos do auctor da Divina
Comedia, assim se exprime : « A familia de Dante gloriava-se de
descendencia romana ; dizia-se oriunda dos Frangipanis de Roma .
Dante parece em mais de um logar do Poema ( 1) lisonjear-se de
lhe pulsar nas veias o sangue romano. Mas onde elle fala
expressamente da propria familia não remonta senão a tres
irmãos chamados Moronto, Eliseo, e Cacciaguida, que vive
ram no seculo XII, e ao ultimo d'estes , que era seu trisavô,
attribue não sei si por desprezo, ou si por modestia, as seguin
tes palavras:
Gli antichi miei ed io nacqui nel loco
Dove si trova pria l'ultimo sesto
Da quel che corre il vostro annual giuoco (2)
(1) Principalmente no Inferno, c. xv, 73, 78.
(2) No logar, onde os corredores do palio ( jogo então usado, e ainda hoje em
Florença), entravam no bairro da porta de S. Pedro.
D
LVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

Bisti de' miei maggiori udirne questo :


Chi ei si furo, ed onde venner quivi,
Più è tacer, che ragionare onesto. (1)
— Os meus antigos, e eu nascemos no logar, no qual o cavallo, que dia de
S. João corre todos os annos o palio do poente para o nascente, encontra o princi
pio do ultimo bairro da porta de S. Pedro : basta que isto saibas a respeito dos
meus maiores ; mas quem elles fossem , e d'onde viessem para Florença, é mais
honesto calar, que dizer...

« O certo é que do segundo dos tres irmãos descenderam os


Eliseos, sempre tidos, e havidos por consanguineos da familia
de Dante, e esta descende do terceiro (Cacciaguida), e da sua
mulher Aldigeria, lombarda, segundo alguns, de Parma; porém
mais provavelmente dos Aldigeris, poderosos então, e depois
em Ferrara . D'ahi o chamarem -se os seus descendentes Aldi
gieris ou Alagieris, Aligeris, Alligieris, e Alighieris: disputa de
nomes de pouco alcance .
« Cacciaguida, alistando - se na cruzada do Imperador Conra
do, fez-se cavalleiro , e morreu na Syria em 1 147 . E por isto que o
Poeta, seu tataraneto, o põe no Paraiso, no Céo de Marte, entre
os guerreiros mortos pela fé ...
« Filho d'este cavalleiro Cacciaguida foi, entre outros, Alli
ghieri, bisavô de Dante; do qual não se sabe, senão que vivia
em 1189 , e provavelmente tambem em 120162', e que Danteo met
teu no Purgatorio no circulo dos soberbos (3). Filho d'este primeiro
Allighieri foi Belincione, avô de Dante; do qual não sabemos
tambem, senão que teve sete filhos, entre os quaes Allighieri se
gundo, pae de Dante . Foi jurisconsulto, ou, como então se dizia,
juiz de profissão: esposando em primeiras nupcias Lapa de Chia
rissimo Cialuſſi, d'ella teve um filho de nome Francisco ; e,
fallecendo esta, casou com Donna Bella , não se sabe de que fa
milia : d’ella teve, tambem em maio de 1265 , um filho, que, ba
ptisado na egreja de S. João, recebeu o nome de Durante, que com
o tempo foi abreviado no de Dante, de que o Poeta sempre usou .
Boccaccio menciona tambem uma irmã de Dante , casada com
(1 ) Paraiso , c. XVI, 40, 45.
(2) Pelli, p. 30 e seg.
(3) Paraiso, xv, 91 , 96
DE DANTE ALLIGHIERI LVII

Leon Poggi ; mas d'esta não se sabe o nome, nem de qual das
mulheres fosse filha.
Todos estes maiores de Dante foram Guelphos, e como taes
banidos pelos Gibellinos em maio de 1265 , conforme diz o
mesmo Dante no Poema . ( 1 ) Mas, durando o governo gibellino
em Florença , e por conseguinte o exilio dos Guelphos em maio
de 1265, convem suppor, ou que, vivendo ainda Bellincione,
fosse elle o exiliado, e não Allighieri, pae de Dante, ou , si era
este, obtivera algum perdão particular, e voltára a Florença, ou ,
que somente voltára a mulher ; sendo certo que de toda a fórma
o baptismo de Dante se realisou em Florença, segundo as suas
mesmas palavras. (2 ) Nasceu, pois, quando se preparava a mu
dança de fortuna do seu partido, e de sua familia : porquanto
exactamente um anno, e um mez depois, Carlos de Anjú ,
Conde de Provença , descendo á Italia, chegava a Roma contra
Manfredi, Rei de Apulia, e de Sicilia , cuja empreza transfor
mou o reino, e a Italia quasi toda, em particular Florença, de
Gibellina em Guelpha. Foram estes os presagios mais impor
tantes do futuro destino do Poeta, e não a posição dos astros ,
nem os sonhos .
Si me occupo da genealogia de Dante , é por não destoar
do côro de todos os seus biographos, e não porque entenda
que homens de tão grande vulto nas lettras precisem de ou
tros titulos heraldicos , que as suas obras . Estas, e não os acci
dentes de um berço, são o espelho em que atravez dos seculos
ha de reflectir a magestade augusta do genio. () berço dos
homens extraordinarios é sempre auspicioso , ou seja obscuro,
ou illustre, e, si obscuro, maior gloria para elles ; porque, ele
(1 ) Inferno, x, 46, 48.
(2) Sendo certo, e indubitavel, que Dante nasceu em Florença, objecta -se que
elle não podia nascer em 1265; porque, sendo seus paes , e parentes, do partido
guelpho, e se achando n'aquelle tempo os Guelphos banidos de Florença, não vol
taram á patria, senão no anno seguinte. Esta objecção, porém , não prevalece,
1.", porque não ha nenhuma certeza de que o pae de Dante figurasse entre os
banidos: 2.", e principalmente , porque as mulheres não eram comprehendidas na
ordem do banimento . Alem d'isto Dante affirma em muitos logares das suas obras
a data do seu nascimento . Na Vita Nuova diz, que elle era mais velho do que
Beatriz um anno, a qualNota
effectivamente
traductor
nasceu em 1266; portanto, não ha duvida
sobre referida
a data. ( do .)
LVIII TRACOS BIOGRAPHICOS

vando -se acima do commum , mostraram , digamos assim , parti


cipar do poder divino de tirar a luz das trevas. Architectos de
si mesmos, supprimiram na sua individualidade a lei fatal da
desegualdade humana; cancellaram as balizas da natureza, re
generando -a, nobilitando - a com os luminosos productos do
genio, que receberam de poder superior ao d'ella , do poder, que
reside em alturas inaccessiveis, d'onde, e a quem lhe apraz , dis
tribue dons especiaes , que fecundam o pensamento , e o tornam ,
na esphera da razão, tão fulgurante, qual o magestoso astro na
immensidade do espaço ! Homens d'esta feição, e molde, pode
rão porventura necessitar, para sua gloria, de lentejoulas posti
ças , ou de herdados brazões , que, não raro , são verdadeiras
tunicas de Nesso ? Sim , si a nobreza hereditaria, consorciada
com o merito individual, é dom do Céo, é poderoso incentivo
de emulação, e de imitação; divorciada do merito , é pallido
reflexo de uma luz, que se apagou na ignominia á mingua do
oleo sancto da virtude. Assim é, que o nobre, que contrasta o
titulo com obras ignobeis, já não é o fructo mimoso da arvore
genealogica de seus maiores; é raiz cancerosa ; é raiz morta .
Faltou -lhe o succo essencial da virtude, sem o qual não ha no
breza, ha uma chimera lustrosa, como cantou o nosso Bocage :
Sangue sem virtude,
É vão phantasma, que aos mortaes illude» ( 1 )

( 1 ) Conta - se que , achando -se João Xavier de Mattos, em casa de um certo


fidalgo, em occasião do jantar, este lhe destinou mesa separada; porque, sendo
poeta, e pobre, não se devia collocar ao lado de fidalgos. Isto não se disse clara
mente ; mas o poeta , que era atilado, comprehendeu logo o alcance d'aquella dis
tincção. Assentou -se á mesa , e, em vez de tomar a sopa , pediu papel, e tinta , e es
crereu o Soneto que se segue, deixando -o coberto com o prato :
Pobre ou rico , vassallo ou soberano
Eguaes são todos, todos são parentes,
Todos nasceram ramos descendentes
Do tronco antigo do primeiro humano.
Saiba quem de seus titulos ufano
Toma por qualidade os accidentes,
Que duas gerações ha só differentes,
Virtude e vicio, tudo mais é engano .
Por mais que affecte a vá genealogia
Introduzir nas veias a nobreza,
Que melhor sangue do que Adão teria ?
Não fará, desmentindo a natureza ,
Que seja, sem virtude a fidalguia ,
Mais que um triste fantasma de grandeza
DE DANTE ALLIGHIERI LIX

Juvenal já havia dito : Nobilitas sola, atque unica virtus.


Mais adiante Cantú reproduz est outras palavras do mesmo
Allighieri: « Si o direito dos nobres está na longa serie de gera
ções, a razão, e a fé reconduzem todas estas aos pés do pri
meiro pae, no qual ou todos foram nobilitados ou todos plebeus.
Pois que portanto uma aristocracia hereditaria suppõe a des
cgualdade, a primitiva multiplicidade de raças repugna ao
dogma catholico. Verdadeira nobreza é a perſeição, que cada
uma creatura póde attingir nos limites da sua natureza : para o
homem especialmente é aquelle accordo de felizes disposições ,
cujo germen a mão de Deus n'elle depositou, e que, desenvol
vidas, e cultivadas com perseverante vontade , se tornarão orna
mentos, e virtudes ».(") Póde haver nada mais sabio, mais phi
losophico, e mais justo do que este dictame dantesco ?
Do mesmo modo havia entendido Dante , o qual , bem longe
de desprezar a nobreza de sangue, como alguns pensam , lison
jeava-se d'ella emquanto inseparavel da virtude : ouçamol-o :
O poca nostra nobilità di sangue,
Se gloriar di te la gentefai
Quaggiù, dove l' affetto nostre langue,
Mirabil cosa non mi sarà mai;
Chè là dove appetito non si torce,
Dico nel cielo, io me ne gloriai.
--O nobreza do sangue, sem embargo de seres cousa de pouco preço, não
me admirarei nunca, si n'este mundo, onde o nosso atfecto é languido para o bem ,
faças que os homens se gloriem de ti ; si eu mesmo no céo, onde o nosso appetite
não se desvia do bom caminho , d'ella me glorio .

Ben se ' tu manto che tosto raccorce ,


Si che, se non s'appon de die in die,
Lo tempo va dintorno con le force.
(Paraiso, xvI.)

– Em verdade, ó nobreza, és muito similhante ao manto, que prestes se dila


cera, de modo que, si de dia em dia não é guarnecido de novas virtudes, a tesoura
do tempo o vae cortando em roda, até reduzil- o a farrapos.

A este respeito diz Cantú : Dante, zeloso como se mostrou


das origens puras, fustigou os privilegios de nascimento, e o
edificio feudal, pretendendo até que fosse abolida a hereditarie
( 1 ) Storia della Letteratura italiana.
LX TRAÇOS BIOGRAPHICOS

dade dos bens, assim como as das honras » .'") Diz Allighieri:
O poder publico não se deve converter em vantagem de
poucos, que, sob o titulo de nobres, invadem todos os empre
gos .

Data do nascimento de Dante . — Todos os biographos, e com


mentadores do Poeta o fazem nascer no mez de maio do anno
de 1265, e elle mesmo confirma esta data em diversos logares
das suas obras. Na l'ita Vuora affirma ter nascido um anno
antes de Beatriz, a qual veiu á luz do mundo em 1266, pois
que se achava na edade de 24 annos, quando cessou de viver.
em 9 de junho de 1290. No Convito diz, que elle havia attingido
ao cumulo da sua vida, quando, em 1301, deixou Florença,
para não voltar mais : o que importa dizer-nos, que viveu em
Florença até aos 35 annos da sua edade . E segundo a Divina
Comedia, elle se achava em 1300, anno ficticio da grande l'isão,
nel mezzo del cammin di nostra vita, isto é , nos seus 35 annos, e
que nascera quando o Sol demorava na constellação de Gemini,
que vem a ser entre 18 de maio, e 9 de junho.
O chronista Villani assegura que Dante morreu de cerca de
56 annos. Em verdade, si nascera na segunda metade de maio,
ou nos principios de junho de 1265, tinha 56 annos, e quasi
quatro mezes, quando falleceu em Ravenna a 14 de setembro
1321 .
Mas , sendo indubitavel que Dante nasceu em Florença ,
objecta-se que não podia ter nascido em 1265 ; visto como seus
paes , e consanguineos eram do partido guelpho, e os Guelphos,
estando aquelle anno banidos de Florença, não voltaram , senão
no anno seguinte. Esta objecção é de tanto menor peso, quanto
não temos nenhuma noticia certa de que, entre os Guelphos

(1 ) Deve -se entender que a hereditariedade dos bens, que Dante aqui fala, é a
hereditariedade dos bens, que vinham por morgado ; instituição que na edade me
dia era iniquissima. Da má, ou errada interpretação d'estas palavras do Pocta, ori
ginou-se em alguns a falsa idea de ser elle o iniciador do communismo! ( certo é,
que no correr dos tempos, o pensamento da abolição dos morgados triumphou em
quasi todas as nações civilisadas. ( Nota do traductor.)
DE DANTE ALLIGHIERI LXI

banidos, se achasse tambem o pae de Dante, e que, ainda quando


se achasse, não exclue todavia a possibillidade de haver Bella,
mãe de Dante, conseguido por via de seus parentes de Florença
a permissão de vir dar á luz n’esta cidade. Demais, as mulheres
não eram comprehendidas no decreto de banimento .
Costumaram os povos, em todos os tempos , cercar o berço de
seus grandes homens de acontecimentos portentosos . Narra dif
fusamente Boccaccio um maravilhoso sonho, que tivera a mãe
de Dante, no qual sonho viu, poucos dias antes do seu bom suc
cesso, qual devia ser o fructo do seu ventre . Mas a narração do
loquaz Certaldese nenhum outro valor tem, senão o de um sonho.
Refere-se tambem, que Brunetto Latini , observando o estado do
Céo, no momento do nascimento de Allighieri , lhe fizera o ho
roscopo, predizendo que seria elle um homem de grande enge
nho, e doutrina, por cujos dotes alcançaria fama immortal. Mas,
não estando Brunettó Latini n'aquelle anno em Florença , mas em
Paris, como poderia fazer esse horoscopo ?

S 3

Dotes naturaes . Foi Dante Allighieri do pequeno numero


d'aquelles, a quem a Providencia confiou dez talentos, e a Na
tureza accumulou de dous extraordinarios . Em todas as suas
obras, não só em verso, como em prosa, revela-se o homem de
sentimento profundissimo, e de engenho maravilhosamente per
spicaz. De todos os dotes do coração, e do intellecto um só lhe
não faltou. Trouxe comsigo ao mundo o talento, e a propensão
de immergir-se nas aguas do mysticismo, não sempre muito
limpidas, e de levantar o seu tabernaculo nos aridos, e arenosos
desertos da escolastica . Os predicados do seu coração não po
diam deixar de inclinal-o aos extasis na direcção do sobrena
tural do seu tempo, assim como ao seu agudo entendimento de
viam sorrir, não só as occupações superlativamente subtis do
escolatismo, mas tambem as especulações d'aquella philosophia
então em voga .
Esses dotes naturaes de Dante manifestam - se esplendidos
LXII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

em todas as suas obras, especialmente no maximo Poema. É


pela alteza de engenho (per altezza d'ingegno ), que elle vae pelo
mundo cego (per lo ciecco mondo): basta, que siga a sua es
trella, para não deixar de chegar ao glorioso porto. Concorreram
os influxos beneficos dos Céos, a largueza das graças divinas, para
tornal- o virtualmente tal , que na esphera da razão humana nada
lhe ficou por explorar, realisando o Nihil intentatum de Horacio.
« Foi o nosso Poeta, diz Boccaccio, de maravilhosa capacida
de, de memoria firmissima, e de perspicaz intellecto. Foi simi
lhantemente de altissimo engenho, e de subtilissima invenção.
Deliciava -se com o viver solitario, a fim de que suas contem
plações não fossem interrompidas; e si acontecia que, achando
se elle entre pessoas, lhe occorresse algum pensamento, que
lhe sorrisse, por mais perguntado que fosse sobre qualquer
cousa, não respondia, sem que seu espirito o tivesse bem rumi
nado. Isto muitas vezes aconteceu , ou estando elle á mesa, ou
andando com os seus companheiros em passeio . Outro tanto se
dava nos momentos consagrados aos seus estudos, dos quaes o
não demovia nada, por maior curiosidade, que podesse ex
citar.
O seu segundo biographo Leonardo Bruni acrescenta :
« Entregou-se Dante não só á litteratura, como ao estudo de
todas as artes liberaes, não omittindo applicação alguma, que
possa tornar o homem excellente ... Depois da memoravel ba
talha de Campaldino ( 11 de junho de 1289) Dante, voltando á
sua casa, reatou o fio de seus estudos, e se comprazia, quando
estes lhe davam folga, em tomar parte nas conversações urba
nas, e civis ; sendo cousa admiravel, que estudando continua
mente, a ninguem pareceria que estudasse, attento o habito de
suas palestras alegres, e juvenis .»
Por falar na celebre batalha de Campaldino, dizem as his
torias do tempo, que o joven Allighieri, muito estimado de
todos, por sua natural galhardia, cingiu as armas, e combateu a
cavallo na vanguarda da cavallaria, portando-se com tanto valor,
que por vezes correu imminente perigo . A essa jornada refere
se elle n'uma epistola , já para nós perdida , n'estes termos : « Dez
DE DANTE ALLIGHIERI LXIII

annos tinham-se passado, depois da batalha de Campaldino, na


qual o partido gibellino foi quasi destruido, e morto , em cuja
refrega me achei, não aprendiz nas armas, (non fanciulo nell' ar
mi): no começo tive muito medo ; mas no fim grandissima alegria
pelos varios episodios d'aquella batalha » .
Das palavras non fanciulo nell' armi (non rudis belli) resulta
que Dante era já n’aquelle tempo experimentado nas cousas da
guerra, e por isso devemos inferir, que a batalha de Campaldino
não foi o primeiro feito de armas , em que se achasse . Como
vimos ha pouco, Leonardo Bruni affirma que Allighieri era já
estimado por seu valor, antes da dita batalha : o que corrobora
a supposição de que elle já se tivesse achado em outros recon
tros. Não faltariam , antes da guerra do Casentino, occasiões
em que se elle exercitasse em facções guerreiras . Alguns sus
tentam que tomaria parte no guerra dos Florentinos contra os
Aretinos, em 1288 ( Villani, vii, 120, 124) e alludem a ella as
palavras do Poeta ( Inf., xxii) . Mas, privados como estamos, de
dados positivos, taes opiniões não podem ter senão o valor de
conjecturas mais ou menos provaveis. Quanto ao assedio do
Castello Caprona, que, depois de alguns dias de resistencia, ca
pitulou em agosto de 1829, sabemos, por testemunho do mes
mo Dante, que figurou parte n’esta expedição dos Florentinos
contra os Lucheses; achando -se presente quando o Castello foi
entregue aos sitiantes ( Inf ., xxi) .

S 4

Educação. — Posto que o genio seja devedor de muitas cou


sas, e porventura das melhores, á Natureza, e ás proprias fadi
gas, nem por isto é menos verdade, que no seu desenvolvimento
intellectual, tem decisiva influencia a educação, que recebe na
infancia : influencia tão poderosa , que um summo philosopho
não hesitou em dizer, que o homem não é mais do que o pro
ducto da educação recebida. Para conhecer plenamente o indi
viduo, é necessario conhecer quaes foram seus educadores , e
mestres . Tractando - se de Dante, não podemos infelizmente dilu
LXIV TRAÇOS BIOGRAPHICOS

cidar de modo satisfactorio este ponto; sendo escassissimo o que


a este respeito sabemos. Em tudo o que concerne á sua vida
primitiva no lar domestico, ás impressões, que recebeu, aos en
sinos, que lhe foram dados, etc. , nada nos foi transmittido com
certeza alem de conjecturas . Nos seus escriptos observou sobre
este quesito um silencio absoluto. Quando recorda a cara, e
boa imagem paterna de Brunetto Latini, que no mundo a todos os
momentos lhe ensinava como o homem se eternisa, as suas palavras
mal se prestam ao sentido, que lhes attribuem os biographos, e
commentadores antigos, e modernos, isto é, que Brunetto houves
se sido mestre de Dante, como de chamar elle Guido Guinicelli
seu doce pae não se deve inferir, que Guido dividisse com Brunetto
a gloria de ter sido seu mestre. Proscripto de Florença em 1260,
Brunetto procurou a França, onde viveu alguns annos, e não
parece que tivesse voltado em tempo de ter podido ser preceptor
do Poeta. O testemunho, que este dá da cara imagem paterna
de Brunetto se referirá portanto não a ensinamentos, que lhe
fossem dados pelo secretario Florentino na puericia, mas a con
tinuas admoestações paternaes de proseguir na vida estudiosa,
como caminho ao templo da memoria, que lhe havia de eternisar
a fama.
No que respeita a escolas superiores, ou universidades fre
quentadas por Dante, achâmo-nos essencialmente na mesma es
curidade. Os seus biographos, e commentadores o mandam a
Bolonha, a Padua, a París, e até a Oxford a estudar os diversos
ramos do scibile umano. Mas as interminaveis contestações acerca
do tempo d'estas viagens provam de per si quam pouco devemos
confiar em taes noticias. Como é o mais auctorisado, por isso
mesmo Villani é porventura o chronista mais veridico quando
nos diz , que Dante, « expulso, e banido de Florença, foi estudar
a Bolonha, e depois a Paris , e mais partes do mundo » .
Mas, 'bem que privados de todas as noticias authenticas
positivas sobre a educação ministrada ao altissimo Poeta na sua
puericia, e infancia, temos todavia um documento importantissi
mo, capaz de contrapezar todos aquelles, que se poderiam desejar.
Este documento inapreciavel é o proprio homem , qual se nos
DE DANTE ALLIGHIERI LXV

apresenta em suas obras . Vemol-o dotado de conhecimentos tão


vastos, quanto profundos, sabendo tudo o que se soube no seu
tempo, e escrupulosamente exacto nas pequenas, como nas gran
des cousas ! Vemos um homem de uma alma altiva, manifes
tando o mais soberano desdem por tudo, que humilha , e avilta
a dignidade humana aos olhos dos seus similhantes, como aos
olhos da propria consciencia ! Vemos um homem, nobremente
ufano de si mesmo, que renuncia as mais caras, e doces espe
ranças ante a idea de curvar -se aos prepotentes injustos, que
The offerecem um perdão ignominioso ! Vemos um homem que ,
não timido amigo da verdade, diz francamente a muitos aquillo,
que lhes ha de saber a fel, para não perder o direito á fama entre
os vindouros ! Vemos um homem , que ama sim a propria fama,
porém ama muito mais o bem dos seus similhantes , e que não
escreve suas obras immortaes, senão com o intento de ser-lhes
util no sentido de removel-os do estado de miseria d'esta vida
ao fastigio da felicidade eterna ! Este homem, tal como o vemos,
não podia ser o que foi, si na sua infancia, ou si desde seus
tenros annos não começasse a receber uma educação esmera
dissima. Um campo, onde amaduraram em tanta copia fructos
tão bellos, e deliciosos , não podia deixar de ter sido cultivado cui
dadosamente . Boccaccio confirma tudo isto, dizendo : « As obras
poeticas de Dante não são, como alguns nescios julgam, um
tecido de fabulas vás ; mas um thesouro de dulcissimos fructos,
de verdades historicas, e philosophicas de alto primor » .

S 5

Primeiras impressões. Não sabendo absolutamente nada


-

ácerca da vida domestica , em o seio da familia, onde nasceu, e


cresceu o Poeta, não podemos ao menos adivinhar quaes fossem
as impressões que d'ella recebeu ; mas do estudo do seu caracter,
do seu modo de pensar, e proceder, podemos concluir, que
desde a sua mais tenra infancia elle deveria ter tido ante os
olhos exemplos de um viver honesto, nobre, severamente mo
ral, e escrupulosamente religioso. Si, pois, não conhecemos a
LXVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1 vida domestica da familia, podemos bem julgar quaes impres


sões deveriam fazer no seu animo, já a vida de seus concida
dãos, já os seus costumes, e já os acontecimentos de um seculo,
em que o mundo da edade media morria, e começava a desper
tar a aurora do mundo moderno. Atravez das grandes convul
sões, e das luctas encarniçadas de dous principios oppostos, o
Poeta via exemplos de virtudes sublimes, como de negros vicios,
de piedade, e de crueldade atroz. A Divina Comedia é o docu
mento vivo das impressões, que todos esses variados dramas
The produziram n'alma. Quam profundas fossem essas impres
sões, basta ver o modo por que o Poeta canta o tragico fim de
Francisca de Rimini , e o do infeliz conde Ugolino. Em summa,
para conhecer Dante, não só como homem , mas como Poeta ,
e escriptor, e para comprehender as suas obras, é indispensavel
o estudo minucioso da historia do seu tempo, especialmente da
Italia, e em particular de Florença. Gino Camponi , entre os mo
dernos, condensou magistralmente todos os acontecimentos mais
notaveis, na sua Historia das republicas de Florença. É fonte se
gurissima de consulta, e de estudo.

S 6

Amigos de Dante . Para comprehender como Allighieri se


tornou o homem que foi, importa investigar quantos, e quaes
fossem os amigos com quem convivêra, e que podessem ter
exercido uma influencia qualquer sobre o seu desenvolvimento
intellectual , scientifico, moral, e religioso . Como ignotas são
outras muitas cousas da sua vida, não sabemos sequer quem
fossem seus companheiros, e amigos de infancia, e de puericia .
As noticias certas que temos das suas amisades, nắo remontam ,
senão até aos 18 annos da sua edade . Encontramos os seus com
panheiros entre poetas, philosophos, e artistas do tempo. Chama
seu primeiro amigo a Guido Cavalcanti , celebre poeta , philoso
pho platonico, e que os seus contemporaneos diziam ser a se
gunda lingua da Toscana , depois de Dante ; conceito que Filippe
Villani exprime n'estas palavras : « Era opinião geral , que nas
DE DANTE ALLIGHIERI LXVII

Odes Vulgares, Guido Cavalcanti occupava o segundo logar


depois de Dante : Ch'egli tenesse del Ode Volgari il secondo luogo
dopo Dante. O mesmo Dante, alem da honrosa menção que d'elle
faz na Vita Nuova, dá-lhe a preferencia a Guido Guinicelli, no
conhecimento da lingua, no seguinte terceto :
Cosi ha tolto l'uno all' altro Guido
La gloria della lingua ; e forse è nato
Chi l'uno, e l'altro caccerà di nido.
(Purgatorio, XI.)
« Assim tirou um Guido ao outro Guido
A gloria de saber a lingua ; e talvez é nascido
Quem expellirá um , e outro do ninho. »

Quer dizer, que assim como Guido Cavalcanti se tornou su


perior a Guido Guinecelli, assim elle Dante se tornará superior
a Guido Cavalcanti. Porventura d'estas palavras de Allighieri ,
e de outras de egual altivez, o chronista Villani tomasse motivo
para dizer, que Dante era presumpçoso do seu muito saber.
Boccaccio, falando de Guido Cavalcanti, diz : « Corria entre
a gente vulgar, que Guido Cavalcanti, em todas as suas espe
culações philosophicas, não procurava outra cousa, senão argu
mentos em favor do atheismo » . É probabilissimo , que essa crença
vulgar nascesse da circumstancia de ter Dante mettido no In
ferno, entre os epicuristas, Cavalcante Cavalcanti , pae de Guido .
Parece que o proprio Boccaccio reconheceu depois, que fôra
injusto para com elle ; porquanto, posteriormente no seu
commento sobre Dante, tocando de novo n’aquellas cousas,
que tinha dito d'elle na Novella Nona, omittiu a imputação
de epicurista ; confessando, pelo contrario, que Guido Caval
canti era homem de muito bons costumes, optimo dialectico, e
philosopho sensato. Com effeito, nas obras de Guido, que pos
suo, não ha uma só palavra, que revele o mais leve sentimento
destoante da crença christā, salvo, si o facto de falar elle muita
vez em amor, tornasse suspeita a sua orthodoxia . Mas, si isto
bastasse para consideral-o anti-christão, seria mister pôr na
mesma linha os maiores poetas espiritualistas , como o mesmo
Dante, e Petrarca. O conde Mazzuchelli, nas suas eruditas notas
LXVIII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1 á Vida de Guido Cavalcanti, escripta por Filippe Villani , o de


fende com grande força de argumentação de similhante injuria ;
como tambem o conego Biscione , nas suas annotações á Vita
Nuova de Dante, sustenta, que o magnanimo philosopho toscano
jamais se manchou do epicurismo de seu pae. Na famosa canção :
Donna mi prega perch' io voglia dire

não ha nada, que saiba a epicurismo. Ao inverso d'isto, em


algumas de suas Rimas, Guido Cavalcanti mostra sem rebuço
crer em Deus. Que bello , expressivo, e tocante, não é o seguinte
verso :
Dio prendati merzè si che in te saglia !

« Deus, tem misericordia de quem contia em ti . »

Bem desejaria, si m'o permittissem os estreitos limites d'este


escripto, transcrever aqui por inteiro uma mimosa Ballatta , que
este mesmo Guido Cavalcanti dirigiu a Guido Guinecelli , em
honra de uma imagem da Virgem , que no seu tempo se venerava
n’um grande nicho da egreja de S. Miguel de Florença, e que
começa assim :

L'n ' imagine della mia Donna,


O Guido, è adorata in San Michele in Orto,
La quale, bella di volto, onesta e divota,
E rifugio e conforto dei peccatori.

E due lumi posti di fuora l'adornano:


La fama (de' suoi miracoli) va lontano.

Quem escrevia cousas d'este genero, é impossivel que se


achasse inficionado de epicurismo, ou de atheismo ! Consta
alem d'isto, dos chronistas do tempo, especialmente de um dos
mais veridicos, Dino Compagni, que Guido Cavalcanti fizera
uma romaria a San Tiago de Tolosa : « Lo stesso Dino Compagni,
ed altri favollevano del pellegrinaggio de Guido a S. Jacopo di
Tolosa . ) São palavras do parente de Guido Cavalcanti , seu
biographo.
Em summa, Guido Cavalcanti não foi somente um grande
DE DANTE ALLIGHIERI LXIX

poeta, e um consummado philosopho christão, foi tambem um


cidadão de honestissimo caracter individual . Membro, ou chefe
de uma larga parentella, que orgulhosa do seu numero, e dos
seus brazões, julgava-se com direito a praticar desatinos , e
crimes, encontrou sempre em Guido a mais implacavel repro
vação. Em um conselho de familia, por elle convocado, depois
de exprobrar aos discolos suas escandalosas demasias, disse :
O ser Cavalcanti não é titulo para ser nobre ; o ser nobre por
acções illustres é, que constitue titulo para ser Cavalcanti. Prin
cipio profundamente philosophico , e moral ! Guido, em mate
ria de nobreza hereditaria, pensava como o seu amigo Dante,
não conhecendo outra base legal, senão a virtude.
Ora, dada esta conformidade de sentimentos entre os dous,
e acrescendo a circumstancia de ser Guido Cavalcanti 15 annos
mais velho, que Dante, é licito admittir que no desenvolvimento
intellectual d'este grande influencia exercesse o seu primeiro ami
go. Occupa o segundo logar entre os amigos de Allighieri Cino
de Pistoia, celebre poeta, e jurisconsulto do tempo , que teve de
commum com Dante, não só o exilio da patria, como o enthu
siasmo por Henrique VII . Não conhecemos qual fosse o systema
philosophico, e religioso de Cino. Encontrâmos tambem, como
amigo do Poeta , Lapo, que não sabemos com certeza si fosse
Lapo Giano ou Lapo dos Ubertis, pae de Fazio. Forese Donato,
não por outro titulo famoso, senão por seu epicurismo pratico,
foi outro amigo de Dante. Giotto, celebre pintor da epocha, e
que teve a gloria de ser o unico, que retratasse o Poeta,
gosou de tanta intimidade sua, que d'elle mereceu a honra de
ser mencionado no canto xi do Purgatorio :
Credette Cimabue nella pintura
Tener lo campo, ed ora ha Giotto il grido,
Si che la fama di colui oscura .
« Acreditava Cimabue ter na pintura o primado,
E agora vem Giotto, cuja fama obscurece a d'elle. »

Casella, musico distincto, foi tambem amigo intimo de Dante,


que, sem embargo, o metteu no Purgatorio ( 11 ), tendo com elle
um affectuoso dialogo .
LXX TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1 Pode-se tambem contar entre os mais conspicuos amigos


do Poeta o celebre Carlos Martel , segundo o seu proprio teste
munho, como veremos.
Em um bello opusculo, sob o titulo Mecenatismo in Dante,
que o illustrado Conde Niccolò de Padua, ha pouco escreveu,
e que se dignou de me offerecer, leio as seguintes palavras
ácerca das relações de Carlos Martel com Allighieri. — « O gran
de Poeta Florentino tanto se compraz em louvar a generosidade,
e magnificencia da casa Sueva, quanto em estigmatisar a ava
reza da casa de Anjou, especialmente de Carlos II , e de Roberto
( Purg ., c . vii ; Par., C. VIII). Mas o Poeta não só exceptua Carlos
Martel, filho de Carlos II, e irmão de Roberto, como põe-lhe
na bôcca palavras, que, alem de mostrarem a indole generosa
d'aquelle Principe, fazem crer que o mesmo Poeta tinha moti
vos para esperar d'elle larga protecção, e hospitaleiro abrigo.
Dante havia conhecido Carlos Martel em maio de 1 289 , quando
esse Principe, vindo de França para Napoles, demorou-se al
guns dias em Florença . As affectuosas expressões com que
d'elle fala no Paraiso manifestam quam estreita fosse a amizade
entre elles, e de quanto conforto lhe não teria sido nos doloro
sos dias do seu exilio, si ainda então vivesse Carlos Martel !
Eis-aqui as palavras d'este no Paraiso:
Assai m ' amasti, ed avesti ben onde ;
Che s ' io fossi giù stato, io ti mostrava
Di mio amor più oltre che le fronde.
( Paraiso , viii , 55) .

« Tu me amaste , ó Dante, e tinhas razão para isso ;


Porque, si eu ainda vivesse quando te desterraram
Teria mostrado, que o meu amor era sincero, e não esteril. »

Como si dissesse : « Eu te mostraria , que o meu amor não


seria similhante á figueira esteril, que tinha folhas, e não fructo :
eu te mostraria, que não havias de comer o pão salgado de
outros ; mas o meu proprio pão, nem subirias, nem descerias
outras escadas, senão as do meu paço real, onde serias tractado
honorificamente » .
Eis-aqui a resenha dos amigos de Dante Allighieri. Si teve
DE DANTE ALLIGHIERI LXXI

mais outros, não nol-o deixaram registrados os seus antigos bio


graphos. Villani diz : « O nosso Dante, algum tanto presumpçoso
do seu saber, era altivo, e á similhança de philosopho esquivo,
não sabia bem conversar com os leigos » . D'estas palavras de
duz-se que muito restricto foi o circulo dos amigos do Poeta ;
o que se conforma com o principio por elle mesmo estabelecido,
de que o sabio não deve ter, senão poucos amigos escolhidos
(non dovere il savio farsi amico che pochi eletti ).
S 7

O amor juvenil. —Desde os annos da sua infancia, e du


rante todo o curso da sua vida, Allighieri submetteu-se á in
fluencia omnipotente de um amor puro, casto, e sancto , que o
não deixou, senão depois que esfriaram as cinzas da sua muito
amada . A historia d'este amor juvenil do Poeta , a sua origem,
e suas diversas phases, serão narradas em varios dos capitulos
que se seguem .
S8

Estudos, e serviços prestados á patria.— Sendo todo puro,


e casto o amor de Dante a Beatriz, bem longe de distrahil-o
do exercicio da mente, e das emprezas honrosas, foi-lhe ao
contrario um estimulo poderoso a seguir a senda do trabalho,
e da gloria. Mediante estudos assiduos, persistentes, conseguiu
elle, por causa do amor de Beatriz , elevar -se acima da es
phera vulgar, lançando os fundamentos d'aquelle vasto saber,
que abrangeu todo o universo, e excitou a admiração, não
só dos seus contemporaneos, como das gerações vindouras.
No correr d'estes annos, desempenhava elle tambem os de
veres de cidadão, achando-se repetidas vezes combatendo nas
fileiras dos Florentinos, como na batalha de Certemondo ou
Campaldino, e no assedio do castello de Caprona.
Diz-nos elle no Convito ( 11 , 13), que não começou a se de
dicar ao estudo da philosophia, senão depois da morte de Bea
triz. E do seu modo de exprimir-se no livro da Monarchia
E
LXXII TRACOS BIOGRAPHICOS

1
( 11 , 1 ) somos obrigados a inferir, que quanto aos estudos da
sciencia do estado não se applicára seriamente n'este pri
meiro periodo de sua vida, durante o qual cultivou as sete
sciencias do Trivio, isto é, lingua latina, rhetorica, e dialectica ,
e do Quadrivio, isto é, arithmetica, geometria, musica, e as
tronomia . A Vita Nuova, e as poesias lyricas mostram que
Allighieri, alem d'estas sete sciencias , cultivou tambem n’este
mesmo periodo a arte poetica. Que o amor de Beatriz lhe
foi um poderoso estimulo aos estudos, elle proprio o affirma
( Inf., 11 ) .

S 9

Acontecimentos contemporaneos. - Alem das emprezas bel


licas, em que Dante tomou parte, os grandes acontecimen
tos d'este periodo, dentro, e fóra de Florença , não passando
desapercebidos ao Poeta, não podiam deixar de exercer in
fluencia maior ou menor sobre o seu pensamento, e ideas.
Em Florença as proscripções seguiam -se depois da paz : ajun
tavam -se ás discordias entre as facções guelphas, e gibellinas
as discordias entre as familias poderosas. O povo subleva
va-se contra os senhores, e instituia uma nova forma de go
verno . E no meio de todas estas desordens despontava a au
rora de uma era nova . A communa decretava o ampliamento
dos muros da cidade, encarregando Arnolpho da execução :
a mesma communa decretava tambem a abolição da escravi
dão, imitando o exemplo dado por Bolonha, e depois por
Cunizza, nas casas dos Cavalcantis, e proclamando em lingua
gem moderna os direitos do homem . Folco de Portinari, o
pae da dama querida de Dante, erigia um hospital para os
pobres, que a communa chamava Columna do Estado, fazen
do-lhe cada anno uma grossa esmola . N'outras partes da Italia
commettiam- se aquelles actos de traição, e de barbarie, que
Dante tornou indeleveis em seus versos, e nas suas Vesperas a
Sicilia mostrava quaes os fructos amargos, com que aquella
má senhoria (governo) affligia os povos, que lhe eram sujeitos.
DE DANTE ALLIGHIERI LXXIII

CAPITULO III

O SEGUNDO PERIODO DA VIDA DE DANTE

Da morte de Beatriz até á morte de Henrique de Luxemburgo ( 1290-1313 ) : A dama


piedosa da Vita Nuova, e a dama gentil do Convito : seus estudos philosophicos ;
suas duvidas religiosas : sua conversão.

Primeiros effeitos da dor desesperada. Na primeira hora


do dia 9 de junho de 1290 , passou Beatriz da vida terrestre
ao seio da eternidade, com 24 annos e 2 mezes . Ao infaus
to annuncio, que voára rapido, inesperado ", e terrivel aos ou
vidos de Danté, sua alma, ainda não madura para golpes tão
rudes, achou-se de improviso mergulhada na mais profunda, e
ancinante dor ! Na pujança, e desespero de tanta angustia, a
propria vida pareceu -lhe êrma, erma toda a terra , viuva , e des
pojada de todas as galas de magnificencia a cidade , onde nasceu ,
e cresceu a sua muito amada, aquella, que fôra o mais doce enle
vo do seu pensamento , o mais irresistivel attractivo de seus olhos,
o mais fecundo alento das alegrias de seu coração ! Elle mesmo
o diz : « Perdido o primeiro deleite da minha alma, permaneci
submerso em tamanha tristeza, que nenhum conforto me valia ,
(Conv., II 13 ) . Boccaccio confirma-o, dizendo : « A perda de Bea
triz abysmou o pobre Poeta em tanta dor, em tanta angustia, em
tantas lagrimas, que muitos dos seus parentes , e amigos julgaram
que só na morte encontraria allivio » . Tomasêo acrescenta : « Por
muito tempo, Dante permaneceu como desassisado, e selvatico
( disennato e selvatico ) » .
(1 ) Que a lugubre noticia lhe chegasse inesperada, resulta do salto mortale
entre o XXVIII, e o xxix capitulos da Vita Nuova (c . 32 ), onde o Poeta diz, que a
morte de Beatriz não aconteceu, como a dos outros mortaes, por frio ou por calor
(per gelo, o per calore), mas subitamente ; devendo-se inferir que a sua morte não
foi precedida de molestia, que fizesse receiar pelos seus dias.
LXXIV TRAÇOS BIOGRAPHICOS

Nenhum dos antigos biographos de Dante refere, que n'esse


periodo de amarguras, elle resolvêra abandonar o seculo, e reti
rar- se á solidão do claustro, fazendo-se terceiro da Ordem de
S. Francisco . Buti porém , que, pelos annos de 1383, explicava nos
templos a Divina Comedia, isto é, pouco mais de meio seculo
depois da morte de Dante, fala do facto de modo tão absoluto,
e como cousa tão indubitavel, que a să critica não tem motivo,
para derogar o testemunho de tão antigo, e acreditado commen
tador. A esse testemunho de Buti acresce uma allusão do
proprio Dante no canto xvi do Inferno; logar que não se pode
entender de outro modo, senão admittindo a verdade do facto,
que se abona tambem na amorosissima devoção com que
narra a vida de S. Francisco, e no seu affecto para com Sancta
Clara . Direi mesmo, que até nas reprehensões severas, que elle
dirige aos Franciscanos degenerados, prova a veneração pro
funda em que tinha o seraphim de Assis. Basta abrir as paginas
do Cantico do Paraiso, para conhecer a serie de homenagens,
que o Poeta tributa a este grande Sancto. É certo porém que,
tendo entrado no noviciado, saíu antes de fazer a profissão
exigida pelas estatutos da Ordem , sem deixar nunca de amal-a,
e preconisal-a, como manancial de todas as virtudes, e como exem
plo vivo de abnegações heroicas.

S 2

O segundo amor.- Na Vila Nuova narra Dante o seguinte :


« Um anno depois da morte de Beatriz , estando eu em um logar,
onde me recordava do tempo passado, senti-me opprimido de
tão dolorosos pensamentos, que no exterior me revestiam de um
aspecto terrivel. Advertindo n’este meu estado de perturbação,
levantei a vista, para observar, si alguem me bispasse : effecti
vamente notei que do alto de uma janella uma senhora gentil,
joven, muito formosa, me contemplava com visos de tanta com
paixão, que parecia ser a piedade em pessoa . Por isto, como
costuma acontecer aos desgraçados, que de prompto choram,
ao verem que outros se compadecem de seus males, conheci
DE DANTE ALLIGHIERI LXXV

que os meus olhos começavam a querer banhar-se em lagri


mas . Temendo porém revelar a minha fraqueza, afastei-me da
gentil senhora, dizendo commigo : « Não é possivel , que Amor
não esteja com aquella piedosa dama » , e desde logo me propuz
dirigir-lhe um soneto, em que lhe dissesse, e resumisse o que se
passava em mim ...

1
« Aconteceu que em toda a parte, onde aquella dama gentil
me via, a sua expressão se tornava mais compadecida , e seu rosto
de uma côr pallida, quasi como a de Amor ; o que foi causa
de muitas vezes me lembrar da minha nobilissima Beatriz ,
que se me apresentava sob côr similhante ...
« Ao contemplar assim aquella dama, cheguei ao ponto de
meus olhos começarem a tomar grande interesse, e prazer em
vel-a. Tive d'isto pezar ; condemnei a minha fraqueza, e muitas
vezes increpei a vaidade dos meus olhos. D

Voutra parte, Dante fala da lucta, que se travou em seu


coração entre o amor , que votava á dama piedosa, e o que con
tinuava a votar a Beatriz , e que acabou por triumphar. « Uni dia,
diz elle, por volta da ora nona, afigurou-se-me essa gloriosa
Beatriz , vestida de encarnado, como antigamente, joven, e na
edade em que a vi pela primeira vez . Então volveram - se para
ella todos os meus pensamentos , e, renovando a sua lembrança,
segundo a ordem dos tempos, o meu coração começou a arre
pender-se dolorosamonte do desejo, de que por fraqueza se
deixou arrastar, durante alguns dias, a despeito da constancia,
que lhe aconselhava a razão. Desde que esse criminoso desejo
foi dissipado, voltei-me todo para a nobilissima Beatriz . »
Ora bem : De tudo o que precede resulta, que Dante se
deixou prender do amor de uma joven gentil , que , compade
cendo-se da sua dor, quiz consolal-o da perda de Beatriz : que
Dante luctou contra o amor, que lhe inspirou essa donzella
piedosa, que, para elle, era como a encarnação da piedade, e da
consolação: que emfim tendo repellido esse novo amor, que lhe
parecia um desejo criminoso, voltou todos os seus pensamentos
para Beatriz, seu primeiro amor.
Quando se conhece a predilecção de Dante Allighieri pelas
1.XXVI TRACOS BIOGRAPHICOS

concepções, e estilo symbolicos, comprehende-se logo que, tra


ctando - se aqui do amor a Beatriz , o symbolo da bemaventurança
terrestre e eterna, a dama piedosa, que é considerada como uma
rival de Beatriz, deve egualmente ter uma significação symbolica.
Não obstante, seria erro tomar essa dama piedosa simplesmente
pela personificação abstracta , e poetica da piedade, e da conso
lação. Porquanto, é peculiar das allegorias de Dante ligar-se
geralmente a um facto ou a uma pessoa real, e idealisar depois
esse facto, e transfigurar essa pessoa a tal ponto, que o seu
caracter real, e historico desapparece, e se confunde inteira
mente com a significação moral ou metaphysica de um per
sonagem allegorico. É pois provavel, que essa dama piedosa
fosse effectivamente uma pessoa real (verdadeira ), sem duvida
uma das sessenta mais bellas, e virtuosas damas de Florença, e
propendo com todo fundamento, que fosse mademoaselle Gemma
de Donati , que, por uma razão, ou por outra , o joven Dante, e
seus amigos consideravam como personificação da Philosophia,
ou da sabedoria humana, e que dezoito mozes, depois da morte
de Beatriz, se tornou sua esposa . Mas, bem que a dama
consoladora ou Gemma tenha sido, como Beatriz, uma pessoa
real, Dante, conforme seu costume, não a cantará, como
tal , na sua poesia de trovador; não se occupará d'ella, em
seus cantos, como fez com Beatriz , senão em relação ao seu
caracter symbolico ou como personificação de um objecto
intellectual, moral , ou metaphysico. Qual era a idea de que
Gemma ou a dama consoladora podia ser symbolo na poesia
de Dante ? Era a Philosophia. Em uma de suas obras, o
Convito (Banquete ), escripta muito depois, o Poeta exprime
claramente qual era o caracter symbolico da dama con
soladora, falando n'estes termos : « A dama de quem me ena
morei, depois do meu primeiro amor, foi a mui bella, e muito
humilde filha do Imperador do universo , á qual deu Pythagoras
o nome de Philosophia ». É pois entendido, que qualquer que
fosse o amor, que Dante houvesse votado á dama consoladora,
ou á sua futura esposa Gemma, de certo não a cantou na sua
poesia, senão como symbolo da Philosophia.
DE DANTE ALLIGHIERI LXXVII

Como devia Allighieri agora encarar seu amor para com a


dama consoladora, ou para com a Philosophia , em relação ao
seu outro amor para com Beatriz , isto é, para com a Theologia ?
Devia encaral-o, segundo o valor, que na mente delle, tinha a
Philosophia , em relação á fé christā. Para comprehender o seu
juizo sobre o valor relativo de ambas, cumpre lembrar, que na
edade media, ao menos no começo d'esse periodo , a Philosophia ,
isto é , a investigação da verdade , independente do dogma , não
existia ; era ainda confundida com a Theologia , de forma que os
philosophos não eram ainda distinctos dos theologos . Posterior
mente, pelos fins do seculo xii, especialmente em París, na Sor
bonna, a Philosophia começou a separar -se da Theologia ou or
thodoxia positiva. Abailard, e, tempo depois, o doutor Seguier du
Brabant, que ensinava na rua de Fouarre do quarteirão Latino,
foram os primeiros iniciadores d'esse movimento de evolução
philosophica ". Depois da morte de Beatriz, em 1290, Dante,
na edade de 25 annos , por diversão ás suas grandes tristezas , e
instigado por Brunetto Latini , que havia residido longo tempo em
França , foi a París, em 1291 , e ali seguiu o ensinamento do
doutor Seguier, do qual conservou saudosa memoria, de modo
que depois, compondo a Divina Comedia, o incluiu no nume
ro dos doutores bemaventurados no Paraiso. No começo de
1293 , regressando a Florença, Dante continuou os seus estudos
litterarios, e scientificos, que elle comprehendia sob o nome de
Philosophia, e que considerava como um conforto aos effeitos
da perda irreparavel, segundo o que mais adiante veremos. Como )

ficou acima dito, ao seu amor por Beatriz succedeu o da dama


consoladora, ou de sua mulher Gemma da familia Donati . De
dicando-se á poesia , compoz de 1293 a 1298 uma serie de
cantos lyricos, que differiam , no objecto e no tom geral, das
poesias do primeiro periodo ; porque elle celebrava nas suas
canções, não mais Beatriz, o symbolo da salvação terrestre, e
eterna, mas a dama consoladora, isto é, a Philosophia .
Releva porém registar que Dante, a despeito do seu
afferro ao estudo das sciencias philosophicas, não chegou ao
(1 ) Histoire littéraire de la France, tom. XXI, p. 127.
LXXVIII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

ponto de conceber, e admittir a independencia absoluta com


relação á Theologia. Mantinha com os espiritos mais adian
tados do seu tempo a opinião de que a Philosophia era
subordinada á Theologia ou ao dogma christão. Já um grande
padre da Egreja, Sancto Ambrosio, havia, no iv seculo, for
mulado o principio de que a Philosophia é serva da Theo
logia : Philosophia theologiae ancilla .
Si entendermos por Philosophia a sciencia escolastica , isto
é, a pretensa tradição scientifica com os raciocinios baseados
em noções preconcebidas, e si entendermos por Theologia a
fé ou a consciencia moral, que é a essencia do Christianismo
catholico, é necessario reconhecer que Dante tinha muita razão
de pretender que a fé (a consciencia) é superior á Philosophia
(a sciencia ); porquanto , que seria a philosophia na huma
nidade, si, desprovida da consciencia moral, fosse falha de
practica, e de justiça ? E que conceito se deveria fazer do
espirito humano em geral , si elle fosse condemnado a se
submetter, sem reclamação, ao que é no mundo physico, e
na historia, e não reivindicasse sem cessar o que, segundo
a consciencia moral, deve ser ?
Falando das quatro virtudes cardeaes, que constituem , e
representam a Philosophia em opposição ás tres virtudes
theologaes, que constituem , e representam a Religião ou Bea
triz , Dante as personifica, e introduz, falando assim d'ellas
mesmas no Purgatorio, c . XXXI , 106 :
Noi sem qui Ninfe, e nel ciel semo stelle ;
Pria che Beatrice discendesse al mondo,
Fummo ordinate a lei per sue ancelle.

«Nós n'este logar somos nymphas, e no céo somos estrellas :


Antes que Beatriz descesse ao mundo,
Fomos ordenadas a ser suas servas . »

De conformidade com isto, Dante no Convito, capitulo 1, diz


ainda, que o commentario é o servo da lettra ; a Philosophia,
que explica a Religião é egualmente serva da Religião. Assim,
representando a Philosophia como sua consoladora, depois da
DE DANTE ALLIGHIERI LXXIX

morte de Beatriz, Dante a considerava, não como podendo,


e devendo occupar em relação a nós o logar da Theologia
ou da fé, mas somente como nos devendo consolar em parte .
Considerando pois, em suas poesias, Beatriz ou a Theologia,
como sua verdadeira dama, e a dama consoladora ou a Phi
losophia, como a serva da Theologia, comprehende- se, á vista
d'isto, que elle acaba por considerar, ou representar em suas
poesias o seu · amor para com a Philosophia ou a serva da
Theologia, como uma especie de infidelidade á Beatriz, sua
unica, e verdadeira dama. Em sua linguagem allegorica, e poe
tica, elle parece reprehender-se a si mesmo de preferir a serva
á senhora ; arrepende-se dolorosamente do seu criminoso de
sejo, a ponto de , expellindo- o de si , voltar seus pensamentos
para Beatriz, e resolve, por consequencia, cessar seus cantos
de louvor á Philosophia, consagrando todas as honras a Beatriz ,
seu primeiro amor. Deixando d'est'arte a poesia lyrica, cujo
objecto havia sido a sciencia humana, prepara-se, desde 1295 ,
para poder falar dignamente de Beatriz , tecendo-lhe uma corôa
tão gloriosa , que mulher alguma depois d'ella jamais cingiria .
Diremos pois em conclusão, que a piedosa consoladora, de
que fala o Poeta na Vita Nuova, é toda corporal, toda allegorica,
ao passo que a dama gentil, de que fala no Convito, não tem
nada de commum com a primeira, senão o nome, e o officio de
consoladora : que o segundo amor de Dante para com a dama
corporal foi expellido depois de não longos combates internos,
ao passo que o seu amor para com a dama allegorica o afas
tou realmente de Beatriz , e durou muitos annos, isto é , 10 annos,
decorridos dos 25 a 35 : que na Vita Nuova Dante nos diz , que
se arrependêra d'aquella infidelidade para com a Beatriz , que
chamaremos physica, ao passo, que na Divina Comedia nos
refere o arrependimento da infidelidade para com aquell’outra,
que chamaremos intellectual. Em outros termos : A corporal
piedosa consoladora da Vita Nuova é a rival da corporal
Beatriz da Vita Nuova : a allegorica dama gentil do Convito,
a Philosophia, é a rival da Beatriz allegorica da Divina Come
dia : a Theologia .
LXXX TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1 Tudo que fica exposto convence, que Dante n’este periodo


dos 10 annos (de 25 a 35 ) foi invadido, e combatido de duvidas
acerca das cousas da fé. Essas duvidas nasceram do facto de
ter-se elle apartado dos ensinos da divina revelação, chegando
até a vacillar, si a materia prima fosse eterna ou creada (Convito,
IV , 1 ) . As suas confissões na Divina Comedia não deixam a este
respeito a menor duvida, como teremos muitas occasiões de
verificar.
S 4

O lar domestico.- Por volta da metade do ultimo decennio


do seculo xi tomou por mulher a nobre donzella Gemma, filha
de Manetto (da poderosa familia dos Donatis), da qual teve
filhos, e na companhia da qual vivêra em honesta, e estudiosa
vida . Dante, que nas suas obras observou silencio absoluto
acerca de sua propria familia, não só quanto a mulher, e seus
filhos, como quanto sobretudo aos seus progenitores, irmãos, e
outros consanguineos, guarda as mesmas reservas a respeito de
sua vida domestica, e do caracter de sua mulher .
Diz Tomasêo , que falar de cousas domesticas parecia ao
grande Poeta acto de debil vaidade (debole vanità); mas este
silencio de Allighieri e largamente compensado por claros indi
cios, testemunhos indirectos, allusões encobertas, mas affectuo
sissimas, que fazem manifesta prova de ter elle achado mulher
virtuosa, e digna de si .
Segundo Boccaccio, « o casamento de Dante foi feito pelos
parentes, de modo que no seu consorcio o Poeta não ouviu
á voz do proprio coração ; mas se deixou levar cegamente por
outros » . Esta asserção porém encontra o mais cabal desmentido
no caracter de Dante, qual o conhecemos por suas obras, e
qual nol-o pinta o mesmo Boccaccio. De tudo quanto sabemos
dos altos brios do grande Poeta podemos com toda a segurança
duvidar, de que elle fosse homem de se deixar levar por quem
quer , que ousasse impor á sua vontade a escolha de esposa ,
que não quadrasse ao seu coração em todos os sentidos. Alem
de que, já vimos que a donzella com quem Dante veiu a casar
DE DANTE ALLIGHIERI LXXXI

era a mesmissima piedosa consoladora da Vita Nuova, e que não


era outra, que Gemma Donati, conforme a opinião dos mais
eruditos biographos, sobretudo Cesar Balbo . Esta opinião é
ainda corroborada pelo facto material de serem as casas dos
Allighieris em frente das dos Donatis ; pois a narração da Vita
Vuova não deixa a menor duvida de que a casa da piedosa
consoladora era na proxima vizinhança da casa, onde habitava
o Poeta. Os poucos, que impugnam esta opinião, baseiam -se no
debil argumento de parecer impossivel, que Dante fizesse da
propria mulher, com quem havia de casar, o symbolo da Philo
sophia, cousa contraria aos costumes do tempo . A isto respon
de-se, que o que é impossivel é contrastar a verdade sabida,
isto é, que em muitas outras cousas Dante se separou dos usos
do seu seculo, e que o erigir um monumento litterario aquella,
que havia de ser sua mulher, era uma das metamorphoses
proprias da indole, e do genio do trovador.
Demais, quanto á vida domestica de Dante, e ao cara
cter de sua mulher, temos nas suas obras indicios, que bas
tam para desfazer as contradictorias asserções de alguns dos
seus biographos. Vejamos o modo commovente por que elle
se queixa da ferida, que lhe abriu no coração a setta dispa
rada do arco do exilio :

Tu lascerai ogni cosa diletta


Più caramente ; e questo è quello strale,
Che l'arco dell'esiglio pria saetta . (1)

« Tu deixarás os objectos, que te são mais caros ;


E esta é a primeira setta, com que fere o arco do exilio ! »

Quem deixará de ver n’estes objectos mais caros a mulher,


e os filhos do saudoso Poeta ! Nos ultimos annos da sua
vida, elle não só se lembrava com ternissimo affecto de sua
mulher, como declarava não ter-se ainda cicatrizado a chaga
resultante da sua involuntaria separação. É bem conhecido o
ardor ardentissimo, com que elle desejava acabar seus ultimos
( 1) Paraiso, xvii, 55, e segg.
LXXXII TRACOS BIOGRAPHICOS

1 dias em Florença ; esperança que só abandonou com a morte !


E qual outro poderia ser o motivo de voltar ao seio da patria ,
senão o summo desejo de reunir -se á sua familia , a quem
votava tão profundo, e duradouro affecto ? Eloquentissimo é
tambem outro facto . Dante, que tão acerbamente verbera as
descaradas mulheres florentinas ( sfacciate donne fiorentine),
muda de linguagem todas as vezes, que lhe occorre falar das
mulheres da Casa Donati. Difficilmente se encontra na Divina
Comedia uma tão amavel, como Picarda, assim como nenhuma
outra , que nas virtudes conjugaes podesse egualar á viuva de
Forese Donati. Ora , si entre as descaradas mulheres florentinas
as mulheres da famillia Donati formavam a mais distincta, e
louvavel excepção, é que Dante tinha o mais perfeito co
nhecimento do caracter, dos costumes d'aquella , que era sua
esposa. Ainda mais : o implacavel Poeta, que metteu no Inferno
seu proprio mestre Brunetto Latini, o magnanimo Farinata ,
o pae do seu primeiro amigo (Guido Cavalcanti) e tantos
outros homens insignes do partido gibellino, não só não metteu
lá nenhuma pessoa da familia de sua mulher, mas com deli
cadissima reticencia não quiz deixar uma só vez escripto o
nome do soberbo Corso Donati; contentando - se em fazer- lhe
uma simples allusão ! E que significa tudo isto, senão affe
ctuosas attenções para com sua mulher Gemma Donati ?
Que esta acompanhasse a seu marido no exilio, ou que al
guma vez , durante o exilio , tivesse occasião de vel-o, cousa
é que ignorâmos. Nos primeiros annos isso não era possivel,
por causa da tenra edade dos filhos, que a infeliz, sem apoio
de seu marido, e despojada de todos seus bens ", era obri
gada a nutrir á custa dos maiores sacrificios, e muitas vezes
com grandes privações. Quanto ao numero dos filhos de

( 1) Leonardo Bruni, diz : «Allighieri, antes de ser banido de Florença, si


não tinha grandissima riqueza, todavia não era pobre ; tinha patrimonio sufficiente
para viver com honra » . De documentos, que existem, resulta que Dante, e seu
irmão Francisco, pelos annos de 1297 a 1300, contrahiram avultados debitos, o que,
não parecendo indicio de muita riqueza, manifesta, comtudo, que mereciam grande
confiança dos seus conterraneos ; pois que, sem credito, e meios de os ustentar, não
se conseguem emprestimos tão valiosos.
DE DANTE ALLIGHIERI LXXXIII

Dante não temos noticias authenticas, senão que foram tres :


Pedro de Dante, que commentou em latim a Divina Comedia;
Thiago, que commentou o Cantico do Inferno, e Beatriz, que
acabou freira em Ravenna, a quem a Republica de Florença,
depois da morte do Poeta, enviou por intermedio de Boccaccio ,
um donativo de 10 florins em oiro ( A boas horas !). Gemma so
breviveu a seu marido alguns annos.

S 5

Vida publica.— No tempo em que Dante Allighieri vivia


todo absorvido de seus estudos philosophicos, e andava pelas
escolas dos religiosos, e nas disputas com os philosophantes,
operavam -se na cidade de Florença grandes mudanças . Cansado
da soberba, e prepotencia dos grandes, o povo, capitaneado pelo
antigo, nobre, rico, e poderoso Giano della Bella, ordenava
contra os grandes, e abastados aquellas leis fortes, e graves, que
se chamaram « Ordenações da Justiça » (ordinamenti della
Giustizia); e estabelecia que nenhum dos nobres, denominados
grandes, podesse ser eleito prior, que era o mais alto cargo da
republica florentina. Estabelecia alem d'isto, que quem aspirasse
a qualquer emprego publico, se matriculasse em algumas das
artes professadas na republica. Attingindo a edade de 30
annos , prescripta pela lei, Dante , que já tinha brandido a espa
da nas batalhas da patria, e ardia em desejos de pôr-se em exhi
bição conveniente, se fez inscrever na sexta das sete artes
maiores, que era a dos medicos, e pharmaceuticos . D'aquelle
tempo em diante prestou muitos serviços á republica, até que ,
em 1300, foi, não por sorte, mas por eleição, creado um dos
priores. D'este infausto priorado originaram-se todos os seus
infortunios, e dissabores ! Não obstante, continuou ainda um
anno, depois de ter findado o exercicio da sua suprema gover
nação, a dedicar-se com todo o zêlo,
zelo, e lealdade ao bem da
patria.
Da vida publicà de Dante Leonardo Bruni não diz mais,
do
que o pouco, que dizemos aqui. A este respeito deu Boccac
LXXXIV TRACOS BIOGRAPHICOS

cio todo o elasterio á sua rhetorica, de forma que, a crer- se na


sua difusa narração, Dante foi a pedra angular do edificio do
estado ! « Nenhuma legação era ouvida, a nenhuma se respon
dia, nenhuma lei se promulgava, nenhuma se derogava, ne
nhuma paz se fazia, nenhuma guerra publica se declarava ; em
summa, nenhuma deliberação de peso se tomava , sem que pri
meiro fosse ouvida a opinião de Dante . N'elle repousava toda a
fé publica ; n'elle toda a esperança punha o seu norte , e como
que nas suas mãos estivessem fechados os destinos das cousas
divinas e humanas !... No designio de reduzir á unidade o des
pedaçado corpo da republica , Dante desenvolveu todo o seu
engenho, toda a sua arte, todo o seu estudo, procurando con
vencer aos cidadãos mais prudentes, de que a discordia , não só
abate as cousas grandes, e uteis , como faz crescer, e avultar em
damno publico as cousas ridiculas . Mas depois que conheceu
que eram vãos todos os seus esforços, em face da obstinação
dos que o ouviam (temendo o juizo de Deus), resolveu deixar
de todo o serviço publico, e recolher -se á vida particular. » Vae
por diante Boccaccio nas suas divagações , repetindo cousas, que
já temos dito, e outras, que diremos de modo mais conciso, e
discreto.
O cargo do priorado não durava senão dous mezes, co
meçando da metade do mez. Dante esteve em exercicio , por
consequencia, de 15 de junho a 15 de agosto de 1300. Escuso
indicar os nomes dos seus collegas, até porque ficaram tão
obscurecidos em companhia de tão grande vulto, que a his
toria apenas os menciona. Os biographos de Dante exage
ram não pouco a honra que lhe fizeram seus concidadãos,
nomeando-o membro do priorado ; honra porém , que pouco
depois converteram em deshonra para si , e em origem de
desgraça para elle, proporcionando -lhe a mesma recompensa ,
que havia tido outrora o grande Coriolano : o exilio ! De uma
Epistola de Allighieri, hoje perdida , extrahiu Leonardo Bruni
estas palavras, que felizmente chegaram até nós : « Todos os
meus infortunios, e desgostos tiveram causa , e principio nos
infaustos comicios do meu priorado, do qual, si bem que por
DE DANTE ALLIGHIERI LXXXV

prudencia eu não fosse digno, por boas intenções, e por edade


não era indigno » . Mas não teria Dante alguma culpa da
sorte adversa , que lhe acarretou o seu priorado ? Os seus bio
graphos dizem, que não; mas eu digo, que sim ; e digo-o fir
mado nas proprias palavras do Poeta, que, sempre amigo da
verdade, confessa , que teve falta de prudencia (di avere mancato
di prudenza ). Com effeito, é certo que exactamente nos dias
do priorado de Dante, mandando Bonifacio VIII a Florença
o Cardeal Matteo de Acquasparta , para pacificar a cidade ,
Dante, e . seus collegas se lhe oppozeram, por temor de não
perder o estado (per tema di non perdere lo Stato). Resultou
d'isso, que o Cardeal se retirasse indignado, deixando a cidade
excommungada, e interdicta (1) .
Para facilitar a comprehensão do estado das cousas n’aquelle
periodo terrivel, procurarei condensal-o em rapida synthese.
Os Guelphos que, banidos os Gibellinos, eram senhores de
Florença, achavam- se divididos entre as duas familias dos
Cerchis , e dos Donatis . Esta divisão tomou maior vulto com
a juncção do partido dos Brancos, e dos Negros, que, tendo
tendo origem em Pistoia, por effeito de reciprocas vinganças
particulares entre os membros da poderosa familia Cancillieri,
recorreram , para sustentar a lucta fratricida, ás duas mencio
nadas familias de Florença, unindo-se os Brancos aos Cerchis,
e os Negros aos Donatis. Estas varias facções expozeram a ci
dade de Florença ás labaredas da guerra civil, havendo dia
riamente combates sanguinolentos. Os Negros, refugiados na
egreja da Trindade, deliberaram tractar com Bonifacio VIII ,
rogando-lhe, que resolvesse Carlos Valois, irmão de Filippe,
por elle Bonifacio chamado a Italia com outro fim , a dirigir-se
a Florença, com a missão de pôr termo aos tumultos, e reformar
o estado. Os Brancos, enfurecidos com esta diliberação, re
unem -se, tomam as armas, apresentam- se aos Priores, accusam
os seus inimigos de terem, n'uma assernbléa privada, ousado
deliberar acerca da governação publica, etc. Os Negros tomam
tambem as armas, e se queixam aos Priores de que os seus
( 1) Villani, viii, 40 ; Paul Pieri e Adami, p. 67.
LXXXVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

inimigos se afoutassem a unir -se, e armar-se, sem ordem dos


magistrados, e acabam por pedir em altas vozes, que sejam
punidos esses perturbadores do socego publico. A cidade toda
estava em armas ; as leis eram supplantadas pelos facciosos; os
cidadãos mais prudentes, e pacificos jaziam em profundo so
bresalto. Os Priores, confusos, e incertos sobre as providencias,
que deviam adoptar, em momento tão critico, invocaram o
conselho de Dante, o qual , mostrando -se verdadeiro magis
trado na prudencia, e firmeza, aconselhou aos Priores, que
. banissem da cidade os chefes dos dous partidos. Effecti
vamente os Negros foram desterrados para Pieve, junto a Pe
rugia, e os Brancos para Sarzana, e n’este numero foi Guido
Cavalcanti, que lá falleceu " . Os Brancos obtiveram pouco de
pois a permissão de voltar a Florença, e Dante foi accusado
pelos Negros de não ter pensado, senão em favorecer aos
Brancos, e de inutilisar a deliberação, que chamava Carlos de
Valois a Florença .
o velho Bonifacio VIII , temendo que prevalecessem os Bran
cos, entre os quaes figuravam muitos Gibellinos, e que os Negros,
quasi todos partidarios dos Guelphos, fossem opprimidos, e
afastados do governo da republica, determinára, que Carlos de
Valois seguisse para Florença com as suas tropas. Carlos entrou
na cidade ; mas, em vez de proclamar a paz a todos, revogou
a sentença de exilio proferida contra os Negros; os quaes, vol
tando triumphantes a Florença, saquearam todas as casas dos
Brancos, de par com os maiores desatinos; e por fim abriram
os carceres, pondo em liberdade todos os criminosos.
Dante foi o alvo principal do odio, e raiva d'estes facciosos.
Elle tinha ido de embaixador a Roma junto a Bonifacio VIII ,
( 1 ) Dizem os biographos de Dante, que precisamente, durante o priorado d'elle,
os chefes da facção negra fossem desterrados para os confins do castello de Pieve,
e os chefes da facção branca para Sarzanna. Louvam por isso a imparcialidade de
Dante, tão inflexivel, que não poupou o seu proprio primeiro amigo, Guido Caval
canti. É que esses biographos não leram a Chronica, de Villani, que, pela fórma por
que narra os acontecimentos, mostra, que quando se fez essa proscripção, Dante já
tinha saído do priorado, Dante, pelo contrario, ao saber do banimento de Guido
Cavalcanti, sentiu deveras, e derramou lagrimas, quando soube do seu fallecimento
na terra do exilio .
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uT& 9 vet 97 ཀ་ གྱི མི་༡༠འ༡ ཙམི་ ཆེད་ ཡུ་ད་དཆཙི་ཙ་

Lit. Ach . Paris, Firenze Roma Raff. Salari fior fece

FAC -SIMILE della Condanna contro Dante Alighieri astratta dalCodice detto del CH10DO
conservato nell'Archivio di Stato in Firenzeབྱ་
1
DE DANTE ALLIGHIERI LXXXVII

com a missão de induzil-o a conselhos de moderação, e de paz ,


sem cujos meios não seria possivel estabelecer governo serio na
malfadada republica , retalhada por facções sem fé, e sem amor
patrio. Emquanto prestava esse immenso serviço em Roma , lu
ctando, e procurando vencer todas as hesitações da Curia , pu
blicava-se um bando (27 de janeiro de 1302) em que era o
zeloso embaixador condemnado a uma multa de 8 :000 francos,
e a dous annos de desterro, e que não pagando elle esta mulcta,
desde logo se ordenava, que fossem confiscados seus bens , como
effectivamente aconteceu. Sentença ainda mais severa foi contra
elle publicada, em março seguinte , na qual era condemnado
com muitos outros a serem queimados vivos, si por má fortuna
d'elles caissem nas garras da communa de Florença . Os cri
mes ahi articulados contra Allighieri eram tão indignos , e repu
gnantes que toda a Italia sensata prorompeu em murmurações
sentidas, e lastimosas , visto como o illibado patriotismo, honra, e
probidade do grande cidadão eram de universal notoriedade !
Mas n'aquelles tempos de turbulencias, e de assanhadas discor
dias, era frequente (como ainda hoje e sempre !) imputar aos ad
versarios defeitos, e crimes falsos, tão abominaveis, como os seus
desalmados forjicadores! Tomasêo diz, falando d'esta iniqua
sentença : « Quam calumniosa fosse a accusação de traficancia
com os empregos publicos, que ahi se faz a Dante, superfluo é di
zel-o : nenhum dos seus inimigos ousou sustental-a ! »
É a primeira vez que esta iniqua sentença vem á luz pu
blica em o proprio original em latim tão barbaro como o juiz que
a proferiu !
Eil-a !

«É esta a sentença de condemnação feita, proferida, e promulgada


pelo nobre, e poderoso cavalleiro Messer Cante dé Gabbrielli de Gub
bio, honrado Podestá de Florença, contra os individuos abaixo decla
rados, em seguida ao exame do sabio, e discreto homem, Messer
Paulo de Gubbio, juiz deputado no officio de inquirir, e proceder
contra aquelles, que se tornaram culpados por trapaças, e ganhos
illicitos. É escripta por mim, Bonora de Pregio, escrivão do mesmo
Podestá, e da communa de Florença, deputado ao mesmo officio no
F
LXXXVIII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

anno de 1302 do Nascimento, no tempo de Messer Bonifacio, Papa


VIII , indicação xv.
« Nós , Cante Podestá, acima mencionado, damos, e proferimos a
sentença infra , exarada d'este modo :

Messer Andrea de Gherardini.


«Messer Lapo Salterelli Giudice.
« Messer Palmerio Altoviti.
« Messer Donato Alberti, do Bairro da porta do Duomo.
« Lopo Ammuniti, do Bairro de Alem -Arno.
« Lopo Biondo, do Bairro de S. Pedro Maior.
« Gherardino Deodati , do povo de S. Martinho do Bispo.
« Corso de Messer Alberto Ristori.
« Innani dé Ruffoli.
« Lippo de Becca .
17 « Dante Allighieri .
« Orlanduccio Orlandi.
« Ser Simone Guidalloti , do Bairro de Alem -Arno .
« Ser Guccio, medico do Bairro da porta do Duomo.
« Guido Bruno dé Falconieri, do Bairro de S. Pedro.

« Contra os quaes foi instaurado processo por inquirição feita em


virtude do nosso cargo , e cuidado , segundo chegou aos nossos ouvi
dos, e ao conhecimento da nossa Côrte , pela fama publica ; porque,
tendo sido elles, e cada um d'elles , condemnados por trapaças , ex
torsões iniquas , e ganhos illicitos, como das referidas condemnações
claramente se vê, não satisfizeram elles , ou algum d'elles, ás conde
mnações dentro do praso determinado. Todos os quaes, e cada um
de per si , foram legalmente citados, e intimados por meio de um
official de diligencias da Communa de Florença, que dentro de um
praso fixo, já decorrido , deveriam vir obedecer ás nossas ordens , e
sollicitamente desculpar-se da supradita accusação.
« Mas , não se tendo elles apresentado, quizeram antes soffrer , que
pelo claro , e clarissimo pregoeiro publico fossem postos ao bando da
Communa de Florença . E incorreram n'esta pena, por terem caído
em contumacia , conforme consta mais claramente dos actos da nossa
côrte . Por isso todos elles, e cada um de per si , considerados pela
sua contumacia , como réos confessos, em vista das leis, estatutos, e
regulamentos da Communa, e do povo da cidade de Florença , e se
gundo as ordens da Justiça, e em virtude do nosso arbitrio, e por
qualquer modo e direito, que nos assista , se cada um d'elles , em todo
o tempo cair em poder da dita Communa, esse tal fica sentencial
DE DANTE ALLIGHIERI LXXXIX

mente por nós condemnado, pelo presente escripto, a ser queimado


com fogo, de modo que morra .
« Dada, publicada, e promulgada a referida sentença, por Messer
Cante Podestá, supramencionado, presidindo ao Tribunal no Conselho
Geral da Communa de Florença, e lida por mim Bonora, escrivão
supramencionado, no anno, tempo, e indicção acima ditos , a 10 do
mez de Março, sendo presentes, como testemunhas , Ser Masio de
Gubbio, Ser Bernardo de Camerino , escrivães do dito Messer Podestá,
e muitos outros, que se achavam no mesmo Conselho . » (1)

Qual fosse a dolorosa impressão, que no animo de Dante


produzisse a primeira noticia de tão injusta condemnação, é facil
imaginar! Sem perda de tempo, deu costas pela ultima vez á
cidade das sete collinas, tão amada por elle ; sendo natural, que
saísse de Roma profundamente ulcerado de despeito contra Bo
nifacio VIII, attribuindo - lhe o proposito de havel-o entretido com
promessas fallazes nas margens do Tibre, emquanto nas mar
gens do Arno se tramava a sua ruina ! Justa ou injusta, esta de
ploravel suspeita foi a musa inspiradora das estrophes, e apos
trofes terriveis, que nos tres Canticos da Divina Comedia o Poeta
vibrou contra Bonifacio !
Transportado rapidamente a Siena, e ahi recebendo a con
firmação da sua desventura, reuniu-se aos Brancos em Arezzo,
onde conheceu aquelle Bosone de Gubbio, que depois o havia
de acolher como hospede . Os Brancos manifestaram -lhe a re
solução de reentrar com força armada em Florença ; resolução,
que Dante desapprovou, prevendo o máo resultado. Não foi
attendido ; mas não recusou expor-se a essa desastrada aventura.
Os Brancos, fazendo - se preceder de grande terror, como guarda
avançada, que havia de lhes abrir as portas de Florença,
conseguiram com effeito no primeiro impeto penetral-a : mas
foram completamente repellidos, e destroçados. Depois da der
rota, houve entre os vencidos taes, e tão violentas recrimi
nações, doestos, e injurias, que Dante poude conhecer no
(1) É singular a coincidencia de ser eu guiado na procura d'este curiosissimo
documento, no archivo publico de Florença , por um distincto empregado de nome
Dante Catallacci !
XC TRAÇOS BIOGRAPHICOS

meio de que gente sáfara se achava ; e desde logo resolveu


romper para sempre toda a alliança com ella . Ouçamos as
palavras dolorosas com que o seu trisavô Cacciaguida lhe
prognostica todos os males, que se lhe preparavam :
Tu proverai si come sa di sale
Lo pane altrui, e com'è duro calle
Lo scendere e il salir per il ' altrui scale.

« Tu provarás quam salgado é o pão de outrem ,

‫܀‬
E quam duro é descer, e subir escadas alheias. »

***
E quel, che più te graverà le spalle,
Sarà la compagnia malvagia e scempia,
Con la qual tu cadrai in questa valle ;
Che tutta ingrata, tutta matta , ed empia,
Si farà contra te ; ma poco appresso
Ella, non tu , n ' avrà rossa la tempia.

« E o pezo, que mais te custará levar, serão os malvados e loucos companheiros,


Com quem cairás n'este valle do exilio : os quaes, ingratos, estultos, e impios,
Voltar- se-ham contra ti, porque reprovas os seus máos projectos :
Mas, pouco depois, elles , e não tu, terão de que se envergonhar.»

Di sua bestialitate il suo processo 1


Farà la prova , sì che a te sia bello
Averti fatta parte per te stesso.

« O exito infeliz de todos os seus esforços para voltar á patria


Provará que elles obram como insensatos, e não como homens reflectidos ;
E por isso te será honroso separar-te d'elles, e dirigir-te por ti somente .»

Lo primo luo rifugio, e il primo ostello


Sarà la cortesia del gran Lombardo,
Che in su la Scala porta il santo uccello : D
Ch' avrà in te sì benigno riguardo,
Che del fare e del chieder, tra voi due.
Fia primo quel che tra gli altri é più tardo.
(Paraiso, XVII.)

« O teu primeiro refugio, e principal albergue encontrarás no prestadio, e


grão Lombardo, que no topo da escada tem a Aguia Sancta ; o qual será para com
tigo tão benigno , que, para te fazer qualquer favor, não haverá mister que lh'o
peças, ao invez de outros, que se crêem generosos, porque liberalisam beneficios
implorados ; elle, pois, te offerecerá o seu pão com tão bom rosto, que não te
parecerá amargo . »
DE DANTE ALLIGHIERI XCI

Eis o triste futuro, que aguardava o desventurado Poeta !


Separando-se dos Brancos de Florença, tão negros nas acções,
como os Negros, que dominavam Florença, Dante, com alguns
poucos companheiros da sua confiança, entre os quaes o pae
de Petrarca, foram -se conservando na Toscana, tentando
ainda reunir alguns elementos de "força, que em qualquer
contingencia podesse fazer face á Florença . N'esse mesmo
anno succumbiu Bonifacio VIII , minado dos profundos des
gostos, que lhe haviam produzido os ultrages dos sacrilegos
agentes de Filippe o Bello . Succedeu-o na cadeira pontifical
Benedicto XI , varão de acrysoladas virtudes . Reanimaram-se
as esperanças de Dante, que viu logo no novo Papa um iris
de paz ; sendo certo que o seu primeiro cuidado foi compor, e
pacificar Florença . Incumbiu d'esta ardua tarefa o seu legado
Cardeal de Prato, que antes de entrar em Florença teve uma
entrevista com Allighieri, e o pae de Petrarca, que eram os prin
cipaes entre os foragidos. Constando aos Negros, na cidade, essa
entrevista, fizeram grande alarma, provocaram tumultos, e de
cretaram novos exilios, etc.
Novamente desanimado de voltar á patria, Dante dirigiu-se
para Bolonha, d'ali para Padua , onde se demorou em 1306 , e
onde serviu de testemunha em uma escriptura de contracto.
Ainda existe a casa do tabellião : n’ella entrei ; pertence hoje
a uma familia israelita, que mostrou ignorar a circumstancia,
que era objecto da minha visita. Durante o tempo, que se de
morou em Padua, o Poeta teve junto de si seu filho Pedro, que
residia em Verona.
De Padua passou Dante á Lunigiana, onde foi procurador
do Marquez Francisco Malaspina, para concluir em 6 de outu
bro do dito anno a paz com o bispo de Luna Antonio de Ca
nulla. Esse exito feliz tornou Allighieri assás recommendavel á
estima, e consideração de Malaspina, que lhe prestou a mais
cordial hospitalidade, de que o Poeta faz honrosa menção na
Divina Comedia. De Lunigiana seguiu para Gubbio, onde esteve
hospede, não menos estimado, do Conde Besone, e finalmente
procurou Verona, onde se firmou na côrte dos Scaligeros ; veri
XCII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

ficando assim a prophecia de seu trisavô Cacciaguida, quando


lhe disse, que o seu primeiro refugio, e principal albergue seria
o palacio do grão Lombardo, que no topo da escada tinha a Aguia
Sancta . Com effeito, depois de andar errante por Arezzo, Bo
lonha, Padua, Lunigiana, Gubbio, etc. , veiu por fim estabele
cer - se em Verona.
Bem que na côrte dos Scaligeros fosse accolhido, e tractado
com grande munificencia, primeiro por Alboino, e depois por
seu irmão Can Grande ( o grão Lombardo ), todavia começou a
experimentar com que preço caro se come o pão de outrem ,
e quam aspero caminho é descer, e subir as escadas alheias!
Dotado de animo altivo, e independente, Allighieri desdourava
se de achar- se confundido com uma turba de cortezãos, composta
na sua quasi totalidade de aduladores, de histriões, e de cho
carreiros. Um dia, um d'esses jograes, com seus gestos, e dis
cursos licenciosos, provocou gargalhada geral na reunião, e pa
recendo a Can Grande que Dante se mostrara indignado com
taes bufonerias, disse-lhe, depois de fazer - lhe muitos elogios :
« Como se explica que, sendo tu amado por todos, a ninguem amas ?,

Respondeu Dante : “ Não te admirarias d'isto, si te lembrasses, que a


similhança de costumes é o laço, que prende os animos em amisade. »
Resposta aguda, e conceituosa ! Um homem do caracter de
Dante não podia ter residencia continua , e permanente n'uma
côrte de jograes . Diz Boccaccio, que de Verona o Poeta andou
ao Casentino, a Lunigiana, aos montes vizinhos de Urbino, a
Bolonha, a Padua, e por fim a París , onde ouviu as lições de
philosophia, e de theologia por algum tempo, não sem grande
precisão, das cousas necessarias á vida. Outros escriptores enu
meram muitas outras viagens, que o Poeta fizesse, e parece,
observa Tiraboschi , que , não podendo disputar-se a patria de
Dante, como se faz com Homero, muitas cidades da Italia dis
putam entre si a gloria de terem dado, em certo modo, o nas
cimento á Divina Comedia . Florença pretende que Dante já
tivesse escripto os sete primeiros cantos do Inferno quando foi
exiliado ; Maffei dá á sua Verona a gloria de ter sido principal
mente n'ella, que o Poeta se occupára da composição do sacro
DE DANTE ALLIGHIERI XCIII

Poema: os habitantes de Gubbio, onde , como vimos, estanceou


Dante algum tempo, sustentam que lá no mosteiro de Sancta
Cruz Avellana, escreveu elle a maior parte da obra : outros dão
por patria da Divina Comedia a cidade de Udine, e o Castello
de Folmino em Friuli ; outros Ravenna ; outros o valle Lagarina
no territorio de Trento, e o mais é; que todos se bazeiam na
auctoridade de graves escriptores, e de epigraphes, e de tradi
ções, e de sentenças do mesmo Allighieri ! Quanto a nós , temos por
mais provavel, ou mais segura a opinião de Pelli, que Allighieri
começou o seu Poema antes do exilio, e o concluiu antes da
morte de Henrique, em 1313; do contrario não teria elle prepa
rado a este monarcha um throno no Paraizo, e dizer :
ch' a drizzare Italia
Verrà in prima che ella sia disposta.

S 8

Esperanças desilludidas. —Quando no anno de 1310 a fama


annunciára a vinda do Imperador Henrique VII á Italia, essa
noticia fez renascer no coração de Dante as mais altas esperan
ças, não só de voltar com honra a Florença, como de ver verifi
cado aquelle seu sonho dourado de um imperio romano universal.
Deixando pois París, onde se achava, correu a resolver Henrique
a pôr-se em marcha, qual outro Moysés suscitado por Deus,
para livrar o seu povo. Possuido, e inflammado de tão enthu
siasticos futuros, Allighieri escrevia uma epistola arrogante a
todos os Reis da Italia , a todos os Senadores da alma Roma, a
todos os Duques, Condes, e Marquezes, assim como a todos os
povos da Peninsula, annunciando jubiloso, que era chegado o
tempo de consolação, e de paz . Exaltava a clemencia , e justiça
do novo Imperador, excitava os opprimidos a reassumir a viri
· lidade de animo, exhortava-os a prestar obdiencia affectuosa
ao novo Cesar, ungido, e abençoado pelo successor de Pedro ; que
finalmente o deixassem se assentar na sua sella . Dirigindo-se
depois a Casentino, ouviu que os Florentinos, bem longe de se
submetter á auctoridade imperial, se preparavam a resistir vigo
XCIV TRAÇOS BIOGRAPHICOS

rosa , e obstinadamente ao seu dilecto Henrique. Ao saber d’isto


Dante, transbordando de ira, e fel, enviava dos confins da Tos
cana, junto ás nascentes do Arno, em 31 de março de 1311 ,
uma eloquente epistola aos sceleradissimos Florentinos da
cidade , em que lhes exprobrava acerbamente a sua rebellião
contra a auctoridade de Cesar, ameaçando -os de justo castigo,
e inevitavel ruina. Mas já os signaes de consolação, e de paz,
que lhe parecia ver despontar no horisonte, começavam a con
verter -se em perspectivas de amargura, e de nova desgraça ! Os
sceleradissimos Florentinos responderam á sua vehemente epis
tola com a sentença de Baldo de Aguglioni, na qual , exceptuan
do Allighieri da amnistia, confirmava as precedentes condemna
ções contra elle lançadas!
Entretanto Henrique VII, ao passo que procrastinava mover
suas forças contra Florença, volvia as armas contra Cremona,
Brescia, e outras cidades lombardas, que se tinham rebellado.
Então da Toscana . Dante endereçou, a 16 de abril de 1311 ,
uma carta ao Imperador, exhortando - o a abandonar as cousas da
Lombardia, para correr sem demora a subjugar os Florentinos,
principaes auctores, e fautores
fa da rebellião. Mas Henrique,
terminada a empreza da Lombardia, dirigiu-se a Genova , a Pisa ,
e a Roma, onde a 29 de junho de 1312 , o Cardeal dos Feschis
cingia-lhe a fronte com a corôa imperial . Voltando de Roma,
e sitiando inutilmente Florença por mais de um mez , o Impe
rador tornou a Pisa, e, partindo no estio do anno seguinte, para
invadir o reino de Napoles, adoeceu em Siena, e morreu em
Buonconvento, a 24 de agosto de 1313 , dizem alguns que
envenenado. Com o fallecimento de Henrique VII desvanece
ram -se ainda uma vez as bellas esperanças de Allighieri , o qual ,
em logar de entrar de novo em Florença, foi constrangido a
continuar a comer o pão amargo na mesa dos outros, e a descer,
die
e subir suas escadas ! O infausto acontecimento assignala o prin
cipio de um novo periodo da sua vida.
Ha quem não louve a linguagem violenta de Dante na sua
epistola aos Florentinos . Ainda concedido, que o Poeta se jul
gasse exempto dos crimes de que o accusavam (crimes effecti
DE DANTE ALLIGHIERI XCV

vamente falsos), todavia os termos asperos de que usou eram


pouco proprios de um homem familiar da philosophia . Para
encontrar uma explicação psychologica d'este facto é mister lem
brar, que o Poeta se achava ainda na segunda phase do seu
desenvolvimento intimo, e não tinha conseguido aquella harmo
nia, paz, e serenidade de animo, que mais tarde adquiriu . Não
me parecem opportunos os louvores, que Leonardo Bruni lhe
tece, por não ter elle querido tomar parte no assedio de Florença,
em reverencia á sua patria. No tempo do assedio, que Henrique
poz a Florença , Dante orçava por seus 40 annos de edade :
edade, em que tinha elle recebido todos os ultrajes d'essa patria
ingrata, que por suas iniquidades perdera o direito á reverencia
da sua victima. Deixa de ser patria aquella, onde os seus filhos
mais benemeritos não gosam dos fóros de segurança, e liberdade
civil . Si Dante pois não fez parte do assedio seria por motivos
de outra ordem, e ponderação, e não por amor a esse covil de
feras, ou desventurada fossa de lobos ( sventurata fossa dei Lupi)
(canto xiv do Purgatorio ). Tão inopportunos, portanto, são os
louvores de Leonardo Bruni, como injustas as censuras, que
alguns fazem ao Poeta, por ter chamado um Principe estrangeiro
contra a Italia, quando deviam saber que, para Allighieri, Al
berto, e Henrique não eram dous Imperadores allemães, mas
romanos ; porque se consideravam successores de Cesar. Demais,
quantas vezes nos tempos modernos não temos visto o governo
de uma nação invocar o auxilio do braço estrangeiro, para
subjugar as turbulentas facções intestinas , que ameaçam de
prompta dissolução o respectivo estado ?

S 9

A escola da experiencia. — Bem que saccudido para todos os


lados pela vaga inconstante da fortuna, á similhança de uma nau
sem véla, e sem governo , ainda assim Allighieri não dobrava
a cerviz ao infortunio, como não abria mão de seus estudos, e
especulações philosophicas ; ao contrario, impellido, não só do
desejo de adquirir fama, como de ser util aos seus similhantes,
XCVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

dedicava -se com tal fervor á leitura, que se sentia ameaçado de


‫ܥ ܝܐ‬
perder a vista. Alem d'isto, as experiencias, que foi grangeando
pouco a pouco eram de molde a dissipar suas ideaes illusões.
Tinha sempre ante os olhos da mente as estranhas peripecias
da sua vida , ora elevado ás alturas do poder pelo favor popular,
ora nivellado á condição de inimigo da patria, d'ella expulso, e
maldicto, como réo de crimes, e reduzido ao misero estado de
mendicante ! Elle, que diffundia no mundo exterior todos os
f
grandes affectos, que o amor lhe dictava, observava dia por
dia , que os odios recrudesciam entre os cidadãos, e no seio das at
familias ! Elle, que proclamava os sacrosanctos direitos da mo
narchia , como guarda tutelar dos direitos de todos, via os povos,
pervertidos pelas facções sangrentas, desobedecer á auctoridade
imperial ! Elle, que queria ver acatada, e venerada a supremacia
das Sanctas Chaves, via Christo preso no seu Vigario, segunda
vez escarnecido, e morto entre dous ladrões vivos ! Elle, que via
o gigante francez desatrellar de Roma o sagrado carro da Egreja
transformado em monstro, e por elle levado pela selva até Avi
nhão, onde se iniciava o novo captiveiro de Babylonia por
aquelle que pelas tradições divinas era incumbido de conduzir a
geração humana ao cumulo da felicidade espiritual! Elle, que via
por toda a parte guerras civis , violencias do forte contra o fraco,
banimentos , latrocinios, traições, e homicidios ! Elle, que via amin

os povos, ora repletos de enthusiasmo religioso peregrinar em


centenas de milhares a Roma, na expectação de alcançar a paz
da consciencia ; ora homens, mulheres, e meninos, abandonando
suas occupações ordinarias , percorrerem com a cruz alçada
todos os logares, pedindo misericordia ; ora, em contraste com
tudo isso, via as doutrinas da religião escarnecidas, fazendo -se
d'ellas materia de comedias, que acabavam em lugubres trage
dias, em que o crime disputava primazia ao crime... Todos
esses tristes acontecimentos, todas essas discordias , desventuras,
e miserias, o advertiam de que o intellecto humano, com todas
as suas especulações, não é sufficiente para prestar válido soc
corro ao homem, que da sua abjecção moral não se levantará
sem auxilio da graça divina ...
DE DANTE ALLIGHIERI XCVII

Que durante as suas peregrinações o desterrado Florentino


se dedicasse com ardor aos estudos, o provam os trabalhos por
elle escriptos, entre outros o Convito, amoroso banquete do es
pirito necessitado. Ahi diz elle (tr. III, 9) : « Pelo muito estudo
fatiguei tanto a vista, debilitaram-se-me por tal forma os orgãos
visuaes, que as estrellas me pareciam arvores sombrias !,
Ah! o infortunio, longe de abater, alevanta as almas nobres !
O infortunio é a pedra de toque do genio ! Só o infortunio póde
dar exercicio á virtude, e desenvolver o germen do seu herois
mo! A adversidade, e as arduas circumstancias acrysolam os
grandes caracteres ; fazem soltar os vôos aos grandes talentos ;
dam nova vida , e nova força ao espirito ! Sem estes abalos, sem
estas vicissitudes crueis, não se teria conhecido a virilidade he
roica de muitos homens, nem estes mesmos se teriam conhe
cido a si proprios ! É preciso agitar os licores odoriferos, para
que elles possam derramar seus perfumes. As plantas aromati
cas, só quando machucadas pela mão calosa do rustico, fazem
sentir melhor suas essencias . Não basta, que os perseguidos da
fortuna se resignem ; porque a resignação é uma especie de
abatimento , e de prostração; é necessario resistir com toda a
constancia, com toda a magnanimidade, mostrando -se dignos do
papel, que aprouve á Providencia fazel-os desempenhar n'este
mundo de amargas provações, mysteriosas escadas, que con
duzem á immortalidade ! O exilio , observa um grande philoso
pho, é uma das mais crucis violencias, que se podem fazer ao
coração, em que pulsa forte o amor da Patria ; mas o homem
de genio superior subordina esse nobre instincto da natureza ao
imperio da propria dignidade, e do arido solo do exilio faz
brotar flores, que lhe engrinaldam a fronte. « Si nos desterrâmos
por vontade, ou si nos desterram , seremos invejados pelos que
ficam , e nos considerarão como homens de um caracter alto, e
inflexivel; pois quizemos antes soffrer tudo, do que dobrar os
joelhos, e o pescoço debaixo do jugo de ignominias atrozes ! Si
levarmos a honra immaculada para as terras estranhas, podere
mos ouvir de todos os homens justos aquillo mesmo, que disse
Carlos V ao Poeta Alamani, desterrado em Florença : « Não vos
XCVIII AÇOS
TRAÇOS BIOGRAPHICOS

deveis queixar do vosso desterro, porque achaste por defensor


um grande Rei, e o homem de talento é cidadão de todos os
paizes : Chorai, e lastimai antes o vosso Duque, porque perdeu
um homem de tanto merito, e de tanto saber como vós !,
Emfim , que na historia da humanidade não raros exemplos
mostram , que nas fragoas do infortunio se apura o heroismo
do animo, como o vigor do intellecto, e que grandes thesouros
de engenho jazeriam perpetuamente escondidos no sanctuario do
pensamento, si o attrito da adversidade os não provocasse, é
phenomeno de facil observação. Dante, e Colombo, verbi gratia,
(dous nomes, que se appellidam , que se respondem, como os
écos respondem á voz ! ), eram dous desterrados . Bem pode ser,
que nas doçuras da patria, no remanso da paz, não tivessem so
nhado com uma região ideal , nem sentido em si tal vacuo, que
só o infinito podia encher! Repellidos porém da patria , buscaram
outra : aquelle nos profundos mysterios dos tres reinos invisiveis :
est'outro na solidão de mares desconhecidos ! Ambos transpo
zeram, digamos assim, as balizas do infinito ! ambos, pela omni
potencia do seu genio, converteram em verdade evidentissima a
fabula do vellocino ! ambos alcançaram a victoria contra o im
possivel ! Dante escreveu um Poema, que será a sua eterna
gloria, e a confusão eterna da sua ingrata patria ! Colombo vol
tou sobraçando o mappa dos grandes imperios, que devassára !
Luiz de Camões, si não foi, como Allighieri, juridicamente
banido da patria, não foi de certo por ella enviado a comer em
pratos de ouro nas remotas plagas do Oriente! Si o não infamára
o injusto labeo de proscripto, não se exemptára de ter por fami
liar cousa peior : a miseria ! Mas a miseria foi n'elle vencida por I.
outro poder maior : a virilidade do amor da patria ! virilidade
que se aguçava na roda da indigencia , lá dentro d'aquella
gruta de verdadeira agonia, onde, com lagrimas espremidas pela
mão asperrima da desventura, traçou aquelle Poema dos Lu
siadas, que foi a carta de naturalisação da sua patria no seio das
nações civilisadas ! Sem essa sublime epopea, o éco das gran
des navegações , e conquistas dos Portuguezes estaria hoje ex
tincto na memoria dos povos !
DE DANTE ALLIGHIERI XCIX

CAPITULO IV

TERCEIRO PERIODO DA VIDA DE DANTE

Da morte de Henrique VIIatéá morte do Poeta ( 1313-1321 ) .


O periodo da féilluminada.

SI

A volta' ao primeiro amor.— As experiencias dolorosas feitas


no mundo, e na sua propria vida intima, abrindo finalmente os
olhos do Poeta, determinaram -n'o a voltar ao ponto d'onde tinha
partido, isto é, á memoria da idealisada Beatriz, ao caminho por
onde ella o guiava á contemplação do Summo Bem, termo su
premo de todos os anhelos , de todas aspirações da alma. Como
porém sómente depois de longo, e aspero combate interno Dante
se havia subtrahido ao doce jugo da Fé, para entregar -se ao es
tudo da Philosophia, assim tambem não foi senão depois de
muitos outros combates , e do soccorro da graça divina , que elle ,
advertindo que as falsas imagens dos bens terrenos não satisfa
zem o que promettem , resolveu, emfim , pôr em effeito o propo
sito tantas vezes adoptado, e outras tantas abandonado, de entrar
de novo no caminho da Fé, voltando as costas á selva escura,
e subir o deleitoso monte, principio, e causa de toda a alegria .
Tudo isto é fielmente extrahido das obras do mesmo Poeta.
É elle quem nos diz não ter podido se resolver a roubar -se a
Beatriz, para entregar-se á dama gentil (a Philosophia), senão
depois de grande batalha (Convito, II, 16) . N'esta mesma obra
protesta solemnemente, que a dama, de quem se enamorou,
depois do seu primeiro amor, foi a Philosophia.
Beatriz no Purgatorio (xxx, 126) exprobra-o de ter -se sepa
rado d'ella, para entregar-se ao amor de outras mulheres. Estas
outras mulheres, a cujo amor Dante se entregou, depois da

i
с TRAÇOS BIOGRAPHICOS

morte de Beatriz , não são mulheres corporaes, como erradamente


interpretam alguns, são allegoricas ; são symbolos das sciencias
profanas, cultivadas por elle, em opposição directa a Beatriz , ;‫܀ ܕ‬
isto é, á Theologia, de que ella é symbolo .

S 2

Confissões. – Reconhecido o seu erro, e tornado ao verda


deiro caminho, Dante Allighieri quiz manifestar em pró do
mundo, que vive mal, não só as suas estaticas visões, espelho
grandioso do seculo com seus grandes vicios e grandes virtudes,
mas quiz tambem revelar a si mesmo o exemplo de um homem
caído, que, illuminado pelo sol da divina luz, da quéda se le
vanta reanimado de novo espirito . Patenteando - se em seus subli
mes versos tal qual era, mostra quantas, aos olhos da sua con
sciencia, fossem as suas culpas. Posto que convencido de não
ser absolutamente exempto d'aquelles peccados, que depravam
a natureza humana, confessa todavia os seus peccados especiaes,
e pessoaes : confessa que tinha alguma inveja da prosperidade ‫܀‬. .1
dos máos ; que tinha não pequena soberba da propria alteza de
engenho, da vastidão do seu saber. Mas, o peccado principal : -

de que se confessa réo, e do qual affirma ter-se grandemente


arrependido, é o de haver abusado dos altos dotes, que o céo
The concedera, como de haver (seguindo uma falsa escola , cujas
doutrinas são tão afastadas das divinas, quanto as estrellas da
terra), se desviado da senda verdadeira, qual aquella, em que os
homens são allumiados no meio das trevas por onde caminham .
Acrescenta que a gravidade da sua culpa estava na porporção
da elevação do seu engenho, segundo o principio do Evangelho,
de que Deus tomará contas ao peccador na razão dos talentos ,
que d'elle recebeu. Assim, proseguindo a sua vida durante o
periodo, que iniciou algum tempo depois da morte de Beatriz ,
até a epocha , em que se levantou da queda , parecia-lhe ter
se achado n'uma horrida selva escura, em que entrara, sem saber
como, porque era profundo o seu lethargo, e que depois , que
rendo saír, teve que luctar com paixões que, quaes medonhas
DE DANTE ALLIGHIERI CI

feras, lhe impediam o passo, de modo que, si a pusillanimidade


do proprio coração não fosse avigorada pela energia da Fé, in
evitavel seria a sua perdição.
O facto de Dante confessar -se gravemente culpado não se
poderia negar, sem negar a authenticidade da Divina Comedia .
Dizer que as suas confissões são somente symbolicas é tão falso,
quanto dizer que n’ellas o Poeta exagera os seus peccados.
Ora, qual é aquelle peccado de que Dante se confessa mais
culpado ? É o de ter -se afastado do amor de Beatriz, isto é, da
Theologia , e se entregado ao amor de outra mulher, isto é , a
Philosophia ; o que era uma aberração da Fé . Ou, para exprimir
em linguagem natural o conceito allegorico de Dante, houve um
tempo, em que a duvida invadiu-lhe o animo, no qual travou-se
lucta entre a sciencia, e a Fé, pendendo elle tanto para o lado
da primeira, que se afastou dos dictames da segunda, embora
não chegasse até a negação, e muito menos ao desprezo da
mesma Fé . Ao entrar elle no Purgatorio o celeste porteiro des
creveu-lhe sete P. na fronte, signaes dos sete peccados mortaes
( Purg ., ix , 112) . Com este acto symbolico o Poeta confessa
humildemente, que de nenhum dos sete peccados elle se julgava
absolutamente illeso ; confissão que todo o mortal deve fazer
pela razão de que, segundo o Evangelista S. João, aquelle que
diz se achar sem peccado, mente. Mais particularmente Dante
se confessa culpado de leve de alguma inveja, mas se confessa
mais gravemente culpado de soberba (Purg ., XIII , 133 ) . Esta
confissão de soberba é confirmada por Villani, Boccaccio, e outros,
que dizem ter sido o Poeta muito presumpçoso de seu saber. —
Ao sair de cada gyro do Purgatorio se lhe apaga na fronte um
dos sete P., para significar que elle agora está limpo (bem que
sómente symbolicamente) do peccado, que n’aquelle gyro se
purga. Ao chegar portanto ao ultimo gyro todos os sete P es
tavam cancellados ; o que importa dizer que o Poeta ficou livre
de todos os peccados . Depois, chegando ao Paraizo terestre,
começa a ouvir as mais acerbas exprobrações de Beatriz, e a
confessar humildemente o seu peccado . Está entendido , que este
peccado não é um d'aquelles, que nos gyros inferiores se purgam,
CII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

quaes a soberba, a preguiça, a inveja, a ira , a avareza, a luxu


ria, etc. Qual é pois esse peccado de que é reprehendido aspe
ramente, senão a aberração da Fé ? Devo notar que Beatriz re
cebe Dante no Paraizo terrestre com esta pergunta : « Como te
dignaste subir a este monte ? » Aquelle dignar- se é uma fina ironia ,
que fere o orgulho philosophico -scientifico do Poeta, e mostra
que n'este orgulho consistia o seu peccado. Este peccado é re
presentado sob o symbolo de uma infidelidade a Beatriz, não a
Beatriz filha de Folco de Portinari, e mulher de Simão Bardi ,
mas á Beatriz allegorica.
A final d'aquelle dia por diante Allighieri tornou-se homem
novo .

S 3
1

Peregrinações. — Operada a nova phase cruel na vida de


Dante, continuou elle suas peregrinações pelas diversas partes
da Italia, não nutrindo já outro pensamento, senão o de con
fundir a iniquidade de seus concidadãos com os productos do
seu alto engenho. Tendo o tempo apagado o rasto do illustre
proscripto, ao menos em grande parte, ignora-se onde recebeu
elle a infausta noticia da morte de Henrique VII , bem como
os logares, onde estanceou nos dois annos successivos . A tradi
ção, não corroborada por documentos authenticos, mas todavia
verosimil no essencial, diz-nos, que depois d'aquelle desastrado
successo, Allighieri , opprimido de dolorosas tristezas , recolheu -se
por algum tempo nas tranquillas solidões do mosteiro da Ordem
Calmadolense de Santa Gruz, de Fonte Avellana, em o territo
rio de Agubbiu ", no flanco dos Alpes, que se chama Catria .
Mas , posto que despido de bellas esperanças, e abeberado do

(1 ) É bem fundada a tradição de ter Dante, depois da morte de Henrique de


Luxemburgo, se recolhido ao mosteiro de Sancta Cruz, onde uma inscripção, que
ainda se lia em 1557, indicava o cubiculo em que elle residira .
A disposição de animo, em que então se devia achar, ralado de profundas
contrariedades, torna probabilissimo esse seu retiro no dito mosteiro ; e o modo por
que lhe descreve a situação no Paraizo, xxi, mostra que verdadeiramente o habitára .
Demais, são conhecidas as relações do Poeta com o Conde Bessone, residente em
Agubbio, ou Gubbio, conforme já mencionei n'outra parte.
DE DANTE ALLIGHIERI CIII

fel da adversidade , aquelle grande coração não cessava de pal


pitar pelo bem universal do Estado, e da Egreja . Morto em
abril de 1314 o Papa Clemente V, tão verberado por elle , Alli
ghieri dirigiu aos Cardeaes italianos uma epistola, escripta em
estylo prophetico, increpando-os amargamente das faltas com
mettidas no passado, e ao mesmo tempo os exhortava com todo
fervor a que alliviassem os males da christandade, elegendo um
Pontifice italiano, que restituisse a Roma a cadeira de Pedro .
Em junho d'esse mesmo anno, apossando-se o afamado
Capitão Ugucião della Faggiola do governo de Luca, Dante
transferiu -se aquella cidade, aliás tão estigmatisada por elle no
Cantico i da Divina Comedia. ( 1 ) Talvez que, emquanto ahi se

( 1 ) Acerca de estada de Dante em Luca, temos o seu proprio testemunho. No


Purgatorio, (xxiv, 37 e seg.) elle põe na bocca de Bonagiunta, poeta de Luca , esta
predicção : Femmina è nata, e non porta ancor benda, che ti farà piacere la mia città,
come ch' uom la riprenda. Quer dizer : « É nascida uma mulher, que ainda não é
casada, a qual te tornará agradavel a minha cidade, embora tu a estigmatises, com
chamal-a cidade dos traficantes ( città di baratieri)». D'esta palavras infere-se que
Dante andou em Luca alguns annos depois de 1300 (época ficticia da Visão) e que
lá se demorou não breve tempo. Ora, não é admissivel, nem que Dante fosse a Luca
quando os Lucheses eram alliados d'aquelles Florentinos, que o tinham condemna
do a ser morto nas chammas, nem que elle lá fosse depois da revolução de 1316 :
portanto o que resta averiguado é que Dante fosse a Luca, e lá se demorasse no
tempo, em que Ugucião della Faggiola era governador d'aquella cidade, isto é, de
14 de junho de 1314 a 10 de abril de 1316.
A tal senhora, a quem allude Bonagiunta, chamava - se Gentuca. Ora só se conhe
cem duas senhoras d'este nome, que n'aquella época vivessem em Luca : a esposa
de Bernardo Morla da familia dos Antelminellis Allucinghis, e a esposa de Buonac
corso de Lazzaro de Fondora. Mas é difficil saber qual d'estas duas Gentucas foi a
supposta namorada de Dante . Demais, Bonagiunta diz, que a tal senhora ainda não
tinha tomado o veo ( e non porta ancor benda), isto é, não era casada ; como pois podia
ser uma das duas Gentucas então existentes , ambas casadas, e estas castas e honestas ?
Francisco Bulti, primitivo commentador da Divina Comedia, devia, como na
tural de Pisa, saber as cousas de Luca melhor que ninguem ; entretanto, diz apenas,
que Dante ali rendeu preito a uma gentil dama, chamada Gentuca, que era de
Rossimpelo ; mas que não a amava, senão pela grande virtude, e honestidade, de
que era ornada (per la virtù grande ed onestà che era in lei, non per altro, amore).
Com effeito , não seria uma mulher de costumes dissolutos, que faria a gloria de
id
Luca, nem tão pouco Dante, já nos seus 50 annos, e tão grave no seu porte, havia
de render preito a prostitutas ! O que me admira sobremaneira é que quasi todos
os commentadores, inclusive Ampère, tenham mantido esse embuste lançado sobre
a memoria do grande Poeta ! Quando me occupar da traducção do Purgatorio, es
pero que na explicação d'essa predicção de Bonagiunta a verdade será ainda posta
em maior evidencia .
G
CIV TRAÇOS BIOGRAPHICOS

demorasse, tivesse tido a dolorosa consolação de ver os castigos


do céo chover sobre os Florentinos, os quaes foram completa
mente desbaratados pelo mesmo Ugucião em Montecatini(agosto
de 1315 ). Dizem alguns biographos , que os dous filhos de Dante
se acharam n’este combate ; pelo que foram tambem declara
dos proscriptos pela Communa de Florença.
Em abril de 1316, foi Ugucião expulso do governo de Pisa,
e de Luca, por causa de extorsões, e desaforamentos practica
dos no exercicio de suas funcções.
Si Allighieri ainda se demorava em Luca, é natural que,
depois de expulso o Faggiolano, procurasse abrigo n'outra
parte . Os seus passos são , d'esse dia por diante , novamente
envoltos em trevas ; não se sabendo com certeza que rumo
ou direcção tomasse .
S4

A grande recusa. — N'aquelle tempo as portas da patria


cidade abriram-se a Dante Allighieri, o qual teria podido
voltar a Florença, si quizesse condescender em aviltar a sua
dignidade. Expulso, e fugitivo Ugucião della Faggiola, com
todo o partido guelpho da Toscana, os Florentinos não tinham
já inimigo poderoso a quem temessem . Baixaram pois (sendo
podestà o Conde Guido de Battifolle) Provisões, pelas quaes
permittiam a quasi todos os banidos o entrar em Florença,
uma vez que se submetessem a humilhantes condições . Muitos
curvaram -se . Os parentes, e amigos de Dante, que existiam
em Florença , o exhortaram a curvar-se tambem . Mas, com
quanto elle suspirasse anciosamente voltar á patria, todavia,
sendo n'elle muito forte o sentimento da propria dignidade,
preferiu continuar a comer o pão negro do exilio a entrar
com deshonra em Florença .
O caso correu assim : Um Padre, amigo de Dante , e um
sobrinho de ambos, aproveitaram-se das disposições de paz ,
em que se achavam os espiritos em Florença, para pedir ao
governo da Republica, que permittisse ao grande exilado re
gressar ás doçuras do lar domestico. O governo mostrou -se
1

DE DANTE ALLIGHIERI CV

disposto a conceder essa permissão ; mas , segundo os usos


juridicos da edade media , pôz condições infamantes, que para
um homem do caracter de Allighieri , não eram acceitaveis .
As condições eram estas : o exilado devia submetter-se á ce
rimonia humilhante , chamada oblação, isto é, sacrificio, e ex
piação para com a Communa. Para isso , devia constituir-se
prisioneiro da Communa : depois, no dia da festa solemne
de S. João, ou n'outra grande festividade, apresentar-se na
cathedral, com um cirio na mão, em camisa de penitente,
olhos baixos, e n’estas condições implorar a misericordia da
assembléa .
Dante não se fez esperar na explosão da sua indignação .
Escreveu ao seu amigo Padre a carta monumental , que passo
a reproduzir com toda a fidelidade : « Das vossas cartas, por
mim recebidas com toda a reverencia, e affecto, vejo com
animo grato o interesse, com que tomaes a peito o meu re
gresso a Florença ; e tanto mais vos sou sinceramente grato,
quanto é rarissimo encontrarem os desterrados amigos con
stantes e leaes ! A tamanha gentileza passo a responder: e , si
a minha resposta não for tal, qual a pusillanimidade de alguns
desejaria, rogo-vos com encarecimento, que mediteis com ma
duro conselho nas minhas presentes observações :
« Das vossas citadas carias, e das do vosso, e meu sobrinho,
bem como das de outros amigos , foi-me communicado o Bando
ou Provisão, que Florença, ha pouco, baixou ácerca da absolvi
ção dos banidos ; declarando -se, que, si eu quizer pagar uma
certa quantia de dinheiro, e submetter-me á vergonha da obla
ção, poderei voltar livremente a Florença. A dizer-vos a verda
de, meu Padre, são estas duas condições risiveis, e mal ponde
radas; mal ponderadas, digo, por aquelles, que as impozeram,
ainda que de vossas cartas, mais discretamente concebidas , nada
de similhante conste .
0

« Será esse porventura o glorioso modo, por que se pretende


chamar Dante Allighieri á patria, depois das amarguras de um
exilio de quasi tres lustros? Será esse o fructo do largo suor, e
fadigas laboriosas, em seus estudos ? Oh longe do homem fami
CVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

liar da philosophia essa baixeza , propria de um coração de lama,


que, á guisa de um certo Ciolo, ( 1) e de outros individuos de má
fama, vá por preço tal comprar o seu resgate ! Longe do homem
pregoeiro da justiça, que, depois de offendido com tanta injuria,
cáia na fraqueza de pagar tributo a seus offensores, como si
foram benemeritos !
Não é este, ó meu Padre, o caminho de voltar á patria ;
mas , si achardes outro, em que a fama, e a honra de Dante
não padeçam detrimento, podeis -m'o indicar, que de prompto o
seguirei. Si porém não for possivel entrar em Florença, senão
pelo caminho do aviltamento , declaro, que não entrareijamais !
Pois que! não poderei de qualquer angulo da terra contemplar o
Sol, e as estrellas ? Como poderei sob todas as plagas do Céo
meditar as dulcissimas verdades da san philosophia , si antes me
tornar um homem sem gloria, ou coberto de ignominia em face
do povo de Florença ? Não ! — Dante Allighieri.»
Exemplo de hombridade similhante só se encontra um nas
historias antigas . Rutilio, o mais virtuoso cidadão de Roma , foi
accusado de falsos crimes pelo infame Apicio ; não se quiz de
fender, e foi condemnado ao desterro : chamado depois pelo
dictador Sylla, sob a condição de submetter-se á sua auctorida
de , recusou, e se retirou para maior distancia de Roma escrava ,
e corrompida ! Boccaccio, louvando a nobre altivez com que
Dante repelliu a ignominiosa amnistia, exclamou : « Oh louva
vel, e magnanima altivez, quam virilmente actuaste no espirito
de Allighieri, reprimindo -lhe o ardente desejo de voltar á patria
por modo menos digno de um homem nutrido no regaço da
philosophia !,

S 6

O ultimo refugio.— Nos seus ultimos annos, firmou Dante


sua residencia em Ravenna, liberalmente hospedado por Guido
( 1 ) Este Ciolo, a quem Dante vibra aqui setta cruel, probabilissimamente é
Ciolo dos Abatis, morador no bairro da porta de S. Pedro, cujo nome no docu
mento de 2 de setembro de 1313 acha - se no elenco dos excluidos da amnistia.
DE DANTE ALLIGHIERI CVII

Novello, sobrinho da infeliz Francisca de Rimini , cujo tragico


fim o Poeta havia immortalisado com os mais affectuosos, e en
ternecidos versos .
Errante por diversos logares da Italia , de quando em quando
apparecia Allighieri em Ravenna , onde pousava, ora mais , ora
menos tempo, e d'ali fazia suas digressões ás cidades circumvi
zinhas . Como se encadeassem as cousas, que produziram o re
sultado de que aqui nos occupâmos, deixemos que fale Boc
caccio : « Era n'aquelles tempos Senhor de Ravenna, famosa, e
antiga cidade da Romanha, um nobre cavalleiro de nome Guido
Novello de Polenta, dado a estudos litterarios , e summamente fa
vorecedor dos homens valorosos, com especialidade d'aquelles,
que em sciencia se avantajavam aos outros. Chegando ao seu
conhecimento, que Dante, perdidas todas as esperanças de voltar
á sua patria, vagueava pela Romanha, determinou franquear
lhe generoso acolhimento. Mas, sabendo por experiencia quanto
os homens superiores , por mais apertadas , que sejam as circum
stancias, escrupulisam em estender mão supplice, tomou a nobre
resolução de se adiantar em offerecêr a Dante aquillo, que elle
lhe pediria, si menos flexivel fosse o seu caracter. Penhorado
Allighieri da generosa liberalidade do nobre cavalleiro, não esti
pulou reservas : dirigiu-se em continenti para Ravenna, onde foi
recebido com todas as honras por Guido, que, para cumulo de
finezas, quiz que o Poeta habitasse com elle em seu palacio,
onde lhe não faltou conforto de especie alguma " .
Observa Cesar Balbo o seguinte : « A liberalidade com que
Guido Novello tractou Dante, não foi senão a continuação da
antiga familiaridade, que havia existido entre este, e os Polen
tanos. Guido, o pae de Francisca de Rimini, tivera alem d'esta,
tres filhos: Bernardino, o companheiro de armas de Dante na
batalha de Campaldino ; Ostasio, e Banino . Mortos todos, antes
de 1318, sobrevivia, e governava Ravenna Guido Novello, filho
de Banino, e sobrinho por consequencia de Bernardino, e de
Francisca . O refugio, pois, offerecido liberalmente ao Poeta por
Guido mostra de per si, que este não se dera por offendido do
modo por que o mesmo Poeta havia cantado em primorosos
CVIII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

versos a culpa da infeliz tia , a qual, só depois d'aquelle carme


immortal, se tornou objecto da compaixão geral » .
A côrte de Guido convertêra -se desde então n'uma especie de
academia : todos os homens de lettras da redondeza , todos os
aspirantes ás glorias da poesia, ali affluiam a ouvir os preceitos
do grande mestre Allighieri. Todavia, essas deliciosas diver
sões mal encobriam as tristezas intimas da alma do Poeta , a quem
a imagem da patria, e da familia estava sempre presente...
Corriam os dias, e eis senão quando um inesperado acontecimento
veiu lançar na consternação o senhor de Ravenna. A republi
ca de Veneza declarou - lhe guerra ! Em tal conjunctura, Guido, em
prova do grande apreço em que tinha a capacidade de seu illustre
hospede, encarregou - o da escabrosa missão de ir a Veneza, como
seu enviado, tractar da paz . Cousa singular ! Parece que o des
tino não elevava Dante ás altas eminencias sociaes , senão para
precipital-o no abysmo de profundas amarguras ! A sua nomea
ção de primeiro magistrado da republica de Florença foi o fu
nesto principio de seus grandes desgostos, como a sua embai
xada junto a Bonifacio VIII foi a causa do seu exilio ! Por fim
esta nova embaixada de Veneza occasionou-lhe a morte ! O se
nado, temendo ser vencido na sua obstinação pela habilidade
do embaixador de Ravenna, usou de todos os subterfugios para
procrastinar a audiencia . Dante, que tinha feito ponto de parada
em Padua , era coagido pelo dever da sua missão a fazer succes
sivas viagens a Veneza . N'essas idas, e voltas sorveu fatalmente
os miasmas paludosos d'aquella região. Desenganado de nada
obter do Senado atroz, resolveu voltar a Ravenna, levando no
corpo os germens da sua morte proxima. Com effeito, diz Boc
caccio : « Voltando da sua embaixada , e achando-se já na edade
de 56 annos, caiu enfermo, e conformando-se com os precei
( 1 ) Dante, cujo amor da familia é louvado por Petrarca (Epist., pag. 445 ) , apenas
firmou residencia em Ravenna, mandou vir para junto de si seu filho Pedro, que se
achava em Verona, e talvez, diz Troia, para occupar o logar de juiz. Consta por
tradição , que, habitando elle no suburbio de Sancta Maria em Zenzanigiola , e de
Sancto Estevão em Muro, dera, no dia 5 de janeiro de 1321 , um banquete ao Arce
bispo de Bolonha, que visitava a diocese vaga, de Ravenna . Mandou o Poeta vir tam
bem o seu segundo filho Thiago.
1

DE DANTE ALLIGHIERI CIX

tos da Religião, recebeu todos os sacramentos com humildade,


e devoção, como quem se mostrava contrito, e arrependido de
suas culpas . Assim pois reconciliado, no mez de septembro do
anno de Christo de 1321 (no dia 14, em que a Egreja cele
bra a festa da exaltação da Sancta Cruz), rendeu Dante Allighieri
o trabalhado espirito ao seu Creador, no meio da consternação
profunda de Guido, e de todos os cidadãos de Ravenna » .
« Assim morreu Dante, homem infeliz desde a juventude
pela perda de seu primeiro amor ; infeliz pelos serviços , que quiz
prestar á sua patria : desconhecido de seus concidadãos, con
demnado á pena de fogo, arguido de concussão, interrompido
em seus estudos, exilado, errante, pobre, talvez mendicante, iso
lado, escarnecido de jograes cortezãos, joguete de Principes;
mas Dante jamais se aviltou, jamais se separou da fé, não ces
sando até fim de amar, de trabalhar, de escrever em gloria de
Beatriz , de sua patria, e sobretudo de seu Deus !, ( 1 )

S7

A paz do sepulchro. — Dante foi sepultado com toda pompa


junto á egreja de S. Francisco, denominada de S. Pedro Maior,
na capella da Virgem , em humilde sepultura pela brevidade do
tempo. Guido Novello, que o acompanhou até á ultima jazida
com toda sua côrte, leu o elogio funebre do grande Poeta, pro
testando erigir-lhe um mausoléo de tanta magnificencia, como
nunca fôra consagrado a homem algum ! (2) Quando porém se
dispunha a executar a sua solemnissima promessa, Guido foi
( 1 ) Cesar Balbo, Vida de Dante.
(2) Está escripto, diz Cantú, que por occasião da morte de Dante , o Cardeal
Bertrando del Poggetto, legado pontificio na Romanha, no tempo, em que a Sancta Sé
estava escrava, e aviltada em França, procurára perturbar as cinzas do Poeta. Seria
mais uma loucura, que havia de pôr o cumulo a tantas outras, com que aquelle
prelado manchou a sua missão politica ; seria uma vingança de mais, que Dante
$
receberia d'aquella França, da qual os Papas então tinham -se feito vassallos. A sua
tentativa porém não foi por diante ; não só o sepulchro não chegou a ser profanado,
como começou desde logo a veneração para com o Poeta ... Os seus concidadãos
repararam suas injustiças, instituindo uma cadeira em que elle fosse lido, e expli
cado na Cathedral, onde Dominico de Michellino ( e não Orgagna, como vulgar
· mente se diz ) o pintou, na parede interna, vestido de Prior, e coroado, com a Di

I
CX TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1
trahido por Ostasio, seu primo co- irmão, e lançado fóra do
throno de Ravenna.
Por seculo, e meio jazeram os ossos de Dante sob campa
obscura . Em 1483 , Bernardo Bembo, pae do Cardeal Bembo,
vindo de Pretor a Ravenna pela republica de Veneza, resolveu
pôr em obra o projecto de Guido Novello ; fazendo erigir ao
summo Poeta um mausoleo magnifico, trabalho do artista
Pietro Lombardi. Este mausoléo foi restaurado, por esforços do
Cardeal Governador Dominico Corsi, e embellecido, e circumda
do por um templosinho pelo Cardeal Valenti. Por causa do se
pulchro do Poeta o Cardeal Corsi teve que sustentar grande
contenda com os padres conventuaes de S. Francisco, os quaes
defendiam com todo zelo o sagrado deposito dos ossos de Alli
ghieri , que consideravam como pertencente á sua Ordem, com
cujo habito tinha sido sepultado, em qualidade de terceiro da
mesma Ordem . Emfim , receiando elles alguma surpreza de rapto,
convieram em que o intrepido Fr. Antonio Santi cogitasse o meio
de pôr o sacro deposito a bom recado. Effectivamente pôde
o digno frade, na calada da noite , tirar o corpo do logar co
nhecido, e escondel-o n'uma especie de carneiro, que abriu em
uma das paredes pouco distante . Por muitos seculos ignorou-se
o logar preciso, onde estivessem as cinzas do Poeta, mas era
crença geral, perseverante, de que ellas dormiam ali . A final,
por occasião do sexto centenario de Allighieri, querendo a
municipalidade de Ravenna dar maior lustre ao templosinho,
dentro do qual está o mausoléo, procedeu ao desmoronamento
dos muros , e das fabricas circumvizinhas, e com tamanha felici
dade, que no dia 27 de maio de 1865 , descobriu no amago de
um dos muros o cofresinho de Fr. Antonio Santi, em que se
achavam os ossos do grande Poeta ! Imagine-se o exulte univer
sal , que esse precioso achado produzira no animo de todos os
vina Comedia aberta na mão, mostrando aos Florentinos as fossas do Inferno, e a
montanha do Paraiso . No concilio geral de Constança lia-se Dante ; e Fr.Giovanni
de Servalle, minorista riminense, Bispo de Fermo, á instancia do Cardeal Amedeo
de Saluzzo, e dos Bispos de Bath, e de Salisburgo, traduziu o sacro Poema em
prosa latina, acompanhando -a de um commentario , cujo manuscripto está no Va
ticano (Storia della Letteratura Italiana, p. 48 ) .
DE DANTE ALLIGHIERI CXI

Ravennenses, cuja dedicação á memoria de Dante se abalisa


na resistencia heroica, que sempre oppozeram á idéa de serem
os restos mortaes do Poeta transferidos para Florença !( 1)
Nas minhas penosas excursões por todos os logares da Italia ,
de que fala Dante na Divina Comedia , com o fim de avaliar com
segurança a conformidade das suas descripções, a Romanha
não me podia escapar, por ser a região, onde se havia dado um
dos mais celebres, e tocantes episodios do sacro Poema , e onde
o seu auctor tinha findado os preciosos dias . Visitei pois Forli,
Rimini, e Pesaro ; mas Ravenna era o meu principal objectivo. Lá
fui...Não sei reproduzir as profundas commoções , que me aba
laram o espirito, quando me achei só n’aquella cidade , que havia
sido o berço da infeliz filha de Guido, e jazida ultima do immor
tal cantor da sua desventura ! Chegando de noite, logo pela manhã
fui á egreja, ao lado da qual demora melancholico, e senhoril o
tumulo do Poeta . Antes porém de visital-o, celebrei uma missa
pelo repouso eterno da sua alma, em a propria capella da Virgem ,
onde é tradição, que costumava elle assistir ao incruento sacri
ficio, segundo me informaram os bons padres, que regem o culto
da dita egreja.
Depois um membro da municipalidade , prevenido de que eu
tinha vindo de romaria áquelle sanctuario das lettras, deu-se
pressa em trazer a chave , e abrir o templosinho. Entrei , e , por
( 1 ) Em 1396 pensou-se pela primeira vez em Florença pedir a Ravenna, que
consentisse em serem os ossos de Dante trasladados para a sua cidade natal ; mas
só em 1430 foi a petição dirigida a Ravenna . D'este assumpto tractou-se secreta
mente nos annos 1475 , e 1476 entre Lourenço de Medicis, e Bernardo Bembo.
Alguns escriptores attribuem a essas tentativas a resolução de Fr. Antonio Santi, e
de seus confrades, no sentido de remover para logar occulto os ossos do Poeta . Em
1519 os academicos florentinos renovaram a petição, implorando a Leão X , que
a patrocinasse : Miguel Angelo assignou tambem a petição com a promessa ade
fazer ao divino Poeta um mausoléo condigno, e em logar honroso, em Florença ».
Todos estas diligencias naufragaram ante a recusação formal dos Ravennenses. Na
primavera de 1830 descobria-se em Florença o primeiro monumento ahi erigido a
Allighieri. Finalmente, em 1864, o municipio de Florença dirigia uma nova rogativa
á cidade de Ravenna, para obter d'ella, como dom fraternal,quanto mais doloroso tanto
mais nobre, a restituição dos ossos de Dante, promettendo esteriotypar uma epigra
phe, que recordasse a generosidade dos Ravennenses, e o reconhecimento dos Flo
rentinos. Ravenna declarou que não lhe era possivel annuir a essa nova ragativa.—
Bravissimo, ó Ravenna !
CXII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

meia hora de funda meditação, estive a reconstruir na phantasia


alvoraçada o corpo do Poeta da luz , que dorme o grande somno
nas trevas d'aquelle tumulo ! Em seguida, escrevi o meu hu
milde nome no livro dos visitantes, entre os quaes figuram altos
personagens, litterarios, e scientificos, Principes, e Reis de todas
as nações ! Lá me mostraram , de par com muitas corôas mortua
rias magnificas, uma, que o illustrado Imperador do Brazil havia
offerecido, quando foi a Ravenna , com o seu leal camarista Vis
conde de Nioac, render homenagem de affecto , e admiração ao
Rei dos Poetas . Que tumulo de sabio, na ordem profana, foi já
cercado da aureola de tão constante, e universal celebridade ?
A ninguem, melhor do que a Dante, quadra este famoso verso
do seu mestre Virgilio:

Semper honos, nomenque tuum , laudesque manebunt.

Não devo omittir, que o palacio (reggia) do senhor de Ra


venna, em que residiu, e falleceu o Poeta, se acha em face do
templosinho, que lhe encerra o tumulo, com uma inscripção
commemorativa na parede pelo lado exterior. O palacio não exis
te, como na primitiva ; tem apenas uma parte habitavel , effecti
vamente habitada, mas com outras disposições interiores.
Quando conclui a minha especie de romaria, estava o pateo
do templosinho cheio de gente da cidade, que, em sabendo que
elle se abre a forasteiros, corre a contemplar o venerando mau
soleo, com a mesma curiosidade de quem nunca o tivera visto !
Ao saír, convidaram-me a visitar a casa de Francisca de Rimini,
isto é, aquella em que nasceu. Segui a multidão, mostrando-se
cada qual mais erudito nas cousas antigas . Chegámos , com
effeito, ao pardieiro, conhecido por casa de Francesca, hoje ha
bitação de familias pobres, no meio das quaes achei-meenleiado ;
gloriando-se cada uma de occupar os proprios aposentos em que
nascêra, e vivêra a desditosa donzella, durante a sua juventude .
Mas confesso, que saí mais incredulo, do que entrei , com rela
ção á authenticidade do monumento !
Tomaseo, reproduzindo Boccaccio, faz -nos a seguinte descri
DE DANTE ALLIGHIERI CXIII

pção physica do Poeta: « Foi Dante de estatura mediana , um


tanto curvo ao declinar dos annos ; grave, e brando no andar ;
vestido decentemente ; triste sempre, mas não sem um certo
sorriso de affabilidade; nariz aquilino ; olhos grandes ; rosto -
comprido ; queixo levantado ; labio superior saliente ; organisa
ção robusta : côr morena ; barbạ, e cabello espessos, negros, e
crespos ; facundo nas assembléas ; raro, e tardo nas conversa
ções particulares, mas sentencioso ; circumspecto ; cortez ; sobrio
na comida ; vigilante » .
Quanto ao retrato de Dante, ha uma serie de estudos, muitos
dos quaes encontram-se nel Giornale del Centenario di Dante, Flo
rença, 1864, 1865 .
O que apresento na frente d’este livro é copiado, por um dos
mais insignes artistas de Florença, do proprio original a fresco,
obra do pincel de Giotto, e que se acha na capella della Podestà,
do palazzo Vecchio , sendo descoberto, e cuidadosamente restaura
do em 1841. D'este original copiára Raphael, no seculo XVI,
outro , que mais ou menos alterado pelos copistas ulteriores , an
dou em voga até o citado anno de 1841. Quando Giotto retra
tou o seu amigo Allighieri orçaria este por seus 33 annos, e é
apresentado a caracter, ou segundo o uso de vestir da época .
Descendencia. --De sua mulher Gemma Donati teve Dante
varios filhos, cujo numero é incerto, e disputavel. A historia
não conhece senão tres : Pedro, Thiago, e Beatriz . Esta vestiu
(talvez depois da morte do pae) o habito religioso no mosteiro
de Sancto Estevão, chamado de Uiva, em Ravenna. Os capitães
da ordem de S. Miguel em Florença mandaram-lhe , por inter
medio de Boccaccio, o subsidio de io florins em oiro. Ignora -se
quando cessasse de viver. Thiago na juventude alistou -se na
ordem ecclesiastica, e no dia 8 de outubro de 1226 recebeu as
ordens menores do Bispo de Fiesole, e teve o canonicato de
e uma parochia de S. Jorge, diocese de Verona . Mas depois, dei
xou as vestes clericaes, casando-se com Jacopa de Bigliotto da
familia Alfani. Viveu d’ahi em diante em Florença , onde se crê
que fallecesse em 1360. A sua descendencia masculina extin
guiu -se em seus filhos: sua filha Allighiera foi mãe de Francis
CXIV TRACOS BIOGRAPHICOS

1
ca , que esposou Manfredi Bernardo de Manfredi. Pedro foi
jurisconsulto de grande reputação. Desde 1332 viveu em Ve
rona, onde foi repetidas vezes Vigario del Podestà , e occupou
por longo tempo o logar de Juiz. Morreu em 1364, segundo
alguns em Verona, segundo outros em Treviso. De Jacopa, sua
mulher, filha de Dolceto dos Salernis, teve diversos filhos. A
na estirpe porém acabou na sua descendente Ginevra, que
em 1549 se uniu em matrimonio a Marco Antonio Sarego Alli
ghieri , oriundo de uma das mais illustres casas da Italia . Nos
Saregos Allighieris de Verona ainda corre pelas veias o sangue do
summo Poeta Allighieri . Parece tambem duvidosa a existencia
de outra filha de Dante, que foi esposa de um Pantaleão, e mãe
de dois filhos, Pedro, e Thomas Pantaleão, lembrados no tes
temunho de Pedro seu tio .
A apothéosis. — Foi grande em Dante Allighieri o amor da
fama, bem que estivesse longe de aprecial-a mais do que ella vale :
sabendo, como elle mesmo diz, que o rumor vulgar não é outra
cousa , que um sopro de vento, e que a celebridade humana reveste
a côr da herva, que vem , e vae, sendo por fim destruida pelo
tempo. É certo porém que se esforçava por adquirir fama, e
temia passar entre os vindouros por amigo timido da verdade .
Pouco lhe foi dado conseguir emquanto viveu . Em vez de titu
los magnificos, de corôas de louro, de honras clamorosas, de do
nativos esplendidos, de beneficios lucrativos, os seus concida
dãos deram-lhe o exilio, a maldição da patria , a condemnação
ao supplicio do fogo: fizeram-n'o descer, e subir escadas alheias,
tragar o pão salgado da mesa dos estranhos : forçaram -no a
vaguear peregrino, quasi mendicante, mostrando contra vontade
a chaga da fortuna . Mas estava escripto nas paginas sublimes
do seu destino, que elle depois de morto conseguisse aquella
fama por elle suspirada, mas em tão alto gráo, que jamais ousára
prever em seus dourados sonhos! Emquanto é da indole da
fama ir - se diminuindo pouco a pouco, até que por fim se apaga da
memoria das gerações, a fama de Dante, por um contraste ma
ravilhoso, prêsa por uma corrente de oiro ás azas dos seculos ,
tem ido sempre crescendo, dilatando-se, qual o rio, que, á por
1

DE DANTE ALLIGHIERI CXV

porção que prolonga o seu curso, maior pujança adquire ! Si


n'um seculo de decadencia moral, e litteraria pareceu obscure
cer-se , não foi, senão para resurgir com maior esplendor; senão
para pompear, sobre a cupula de seis seculos , gloriosa , trium
phante, immortal !
Apenas divulgado, o seu prodigioso Poema, foi recebido com
universal admiração. Os mais abalizados litteratos, como os
mais humildes filhos do povo, liam , copiavam , aquelles su
blimes carmes, que eram á porfia decorados, repetidos em
todas as academias, em todas as assembléas , em todas as offi
cinas de artes, e officios,e, o que mais é, até nas proprias cadeias !
Mal o summo Poeta fechára os olhos, os eruditos deram-se ao la
bor de desvendar a doutrina, occulta sob o véo dos versos estra
nhos ( sotto velame de' versi strani): surgiram glosas, e commenta
rios destinados, em grande parte, a sobreviver aos tempos. Meio
seculo depois da morte do Poeta, Florença erigia uma cadeira
dantesca, a que subia Boccaccio, na dominga de 3 de outubro de
1373 , para explicar aos netos d'aquelles cidadãos, que tinham
banido da patria o grande Poeta, as verdades profundas encer
radas no seu inimitavel Poema. Pisa, Milão, Veneza, Bergamo,
e outras cidades imitavam o exemplo, creando cadeiras dantes
cas. Inventada a arte da imprensa, pullularam por toda a parte
as edições da Comedia, a que logo se addicionou o titulo de Di
vina. Nem a fama de Allighieri se limitou dentro dos confins da
Italia ; pelo contrario, transpoz mares, e montes, e foi retumbar
entre todos os povos civilisados do antigo, e novo mundo. A
Divina Comedia, como em outro logar mostraremos , tem tido
maior numero de edições, e de traducções, do que todos os livros
do mundo, excepto a Biblia ! Nenhum sabio, desde então, julgou
se digno d'este nome, sem collocar na sua estante um exemplar
do sacro Poema! Si eu fosse a reproduzir todos os innumeraveis
juizos esplendidissimos, que em todos o tempos têem sido pro
feridos sobre o alto merito do volume de Dante, escreveria um
livro das mais largas dimensões!
Entretanto, manda a imparcialidade, que eu diga, que Dante,
como o Sol, tem tido seus apedrejadores . Não faltaram invejo
CXVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

este de que
sos (genero de ppeste foi
sempre inçada a republica das
lettras) , que o detrahissem ! Não foi sómente no seculo xv, que
os Bulgarines, os Lenzonis , os Mazzonis, os Ceccos d'Ascoli, ( 1 )
que moveram guerra encarniçada contra Dante : no seculo XVIII
os Betinelis , e os Voltaires procuraram tambem com a triste arma
do ridiculo amesquinhar o alto valor da Divina Comedia ; assim
como não faltaram outros, mesmo entre os que se diziam admi
radores do Poeta, que se tornaram , não simplesmente detracto
res, mas calumniadores desalmados ! Arguiram -no de sensual,
de adultero, de partidario apaixonado, de racionalista, de heretico , de
socialista , e , .. por ahi fóra. Felizmente cada uma d’estas iniquas
imputações valeu ao grande cantor dos tres reinos invisiveis cente
nares de apologias ! Eruditos de primeira ordem saíram a campo,
e vingaram victoriosamente a verdade ultrajada . Vem aqui a
proposito repetir as notaveis palavras de uma epigraphe, de que
se serviu um de seus apologistas, o meu respeitavel amigo, o sr.
dr. Frederico Bergmann :
Contre l'erreur et la calonnie la revendication
de la vérité et de la justice est éternelle.

Defendendo Dante da pecha de sensual , e de adultero , diz


elle : « Boccaccio , o primeiro commentador da Divina Comedia,
pretendeu que Allighieri fosse dado ao amor de mulheres, e por
isto insinuou, que, infiel ao seu dever de esposo , teve successi
vamente (ou talvez ao mesmo tempo ! ) muitas amantes . Quanto
a nós, a questão não é saber, si Dante foi, sim, ou não, domi
nado de um temperamento ardente . O que negâmos com todas
ás veras é, que elle com o seu caracter serio, e consciencioso ,
tivesse esquecido seus deveres de homem honesto e faltado até
ás proprias conveniencias litterarias , registrando loucamente , em
suas poesias, paixões indignas d'elle ! Negåmos alem d'isto, que
uma alma como a sua, que, por uma lei psychologica, aspirava
em todas as cousas ao ideal , podesse caír na vulgaridade. Ne
(1 ) Este pobre critico foi, tempos depois, a pertexto de heresias, queimado
vivo na Hespanha, por ordem do implacarel tribunal da inquisição, de ominosa me
moria !
1

DE DANTE ALLIGHIERI CXVII

gamol -o emfim peremptoriamente , provando, que as palavras


do Poeta, e os textos contra elle citados, têem sido erroneamente
interpretados. Em consequencia d'essa falsa interpretação, tem
se chegado a attribuir a Allighieri não menos de sete amantes !
Essas pretendidas amantes seriam : 1.*, Beatriz filha de Porti
nari ; 2. , a Consoladora ou Piedosa ; 3 ", a Pargoletta ; 4.", a Gen
tuca da cidade de Luca ; 5.“, a Montanina ou a Alpigna do
valle alto do Casentino ; 6.", a Pietra dos Scrovinis de Padua ;
7.", finalmente, a denominada Lisetta . Explicados philologica, e
allegoricamente, todos os textos, de cuja falsa interpretação pre
tendem deduzir a existencia d'essas suppostas amantes, fica pa
tente a supina ignorancia, e a má fé d'aquelles que procuraram
infamar a memoria do Poeta da rectidão, do pregoeiro da justi
ça , e do theologo moralista » .
O não menos erudito Scartazzini exprimiu-se n'estes termos :
« Surgiu no nosso seculo uma escola nova, cujos primordios re
montam aos ultimos decennios do seculo passado, a qual ao
conceito moral, e religioso da Divina Comedia pretendeu substi
tuir o conceito politico, ousando affirmar, que o sacro Poema,
longe de ser uma epopea da salvação dos povos, e dos indivi
duos, é unicamente a epopea do Gibellinismo ! Proseguindo em
tão errado caminho, essa escola teve a insania de fazer do Poeta
da rectidão o apostolo da revolução, e do Poema divino a Biblia
dos revolucionarios ! Á similhança das diversas seitas religiosas,
que procuram encontrar na Biblia as suas proprias opiniões, os
diversos partidos politicos, e socialistas têem procurado desco
brir na Divina Comedia as suas individuaes opiniões deleterias !
Nem essa escola encontrou sequazes somente na Italia ; encon
trou-os na França, onde se proclamou Dante como heretico,
revolucionario, e socialista, como tambem teve éco em Allema
nha, onde se ensinava, que a Divina Comedia é o cantico impe
rial contra o Papa !
2
« Bem que em decadencia , essa escola subversiva temt ainda
sectarios, que continuam a ver em Dante o propheta da revolu
ção. E entretanto, máo grado as suas exaggerações , e extravagan
cias, tem ella contribuido para que interpretes conscienciosos se
CXVIII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

--
1 tenham esforçado, n'estes ultimos tempos, por explicar a verda
deira intelligencia do Poema, já na sua parte moral , e religiosa,
já tambem na sua parte politica. Porquanto, o fim do Poeta
não foi somente promover a felicidade eterna, mas egualmente
a felicidade d'esta vida ; não somente a redempção espiritual do
individuo, mas a regeneração civil, e politica dos povos . »
Dante precursor do racionalismo, e do livre exame ! Assim o
proclamam, entre outros, os sequazes de. Graul , e Foscolo !
Para pulverisar completamente essa imputação, basta , sem
commentarios, nem circumlocuções, apresentar estes tres estu
pendos versos do grande Poeta :

Quell'uno e due e tre, che sempre vive,


E regna sempre in tre, e due, e Uno,
Non circonscritto, e tutto circonscrive.
(Par., XIV ) .

« Aquelle Deus Uno e Dous e Tres, que vive,


e reina sempre em Tres, e Dous, e Uno, não
circumscripto , e circumscreve tudo ...

Ha nada tão profundo, e ao mesmo tempo tão sublimemente


singelo, como esta definição do augusto mysterio da Sanctissima
Trindade ?
Já no canto anterior (x111) Dante havia fulminado as heresias
de Sabellio, e de Ario . Sabellio, que confundia as Pessoas da
Sanctissima Trindade, sustentando que não havia distincção al
guma entre ellas, de modo que por este execravel principio o
Espirito Sancto, e o Padre tinham soffrido a morte egualmente
com o Filho ! Arrio, que despeitado por não ter sido nomeado
Bispo de Alexandria, rebellou-se contra a doutrina catholica ,
ensinando que Jesus Christo não era Deus, mas uma pura
creatura; blasphemia , que em nossos dias repetiu o impio Renan !
O Poeta, por uma bella metaphora, qualifica os dois referi
dos hereges (como todos os hereges) de espadas das Escripturas ;
querendo significar, que assim como a espada, cortando os rostos
humanos, que são perfeitos, os deforma, e desfigura, similhan
temente os hereges , acutilando com a espada da lingua os Livros
DE DANTE ALLIGHIERI CXIX

Sanctos, deformam , e desfiguram o formoso aspecto das verda


des divinamente reveladas . Eis as suas palavras:

Si fe Sabellio ed Arrio, e quegli stolti


Che furon come spade alle scritture
In render torti li diritti volti.

Á imputação de precursor do livre exame responde Dante


com este outro admiravel terceto, que é uma solemne profissão
de fé ao dogma da infallibilidade do Papa !
Avete il vecchio e il nuovo Testamento,
E il pastor della Chiesa che vi guida :
Questo vi basti a vostro salvamento.

« Tendes o Velho, e o Novo Testamento,


E o pastor da Egreja, que vos guia :
Isto vos basta para a vossa salvação. »

Ora, não tendo os hereges antigos, e modernos outra regra


de interpretar a Biblia, senão o livre exame de cada um (arbi
trio temerario, e funesto á salvação das almas) Dante declara
formalmente, que a interpretação do Velho, e Novo Testamento só
pode ser feita authenticamente pela Egreja ou pelo seu chefe in
fallivel. Aqui o Poeta seguiu fielmente a doutrina do Principe dos
Apostolos, quando, falando das Epistolas de S. Paulo, diz , que
n'ellas ha algumas cousas difficeis de entender, as quaes são adul
teradas pelos indoutos, e hereges , como tambem as outras Escri
pturas ; torcendo-as, para a sua perdição, no sentido, que lhes
apraz : In quibus ( Epistolis) sunt quædam difficilia intellectu, quæ
indocti, et instabiles depravant, sicut cæteras Scripturas, ad suam
ipsorum perditionem . (1 )
Por onde se vê, que Allighieri, 240 annos antes do nasci
mento do Protestantismo, o feriu mortalmente em um dos seus
pontos fundamentaes: o livre exame ! Não foi só o Protestantis
mo, que o Poeta atacou de antemão ; outros muitos erros foram
tambem atacados por elle . O Darwinismo, por exemplo , foi
fulminado na sua falsa base, no tocante a fazer descender o
(1) Petr. Ep. I.
H
CXX TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1 homem dos macacos, e das aranhas. A este respeito diz Alli


ghieri : « Dizer que o genero humano descende de principios
diversos é falsissimo, segundo Aristoteles : falsissimo, segundo a
nossa fé, que não pode mentir ; falsissimo, segundo a lei, e crença
antiga dos gentios; porquanto, ainda que Aristoteles, não esta
beleça a origem de um primeiro homem , todavia sustenta que
uma só é a essencia em todos os homens, a qual não pode ter
principios diversos. E Platão sustenta egualmente, que todos
os homens derivam de uma só Idéa, e não de muitas . Sem du
vida Aristoteles riria a velas despregadas, si ouvisse attribuir duas
especies ao genero humano, como dos cavallos, e dos asnos; mas
(perdoe- me Aristoteles) asnos se podem chamar aquelles, que assim
pensam » ( Convito. iv, 15 ; III , 7) .
Combateu tambem de antemão o falso principio da geração
espontanea, dizendo : « Si cada effeito participa da natureza da
sua causa ; si cada uma forma participa em algum modo da
natureza divina, quanto mais nobre é essa forma, tanto mais
participa d'esta natureza (Conv ., II, 2 ) . Si a creação da alma é
toda obra de Deus (XVI, 79 ; XXV, 70) ; si tudo que deriva de Deus ,
sem o concurso das causas segundas , recebe o sello da immor
talidade ( Paraiso, xIII, 52 ), d'aqui resulta que a alma humana ,
que é a fórma nobilissima de todas que foram geradas sob o
Céo , participa muito mais da natureza divina , que qualquer outra
( Conv ., III, 2) e que por consequencia a alma humana é immortal.
D'estes principios tira Allighieri o grande argumento da resur
reição dos corpos ( Paraiso , vii, 142 1 48) ; e confessa que a
natureza humana foi creada para encher o vacuo deixado no Pa
raiso pela queda dos anjos rebeldes (Conv., 11 , 6 ; Inferno, II, 37) .
O principio da immortalidade da alma leva naturalmente o
summo Poeta ao pensamento da vida futura ; por isto diz elle :
Entre todas as bestialidades , a mais estulta, a mais vil, e mais
damnosa é aquella , dos que crêm , que depois d'esta vida não
existe outra ... Esta doutrina verdadeirissima da existencia de
uma vida futura assim pois eu creio, eu affirmo, e estou certis
simo , que depois d'esta hei de passar a vida melhor » ( Conv ., 119 ;
Vita nuova, 5 , 43 ) .
DE DANTE ALLIGHIERI CXXI

D'aqui a constante solicitude do Poeta em advertir aos


homens, que sendo vermes ( Purg ., x, 124), e a vida humana
um incessante correr para a morte ( Purg ., XXXIII, 54), e vis os bens
da fortuna ( Inf., vii, 62 ) vil emfim o mundo todo ( Par ., XXII, 134)
é de urgente necessidade os homens não perderem de vista o seu
ultimo fim ( Conv. iv, 6 , 7 , 13 ) . Esta mesma advertencia faz o
Poeta no canto xxvi, 119 do Inferno :
Fatti non foste a viver come bruti,
Ma per seguir virtute e conoscenza .
« Não fostes feitos para viver como brutos,
Mas para seguir a virtude, e a sciencia. )

O terceto, que se segue é do mais saudavel ensino, para


refreiar a curiosidade humana no investigar as cousas arcanas,
que escapam á razão :

State contenti, umana gente, al quia :


Chè se potuto aveste veder tutto,
Mestier non era partorir Maria; (1)

Em sentido lato quer dizer : Homens insoffridos contentae-vos


de conhecer as obras de Deus, as suas relações, os effeitos das
suas combinações ; mas não presumaes ver o modo, a fórma, a
essencia das cousas ; não leveis as vossas investigações até á
Razão Primaria ; porquanto Deus esconde de modo o seu primeiro
porquê, que o triste mortal não pode transpor o váo, que d'elle o
separa : Felix qui potuit rerum cognoscere causas , que é o mesmo
que dizer, que ninguem jamais as pôde conhecer : portanto, con
tentae-vos em saber o que está na esphera da capacidade humana;
pois que si vós podesseis saber o tudo de tudo, não era necessario
que Maria desse á luz o Verbo Divino, porque então não haveria
peccado no mundo ; causa primordial da vossa ignorancia. » (1)
Insistindo em estigmatisar os livres pensadores incredulos , que
(1) Purgatorio , III, 37.
(2) Lapsus primorum Parentum diverticulum fuit totius nostræ damnationis. A
quéda dos nossos primeiros Paes foi a origem da nossa condemnação ( Vulg. Eloq.,
1, 18). Eis-aqui Dante crendo, e sustentando o dogma do peccado original, negado
por Luthero, de quem os falsos interpretes o consideraram precursor !
CXXII TRAÇOS BIOGRAPHICOS

3
ousam temerariamente discutir, negando as verdades eternas, o
Poeta prorompe n’esta férvida exclamação : Oh ineffavel, e in
comprehensivel sabedoria de Deus ! ... E : oh estultissimos, e
vilissimos animalejos, que, sob figura de homens, presumis falar
contra a nossa Fé, querendo saber, e deturpar aquillo, que Deus
com tanta providencia ordenou ! Maldictos sejaes vós, maldicta a
vossa presumpção, e maldictos os que acreditam em vós ! (Conv.,
iv, 5 ) . Dante considera loucos os livres pensadores ; por isto diz:
Se penetrare nella testa dei savj é difficile, penetrare in quella dei
matti ( loucos) é più difficile ancora . Só considera verdadeiramente
livres os homens, que obedecem as leis : Observantia legum est
summa libertas... Solum existunt liberi,quivoluntarie legi obediunt
( Epistola aos Florentinos, 5 ) . Tudo aquillo, que não harmonisa
com a divina Vontade, não pode ser direito : Quidquid divinæ
Voluntati non consonat, jus esse non potest (Mon., II, 2).
Eis o homem , que os revolucionarios da Italia proclamam
seu propheta, seu mestre em liberalismo incredulo ! « Onde
D'Azeglio ( 1) disse avean trasformato Dante in unitario, e garibal
dino ( Cantú, Cronistoria v, ill, p . 544). E a proposito da obsti
nação em quererem os unitarios fazer de Dante a sua bandeira ,
Tommaseo traçou este bello epigramma :
Farti non puoi più parte da te stesso.
Poichè in mezzo ai politici t ' han messo.

Allude Tommaseo ao facto de ter Allighieri, ao separar - se


dos Gibellinos, com indignação como gentalha perversa , e louca,
declarado, que d'aquelle dia por diante elle não teria outro par
tido senão a si proprio ; por isto diz Tommaseo : « Tu, ó Dante, já
não pódes sustentar o teu proposito ; porque os politicos revolu
cionarios te metteram no meio d'elles ) .
Si de grande theologo, e politico irreprehensivel , passâmos
a considerar Dante como consummado philosopho moralista,
não precisamos mais , do que a synthese do modo por que elle
(1) Azeglio, genro do celebre Alexandre Manzoni, foi um dos mais notaveis
Ministros de El-ReiVictor Manuel, e a quem a cidade de Turim erigiu uma sumptuosa
estatua.
DE DANTE ALLIGHIERI CXXIII

entendeu a Philosophia. « Comecei, diz elle, a frequentar o estudo


da Philosophia na escola dos religiosos, onde ella se ensina ver
dadeiramente (Conv., 11, 13). A Philosophia não é, senão o amo
roso uso da sabedoria , procedente da divina Essencia (111, 12) ; porque
a Philosophia é a primeira filha, e o primeiro pensamento de Deus
(111, 15 ; 11, 16 ) ; porque a sua razão está no segredo da mente divi
na (iv, 30). A razão efficiente da Philosophia é a Verdade (III, 11 ) :
essa tem por belleza a ordem das Virtudes moraes (III, 15), fa
zendo das virtudes theologaes o seu apoio ( 15 : Purg ., XXIX, 121 ,
122) ; porque quem vive, segundo o sensualismo, não pode
se affeiçoar d'esta . Philosophia (iv, 1 ); pois que ella ama quem
segue a verdade (iv, i ) ; corrige todo vicio (111, 15 ) ; odeia quem
segue o erro por malicia (iv, 1) . Emfim , pode-se dizer de Dante
o que disse elle de S. Domingos, que em pouco tempo se fez um
grande doutor nas sciencias, não para adquirir os bens munda
nos, mas por amor das verdades salutares do Evangelho :

In picciol tempo gran dottor si feo


(Par., XII, 85.)

Allighieri consideraria incompleto, imperfeitissimo, o seu


admiravel Poema, se não lhe pozesse como esplendido remate
a Rosa Mystica, em que o Verbo Divino encarnou :

Rosa , in che il Verbo Divino carne si fece


(Par ., XXIII. )

Os dous grandes amores por excellencia, que em toda a sua


vida lhe inflammaram a alma, a mente, e o coração foram o
amor da Egreja, e o amor de Maria : a Egreja que elle chama
Esposa, e Secretaria de Christo (Conv ., III, 6 ; Mon., III, 3) ; Maria ,
que elle proclama immaculada, e denomina brazão, é honra do
genero humano (Conv ., iv , 5 ; Par., XXII, 109) : trinta e oito vezes
no seu Poema fala n’aquelle nome, que elle sempre invocava de
manhã, e de noite :
Il nome del bel fior, ch ' io sempre invoco
e mane e sera ...
( Par., XXIII, 88.)
CXXIV TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1
Sem Maria Sanctissima , observa Bennassutti, Dante não
teria podido, sequer, imaginar o seu Poema ! Si temos pois esta
obra monumental , devemol-a em primeiro logar a Maria, sobe
rano objecto da devoção do Poeta ! Foi ella que lhe deu a traça
do estupendo edificio ; ella portanto devia ser o remate, a cupula
da maravilhosa fabrica ! Por bocca de S. Bernardo, no ultimo
canto do Paraiso , e pela mais admiravel das antitheses, que
houve no mundo, o Poeta consagra á Rainha dos Anjos uma
especie de hymno sublimissimo, rompendo n’estas estrophes
eternamente inimitaveis :

Vergine madre, figlia del tuo Figlio,


Umile ed alta più che creatura ,
Termine fisso d ' eterno consiglio,
Tu se ' colei che l'umana natura
Nobilitasti si, che il suo Fattore
Non disdegnò di farsi sua fattura.
Nel ventre tuo si raccese ľ amore,
Per lo cui caldo n'ell'eterna pace
Così è germinato questo fiore, etc.

Estes versos são tão mimosos , tão suaves na forma, quanto


profundos na idéa , no conceito ! Não tenho animo de os tra
duzir, por não quebrar a maviosa correnteza da contextura ori
ginal ! Alem de que para traduzil-os agora, seria necessario fa
zel-os acompanhar do largo commento, a que se presta cada um
d'elles, os quaes envolvem a mais subida theologia, o mais re
condito mysterio ! Quando chegar a vez de traduzir o Cantico
do Paraiso, então, como em logar cabido, darei razão de tudo.
Não occultarei uma circumstancia notavel . Quando tive a
distinctissima honra de apresentar o autographo da minha tra
ducção, e commentario do primeiro Cantico ao Sancto Padre
Leão XIII , pasmei de ver a fluidez com que Sua Sanctidade
repetia os mais bellos tercetos da Divina Comedia ! Repetiu por
fim os tres inimitaveis tercetos, que ahi ficam transcriptos, con
cluindo com este bellissimo epiphonema :

Dante Rex POETARUM !


DE DANTE ALLIGHIERI CXXV

Impetrei logo de Sua Sanctidade a permissão de pôr estas


suas augustas palavras, como epigraphe, em frente do meu livro.
Benignamente annuiu, accrescentando, «Non è novità il dire che
Dante sia Re dei poeti: Não é novidade proclamar Dante Rei dos
poetas !, Um tal conceito proferido por tão competente Juiz é
uma nova grinalda de louro, que permanecerá virente na fronte
magestosa do divino Poeta ! De modo que Petrarca foi coroado
no Capitolio, Dante no Vaticano ! In memoria æterna erit jus
tus !
Conclusão. —Que poderei mais dizer d'esse Dante Allighieri,
d'essa segunda Aguia do Apocalypse, digamol- o assim, que
percorreu todas as regiões do pensamento com a mesma galhar
dia, e sobranceirismo, com que percorreu os nove circulos in
fernaes ? Que reuniu na sua personalidade homerica tudo o que a
poesia tem de mais terno, e de mais pathetico ; a philosophia de
mais transcendente, a theologia de mais consolador, e de mais ter
rivel ? E todavia, a despeito da grandeza, e popularidade do seu
nome , Dante é mais admirado, do que estudado ! Em face do
monumento da Divina Comedia, a imaginação, na bella phrase
de Molinelli, pára ferida de religioso terror, como acontecia
diante d'aquelles pavorosos sanctuarios, onde os antigos Deuses
davam os seus oraculos !
Antes de Ozanam, Allighieri não era muito conhecido como
philosopho. Até então ninguem se tinha occupado directamen
te de penetrar no modo como elle pensára sobre todos os mais
arduos problemas de metaphysica, de moral, de politica, e de
theologia, que agitavam tão vivamente os mais altos engenhos
nos ultimos tres seculos da edade media . Foi pois Ozanam, que
por sua feliz vocação para os estudos philosophicos, conseguiu
ſazer conhecer a philosophia de Dante, expondo-a regular, e
methodicamente. Bella, mas difficil empresa ! Não era mister
somente que o interprete buscasse o philosopho sob o véo allego
rico, em que o Poeta se occulta ao leitor menos attento ; era
porém necessario que recolhesse todas as ideas philosophicas
diffundidas em todos os seus escriptos. Com a intelligencia , com
o criterio, e com a paixão de um verdadeiro sabio, Ozanam pôde
CXXVI TRAÇOS BIOGRAPHICOS

1
formar d'esses membros dispersos um todo, um systhema, um
corpo de doutrinas .
Qual é a philosophia de Dante ? Qual o seu fundo ? Qual a
sua fórma? Quaes seus antecedentes historicos ? Eis os pontos
desenvolvidos magistralmente por Ozanam .
A philosophia de Dante é a, que reinava nas escolas no
seculo xi : Dante é discipulo de S. Boaventura, de S. Thomaz
de Aquino, de Alberto Magno, e de todos os illustres Doutores ,
que foram a luz, e a gloria da philosophia escolastica, um dos
monumentos mais notaveis do espirito humano !
Ainda que o sancto Doutor Angelico , e o sancto Dou :or
Seraphico, aguias d'aquellas escolas , se submettessem ao duplo
jugo de Aristoteles, e do dogma catholico, suave todavia lhes
foi esse jugo ; porque elles possuiram o admiravel segredo de
conciliar as altas especulações philosophicas com os sublimes
ensinos theologicos. Por processos racionaes chegaram as mais
plenas conclusões espirituaes . Sem captivar a razão, fizeram
d'ella o mais util instrumento das demonstrações da Fé .
Mas, digamos em summa, o ardor universal de então pelas
especulações philosophicas, e pelos descobrimentos das scien
cias, e artes, que fervia no fundo dos claustros, e das escolas, de
via reflectir no Genio, que era o éco potente da edade media.
Com S. Thomaz de Aquino, e com S. Boaventura, Dante apro
fundava os arduos problemas da metaphysica , da theologia, da
moral, e da politica ; assim como com Alberto Magno, e com
Roggero Bacon (o qual teve a gloria de annunciar, e descrever
distinctamente, como propheta, os maravilhosos descobrimentos
dos nossos dias (1 ) Dante se applicava ás sciencias experimen
taes, e escrutava os arcanos da natureza .
Com toda a razão, portanto, Ozanam personificou a philoso
phia da edade media em Dante, como este havia personificado
em Virgilio a philosophia antiga. É verdade que antes de Ozanam
os mais esplendidos engenhos da Italia tinham já curvado a fronte
diante da magestade d'esse seu irmão primogenito, maior que

( 1 ) De secretis operibus artis et naturae et nullitate magiæ . Cap. 1 8.


DE DANTE ALLIGHIERI CXXVII

todos elles : Boccaccio, Villani , Marsilio Ficino, Paolo Giovvio,


Varchi, Gravina, Tiraboschi, Foscolo, e tantos outros sauda
ram o cantor dos tres reinos com o titulo de Poeta philosopho.
E um juizo, formulado em um verso, que ficou sendo axioma,
o proclamou Doutor das verdades divinas, e sabio a quem nenhu
ma das cousas humanas era desconhecida :

Theologus Dantes, nullius dogmatis expers. (2)

(2) Este verso é o primeiro do celebre epitaphio, composto pelo sabio Bolonhez
Giovanni de Virgilio, intimo amigo, e admirador do extincto Poeta florentino .
1
A DIVINA COMEDIA

Que é a Divina Comedia ? - É o symbolo gracioso do Templo de


Sião, dividido em tres partes : 0 Vestibulo, o Santo, o Santissimo; - é
um lampadario giganteo, de que pendem tres raios de luz, alumiando
atravez dos seculos a esphera indefinita do pensamento humano ; - é
um foco inextinguivel de luz intellectual , cheia de amor ; -é o amor do
verdadeiro bem cheio de alegria; -é alegria, que transcende toda a doçu
ra (1) ; - é o fiat lux, que rasgou o cahos da edade media ; - é o éco an
tecipado da trombeta do Archanjo, que vem despertar as gerações ador
mecidas na sombra da morte ; -éo bramido de uma consciencia afflicta
ante os males da humanidade ; - é a transfiguração de uma alma desen
ganada, que resolve romper com o mundofeio, e incarnar suas visões
tremendas no marmore, no bronze, na palavra, na escriptura, e pela es
criptura nos olhos, e pelos olhos nos corações. « Quem és tu ? » pergun
tou Bruto á sombra fatidica. « Eu sou o teu genio mau » , respondeu a
sombra ; « em Philippes nos tornaremos a vers . « Quem és tu ? o per
guntou a humanidade a Dante . « Eu sou o teu genio bom » , respondeu
Dante ; « em Josaphat nos encontraremos » . Palavra sublime, que tra
duz a intuição subita, e vasta da missão providencial, que lhe era con
fiada !
Peccador arrependido, Dante, a exemplo do regio penitente de
Israel, trava da sua harpa, tempera-lhe as cordas ao som das harmo
nias celestes, que a visão de Beatriz lhe vasa no espirito, e faz saír
accordes as vibrações da razão, e da fé. A razão, e a fé, na formosa
allegoria de outro genio, são como as duas harpas, jonica, e eolia : esta,
pendurada nos bosques, geme pela acção livre do vento ; aquella é
(1) Luce intellettual piena d'amore,
Amor di vero ben pien di letizia,
Letizia , che trascende ogni dolzore.
(Paraiso, C. XXX , 40.)
CXXX A DIVINA COMEDIA

tangida pela mão adestrada do artista ; mas ambas se correspondem


unisonas . A razão, como a harpa eolia , é selvagem , é abandonada a
si mesma , inspirando- se , animando-se, no fragor das tempestades :
a fé, como a harpa jonica, é mais afinada, mais segura de si , mais
divina ; mas a lyra da natureza , e da arte, a lyra dos homens, e a dos
filhos de Deus, ambas, com egual fundamento , exprimem o mesmo
cantico ; ambas falam de Deus ao universo , ambas o annunciam, o
prophetisam, e, por sua unisona vibração , elevam o homem á immor
talidade ! Eis o engenhoso emblema do pensamento dantesco, symbo
lisando em Virgilio a razão, em Beatriz a fé! Aquelle que disse que o
genio, humanamente falando, era o maior poder creado por Deus, para
perceber a verdade, e transmittil-a com precisão, proferiu um axioma .
Dante não seria um tão grande sabio, nem um politico, nem um theo
logo, se não nos abalasse ainda até o mais profundo do nosso ser, ex
clusivamente por suas grandes qualidades poeticas, e por seu arrojo de
imaginação. Nenhum , seguramente, observa um erudito, foi mais do
minado da sua obra ; nenhum escreveu sob o golpe de commoções
mais sinceras, nem seguiu com mais solicitude, com mais lagrimas,
talvez, o desenvolvimento do seu ideal. Não tomou a penna por mero
amor da arte, nem pelo prazer de saciar seus instinctos poeticos . Com
pungido das desgraças de sua patria, espantado dos symptomas de
decadencia, que se revelavam no seio da sociedade christă , soltou um
grito de alarma ; poz patentes os cancros occultos, verberou duramente
os que affrontavam a luz do Sol. Mas, si humilhou a humanidade com
a exprobração de seus vicios, si a forçou a contemplar seus mesmos
vicios no espelho implacavel , que lhe apresentava, não foi tambem pelo
esteril deleite de convencêl-a do seu nada ; mas por um profundo sen
timento de compaixão, com o desejo de despertal-a de seu lethargo
mortal, de regeneral-a pela penitencia, e de conduzil-a emfim á bem
aventurança eterna, cuja belleza serena, e incomparavel esplendor,
elle lhe descrevia com toda a magnificencia. Esses seres imperfeitos,
que lhe inspiram algumas vezes tão violentos accessos de indignação,
e a quem profaça seus desvarios com tanta acrimonia, elle os ama ,
ao mesmo tempo que os julga. Querendo salval-os , indica-lhes o ca
minho do bem ; não os fere, senão para cural-os ; e sendo o primeiro,
que transplantou para os dominios da poesia o pensamento salutar do
Christianismo, e a idéa da solidariedade dos homens entre si, o grande
Poeta escolheu para seu heroe, não como os poetas antigos, um chefe,
ou uma nação , mas a raça humana inteira, cujas amargas dores, e
cujas santas esperanças resume na sua pessoa . Para realisar seus
dourados sonhos de regeneração moral , seria mister uma sociedade de
santos ; seria mister que o mal cessasse subitamente na terra ; que
A DIVINA COMEDIA CXXXI

não restasse mais entre os homens nem ambição, nem perfidia, nem
cubiça ; queria, como indica o designio geral do seu Poema, renovar
o mundo pela virtude. A todos aquelles , a quem se dirigia, pregava o
que ha de mais difficil de obter dos homens : o desprendimento dos
gosos terrestres, a renuncia, o sacrificio, a abnegação aos pés de Deus ,
na esperança da felicidade eterna.
Dante é um homem consummado á guisa dos mais celebres es
criptores da antiguidade, sobejando a todos na potencia creadora : teve
a espada n’uma mão, e na outra a penna : « mostrou-se insigne no
conhecimento de todas as sciencias : theologia, philosophia , politica ,
moral , astronomia, cosmogonia , geographia , historia natural, historia
antiga, e moderna, até as menores circumstancias da historia das pes
soas, e das cousas de Italia. Em seu coração, aberto ás mais ardentes
excitações , na poderosa forja do seu cerebro todos esses elementos
fermentaram , e d'ahi, como bronze em ebullição , brotou o monumento
do seu genio » (1). A sua obra, no arrojado do desenho, e na magestosa
mestria da execução, é o mais arduo commettimento do espirito hu
mano ! A sua vida é um combate ; nada lhe falta : lagrimas, fome,
exilio, amor, glorias , e fraquezas! E notae, que os intervallos de sua
inspiração, a selvagem rudeza de seu caracter, a aristocracia altiva de
seu genio, são os traços , que mais o ligam á sua epocha , e que ao
mesmo tempo d'ella o separam, o isolam ! Para qualquer parte, que
volvaes os passos, nos desertos escabrosos da edade media , essa figura,
simultaneamente sombria , e luminosa, surge- vos, na vanguarda como
guia inevitavel. Sois naturalmente levados a perguntar-vos : quem é
Dante ? que intelligencia é essa desgarrada, e solitaria, sem quasi ne
nhum laço, sem nenhuma cohesão com a arte grosseira do seu tempo ?
D'onde veiu essa intervenção subita do genio, essa improvisa dictadura
do bello ? Como foi que o Poema de Allighieri saíu da escuridão da his
toria, prole sine matre creata ? É uma excepção através dos seculos ?
E mais que isso ; é a alliança poderosa do espirito creador, e do espirito
tradicional; é o amplexo fecundo da poesia dos tempos que foram , e
da poesia das edades novas. Tendo ante os olhos os idolos do paga
nismo, e as castas estatuas dos santos, a imagem da voluptuosidade,
e do ascetismo, Dante contemplou o sentimento da antiguidade idolatra,
sem perder a vivacidade do sentimento christão : permaneceu fiel ao
passado, comprehendeu o presente, e pediu aos dogmas terriveis, e
salutares do Catholicismo, o segredo do futuro. Jamais a palavra de
Aristoteles : « A poesia é mais verdadeira do que a historia » , se veri
ficou tão cabalmente como em Dante ! Mas não foi do mundo exterior

(1) Ortolan, Les Pénalités de l'Enfer de Dante, p. 15, em nota.


-
CXXXII A DIVINA COMEDIA

da edade media , que brotou o genio inventivo de Allighieri ; foi ao invez


do mundo interno, do mundo das idéas. D'ahi vem a grandeza , e
tambem os defeitos; d’ahi o valor immenso d'esse livro, em que se
meou em profusão as flores de uma poesia eternamente joven, encan
tadora, e esplendida ! O interesse philosophico vem alliar-se n'elle ao
interesse litterario, e historico. É a Biblia , que inspira Milton ; é o
Evangelho, que inspira Klopstock ; mas na Divina Comedia é o des
conhecido, são os mysterios d'alem mundo, a fonte de inspiração .
T A questão da immortalidade entra na tela, e Dante attinge a soberana
poesia.

1 A preoccupação, a insistencia da critica, são legitimas : esse perpe


tuo volver de olhos para o motor da cultura italiana, explica-se , justi
fica -se. Até hoje não têem faltado apologistas ao escriptor- Poeta : inves
tigações biographicas, juizos litterarios , interpretações de todo o ge
nero, hypotheses, mesmo pedantes , e futeis, tudo parece verdadeira
mente esgotado. É para mim indecisa a vantagem de toda essa faina ;
porque, si um Poeta de tal ordem ganha sempre em ser lido, perde
muito em ser glosado por quem o não entende . Ha um ponto curioso,
e todavia não muito explorado com criterio, que aliás convem eluci
dar : quero falar dos antepassados da Divina Comedia . Com effeito,
este Poema tão original, e tão extraordinario, não será uma creação
subita , uma sublime phantasia de um genio divinamente inspirado ?
Não ; prende-se , pelo contrario, a todo um cyclo anterior, a um pen
samento permanente, que vemos reproduzir-se periodicamente nas
edades transactas ; pensamento informe a principio, mas que se des
envolve pouco a pouco, que se insinua variamente através dos seculos ,
até que por fim um grande genio d'elle se apoderou, e o fixou defini
tivamente com ordem , methodo, e pureza n'uma obra prima.
Eis o poder do genio ! Ante elle o mundo deroga seus usos, e cos
tumes ! De ordinario, recebe-se dos paes a nobreza ; mas aqui ella não
é descendente, é ascendente ! A historia acolhe, e regista com aço
damento o nome de qualquer cavalleiro cruzado obscuro, porque até
a si remonta a familia de Allighieri ; a critica investiga , analysa lendas
esquecidas, porque essas lendas são a fonte primaria da Divina Co
media. A multidão não conhecerá , não acceitará senão o nome do
Poeta, e a multidão terá razão ! É privilegio dos homens superiores
offuscar todos os que lhe ficam atraz, e não brilhar senão por si
mesmos .

Seria loucura sustentar que Dante leu todos os visionarios, que o


precederam ? N'elle felizmente o Poeta absorve o erudito. Entretanto,
um escriptor, que melhor que ninguem era capaz de comprehender o
genio synthetico de Dante , diz : « Só um rhetorico poderá suppor, que
A DIVINA COMEDIA CXXXIII

o plano de uma grande obra póde pertencer a quem a executa » ( 1). Estas
palavras explicam precisamente o que aconteceu ao auctor da Divina
Comedia . Dante resumiu, com o poder de seu prodigioso talento, um
dado philosophico, e litterario, que tinha voga no seu tempo ; imprimiu
sua formula definitiva em uma poesia fluctuante, e dispersa em torno
d'elle, como antes d'elle . Dá-se a respeito d'estas especies de legados
poeticos o mesmo que se dá com um antigo patrimonio, que se herda ;
sabe-se somente d'onde veiu, como se formou ; mas a quem pertenceu ,
precisamente, antes de pertencer ao possuidor de hontem ? Phidias não
creou o marmore, que lhe foi materia prima do seu Jupiter Olyinpi
cum ; nem Miguel Angelo creou aquelle, de que fez o seu David , nem
aquell'outro de que fabricou o seu Moysés : mas por isso deixam de
ser originalissimos esses celebres monumentos artisticos ? Mas o re
moto parentesco de Dante com a antiguidade não é de todo o fim
d'este estudo . Ha principalmente a considerar relações de fórma, e de
execução ; não falando já da inspiração geral da Divina Comedia, que
é profundamente catholica. Bastar-nos-ha, pois, atravessar mui rapi
damente a epocha pagă, para conhecermos os modelos informes, que
ella pôde proporcionar a Dante, assim como conheceremos nos tempos
christãos factos não menos isolados, que poderiam suscitar idéas, que
serviram de base , não digo essencial, mas accessoria, do monumen
tal edificio dantesco .

A ANTIGUIDADE — HER O ARMENIO


ARMENIO— A BIBLIA

Circumdado de mysterios, assistindo como actor aturdido, e incon


sciente ao espectaculo do mundo , o homem , desde que o problema do
seu destino o inquieta , crê facilmente no desconhecido, no invisivel. A
logica leva-o á noção de outra vida, as religiões ensinam-lh'a, e,
d'aquelle momento em diante, se preoccupa da existencia futura. Sua
imaginação povôa a belprazer essas regiões mysteriosas do castigo, e
da recompensa. D'ahi, na origem mesmo das sociedades, e, sem falar
no Oriente, na antiguidade grega, e latina, uma mythologia, que recebe
o homem no berço, que o acompanha atravez das sombras do outro
mundo, e que refere o que ella sabe dos mortos aos que vivem, e se
acham inquietos. Ao lado da philosophià que explica, ao lado do do
gma que affirma, a poesia apodera-se d'esse theatro sobrenatural , cheio
(1) Victor Cousin, Introduction à l'histoire de la philosophie, xre leçon.
CXXXIV A DIVINA COMEDIA

1
de curiosidade , e de terror, d'onde ella póde julgar o passado, e iniciar
no futuro .
Importa, no que respeita aos antecedentes da Divina Comedia,
distinguir o que eu chamarei o lado eterno do lado particular do Poe
ma . Transportando a poesia phantastica para onde ella é principal
mente legitima, isto é, para o outro mundo, Allighieri attingiu sem
duvida o grande problema do destino futuro, que não é senão a con
sequencia do destino presente . Seria facil encontrar analogias frisantes
entre o que elle diz, e o que sobre este ponto ensinaram as philoso
phias, e as religiões . Mas o objecto que quero tratar é perfeitamente
vago, e indeterminado, ou perfeitamente limitado, e distincto, segundo
se quizer investigar a inspiração geral, ou seguir somente a inspiração
directa, e immediata do Poeta . É n’este ultimo quadro que me encer
rarei restrictamente . Uma palavra explicará melhor o meu pensa
mento : trata - se simplesmente de não se tratar do genero a proposito
da especie .
Dante conheceu a antiguidade como se podia conhecer no decimo
terceiro seculo . Não sómente ignorava essas tradições do Egypto so
bre as formas da vida futura, que a sabia imaginação de Champollion
explicou, e talvez poetisando ; não sómente ignorava essas grandes len
das da India, que a sciencia moderna apenas tentcia, como tambem
não conheceu Grecia, e Roma senão pelos poetas, e philosophos, cuja
gloria se conservava popular nas escolas : Platão, Aristoteles, Virgilio.
E porque não Homero ? Sim , Homero tambem , embora por muito
tempo discutissem os eruditos, se Dante saberia o grego ; ponto que
será discutido opportunamente . O que não padece duvida é que Ho
mero é o mais velho antepassado de Allighieri . O seu inferno é o mais
antigo dos infernos conhecidos no paganismo ; é a infancia da arte . Com
effeito, o outro mundo não é para elle mui distincto do mundo em
que vivemos . Sem duvida diz elle em um verso da Iliada : « Bem lon
ge, lá onde existe sob a terra o mais profundo aby smo ( 1) » ; mas, no
livro xi da Odyssea, a situação dos infernos é mais determinada ain
da, si é possivel. Ulysses lá entra, não se sabe como, para consultar
a sombra de Tiresias , e sae depressa para subir ao seu navio. Quasi
nenhum vestigio d'esse episodio da Odyssea se encontra na Divina Co
media. Apenas o gigante Tifeo, que cobria nove geiras com seu corpo,
é desdenhosamente nomeado por Allighieri (2) . O éco unico, que re
percute nos dois Poemas, é o ruido dos mortos, que Homero compara
admiravelmente ao susurro dos passaros , que fogem espantados .

( 1) viii, 14.
(2) Inferno , C. xxxi.
A DIVINA COMEDIA CXXXV

É por Virgilio, a quem uma longa , e amorosa pratica o tornou fa


miliar, que Dante especialmente conheceu a antiguidade . Até o adoptou
por seu guia na sua terrivel peregrinação ; como tambem colheu na
sua Eneida muitas recordações mythologicas, mais do que seria con
veniente em um assumpto christão . Não se imagine porém encontrar
em Dante um plagiario ; a Divina Comedia não tem com a Eneida se
não algumas relações de circumstancias, e ha entre os dois Poemas a
distancia que separa o mundo pagão do mundo christão. Basta com
parar o papel, que representam no Inferno dantesco alguns persona
gens do Inferno virgiliano. Caronte, o horrivel velho, é quasi o unico
que não mudou ; todos os outros descaíram . Minos, por exemplo, já
não é o juiz austero, que pesa os destinos, quæsitor Minos urnam mo
vet ; é um demonio hediondo, rangendo os dentes, e indicando ás al
mas condemnadas pelo numero das dobras da sua cauda numero do
circulo infernal, que lhes é destinado. Emfim , não houve um só de
taes personagens, inclusive o pobre Cerbero , que não fosse tractado
com rigor : Eneas apaziguou-lhe a furia , mettendo- lhe na bôca um
bolo melifluo ; Dante lança -lhe um punhado de terra. Em Virgilio, as
almas que se agglomeram na praia do rio Acheronte estendem as
mãos para o outro lado ; em Dante, ao contrario, as almas conde
mnadas, antes de entrar no Inferno, são já punidas ; desejam o seu sup
plicio; são aguilhoadas pela necessidade de atravessar o rio para o
outro lado. Dante crê no seu assumpto ; Virgilio ri- se do seu ; mette-o
debaixo dos pés, subjecit pedibus ( 1 ). É que não ha na fronte calma do
Poeta latino aquelle sobrolho visionario que Wordsworth attribue a
Dante ; é que não tumultuam no animo d'elle essas mysticas aspira
ções que revelaram ao Poeta florentino os extasis do Paraiso. O Ely
sio da Eneida está muito áquem do Paraiso terrestre da Biblia ; é uma
mesquinha parodia do que se passa n’esta vida. Admirâmos todavia
quanto as ideas se adiantaram depois de Homero ! Virgilio tem já em
muito mais alto grau o sentimento da justiça ; gradua os castigos, e os
premios ; n'elle a idea da purificação presagia o Purgatorio christão (2).
É que entre a Odyssea, e a Eneida havia um Platão.

( 1) Georg., II, 490 .


(2) O sabio jurisconsulto Ortolan, na sua citada obra, em que realça a perfei
ção do systema penal de Dante, diz logo no prefacio : « Assim, tomando por ponto
de partida uma epocha litteraria gloriosa á Hespanha, e gloriosa á Inglaterra,
parecerá incrivel a colheita, que em materia de direito penal fiz no theatro de
Lope de Vega, e de seus predecessores, no inimitavel D. Quixote de Cervantes, e
nos thesouros dramaticos de Shakespeare! Mas Dante, pela estranheza, pela vigo
rosa unidade, junta á inexgotavel variedade de suas concepções, é o mestre de
todos elles, pelo tempo, pois que os precedeu quasi 300 annos, e nos lança em
1
CXXXVI A DIVINA COMEDIA

Seguramente Platão foi um dos mestres favoritos de Dante. Sem


falar da theoria do amor, que é como a trama do seu Poema sob certo
aspecto, Allighieri seguiu os vestigios da philosophia idealista . A fórma
concentrica, que deu ao Inferno é uma idea toda platonica. Dante po
rem deveria particularmente ter conhecido dois passos importantes do
Phedon , e da Republica, traduzidos por Cousin . No primeiro, Platão
fala das tradições, que vogavarn no seu tempo acerca da mansão dos
mortos. A triplice divisão que o Christianismo fez do outro mundo ahi
se encontra como que esboçada : o lago Acherusiade, onde os culpa
dos são temporariamente purificados, é o Purgatorio : o Tartaro d'on
1 de elles não sairão jamais, é o Inferno : essas habitações acima da
terra , que têem o seu grau de belleza, segundo o grau de virtude
d'aquelles que n'ellas residem , é o Paraiso. Sómente Platão acres
centa com toda a prudencia: « Não é facil descrever essas regiões». Tal
vez esta palavra picasse a emulação de Dante .
Platão não mostrou sempre tanta reserva . Fundando -se nas tradi.
ções orientaes bebidas nos livros de Moyses, nas suas viagens ao Egy
pto, e modificando -as sem duvida segundo suas crenças, elle engen
dra a visão de um soldado originario de Pamphylia , e a quem chama
Her o Armenio . Her tinha sido morto n'uma batalha. Dez dias depois,
removendo -se para outra parte os mortos quasi putrefactos , elle foi
encontrado em perfeito estado de conservação. No momento de ser
posto na pyra dos funeraes, reviveu , e contou o que lhe havia succe
dido. « Sua alma , dizia elle, tendo -se separado do corpo, foi transpor
tada em grande acompanhamento a um logar maravilhoso , onde o
céo , e a terra eram furados por duas aberturas correspondentes. En
tre essas duas regiões assentavam-se juizes: depois da sentença , os
bons seguiam à direita com um cartaz no peito, e os maus á esquerda
com outro nas costas . Chegou emfim a vez de Her ; mas os juizes, em
logar de se pronunciarem sobre a sua sorte, ordenaram que elle vol
tasse ao mundo , e contasse aos homens o que tinha visto . O soldado,
‘ antes de obedecer, examinou o espectaculo que tinha sob os olhos.

plena edade media : o seu Poema, que offerece no Inferno uma successão de circu
los, de culpados, e de castigos, apresenta-se ao nosso estudo como um systema com
pleto de penalidades. É esse estudo de Dante, em proveito da sciencia penal, que eu
me proponho offerecer n'este escripto ».
É singular, que , concluindo Ortolan esta sua importante obra em 25 de março
de 1873, se finasse no dia 27, isto é, dois dias depois ! De fórma, que a ultima pala
vra do grande oraculo da jurisprudencia civil, e criminal, foi a mais primorosa apo
logia do systema penal de Dante Allighieri ! Que parallelo, pois, pode haver entre
o Inferno scientifico do auctor da Divina Comedia, e os outros Infernos concebi
dos pelos visionarios de todas as edades ?
A DIVINA COMEDIA CXXXVII

Pelas aberturas , que havia notado, subiam , e desciam almas incessan


temente , as primeiras sem mancha , as segundas cobertas de lama. E
mais ao longe, n'um vasto prado, chegavam dois bandos de almas
diversas, que pareciam vir de uma longa viagem . Umas, saindo do
abysmo, contavam as tristes aventuras de um subterraneo , que se
havia prolongado durante mil annos ; outras, descendo do céo, diziam
as delicias que lá tinham saboreado. O mal ou o bem era pago no
décuplo a cada alma virtuosa ou culpada . )
Tudo isso está mui longe do infinito galardão que o Christianismo
promette aos escolhidos . Her não viu nenhum supplicio, nenhum nome
lhe foi revelado senão o de Ardiĉo, tyranno da Pamphylia, que era
arrastado através de espinhos por « personagens hediondas de corpo
inflammado ». Eis os antepassados dos diabos de Allighieri. O que sur
prehende n'este episodio é que isso não era lá para Platão , senão
uma forma popular dada á verdade ; é que o pensador conhecia todo
o alcance d'estas symbolicas narrações. Platão , como depois Dante,
tomava a cousa pelo lado serio. É me licito figurar que o Poeta tinha
sob os olhos estas proprias palavras do Phedon , que bem lhe pode
riam servir em parte de epigraphe ao seu livro : « Sustentar que estas
cousas são precisamente como as descrevo não convem a um homem
de senso ; mas que tudo que eu tenho referido das almas, e das suas
habitações seja como eu tenho dito ou de um modo approximado, si
é certo que a alma é immortal, parece-me que se pode asseverar
convenientemente, e que a cousa vale a pena que se ouse crêl-av . De
cididamente Platão, esse genio precursor, é o verdadeiro, o unico an
tepassado de Dante na antiguidade.
Enganei-me, a visão de Her Armenio, a primeira das visões iso
ladas , especiaes , não registadas em nenhum poema, teve outra que
lhe correspondesse cinco seculos depois, segundo Plutarco ( 1 ) . Ali se
entrevê a fusão primaria das velhas lendas pagás com as novas len
das christás . Posto que seja um sacerdote de Apollo quem escreve ,
bruxuleia já ahi alguma cousa da fé da edade media . Plutarco diz:
veste conto » (narração imaginaria) ; mas tem o cuidado de se corrigir,
e acrescenta : « Si isto é um conto » .
Eis o conto , ou historia de Thespesius, que se passa no tempo do
Imperador Vespasiano. Thespesius, originario de Cilicia , tinha-se ar
ruinado na devassidão, e por todas as especies de traficancias tentou
depois restaurar sua fortuna. () escandalo tornava- se cada dia mais
flagrante, quando Thespesius morreu de uma queda . Durante a cere

( 1) Dans son traité des délais de la justice divine. Veja-se a traducção de José de
Maistre, S 42 .
CXXXVIII A DIVINA COMEDIA

monia dos funeraes, elle voltou á vida, e contou que, logo após a sua
morte , a sua alma tinha sido transportada através dos astros até um
logar, onde se patenteavam duas regiões atmosphericas , uma baixa,
outra elevada, nas quaes se moviam em turbilhão as almas dos mor
tos . Cada uma d'ellas chegava até o meio de um globulo luminoso ,
que se dilacerava, e a alma, apparecendo então sob uma forma hu
mana, ía tomar a sua fileira . Na região superior passeiavam doce
mente as almas dos justos : estas eram transparentes, luminosas , e
mantinham sua côr natural. Na região inferior, ao contrario, as almas
perversas correndo entrechocavam - se violentamente; eram opacas ;
umas pareciam mosqueadas, outras de um escuro luzente como esca
mas de viboras. Pela côr distinguia-se o vicio, que as manchava : a
côr vermelha suppunha a crueldade : uma especie de violeta ulcerosa
suppunha a inveja ; a côr azul suppunha a impureza ; a negra a ava
reza . Aquellas que se purificavam reassumiam pouco a pouco o seu
primitivo aspecto .
« Pelo movimento dos olhos, pela sombra que projectava o corpo,
Thespesius foi reconhecido que era vivente, como aconteceu a Dante .
Depois , impellido por um raio de luz, continuou o seu caminho até
um logar, onde as almas criminosas eram punidas, e, segundo eram
curaveis ou incuraveis, eram entregues a tres divindades vingadoras.
A ultima, Erichnis, precipitava os grandes culpados em um abysmo
insondavel .
« Depois de ter atravessado um espaço infinito ; depois de ter visto
um golfo mysterioso, d'onde irrompia um vento, que embriagava como
vinho ; depois de ter visitado uma cratera em que vinham lançar-se
as aguas de seis rios variamente coloridos , que tres genios, assenta
dos em triangulo, misturavam segundo differentes proporções, Thes
pesius reconheceu entre os culpados o cadaver de seu pae coberto de
feridas. Fugiu espavorido, e percebeu que, abandonado pelo seu guia ,
era agora conduzido por demonios horrorosos. Supplicios diversos of
ferecem - se a seus olhos: aqui eram homens esfolados, e expostos ás
variações da atmosphera; ali grupos de duas, de tres pessoas, entre
laçando-se como serpentes, e se dilacerando a dentadas. Seguiam de
pois vastos tanques, um de ouro fundido, outro de chumbo liquido , e
frio, o terceiro de ferro acre. Os diabos , á guisa de ferreiros, agar
rando as almas dos avaros com ganchos , as mergulhavam no tanque
de ouro fervendo, até que ellas se tornassem transparentes, e retiran
do-as depois , as resfriavam no meio dos outros tanques . Assim endu
recidas, e molhadas podiam ser retalhadas em diversos fragmentos.
Sob esta nova forma ellas eram forjadas, e refundidas . Depois reco
meçam os tormentos por toda a eternidade . )
A DIVINA COMEDIA CXXXIX

Thespesius ficou aterrado quando descobriu muitos pequenos gru


pos, que dilaceravam cada um a sua victima : eram filhos irritados , e
furiosos, que, tendo sido condemnados pela culpa de seus paes , se
vingavam ferozmente dos auctores dos seus tormentos . Eis- aqui um
vislumbre da transmissão da culpa original ; eis a responsabilidade here
ditaria, tal como ensina o Christianismo ! Mas tudo se mescla, e con
funde no legendario pagão. Toca de longe nos mysterios do Evange
lho, e de novo se precipita nas loucuras pythagoricas, e orientaes .
Thespesius, com effeito, chegou a um logar, onde se operava a metem
psycose de algumas almas:os demonios, apoderando-se d'essas almas,
cortavam ou supprimiam seus membros, e , a golpes de cinzel, lhes
davam a forma de differentes seres . Entre outras , aferraram Nero, e
depois de lhe ter tirado os cravos de fogo que o traspassavam, se po
zeram a trinchal- o, para fazer d'elle uma vibora : mas uma voz secreta
gritou, que era necessario somente convertel-o em passaro aquatico,
porque tinha sido favoravel á liberdade da Grecia . Bem depressa
Thespesius foi obrigado a deixar o Inferno, impellido por um vento
tempestuoso, como se fosse lançado de um tubo : entrou no seu corpo,
despertou , e voltou aos caminhos da virtude .
Tal é a visão narrada pelo insigne Plutarco em o primeiro seculo
da era christă . Ella me parece do mais alto interesse, e mostra como
a eterna preoccupação da vida futura pôde, em todas as edades , re
ceber do espirito inquieto do homem uma solução symbolica , a fórma
que definitivamente lhe deu Dante. Este episodio de Plutarco, e o an
terior de Platão foi tudo o que Allighieri deveu á antiguidade grega, e
latina . Elle conheceu os Poetas, não só por Virgilio, mas tambem por
Estacio, seu segundo guia, que lhe mostrou os lagos de aguas pregui
çosas , e os tanques de fogo do seu Inferno, pigrique lacus ustaque pa
ludes ( 1) ; conheceu os philosophos por Platão, e por esses écos enfra
quecidos de Sunium , que retumbavam ainda no sonho que Cicero at
tribue a Scipião . Escuso advertir que Dante, transportando alguns
dos modelos do paganismo para o seio da poesia christă, não se
cingiu, senão ao lado grave, e austero dos grandes quadros, que a
mythologia confusamente podia offerecer a uma imaginação vasada
nas tocantes pompas do Catholicismo . Dante não era um rapsodo, era
um depurador methodico, e scientifico das lendas religiosas do pa
ganismo .
Quasi desde as origens da poesia grega, as descidas aos Infernos
tinham-se tornado um logar commum das epopeias : a vingança lá

1 ) Thebaida, viii.
(2) Ibidem .
CXL A DIVINA COMEDIA

conduziu Thesèo ; Pollux lá foi levado pela amisade ; Orphêo pelo


amor. Mais tarde lá se penetrou pelo antro de Trophonius. Assim , em
Athenas como em Roma, cada poeta se julgava obrigado a versificar
sua descida ao reino de Plutão ( 1 ) ; dramatisava -se o Inferno todos os
dias nos mysterios sagrados, nas evocações, nas ceremonias religio
sas .

Virgilio diz- nos : Facilis descensus Averno ; e d'isto elle sabia al


guma cousa, pois que no Culex (si o Culex é d'elle, achou meio de
um mosquito realisar essa viagem . Mas, cumpre não esquecer que o
outro mundo, entre os antigos, era um objecto de arte , uma especie de
conto mythologico, que se permittia aos poetas cantar, e de que elles
escarneciam na vida pratica. A degradação sobre este ponto chegou
ao seu auge com a vinda do Imperio Romano, fazendo - se apenas uma
excepção em favor da boa fé de Thespesius, e de seu biographo (Plu
tarco) . Ninguem desde então guardou reservas ; ao contrario fazia-se
publica ostentação de incredulidade ácerca da vida futura. Os acerbos
sarcasmos de Lucrecio tornaram-se moda : no conceito do poeta Se
neca isso de vida futura não passava de rumores vagos, e de palavras
vás : Rumores vacui, verbaque inania ; e na mente de Juvenal eram
contos dignos de meninos que não pagavam nada nos banhos : Nec
pueri credunt, nisi qui nondum ære lavantur. É sobretudo nos dialogos
de Luciano, que se deve ver com que demencia o scepticismo pagão
se arrojou a falar da immortalidade ! Para esse precursor de Voltaire
o outro mundo não é senão um pretexto para satyrisar o mundo pre
sente . Basta que nos lembremos d'essa Necymancia em que Menippo,
disfarçado em Hercules , é conduzido ás sinistras margens por um ma
gico ; que não nos esqueçamos da singular descripção d'esse Tartaro,
que não é outra cousa, senão o mundo destruido, e onde Filippe de Ma
cedonia, por exemplo, arremendava sapatos velhos. Dante , este Poeta
eminentemente religioso, nada tem de commum com essas cynicas
inspirações, que reappareceram mais tarde nos trovadores, e de que
Rabelais foi herdeiro .
Acabâmos de ver o que Allighieri colheu da antiguidade pagá ; e
que colheu elle da antiguidade hebraica ? Muito pouca cousa . Com ef
feito , o que do Inferno se diz na Biblia não se presta muito á imagem ,
e á descripção . Esse fogo que deve abrazar alé os fundamentos das
( 1) Póde-se consultar com proveito a these latina de Ozanam : De frequenti apud
veteres poetas heroum ad inferos descensu, 1839, em 8.0— Nas notas de seu livio
sobre Dante, o mesmo escriptor tambem deu summarias, e sabias indicações sobre
o cyclo christão das visões anteriores a Allighieri.É, com um pequeno artigo de
Foscolo, o unico trabalho que conheço sobre este ponto de historia litteraria
(N. de Ch. Labitte.)
A DIVINA COMEDIA CXLI

montanhas ( 1); esse grande abysmo (2); essa gehenna (3); essa terra de tre
vas, onde reina o inimigo eterno ( 4); esse logar, onde o leito será a po
dridão, e os vermes a cobertura (5); essas aguas sob as quaes gemem os
gigantes (6); esse lago profundo, onde os reprobos são lançados (7); tudo
isso, todas essas indicações vagas e mysteriosas não apresentavam ne
nhum thema brilhante ao Poeta . O pequeno numero dos textos, muito
pouco explicitos, sobre o Purgatorio e sobre o Paraiso, não lhe offe
reciam dado algum material que lhe fosse de auctoridade . Demais,
não havia visão nos livros santos , ou , pelo menos, não referiam cir
cumstancia alguma especial dos raptos de Elias, de Henoc, de Ezequiel,
nem mesmo da descida do Salvador aos Infernos, a que Dante allude
no canto xii do 1.º Cantico. Este divino precedente , é verdade, era
bastante para animar a piedosa emulação de Allighieri, pois tinham
essa descida por ponto de fé catholica .
Com o Evangelho, entretanto , entra-se em caminho novo. Assim ,
por exemplo, o mau rico, quando se achou nos tormentos do Inferno,
quiz enviar a seus irmãos inda vivos um mensageiro, para os advertir
dos castigos, que os esperavam , si perseverassem na vida peccami
nosa ; mas Abraham lhe respondeu : « Si elles não attendem lá a lei , e
os prophetas , não attenderão de certo as palavras de um homem , que
lhes for mandado do Inferno (8) » . Eis -aqui a visão em projecto : ella
realisa-se em S. Paulo arrebatado ao terceiro céo ou em corpo ou em
alma (9) ; depois no Apocalypse de S. João, cujas visões propheticas não
podiam deixar de fazer grande impressão em Dante.

VISÕES CHRISTĀS

Não sendo possivel reproduzil-as todas , aqui indicarei os titulos


das mais populares da edade media, que foram chamadas verdadeiros

( 1) Deut ., XXXVIII , 22 .
(2) Luc., XVI, 26.
13) Dicc . Theol. de Berg., V, Enfer.
( 4) Job, X, 21 , 22.
( 5) Isaias , xiv , 9.
( 6) Job, XXVI , 6.
17) Psal. LXXXVII, 6.
( 8 ) Luc . XVI, 6.
(9) 11, Corinth. , XII, 5.
CXLII A DIVINA COMEDIA

esboços, e prenuncios do Poema dantesco : 1.a l'isão de S. Paulo


1 Apostolo ; 2.4 A l'iagem de S. Brandano; 3.a Visão de Tundalo ;
4.a Visão Tongdali; 5.a 0 Purgatorio de S. Patricio ; 6.a A Visão
de Alberico, monge do Monte Cassino ; e outras colleccionadas pelo
erudito Ch . Labitte, a quem até aqui tenho seguido quasi litteral
mente .
Seriam estas visões legendarias as fontes de que tirou Dante o ger
men do seu Poema ?
Sendo assas circumscripta a orbita da imaginação humana, que até
nos mais sublimes genios não é tão ampla, tão illimitada , quanto cos
tumâmos crer, cumpre que reconheçamos que nas obras de engenho
do homem , o privilegio da invenção consiste mais na arte, do que na
materia . O mesmo Dante, que conhecia melhor do que ninguem os pe
rigos a que se expõe todo aquelle que , não medindo os limites da ra
zão humana, ousa transcendel-os por vă curiosidade, exclama : «Ces
sem os homens de indagar as cousas, que excedem ao seu entendi
mento, e se esforcem sómente, quanto lhes cabe nas forças , por se ap
proximar as cousas immortaes, e divinas, abstendo-se do prurido de
querer saber aquillo, que lhes escapa á comprehensão ( 1 ) » . Foi isto o
que exactamente elle fez na concepção , na urdidura , e desempenho
do seu Poema . Sob as noções bebidas no estudo da sagrada theolo
gia , da revelação divina, e da tradição, lançou os fundamentos da
maravilhosa fabrica da Divina Comedia. Por conseguinte, não inven
tou tudo quanto escreveu no seu Poema; porém explorou todas aquel
las fontes , que ao seu seculo eram accessiveis, e que se abriram aos
seus profundos estudos individuaes . Já desde seculos a phantasia ti
nha-se habituado a figurar, e descrever o estado das almas nos tres
reinos eternos; na edade media era grande o numero das visões con
cernentes a um ou a outro ou a todos os tres reinos espirituaes ; vi
sões monasticas no sentido puramente ascetico, e visões politico -saty
ricas . Mas todas estas visões legendarias ficam a mil milhas de distan
cia da visão dantesca ; todavia vislumbram n'ellas não poucas passa
gens , e scenas que estão em relação de affinidade com passagens, e
scenas da Divina Comedia ; nem se pode duvidar que muitas d'estas
lendas, algumas das quaes popularissimas n'aquelles tempos, fossem
conhecidas por Allighieri . Não que elle fosse imitador de uma ou de
outra , mas seguia mais ou menos o gosto do seu seculo .
A Divina Comedia, Poema, em que pozeram mão céos, e terra , abra
çando todo o scibile do seu tempo, o Poeta devia inspirar -se em fontes
multiplices ; concretando n'um todo normal os mais dispersos elemen
( 1) Trat. da Terra, S 22.
A DIVINA COMEDIA CXLIII

tos, como duzentos annos depois fez o nosso Camões , segundo elle
mesmo confessa n'estes conceituosos versos :

« Nem me falta na vida honesto estudo


Com longa experiencia misturado,
Nem engenho ; que aqui vereis presente
Cousas, que juntas se acham raramente . »

Das Escripturas santas, dos livros dos Santos Padres, dos aucto
res escolasticos , e mysticos, colheu Dante em parte o symbolismo, que
inflora o seu Poema , assim como as doutrinas theologicas, que abun
dam n'esses mananciaes de luz. O seu principal mestre na theologia
foi S. Thomaz de Aquino, e na philosophia Aristoteles . Outra mina
riquissima de erudição foi ao divino Poeta a litteratura classica , tanto
historica como poetica, e mythologica. Elle mesmo chama Virgilio seu
mestre, e seu auctor, e se apraz em dizer, que tinha na memoria toda a
Eneida. Effectivamente Virgilio foi seu guia em toda a mystica via
gem , sem que d'elle fosse seu plagiario , como já ficou demonstrado
n'outro logar. Foram seus guias secundarios Ovidio, Estacio , Lucano,
e outros poetas, e auctores, entre os quaes cumpre não esquecer Ci
cero, e Boecio . Mas outra fonte em que não menos se inspirou foi o
estudo dos homens, da sua historia , do seu caracter, e de seus costu
mes, como tambem o estudo, e a paciente observação da Natureza, e
de seus phenomenos . Todos os magnificos quadros, todos os tocan
tissimos episodios, como a grande copia de esplendidas comparações ,
foram por elle bebidos nas suas contemplações , como Poeta , no mara
vilhoso livro da Natureza .
Eis d'onde surgiu o monumento imperituro alçado por elle a Bea
triz, para cuja construcção concorreram todos os conhecimentos do
intellecto : a physica, a philosophia, e a theologia ; todos os elemen
tos da vida universal : a historia , a politica, a religião; todas as fór
mas de arte : a lyrica, a epopea, o drama ; e todos os generos de ver
sificação : o hymno, a satyra, a tragedia, a comedia ; bem que para
aperfeiçoal- o cooperassem a architectura com o compasso, a escul
ptura com o relevo, a pintura com as cores , a musica com a harmo
nia ! Eis d'onde saíu esse assombroso Poema , tão original como pode
ser o trabalho humano, o mais original de quantos vastos poemas
brotaram do engenbo humano !
Ardua cousa seria , pois, provar que tal ou tal lenda servíra de
modelo a Dante, ou que remotamente lhe ministrasse o germen.prin
cipal de seu Poema : como incidente observarei, que em relação ao ap
parecimento da musa de Allighieri no meio das trivialidades satyricas
dos trovadores, e das sensaborias da poesia italiana, uma circumstan
CXLIV A DIVINA COMEDIA

1
cia impressiona especialmente : é quanto esse apparecimento é ao
mesmo tempo tardio, e precoce : tardio, no que respeita ás ideas , ao
assumpto, e á inspiração : precoce, no que respeita ao talento do Poeta,
esse genio sem duvida inesperado n’aquellas solidões do pensamento
da edade media ! Cousa singular ! Na ordem philosophica Dante não
abre uma era nova, fecha a edade media : resume-a ; é o homem do
passado ; emquanto que na ordem litteraria é um genio precursor, que
apenas soffrerá comparação com Homero ! No plenilunio da barbaria
do seu tempo, quando as linguas eram algaravias informes, duzentos
annos antes de Camões , trezentos antes de Cervantes, e de Shakespeare,
quatro seculos antes de Corneille , seis seculos antes de Goethe, Dante
deu á Italia uma grande litteratura ; fel-a antesignana a todas as nações
modernas !
Quanto ao genero de assumpto do seu Poema é innegavel, que en
cerrava um conceito geralmente esparso nas populações christás ;
mas Dante foi o que primeiro attingiu directamente o ideal da con
sciencia popular ; porquanto , meditando no assumpto, traduziu esse
ideal no estabelecer de penitencias , que convinham a certos peccados,
em virtude d'aquella lei , que elle chamou del contrapasso ; isto é, da
correspondencia entre a pena , e o delicto . A identidade do assumpto,
pois, tem sua razão nas opiniões do tempo : a identidade dos prome
nores pode ser ou fortuita, ou derivada da propria natureza do as
sumpto, ou tambem da tradição . Todavia , que Dante, que une á in
spiração a doutrina, e que em todas as cousas se mostra estudioso , e
conhecedor, podesse ignorar as lendas tão similhantes na materia ao
seu Poema, não ousarei affirmal-o, nem nenhum sensato poderá negar
que ellas sejam quasi necessaria introducção do Poema. O mesmo
Creador, digamos assim , teve necessidade do cahos para formar o
mundo ;. e por isso se pode sustentar que as lendas dos visionarios,
que eram um verdadeiro cahos, serviram exactamente de materia na
urdidura do Poema. Em outras palavras: antes de Allighieri o assum
pto era verdadeiramente res nullius ; era patrimonio de todos, e de ne
nhum ; mas, apropriando- se d'elle, o desenvolveu com tanta elevação,
e soberano criterio , como nunca nenhum dos seus predecessores nem
siquer imaginou ! As pias fantasmagorias dos monges, ás cavillosas
imposturas dos politicos, ás grotescas invenções dos chocarreiros, sub
stituiu a singela, a sublime , a vigorosa creação da phantasia poetica ,
imprimindo a unidade, a ordem , a harmonia, o magisterio da arte , no
que até então era somente uma desordenada congerie de factos pavo
rosos , ou estulta enumeração de maravilhas ! Muitos, é verdade, antes
de Allighieri tinham -se já proposto reproduzir em escriptura, e pintura
as penas do Inferno, e as alegrias do Paraiso, mas não era necessa
A DIVINA COMEDIA CXLV

ria grande força de imaginação para accumular na descripção do In


ferno tormentos, e convulsões, fogo, e gelo, pez, e enxofre, e serpes, e
monstros, e demonios ; como não era necessaria grande força de ima
ginação para accumular na descripção do Paraiso delicias, e gaudios,
e luz, e canticos, e harmonias ; mas o que nenhum tinha pensado era
em apoderar-se d'esse thema velho, e rachitico, e com elle formar o
mais completo, e estupendo quadro da vida humana em todas as suas
fórmas, e vicissitudes, encarando -a desde o abysmo do mal até o cume
da felicidade; o que tão pouco nenhum tinha considerado era que a
narração de tantas miserias, e de tantas alegrias acabava por estafar o
leitor, deixando-o mais aturdido que satisfeito, e que para amenisar
em certo modo a materia era indispensavel introduzir n'ella o homem ;
não o homem em geral , e a alma sem corpo, mas o liomem com o seu
nome, com a sua personalidade, com os seus costumes, com as suas
vicissitudes no mundo, e na historia. Dante tratando , sob este alto as
pecto, o sediço assumpto, estampou-lhe o proprio sêllo indelevel, e
depois d'elle fechou -se para sempre o cyclo das tentativas n’este ge
nero de elucubrações . Todos os seus predecessores caíram em per
petuo olvido, a despeito de todas as laboriosas especulações da critica
moderna : queiram ou não queiram , os tres reinos da pena , da pu
rificação, e do premio , permanecerão , por todos os seculos, architecta
dos na phantasia humana, como Dante os representa, os reproduz,
com arte inimitavel. Depois d'elle, não ha mais nada a dizer ; a Di
vina Comedia tornou - se a ultima palavra ; tornou-se egualmente o livro
do povo, e o livro dos theologos ; o thema sagrado da leitura publica
em todas as egrejas da Italia , acompanhada de explicações do texto ;
as congregações pias escreveram o sacro Poema no numero dos livros
devotos, e desde logo deu-se á Comedia o titulo eterno de Divina,
proclamando- se d'est'arte Dante Allighieri como um dos mais seguros
reveladores da gloria do Paraiso, d'onde havia descido , e dos tormen
tos do Inferno, d'onde havia saído illeso. Tão funda era esta con
vicção vulgar, que as mulheres de Verona, e Ravenna, ao vel- o pas
sear taciturno, e meditativo o indicavam com respeitoso pavor aos
filhos, como aquelle que tinha voltado do reino de Satan ! Mas no
conceito dos homens de entendimento são, Dante foi verdadeiramente
aquelle que attingiu as mais sublimes alturas da arte restaurada . Cesar
Cantu escreve : « Primeiro genio das edades modernas, Dante desco
briu quantos pensamentos profundos, e quanta elevada poesia jaziam
latentes sob a crusta escabrosa da edade media ; revelou aos conceitos
populares a sua grandeza , e obrigou a pensar continuamente que a
poesia é alguma cousa mais que fórmas vãs, e combinações sonoras.
D'aqui a sua grande efficiencia nas artes bellas ; pois que , embora
CXLVI A DIVINA COMEDIA

1
admirador da antiguidade, cria firmemente nos dogmas catholicos, e
entre aquella, e estes colloca uma mythologia original , que poetisou as
tradições até então conservadas entre os artistas , e o modo por que
tinha coordenado os reinos invisiveis offereceu assumptos novos aos
pintores, que imprimiram nos mesmos santos paixões mais profundas,
em vez d'aquelle ar de beatitude satisfeita, ou de compostura ascetica,
de que até então não sabiam despojar-se.
« Dante é interprete do dogma , e da lei moral, como Orphêo, e Mu
sêo ; Petrarca , interprete do homem , e da sua natureza intima, como
Alceo, Simonides, Anacreonte : Dante , como verdadeiro epico, repre
senta uma raça , e uma epocha inteira, e o complexo das cousas de que
se compõe a vida ; Petrarca pinta o sentimento individual. Por isso
este é entendido em todos os tempos : a admiração para com o outro
tem soffrido suas intermittencias, e crises (1): mas a admiração se res
tabelece toda vez que se aspira aquella belleza verdadeira, que forço
samente diffunde a elegancia , e a delicadeza ( 2 ) . »
O não menos egregio Giuseppe Maffei (3), impugnando vigorosa
mente Fontanini , A. di Costanzo, Denina, e Ginguené, que sustenta
ram , o primeiro, que Dante tirára a idea principal da seu Poema do
romance intitulado Meschino (4), o segundo da l'isão de Alberico ( 5 ) , o

( 1) A Divina Comedia pareceu a La Harpe une rapsodie informe, e a Voltaire


une amplification stupidement barbare ! É que estes dois criticos não entenderam o
conceito dantesco, e por isto procederam a respeito da Divina Comedia do mesmo
modo que a rapoza com as uvas : estão verdes !
(2) Storia della Letteratura Italiana, pag. 75 .
(3 ) Storia della Letteratura Italiana, part. I, pag. 53 .
(4) O erudito Brottari demonstrou cabalmente a falsidade da opinião de Fontani
ni, confrontando a Divina Comedia com o romance Meschino, livro escripto origi
nariamente em provençal, e traduzido em italiano muito depois da morte de Dante ;
havendo o traductor enxertado n'elle muitas idéas, e conceitos dantescos, d'onde
a critica superficial deduziu que o Poeta bebêra em tal fonte a idea capital do
seu Poema ! ( Veja-se a carta de Monsenhor Brottari a um Academico da Crusca,
inserta na bella edição de Dante, Padua, 1822.)
(5) N'esta esdruxula visão de Alberico, a idea do Purgatorio domina a do In
ferno, ou antes as duas cousas são inteiramente confundidas ! Instruido da doutrina
de S. Thomaz de Aquino, que ensina que as almas, no Purgatorio, não são ator
mentadas por demonios ( Summ . part. tert. , suppl. quart. 72 ), Dante foi o primeiro
entre os Poetas, que comprehendeu que, sob o aspecto christão , o Purgatorio não
é um appendice do Inferno, mas uma especie de vestibulo do Paraiso; foi o pri
meiro entre os visionarios, que separou os condemnados dos experimentados, isto é,
dos que se purificam no Purgatorio. Como podia, pois, o Poeta theologo tomar
por modelo a visão de Alberico, monge Cassinense, onde se encontra tão grave
erro de doutrina catholica ? E que prova ha, de que Dante a tivesse lido ? Leia - se
esta nota do sabio Ch . Labitte :
« A visão de Alberico permaneceu ignorada, até que o abbade Cancelieri a pu
A DIVINA COMEDIA CXLVII

terceiro de duas novellas de origem franceza sob o titulo de Viaggio


dell' Inferno, e Giullare che va all' Inferno, o quarto, finalmente, que da
Visão de Brunetto Latini, contada no seu Tesoretto, exclama sobran
ceiro : « Que parentesco jamais tiveram essas mesquinhas, e myrrhadas
visões, com aquelle doloroso Inferno, onde com tão justa proporção
os condemnados são punidos com supplicios diversos? com aquelle
Purgatorio, onde o espirito humano por penas expiatorias se torna
digno de subir ao céo ? com aquelle Paraiso, onde o Poeta viu face a
face La gloria di Colui che tutto muove ? (a gloria d’Aquelle, que tudo
move ). Quem jamais ousou pôr em parallelo taes phantasmagorias ro
manescas com a Obra estupenda , que encerra a descripção do mundo,
e dos céos , os varios caracteres dos homens , as imagens das virtudes,
e dos vicios, dos premios, e dos castigos, da felicidade, e da miseria ,
de todos os estados, em summa, da vida humana ? Obra inimitavel,
adornada de tanta erudição, e doutrina , de tantos lumes de eloquen
cia, de poesia, e de historia , extrahidos da mina riquissima da mente
prodigiosa do Poeta ? Importa pois buscar n’esta mesma mente privi
legiada o typo original da Divina Comedia, e reconhecer quaes as cir
cumstancias, e quaes os affectos immensos que a inspiraram !!
Si o Poema dantesco teve os seus ascendentes nos auctores bibli
cos, nos poetas da civilisação antiga, nos Padres , e Doutores da Egreja ,
nas lendas, e tradições da edade media, teve tambem numerosos
descendentes, posteridade tão larga, qual a que foi promettida a Abra
ham ! Na litteratura italiana posterior a Allighieri difficilmente se en
contra alguma obra de arte de certa importancia, que não tenha o
cunho da influencia omnipotente da poesia dantesca . O terceto inven
tado por Dante tornou-se o metro consuetudinario de 1300 e de 1400
para os assumptos altos , e solemnes, tendo a voga, que mais tarde
teve a oitava, e depois o verso solto . Entre os imitadores de Dante
figuram os summos poetas de todos os seculos posteriores, começan
do por Petrarca, o qual se sujeitou, mau grado seu , á influencia da
poesia dantesca nas Rime, e nos Trionfi.
Grande é o numero dos poemas antigos, e modernos, que não são
outra cousa, senão imitações mais ou menos felizes da Divina Comedia.
Alguns jazem ainda ineditos nas bibliothecas, como o Inferno de Ar
manino , a Landreide de Giustiniani, a Anima Peregrina do P. Sardi,

blicou no texto latino ( Roma, 1814), e inserida por Lombardi na sua celebre edição
de Dante, com uma confrontação das passagens analogas da Divina Comedia . São
numerosas, sem duvida ; todavia a maior parte das circumstancias citadas não per
tencem nem a Dante nem a Alberico, porém, sim, a muitas visões anteriores. É isto
que se deveria notar . »
CXLVIII A DIVINA COMEDIA

1
a l'isione de Giambino d'Arezzo, o Giudicio finale de Domenico di
Napoli , o Giardino de Marino Lonata, a Città di Vita de Matteo Fal
miere , e muitos outros . Entre os poemas publicados , que em substancia
devem considerar-se apenas imitações de Dante, os mais conhecidos são
a Amorosa l'isione de Boccacio , no qual a Dirina Comedia é imitada no
desenho, e no mechanismo; o Dittamondo de Fazio dos Ubertis, sobri
nho de Farinata, chefe dos Gibelinos , que Dante condemnou no seu
Inferno ; o Quadriregio de Frezzi , que refcz a seu modo a Divina Come
dia, com a estulta pretensão de completal -a ; o Purgatorio de Cipria
ni, que, mais hellenista que poeta, ousou tentar o vôo ao lado do
grande mestre ; a Basvilliana de Monti, que lhe grangeou o titulo de
Dante embellecido ( raggentilito) ; a Scala di l'ita de Ferruci , o mais
proximo , e feliz imitador de Dante no nosso seculo ! Menos conhecidos
são os trabalhos de Bellini ( L' Inferno delle tirannide), e as parodias
não poucas da Divina Comedia, ou de cada uma de suas partes .
Não é só na litteratura italiana que se acham imitadores de Dante.
Todas as litteraturas dos povos civilisados da Europa beberam n'esta .

fonte inexhaurivel sublimes inspirações, largamente os meridionaes, os


septentrionaes menos. Alfieri chamou a Dante o grande Pae Allighieri
(il gran Padre Allighieri), e verdadeiramente é elle o Pae da poesia
moderna , o Principe da arte moderna.
SYNTHESE DOS TRES CANTICOS DA DIVINA COMEDIA

Concebido, e delineado o alto assumpto da Divina Comedia, restava


que Dante demonstrasse qual a meta moral , que queria attingir. Pri
meiramente o Poeta quiz com o Paraiso significar a vida bemaventu
rada, que gosa o sabio, quando pela contemplação se desprende dos
sentidos . A esse estado de ineffavel ventura ninguem chega, sem puri
ficar a alma em o reino da razão figurada no Purgatorio, onde por isso
tambem Virgilio entra , e viaja ; inas não pode a razão exercitar o seu
imperio sobre os vicios, se não é atemorisada pelo horrivel especta 2
culo do Inferno, sob o qual é symbolisada a natureza dos mesmos
vicios, que laceram aquelles, que se lhes tornam escravos (1). O mesmo
Dante, depois de dizer, no seu livro da Monarchia, que o homem ,
composto de alma, e corpo, fluctua de permeio entre as cousas corru
ptiveis, e as incorruptiveis, affirma que dous são os fins, que a sabia
Providencia lhe propoz a conquistar : a felicidade n’esta vida , que
consiste na operação de sua propria virtude, e figurada no Paraiso
terrestre , onde foi constituido em estado de innocencia com pleno
livre arbitrio : a bemaventurança eterna, que consiste na fruição do
aspecto divino , ao qual ninguem póde subir por esforço proprio, si
não é auxiliado pela luz celeste.
Assim, pois, concebido, e delineado o alto assumpto politico, e moral
do Poema, fructo da mais original, e estupenda invenção, era preciso
revestil.o das regras de arte ; isto é , o assumpto saído do cerebro do
philosopho devia ser pelo Poeta ornado, e reduzido á unidade, e va
riedade . Dante, portanto, elevou-se das reflexões philosophicas ao fu
ror poetico, para considerar todos os vicios, e todas as virtudes poe
( 1) Gravina, Ragion Poetica, lib. it .
CL A DIVINA COMEDIA

ticamente : eil-o, pois , que se transporta em imaginação ao Inferno,


ao Purgatorio, ao Paraiso, encontrando por toda a parte oceanos de
máravilhas ! Em seu favor movem- se a Divina Clemencia, a Graça
illuminante, a Theologia , personificada em Beatriz, que, amando o
seu amante, que vê em perigo de perdição, deixa o seu celestial as
sento, desce ao Limbo, chama Virgilio , symbolo da razão philoso
phica, e o manda a toda a pressa soccorrer o seu fiel, para servir-lhe
de guia até onde elle póde chegar , isto é, até o Paraiso terrestre . Eis
ante elle em acção, demonios, anjos, santos ! Eis uma admiravel
verdade, que ao mesmo tempo occupa o coração, e concilia a fé do
leitor ! Quem jamais , com a poetica imaginação, rasgou horizontes de
tanto mundo , e tão variado, para formar a acção de uma epopea, e
tão sobrenatural , achando -se por toda a parte em presença de fossas
infernaes, onde a Divina Justiça asseteia, e flagella os peccadores, ou
de circulos do Purgatorio, onde as almas se fazem formosas pela pu
rificação , e finalmente absorto ante a sublime visão do Paraiso, onde
por diversos graus se chega á beatitude ? ( 1 )
Sob a guia de Virgilio ou da razão philosophica, visita Allighieri
todos os circulos do Inferno, onde contempla as torpezas dos vicios,
figuradas na qualidade das penas, que lhes são impostas, admiravel
mente analogas á culpa , que ellas punem. Os glutões são atormenta
dos por uma chuva fria, e pesada, por uma saraiva grossa, por uma
agua negra , que fazem apodrecer a terra, cujas exhalações offendem
os olfatos acostumados na vida ao odor dos manjares; os luxuriosos
são arràstados em roda por uma tempestade infernal, que, estorcen
do -os, e ferindo -os, os molesta cruelmente n'um logar de trevas, sym
bolo da razão offuscada, ou apagada pela sensualidade ; os iracundos
são punidos dentro de um tanque de agua fervendo ; os violentos em
um rio de sangue ; os aduladores n'uma cloaca immunda, e fétida ;
os incredulos ou desprezadores de Deus jazem nús sobre um areal
inflammado por contínuas laminas de fogo, que chovem do alto ; os
epicuristas, que negam a immortalidade da alma, são sepultados em
tumulos ardentes ; os hypocritas trazem aos hombros capas douradas

( 1) Póde- se ler, com grande proveito sobre este assumpto, o ameno, e doutissimo
C. Gaspare Gozzi, que, na sua Difeza di Dante, retratou egregiamente o caracter
moral, e litterario de Allighieri, desenvolvendo o artificio da Divina Comedia com
tal clareza, e precisão, que não deixa nada a desejar. Escreveu elle o seu aureo livro
com o fim de refutar as insensatas Cartas Virgilianas (Lettere Virgiliane ), escriptas
por Betinelli, no triste proposito de vilipendiar os classicos italianos, principalmente
Dante. Mas essa ingloria tarefa caiu em geral descredito , em face da valente im
pugnação do referido Gozzi, que afogou na sua vasta erudição todas as subtilezas
do invejoso Aristarco .
SYNTHESE DOS TRES CANTICOS CLI

por fora , e chumbadas por dentro ; os falsos prophetas, e os adivinhos


têem o rosto voltado para as costas, em castigo de haverem preten
dido penetrar no futuro, para enganar o proximo ; os semeadores de
scismas, e de escandalos , têem os membros do corpo truncados , e
lacerados ; os traidores são atufados n'um lago de gêlo , porque de
gelo deve ser o coração do scelerado , que atraiçõa o amigo . Com su
blime engenho Dante colloca Plutão , deus das riquezas , na fossa dos
avaros , Cerbero na dos gulosos, e dá Flegias por companheiro aos
iracundos, o Minotauro aos violentos, e Geryão conduz os fraudulen
tos, e Cacco prima entre os ladrões .
No fim da leitura do Cantico do Inferno vê-se, com irresistivel
admiração, que a scena da Divina Comedia não é menor que toda a
creação, ou que todo o systema do mundo, como adverte o sabio Conti.
Pois que do centro da terra Dante caminha até os planetas , e dos
planetas ás estrellas , e alem ; e para dar a tão vasto logar um vinculo
de unidade, imagina aquelle Lucifer desmesurado , que, caíndo de
cabeça para baixo na parte da zona não habitada, desloca tanta terra ,
que forma a montanha do Purgatorio, a qual vae-se ajuntar com os
planetas. A graduação dos degraus da montanha do Purgatorio não é
menos admiravel , que a dos giros , e das fossas do Inferno. O lo
gar da nova scena, que o Poeta se propõe percorrer, é dividido em
tres partes ; isto é, no baixo da montanha até o primeiro circuito do
Purgatorio ; nos sete circulos, que, elevando-se um sobre o outro ,
occupam a maior parte da montanha, e no Paraiso terrestre , que
surge na summidade . Dante lava o rosto para cancellar a fuligem das
fornalhas infernaes ; ouve o doce canto de Casella ; observa os negli
gentes, e a fuga da serpente infernal, que desapparece ao simples
rumor das alas angelicas ; e em sonho é levado por Lucia ou pela di
vina Graça ao limiar do Purgatorio. A porta abre-se , e gira com
estrondo sobre os gonzos : aqui nota o Poeta novas penas impostas
áquelles mesmos peccados, que no Inferno são punidos, e que n’este
reino, depois de um verdadeiro arrependimento, são purgados . A so
berba é punida sob gravissimos pesos ; algumas almas, cobertas de
vil cilicio , e com os olhos cosidos por um fio de ferro , purgam o pec
cado da inveja ; os preguiçosos são compellidos a correr sem pausa ;
os iracundos são envolvidos em uma nevoa tão espessa, quanto o mais
negro fumo; os avaros arrastam -se sobre o proprio ventre, tendo os
pés, e as mãos ligadas, pelo que são constrangidos a ter a vista
sempre fixa n'aquella terra, para a qual tiveram sempre voltados os
olhos, e os pensamentos. O aspecto, e a fragrancia dos fructos de uma
arvore, bem como a frescura de um regato, excitam nos gulosos uma
fome, e uma sede devoradoras, mas que não podem saciar porque J
CLII A DIVINA COMEDIA

não podem se approximar nem da arvore, nem do regato . Os inconti


nentes expiam suas penas no fogo :).
Mas, para proseguir, o Poeta devia andar por um caminho todo
cheio de chammas: Virgilio empregou todos os argumentos, para que
elle tentasse passar alem , dizendo- lhe por fim , que entre Beatriz, e
elle não havia outro obstaculo, que um muro. Ao recordar-se- lhe o nome
da sua amada, Dante vence o medo, e o horror, lançando-se no meio
das chammas . Tudo isso , exclama Cesari , são vivos lumes de sobe
rana eloquencia !
Chegando ao Paraiso terrestre, Virgilio adverte a seu discipulo,
que d'ali por diante já lhe não competirá guial-o, e que deve appa
recer Beatriz. Ao acharem- se em face do Paraiso terrestre, abre - se-lhe
um theatro magnifico, e estupendo. Uma divina floresta é espessa
quanto somente possa temperar o esplendor d'aquelles celestes loga
res aos olhos humanos : suavissimos zephyros com ligeiro sopro fa
zem as folhas , e os ramos tremular ; e não curvar de modo, que os
passarinhos, que se acham por cima, recebendo com plena alegria as
primeiras horas, não accordem a harmonia do canto com o doce mur
murio das folhas. Dante entra na floresta, e o impede de ir ávante
um rio de agua tão crystallina, que as mais limpidas da terra não
poderiam ser comparadas com ella. Não podendo o Poeta proseguir,
lança os olhos para as margens oppostas, a fim de gosar o formoso
aspecto d'aquella verdura. E eis que se lhe apresenta uma nova ma
ravilha ; apparece- lhe uma mulher , que vem cantando suavissimamente,
e escolhendo aqui , e ali as mais bellas flores d'aquellas, que lhe bor .
dam o caminho por onde passa . Tanta festa, e tanta tranquillidade ,
fazem crer que Beatriz apparece ; mas não é senão uma mensageira
de Beatriz, que vem instruir Dante a respeito da condição do logar,
isto é, que aquelle monte é feito assim tão alto por Deus , para evitar
que o Paraiso terrestre seja turbado das exhalações da agua ou da
terra. Surge finalmente a triumphante Beatriz : emquanto o Poeta vae
lhe seguindo os passos, ella faz -lhe signal que ouça , e veja . Um re
pentino esplendor brilha por toda a floresta, como um relampago ,
porém mais duradouro : pelos ares luminosos corre uma suave me
lodia : cresce a luz, e parece fogo ; e já a melodia pelo canto se
distingue. A distancia faz parecer ao Poeta , que tem ante os olhos sete
arvores de ouro ; mas, approximando -se, conhece que são sete can
delabros tão resplandescentes, e flammejantes, que se assimilham á
Lua na sua mais serena claridade. O Poeta pergunta a Virgilio, que es
pectaculo é aquelle; mas Virgilio não fala , pois que á razão philosophica
(1 ) Amores e Rimas de D.inte, part. II.
SYNTHESE DOS TRES CANTICOS CLIII

é defeso penetrar em cousas tão profundas . Gentes vestidas de branco ;


iris formados das listas, que os candelabros deixam pelos ares ; ho
mens nobilissimos coroados de lirios ; quatro mysticos animaes, cada
um jaezado de folhas verdes , cada um com seis azas salpicadas de
estrellinhas ; um carro triumphal tirado por um allegorico gryphão , de
aspecto tão magnifico, que o do Sol seria pallido ; tres mulheres , ou
as tres virtudes theologaes, approximam-se dansando pelo lado direito
do caminho ; as quatro virtudes moraes , vestidas de purpura , vem pelo
lado esquerdo ; rompe um estrondo a cujo som tudo pára ; cem mi
nistros, e mensageiros da vida eterna levantam-se, abençoando , e lan
çando fores em torno : eis emfim o sumptụoso espectaculo , que pre
cede ao apparecimento de Beatriz., ou da Theologia, que deve fazer a
outra parte da viagem , e conduzir o Poeta do Paraiso terrestre ao ce
leste. Dentro de uma nuvem de flores mostra Beatriz a cabeça coberta
de um véo branco, e coroada de oliveira , o corpo vestido de um manto
verde, cobrindo um habito da côr de chamma viva . Experimenta en
tão o Poeta o grande poder do antigo amor ; volta- se para Virgilio
para dizer-lhe :
Conosco i segni dell'antica fiamma;

Virgilio porém o tinha deixado ; por isso banha de lagrimas o rosto ;


ouve as exprobrações de Beatriz, levanta para ella os olhos, que por
vergonha os tinha baixos , contempla o rosto da sua amada , já sem .
1 véo, que lhe esconda a formosura. Aquella Mathilde, que antes o tinha
immerso no rio Lethes, que apaga a memoria dos vicios, o conduz a
um segundo rio chamado Eunoé, que vivifica o amor da virtude . A
alma do Poeta sae inteiramente purificada d'aquellas ondas , como ar
vore embellecida na primavera por novos ramos , e novas flores, e se
torna digna de subir a celeste mansão.
O vôo de Dante do vertice do monte do Purgatorio, ou do Pa
raiso terrestre ao celeste, é tão rapido,

Che nol seguiteria lingua nè penna.

« Que não o acompanharia nem lingua, nem penna. »

Dez são os céos , e os circulos do Paraiso dantesco ; a Terra é im


movel, e centro do universo : elle percorre primeiro os sette planetas :
a Lua, Mercurio, Venus, o Sol , Marte , Jupiter, e Saturno ; entra na
oitava esphera, onde estam as estrellas fixas ; e finalmente no empy
reo. O planeta lunar recebe Dante dentro de si, como a agua recebe
! o raio da luz : n’elle vivem as almas d'aquelles que, tendo feito voto
CLIV A DIVINA COMEDIA

de virgindade, foram constrangidos a renuncial-os. Habitam o planeta


Mercurio aquelles bons espiritos, que foram excitados pelo desejo de
conquistar no mundo honra, e gloria , e não por agradar principalmente
a Deus . Aqui o Poeta vê a sua amada tão jubilosa,
Che più lucente se ne fe ' il pieneta.

a Que se tornou mais brilhante que o planeta . »

Ao subir de céo em céo , Dante faz crescer o riso dos olhos , e da


bocca de Beatriz, para demonstrar a luz cada vez maior, e ao mesmo
tempo a força, que o nosso intellecto adquire, á proporção que mais
se adianta na sciencia symbolisada em Beatriz, como o mesmo Poeta
affirma no Convito com estas palavras: Beatriz figura a divina scien
cia, resplandecente de toda a luz do seu objecto, que é Deus (1 ) . No pla
neta de Mercurio prevê Justiniano os golpes, tanto dos Guelphos, como
dos Gibelinos : uns oppõem á Aguia romana o estandarte dos Lirios ;
mas Carlos de Valois com os seus Guelphos não conseguirá abatel-a,
antes teme as unhas d'ella,

Ch’à più alto leon trasser lo vello

« Que a mais alto leão tirou o pello. »

Os mesmos Gibelinos querem apropriar-se da Aguia, e fazêl - a se


guir aos seus designios ; mas já não são dignos de seguil-a quem mira
separal -a da justiça (2). Passando o Poeta á estrella de Venus , ahi encon
tra as almas d'aquelles, que foram dominados da paixão do amor ;
mas por fim se voltaram para Deus; e o nome de um planeta, tão pro
fanado no mundo, lá embellece as almas com a sua gloria . Sem adver
tir, entra o Poeta no Sol , por elle sublimemente chamado :
Lo ministro maggior della natura,
Che del valor del cielo il mondo imprenta,
E col suo lume il tempo ne misura .
« O ministro maior da natureza ,
Que do valor do céo o mundo imprime,
E com o seu esplendor se mede o tempo . »
( Paraiso, c. X.)

( 1 ) Veja-se o commento de Biagioli, no canto v do Paraiso.


(2) Vê - se que Dante trata com egual desprezo Guelphos e Gibelinos ; porque
n'estas duas facções não domina senão interesse, ambições mesquinhas, rivali'a
des pessoaes, etc.
SYNTHESE DOS TRES CANTICOS CLV

No Sol estão os Santos , e Doutores , como aquelles, que foram


os principaes luzeiros da Egreja, e cantam hymnos , e dansam circu
larmente com tanta velocidade, que excede a toda a expressão hu
mana .
No circulo de Marte são bemaventuradas as almas d'aquelles , que
militaram pela fé. Entre os lumes , que constituem os dous brilhantis
simos raios, que formam uma cruz, e que são as almas dos bemaven
turados , um approxima- se de Dante ; é o espirito de Cacciaguida, seu
trisavô, que lhe confirma tudo o que elle tinha ouvido no Inferno
acerca de seu exilio . Da mudança de côr de Beatriz infere o Poeta ter
subido do planeta de Marte ao de Jupiter, onde são galardoados aquel
les, que governaram os povos, e os reinos com perfeita justiça. As
suas almas parecem de ouro, em quanto que o fundo do planeta é de
prata : cada uma está immersa na propria luz ; e cantam adejando, e
falam por figura de lettras, que compõem unindo-as em diversas linhas,
que, inflammadas, ahi brilham como aureos caracteres . Entre os prin
cipes vê-se Godofredo de Bulhão, que, no dizer de Ginguené , ali pa
recia esperar, que outro grande Poeta o viesse tirar, para cobril-o de
immortal esplendor .
No setimo ceo, ou no de Saturno, residem os contemplativos, ou
os amantes da vida solitaria . No centro d'elle observa-se uma altissi
ma escada de ouro a cuja summidade os espiritos sobem, e descem com
grande rapidez. Em menos tempo do que um homem mettesse, e tirasse
o dedo do fogo, Dante subiu á oitava esphera, d'onde contempla o
globo terrestre , que se lhe apresenta tão vil , que d'elle sorri . Eis , ex
clama Beatriz, o sumptuoso cortejo que circumda o triumpho de
Christo, acompanhado de infinito numero de bemaventurados, e de
Maria sem macula ! Não podem os olhos do Poeta fixar-se n’aquelle
nitido esplendor : as almas , flammejantes, quaes estrellas, movem-se
em roda dos dois celestes peregrinos : tão grande é o jubilo, que o
Poeta vê brilhar nos olhos da sua Beatriz, que todos os idiomas nu
tridos do dulcissimo mel das Musas não poderiam exprimir a mille
sima parte !
Depois de ter visto o triumpho de Christo, Dante, em virtude de
um olhar da sua amada, sobe á nona esphera , em que resplandece em
fulgor ineffavel a Essencia Divina, velada porém das tres jerarchias
angelicas que a circumdam . Beatriz explica a Allighieri a natureza do
Empyreo, em que elle acaba de entrar, e que encerra todos os outros
céos, e lhes imprime seu movimento : nove coros de anjos movem-se
tripudiando em torno de um ponto inflammado, de que recebem o im
pulso, e a luz, e que representa a Divindade . A belleza de Beatriz,
crescendo progressivamente, á proporção que vae vingando as alturas

.
CLVI A DIVINA COMEDIA

1
do Empyreo, assume por fim tão sublime grau de perfeição, que o Poeta
não encontra palavras que o exprimam . Fixando os olhos n'um rio
limpidissimo , d'elle recebe tal virtude, que o habilita a contemplar o
triumpho dos anjos, e o das almas bemaventuradas. Vê uma immensa
galeria circular de assentos, a que se sobe, á guisa de amphitheatro,
que mais se alarga, quanto mais se eleva : ali , as almas , espelhando- se
no oceano de luz , n'elle bebem os dulçores da immortal beatitude . É
n'este centro de luz inaccessivel, que o Poeta contempla a união hy
postatica da natureza humana com a divina, e ahi fenece n'elle todo o
ardor dos desejos . Beatriz vae repousar na sua cadeira de luz, e da
grandissima distancia em que se acha, o olha, lhe sorri, e volta - se para
a fonte do eterno fulgor .
Taes são as maravilhas do Poema de Dante, em que brilham pe
rolas nas palavras, perolas nos pensamentos, perolas nos conceitos !
« Visões esplendidas, diz Mézieres (1), raptos ineffaveis, effusões de
amor, torrentes de luz, e de harmonia , tudo aqui penetra-nos do sen
timento da bemaventurança eterna , como no Cantico do Inferno tudo
nos penetra do frio da morte. O mesmo pincel, que pintou com tanta
energia tantas scenas terriveis , desenhou no Cantico do Paraiso qua
dros celestes dos matizes mais delicados, e cores mais suaves. O pin
tor dos condemnados já não tem sob seu pincel senão imagens riden
tes . Elle, que arrancou lagrimas, e gritos á natureza humana , que a en
tregou escorrendo em sangue aos mais crueis supplicios, é o mesmo
que lhe pensa agora as feridas, embalando - a de um sonho de infinitas
delicias , de immortal felicidade .
« N'esta fecundidade tão rica , e tão singela, reconhece-se o mais alto
poder do genio poetico : a faculdade de representar a si mesmo, sob
as formas mais vivas, os objectos mais oppostos , de fazer saír das
cousas horriveis uma poesia forte, mas sobretudo o dom de arrebatar
a si , e os outros , fóra de toda a realidade , atravez de um mundo so
brenatural, povoado de seres, que os olhos não viram nunca, de qua
dros que não tiveram modelos terrestres, e de concepções cuja novi
dade grandiosa nos transporta alem de nós... Em summa , não ha ex
pressão demasiado ampla para caracterisar a Divina Comedia em toda
a sua grandeza. Dizemos pouco, quando a qualificâmos Epopéa na
cional da Italia. Ella merece ser chamada a Epopéa dos povos chris
tãos , e, emquanto houver povos christãos no mundo, ella será sempre
o Poema religioso da humanidade . )
O estylo dantesco , muito mais que o dos cantores gregos, e lati

( 1 ) Membro da academia franceza, professor de litteratura estrangeira na facul


dade de lettras em París, e deputado republicano.
SYNTHESE DOS TRES CANTICOS CLVII

nos , assimilha-se ao dos hebreos, e dos prophetas, aos quaes o nosso


Poeta, assim como era similhante na materia, e na phantasia, foi tam
bem na linguagem . A theologia, que era então quasi a unica sciencia
dominadora nas escolas, Dante a explicou nos seus canticos . Mas, por
desventura das lettras , a theologia não consistia n'outra cousa senão
em vás controversias de palavras, com que as obstinadas facções es
colasticas procuravam , com a doutrina de Platão ou de Aristoteles,
explicar os mysterios da religião christă . E posto que Dante fosse um
engenho superior ao seu seculo, e na substancia se mostrasse sempre
fiel discipulo da escola Thomistica, todavia não pôde escapar intei
ramente á ferrugem escolastica , tornando- se alguma vez escuro , não só
ao vulgo ignorante , como tambem aos mais perspicazes intellectos,
pelo uso barbaro da linguagem impropria da poesia . A proposito
d'isto, observa um sabio critico : « Seria absurdo negar a existencia de
defeitos em Dante, como escriptor . Só nas obras de Deus brilha o
cunho da perfeição absoluta. Mas o que tambem não se pode negar
é
que os defeitos de Dante são menos imputaveis a elle do que ao seu
seculo . Seria impossivel que n'uma obra da corpulencia da Divina Co
media se não encontrassem, aqui e ali , versos duros , imagens rasteiras
e ás vezes indecentes, rimas estranhas, conceitos falsos, jogos de pa
lavras, etc. Quandoque bonus dormitat Homerus. Havendo porém o
devido criterio no estudo da Divina Comedia, todas essas manchas
desapparecem no oceano de bellezas inimitaveis, e o livro immortal
permanecerá por todos os seculos o mais completo modelo da littera
tura italiana . )
Concluirei esta synthese com a seguinte observação, que me parece
importante : Um grande numero de leitores da Divina Comedia não
vae alem do primeiro Cantico . Todos conhecem mais ou menos as
bellezas principaes do Inferno, como os episodios de Francisca de Ri
mini , do magnanimo Farinata dos Ubertis, de Pedro delle Vigne, de
Brunetto Latini, de Guido de Montefeltro, de Ugolino, etc. , ao passo
que mui poucos conhecem as bellezas do Purgatorio, e dos seus não
menos magnificos episodios, como os do Rei Manfredi, de Buonconte
de Montefeltro, de Pia , de Sordello com a soberba apostrophe á Italia ,
de Sapia, de Arnaldo Daniello, etc. Os ultimos seis cantos do Purga
torio, alem de serem talvez os mais sublimes por vastidão, grandeza, e
profundidade de conceitos , são tambem , sob o aspecto esthetico , e poe
tico, dos mais bellos de todo o Poema, posto que tudo ali seja sym
bolico, e allegorico, e não ser facil descobrir a doutrina , que se occulta
sob o véo dos versos estranhos (sotto velame degli versi strani) . O
mesmo direi a respeito das bellezas do Paraiso, que muitos fogem de
ler, temendo não comprehender as questões theologicas, como si estas
.

CLVIII A DIVINA COMEDI.1

fossem mais abstrusas, e mais subtis do que as da philosophia aristo


telica ; e si na sciencia sacra ha mysterios, não se trata de explical-os,
mas de contemplal-os . Si são superiores á razão, não são contrarios á
razão .
Quem entra no labyrintho de Dante deve fazer de conta , que en
tra no labyrintho de Dédalo, no qual aquelles, que entravam , não
achavam mais saída, se não tinham por conductor o fio de Ariadna .
Assás applicavel á Divina Comedia é esta sentenciosa comparação
de Grimm : La philosophie de Montaigne est un labyrinthe, où le monde
aime à s'égarer, mais dont un penseur seul tient le fil, et dont un pen
seur seul peut pénétrer le véritable plan. O fio porém, que nos póde
servir de guia no meio das difficuldades ou das obscuridades do laby
rintho dantesco deve ser urdido dos seguintes elementos : « profundos
estudos de philologia , para comparar e pesar as phrases, e palavras:
profundos estudos de historia , para conhecer as precedencias dos fa
ctos, de que o Poeta não faz conhecer, senão as catastrophes; profun
dos conhecimentos de theologia , para conhecer o seu systema, e con
frontal- o com o dos Santos Padres, dos mysticos, e dos escolasticos ;
profundos conhecimentos de philosophia, para equilibrar os argumen
tos , a precisão do conceito, os elementos da sciencia , etc. , alem de
outras obvias preparações ». Dizia- me o sabio J. B. Giuliani : « De cem
pessoas, que manuseiam a Divina Comedia, e lhe recitam algumas das
bellissimas estrophes, os nove decimos talvez não sabem patavina !»
Tenho tido muitas occasiões de verificar esta verdade !
DANTE E BEATRIZ

Idealisando , e transfigurando uma simples menina , que se chamou


Beatriz ou Bice, Dante não se perdeu , todavia, n'um mysticismo sem
fórma, e sem poesia. É proprio das concepções de Allighieri idealisar
as pessoas, e as cousas , dando-lhes uma significação superior á que
ellas têem na natureza , e na historia ; transfigural-as, para convertel- as ,
em typos, sem por isso destruir n'ellas sua imagem plastica, ou os
attributos da vida real . D'esta maneira a poesia, na obra de Dante,
permanece , o que ella deve ser por sua natureza , expressão ideal, e o
que ella é, segundo Aristoteles , expressão mais philosophica, isto é,
mais significativa, e mais instructiva, que a historia : conserva assim
seus adejos terrestres, e suas formas humanas , sem as quaes não
faria mais parte do dominio da arte . Importa não esquecer, que a
poesia não é da mesma natureza, que a sciencia, e a philosophia ; não
se apraz somente em mover- se nas regiões do pensamento abstracto ;
convem -lhe uma atmosphera menos subtil, e horizontes mais limita
dos. Elevando-se ás alturas do espaço, não deixa de apoiar-se sempre
na terra, ao contacto da qual , similhante a Antêo, ella renova conti
nuamente sua belleza, e sua força. Assim Beatriz não é , na poesia
lyrica de Dante, uma simples figura allegorica, nem uma idéa abstra
cta, personificada por uma mulher sem realidade, sem vida, e sem
individualidade.
Por sua predilecção ao que é ideal , e significativo nas pessoas , e
nas cousas , Dante não apresenta, ou não eleva , entre as qualidades
respectivas, senão aquellas, que são interessantes, e de que se pos
sam sacar ensinos de verdades de ordem moral ou metaphysica .
CLX DANTE E BEATRIZ

Beatriz não é cantada pelo Poeta, senão como a beatificante, que,


pelo o que ella diz, e o que ella faz, proporcione a felicidade terres
tre, e a felicidade eterna ao seu amante . A prova , e os exemplos d'esta
norma poetica, encontrâmol-os, em assás grande numero, nas memo
rias, que Dante compoz em sua edade madura , pelos annos de 1305,
e que, metade historia, metade ficção, referem , idealisando-as, as cir
cumstancias de sua juventude, que deram origem á composição de
muitas poesias em honra de Beatriz . Essas memorias são intituladas
Vita Nuova . Este titulo , segundo a intenção do auctor, deve exprimir,
em sentido proprio, que o seu amor para com Beatriz, foi, como elle
diz, a alma de sua mocidade , da edade, que elle chama aqui vida nora,
e, em sentido figurado, este titulo indica , que com esse amor de Bea
triz começou para o Poeta uma vida mais espiritual, que elle chama,
em linguagem evangelica , a vida da graça , da regeneração.
Quanto aos incidentes do amor de Dante a Beatriz, são elles refe
ridos na Vita Nuova, como factos, que , bem que idealisados com in
tenção, devem ser considerados historicos ; e esses factos provam , que
o Poeta , segundo o seu methodo adoptado, não lhes attribue impor
tancia, senão quando n'elles descobre uma significação espiritualista .
É assim, por exemplo, que elle conta, que um dia Beatriz o saudou
na rua , e n'outro dia lhe recusou a saudação. A esse facto insignifi
cante , talvez fortuito, o Poeta dá uma importancia moral , ligando- lhe
uma significação mais elevada. Com effeito, o saudar a alguem, significa
propriamente desejar-lhe a saude temporal , e eterna : Beatriz, dando
ou recusando a saudação, approvando ou desapprovando seu amante,
dá-lhe , ou lhe recusa, por isso mesmo , a felicidade, e a beatitude .
Illudir-se -hia , sem duvida, quem, n’estas memorias de Dante, e nas
poesias amorosas, que lhes servem muitas vezes de commentario psy
chologico, e historico, esperasse encontrar esse interesse romanesco ,
essas situações patheticas, esses incidentes apaixonados, que de ordi
nario se encontram nas obras, cujo objecto principal é o amor. Em
summa, esses meios infalliveis de interessar as differentes classes de
leitores, não são postos em scena, nem nas poesias lyricas, nem na
Vita Nuova de Dante. Mas aquelles que , como o nosso Poeta , têem
uma sensibilidade delicada, e profunda, que se aprazem em respirar o
ar puro, e vivificante das altas regiões do ideal , esses encontrarão
nas poesias amorosas de Dante , e nas suas memorias, a par de algu
mas exagerações juvenis, essas figuras castas , e encantadoras, esses
quadros singelos, e tocantes, que alembram a expressão dos anjos
pintados por Cimabue, e por Giotto ; encontrarão ahi a expressão
poetica dos grandes pensamentos, e dos nobres sentimentos, que dei
xam entrever ao espirito horizontes longinquos , e fazem presentir ao
DANTE E BEATRIZ CLXI

coração profundezas, que não havia sequer suspeitado . Assim, pois,


não poderemos melhor fazer conhecer o genero lyrico de Allighieri,
senão traçando , segundo suas memorias, a historia do amor espiritua
lista .
Mas quem é essa Beatriz ? É alguma entidade mythologica, ou ver
dadeira ? Passarei a condensar rapidamente os dados historicos , que
pude reunir. No 1.º de maio de 1274, Dante, ao completar os seus 9
annos, foi levado por seu pae a casa de Folco de Portinari , seu amigo ,
e um dos mais respeitaveis , e ricos cidadãos florentinos (cittadino
de' più ragguadevoli e provisto di molte facoltà ); o qual , como todas
as familias de Florença , celebrava uma d'aquellas festas, que na esta
ção da primavera eram de uso na cidade. Ahi viu Dante pela primeira
vez Beatriz ; mais joven do que elle um anno , bella , graciosa , amavel ,
e que, sem lhe falar, produziu-lhe a mais viva impressão, como elle
mesmo confessa na Vita Nuova. Essa impressão , como é facil de crer,
não era uma paixão accêsa pelo ardor dos affectos ; era uma inclina
ção instinctiva, uma affeição pura , espontanea , virginal , em que os
sentidos não entravam, senão com o respeito que inspira uma figura
de anjo , com todos os attractivos da innocencia ; era , digamos assim ,
a aurora do amor. Beatriz, de seu lado, festejou alegremente o menino
Dante, cujo aspecto, já senhoril, e modos comedidos, não podiam
deixar de lhe inspirar sympathia. Os dous tamaninos , pois, sem du
vida dotados de penetração precoce, sentiram-se mutuamente inclina
dos. O menino, com especialidade, embevecido da magestosa genti
leza da menina, levou, e conservou n'alma, a mais terna lembrança
d'ella .
Emtanto , o andar do tempo, a respeitosa affeição do joven Alli
ghieri, crescia com a encantadora belleza d'aquella, que lh’a tinha ino
culado no peito. Bem depressa a sua paixão se tornou mais viva .
Passados outros nove annos depois do primeiro encontro, o Poeta ,
conforme elle mesmo conta, teve a gloria de ver pela segunda vez a
Dama de seu pensamento , no meio de duas gentis senhoras, um pouco
mais idosas do que ella. (1 ) N'essa occasião , Beatriz, passando por
uma rua , volveu os olhos para o logar, onde estava o Poeta, como
quem o saudava ; e sendo essa a primeira vez, que as suas doces pa
lavras lhe soaram aos ouvidos, o Poeta experimentou tão agradavel
alvoroço, que, como ebrio de satisfação, voltou a sua casa . Lá, a sós ,
no mais recondito aposento , começou a pensar n'aquelle carinhoso
acto de cortesia da parte da gentil Dama, e tão absorto ficou, que foi
tomado de um somno dulcissimo , durante o qual teve uma visão, em
(1) Dante tinha então dezoito annos, e Beatriz dezesete .
CLXII DANTE E BEATRIZ

que lhe appareceu Amor, que lhe disse muitas cousas , das quaes mui
poucas entendeu . Despertando angustiado d'aquelle sonho, e incerto
sobre o verdadeiro sentido, que lhe deve ligar, resolve dirigir uma
circular poetica a todos os fieis de Amor (Fideli d'Amore), narran
do -lhes a visão, e pedindo -lhes, que lh'a interpretem ; todavia, fal- o
de maneira, que deixa duvidar, si a consulta era antes um meio de
pôr em prova a penetração de seus confrades, ou si effectivamente ,
não confiando elle nas proprias luzes, pedia aos outros que o ajudas
sem a resolver o problema.
De todos os fieis de Amor, de quem poude obter resposta, não sa
bemos, senão de tres , cujos sonetos a historia conservou : são os de
Cino de Pistoia, de Guido Cavalcanti, e de Dante de Maiano, que,
apesar do nome, não pertencia á familia dos Allighieris. Dante de
Maiano, o menos sabio, é mais inculto dos antigos poetas da Italia,
não procurou alambicar o espirito, entregando -se a especulações,
que lhe pareciam chimericas, e responde a Dante com ar de chasco,
dizendo- lhe que o seu sonho, vasio de sentido, não podia ser senão o
fructo de um cerebro enfermo.
Cino de Pistoia , espirito mais delicado, mais distincto, bem que
não elevasse nunca mui alto os seus vôos , deu ao sonho de Dante,
seu amigo , uma interpretação simples, graciosa, e natural. Em uma
palavra, Cino descobre na visão de seu amigo o presagio de um
amor natural, cujo desenvolvimento deve ser feliz . É o juizo de um
homem rasoavel. Cino de Pistoia, do partido gibellino, era um juris
consulto tão sabio, quanto celebre , e foi mais um elegante versificador,
do que poeta de escolha .
Guido Cavalcanti, ao contrario, o primeiro poeta toscano , depois
de Dante, foi o unico, que pareceu encarar a questão sob a sua ver
dadeira luz , e a sua resposta quadrou tanto aos desejos de Allighieri,
que o proclamou , desde aquelle momento , o seu primeiro amigo.
Guido, e Dante não se conheceram senão depois d'este torneio
poetico . Através das nuvens, que envolvem a resposta de Guido Ca
valcanti , é facil perceber, que elle reconheceu nos versos de Dante a
linguagem de um poeta, que, longe de occupar-se do amor natural,
como o convida Cino de Pistoia, eleva seu coração, e sua alma até o
amor platonico. O que Dante não havia dito senão por meias pala
vras, Guido exprimiu abertamente, e foi sem duvida essa sagacidade
inesperada pelo amante de Beatriz, que o fez dizer na Vita Nuova :
«A esse meu soneto responderam muitos, cujas opiniões eram mui
differentes; entre esses , ha um a quem eu chamo o primeiro dos meus
amigos . A questo sonetto fu riposto da molti e di diverse sentenze, tra
li quali fu riponditore quegli, cui chiamo primo de' miei amici. A des
DANTE E BEATRIZ CLXIII

peito d’esta solerone declaração, Mezières diz, que Dante fez expulsar
de Florença os chefes das duas facções, sem exceptuar o seu melhor
amigo Guido Cavalcanti !
N'este ponto equivocou -se o illustrado academico . Guido Caval
canti foi dos mais egregios cidadãos florentinos. Ligado ao partido
guelpho, havia rejeitado as opiniões philosophicas de seu pae Caval
canti de Cavalcante , que passava por epicurista, e mesmo por um
incredulo dos mais obstinados , e por isso foi mettido no Inferno por
Allighieri, como se verá em logar proprio. Guido adoptára as opi
niões philosophicas platonicas, taes como tinham sido transplantadas
para a Italia pelos auctores arabes ; e, junctando a essa base a galan
teria dos trovadores catalães , e provençaes, Guido se tornou fiel de
Amor, dizedor em rimas, professando a doutrina poetica e moral do
amor platonico . Incredulo, religiosamente falando, é que elle nunca foi,
como demonstram mais de uma das suas bellas Canções , que pude
haver á mão .
Animado, pois , com a resposta de Guido Cavalcanti, Allighieri
foi-se deixando levar pela admiração apaixonada, mas sempre come
dida, que lhe inspirou Beatriz. Não obstante, porém , toda a sua discri
ção, e escrupulos, começa a transpirar na cidade a existencia do seu
entranhado amor ; e, no desejo de illudir a curiosa malignidade dos
indiscretos , aproveita um volver d’olhos, que lhe dirige uma Dama de
distincção, que na egreja se assentava junto a Beatriz, para fazer crer,
que effectivamente se occupa d'ess'outra Dama , emquanto no segredo
de sua alma continúa a dedicar- se todo a Beatriz .
Aqui o casto zelo da filha de Portinari, zelo que mal se adivinha ,
attento o recato de ambos , introduz na narração um incidente gracio
so, e vivaz . Melindrada Beatriz, por perceber que Dante dirige seus
votos á outra, recusa-lhe a saudação, para lhe fazer sentir, que ella
desapprova a significação, por mais ligeira, de qualquer galanteio d'elle
para com terceira Dama . Esta punição produziu seu effeito. Dante
consulta seu coração , reconhece sua falta, e protesta não reincidir .
Poucos dias depois , conduzido por um amigo para assistir aos des
posorios de uma pessoa da cidade, lá encontra Beatriz, cuja pre
sença causa-lhe tanto alvoroço , que o fez mudar de côr. As Damas,
testemunhas da scena, interpellam o joven amante ; dam-lhe tantas in
vestidas, por causa da natureza singular da sua paixão, que o força
ram a retirar-se para sua casa, onde se entregou ao pezar, que lhe
produziram, não só os remoques d'aquellas Damas, como os da pro
pria Beatriz, a quem elle mentalmente exprobrava de não perceber,
que era ella a causa unica do enleio , em que ficou o seu animo, como
em seu rosto se patenteára .
:

CLXIV DANTE E BEATRIZ

Mas uma circumstancia grave vem dar mais força, e importancia


á adhesão de Dante a Beatriz . O pae d'esta morre , e o golpe pro
fundo, que rasga o coração da filha, vae traspassar o coração de seu
amante . Por um encadeamento de idéas, natural em transes eguaes,
Dante , meditando sobre a incerteza da vida humana , e reflectindo que,
por mais joven , e robusto, que se possa ser, a morte é inevitavel,
conclue por este terrivel pensamento : « que necessariamente a propria
Beatriz ha de morrer um dia ! » Sobrevem - lhe febre, perde a cabeça, e,
n'um accesso de delirio somnolento , lhe parece ouvir a noticia da
morte de Beatriz, e crê que a vê subir ao Céo levada pelos anjos . No
seu angustioso somno, esforça-se por pronunciar o nome de Beatriz,
e, apenas lhe escapa dos labios, desperta, e conhece, que o que elle
viu, e ouviu, não passara de um sonho. Mas o golpe foi vibrado ; o
sonho toma toda a importancia de uma prophecia ; e Beatriz, cha
mada por Deus , parece já assumir na terra, onde ainda permanece,
toda a magestade de uma sancta . O devotado Poeta já d'ella não
fala , senão para realçar o effeito benefico da sua presença sobre
aquelles que, vendo -a, e recebendo sua saudação, se tornam bons,
justos, compassivos, e se sentem inundados de uma tal caridade, que
esquecem até as mais graves injurias.
Emfim , em 9 de junho de 1290 , morre Beatriz. Nada se pode
egualar á violencia da dôr, que esse desastre produz na alma do Poeta !
O excesso do pezar, e os elogios , que consagra á virtuosa finada, são
inexcediveis! Todavia, sincero em suas protestações , o Poeta conta
logo depois como uma joven, e bella Dama , que se mostrou sensivel
aos seus pezares, lhe fez nascer a idea de acceitar uma consolação,
que lhe parecia ser offerecida pelo Céo. N'essa occasião, Dante sentiu
mais de um combate interior entre sua honra , e seus desejos ; mas a
doce lembrança de Beatriz o fez triumphar pelo menos essa vez, e a
sua Dama permaneceu rainha do seu coração .
Lá termina o drama, que elle designou sob o titulo de seu primeiro
amor, e começa para elle a Vita Nuova, aquella vida nova, que foi
animada pela lembrança da belleza, e das virtudes de Beatriz, quando ,
deixando a terra, essa mulher privilegiada foi apresentar -se á face
de Deus. Desde aquelle momento, Dante, como elle mesmo diz, pro
testou não dizer mais nada, que não fosse em louvor de Beatriz, e é
n’este firme proposito, que repete , terminando o seu bello livro, a
Vita Nuova : « Tive então uma visão extraordinaria, durante a qual fui
testemunha de cousas, que me fizeram tomar a firme resolução de
não mais falar d'essa Bemaventurada , enquanto o não podesse fazer
de um modo digno d'ella ; e, para conseguil -o, estudo quanto me
for possivel, como ella sabe muito bem. Assim , no caso de aprou
DANTE E BEATRIZ CLXV

ver Aquelle, por quem todas as cousas existem, que a minha vida
se prolongue, espero dizer d'essa mulher ditosa o que nunca até hoje
se disse de nenhuma outra (Spero di dire di Lei quello che mai non
fu detto d' alcuna ).
O Poeta , como se vê , conclue por annunciar a composição dos
tres Canticos : o Inferno, o Purgatorio, o Paraiso, nos quaes, com
effeito, Beatriz, quasi divinisada, representa um tão nobre, e brilhante
papel .
.

Todo o leitor intelligente é agora habilitado a distinguir o que ha


de real , e de imaginario nos amores de Dante para com Beatriz ;
amores que, no juizo de todos os contemporaneos, se conservaram
sempre dentro dos limites da mais pura benevolencia (che si contenne
sempre dentro i limiti della più pura benevolenza ). Aconteceu ao joven
Poeta florentino, o que a muitos homens, mesmo inferiores a elle, tem
acontecido . Sendo menino, o Poeta foi impressionado da belleza de
uma menina quasi de sua idade, cujos traços, e altas qualidades moraes ,
desenvolvendo -se pouco a pouco, imprimiram - lhe n’alma um senti
mento terno, mas respeitoso, que o levou a fazer de Beatriz a sua
Dama, sua guia, seu anjo tutelar, um ser abstracto, no qual aprou
ve-lhe reunir todas as bellezas, todas as virtudes , todas as perfeições.
Esse phenomeno intellectual é assás commum, diz Delecluze, de modo
que é quasi certo, que ninguem ha, por pouco platonico que habi
tualmente fosse em seus amores , que não tenha tido sua Beatriz !
Com effeito , se nos offerece bem proximo do nosso tempo um
exemplo frisante em Lord Byron , o qual teve tambem sua Beatriz na
menina Mary Duff. Ouçamos as proprias palavras do auctor do Child
Harold : « Não é extraordinario (escrevia elle , dezesete annos mais
tarde), que eu nos meus oito annos me tornasse tão completamente,
tão perdidamente enamorado d'essa menina , em uma idade, em que
eu não podia sentir amor, nem saber sequer o sentido d’esta palavra ?
Lembro -me de tudo, que nós diziamos um ao outro ; lembro-me das
nossas caricias, e das feições d'ella ; eu já não tinha repouso, não
podia dormir ... A minha anciedade, e o meu amor eram tão violen
tos, que algumas vezes me pergunto a mim mesmo, si tive depois
outra inclinação verdadeira . Quando, mais tarde, soube do seu casa
mento, foi isso como um golpe de raio, fiquei aturdido, e caí quasi
em convulsão ! » ( 1 )
Medindo se , e comparando-se os effeitos da sensibilidade precoce
d'estes dous jovens, ambos poetas predestinados, reconhece- se grande
differença entre o amor infantil de um , e de outro. O de Dante para
(1) Taine, Histoire de la Litterature Anglaise, 111, pag. 54.
CLXVI DANTE E BEATRIZ

com Beatriz, era, digamos assim , um amor de virtude, de pureza, e


de castidade, que o abalava, mas que não lhe perturbava o sereno uso
da razão , pondo de lado certas ficções de transportes, de raptos ar
dentes, com que o Poeta, e não o amante, procurava matizar de varias
côres graciosas o quadro da sua paixão . O amor de Byron para com
Duff é de outra indole ; tira o repouso , produz vigilias crueis, e outras
commoções violentas, que a reticencia supprimiu !... A noticia do
casamento de Mary é recebida pelo seu amante como um golpe de
raio, que lhe faz perder a cabeça , e cair em convulsões delirantes. Ao
contrario Dante, sabendo que Beatriz , na edade de 21 annos, passou
a ser esposa do nobre cavalleiro Simão dos Ubertis ( 1287) , applaudiu
o consorcio da sua amada ; porque aos seus olhos esse acto auspicioso
realçava o merito de Beatriz , em consideração á influencia mais effi
caz, que a sua posição de casada lhe permittia exercer, por seu exem
plo, sobre o espirito, e o coração das damas, que a rodeavam . Eis
como o grande Poeta espiritualista, e casto , exprime, sem a menor
sombra de ciume ou despeito, a sua satisfação a proposito d'esse ca
samento , e das venturas que podia proporcionar a Beatriz : « A minha
illustre Dama foi objecto, não só das homenagens, e dos louvores de
todos os assistentes, como, alem d'isto , muitas senhoras foram louva
das, e obsequiadas em veneração a ella . Tendo eu presenciado isso , e
querendo fazel- o conhecer aquelles, que não podiam ter testemunhado,
propuz-me cantar o caso em um soneto , (1) em que mostrei, que o
merito de Beatriz é tão relevante , que irradiou ou reflectiu em todas
as outras damas . ) )
Perguntam alguns, por que razão Dante não casou com Beatriz ?
Na ausencia dos motivos, que só o Poeta poderia dar, responderei ,
que elle não casou com Beatriz pela mesma razão, sem duvida , por
que Petrarca deixou de casar com a sua Laura, Guido Cavalcanti
com a sua Vanna (abreviatura de Giovanna (Joanna) , chamada tam
bem Primavera), e Lappo com Lagia (abreviatura de Alagia ). Todos
esses amores eram platonicos ; não saíam da esphera do ideal . É certo
que muitos trovadores , quando essa escola decaíu da sua pristina se .
veridade, foram -se casando com as damas por elles cantadas ; transi
ção funesta para a sensualidade sem freio, que no canto v do Inferno,
Dante verbera a valer .

( 1 ) Este soneto começa : Vede perfettamente, etc.


TITULO DO LIVRO

No paragrapho x da Epistola a Can Grande della Scala, o Poeta


diz : O titulo do livro é : «Começa a Comedia de Dante Allighieri , Flo
rentino de nação, não de costumes » . Para comprehender este titulo
convem que se saiba , que Comedia, derivando de comos, villa , e de
ode, canto, vem a significar canto villão. E é a comedia um certo ge
nero de narração poetica , diverso de todo outro . Quanto á materia ,
differe da tragedia porque esta no principio é admiravel e tranquilla,
no fim ou no exito é fetida e horrivel, sendo por isso denominada de
tragos, bode, e oda canto, quasi canto caprino, isto é , fétido á simi
lhança do bode , como se manifesta nas tragedias de Seneca. ( 1 ) A co
media porém começa por algum caso adverso , mas termina felizmente
como Terencio faz ver em suas comedias... similhantemente a Tra
gedia e a Comedia differem no estylo : uma tem o estylo alto e subli
me ; a outra baixo e humilde, como quer Horacio na sua Poetica ,
onde permitte aos comediantes alguma vez falar como tragicos, e vice
versa . Donde se conhece a razão por que este livro se chama Comedia .
Depois, si attendermos á materia , no principio é horrivel, e ingrata ,
por que começa pelo Inferno ; e no fim , prospera , desejavel, e graciosa
porque acaba pelo Paraiso ) . etc.
Como se vê , Dante intitulou o seu Poema simplesmente Comedia
( Inf., xxi , 2) : Este mesmo titulo deram - lh'o sempre os antigos com

( 1) A Tragedia chamou-se canto do bode, porque na sua origem , anterior a


Thespis, pouco mais era, que um dithyrambo, em honra de Baccho, cantado pelo
côro, junto de cujo altar se immolava um bode ; animal odioso aquelle deus ; porque
róe a vide. Horacio dá outra explicação na sua Epistola aos Pisões, dizendo, que o
premio nos concursos dionisiacos era um bode ; no que o Poeta latino se enganou,
segundo pensam os mais doutos commentadores. (Nota do traductor.)
к
CLXVIII TITULO DO LIVRO

mentadores. ( ) epitheto de Divina começou com a edição del Dolce.


Veneza, Giolito , 1555 , depois que Landino chamou divino o Poeta na
edição de 1481. ( 1 )
Divina Comedia significa Representação Sacra, similhante aquellas
sacras representações da meia edade, que se chamavam misterios. É
chamada Divina, porque representa a scena de um mundo sobrenatu
ral, que a tradição religiosa havia desenhado, e dividido em tres par
tes : é chamada Comedia, que sôa representação popular; porque é
escripta em lingua vulgar, em contraposição ao poema latino de Vir
gilio , por elle chamado tragedia . O Poeta chamou tambem Poema
sacro ; e com a palavra poema quiz signiticar que a representação do
mundo era feita artisticamente . Veja -se Boccaccio no Proemio ao
seu commento , edição Milaneza, 1 , pag . 82 , e seguintes.
Fórma.-- Sendo a Divina Comedia de Dante um trabalho de arte
finissima, convem primeiro que tudo observar a construcção, não só
quanto á bella mentira (bella menzogna) sob que approuve ao Poeta
occultar as verdades, que queria ensinar, como quanto á fórma poetica
do todo, e de cada uma de suas partes. É pois a Comedia, segundo
o sentido litteral, a narração de uma viagem extatica do Poeta pelos
tres reinos da condemnação, da purificação, e da bemaventurança. O
protagonista é o mesmo Poeta, o qual, fugindo dos horrores, e perigos
de uma espantosa selva, em que somnolento se tinha perdido, empre
hende uma viagem , guiado primeiro pela sombra de Virgilio , e depois
pela glorificada Beatriz, começando do alto para baixo, descendo ao
abysmo por diversos circulos infernacs até o centro da terra, d'ahi de
baixo para cima subindo do centro da terra á sua superficie, e depois
pelos gyros do monte da purificação até ás eminencias do Paraiso ter
restre, e finalmente de la pelos nove céos até o summo Empireo, onde
na visão beatifica da Divindade termina a viagem . Durante esta pere
grinação , que no reino da condemnação não é sem perigos, nem sem
fadigas no reino da purificação, o Poeta observa as diversas penas
eternas, e temporarias, bem como tambem os diversos gráos celestes da
bemaventurança : discorre, ora com Virgilio, que lhe explica aquellas va
rias cousas, que se podem conhecer com a razão humana, ora com Bea
triz, que o instrue acerca dos mysterios da religião, e da fé, ora com
diversos espiritos dos tres reinos, que lhe contam a sua historia , a de
suas familias, dos seus amigos ou inimigos, dos seus paizes, e algunas
( 1) Libri titulus est : « Incipit Comædia Dantis Allighieri, Florentini natione,
non moribus » . Ad cujus notitiam sciendum est , quod Comoedia dicitur a comos, villa,
et oda, quod est Cantus, unde Comedia quasi villanus Cantus. Et est Comedia ,
genus quoddam poeticæ narrationis, ab omnibus aliis differens. Etc. , etc. (S. X.,
Epist. a Can Grande .)
TITULO DO LIVRO CLXIX

vezes prophetisam ao Poeta as futuras vicissitudes por que elle, e sua


patria hão de passar, etc. Ha visões , que lhe revelam ora a sua histo
ria individual, ora a historia universal do mundo, e da Egreja de
Christo .
Sendo tres os reinos da eternidade, o Poema divide -se em tres par
tes ou Canticos : o Inferno, o Purgatorio, e o Paraiso. Cada Cantico
consta de 33 cantos : ao 1.º Cantico precede um canto, que serve de
introducção a toda a obra ; assim pois o Poema é comprehendido em
100 cantos , o quadrado de 1o, que, segundo Dante é, o numero per
feito. Os 100 cantos têem 14233 versos, a saber : o Inferno 4720, 0
Purgatorio 4755, o Paraiso 4758. O Poema portanto tem a sua bem
meditada geometria, que, para não destruil-a, Dante deixa de escrever
mais alguma coisa ainda , dizendo : « Mas porque estão completos to
dos os cantos ordenados para este Cantico 2.º, não me é permittido
alongar-me mais do que a arte prescreve (1) ) . Os 100 cantos , escri
ptos em terceira rima , são de varios numeros de versos, os 2 mais
breves não têem senão 115 , o mais longo 160. Cada cousa n’este vasto
Poema, até as minimas particularidades , tudo é proporcionado , calcu
lado, pesado com maxima exactidão. O estylo é sempre ajustado (2)
á materia, ora forte, e pesado, ora suave , e doce ; ora similhante á tor
rente impetuosa, que se precipita com estrondo do alto, ora ao deli
cioso murmurio do regato, que placido se deslisa pelo florido prado,
ora ao vento desabrido , ora ao zephyro brando ora ao mugido hor
rendo, e desesperado dos demonios, e dos condemnados, e ora ao som
das harpas angelicas, e dos hymnos dos bemaventurados. Em summa,
si n'alguns passos do Poema o Poeta, para conformar - se ao gosto do
seu tempo, versifica ainda questões escolasticas , n'esses mesmos pas

Ma perchè piene son tutte le carte


Ordite a questa Cantica seconda,
Non mi lascia più ir lo fren dell'arte.
( Purgatorio, C. XXXIII , 139.)

lente12 )moNos grandes


delo mestres, as regras são sempre as mesmas. Aqui vae um excel
de gosto :

Tem jus à fama


O vate , ou cante heroes, ou cailte amores,
Comtanto que de Phebo as leis não força ,
Aos mui variados assumptos ajustadas.
Com a materia convem casar o estylo ;
Levante -se a expressão, si é grande a idea ;
Si a idea é negra a locução negreje,
E tenue sendo se attenue a phrase. »
(BOCAGE .)
CLXX TITULO DO LIVRO

sos mostra elle a altura do seu engenho, fazendo reverdecer, e florir os


desertos, dando nova vida aos cadaveres !
Conceito. — Mas a narração da viajem pelos tres reinos da morta
gente, a descripção do estado das almas condemnadas, das que se pu
rificam , e das bemaventuradas não é senão a veste allegorica, que o
Poeta quiz dar ao seu alto conceito, que é religioso essencialmente, e
accidentalmente politico ; sendo que o fim que se propoz foi remover
do estado de miseria espiritual aquelles, que vivem n'este mundo, e
conduzi- los ao estado de felicidade d'esta, e da vida eterna. A Divina
Comedia pois é ao mesmo tempo a grande epopea da redempção do
homem peccador, e a grande epopea da regeneração civil e politica .
Privado das duas direcções necessarias para conseguir os dous fins,
que a divina Providencia lhe prescreve, o homem perde-se na selva da
vida turbulenta e viciosa, e , querendo d'ella sahir, é impedido pelos vi
cios dominantes no mundo : concupiscencia da carne, concupiscencia
dos olhos, e soberba da vida, que se oppõem ao conseguimento da fe
licidade espiritual , assim como é impedido pelas facções que tornam
impossivel o conseguimento da felicidade terrestre. Assim o homem
perecerá sem auxilio de Deus , si , querendo salvar- se, persiste em tri
Thar um falso caminho. Mas a divina graça liberalisa-lhe benigna os
seus auxilios : manda - lhe um guia , que, mediante os ensinos philoso
phicos, o encaminha á felicidade temporal , e outro guia que, mediante
as revelações, o encaminha á felicidade espiritual. O rumo a seguir,
para obter a dupla felicidade, é primeiro considerar o peccado, o seu
caracter, e as suas consequencias, depois considerar na reforma da vida
por meio da penitencia, e das operações da virtude, e finalmente pela
clevação d'alma á contemplação das cousas eternas , e divinas. O pri
meiro Cantico pois da Divina Comedia tracta dos vicios, significados
pelos castigos que no tempo, e na eternidade hão de padecer os perver
sos, que affrontam o justo juizo de Deus : no segundo Cantico explica
o Poeta o modo como o homem peccador se reconcilia com Deus ,
quaes os meios de que se deve valer para excitar em si os desejos de
expungir de seu coração todos os fermentos oppostos á penitencia , e
quacs as disposições virtuosas, que o devem elevar á contemplação do
Summo Bem , e dest'arte se tornar digno dos premios eternos : o ter
ceiro Cantico finalmente tracta d'aquellas excelsas virtudes, mediante
as quaes os homens gosam com antecipação na terra a paz do céo,
e lhes asseguram a clemencia da Justiça eterna .
Na sua universalidade, que abraça a vida no tempo, e na eternidade ,
a Divina Comedia encerra tambem um elemento individual. Na sua
propria historia Dante pinta a historia do homem peccador, que, aju
dado da divina graça, deixa o peccado , faz penitencia, e se eleva
TITULO DO LIVRO CLXXI

pouco a pouco á contemplação, e fruição da visão beatifica . O Poeta ,


porém, conta em primeiro logar a sua propria historia . Seguindo uma
falsa escola, elle tinha abandonado o verdadeiro caminho, perden
do-se. Em 1300 , anno do jubileo, despertou do lethargo, e fez a pri
meira tentativa de mudar de vida. Baldado esforço . O caminho por
onde elle cria chegar á felicidade, e encontrar a paz, não era o verda
deiro porque era mundano . Nas suas tentativas é impedido pelos vi
cios dominantes , de modo que chegou a ponto de abrir mão da em
preza .
Finalmente , a graça divina veiu em seu auxilio : fez penitencia , e se
elevou á contemplação das cousas celestes. Com o seu proprio exem
plo Dante mostra como o peccador se deve renovar, como elle póde
conseguir a paz no tempo e na eternidade. É este o conceito funda
mental da Divina Comedia, conforme o proprio Poeta declarou (Epist.
a Can Gran . , $ 11) dizendo : 0 objecto d'allegoria de todo o Poema é
" o homem , emquanto por livre arbitrio, merecendo ou desmerecendo,
submette-se á Justiça premiadôra ou punitiva », e o fim do mesmo
poema consiste « em remover do estado de miseria aquelles, que vivem
na terra, e conduzil-os ao estado de felicidade na outra vida ».
Symbolismo.– Como Poema allegorico a Divina Comedia é necessa
riamente cheia de symbolos, e de acções symbolicas. Não todos , mas
uma grande parte dos personagens , que n'ella se mostram em scena ,
e entre estes exactamente os principaes , têem uma duplice significação
uma historica , outra symbolica . Mas tambem os muitissimos persona
gens, que não estão em relação immediata com a acção principal do
Poema, e não nos parecem ahi introduzidos senão por adorno poetico,
têem uma significação symbolica , emquanto representam toda uma
classe de homens peccadores, ou penitentes, ou beatificados. E sym
bolicos são tambem os personajens , que chamaremos phantasticos, os
demonios do Inferno, os Anjos do Purgatorio e do Paraiso, os ani
maes, que o Poeta vê em sua mystica viajem. E como symbolica é a
acção principal do Poema, assim são symbolicas muitas, e talvez to
das as acções secundarias. As fontes, onde o Poeta auferiu o seu sym
bolismo, são a Biblia e os Sanctos Padres, os auctores escolasticos, e
principalmente mysticos da edade media, e a mythologia classica : em
parte este symbolismo é creação original , e espontanea da phantasia do
Poeta .
A chave para a recta intelligencia da Divina Comedia é a allegoria
fundamental, conteúda nos dous primeiros cantos do Inferno. A selva
escura, o direito caminho, o somno do Poeta, o valle, o monte delei
toso, o Sol, que illumina o monte, a encosta deserta , as tres feras,
Virgilio, o outro caminho, que por conselho d'este o Poeta deve
CLXXII TITULO DO LIVRO

tomar, o Veltro, as tres mulheres celestes , são os symbolos, que en


tram aqui em scena, e que devem ser comprehendidos por quem de
seja penetrar na intelligencia do Poema. Outros symbolos importantes
no curso do Poema são : Minos no Inferno, e os outros demonios , as
tres Furias, o Enviado do Céo, as Harpias , o velho de Creta, os rios
infernaes, a corda de que Dante era cingido, os gigantes, os tres pec
cadores na bocca de Satanaz , etc. No Purgatorio : as quatro estrel
las , Catão , o valle ameno, a Serpente, a Aguia, Lucia , Estacio , as ar
vores do sexto gyro , Mathilde, etc. O symbolismo sobe de ponto na
visão do Paraiso terrestre , nos ultimos cantos do segundo Cantico , onde
tudo é symbolico , e allegorico , tanto o logar como os personagens e as
acções. Após a allegoria do primeiro canto , a allegoria dos ultimos
cantos do Purgatorio é de importancia capital para a intelligencia do
Poema: No Paraiso os symbolos são mais raros, talvez porque lá tudo
é symbolico. Entre os principaes figuram : a Aguia formada dos espi
ritos bemaventurados , a cruz de Marte, o rio de luz, e a rosa celeste .
No symbolismo consiste a principal obscuridade do Poema. Si al
guns symbolos são de facil interpretação, outros explicados pelo pro
prio Dante , como Virgilio e Beatriz, não poucos são difficeis de enten
der rectamente , mas não são absolutamente indecifraveis , como alguns
pretendem. Um livro de alta instrucção moral como é a Divina Co
media, livro que o Poeta desejava que fosse lido, e comprehendido
por toda a humanidade, não é admissivel que contivesse enigmas ab
solutamente inintelligiveis; sendo certo que teve a precaução de tra
çar nas suas Obras menores, maxime no Convito, e na Epistola a Can
Grande Scalligero, as regras que deviamos observar no estudo, e in
terpretação do Poema. Já em outro logar ponderei que , de se não le
rem com toda a attenção as ditas Obras menores, têem nascido as
difficuldades de ser o pensamento do Poeta entendido ; difficuldades
tanto maiores quanto é certo que muitos d'esses symbolos foram afo *****
gados n’um mar de interpretações diversas, e contradictorias, com a
pretensão cada uma d'ellas de ser a mais verdadeira ! ! Po
Topographia .-- Os Escolasticos occuparam-se largamente da ques
tão acerca da situação dos tres reinos da eternidade, e pouco faltou
que lhes não traçassem a planta , e a carta geographica ! Segundo elles, laste
o Inferno, e o Purgatorio demoram nas regiões escuras subterraneas .
Dividiam essas regiões nos seguintes receptaculos: 1.° 0 Inferno, pro
priamente dito, a séde dos demonios, e dos condemnados ; 2.° O Pur
gatorio, logar de penitencia , vizinho ao Inferno, e com elle confinante;
3. ° 0 Limbo dos meninos ( Limbo di fancciuli), habitação dos parvu
ch
los mortos sem baptismo ; 4. ° ( Limbo dos padres, habitação dos
SP
pios varões, mortos antes do christianismo, chamado tambem Seio de
TITULO DO LIVRO CLXXIII

Abraham . Dividiam o céo, 1.º em céo visivel, ou o firmamento,


2. ° em céo espiritual, onde estão os Anjos, e os Sanctos, e 3. ° em céo
intellectual, onde os bemaventurados gosam da visão do Deus Trino.
Dante no seu Poema sacro, não só não acceitou esta topographia
dos escolasticos, como creou uma inteiramente sua . Dos dous Limbos
fez um só, que forma o primeiro circulo do Inferno, descendo de alto
para baixo . Acima do Limbo creou um vestibulo, onde collocou os
indifferentes, desagradaveis a Deus, e aos inimigos de Deus, por isto
Deus os expulsou do céo, e os demonios não os querem no Inferno.
O Inferno, uma grande voragem , que da superficie do hemispherio ha
bitado desce sempre, restrigindo-se, até o centro da terra , é dividido em
nove circulos, dos quaes o septimo é subdividido em tres circulosi
nhos, o oitavo em nove fossas (bolge), o nono é separado em gyro das
quatro divisões . Lucifer está encravado no ponto central do Inferno, e
da Terra, com a cabeça n'um hemispherio e os pés no outro.
A Terra , que de um hemispherio é habitada , tem Jerusalem no meio
d'este . O outro hemispherio inhabitado , depois de n'elle haver cahido
Lucifer, precipitado do Empyreo, é coberto d'agua, por isso que em
tal ponto a Terra, espavorida da presença d'elle, fez do mar véo, e
passou para o outro lado . A cahida de Lucifer abriu o baratro in fer
nal ; porque a Terra, para fugir d'elle , deixou aqui o logar vazio, indo
em cima formar a ilhota, e a montanha do Purgatorio, de modo que
Jerusalem, e o Purgatorio têem um só horisonte e diversos hemisphe
rios .
O Purgatorio, que é um monte em forma conica truncada no ver
tice, eleva-se por cornijas que cortam o monte, e se restringe até em
cima, onde é a floresta divina do Paraiso terrestre. Tambem o Purga
torio é dividido em nove partes : 0 Antepurgatorio, as sete cornijas,
em que os peccadores purgam os sete peccados capitaes e o Paraiso
terrestre .

O Paraiso é formado dos nove céos da Lua, de Mercurio, de Ve


nus, do Sol , de Marte, de Jupiter, de Saturno, das Estrellas fixas, e
do primeiro Movel, os quaes gyram em torno á Terra, immovel ao
centro, e todos são encerrados pelo céo Empyreo, que é immovel.
N'este céo quieto os bemaventurados têem os seus assentos em forma
de folhas de candida rosa, e gosam a visão beatifica de Deus, o qual
é circumdado das nove ordens das tres angelicas Gerarchias.
Si em muitas cousas, como em collocar o Limbo ao lado do In
ferno, e ambos nas intranhas da Terra, no numero dos céos, e na or
dem dos planetas, Dante cinge-se ás idéas do tempo : de outras , que
para o Poema são de grande importancia , elle é inventor, é creador .
Introduz ordem , e systema no seu Inferno, construindo-o architecto
CLXXIV TITULO DO LIVRO

nicamente, e distribuindo-o em muitos circulos, conforme a sua divi


são systematica dos peccados. Invenção toda poetica , e bella é a his
toria da origem do báratro infernal, e do natural calabouço, para o
qual do centro da Terra elle sobe ao outro hemispherio. E enquanto
todos os seus contemporaneos collocavam tambem o Purgatorio em
logar tetrico, em as intranhas da Terra, Allighieri creou um Purgatorio
mais ameno, e ridente, collocando-o acima d'aquelle Paraiso terrestre ,
que outros visionarios andavam buscando nas regiões orientaes do
nosso hemispherio ! Assim, pois, na construcção topographica dos tres
reinos espirituaes revela-se tambem o genio sublime do Poeta floren
tino. Apropria-se das idéas do seu tempo, mas lhes dá uma forma
toda nova , toda scientifica, as regenera , e lhes imprime o sêllo de seu
genio .
São em grande numero aquelles, que desde o seculo xv illustraram
com a palavra, e com o desenho a topographia dantesca dos tres rei
nos invisiveis . Entre os admirayeis lavores d'este genero prima o de
Caetani Michelangelo, que tem por titulo La Materia della Divina Co
media dichiarata in sei Tavole. Roma, 1865, 1872 , 1882 , in folio .
Tambem outro trabalho importante de Manetti Ant. Dialogo circa alo
sito, forma, et misura dell'Inferno di Dante. Florença, 1506, e outros
e outros que seria longo citar nomeadamente .

VM,
Full
OBRAS MENORES DE DANTE ALLIGHIERI

A l'ita Nuova (vida nova) . - O assumpto d'esta formosa produc


ção juvenil de Allighieri é a candida , e melancholica epopea do seu
amor a Beatriz, desde o primeiro encontro, que teve com ella em
1274 até á admiravel Visão do anno 1300. Dante deu o titulo de
Vita Nuova a este livrinho, porque, desde o seu primeiro encontro
com Beatriz, começou para elle uma vida toda differente da primeira ,
datando d'aquelle ponto a sua palingenesia, ou regeneração . A obra
compõe-se de Narrações, Rimas e Divisões escolasticas. Narrada a
historia do primeiro, e do segundo encontro com Beatriz, o Poeta
descreve sua belleza physica, e espiritual, refere os effeitos n'elle pro
duzidos pela presença, e saudação d'ella , assim como as simulações
por elle usadas para occultar o doce segredo do seu coração . O pre
sentimento da morte, e perda dolorosa de Beatriz verifica - se ; com um
grito de pezar profundo, começa a contar a morte de Beatriz, e a
immensa angustia de ter perdido o primeiro deleite de sua alma. Vem
depois um incidente, isto é, a inclinação para a piedosa Consoladora ;
mas logo combatida, e vencida.
Finalmente, o Poeta relata como se lhe reaccendeu o amor para
com a glorificada Beatriz, e como uma admiravel visão o determinou
a dedicar-se com fervor aos estudos, para tornar -se apto a erguer-lhe
um padrão digno d'ella. --Vê-se que o scopo do Poeta foi commentar
authenticamente as suas Rimas Amorosas, e ao mesmo tempo con
struir um monumento á sua Beatriz, o qual mais tarde lhe pareceu
muito humilde. Era preciso outro. Ess'outro foi a Divina Comedia .
A Vita Nuova, pois, é a necessaria, e indispensavel introducção á leitura
do sacro Poema.
Segundo A. d’Ancona, a Vita Nuova consta do Proemio, e de seis
CLXXVI OBRAS MENORES

partes . A primeira (cap . 1, 17) poderia intitular -se : Amores jurenis, e Dini
Rimas sobre a belleza physica de Beatriz. N’esta primeira parte temos
um complexo de factos, e pensamentos congeneres, bem concatena
dos ; uma forma de affecto ainda natural, e humano ; uma maneira de
poetar, que ainda não é aquella, que ha de immortalisar Allighieri; a ; ‫ܝܐ‬
descripção dos casos, e dos sentimentos do Poeta nos seus 9 annos, e
depois dos 18 até os 22. A segunda parte (cap . XVIII, 28) contém os
louvores das bellezas espirituaes de Beatriz expostas nas Noras Rimas, INC
nas quaes a lingua falou por si mesma, e em que se acham a narração ‫ܬ܀܀‬

dos factos, e dos pensamentos de Dante, das suas Rimas compostas dos BE
22 aos 25 annos da sua edade . A parte terceira (cap . xxix , 35) com
prehende a morte de Beatriz, e as Rimas dolorosas. A quarta com ‫يا‬

prehende o amor, e as Rimas da Dama gentil. A quinta (cap . XL, 42 )


comprehende o reaccender do amor do Poeta para com a finada Bea D.
triz, ou os casos, e pensamentos de Dante dos 34 annos ( ? ) ao come 20
car dos 35 da sua edade. A conclusão forma a sexta parte .
Della l'olgare Eloquenza (da linguagem vulgar) . — Não havendo
ninguem , que antes d'elle houvesse tractado da linguagem vulgar, e re
conhecendo a necessidade , e utilidade de estabelecer regras sobre este
assumpto, Dante começou a traçar uma arte poetica, fazendo um só
corpo de doutrinas esparsas, e ao mesmo tempo fixando em forma
doutrinal as varias normas poeticas, seguidas até então , por um ac
cordo espontaneo, pelos poetas. Este trabalho, começado, e logo sus.
penso, depois continuado mas não concluido, toma por ponto de 17

partida a origem da linguagem humana, introduz algumas questões es ཡི།


colasticas, passa á confusão babelica , d’ahi á diffusão dos varios idio
che
mas pelo mundo, e para nos da Europa , e mais particularmente nos
da Europa meridional, que o auctor divide summariamente em tres,
pelas suas tres affirmações. Estes tres idiomas , do oc, do oil, e do si ,
têem uma raiz commum , frisam -se em muitos vocabulos. Depois
de ter falado das variações d'estes idiomas, e da sua razão de ser,
tracta do idioma do si , passa em resenha quatorze dos principaes dia
lectos então falados na Italia, e conclue, que nenhum é digno de obter
o primado sobre os outros, senão o idioma vulgar, illustre, cardinali
cio , aulico, e cortezão, que é de todas as cidades italianas , e não parece
que seja de nenhuma . Dadas as razões, por que chama este idioma
illustre, cardinalicio, aulico e corteſão, termina o primeiro livro , di
zendo que este vulgar illustre é o que elle chama idioma vulgar ita
liano .
No livro segundo, não concluido, Dante estabelece por quaes pes
soas, e de quaes as cousas se devem escrever no vulgar illustre, e co
meça depois a falar da Canção, o modo mais nobre, que para ella se
DE DANTE ALLIGHIERI CLXXVII

exige. Dante pois, dizendo vulgar illustre, não entendeu , nem podia
entender outra cousa, senão a lingua commum á Italia .
« Ao livro De Vulgare Eloquio, diz Alexandre Manzoni , tem ca
bido uma sorte, não nova no genero , mas sempre curiosa, e notavel ,
isto é, a de ser citado por muitos, e não lido quasi por nenhum , não
obstante ser um livro de pequeno formato, e ser importante, não só
pela altissima reputação do auctor, mas porque foi, e é apresentado
como aquelle, que resolve uma embaraçada, e embaraçosa questão ,
visto estabelecer, e demonstrar qual seja a lingua italiana . » ( 1)
Boccaccio, na Vida de Dante, que appareceu , pela primeira vez,
impressa em frente da edição, hoje rarissima, da Divina Comedia,
publicada em 1477 por Vindelin de Spira, junctamente com o com
mento attribuido a Benvenuto de Imola, diz : «Já vizinho á sua morte,
compoz Dante um livro em prosa latina, que intitulou De Vulgare Elo
quio, no qual propunha -se a dar preceitos a quem os quizesse
aprender com relação a rima. E como se deprehende do mesmo livri
nho, o auctor tinha em mente compor quatro livros sobre a materia ;
mas, ou porque a morte o surprehendesse antes de cumprir o seu de
signio, ou porque se houvessem perdido , o que é certo é que não ap
parecem senão dous livros ) .
No primeiro dos dous livros mencionados, diz Giuliani, «Dante não
quiz discorrer senão da Lingua ou do Idioma primitivo, que pela
confusão de Babel se dividiu em uma multidão de linguas, que na
Europa meridional se podem reduzir só a tres ; sendo que cada uma
d'estas exalta as suas prerogativas a respeito das outras . A lingua
d'oil pretende a preferencia ; pois que, por sua vulgarisação mais facil,
e mais deleitavel, n'ella estam todos os seus livros , que se escreveram
no vulgar prosaico. A Lingua d'oc allega em seu favor terem os Elo
quentes vulgares poetado n'ella, como na mais perfeita, e doce lingua
gem. A terceira, que é a lingua dos Latinos (Italorum qui sì dicunt)
affirma a sua proeminencia por dous privilegios : um, porque d'ella
foram familiares aquelles, que com maior doçura, e subtileza poetaram
em vulgar ; e o outro, porque parecem mais apoiar-se na Gramma
tica latina, que é commum, e isso aos olhos da razão parece gravis
simo argumento . » Eis n'estas simples palavras definido que cousa
Dante entendesse por vulgar italico ou do sì, e como lhe assignasse
o nome de Lingua não menos que ao vulgar de d’oc e d'oil, attri
buindo tambem este nome ao vulgar da Sicilia, e de Apulia, como a
todos os nossos vulgares. Mas da mesma forma que se chama vulgar
cremonense aquelle, que é proprio de Cremona , e lombardo aquelle
( 1) Al. Manz ., Epist. a Bong., 1868.
CLXXVIII OBRAS MENORES

que é proprio da Lombardia , assim tambem este vulgar, que é de do


toda Italia, chama-se vulgar latino, ou, como já havia dito, vulgar da
Italia . )
Em summa, o livro De Vulgare Eloquio não é somente um tra
ctado de linguistica, e de dialectologia. Dante ahi quiz estabelecer, de
um lado, que a lingua italiana se presta á alta poesia tão perfeitamente
como a latina, e , de outro lado, que o dialecto da Toscana, e da Lom
bardia , de que elle se serviu na Divina Comedia, é um idioma prefe ‫ܪ‬0‫ܚܕ‬
rivel aos outros dialectos da Italia . 0:00
Convito (Amoroso Banquete ). - A consciencia de ter-se elevado
acima do vulgo, o desejo de fazer da sciencia beneficio para todos, o
amor da fama, em contraste com a infamia do egoismo, infundiram ‫ ܐܝ‬.C
no espirito de Allighieri o escrever uma grande obra a muitos respeitos,
considerado o tempo em que appareceu , unica em seu genero. Re
cordando -se talvez dos Dialogos symposiacos de Platão, e de Plutarco ,
deu a esta mesma obra o titulo de Convito ; titulo allegorico, allusivo á
intenção de distribuir o pão da sciencia a quem d'elle necessitasse . A
fórma do livro é um commento ás Canções erotico-philosophicas do
auctor. Era proposito seu explicar suas quatorze Canções, de modo que
a obra completa comprehendesse quinze tractados, inclusive o primeiro, tan
que encerra a introducção geral , em que expõe a razão da obra , e dos
motivos que o induziram a escrevel-a , não em latim, mas em lingua vul
gar. Mas só quatro tractados foram concluidos, visto como o trabalho
giganteo foi interrompido, e não mais Allighieri o reassumiu . Entre P.Pui
tanto, embora não acabado, o Convito é, depois da Divina Comedia im Fit
a sua mais importante elocubração ; importante por si mesma, e pela
ampla estrada, que abre á interpretação do sacro Poema .
O assumpto é a Philosophia, que Dante define amoroso uso di
sapienza. Mas, como segundo elle, a Philosophia abraça todo o uni
.
verso, as cousas sensuaes, e materiaes, as sobrenaturaes, e espirituaes ,
o humano, e o divino, assim a obra promettia ser uma vasta encyclo ‫ܪܝ‬
pedia . Dante foi o primeiro, que começou por aquelles tempos a philo jimm
y
sophar em lingua vulgar ; aquelle, que deu o primeiro exemplo de sorte
prosa scientifica italiana ; aquelle, que rejuveneceu a Philosophia, in
troduzindo- a na consciencia ; aquelle, que primeiro fez saír a Philoso
phia das escolas dos religiosos, e dos circulos dos philosophantes , para
introduzil-a na vida politica, e civil; aquelle finalmente, que deu á Phi * dess
losophia um novo designio, uma nova libré, um movimento novo .
Seria impossivel dar uma larga analyse de um livro d'este gene
ro, que abrange tantas , e tão varias materias. Vito Fornari observa
no seu bellissimo trabalho o seguinte : « A qualidade do estylo d'este
livro é uniforme em todos os quatro tractados, e quanto ao valor in
DE DANTE ALLIGHIERI CLXXIX

trinseco do pensamento, ahi se contrabalançam as partes mais, e menos


boas. No primeiro tractado, brilham pelo conceito, e vivacidade da
dicção os capitulos que falam do vulgar : o resto não corresponde na
maior parte. No segundo, e no terceiro, entre muitas pequices, avultam
observações finissimas sobre o espirito humano, e profundas sentenças
de metaphysica. No quarto descorre sobre a moral , com seus altos e
baixos ; mas começa por observações altissimas de politica, e de phi
losophia historica ».
Diz o erudito Giuliani , que Dante emprehendeu escrever esta
obra pela necessidade de explicar, e auctorisar o conceito das suas ou
tras composições poeticas, aconselhado pela virtude, não por paixão
vituperavel , e pelo desejo de proporcionar aos outros uma doutrina
substancial, desvendando-a na sua intima bondade, significadora do
verdadeiro sentido occulto nas referidas composições sob a figura da
allegoria. Alem d'isto, acrescenta Giuliani, o Poeta apressou-se a
desculpar-se de que o escripto, que se pode dizer Commento, seja aqui ,
e ali um pouco duro ou arduo de entender -se, não obstante ser desti.
nado a aplainar, e esclarecer o conceito das suas mesmas Canções . —
« Mas essa dureza (assegura Allighieri com magnanimo desdem) é in
tencional, para evitar maior defeito, e não por ignorancia . Ah ! prou
vesse ao Soberano Dispensador do Universo, que a causa da minha
desculpa nunca houvesse existido ; porque nem se teria falado contra
mim, nem teria padecido pena injusta, pena , digo, de exilio, e de po
breza . Pois que foi grão -prazer dos cidadãos da bellissima filha de
Roma, Florença (na qual nasci , e fui nutrido até o cumulo da minha
vida (aos 35 annos) , e na qual, com boa paz de todos, desejo com todo
o coração terminar o tempo que me resta) lançar-me fóra do seu dul
cissimo seio, e me forçar a vaguear, como peregrino, e quasi mendicante,
por quasi todas as partes a que se estende a lingua italiana, mostrando
contra minha vontade a chaga da fortuna, que soe injustamente ser at
tribuida ao chagado (piagato ...)».
Comprehende-se d'estas dolorosas queixas, que Dante escreveu o
Convito depois do seu banimento da ingrata patria . Os eruditos mos
tram-se divergentes a respeito da epocha em que foi escripto ; mas isto é
questão em que não entro . Quem quizer informar -se das diversas opi
niões d'esses criticos, póde ler os commentarios de Giuliani , nos quaes
com a agudeza, criterio, e erudição que lhe são proprios, discute , e re
solve todas as difficuldades. Basta que se saiba , que Cesar Balbo, tendo
considerado o Convito a infima entre as obras de Dante, contradiz-se
depois dignamente, proclamando o livro como o mais exacto Manual
dos Commentadores da Divina Comedia. E o mesmo Giuliani conclue
a sua apologia com estas notaveis palavras : « Este livro é o novo Ban
CLXXX OBRAS MENORES

quete preparado para as multidões necessitadas do pão da să doutrina:


é o primeiro exemplo da potente Vulgar Eloquencia ; é uma sagrada
herança de um virtuoso desterrado, e infeliz por ter amado a sua patria .
A quem penetrar bem no amago d'este livro , subitamente se lhe apre
senta uma austera Imagem decomposta e pallida, mas revestida de
caracteres indeleveis : essa Imagem é a de um grande Pae da italica
Familia
Tractado da Monarchia . – Na media edade os olhos dos povos ci
vilisados da Europa volviam -se constantemente para Roma, já por
ser aquella cidade o centro da religião dominante , já tambem pelas
memorias do seu passado glorioso. Não obstante o Imperio Romano
ter cessado de viver, ha muitos seculos, permaneciam ainda nos ani
mos o desejo, e a esperança de fazel-o renascer de suas ruinas.
Houve algumas tentativas de restauração com vario successo ; mas não
lograram fazer tornar atraz o relogio da historia. O nome romano
transpoz os Alpes, usurpado por uma gente , que os Romanos tinham
vencido, e escravisado outr'ora . Pareceu bello aos escravos assumir o
nome dos Senhores, e a formosa Ausonia tinha naturalmente grandes
attractivos para um povo , que em todos os tempos amou assentar - se
á mesa dos outros. Assumindo o nome pomposo de Sacro Imperio Ro
mano da nação germanica, o estrangeiro imaginou ter tambem adqui
rido os direitos exercidos um dia por aquelles , que se tinham feito
Senhores do mundo. Nem faltava na Italia quem fosse propenso a
reconhecer estes pretensos direitos, e venerar no estrangeiro o succes
sor legitimo dos antigos Cesares. Mil milhares de intelligencias elevadas
acima do vulgo punham a sua esperança em ver restituida ao mundo a
paz, e estabelecidos os fundamentos da humana felicidade.
Ao lado do throno dos suppostos successores dos Cesares erguia
se a Séde Pontifical, rodeada das immunidades intrinsecas da sua di
vina instituição, e dos direitos do Principado temporal, consagrados
por seculos, e outorgados por Principes christãos, que prudentemente
entenderam ser designio providencial, que a independencia do chefe da
Egreja ante os poderes da terra era condição indispensavel á econo
mia do regimen espiritual, como era indispensavel á paz do mundo ;
que a tiara , e a corôa se não entrechocassem , mas se entendessem em
harmonia cordial , para promover o bem espiritual, e civil da christan
dade. Por um tempo, o Imperio , e o Papado andaram de accordo . Mas
depois uma serie immensa de factos, e circumstancias, que é impossi
vel reproduzir aqui , rompeu todos os laços de concordia entre os dous
supremos poderes. D’ahi as interminaveis luctas sangrentas, que aca
baram pelo enfraquecimento de ambos, e foram as dores do parto da
liberdade das Communas , e da tranquillidade dos povos .
DE DANTE ALLIGHIERI CLXXXI

Continuavam as luctas a ferver no seculo de Dante, embora o po


der imperial já não fosse na Italia senão um simulacro de poder nas
mãos de uma parcialidade, e o poder papal que , descaíndo do fastigio
de sua força, passara pela humilhação de ver - se tambem á merce do
favor de outra parcialidade. Essas duas parcialidades eram nada me
nos, que as velhas facções guelphas e gibellinas, que incessantemente
se digladiavam, e reciprocamente se proscreviam , não porque defen
dessem em realidade os direitos do Papa, nem os do imperador, mas
tão somente seus proprios interesses , abrigando-os sob o sello das
Sanctas Chaves, e sob a insignia da Aguia. A perfidia, e o egoismo con
stituiam o caracter de Guelphos e Gibellinos . Além das dissensões,
contendas, e guerras entre as duas facções, cada cidade tinha em seu
seio facçõesinhas particulares, que se debatiam , que se assassinavam
com egual furor, e os que sobreviviam aos mortici nios eram banidos.
Dante, verdadeiro patriota, ardia em desejos de oppor um dique á
torrente de Alagicios, que inundava toda Italia, devastada pelo flagello
das discordias . Soberano idealista, imaginou, que o meio de coordenar
os dispersos elementos sociaes , era diffundir a instrucção, e mostrar
que a Monarchia, que elle define poder unico sobre todos os outros
poderes no tempo, era de suprema necessidade para a vida normal
da familia humana. Mas conclue dizendo que a não se deve entender
a independencia do Principe Romano em sentido tão restricto, que
exclua a idea de não ser elle em alguma cousa sujeito ao Pontifice Ro
mano, visto como a felicidade mortal é subordinada á felicidade im
mortal. Que portanto Cesar usasse para com Pedro aquella reveren
cia, que o filho primogenito deve usar para com seu pae, a fim de
que, illustrado com a luz da graça paterna, illumine com maior vir
tude o orbe terraqueo, cujos destinos são somente presididos por
Aquelle, que é Governador de todas as cousas temporaes e espiri
tuaes » . Está entendido que este supremo Governador é Deus .
Falando das vicissitudes do Livro da Monarchia, exprime-se Boc
caccio nos seguintes termos : « Este livro muitos annos depois da
morte do auctor foi condemnado por Beltrando, Cardeal de Poggetto ,
e legado do Papa João XXII . E a razão d'isso foi porque Ludovico,
Duque de Baviera, sendo nomeado Rei dos Romanos pelos eleitores da
Magna, veiu coroar-se em Roma , contra a vontade do Papa João XXII ,
e, em desprezo das regras canonicas, nomeou Papa Pedro Corvara,
frade menor, assim como fez nomear muitos Cardeaes e Bispos, fazen
do se coroar por este Papa de feitura sua. E suscitando- se depois mui
tas questões sobre a legitimidade de sua auctoridade , Ludovico, e seus
sequazes encontraram n'este livro muitos argumentos em sua defeza :
por esta razão o livro, que até então era desconhecido, tornou-se fa
CLXXXII OBRAS MENORES

moso . Mas depois, voltando o dito Ludovico a Magna, os seus secta


rios, maxime os clerigos, descaíram da posição, e foram dispersos.
Então o Cardeal Beltrando, já não tendo quem se lhe oppozesse,
pôde haver o livro , e o fez condemnar ao fogo, como heretico » .
Por esta leitura vê-se, que tão insensata foi a interpretação que Lu
dovico, e seus sequazes deram ao livro, que em pagina alguma podia
ministrar argumentos, que justificassem tão illegal , e sacrilego procedi
mento , como insustentavel foi a condemnação por parte do Cardeal,
não menos arbitrario no seu juizo interpretativo, como claramente se
deduzirá das citações que tenho feito do dito livro da Monarchia. A
prova sobretudo está no silencio da Egreja, que nunca se pronunciou
a tal respeito ; signal evidente do bom conceito em que tem tido sem
pre esse livro, não obstante algumas proposições, que podem ser hoje
havidas como erroneas, politicamente falando, mas não catholicamente .
A primeira edição do livro da Monarchia veiu á luz em Basilea aos
cuidados de Giovanni Oporino, em 1559. Reimprimiu-se depois até
1618 cinco vezes na Allemanha . Na Italia foi dada a primeira vez á
estampa em 1740, em Veneza, com a data de Genebra . Conhecem- se
hoje 20 edições, sendo a ultima feita por Giuliani, correcta no texto, c
amplamente commentada.
A Questão da Agua, e da Terra. – Achando-se Dante em Mantua ,
suscitou-se certa discussão acerca do logar, e da figura ou forma de
dous Elementos, Agua e Terra, a qual discussão consistia em averi
guar, si a Agua na sua esphera ou na sua natural circumferencia, fosse
cm alguma parte mais alta do que a Terra emergente das aguas e com.
mummente denominada quadrante habitavel. Argumentavam todos ,
adduzindo cada um razões em sustentação da propria opinião. Dante ,
que desde a sua puericia se havia nutrido do amor da verdade, não
resistiu ao impulso de tomar parte na questão, estabelecendo os ver
dadeiros principios da sciencia em tal materia. Regressando a Verona,
agitou de novo a questão philosophica perante todo o clero, na egreja
de Santa Helena ; pondo depois em escriptura tudo quanlo havia dito
n'aquella solemne assembléa.
A ordem da questão é a seguinte : cm 1.º logar demonstrou ser
impossivel, que a Agua em alguma parte da sua circumferencia fosse
mais alta que a Terra emergente ou descoberta ; en 2.° provou que
esta Terra emergente fosse em alguma parte mais alta do que a total
superficie do Mar ; em 3.0 objectou contra as cousas demonstradas ,
resolvendo depois todas as difficuldades; ein 4.° explicou claramente
a causa final, e efficiente da elevação, e emergencia da Terra, reduzin
do a zero os argumentos contrarios .
Entre as producções de Dante, este bello tractado philosophico foi
DE DANTE ALLIGHIERI CLXXXIII

immerecidamente esquecido por muito tempo ; sendo aliás um impor


tantissimo documento para a historia das sciencias, e mais um monu
mento da vastidão do engenho, e do saber de Allighieri.
Concernente á importancia scientifica do referido tractado, aqui
apresento o juizo esclarecido do insigne geologo Antonio Stoppani.
« Eu creio , diz elle, ser de summa importancia, para gloria do grande
homem , e da Italia, assim como para a historia das sciencias physicas,
que esta dissertação dantesca seja divulgada, e apreciada um pouco
melhor do que tem sido até hoje ... Pesando bem todas as verdades
(falamos somente das que se referem á cosmologia) presagiadas, affir
madas, e demonstradas n’estas poucas paginas do summo Poeta , pó
de-se dizer (prescindindo do que se deve a Aristoteles) que em quasi
todos os escriptos da meia edade não se encontra um só, que se lhes
possa comparar ... O escripto de Dante é um monumento de grande
valor para a historia das sciencias physicas, e outro grande testemunho
do seu extraordinario genio. N'esse escripto são presagiadas, affirma
das, e demonstradas novas verdades cosmologicas, ou novas verdades
d'aquelles factos fundamentaes, de que tanto se glorifica a sciencia
moderna , que nada mais tem feito , do que confirmal-os, tirando d'el
les infinitas applicações racionaes ou praticas. Essas verdades presa
giadas, affirmadas, e demonstradas pelo divino Poeta, passarei a enu
merar uma após outra : 1. ", a Lua causa principal das marés ; 2.", a
egualdade do nivel do mar; 3. ", a força centripeta ; 4.º, a esphericidade
da Terra ; 5.*, as terras seccas são simplices gibbosidades da superfi
cie terrestre ; 6.2, o agrupamento boreal dos continentes; 7.9, a at
tracção universal ; 8.a, a elasticidade dos vapores como força motriz ;
9.º, a elevação dos continentes . Não de todo ignaro do modo, por que,
ainda prescindindo da forma escolastica , se tractavam n'aquelles tem
pos as questões de physica cosmologica ou terrestre, o que mais me
espanta n’esta dissertação de Dante (e diga- se o mesmo da Divina
Comedia) é que elle, falando de leis ou de factos naturaes, não vae
buscar as suas provas no abstracto dos principios aristotelicos dogma
tisados n’aquelles tempos, ou nas transcendentes subtilezas da meta
physica, ou da theologia ou na cabala tão em voga na edade media ;
mas sim nas leis da natureza estabelecidas em solido, quanto melhor
se podiam então demonstrar pela observação, e pela experiencia ou
com o calculo ! Elle não diz, por exemplo, que a Terra é redonda
porque a esphera seja a mais perfeita entre as figuras dos corpos ;
mas porque a lei da gravitação determina que um liquido não pode
chegar a seu estado de equilibrio , emquanto todos os pontos da sua
superficie não estiverem equidistantes do centro da attracção. Estabe
lecida esta lei como base da experiencia d'ella, deduz-se necessaria
L
CLXXXIV OBRAS MENORES

mente a illação, que as terras não podem representar, senão outras i


tantas gibbosidades sobre a esphera terrestre . Este raciocionar não ***

é mais nem menos, que o dos modernos experimentalistas » .


Para avaliar o peso do juizo critico, que acerca do genio extraor
dinario de Dante faz Antonio Stoppani, é preciso conhecer a seriedade
de caracter, e profundos conhecimentos scientificos d'este geologo.
Agora passarei a corroborar algumas das suas indicações com os pro
prios logares da Divina Comedia, a que ellas se referem , assim como
acrescentarei outras verdades, que são hoje axiomas no mundo da
sciencia, mas que já n'aquelles tempos não escaparam á perspicacia
prophetica , digamos assim, de Dante Allighieri:
1.° Indicou claramente os antipodas, e o centro de gravidade da
Terra; fez engenhosas observações sobre o vôo dos passaros, sobre a
scintillação das estrellas, sobre o arco iris (arcobaleno ), sobre os vapo
res que se formam na combustão :

Come d'un stizzo verde, ch'arso sia


Dall'un de ' capi, che dall'altro geme,
E cigola per vento che va via.
( Inferno, C. XIII, 40; Purgatorio, c. II, 14 , c. xv, 16 ; Paraiso, c. 11, 35 ; C. NII , 10. )

2.° Antes de Newton attribuiu á Lua a causa do fluxo e refluxo do


mar :

E come il volger del ciel della Luna


Cuopre ed iscuopre i liti senza posa .
(Paraiso, c . XVI, 82.)

3.º Antes de Galileu attribuiu o amadurecer das fructas á luz, que


faz exhalar o oxigenio :

Guarda il calor del Sol che si fa vino,


Giunto all' umor che dalla vite cola.
(Purgatorio , c . xxv , 77. )

4.0 Antes de Linnco deduziu a classificação dos vegetacs pelos or


gãos sexuaes, e affirmou nascerem do germen as plantas ainda micros
copicas , e cryptogamas :
Ch ' ogni erba si conosce per lo seme.
(Purgatorio, c . XVI, 114.)

.. quando alcuna pianta


Senza seme palese vi s ' appiglia .
(Purgatorio, c. XXVIII , 116.)
DE DANTE ALLIGHIERI. CLXXXV

5.º Conheceu que ao clarão matutino as flores abrem as petalas, e


descobrem os estames , e os orgãos para fecundar os germens:

Quale i fioretti dal notturno gelo


Chinati e chiusi, poi che 'l Sol gľ imbianca,
Si drizgan tutti aperti in loro stelo
(Inferno, C. II, 127. )

6.° Antes de Leibnitz notou o principio da razão sufficiente :


Intra duo cibi, distanti e moventi
D'un modo, prima si morria di fame,
Che liber uom ľun si recasse a ' denti.
( Paraiso, c. IV , 1.)

- Um homem livre, ou não impedido, collocado entre dous manjares egualmente


distantes, egualmente bons, egualmente appetitosos pelo seu odor, morreria de fo
me, antes de chegar um ou outro á bôca.

7.° Antes de Bacon estabeleceu a experiencia como fonte do saber :


Da questa instanzia può diliberarti
Esperienza , se giammai la pruovi,
Ch'esser suol fonte a ' rivi di vostri arti.
( Paraiso , C. II , 94.)
- D'esta objecção pode livrar- te a experiencia, si quizeres alguma vez tental-a ;
porque a experiencia é a fonte, é o fundamento de todas as sciencias, e artes hu
manas .

8. ° A lei da attracção universal acha-se envolvida n'estes bellissi


mos versos :

Questi ordini di su tutti rimirano,


E di giù vincon si, che verso Dio
Tutti tirati sono , e tutti tirano.
(Paraiso , C. XXVIII , 127. )

- Todos estes coros de anjos, attrahidos do amor divino, contemplam o excelso


esplendor, ou immediatamente, como os Serafins, os Cherubins, os Thronos, ou
mediatamente por estes, como as Dominações, as Virtudes, as Potestades, etc.
Em summa: todos são attrahidos gradualmente do amor Divino: os Serafins são
attrahidos
para Deus, por Deus, e estes attrahem para Deus os Cherubins : os Che
rubins, attrahidos para Deus pelos Serafins, attrahem para Deus os Thronos, e
assim por diante até a ultima jerarchia . –

9.º Indica tambem a circulação do sangue, dizendo em uma can


ção :
Il sangue che per le vene disperso
Correndo fugge verso
Lo cor che il chiama,
Ond' io rimango bianco .
CLXXXVT OBRAS MENORES

Em face de todas estas indicações, quem não dirá que Dante foi
tão bom Vate na poesia, como Vate nas sciencias modernas ?
Eglogas.- Achando- se Dante em Ravenna, Giovanni de Virgilio,
celebre professor de lettras humanas, convidava -o, por meio de um
Carme, a vir a Bolonha ; e por essa occasião , ao passo que o louvava
pelo seu immortal Poema, o censurava por havel- o escripto em lingua
vulgar, exhortando - o a conquistar a corôa de louro com poemas lati
nos , suggerindo- lhe ingenuamente os assumptos, e promettendo -lhe
toda a cooperação, si acceitasse o seu alvitre.
Respondeu -lhe Dante com uma Egloga latina, em que, sob o nome
allegorico de Tytyre, lhe falava a eile sob o nome de Mopso, dizendo ,
que recebera o seu Carme em occasião em que estava a reler com
Melibeo ( Dino Pierini, as suas composições ; e , sem entrar em ques
tões litterarias, dava -lhe cortezes felicitações, por seus estudos poe
ticos ; acrescentando que lhe repugnava ir receber a corôa poetica
em Bolonha , sendo aquella cidade adversa ao Imperio, e que o seu
desejo era cingir a fronte somente com o patrio louro , quando houvesse
publicado por inteiro a Divina Comedia, da qual promettia -lhe logo
dez cantos. Mopso Giovanni tornou a escrever -lhe em uma Egloga, na
qual, de par com grandes elogios , por haver cantado em doces versos,
conforta -o a esperar, que ha de de voltar á patria, para ver de novo
sua mulher (Filide), e sua casa ; podendo entretanto vir a Bolonha,
onde os doutos o esperavam com anciedade, e onde, entre outros,
teria de conhecer o poeta Albertino Mussato . Replicou -lhe Dante com
segunda Egloga, repetindo que lhe repugnava ir a Bolonha, tanto mais
quanto temia ser presa de Roberto , Rei de Napoles ( Polifemo).
Ao seu joven admirador pois , que o censurava por haver poetado
em vulgar, Allighieri fez sentir, não só que, si elle quizesse , sabia tam
bem cantar em latinos versos, como que sabia fazer reviver na litteratura
a poesia bucolica, morta desde os tempos de Virgilio. É esta a principal
importancia das duas gentis, e conceituosas producções do grande ge
nio de Dante . Na Vida de Dante diz Boccaccio : « O nosso Poeta com
poz duas bellissimas Eglogas, em resposta a certos versos, que lhe
dirigiu Giovanni de Virgilio, professor de humanidades em Bolonha
( 1318) . » Leonardo Bruni, diz., em vez de duas, algumas Eglogas.
Epistolas. - Ainda quando nos faltassem testemunhos dos antigos,
não se poderia deixar de admittir, que muitas deveriam ser as episto
las escriptas por Allighieri, particularmente durante os longos annos
de seu exilio . Elle irmão , elle marido, e pae , elle amigo dos homens
mais celebres do seu seculo, elle Poeta , litterato, e homem d'estado,
elle banido da patria, elle pobre, e compellido a comer o pão salgado
(quel pane che sa di sale), deveria, sem duvida, ter empunhado, ao
DE DINTE ALLIGHIERI CLXXXVII

menos cada mez, talvez cada semana, e talvez cada dia, a penna
para escrever, já ao irmão, já á mulher, já aos filhos, já aos pa
rentes, já aos amigos, já finalmente a outros personagens. Que
muitissimas d'essas epistolas não chegassem ao conhecimento dos
vindouros, é cousa muito natural , e muito commum em todos os
tempos. Os contemporaneos não procedem como os vindouros, que
consideram preciosissimas reliquias as cartas de algum homem ce
lebre no passado , e cuja grandeza não conhecem plenamente, nem
sabem avaliar. E Dante Allighieri era banido, era pobre, era condem
nado, e maldito da patria ! Mas , a despeito de tudo isso , é um facto
não menos estranho, que doloroso, que tão poucas das suas cartas
nos chegassem a nós. Si portanto consideramos que só tres fossem
conhecidas por seu contemporaneo, e amigo Giovanni Villani , devemos
dar graças por não se terem perdido todas ! Si Villani não conheceu ,
senão tres , nós possuimos seis , cuja authenticidade difficil, e seria
mente poderá ser contestada.
D’estas seis epistolas de Dante uma é dirigida aos Principes, e Po
vos da Italia, para exhortal-os á fidelidade, e obediencia ao novo Im
perador Henrique de Luxemburgo. A segunda, de 31 de março de
131 , é dirigida a seus concidadãos, aos quaes elle ameaça com a
vingança de Deus , e do Imperador. A terceira, de 16 de abril do
mesmo anno, é dirigida ao proprio Imperador, conjurando-o em lin
guagem prophetica a mover-se sem demora contra Florença. A quarta
é dirigida aos Cardeaes italianos, reunidos em Conclave, em Carpen
tras, exhortando-os a eleger um Pontifice italiano. A quinta é escripta
a um padre florentino, seu amigo, que promovia com todos os esfor
ços a sua volta ao seio da patria , e a quem, tendo o governicho de
Florença offerecido, para transmittir a Dante, uma amnistia ignomi
niosa, o magnanimo desterrado, apenas lhe poz os olhos, repelliu-a
com a altivez de um espartano ! Emfim , a sexta é aquella , com que elle
dedicava a Can Grande della Scalla os primeiros cantos do seu Pa
raiso. Esta epistola é de todas a mais importante para a intelligencia
do conceito do sacro Poema, e do methodo de interpretal-o. Todas
estas cartas são escriptas em latim, em estylo másculo , e pomposo,
embora se resintam da rudeza do seculo em que foram escriptas
Registremos aqui, sem commento, os testemunhos dos antigos
concernentes ás epistolas de Allighieri :
Dante, Vita Nuova, (c . 31): « Depois que a gentilissima ( Beatriz)
se partiu d'este mundo, ficou toda Florença quasi viuva, despojada
de toda a dignidade ; por isso eu, ainda lagrimando n’esta desolada
cidade, escrevi a Principes da terra, começando por aquellas palavras
de Jeremias propheta : Quomodo sedet sola civitas!»
CLXXXVIII OBRAS MENORES

Giovanni Villani (chronich ., liv . IX . , c . 136 : « Entre outras, es


creveu tres nobres epistolas : uma ao governo de Florença , queixan
do-se do seu exilio sem culpa ; outra ao Imperador Henrique, quando
se achava no assedio de Brescia, exprobrando -lhe a demora em tom
prophetico ; a terceira aos Cardeaes italianos, quando se achavam em
Conclave, depois da morte do Papa Clemente, exhortando -os a que
accordassem na nomeação de um Papa italiano ; todas essas epistolas
foram escriptas em alta latinidade, com excellentes dictames, que
foram muito commentados pelos entendedores . )
« O valoroso Poeta , diz Boccaccio , escreveu muitas epistolas em
prosa latina, das quaes apparecem ainda bastantes .»
Leonardo Bruni conservou -nos o fragmento da epistola de Dante
sobre as causas do seu exilio ; affirma, que Dante desterrado «escre
veu muitas vezes, não sómente a cidadãos particulares , como tambem,
e entre outras uma epistola assas longa, que começa: Popule mi , quid
feci tibi? » Acrescenta que Dante « era perfeito calligrapho, que a sua
lettra era fina, e longa, segundo notou em algumas epistolas escriptas
de sua propria mão» . O certo é, porém , que não existe um só auto
grapho original de Dante, existindo aliás nos archivos publicos da
Italia autographos de outros mais antigos! É isto uma singularidade
bem notavel!
Obras de dubia authenticidade, e obras apocryphas. - Algumas
outras composições em verso , e em prosa, que andam sob o nome de
Dante Allighieri, algumas das quaes , como diversas Rimas, poderão
ser authenticas, outras foram -lhe attribuidas pela ignorancia dos copis
tas, outras falsificadas pela malicia humana. Alem de não poucos So
netos, Canções, e outras Rimas, que em antigos codices são attribui
das ao Poeta, a respeito da authenticidade das quaes ha muito que se
lhe dizer, correm sob o seu nome, e se devem recusar como apocryphas
as chamadas Rimas sacras, isto é, os Sette Psalmos penitenciaes, mes
quinho trabalho em tercetos; - Catechismo catholico, ou a Profissão
de Fé, exposição em 247 tercetos do Credo, dos Sacramentos, dos
Mandamentos, das Virtudes, do Padre Nosso, e da Ave Maria ; Os
Louvores (Laude) em honra de Nossa Senhora ; O Novo Credo (Nuo
vo Credo) e outras cousas similhantes. De dubia authenticidade são as
Epistolas ao Cardeal Nicolao de Prato , Bispo d'Ostia, e ao amigo des
terrado da Pistoia ; apocryphas as epistolas a Oberto, e a Guido,
Conde de Romena, e as tres , que se pretende, que Allighieri as es
crevesse em nome de Margherita (Margarida) senhora de Brabante,
ao
seu marido Henrique VII Imperador : nescias, e absurdas falsifi
cações são as duas epistolas ao Marquez Morello Malaspina, e a
Guido de Polenta, senhor da Ravenna . Em nenhuma conta portanto
DE DANTE ALLIGHIERI CLXXXIX

se deve ter a noticia de G. Mario Filelpho, de que Dante escrevêra


uma historia dos Guelphos, e Gibellinos em lingua vulgar, historia, que
não existiu nunca , e da qual nenhum escriptor fez menção .
Indicações Bibliographicas. — Sendo infinitas as variantes do texto
da Divina Comedia, e mais ou menos controversas centenares de li
ções , a critica deve remontar ás fontes possivelmente primitivas, para
formar o texto genuino do Poema, qual o deixou escripto o auctor . A
fonte primitivissima, e purissima seria o autographo, isto é, o codice
escripto do proprio punho de Allighieri. Desgraçadamente este auto
grapho não se conhece, ha muitos seculos, ou porque tenha sido des
truido pelo tempo, ou porque talvez esteja occulto não se sabe em
que angulo da terra ; certo é que não ha noticia, como já observei, de
uma só palavra escripta por aquella mão certeira, e robusta, que tra
çou o sacro Poema ! D'onde a necessidade de recorrer aos codices,
cujo texto será tanto mais genuino, quanto maior seja a sua antigui
dade, e quanto mais vizinho for dos tempos de Dante. Mas o numero
dos codices hoje conhecidos, excedendo a 500 , registrar todas as va
rias lições n'elles conteúdas seria, não só um trabalho herculeo, mas,
de todo inutil . E pois que estes codices são naturalmente derivados
um do outro , a tarefa da critica deve consistir em estudal-os, confron
tal-os com todo o cuidado , e criterio, e formar d'elles a arvore genea
logica, eliminando todos os enxertos até hoje introduzidos ou pelos
copistas, ou pela ignorancia dos editores .
De 1333 aos ultimos annos de 1400 enumeram - se 5 :010 codices
conhecidos da Divina Comedia ( ! ) . Carducci , Studi letterari, p . 294.
A mais vasta descripção dos codices da Divina Comedia foi feita por
De Batines na sua Bibliographia Dantesca, vol. 11, pag. 1227. Com
este trabalho fundamental se podem confrontar as illustrações dos co
dices, que seria demasiado longo aqui registrar , até porque se acham
expostos em todas as bibliothecas publicas da Europa.
Edições da Divina Comedia . – Do seculo xv até nossos dias têem
vindo á luz mais de trezentas edições ! Preciosas, mas rarissimas, são
algumas de 1400, especialmente as primitivas: a Vindeliniana, a Ne
dobeatina, e a primeira Florentina com o commentario de Christo
phoro Landino . As duas Aldines, de 1502 e 1515 , lograram grande
fama, de modo que a lição de Aldo se tornou o fundamento da vul
gata. Entre as outras edições de 1500 são as principaes a Giuntina ,
e a da Crusca . Em 1600 só se fizeram tres edições , todas de pouco
preço. As inais celebres do seculo Xviii são : a Cominiana, a Romana
com o commento de Lombardi, e a Bodoniana cuidada por Dionisi .
Nos primeiros oito decennios d'este nosso seculo saíram a lume cerca
de duzentas, e cincoenta edições, entre as quaes distinguem-se a Pisana
CXC OBRAS MENORES

11
de 1804 ; a Livornese, de 1807 ; a Milanese, de 1809 ; a Romana, de
1815 e 1817 ; a Fiorentina, de 1817 e 1819 ; a Padovana, de 1822 ;
mais vezes reproduzida, a Udinese, de 1823 ; a Fiorentina, de 1837 ;
a de Mondovi, de 1865, e a microscopica Milanese, de 1878. Em
summa : de 1472 a 1500 fizeram -se 15 edições; de 1501 a 1600, 3 ;
de 1601 a 1700, 3 ; de 1700 a 1800 , 31 e de 1801 a 1882 , 257 : total
336, sem contar outras que estão no prelo, e outras que ainda se não
conhecem . Qual foi já o livro no mundo, que tivesse tido 336 edi
ções ? Não falo dos Livros Sanctos, de que são innumeraveis as edições ;
refiro -me a livro propriamente litterario, poetico, historico, philoso
phico, etc.
Commentos. -O trabalho dos commentadores da Dirina Comedia

‫܂‬
começou, apenas Dante fechou os olhos, e tem continuado até nossos
dias. Taes, e tantas são as profundezas theologicas, e philosophicas,
taes, e tantas são as difficuldades philologicas, e astronomicas, bem co
mo as allusões do sacro Poema , que o trabalho não está terminado de
todo . Em relação á antiguidade, os commentos mais importantes são
os do seculo xiv , quaes os de Jacopo della Lana, de Optimo, do Ano
nymo Florentino, de Pedro de Dante ( filho do Poeta ), de Boccaccio ,
de Benvenuto Rambaldi de Imola , e de Francisco Butti. No seculo xv
Guiniforte de Bargigi escreveu um commento ao 1.º Cantico, em
quanto que Landino escrevia outro de toda a Divina Comedia, que
adquiriu grande nomeada, em parte bem merecida. Do seculo xvi são
os commentos de Alexandre Vellutello, e de Bernardino Daniello de
Luca ; o primeiro é pouco mais ou menos um resumo do de Landino,
o segundo é original, e erudito . No seculo xvii os estudos dantescos
foram muito negligenciados, não havendo sequer um commentador do
divino Poema ! No seculo xviii escreveram commentos assás diffusos
Pompeo Venturi, e Francisco Baldassar Lombardi. Extensissima po
rém é a serie dos commentadores d'este nosso seculo, entre os quaes
Biagioli, Pagiali, Costa , Cesare, Tomaseo, Bianchi Fraticelli, etc. No
commento seu Scarttazzini, que muito me tem auxiliado, tentou elle
reunir, examinar, e ordenar todas as interpretações, que até hoje se
teem feito á Divina Comedia .
Mas ouçamos agora rapidamente o juizo competentissimo de J.
B. Giuliani, mestre dos mestres na interpretação de Dante Allighieri ,
a respeito, não só de alguns dos commentadores mencionados, como
de outros . Falando d'aquelles, que melhor tinham penetrado na men
te , e nos factos do soberano Poeta, diz : « Omittindo circumloquios,
direi , que os egregios Carlos Troya, Witte, Tomasĉo, Ozanam ,
Balbo, Torri, Betti, Ponta, Fraticelli, Blanc, e Augusto Conti, são
juizes de tão grande auctoridade, que ante elles os sinceros amigos de
DE DANTE ALLIGHIERI CXCI

Allighieri não se dedignaram de inclinar -se reconhecidos, e obsequio


sos ... «Jacopo della Lana, e Boccaccio, primeiros commentadores, não
foram tão felizes em suas interpretações, senão porque não se propo
zeram a explicar os segredos da Divina Comedia, sem primeiro inves
tigarem cuidadosamente os principios estabelecidos pelo Poeta em sua
epistola a Can -Grande. () mesmo fizeram Butti, Benvenuto de Imola,
Pedro de Dante , e seu irmão Jacopo, assim como Ottimo, e o Anony
mo Florentino. Filippe Villani , que depois succedeu ao Certaldese, isto é
a Boccaccio na leitura publica de Dante, reproduz grande parte d'essa
epistola, considerando - a com justo direito uma Introducção a toda a
Divina Comedia . O mesmo cuidado não tiveram os litteratos , que no
seculo xv começaram a commentar o sacro Poema ; por isso as suas ex
plicações fazem suppor, que ignoravam a existencia da epistola a Scali
gero, da l'ita Nuora , e do Convito. Em verdade , lendo -se o Commento
de Guiniforte de Bargigi, não se comprehenderá facilmente como tivesse
elle cimentado a sua obra sem um designio preciso, e resvalando por
um caminho mal seguro . Fala de allegorias, e se esbofa de toda a ma
neira possivel em descobrir-lhes o sentido occulto ; mas quem lhe assegu
rou que aquellas allegorias estivessem na mente do Poeta ? Occupan
do-se totalmente em particularisar minucias, volta muitas vezes ás
cousas já tractadas, ao passo que transcura o fazer-nos conhecer qual
é o Sujeito d'Allegoria do Poema , e de explicar o seu Fim principal .
Discorrendo sobre o Veltro allegorico, vê n'elle um sancto Homem ,
que não porá a sua affeição nos bens temporaes (che non metterà la
sua affezione a beni temporali); mas não nos esclarece de que modo
sancto Homem podesse aproveitar ao extraviado viajador (Viatore),
nem extinguir a antiga Loba malvada .... A este respeito , parece que
entrasse mais na mente do divino Poeta Christophoro Landino, o qual
dedicou o seu estudo aos tres Canticos da Divina Comedia com desejo
de investigar-lhe os occultos, e divinissimos sentidos (occulti e divinis
simi sensi). E como já tinha feito relativamente ao sentido allegorico
da Eneida, propoz-se tornar tambem manifesto o sentido allegorico
da Divina Comedia, empregando para esse fim tanta , e tal doutrina , e
facundia, que maravilham a todo o leitor intelligente. « Nós pois (as
sim escreve elle) , invocado o divino auxilio, emprehenderemos sulcar
tão amplo mar, e usaremos, quanto permittirem nossas forças, do of
ficio de fiel interprete. Nem somente delucidaremos o sentido Natural,
mas tambem o Allegorico, o Tropologico, e o Anagogico, os quaes tres
sentidos, porque têem entre si muita correlação , chamaremos todos
Allegoricos». D'estas palavras é licito conjecturar que Landino tivesse
noticia da Epistola de Dante a Can-Grande della Scala, si todavia
não se louvou na opinião de Boccaccio .
CXCII OBRAS MENORES

Landino, para as cousas florentinas é estimavel.


« A esta empreza, gravissima por si mesma, e digna dos cuidados
dos interpretes, consagrou - se Vellutello , e corajoso se abalançou a
leval - a a eileito ; chegando a persuadir-se de haver operado uma reforma
integral no texto da Divina Comedia com tanta precisão, que si o mesmo
Pocta resuscitasse, não a entenderia de outro modo! Mas, não obstante
essa sua firme crença , lhe faltou uma arte critica ellicaz , se não enge
nho , para descobrir a verdade entre os erros , e espessas trevas , que
a envolviam ... Entretanto, abundaram n'aquelles dias egregios enge
nhos, que illuminassem o caminho a seguir na fiel interpretação da
Divina Comedia, entre os quaes ninguem poderá recusar honroso logar
a Francisco Ridolfi, que, perguntado por Magallotti, quem poderia ser
considerado optimo commentador de Dante, respondeu n'estes termos :
« Quanto à perfeito commentador, nenhum conheço eu : Daniello é
abom , mas escasso ; Vellutello é copioso, mas por via de regra não
« satisfaz ; Landino para as cousas florentinas é estimavel; Butti , a certos
« respeitos vale um thesouro : emfim , o optimo interprete de Dante é o
aproprio Dante ...)
« Diligentes, e doutissimas são as glosas de Lombardi . Si não con
seguiu apresentar no seu verdadeiro aspecto a mente de Dante, aplai
nou o caminho para se chegar possivelmente a este resultado . Mas
Pogiali , que no começo do nosso seculo quiz voltar á prova, não fez
mais do que compendiar as cousas tractadas já por Lombardi. Nem
diverso caminho seguiu Portirelli; o qual, si bem affirme, que se
ateve mais estreitamente á edição de Nedobeato, não se vê, todavia,
que tenha prestado um serviço eflicaz á correcção, e explicação do
texto ... Biagioli, que se mostra convencido de ter frequentemente
adivinhado, e esclarecido o pensamento de Dante, não chegou a conhe
cer o modo , segundo o qual Dante costumava entender, e usar as
Allegorias. . . Alguns outros, entre os quaes prima Pompeo Venturi,
parece que se occupam da interpretação da Divina Comedia, mais
para impedir, do que para excitar o estudo d'ella . De quando em
quando exercem uma critica extravagante , desdenhosa das regras se
veras , e só facil para auxiliar o impeto da phantasia , não menos que
o capricho de favonear opiniões peregrinas ...
« Com efficaz remedio a tantos desvarios, acudiu Tomaseo com o
seu novo Commento, ordenado, e composto de modo, que intimidará
a todo aquelle, que posteriormente se abalançar a tão ardua empreza.
Em verdade, Tomasĉo, conforme se tinha obrigado, condensa restri
ctamente as cousas esparsas em muitos volumes : interpreta , citando
com frequencia, inclusive o mesmo Dante . A Biblia , Virgilio, São Tho
maz de Aquino, Aristoteles, são fontes a que recorre amiudadas vezes .
DE DANTE ALLIGHIERI CXCIII

Do Commento de Pedro, filho de Dante, aproveitou exposições, e allu


sões novas, e confirmou as que já eram conhecidas , mas não certas .
De Optimo, e de outros velhos commentadores, colheu sómente o
necessario : procurou na prosa antiga os exemplos d'aquelles vocabu
los , que até então pareciam licenças poeticas, e que se encontram no
toscano hodierno . Defende concisamente as suas novas interpretações,
sem magnificar-lhes a belleza : não abate as contrarias : escolhe as
mais simples.
Quanto ás lições do texto original, Tomasêo as conforma á au
ctoridade de muitos codices, sem sujeitar-se a nenhum . « A brevidade,
diz elle, é necessaria a quem quizer explicar um dos mais concisos
escriptores , que honram a Italia , e a natureza humana . »
O facto correspondeu dignamente á severa promessa do illustre
interprete; por isso o seu Commento se eternisará com a fama de
Dante !
Outro interprete eximio é o Principe João de Saxonia , que com
amoroso, e incessavel estudo, se propoz esquadrinhar, e meditar as
Obras de Dante , offerecendo á Allemanha, sob o nome de Philalethes,
uma optima traducção da Divina Comedia . Não se contentou só com
isto, escreveu um Commento assás rico de conveniente doutrina , espe
cialmente no que respeita ao Cantico do Paraiso, onde melhor bri
lham a sagacidade do seu engenho, e o profundo conhecimento dos
dogmas , e da moral christā ! Ahi avultam tambem algumas preciosas
noticias historicas, e algumas interpretações, que tornam recommen
davel aquelle trabalho aos italianos, que mostram não terem sabido
se aproveitar d'elle . »
Basta de extractos, bem que lhes ponha termo com muito pezar ;
pois desejava fazer conhecidos do leitor outros interpretes dantescos,
de cujo merito , e demerito, o sabio Giuliani continuou a discorrer com
aquella elevação de criterio , que lhe era propria . Não omittirei, toda
via , em declarar, que elle concluiu sua resenha critica -analytica, te
cendo os maiores encomios aos trabalhos de investigação do celebre
dantofilo allemão , Vitte, e verberando severamente as aberrações de
Rozetti, que no mais catholico dos poetas descobriu um predecessor
de Luthero !
Estudos especiaes.- Muito maior, que o numero dos commenta
dores, é o d'aquelles, que emprehenderam explicar cada um dos pas
sos, mais ou menos difficeis, da Divina Comedia, a qual, abrangendo
o tempo, e a eternidade , todos os ramos da sciencia humana concor
reram , e concorrem alternadamente, para dilucidar o sentido do todo,
e de cada uma das suas partes. Qual estuda codices, edições, e com
mentos antigos , para reduzir o Poema á sua pristina pureza : qual,
СХСІV OBRAS MENORES

Lit.
)1 u 11
percorrendo a literatura classica , e as lendas da cdade media, in

;Sin
vestiga si esta , ou aquellas , foram as fontes, que Dante attingiu :
qual pesquiza a verdadeira significação de muitos personagens sym
bolicos , e allegoricos do sacro Poema : qual esforça -se a esclarecer, e
systematisar a theologia, e philosophia da Divina Comedia : qual
tressua sobre as passagens historicas, e as allusões a cada um dos
acontecimentos: qual occupa -se da philologia : qual das sciencias as
tronomicas ou juridicas . Em summa, não ha ramo do saber humano,
que não seja, ou não creia ser uma das pedras fundamentaes de que
Dante fez uso na construcção de seu magestoso edificio ! Portanto , o
estudo de Dante tornou -se sempre tão vasto , e tão profundo, que a
vida de um homem mal bastaria para fazer um exame acurado de
tudo, que sobre Allighieri , e seu maximo Poema se tem escripto, e se
continuará a escrever. Os diccionarios dantescos até aqui publicados
são assás uteis , maxime para os principiantes. Mas, com relação ao
estudioso, que deseja penetrar nas profundezas da Divina Comedia,
seria mister um grande diccionario ( 1 ), em que fossem reunidos em boa
ordem, ao menos os principaes, e mais importantes fructos das fadi

!
gas dos seculos, e das diversas nações; fructos, que hoje é preciso
andar grangeando, e colhendo penosamente em centenares de volu
mes , e milhares de opusculos.
Ilustrações.— Sendo Dante o mais plastico de todos os poetas , os
artistas de todos os tempos, e os mais insignes, propozeram -se a re
presentar com o desenho, e com a pintura, as creações d'aquella alta
phantasia . Nos seculos xiv , e xv , embelleciam de soberbas iniciacs, e
de miniaturas, os codices da Divina Comedia . Depois da invenção da
iinprensa, á miniatura succedeu a gravura em metal ou em madeira,
de que se ornaram muitissimas edições, começando pela primeira flo
rentina, de 1481 , e progressivamente até as edições modernas de grão
luxo, com desenhos do francez Gustavo Doré, que sobrepujou a todos
no imaginoso da ficção. É pena que tivesse carregado tanto as côres
do retrato de Dante, fazendo- o parecer mais um Othello em furia, do
que um suave , e mansueto peregrino.
Entre os illustradores artisticos da Divina Comedia, distinguiu -se
no seculo xv Sandro Botticelli , no seculo xvi o grande Miguel Angelo ,
cujos desenhos, feitos sobre as largas margens da edição florentina de
1481 , perderam-se, por occasião de um furacão maritimo, vindo o
( 1 ) Em boa hora emprehendeu o erudito interprete Giacome Poletto o preen
chimento d'esta lacuna : temos já impresso o primeiro tomo de um Diccionario
Dantesco por elle elaborado. Creio que até ao fim d'este anno estará concluida a
impressão de toda a obra, que, a julgar pelo primeiro volume, será de summa im
portancia.
DE DANTE ALLIGHIERI CXCV

artista de Napoles para Livorno ; assim como Frederico Zuccheri,


e Giovanni Strada , conhecido por Stradano. Em 1600 , Bernardino
Poccetti dedicava ao grão duque de Toscana , Cosimo II , um com
mento bordado de pinturas . O seculo de 1700 apresentou a primeira
edição da Divina Comedia ricamente illustrada com 112 gravuras em
metal desenhadas por alguns artistas . No seculo actual destacaram- se
principalmente, como artistas illustradores do Poema sacro, o es
culptor inglez G. Flaxmann , os allemães Pietro von Cornelio, e
Carlo Vogel von Vogelstein, o referido francez Doré , os italianos
Luigi Ademolli , Francesco Nenci, Bartholomeo Pinelli, Boaventura
Ginelli , e sobre todos os outros , Francesco Scaramuzza , cujo gigan
teo trabalho é um esplendido commento pittoresco do Poema . Dis
se-me o auctor, que tinha presenteado este seu trabalho ao Imperador
do Brazil, que o acolhêra com reconhecimento .
Outros propozeram-se figurar a cosmographia dantesca , sendo o
primeiro entre estes Miguel Angelo Caetani, Duque de Sermoneta .
Infinito , pois , é o numero de télas , frexos, e esculpturas , cujo as
sump to foi tirado da Divina Comedia; desenhos , gravuras, e illustrações
de cada uma das scenas, e passos do Poema: pinturas, e medalhas
referentes á vida de Dante ; de modo que nenhum livro, á excepção
da Biblia, foi tantas vezes , e por tantos artistas illustrado, quanto o
livro monumental de Allighieri !
Traducções.- () monge Olivetano, Matteo Ronto , que falleceu
vinte e dois annos depois da morte de Allighieri , traduziu a Divina Co
media verso por verso, em hexametros latinos. No seculo xv, Andréa
Feber traduziu-a por inteiro em rimas vulgares catalanas , e um ano
nymo deixou uma traducção provençal em verso, e no mesmo metro
que o original italiano . Vieram depois os allemães , e inglezes, que na
segunda metade do seculo xviii emprehenderam a versão do sacro
Poema em seus respectivos idiomas.
No seculo actual as outras nações civilisadas imitaram o exemplo.
Hoje a Divina Comedia lê-se em dezenove linguas diversas, e em scis
dialectos italianos ! Algumas nações, como a França , a Allemanha , a
Inglaterra, e a Hollanda, honram -se de um numero mais ou menos
grande de traductores, e traducções diversas . Prima entre todas a
Allemanha, a qual, alem de uma grande quantidade de traducções
parciaes, isto é, de passos escolhidos em cada um dos tres Canticos,
possue quatorze diversas traducções de todo o Poema, que tiveram
trinta e nove edições. Entre os seus traductores, a Allemanha enumera
com orgulho um augusto soberano (o Rei João de Saxonia), que não
só traduziu a Divina Comedia com insuperavel mestria , como foi dito
em outro logar ; mas tambem fél -a acompanhar de um commento , que
CXCVI OBRAS MENORES

deve ser collocado ao nivel dos melhores, e mais eruditos, que se co


nhecem ! Não é só a Europa, que se occupa do Poema dantesco. É
elle traduzido e lido na America do Norte, na Asia , e n'outras partes
do mundo. Repito : afora a Biblia, nenhum outro livro tem sido tradu
zido por tantos, e tão diversos homens, em tantas, e tão diversas lin
guas ! Cesar Cantú enumera assim as edições , e traducções da Dirina
Comedia :
22 edições , no seculo XV ; 42 , no seculo xvi; 4, no seculo XVII ;
36, no seculo XVIII; mais de 150, na primeira metade do nosso ; 16
traducções latinas ; 35 francezas; 20 inglezas ; outras tantas allemās ;
duas hespanholas ( 1 ) , 55 illustrações de desenhos ou de pinturas (Hist.
da Lett. Ital., p . 79, em nota .
Enumerando estas diversas traducções em tão diversas linguas, é
impossivel, que eu deixe de lastimar, que só na mimosa lingua portu
gueza, não tenha sido traduzida a Divina Comedia ! É doloroso ouvir
as seguintes palavras de um sabio critico italiano : «Nella lingua di
Camoens non si ha ancora una traduzioye dell'intiera Commedia Di
vina; ben ne furono tradotti parecchi squarzi. Ne citiamo soltanto duen .
O canto vi da Iliada, e os dous primeiros cantos do Inferno, tradu
zidos por Antonio José Viale, Lisboa , 1854, in 4.°— Traducção do
canto v do Inferno de Dante, por Antonio José Viale, Lisboa, 1857 ,
n 8. ° (S. A. Scartazzini, p . 281).
Com effeito , alem d'estas brilhantes tentativas dantescas, que, le
vadas ao cabo, seriam um monumento de gloria para o crudito
sr. Conselheiro Antonio José Viale, para as letras patrias, e para o
auctor da Divina Comedia ; temos alguns outros ensaios, que morre
ram em fôr, sendo o primeiro que os iniciou o laborioso escriptor, o
sr. Silvestre Ribeiro, e ultimamente o mallogrado Dr. Ennes, que se
me informa ter traduzido até o canto v do Inferno.
() sr . João de Deus tambem traduziu em lindos versos o episodio
de Francisca de Rimini .
Versões hespanholas:
1.9 versão , terceto a terceto , em dialecto catalão, por Mateu An
dreu Fabrer, aguazil maior do Rei Alonso V, concluida em 1428. O
manuscripto d'esta versão se conserva na bibliotheca do Escurial.
( y-ij-18). Têm -se publicado tão somente alguns excerptos .
2. D. Henrique de Aragão, ou de Vilhena, no proemio da sua
traducção da Eneida, de Virgilio, diz ter feito a traducção da Divina
( 1 ) Adiante se verá que tem havido maior numero de tentativas de traducções
da Divina Comedia , na Hespanha, segundo uma nota, que ao illustrado sr. Conse
lheiro Deslandes, diligente investigador das cousas de Dante, ministrou o talentoso
escriptor Menendes Pelayo.
DE DANTE ALLIGHIERI CXCVII

Comedia de Dante, a pedido de D. Inigo Lopes de Mendoça, correndo


o anno de 1428. Não é conhecido o manuscripto ; conjectura -se, porém ,
de que fosse em prosa a versão .
3.a Um auctor anonymo, do seculo xv, traduziu tambem em cas
telhano, e em prosa, o canto i do Inferno, com o titulo de Comedia
de Dante. O manuscripto d'esta versão se conserva na bibliotheca do
Escurial (S-ij- 10).
4,4 A traducção de Dante, de lingua toscana em verso castelhano ,
pelo reverendo D. Pedro Fernandez de Villegas, Arcediago de Burgos,
por mandado da senhora D. Joanna de Aragão, Duqueza de Frias ,
etc. ; impressa em Burgos por Fradique Allemão de Bogidea, no anno
de 1515. Esta versão é tão somente do Inferno. É obra rara. O texto,
sem notas, se reimprimiu em Madrid, no anno de 1868.
5.a Quasi que no mesmo anno, fez outra traducção em castelhano
do Dante, Hermão Dias, creado do Marquez de Astorga. D'esta só
mente se publicou um excerpto na obra intitulada Vida e excellentes
feitos dos mais sabios philosophos que houve n'este mundo ; impressa em
1541 .
Não ha noticia de que nos seculos XVII, e xviii se fizesse versão
alguma das obras de Dante . Eram pouco conhecidas e lidas então em
Hespanha.
6.9 No anno de 1868 publicaram - se em Barcelona dous fasciculos
de uma traducção em verso , que parece ter concluida o Conde de
Seste, D. João de la Pequela. Nenhum mais se publicou depois .
7.1 D. Manuel Aranda y San Juan publicou em Barcelona, em
1868, uma traducção em prosa de toda a Comedia de Dante . Esta
traducção não parece ter sido feita do original italiano, mas de uma
traducção franceza. Fez-se nova edição d'esta versão na mesma cidade ,
em 1873 , em 8.", com estampas , corrigida pelo traductor.
8.2 D. Caetano Rossell fez uma traducção completa, em prosa,
com notas, que se publicou em Barcelona em 1869, illustrada com
estampas , desenhadas por Gustavo Doré.
9.2 D. J. Sanchez Morales fez uma traducção livre , que se publi
cou em Valencia ; em 8.' , correndo o anno de 1875 .
Traducção das Obras menores. - Era muito natural, que, tendo
sido as Obras menores de Dante desprezadas na propria Italia , o
fossem tambem pelos outros povos; de maneira que, com poucas ex
cepções, permaneceram ellas desconhecidaspor espaço decinco seculos!
Eis explicada a causa dos muitos erros, commettidos na interpretação
da Divina Comedia ; erros, que seriam evitados, si as Obras menores
de Dante, indispensaveis á intelligencia do seu Poema, tivessem sido
conhecidas emtempo, ou não havidas em desprezo por tão largo es
CXCVIII OBRAS MENORES

Vi
paço . Vem a proposito citar estas palavras de um critico, lamentando
o desprezo do estudo d'estas Obras : « Questo studio fu negletto lungo
tempo, quasi avesse il sole, che é la Commedia, oscurate le stelle, che
sono le opere minori». Bellissima comparação do Sol com a Dirna
Comedia, e das estrellas com as Obras menores, que lhe formam o
cortejo , como as estrellas ao Sol ! Excepto o Conrito, que foi impresso
a primeira vez em 1490, as Obras menores não se imprimiram senão
nos seculos XVI , XVIII, e xix . E si bem que reunil -as em um só corpo
parecesse empreza muito natural, todavia essa empreza não foi ten
tada, senão por volta da metade do seculo xviii, pelo Florentino Antonio
Maria Biscioni, cuja edição permaneceu incompleta ; e incompletas
permaneceram tambem as edições successivas de Zatta , de Ciardetti,
e de Torri. As edições, que comprehendem todas as Obras menores
de Allighieri, não são até o presente, senão duas : uma, muitas vezes
reimpressa, foi cuidada pelo benemerito dantofilo Pietro Fraticelli ;
e a outra , ricamente commentada, é devida aos esforços do incansa
vel J. B. Giuliani, o summo sacerdote no templo do culto de Dante.
A Trilogia historica, e litteraria.- As tres phases do desenvol.
vimento do animo, do engenho, e do conceito de Dante, espelham -se
nas suas Obras, escriptas em diversos tempos da sua vida. N'aquellas ·
do primeiro periodo, isto é, em uma parte das poesias lyricas, e na
Vita Nuova, vemos um homem que, não se tendo ainda desviado do
verdadeiro caminho; não tendo tambem perdido a sua innocencia , mar
cha direito, guiado por um amor castissimo , e purissimo, ao amor do .
Summo Bem , mira suprema de todas as aspirações da alma. A paz
celeste, a fé filial, esperança, caridade , e bella liarmonia, exhalam re
cendente aroma por toda a parte, nos versos, e na prosa. Os seus
carmes não são somente uma allegoria da ingenua confiança em Deus,
da fé simples, que não é ainda temperada no fogo da duvida, e das
luctas internas, da esperança firme, e serena, que não tem experimen
tado ainda os dolorosos desenganos da vida : os seus carmes são , ao
contrario, a genuina vivissima expressão da fé, da esperança , e da
caridade. Por toda a parte, nas cousas mais simplices, e naturaes, nos 19

leves acontecimentos, que outros chamariam casuaes, o Poeta vê o


Dedo d'Aquelle, que tudo move, rege, e governa . Em uma epocha ,
em que fervem universalmente as rixas sangrentas dos partidos , e
n’uma cidade retalhada por odios, Dante não tem um inimigo : em seu
coração arde a chamma de caridade sancta , que lhe faz esquecer, e
perdoar todas as offensas recebidas . A belleza , e a virtude d'aquella,
que elle ama, lhe são um penhor de graças maiores . Quem fala a
Beatriz, não pode acabar mal ; tanta é a graça , que de Deus recebe,
por intercessão d'ella .
DE DANTE ALLIGHIERI CXCIX

Mas já a segunda parte da Vita Nuova começa a revelar-nos outro


homem . Não mais a fé ingenua , mas uma dor desesperada ; não mais
a bella paz, e harmonia ; mas luctas , mas combates internos com dôr,
e tentação. E depois vemol- o aprofundar-se no estudo da sciencia hu
mana , que o absorve totalmente. Nem é só a Philosophia propria
mente dita , que o attrahe a si . Já tornando- se orgulhoso do seu saber,
e crendo-se agora conhecedor das cousas, despreza com certa irrisão
d'aquelles, que o admiram . Elle mesmo acredita ter visto outras ve
zes as cousas somente pela superficie; agora , ao contrario, gaba -se de
ter visto melhor os seus fundamentos. E eil-o a examinar, e desen
volver no tractado da Monarchia as doutrinas concernentes ao Estado,
e as relações entre este, e a Egreja : eil -o esforçando -se nos livros de
Tolgare Eloquenza, a esclarecer o vulgo das gentes, que passeiam pelas
praças , pensando muitas vezes serem as cousas posteriores, anterio
res. E volvendo os olhos ao passado , e reflectindo no que elle havia
escripto um dia , envergonha-se, e receia de ser censurado por quem
ler as suas amorosas canções. Depois impunha a pena, para explical-as
allegoricamente , e escreve o Convito, a apotheose da Philosophia.
Em todas estas Obras do segundo periodo , vemos , não já o ho
mem incredulo, não o homem privado de fé, e de caridade : mas o
investigador envolvido na duvida, e nas luctas inseparaveis d'ella ; o
homem , que vae procurando a verdade pelas veredas indicadas pela
razão humana , subtrahindo- se á guia da divina Revelação.
Na Divina Comedia, finalmente, a epopea da Redempção, e da
Fé, vemos o homem, que procurou, e achou; achou, não já andando
por aquelles caminhos, trilhados pelos homens, que vam philosophan
do ; mas, voltando para traz, e retomando a estrada esclarecida pela
luz da Revelação. E vemos ao mesmo tempo o homem , que colhe os
fructos do seu labor, que com os materiaes reunidos, construe o seu
sumptuoso edificio , monumento duradouro de gloria perenne. Aquelle
homem , que traçou em caracteres de ouro a Divina Comedia, comba
venceu
teu , e .
Assim como, pois, na vida de Dante, temos uma trilogia, temol-a
tambem nas suas Obras . Nas rimas da Vita Nuova, nas outras rimas
contemporaneamente escriptas, e na primeira parte da Vita Nuova, o
amor puro , e pacifico , a ingenuidade, a innocencia . Nas rimas philo
sophicas , nos ultimos capitulos da Vita Nuova, na Volgare Eloquenza,
no Convito, e em algumas Epistolas, a lucta com a duvida, o enthu
siasmo scientifico , que acima de tudo põe o humano saber, o orgulho
philosophico, que se lisonjeia de poder ver todas as cousas somente
com os olhos da razão, e que de alto abaixo encara com desdem todo
aquelle, que nasciencia humana se tica atraz . Na Divina Comedia, a
M
СС OBRAS MENORES

paz readquirida, a certeza , que tem por seu fundamento, não só a


sciencia humana, como a illuminação, que vem do alto : a fé contir
mada pela sciencia.
Os dous periodos de transição.- Não em um instante, mas pouco
a pouco , muda o homem as suas idéas , os seus conceitos , a sua di
recção , seja politica , ou philosophica, ou moral, ou religiosa . Dante ,
homem grave, que da coherencia dos principios formava o toque mais
bello do seu caracter, não passou de salto de um a outro extremo,
mas gradualmente passou , quasi sem saber como, da fé ingenua á
duvida, nascida das especulações philosophicas. Nem subitanea foi a
sua passagem da duvida á fé illuminada ; tambem essa passagem foi
gradual atravez de luctas, e de combates interiores. Temos, portanto ,
na sua vida dous periodos, mais ou menos longos, de transição, os
quaes, si são reaes , e não imaginarios, reflectirão egualmente em suas
Obras. Com effeito , já nos ultimos capitulos da Vita Nuora, vemos
iniciar-se a passagem gradual para uma nova direcção intellectual.
Nas Rimas philosophico-amorosas, depois, lá onde o Poeta se queixa
amargamente da dureza, e aspereza d'aquella sua Donna, que no
Couito elle aflirma de modo solemne ser a Philosophia , espelham -se
as luctas, que sempre se hão de sustentar em um periodo de transi
ção . A passagem é completa no Convito, onde a dillerença das Rimas
philosophico -amorosas, e quasi em contradicção comsigo mesmas , a
Donna -Philosophia já não é aspera , e dura, mas tão doce , que em
todo o tempo gera contentamento de animo, e em cujos olhos, e en
cujo riso, isto é , nas suas demonstrações, e persuasões, experimenta-se
aquelle prazer altissimo de beatitude, que é o maximo bem do Paraiso ;
prazer, que em outra cousa da terra não pode existir, se não no con
templar aquelles olhos , e aquelle riso .
O segundo periodo de transição , pois , isto é, da duvida á fé illu
minada, e affirmada pela sciencia , reflecte-se , não tanto n’aquillo, que
o Poeta deixou escripto ( como nos dous primeiros Canticos da Divina
Comedia ), quanto n'aquellas Obras por elle começadas, e depois dei
xadas imperfeitas; facto este, que não encontra outra satisfactoria ex
plicação, senão admittindo o outro facto, que n'este meio tempo a
mente de Dante , o seu animo, o seu engenho, o seu conceito, segui
ram uma nova direcção .
Musicographia.- Toda a Divina Comedia , formando um admira
vel côro de harmonia, era natural, que logo se começasse a pôr em
musica algumas das suas partes. Não sem fundamento se crê, que o
musico florentino Casella, contemporaneo , e amigo de Allighieri, lhe
pozesse em musica as mais bellas das suas Canções. ( ) pae do grande
Galileo Galilei , sobre um corpo de violino exactamente tocado , cantando
DE DANTE ALLIGHIERI CCI

um tenor de boa voz intelligivel , fazia ouvir os lamentos do Conde


Ugolino de Dante . Este mesmo episodio lugubre foi posto em musica
por Gaetano Donizetti , pelo peregrino Francisco Morlacchi, por Ni
coláo Zingarelli, e por Angelo de Giulio : a Francesca di Rimini foi
tambem posta em musica por G. Rossini, por G. Mozzagari, por
Francesco Mazza, etc.; a Pia, por F. Marchetti; a Sera ( Purgatorio,
VIII , e seguintes), por Schumann. Copiosos são egualmente os hymnos
a Dante, as symphonias, e as lyricas do Poeta , postas em musica , e
cantadas em solemnes reuniões.
O INFERNO
INTRODUCÇÃO AO CANTO I

Dante, nascido em Florença em 1265, desde a tenra edade de 9 annos, affeiçoou -se
á Beatriz, menina de 8 annos, tão formosa quanto innocente , a qual o manteve
no recto caminho até os 25 annos ; isto é, desde os 9 até os 25 annos, Dante amou
o estudo da sciencia divina de preferencia a todos os outros estudos, e esta scien
cia o conservou firme na religião, e na virtude. Nos seus 25 annos, em 1290, mor
reu -lhe Beatriz, e elle, inconsolavel, entregou-se desesperado ao amor de outras
damas, no amor das quaes permaneceu até os 35 annos, ou até 1300 ; isto é, nos
seus 35 annos, querendo Dante entender os mysterios da sciencia divina, e não
podendo penetrar nos seus arcanos, com desprazer a abandona, e se dá ao estudo
das sciencias profanas, e assim, perdida a luz divina, que o guiava no bom caminho,
tornou-se presa de paixões viciosas, que por um decennio o arrastaram a todos os
excessos reprovados pela razão, e pela moral. Mas, em 1300, no perfazer dos seus
35 annos, meio caminho ordinario da peregrinação terrestre do homem , adverte
que, tendo-se extraviado da senda verdadeira, dera accordo de si no meio de uma
selva escura, e muito selvagem, e muito aspera, e de muito difficil saída, isto é,
conheceu que se achava n’um labyrintho de erros inextrincaveis, e de paixóes tor
pissimas humanamente invenciveis. Escapando a grande custo d'esta selva, vae dar
comsigo ao pé de um monte ameno , graciosamente illuminado pelos raios do Sol,
cuja bella perspectiva tenta - o a subir ao cume ; mas aos primeiros passos é impe
dido por tres animaes ferozes : uma Onça, um Leão, e uma Loba ;isto é, tendo dado
todo o desafogo ás suas paixões, toda a liberdade ao seu pensamento, chegou por fim
a tal cumulo de incredulidade, e de cegueira, que, aguilhoado pelos remorsos da con
sciencia, e pelas inquietações do espirito, fezproposito de voltar á fé, á honestidade,
á virtude ; mas n’este seu designio foi obstado por tres fortes paixões : a lascivia
figurada na Onça, a soberba no Leão, a Avareza (ou barbarie) .na Loba ; e esta ul
tima, sobretudo, lhe movia tão crua guerra, que o obrigava a retroceder da subida
do monte, symbolo da virtude, e de novo o impellia para a selva, symbolo dos
vicios. Mas, n’esteperigoso transe, apresenta-se-lhe Virgilio, Principe dospoetas
latinos
, seu auctor predilecto, que se lheofferece, paratiral-o d'aquelladeserta
encosta, fazendo - o seguir pelo Inferno até o Purgatorio, sob promessa de que lá
encontrará Beatriz, que o conduzirá até o Paraiso; isto é, a razão, symbolisada
em Virgilio, diz a Dante, que não ha outro meio de superar as suas paixões vicio
sas, e de converter -se sinceramente, se não meditar no Inferno e no Purgatorio ;
porque o terrivel espectaculo das penas do Inferno o conservará no proposito
denão peccar mais, dispondo-o para a conversão:o espectaculo não menos ter
rivel daspenas do Purgatorio, o resolverá a punir em siospeccados commettidos,
4 O INFERNO

satisfazendo de antemão com voluntaria penitencia a Justiça Divina offendida; e


que assim, livre do peccado, e do affecto do peccado, poderá subir ao Paraiso, e lá
contemplar a Belleza Suprema. ‫با‬.

O conceito capital, pois, da Divina Comedia é a conversão do peccador pela


meditação das verdades eternas; e por isso a Divina Comedia é Poema epico, do
mesmo modo que a Iliada de Homero , a Eneida de Virgilio, a Jerusalem de Tasso,
os Lusiadas de Camões, etc. A idéa da reorganisação politica, por meio da Monar
chia Universal, actua secundariamente no desenho da obra. Assim , portanto, as
cousas principalmente contadas por Dante em aureos versos são as verdades eter
nas, os mysterios sublimes da Religião, e as demonstrações theologicas baseadas
nos ensinos de S. Thomaz de Aquino sobretudo. Entram depois a Philosophia,
a Politica, a Astronomia, e a Physica aristotelica ; e as allusões aos factos, aos usos,
ás superstições do seu seculo, são apenas puros accessorios ; e por isto ainda que
atten
alguma das ditas allusões permanecesse inexplicavel, o que eu contesto ,
tos os progressos da critica paciente, e acurada dos tempos hodiernos ; todavia não
deixaria odivino Poema de ser entendido, nem de ter attingido o seu fim moral. É 2
pena que Lamartine commettesse o erro de qualificar Dante o Cantor da plebe thea
tral de 1300, e que , para comprehendel-o, seria necessario fazel - a resuscitar, para
explical-o ! Dormitou o grande Lamartine, como dormitou o grande Homero ! Si
Dante tivesse cantado somente os costumes da plebe de seu tempo, não seria o
Poeta de todos os tempos, de todas as nações do mundo, onde o seu immortal Poema
tem sido admirado por todos os sabios, e traduzido em todas as linguas ! Não seria Sa
w

o Cantor do Christianismo, o Cantor das estrellas, gracioso symbolo da Eternidade !


Sim, do seu Inferno saímos para rever as estrellas, e do seu Purgatorio saímos
renovados, e dispostos a subir ás estrellas, e do seu Paraiso nos movemos concor
demente para o supremo Motor das estrellas . Após a leitura, o estudo, a meditação
do seu Poema, como que se ouve a voz do futuro annunciar, que elle será lido, e
preconisado emquanto no céo brilharem as estrellas ; porque as estrellas são o mais
eloquente pregão de suas bellezas poeticas, artisticas, philosophicas, e moraes.
Na interpretação dos passos obscuros tenho tomado sempre por norma esta con
sideração - Dante, poetando, raciocina : logo, no que elle diz, ha premissas. Estas
premissas hão de ter conclusão. Si no sentido litteral não encontro a solução de
vida (não se tratando da solução obviamente historica), encontral-a-hei sem duvida
no sentido allegorico, ou moral, ou anagogico. Da falta d'esta observação fundamen
tal tem nascido muita interpretação erronea, que inverte, e transverte o pensamento
do Poeta, esparso não só na Divina Comedia, como em todas as suas obras meno .
res, que infelizmente são pouco estudadas, si não desconhecidas por muitos. Na
celebre Epistola a Can Grande Scaligero traçou elle os principios, as regras, ou o
methodo de commentar o seu Poema, como que já receiando que muitos dos seus
expositores, ou por má fé, ou levados do prurido de alardear invenções subtis, e
ambiciosas exhibições eruditas, lhe houvessem de desvirtuar o genuino conceito .
Vejamos o que elle diz na sobredita Epistola : « Para clareza, portanto, das cousas
que se devem dizer a respeito do meu Poema, cumpre que se saiba que esta Obra
não tem um só sentido, mais antes se pode chamar polysema, isto é, de muitos sen
tidos. Porquanto o primeiro sentido se toma pela lettra, o segundo pelas cousas si
gnificadas pela lettra. E o primeiro se chama litteral, o segundo allegorico, ou mo
ral, ou anagogico. Para melhor se comprehender, darei aqui um exemplo n'estes
versos biblicos : In exitu Israel de Ægypto, domus Jacob de populo barbaro, facta est
Judæa sanctificatio ejus, Israel potestas ejus. « Quando Israel saíu do Egypto, a casa
de Jacob, do meio de um povo barbaro, consagrou Deus a Judéa ao seu serviço , e
estabeleceu em Israel o seu imperio» . Si attendermos só á lettra, este texto signi
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 5

fica a saída dos filhos de Israel do Egypto, no tempo de Moyses ; si attendermos


á allegoria, nos demonstra a nossa redempção operada por Christo ; si o sentido é
moral, exprime a conversão da alma do lucto, e da miseria do peccado para o estado
de graça ; si o sentido é anagogico, significa a transição da alma santa da corrupção
presente para a liberdade da eterna gloria. E se bem que estes sentidos mysticos
tenham varios nomes, todos geralmente se podem chamar allegoricos, sendo diver
sos do litteral ou historico ; visto como a allegoria deriva do alleon grego , que em
latim significa alheio ou diverso » (1).
N'outro paragrapho da mesma Epistola , declara Dante Allighieri, que a fórma,
ou o estylo de cada um dos Canticos da Divina Comedia é poetico, ficticio, descri
privo, digressivo, transumptivo, alem d'isto, definitivo, divisivo, probativo, reprobativo,
positivo de exemplos.
Com effeito, quem lê, estuda, e medita a Divina Comedia com a devida atten
ção, reconhece a fidelidade com que o Poeta preenche estas condições. Afóra
os Livros Santos, não ha obra em que se observe tanta cohesão de idéas como
no sacro Poema. Dante é coherente, desde o primeiro verso do Cantico do In
ferno, até o ultimo do Cantico do Paraiso. Pode haver desegualdade no estylo,
conforme o assumpto de que trata ; mas desegualdade no pensamento, em rela
ção ao intuito principal do Poema, duvido que se lhe possa notar. Não ha um
verso, um terceto, que se ache em desharmonia com o todo. Dante,philosopho-poe
tico, segundo a expressão de Marsilio Ticino (2) , Dante, mestre, e fundador da civi
lisação italiana, quiçá de toda a Europa , é o Dante de todos os seculos. Quem
esquadrinha com perseverante reflexão os dois primeiros cantos, que formamo
prologo da divina Epopéa, conhece logo que o altissimo fim do Poeta é levantar
um eterno monumento á regeneração intellectual , e moral da humanidade envile
cida. Muitas, muitissimas das explicações até hoje dadas ás allegorias, que se
encontram n'estes dois cantos, não correspondem á sublimidade do scopo a que
o Poeta e o Poema collimavam. Dante queria civilisar o seu seculo, era de razão
fazel- o . Este generoso pensamento se lhe offerece sob a miragem seductora de um
monte deleitoso, e bello, que logo tenta subir, deixando atraz de si o deserto valle,
a selva selvagem, aspera, e forte. Mas encontra, como ficou dito, tres grandes
obstaculos, contra os quaes a força humana era impotente. O maior era a barbarie,
(personificação complexa da Loba ). Finge, pois, que, tendo, por cegueira voluntaria,
se desviado do caminho da razão, e da sã philosophia , deu accordo de si no
meio de uma sociedade contaminada de vicios horrorosos : finge que, para po
der saír d'ella, necessita do soccorro do Virgilio, o qual reune ás proprias forças
as de Beatriz. E assim como Eneas, ainda em corpo e alma, desceu ao Inferno
conduzido pela Sybilla, a fim de aprender lá o segredo de fundar a alma Roma, e
civilisar o seu vasto imperio; assim Dante, para reconstruir a civilisação italiana
decaída, e eleval- a ao nivel das passadas civilisações, emprehendeu a imaginosa

( 1) Ad evidentiam itaque dicendorum sciendum est, quod istius Operis non est simplex sensus, imo dici
bitur polysemum , hoc est plurium sensuum. Nam primus sensus est,qui habitur per litteram , alius cst qui hc
potest
per significata per litteram . El primus dicitur litteralis, secundus vero allegoricus, sive moralis, sive
anagogicus. Quimodus tractandi, ut melius pateat,potest considerari inhis versibus: In exituIsraelde
Ægypto, domus Jacob de populo barbaro,facta estJudæa sanctificatio ejus, Israel potestas ejus» . Nam si lit
teram solam inspicimus, significatur nobis exitus filiorum Israel de Ægypto, tempore Moysis ; si allegoriam,
nobis significatur nostra redemptio facta perChristum ; si moralem sensum ,significatur nobis conversio
animæ de luctuet miseria peccati ad statum gratiæ ; si anagogicum ,significaturexitusanimæ sanctæ ab
hujus corruptionis servitute adæternæ gloriæ libertatem . Etquamquam isti sensusmystici variis appellantur
nominibus,generaliteromnesdicipossuntallegorici,quum sintalitteralisivehistoriali,diversi.Namalle
goria dicitur ab alleon græce, quod inlatinum
dicitur alienum ,sive diversum ».-Epistola a Can Grande, p. vn .
(2) Veja-se a prefação àsua traducçãodo livro De Monarchia.
6 O INFERNO

viagem . É incontestavel, pois, que a selva d'este primeiro canto, representa o seculo
incontinente, bellicoso, e barbaresco de Dante, assim como Dante representa a hu
manidade no seu declivio moral, e proxima perdição. Egual conceito é ligado á
selva allegorica pelo celebre Rossetti, quando diz que ella não era outra cousa, se
não o seculo inculto, o seculo viciado pela ignorancia .
Vimos que a Onça symbolisava a lascivia, que effectivamente era um dos vicios
dominantes do seculo de então. Um chronista do tempo diz que os alcouces eram
tão numerosos, quanto as hospedarias ( osterie ). Os soberanos temporaes, quer da
jerarchia civil, quer da ecclesiastica, recebiam sem dedignação o tributo, que lhes
pagavam as publicas meretrizes (1), e com esse tributo pagavam-se os salarios dos
professores das universidades, e as rendas dos conventos das virgens consagradas
ao serviço do Senhor (2) . A republica de Veneza estabelecia prostibulos com de
cretos do senado (3) . Em Bolonha, nos seculos xiv e xv, eram expressamente no
meados para dirigir os lupanares magistrados publicos, chamados prefeitos de
tabellas ; e da mesma sorte em Padua, Verona, Vicencia, Milão, etc. (4) . Quando
Francisco de Carrara desbaratou os Veronenses em Brentille, achou no campo de
batalha 120 meretrizes (5) . Os cidadãos de Verona supplicavam a Can Grande Scali
gero, que lhes concedesse a Arena, para a converterem em prostibulo (6) . Mas,
o sumptuoso alcouce chamado abbadia de Tolosa, e a casa de prazer, erecta em
Avinhão por decreto imperial de Joanna, Rainha de Napoles, são dois monumentos
historicos, que de per si bastam para caracterisar um vicio, que se tornou profis
são publica, e instrumento de espantosa corrupção, que recordava o tempo de libi
dinagem summa a que chegou Roma, contra a qual bradaram Horacio, Juvenal, e
Marcial, em satyras fulminadoras ! A Historia offerece-nos muitos exemplos, de que
as devassidões voluptuosas andam sempre inherentes aos tempos, em que o espi
rito, e a actividade dos povos se voltam totalmente para a paixão bellicosa. E talvez
por esta razão facto , a sabedoria dos mythos antigos consorciára Marte com
Venus, para apparentar decencia.
As republicas italianas, em verdade, nutriam-se da febre tumultuaria da guerra.
O amor commandava a espada, e a espada o amor . Os moveis das casas, as publi
cas insignias, os ornatos dos cidadãos, os espectaculos populares, tudo respirava
guerra, e sêde de sangue. O espirito guerreiro, bem que fosse germen de grandes
virtudes, e das unicas, que tenham dado vida historica aquelles seculos tenebrosos,
era todavia obstaculo forte ao renascimento da rectidão civil. E este segundo ele
mento de desordem profunda nas cousas sociaes de seu tempo, sobretudo na Italia ,
Dante symbolisava no Leão. A nobreza do animal escolhido para esta allegoria
confirma a opinião de que Dante queria conservadas, mas unidas, as espadas, e as
forças na Italia. Isto explica o motivo por que lhe não causou demasiado terror a
presença da Onça, e do Leão; porquanto, sendo a primeira symbolo do amor, e o
segundo symbolo da força, podiam estes dois elementos transmutar-se em boas
bases de reorganisação civil, quando fossem despojados dos vicios, que os infecta
vam. Abominavel, porém, e horrendissima, foi ao Poeta a presença da Loba.
Que outro caracter primitivo tinha o seculo de Dante, alem dos dois mencionados ,
que a Onça, e o Leão podessem perfeitamente representar ? A ferocidade, a bruteza,
nascidas da força marcial, alimentadas pela ignorancia, e a lascivia. O terceiro cara
(1) Raynald, continuador dos Annaes Eccl. de Baronio até 1353.
(2) Facciolati , Fasti Gyntnas. Patav., tom . I , p. 23.
(3) Gallicioli, Cose venele antiche, tom. vi , p. 150.
(4) Mittarelli , Suppl. ad script. rer. italic. Muratori, p. 793 .
(5) Facciolati , op. cit.
(6) Carli , Storia della città di Verona, tom. v, p. 272.
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 7

cter já ficou designado complexamente na barbarie. Estes tres caracteres acham-se


em todo o povo nos periodos da sua civilisação enferma, e costumam reproduzir-se,
ora mais, ora menos apparentes, e duraveis, nos primordios da regeneração civil.
E bem que hoje se pretenda cravejar de ouro, e de perolas o ferrenho pedestal,
em que assenta a ominosa estatua da edade media , as manchas negras, e espessas,
que o infamam não serão jamais obliteradas na memoria dos homens ! Bonifacio,
Conde de Savoja, conservado em cadeias por um anno, e depois morto barbara
mente ; o Marquez de Monferrato, preso, e encerrado n'uma gaiola de ferro exposto
á irrisão publica, e onde, depois de 18 mezes, pereceu de ignominia, e de martyrio
lento ; o veneno propinado na Eucharistia ao heroe Henrique de Luxemburgo ; o
envenenamento de Benedicto XI pelos Cardeaes em Perugia, segundo a fama; Cle
mente V, que partilhava com Filippe o Bello os despojos dos Templarios (1) ; as trai
ções, e traidores mencionados por Dante nos ultimos cantos do Inferno; a horrivel
morte de Ugolino, e de seus filhos, eterno opprobrio de Pisa ; e tantos outros
factos, não practicados por homens, mas por carnífices, attestam superabundante
mente qual fosse a barbarie, que tornava cada vez mais espessa, aspera, e forte
aquella selva selvagem .
Ora , em confronto d'este mal gravissimo universal, que vulto podia fazer o
egoismo Papal, e outros mediocres pretextos ? O pensamento de Allighieri, no
scopo do seu Poema, era universal. Esse pensamento vasto , e generoso, si tinha
um limite, um centro, não era de certo o da patria, ou o mar, e os Alpes, que a
circumdavam . As torpezas voluptuarias, os odios encarniçados, as discordias san
grentas , a barbarie, em summa, eram as tres feras, que o impediam a subir o delei
toso monte. E com as duas primeiras queria, sobretudo, que a terceira fosse abso
lutamente exterminada, a fim de que elle, que representava a humanidade do seu
tempo, podesse conseguir o fim , que se tinha proposto, isto é, o de saír da selva
escura , e d'est'arte melhorar as condições civis d'essa humanidade agonisante .
Mas não bastavam os meios humanos, não bastava elle só, como simples mortal,
para remover, e debellar tão fortes obstaculos. Porquanto, Dante, como philosopho
profundo, e amestrado na lição da Historia, conhecia que a civilisação, no seu com
plexo, é obra dos seculos, e não de um só homem, nas condições ordinarias da hu
manidade ; por isso elle não podia senão preparar, e prophetisar essa civilisação .
Preparou-a, fazendo passar a humanidade de então pelos tres mundos da punição,
da purificação, e da glorificação: preparou, chamando em seu auxilio Virgilio, ou
a sabedoria latina, extincta depois da queda do Imperio Romano :
Dinanzi agli occhi mi fu offerto
Chi per lungo silenzio parea fioco.
« Diante de mim assomou um personagem,
Que pelo longo silencio parecia rouco. »
preparou, fazendo por Beatriz (symbolo da nova religião purificada, apotheose
d'aquella virgem , que na terra lhe inspirou amor celeste) (2) abrir a elle, e ao
mundo redimido asportas do templo da verdadeira gloria : prophetisou, finalmente,
logo do primeiro canto, o advento d'aquelle Veltro (3), que, nutrido da sabedoria,
do amor, e da virtude, havia de expellir de todas as villas a Loba sedenta, isto é, a
(1) Sismondi, Storia delle repub. ital., vol. Iv.
(2) Quando di carne a spirto era salita (Purgatorio, c. xxx).
(3) Veltro, galgo, cão lebreiro.Mas conservarei o nomeitaliano, porque, alem de soar melhor, é o Veltro
de Dante hoje conhecido em todas as linguas .
8 O INFERNO

barbarie. Este Veltro, como adiante demonstrarei, em que peze á torrente dos com
mentadores, não pode symbolisar nenhum contemporaneo, nem ser humano vivente,
em estricto sentido litteral. Porquanto, si a selva aspera, e forte é o seculo de
Dante, si nas tres feras, que impedem o progresso do desenvolvimento social, se
symbolisam os tres mais graves males d'aquelle tempo, e si a estes se devem oppor
amor, virtude, e sabedoria ; o amor moral á lascivia, a força civil á força marcial, a
sabedoria á ignorancia, que perpetúa nos estados a barbarie; se comprehenderá
facilmente, que aos breves dias de um homem não seria concedido pôr em execução
obra tão gigantea ! Largas dissertações se têem feito ácerca d'esta prophecia ; mas
todas, ao meu ver, discordantes do verdadeiro intuito do Poeta. O erudito Conde
de Troya escreveu de proposito um livro, sob o titulo de Veltro Allegorico, em que
se esbofou por demonstrar, que o grande operador da reforma social, intellectual e
moral, prophetisado por Dante, era nem mais nem menos que o guerreiro Ugucião
della Faggiola, que aliás, tres annos antes do obito do Poeta, morreu combatendo
em frente dos muros de Padua ! Seria um Veltro de tão curta vida, que havia de
perseguir de cidade em cidade a Loba perversa, e fazêl- a morrer de dor até inco
val- a de novo no Inferno ?

Questi la caccerà per ogni villa


Finchè l'avrà rimessa nell' Inferno.

O proprio Dante, que era o civilisador da Italia, o maior genio da sua historia,
não se animou a declarar-se o exterminador da Loba, limitando- se a antever os
effeitos da sua sabedoria através da remota posteridade !
Expostas assim em geral as minhas conjecturas sobre a selva, as tres feras, e
o Veltro, passarei a corroboral-as com aquelles versos, a maior parte dos quaes do
primeiro canto, que me parecem não deixar duvida , e confrontadas as minhas
conjecturas com as opiniões até hoje recebidas , ver-se-ha quaes as que mais se co
adunam com a significação complexa do prologo do divino Poema.
Si o canto é altissimo, si o Poema é sacro, e si n'elle pozeram mão céos e
terra ( vi hanno posto mano e i cieli e la terra) ; si é o monumento intellectual, que
avulta grandioso, e primario entre uma civilisação extincta , e outra renascente ; si
n'elle o seu scopo é universal, e dirigido á humanidade inteira ; si na introducção
de tão grande Obra, que se lê nos dois primeiros cantos, o Poeta devia mostrar
qual a sua sublime missão, quaes os meios a empregar para realisal-a, quaes os
obstaculos, que se lhe interpunham ; si finalmente as allegorias dos dois primeiros
cantos são consideradas como a allegoria collectiva de todo o Poema ; certamente
se não comprehende como alguns commentadores poderam pensar, que n’esta eterna
inimitavel epopéa não tivesse o seu auctor outro fim senão lamentar o seu exilio,
exprobrar á Florença suas iniquidades, estygmatisar Filippe o Bello, Carlos Valois,
o Papa, etc., por serem todos estes os grandes obstaculos de voltar elle ao seio da
patria ! Para desconcertar, e derruir todo este castello de conjecturas especulativas,
bastaria valer-me da tradição mais segura, de que os primeiros cantos do Inferno
foram escriptos muito antes do exilio do Poeta ! Mas limito-me a declarar, que
um interesse particular (o exilio), um Papa, um tyrannete de França , e uma pequena
cidade da Italia, eram assumptos, se não mesquinhos, pelo menos muito abaixo do
altissimo intuito do Poema sacro ! O proprio Poeta rasga os horisontes da sua larga
esphera de acção, declarando que o mundo é sua patria, como se verá das seguintes
palavras : « Nós, a quem o mundo é patria, como aos peixes é o mar, posto que
tivessemos bebido a agua do Arno, antes que os dentes nos nascessem, e houvesse
mos amado tanto Florença, que por havel- a amado em extremo, fomos condemna
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 9

dos a injusto degredo ; não obstante, apoiâmos os dados do nosso juizo mais sobre
a razão, do que sobre os sentidos» (1 ).
Portanto, a selva escura , em que se achou Dante no meio do caminho da sua
vida ,
Nel mezzo del cammin di nostra vita

representa, como dissemos, a selva tenebrosa, aspera, e amarga da humanidade do


seu tempo. Com effeito, não havia para elle outro periodo da sua vida mais
proprio, do que aquelle dos 35 annos, em que, despido de todas as illusões, e che
gado á plena madureza de juizo, podia avaliar todos os erros, e imperfeições do
mundo social, e affrontar com toda a resolução o horror da visão da selva, que lhe
havia transido de susto o coração .

Che gli avea di paura il cuor computo.

E vem a pello tambem considerar, que aquelle meio do caminho da sua vida,
corresponde, na historia civil dos tempos, áquella meia edade (medio evo ), que os
seculos então attingiam ; no qual periodo, não obstante se ter desviado do recto
caminho, ainda restavam alguns bons elementos, que se podiam converter, com
tempo e opportunidade, em perfeição civil:

Ma per tratar del ben ch ' ivi trovai


Dirò dell' alte cose ch ' io ho scorte.

D'onde a aspera selva figura a edade social, de que Dante era circumdado : o
ter tambem entrado n’ella, e se perdido, quer indicar, que por algum tempo parti
cipou de todos os defeitos do seu seculo.
I'non so ben ridir com ' io v' entrai
Tant era pien di sonno in su quel punto,
Che la verace via abbandonai.

« Tão profundo somno me dominava n'aquelle ponto,


Em que me desviei da senda verdadeira,
Que não sei bem explicar como isso foi.»

E Biagioli refere este punto a Beatriz, e quanto á vida de Dante a interpretação


não pode ser mais opportuna, dizendo elle mesmo de si :
le presenti cose
Col falso lor piacer volser miei passi,
Tosto che'l vostro viso si nascose (2 ).

« ...... os bens, e os affectos mundanos


Com o seu falso attractivo me desviaram do recto caminho,
Logo que o vosso rosto se escondeu aos meus olhos. »

(1) Nos autem cui mundus est patria, velut piscibus æquor, quamquam Sarnum biberimus ante dentes, et
Florentiam adeo diligamus,ut quia dileximus, exilium patiamurinjuste, ratione magis, quam sensu , sca
pulas nostrijudicii podiamus. ( De vulgare eloquentia, lib. I, c. 6.)
(2) Purgatorio, c . xxxi, 34.
IO O INFERNO

Mas, attendendo ao sentido civil d'estas palavras, quem saberia explicar como
a civilisação romana poderia , da altura a que havia chegado, precipitar-se na tene
brosa , e selvatica meia edade ? E como, a despeito do pharol do Christianismo, que
veiu illuminar - lhe o novo caminho, ella adormecesse tão profundamente, que d'elle
se desviou com tanto desastre ? Beatriz, á similhança do Evangelho, que disse ás
nações – Amae- vos, – inspirou, emquanto viveu , virtude, e bondade ao coração
de Dante, e da mesma sorte que as nações, esquecendo aquelle preceito, perde
ram -se, assim Dante, esquecendo Beatriz :

E volse i passi suoi per via non vera,


Immagini di ben seguendo false ( 1).
«Voltou os passos por caminho não verdadeiro,
Seguindo as falsas imagens da felicidade.»
e por fim se achou perdido no meio dos erros do seu tempo. Advertido dos perigos,
que o cercavam, procura fugir d'elles, e fugindo, chega ao pé de um monte, onde
terminava o selvoso valle ; e olhando ao alto, vê que o Sol lhe dá esperança de
salvação, e o tranquillisa . Chegado que foi a este ponto, volve a remirar a selva,
de que jamais escapou pessoa viva.
Si volse indietro a rimirar lo passo,
Che non lasciò giammai personna viva.

É portanto Dante, que, dando accordo do seu extravio, e em si representando


o extravio d'aquelle seculo, allude ao principio da sua conversão, e tambem ao
principio da regeneração social. Assim demonstra aqui, que a humanidade tende
com a propria força a sair d'aquelle estado brutal, em que convem que morram
os homens, e sua memoria, e que alumiada :
dai raggi del Planeta
Che mena dritto altrui per ogni calle.
« ...... pelos raios do Planeta,
Que encaminha os mortaes por toda a parte .»
o que importa dizer, que a humanidade esclarecida pela luz do entendimento, e da
razão, deve progredir necessariamente na subida do monte, para o qual movendo os
passos o mesmo Dante , mostra sabiamente os tres gravissimos impedimentos, que
o seculo encontrava nas suas aspirações ao aperfeiçoamento social. O ultimo d'estes
obstaculos, figurado pelo Poeta na Loba , é tal, que n'elle se resumem todos os
outros ; é tal, que exclue todo o alvitre humano de superal-o em pouco tempo .
Esta predição da vinda do Veltro foi feita pelo Poeta com tanta gravidade myste
riosa, que causou espanto aos contemporaneos, como aos vindouros !
Molti sono gli animali a cui se ammoglia,
E più saranno ......
« Muitos são os animaes com que a Loba se ajunta ,
E muitos mais serão

(1) Purgatorio, c. xxx, 130.


INTRODUCÇÃO AO CANTO I II

exactamente para demonstrar a necessidade da missão d'elle Poeta, no sentido de


promover a grande obra da civilisação. Missão altissima, a que tres mulheres celes
tes,
tur
e um Virgilio, e as musas, e o alto engenho deviam prestar soccorro sobrena
al.
Na Onça , que se apresenta ao Poeta no começar a subir o monte , vejo, como
já disse, de accordo com outros commentadores, o symbolo do amor sensual, a
Venus vaga, a quem o seculo de Allighieri prestava tanto culto.
E non se partia d'innanzi al volto ;
Anzi impediva tanto il mio cammino
Che fui per ritornar più volte volto.
«E não se tirava diante dos meus olhos ;
Tão tenaz ella impedia o meu caminho,
Que muitas vezes tentei retroceder.»
Dante não era de todo isento d'este vicio do seu tempo, como não o era Pe
trarcha, embora fosse admiravelmente platonico com a sua Laura. Allighieri mesmo
accusa-se no canto xvi do Inferno:
Io avea una corda intorno cinta,
E con essa pensai alcuna volta
Prender la Lonza alla pelle dipinta.
« Eu trazia uma corda atada á cinta,
E com a qual pensei alguma vez
Prender a Onça de pelle mosqueada.»

Por estas reminiscencias, comprehende-se como esta fera não se lhe saísse
diante dos olhos, ligeira, e prompta (leggiera e presta ), quasi direi, caracolando ,
se lhe atravessasse tão pertinazmente no caminho, que por muitas vezes esteve a
precipitar-se de novo na selva escura. Mas porque Amor moveu Deus á creação
do mundo, Amor redimiu a humanidade, Amor deu origem, e dá vida ao consor
cio social, e d'elle principalmente deviam brotar todas as sementes da nova civili
sação ; sendo que a hora matutina, e a primavera davam - lhe esperança de trium
phar da fera de seductora pelle.

a bene sperar m'era cagione


Di quella fera alla gaietta pelle.
L'ora del tempo, e la dolce stagione.
Eis como tambem n'esta esperança de triumphar da fera se acha manifesto o
intuito de Dante, e como todos os versos, que acompanham a allegoria da Onça, a
demonstram como symbolo do amor sensual. Observe-se, alem d'isto, que na geral
divisão, que faz o Poeta, dos peccados humanos, a primeira classe comprehende a
incontinencia; e aqui no prologo a Onça é a primeira que apparece. Sempre em
harmonia com seus principios, lá onde pune
.... i peccator carnali,
Che la ragion sommetono al talento
...... os peccadores carnaes,
Que escravisam a razão aos ardores da volupia.
12 O INFERNO

elle os faz arrastar violentamente pelo impeto de uma tempestade cruel ; porque
tal era o caracter do amor, que em vida os arrastára .
Poeta, volentieri
Parlerei a que' duo, che insieme vanno .
E paion si al vento esser leggieri.
Poeta , de bom grado
Eu fallaria aquelles dois, que andam juntos,
E parecem ao vento tão ligeiros. »
Vê-se, pois, que o caracter de leggiera e presta molto apropriado á Onça, é
reproduzido no canto v, onde são punidos os luxuriosos, e esta coincidencia bas
taria para dissipar todas as duvidas a respeito do sentido allegorico da Onça. Por
conseguinte, aquelles commentadores, que interpretam a Onça por Florença, ou
pela facção negra de Florença, a selva pelo exilio, e o monte pela aspiração do
Poeta a voltar á patria, isto é, á outra Florença, resvalam na absurda supposição
de que : Dante na selva, isto é, fóra de Florença, ao encaminhar -se para o monte,
isto é, para Florença, encontra a Onça, isto é, Florença, que o impede de vingar o
vertice do monte, isto é, de entrar de novo em Florença ! E aquelle amor, de que
em seguida se fala, e que inspira ao Poeta a esperança de triumphar da fera de
graciosa pelle, como se conciliará com essa interpretação ? Esses commentadores
advertiram, que Florença não podia estar em dois sitios, e sob duas figuras ao
mesmo tempo, e para accommodal-a , tomaram o cume do monte por Florença,
acrescentando que a Onça era a facção negra inimiga do Poeta ! Tal interpretação
tornaria ainda maior absurdo, que esta facção negra, que Dante aliás chama fera
de gaietta pelle, morresse tanto de amor por elle, que lhe dava toda a esperança de
triumphar! Mas triumphar de quem ? O senso commum que responda.
No Leão, em que eu vejo o symbolo do soberbo caracter marcial de 1300, origem
feroz dos odios fratricidas, das guerras civis, os sequazes de Dionysio interpretam
pela França e por Filippe o Bello, ou Carlos de Valois ! Pois este Leão, de cabeça
levantada, e de furiosa fome, que faz terror a Dante, e tremer ao proprio ar am
biente ( con testa alta e rabbiosa fame fa paura a Dante, e fa tremar l'aria ), será
porventura a França , que impede ao Poeta de voltar ao seio da patria ? Mas Dante
sabia perfeitamente, que para perpetuar o seu exilio bastavam os Guelphos floren
tinos, e que, si tal desventura lhe sobreveiu após a vinda de Carlos de Valois, foi
por orgão de Bonifacio VIII , segundo se tornou publico. Carlos de Valois, cumprida
a sua missão em Florença, foi cobrir-se de nova ignominia na Sicilia , e mais não
cuidou nem de Florença, nem de Dante. Filippe o Bello tinha dado acolhimento
aos Colonnas (tão pouco adverso era ao Gibelinismo), e d'elles se serviu para exter
minar o Papa . Allighieri não podia ignorar, que pelos fins do seculo xiii, S. Luiz,
Rei de França, havia proclamado a independencia do poder temporal dos Papas,
primeira pragmatica , que se tornou base de todas as outras. Nos começos do seculo
seguinte, Filippe prohibia a exportação do dinheiro do reino de França, para privar
o Papa d'aquella especie de renda, que percebia das consciencias de seus subditos
espirituaes ; fazia metter em prisão o Bispo de Pamiers, creatura do Papa ; apode
rava-se de muitas congruas episcopaes ; declarava, como attentado aos seus direitos,
a arbitraria interposição do Pontifice nas contendas entre elle, e a Inglaterra ;
munia-se da auctoridade dos estados do seu reino contra a da Egreja ; fundava a
liberdade da egreja gallicana ; depunha Bonifacio, e creava quasi seu subdito Cle
mente V (1 ) .

( 1 ) Sismondi, Historia das republicas ilalianas, vol . iv.


INTRODUCÇÃO AO CANTO I 13

Si pois Filippe o Bello tendia, com todas as suas tramas, e com todas as suas
forças, a restringir, e envilecer o poder temporal dos Papas, não era, nem podia ser
aquelle personagem, que symbolisava o Leão, que causava terror a Dante, que
pelo contrario devia d'elle receber, por similhança de principios politicos, todo o
favor, e infundir - lhe mais esperança do que a Onça. Quem quizer saber si Dante,
para dizer verdades duras, não só a Carlos de Valois, como a toda a sua raça , pre
cisava de se encobrir no véo de allegorias, e usar de circumloquios, abra o canto xx
do Purgatorio, e lá verá as invectivas sangrentas, que elle põe na boca de Hugo Ca
peto contra as atrocidades dos seus descendentes ! Mais adiante offerecerei uma
prova de tão rude franqueza. Por conseguinte, na allegoria do Leão o Poeta al
ludia á guerra civil, que na sua maior parte era alimentada pela soberba das
familias rivaes, das cidades, e republicas rivaes, em que predominava a ambição
funesta do heroismo marcial, que se oppunha áquella união das espadas, aquella
força combinada (forza ordinata ), que Dante queria reconstruir, como principio da
nova civilisação progressiva. Era, pois, n'este conjuncto de elementos subversivos,
e barbaros, que o Poeta figura allegoricamente o Leão de cabeça alta, e fome fu
riosa, que faria tremer ao proprio ar ambiente com o estampido da guerra.
Eu disse , ha pouco , que havia entre Filippe o Bello, e Dante similhança de
principios politicos. Disse-o, porém, como argumento de concessão, e não de affir
mação. Dante, o Poeta da rectidão, desejava que fossem alteradas as condições do
poder temporal do Papa; desejava-o em bom sentido, em sentido favoravel á con
servação da pureza da Egreja , da sua estabilidade, etc., ao passo que Filippe o
Bello queria (como querem os italianissimos de hoje), não só a extincção do poder
do Papa, como a ruina completa da Egreja. Emfim , Dante desejava o consorcio
fraternal do Estado com a Egreja, ajudando-se mutuamente na grande obra da
regeneração politica e moral. O que porém não podia soffrer era que o adultero
Gigante delinquisse tão descaradamente com a meretriz de Avinhão ( Non poteva
patir che cotesto adultero Gigante delinquisse così sfaciatamente colla meretrice di
Avignone ). A aspereza d'estas expressões revela a indignação, com que o Poeta
catholico via a séde da Egreja em Avinhão, e não em Roma ; pois só considerava
Esposa legitima de Jesus Christo a Egreja com sua sede em Roma, governada pelo
successor do maior Pedro.
Outros commentadores, pois, que talvez advertissem nas contradicções histori
cas, que acarretaria a interpretação do Leão por Filippe o Bello , voltaram-se
para Carlos de Valois, que sob color de pacificar os facciosos, foi, como se disse ,
mandado
por Bonifacio VIII a Florença. Mas esta segunda variante é tão insubsis
tente como a primeira, segundo ficou demonstrado .
Passemos agora a examinar si a Loba, que outros commentadores consideram
symbolo allegorico de Roma, do egoismo Papal, da avareza humana, ou do proprio
Dante (como alguns querem !), figura com effeito tudo isso, ou si mais exactamente
não symbolisa a barbarie do seculo de então. Dante tinha Roma em grande venera
ção. Eis suas proprias palavras no Convito (1) : « Não ha duvidar, que a fundação da
santa cidade de Roma, foi obra do desenho especial de Deus.Tenho firme con
vicção, que todas as pedras dos seus muros são dignas de reverencia, e que o
solo, onde ella assenta , está acima de todo o elogio, que oshomens lhe têm con
şagrado». No Poema ellediz,que aaltaProvidencia,por meio de Scipião, defen
dendo Roma, defendeu n’ella a gloria do mundo :

Difese a Roma la gloria del mondo.


(1) Convilo quer dizer banquete, festim , etc. ; mas conservarei o nome original do livro.
14 O INFERNO

Ora, si Roma é a gloria do mundo, porque havia Dante apresental-a no prologo


do sacro Poema sob a repulsiva figura de uma Loba ? Porque vituperal- a a tal
ponto ? Porque, si o braço de Deus a tem sempre sustentado, como diz no Convito,
havia de fazêl - a saír do Inferno, e invocar um Veltro, que a mettesse de novo lá ?
Qual dos leitores da Divina Comedia ignora, que a desventurada fossa dos Lobos
( sventurata fossa dei Lupi), indicada no canto xiv do Purgatorio, é mais depressa
Florença do que Roma ? A quem é desconhecido que na Canção, que começa :
Patria degna di trionfal fama, Florença, e não Roma, é chamada Lupa rapace ? Por
que , pois, perguntarei aos commentadores, não vistes na Loba antes symbolisada
Florença, do que Roma ? Elles não poderão dar outra resposta, senão esta : « É
porque vemos Florença symbolisada na Onça ». Mas, outros mais recentes, re
conhecendo as absurdas consequencias d'esta erronea interpretação, mudaram de
bordo, e restringiram a allegoria á Roma Papal. Mas ainda a estes perguntarei:
Esta Loba symbolisa os Papas in genere , ou o seu governo temporal, o egoismo
Papal, a Curia de Roma, o Guelphismo ? Para provar que a Loba do primeiro canto
não pode symbolisar os Papas in genere, bastará ler os bellissimos versos, que Dante
expõe logo no mesmo prologo (canto 11), onde nos mostra, que a viagem de Eneas
ao Inferno envolvia designio providencial sobre a futura dignidade pontificia, di
zendo :
Ch' ei fu d'ell'alma Roma e di suo impero
Nell' empireo Ciel per padre eletto :
La quale, e il quale, (a voler dir lo vero ),
Fur stabiliti per loco santo,
U'siede il successor del maggior Piero.
Perquest' andata , onde gli dai tu vanto ,
Intese cose, che furon cagione
Di sua vittoria , e del papale ammanto .
Que Eneas foi escolhido no céo empyreo,
Para ser o fundador da fecunda Roma e do seu imperio,
A qual Roma, e o qual imperio (si quizermos dizer a verdade),
Foram estabelecidos para ser o logar santo,
Onde devia ter sua Cadeira o successor do maior Pedro .
Por occasião d'essa viagem , que tu exaltas tanto,
Ouviu Eneas cousas, que determinaram
A sua victoria, e do manto pontifical.
Vê-se por aqui, que Dante levava o seu Papismo ao ponto de ligar a sua insti
tuição, ainda que remotamente, á fundação de Roma, direi mesmo, á viagem imagi
naria de Eneas ao Inferno ! Alguns commentadores, porém , não podendo desconhe
cer a profunda reverencia, que Dante professava ás santas chaves (riverenza alle
sante chiavi), foram forçados a restringir a significação allegorica da Loba somente
ao governo temporal do Papa. Mas ainda n’esta substituição foram infelizes ! Pois
bem ; posto que já incidentemente me houvesse referido ao modo de pensar de
Dante acerca do poder temporal do Papa, julgo indispensavel voltar á carga, tor
nando bem patente o pensamento do Poeta, a fim de que se não continue a adul
teral-o em desdouro das suas crenças catholicas em respeito ao Papado. Alem dos
mais claros testemunhos de profunda adhesão orthodoxa, que se encontram em
toda a Divina Comedia, que Pio VI qualificava catechismo de doutrina catholica, a
despeito de algumas discrepancias com relação a pessoas, o Poeta em suas Obras
Menores, sobretudo no Convito e na Monarchia, estabeleceu os principios mais
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 15

sãos a respeito do Pontificado christáo. Abrindo ao acaso o capitulo iv do livro III,


encontra -se logo esta these :

Duo Luminaria, magna, quæ Deus fecit, an allegorice significaverint duo regi
mina, spirituale et temporale.

" Os dois grandes luzeiros, que Deus fez, significam porventura allegoricamente
dois regimens, espiritual, e temporal.»

No correr do desenvolvimento d'esta these , diz que, segundo o Genesis, estes


dois luzeiros, um era maior, e outro menor, de modo que um presidisse o dia, e o
outro a noite. Estas cousas allegoricamente significam os dois regimens, espiri
tual, e temporal.
Depois, visto que a Lua, que é luzeiro menor, não tem senão a luz, que recebe
do Sol, assim tambem o reino temporal não tem outra auctoridade, senão a que
recebe do regimen espiritual ( 1) .
Estas linhas são sufficientes para convencer, que o Poeta alliava a origem da
Monarchia do Mundo temporal com aquella, que a Historia, e a Tradição assi
gnalam á Monarchia Apostolica (2) . Esta, na verdade, deriva de Deus, e tem por
solido fundamento Christo, e a sua doutrina, e por chefe supremo o Summo Pon
tife Romano, Vigario de Christo, e successor do maior Pedro, Principe dos Apos
tolos. E esse Pontifice é o Pastor ou Regedor dos outros Principes ecclesiasticos, e
Pastores, como do universo povo christão, os quaes todos constituem a Egreja mi
litante, para alcançar o triumpho no céo . A eleição pois do Romano Pontifice é 1
feita pelos Cardeaes ou Principes da Egreja. Estes propriamente não se podem
dizer eleitores, mas denunciadores, e oraculo da eleição procedente do Espirito
Santo, infallivel verdade, perenne dispensador de todo o bem , guarda, e vida da
Egreja de Christo.
Por similhante modo concebeu Allighieri, que se deviam reger os destinos do
mundo, e da vida civil. D'esta concepção é que, de pensamento em pensamento , e por
longa experiencia dos acontecimentos humanos, se lhe augmentou a persuasão de
que o bem estar do Mundo dependia necessariamente da sujeição á Monarchia,
isto é, á um Principado unico em todas, e sobre todas as cousas temporaes. Depois,
seguindo o Poeta especialmente as doutrinas ensinadas por Santo Agostinho, nos
livros De Civitate Dei, pareceu-lhe ordem da Providencia , que ao povo de Roma
coubesse o officio imperial por direito divino, e por vontade d'esse povo tal direito
fosse transmittido a Cesar, e aos seus successores. E creu por isso se originar im
mediatamente de Deus, não só a auctoridade, e o direito do Imperador, mas a sua
mesma eleição, de modo que aquelles, que se diziam seus eleitores, fossem antes cha
mados denunciadores da Divina Providencia . Duas Monarchias pois, segundo o
conceito do Poeta, deviam existir em beneficio do genero humano, a Monarchia
apostolica, ou espiritual, e a Monarchia civil, ou temporal. Principe d'esta convinha
que fosse o Imperador, herdeiro do direito e dominio do povo de Roma, Rei dos
Reis e Senhor do Mundo, como o chefe d'aquella é o Romano Pontifice, Vigario de
(1) Dicunt enim primo, secundum scripturam Geneseos, quod Deus fecit duo magna Luminaria, Lumi
nare majus, et Luminare minus, ut alterum præesset diei, etalterum nocti. Quæ allegorice dicta esse intel
ligebant ista duo Regimina ,Spirituale et Temporale .
Deinde, quod quemadmodum Luna, quæ est Luminare minus, non habet lucem, nisi prout recipit a Sole,
in , Regnum
lib ,nec
sic c . iv .) temporale Auctoritatem habet, nisi proutrecipit a spirituali Regimine.( De Monarchia,
(2) Epist. Flor. , $$ 11.
16 O INFERNO

Christo e Successor de S. Pedro , Bispo dos Bispos, Regedor da Egreja universal, e


Pae da Christã familia, e do qual o Imperador deve -se considerar Primogenito.
Em summa, para não traduzir todo o livro da Monarchia, concluirei com as no
tabilissimas palavras, que o rematam. Tendo o Poeta demonstrado, que o officio do
Monarcha dependia immediatamente de Deus, e não do Pontifice Romano, e sus
peitando que porventura os mal intencionados tomassem á má parte as suas pala
vras, apressou-se a declarar, que a verdade por elle estabelecida na sua ultima
demonstração, não devia ser recebida de modo tão restricto, que excluisse a idea
de que não era o Principe Romano em alguma cousa sujeito ao Romano Pontifice;
pois que a felicidade mortal é ordenada para a felicidade immortal. Que, portanto,
Cesar- devia usar para com Pedro aquella reverencia, que o Filho Primogenito
deve usar para com seu Pae, a fim de que, illustrado com a luz da graça paternal,
illumine o orbe terraqueo com maior virtude, ao qual é preposto só por aquelle,
que é Governador das cousas temporaes, e espiritual (1 ) .
Agora, contrahindo-me no meu objecto, perguntarei a toda a consciencia recta,
si, em face d'estes principios estabelecidos por Dante, sobre a missão complexa do
Pontificado Romano, poderá a Loba feroz symbolisar o governo temporal do Papa ?
Admitto que Dante, preoccupado da idéa da sua Monarchia universal, considerasse
o poder temporal um estorvo á sua realisação ; mas isso era motivo para que a
Curia Romana lhe incutisse tanto medo, que lhe fizesse tremer as veias e os pulsos
( tremare le vene, e i pulsi ), e tirar-lhe toda a esperança de chegar á altura da sua
missão ( la speranza dell'altezza della sua missione) ? E como se concilia esse terror
de Dante com o desassombro, e intrepidez, com que elle verberava pelos proprios
nomes, os Reis, Principes e tyrannos, que pervertiam o seu seculo ?
E dico a voi Carlo, e Frederico Regi, e a voi altri Principi, e tiranni... meglio
sarebbe voi come rondine volare basso, che come nibbio altissime rote fare sopra le
cose vilissime. (Convito.) « E eu vos digo a vós, ó Carlos, ó Frederico Reis, e a vós
outros Principes, e tyrannos ... melhor seria que vós, como andorinhas, voasseis
baixo, do que, como milhafres, fizesseis altissimos giros sobre cousas vilissimas .»
Note-se que n’esta apostrophe violenta, Dante não inclue os Papas no numero dos
perversores do seculo, e não é porque tivesse medo, pois se verá opportunamente
a severidade com que elle verberou Nicolau III, Bonifacio VIII, Clemente V, e
João XXII , unicos que metteu no Inferno, como chefes do poder temporal, e não
como Vigarios de Jesu Christo. Si Dante era resoluto por indole, e caracter, ainda
mais resoluto se tornou depois da ordem , que lhe deu S. Pedro no Paraiso :

E tu, figliuol, che per lo mortal pondo


Ancor giù tornerai, apri la bocca,
E non asconder quel ch' io non ascondo (2) .

« E tu, ó filho, que pelo peso da vida mortal


Ainda tornarás ao mundo, abre a boca,
E dize tudo o que eu te digo, e ordeno . »

(1 ) Quæ quidem veritas ultima questionis non sic stricte recipienda est, ut Romanus Princeps in aliquo
Romano Pontifici non subjaceat: cum mortalis felicitasquodummodo ad immortalem felicitatem ordinetur.
Illa igitur reverentia Cesar utatur ad Petrum, qux Primogenitus Filius debit uti ad Patrem , ut luce paternæ
gratiæ illustratus, virtuosius Orbem terræ irradiel, cui ab illo solo prefxctus est, qui est omnium spiritua
lium et temporalium Gubernator.
(De Monarchia , in fine .)
(2) Paraiso, c . xxvII .
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 17

A interpretação, que vê na Loba o symbolo da Curia Romana é tão falsa, que não
resiste á confrontação nem com o verso
Aiutami da lei, famoso saggio,

«Defende-me da Loba, famoso sabio » (pede Dante a Virgilio).


nem com este outro verso :

Ch'ella mi fa tremar le vene, e i polsi.

« Que ella me faz tremer as veias e os pulsos.»

nem com o seguinte terceto

Questa mi porse tanto di grave za


Con la paura ch'uscia di sua vista
Ch' i' perdei la speranza dell'altezza

« Esta Loba, só com olhar-me, produzia -me tanto medo,


Que, no meio de tanta alllicção e angustia ,
Perdi a esperança de vingar a altura do monte .»

Observarei, alem d'isto, que si esta Loba symbolisasse o poder temporal dos
Papas, aos quaes o Poeta exprobrou

Fatto v'avete Dio d'oro e d'argento(1)

« Tendes feito um Deus de ouro, e de prata . »

E n'outro logar, falando da vida faustosa dos Cardeaes, pinta -os tão nedios, e
anafados, que não se moviam, sem que os creados os sustentassem com os braços,
á direita, e á esquerda, e outro lhes levasse a cauda :

Or voglion quinci e quindi chi rincalzi


Li moderni pastori, e chi li meni,
Tanto son gravi, e chi diretro gli alzi (2) .
Como conciliar essa abundancia de ouro, e prata dos Papas, e essa nediez ou gor
dura dos Cardeaes, ?
com a magreza extrema da Loba causada pela fome appetitosa
.... che di tutte brame
Sembiava carca nella sua magrezza

Desafio a que se responda com seriedade a esta objecção !


( 1 ) Inferno, C. XIX .
(2) Paraiso , C. XXI.
2
18 O INFERNO

Quem poderá pensar, e menos ainda crer, que o Papa com todo o seu egoismo
entimidasse tanto a Dante, até o ponto de fazel- o tremer, e chorar, e impellil-o de
novo para o logar, onde não brilhava mais o sol da verdade ?

Mi respingeva là dove il sol tace.

Acho ainda mais difficil de explicar como a Curia Romana andava pouco a pouco
contra Dante
Che venendomi encontro a poco a poco

« Que vinha pouco a pouco ao meu encontro . »

Esta phrase formaria na minha interpretação um bellissimo, e não advertido


contraposto com o caracter leggiero, e presto (ligeiro, e prompto) attribuido á Onça ;
porque a barbarie é verdadeiramente o contrario do amor, ainda que este se en
tenda por sensual, e é pouco a pouco gerado pela incontinencia, a qual se torna
malicia, e depois trasborda na louca bestialidade e poscia trasbocca nella matta
bestialità ), segundo a gradação ensinada por Dante . Mas na significação de Curia
Romana, que exprimiria aquelle a poco a poco ? Nada absolutamente. Sabe-se que
n'aquelles tempos os Papas, a quem Dante podia alludir, não eram homens de temer,
nem de hesitar na prompta execução dos seus designios . E todo o seu Pontifi
cado, por menos duradouro que fosse, trazia sempre augmento de fausto, e de
rendas da Egreja ; prova que não andavam pouco a pouco.
Dante faz dizer a Virgilio :

A te convien tenere altro viaggio.

« A ti convem tomar outro caminho . »

Se vuoi campar d'esto loco selvaggio

« Se quizeres saír d'este logar selvagem »

Che questa bestia, per la qual tu gride,


Non lascia altrui passar per la sua via,
Ma tanto lo impedisce che l'uccide :

« Porque esta fera, por medo da qual tu gritas,


Não consente que outrem passe pelo seu caminho,
Mas tanto o impede que por fim o mata . »

Aqui, pois , é manifestamente declarado que ninguem , nem mesmo o Veltro,


poderá passar pelo caminho em que se interpõe a Curia Romana (a Loba ), sob
pena de perder a vida . Será possivel que Dante haja exagerado tanto o poder
d'esta Loba ; Dante, que sabia que ella estava tão humilhada pelos agentes de Filippe
o Bello, Nogareto, e Colonna, que em Anagni, residencia de Bonifacio VIII, O
prenderam com mil affrontas, e ignominias ? Tão injuriosamente trataram o vene
rando Papa , que Dante indignado, como christão, e como Poeta da rectidão, pro
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 19

rompeu nas seguintes estrophes de fogo contra os algozes do Papa, por bôca de
Hugo Capeto :

Veggio in Allagna entrar lo fiordaliso (1),


E nell Vicario suo Cristo esser catto.
Veggiolo un'altra volta esser deriso :
Veggio rinnovellar l'aceto e il fele,
E tra nuovi ladroni esser anciso.
Veggio il novo Pilato sì crudele,
Che ciò nol sazia, ma senza decreto
Purta nel Tempio le cupide vele ( 2).

« Vejo entrar em Anagni a Flor (1) de liz,


Vejo no seu Vigario Christo preso .
Vejo - o outra vez escarnecido,
Vejo dar- lhe de novo vinagre, e fel,
E entre vivos ladrões outra vez morto .
Vejo o novo Pilatos tão cruel ,
Que insaciavel, as leis atropellando,
Lança aos Templarios cubiçosas garras. »

Alem de que Dante, no livro da Monarchia, a quem lhe oppõe, que o Rei Sa
cerdote commanda, e elege os Imperadores, affoutarnente responde, que Otton
restituiu as chaves a Leão Papa, e as tirou a Benedicto ; e não só o depoz, como o
desterrou para a Saxonia. Eis a idea que Dante tinha do immenso insuperavel poder
dos Papas, como Soberanos temporaes. E com muitos outros exemplos de factos
deduzidos da historia do seculo de Dante, e a elle não desconhecidos, se poderia
provar não ser de modo algum presumivel, que o summo Poeta attribuisse ao
egoismo Papal os caracteres, que no prologo do Poema são designados á Loba
allegorica.
Houve quem substituisse a interpretação de Curia Papal pela de Guelphismo,
tão adverso a Dante , e causa precipua do seu doloroso exilio. É o celebre Rossetti,
que sustenta esta opinião ; o qual toma a selva selvaggia, não por exilio do Poeta,
mas por seu seculo inculto, e corrompido. Virgilio para elle representa o Gibelinismo,
e o Veltro é Can Grande Scaligero, Capitão dos Gibelinos. Segundo Rossetti, pois
os Guelphos impelliam Dante a voltar ao seu seculo inculto, e corrupto. Virgilio
teria vindo
para evitar, que elle se precipitasse em táo tenebroso logar, e tiral- o d'ahi
para um logar eterno. E si a idéa tivesse assim entrado na mente de Dante, visto
como nenhum outro meio de salvação mais desejada, e perfeita podia imaginar, só
para aturdir o cerebro dos commentadores teria elle ajuntado a allegoria do Veltro,
º qual é desnecessario, desde que Virgilio é o Gibelinismo, que faz tudo o que

(1) Flor de liz. Insignia das armas do Rei de França. Allude aos soldados francezes, que sob a direcção de
Nogaredo, e de Colonna, a quem chamaladrõesvivos,foram a Anagniprender Bonifacio VIII, fazendo-se-lhe
tragar o calice detodas asignominias.O novo Pilatos é Filippe o Bello, descendente de Hugo Capeto. Quando
este rasgo
Dante não tivesse tantos titulosao solemne elogio da posteridade, bastaria, para lh'o conciliar, de
generosidade
Purgatsanta
or
para com Bonifacio VIII,a quem , com razão ou sem ella, attribuiaoseuexilio !
(2) io, C. XX .
20 0 NFERNO

Dante podia desejar, isto é, livral- o da Loba, que é o Guelphismo ! Pois este Guel
phismo, que andava recebendo frequentes derrotas no tempo de Dante,

Nè, per esser battuta, ancor si pente (1).

« Nem por ser batida ainda se corrige »

deveria ser aquella Loba, que ihe causava tanto terror ; que não consentia que nin
guem lhe passasse pelo caminho, sob pena de matal - o ? Confesso que não entendo
isto, e menos entendo o consorcio que Rossetti andou combinando com esta Loba;
primeiro, consorciando-a com a Onça, e d'este ajuntamento tiveram por filhos os
Florentinos ; depois, consorciando-a com o Leão, e d’este ajuntamento tiveram por
filhos os Guelphos ! (2) Bem podia Rossetti ter evitado este monstruoso hermaphro
dismo, consorciando a Loba mais antes com Plutão, a quem o Poeta chama male
detto Lupo (maldito Lobo). Mas outra incongruencia se póde exprobrar ao commento
de Rossetti, e é esta : Elle expõe assim o sentido dos versos de Dante : « O Guel
phismo (a Loba), que le persegue, impedindo-te de adquirir a virtude (a subida do
monte deleitoso), te faz cair no vicio (repelle-te para a selva) , e depois te mata, e
por isso serás morto. Quem te salvará ? 0 Gibelinismo» . Consideremos agora duas
epochas da vida de Dante ; uma, a em que elle andava pelo direito caminho, isto é,
durante a vida de Beatriz ; a outra , em que , depois de ter andado por algum tempo
perdido na selva erronea, retoma o recto caminho, e é por Virgilio guiado pelos
reinos eternos. Rossetti estabelece esta segunda epocha pela epocha do Gibelinismo
de Dante. Logo, antes da morte de Beatriz, ou elle não pertencia a nenhuma fac
ção, ou era Guelpho, e foi, ao apagar- se aquelle sol dos seus dias (Beatriz), que elle
começou a desviar os passos do caminho da virtude, como se collige d’estas argui
ções de Beatriz a Dante :

Si tosto come in sù la soglia fui


Di mia seconda etade, e mutai vita,
Questi si tolse a me, e diessi altrui.

« Apenas passei da vida terrena á vida eterna,


Este perdeu-me o amor, e entregou -se a outros.»

Do que se segue, que Dante teria sido virtuoso, ou quando não pertencia a ne
nhum partido, ou quando era Guelpho, antes da morte de Beatriz. No intervallo
entre a primeira epocha, e a segunda, Dante perdeu-se na selva, não seguindo mais
o caminho da verdade :

E volsi i passi suoi per via non vera,


Imagini di ben seguendo false,
Che nulla permission rendono intera.

« E voltou seus passos por estrada errada


Seguindo as falsas imagens da ventura,
Que promettem tudo, e nada satisfazem .»
( 1 ) Paraiso , c. IX .
(2) Rossetti diz : I Fiorentini, fili perversi della Lonza con la Lupa maritata . – E col Leone era allora
ammogliata la Lupa . - Commentario ao canto i do Inferno, p. 13.
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 21

Este funesto desvio do caminho verdadeiro moveu a compaixão de tres mulhe


res celestes, que ordenam logo a Beatriz, que vá sem demora rogar a Virgilio, ou
ao Gibelinismo, que preserve Dante da perdição eterna, ou da Loba, e do Guel
phismo. Logo, Dante, ou seguia um partido antes da morte de Beatriz, e então
teria sido virtuoso quando era Guelpho, e começou a ser Gibelino nel mezzo del
camin di nostra vita ! Em tal caso Virgilio teria vindo preserval-o da virtude ! Ou
Dante só conheceu o caminho da virtude, quando entrou nos Gibelinos, e en
tão seria necessario cancellar do Poema todas as justas exprobrações de Beatriz
no Purgatorio, todas as confissões do mesmo Dante a respeito da sua boa vida ante
rior, da qual desviou os passos, e supprimir na vida d'elle o periodo mais bello, que foi
a fonte do seu genio, e da sua divina poesia ! Mas pelo contrario Allighieri recorda
exactamente aquelle primeiro tempo de seus castos amores a Beatriz viva, como
tempo de innocencia, porque então não tinha parte alguma nas facções civis. E
tal queria elle ser no momento, em que concebeu o grande pensamento de redimir
a si mesmo, e ao seu seculo das tres Feras, que o pervertiam , e que o tornavam
tão amargo, que pouco mais o era a morte. Hugo Foscolo conheceu bem esta verda
de, a qual o devia tambem levar a renunciar a moderna interpretação, que Dio
nysio, e seus sectarios deram depois á allegorica ba .
Foscolo naturalmente reflectiu na vehemencia com que Dante lastimava ter
caído na companhia de uns malvados, estupidos, e ingratos, alheios a todo o sen
timento do bem commum, só dominados de ambições mesquinhas, e que a sua
maior gloria era ter abandonado similhante gentalha, não tendo dali por diante
outro partido senão a si mesmo. Eis o seu energico protesto contra Guelphos, e
Gibelinos, a todos os quaes desde então votou o mais soberano desprezo :
E quel, che più ti graverà le spalle
Sarà la compagnia malvagia e scempia
Con la qual tu cadrai in questa valle ;
Che tutta ingrata, tutta matta , ed empia
Si farà contra te : ma poco appresso
Ella, non tu , n'avrà rossa la tempia.
Di sua bestialitate il suo processo
Farà la prova ; sì ch' a te fia bello
Averti fatta parte per te stesso ( 1 ).
Curiosissima, pois, decorre do exame de similhantes interpretações a consequen
cia que, segundo Rossetti , Curia Papal e Guelphismo são a mesma cousa, e que
tudo isso representaria na mente do Poeta a Loba; segundo outros, Florença , ou a
facção negra, ou o Guelphismo, são tambem a mesma cousa, e são symbolisados na .

Loba. Por conseguinte, no dizer d'estes, a Onça, e a Loba representam ambas o


mesmo Guelphismo, com a differença que o Guelphismo-Onça daria alguma espe
rança a Dante ; o Guelphismo- Loba lhe daria a morte sem remissão ! Aqui Gaspar
Gozzi teria razão de gritar : Strane cose ! ( extravagantes conjecturas ! ).
Mas antes de abandonar esta nefanda Loba, cumpre-me lembrar a significação
da avareza (da avareza ou de Dante, ou do homem in genere), que alguns lhe qui
zeram dar. E aqui, tendo com argumentos irrespondiveis combatido a tal opinião de
(1) Paraiso, c. xvII.- O poeta allude aqui as mal aconselhadas, e infelizes tentativas (em vão dissuadidas
por elle) de voltarem a retomar Florença os Gibelinos, que d'ella tinham sido banidos, os quaes depois de
derrotados se tornaram ingratos, einimigos deDante,por não sequererfazer cumplicedosseusdesatinos,
ellesproprios acabavam de tera prova no modopor que foram vergonhosamente rechaçados das
dos quaescidade
portas da (1304 e 1306 ).
22 O INFERNO

Rossetti, servir-me -hei de suas mesmas palavras : « Ora seja a Loba typo da avareza
« do homem ; mas responda-se-me por favor, que significa este conceito : Can Grande
« Senhor de Verona, fará morrer de dor a avareza do homem . E seja aquella Loba
« o symbolo da avareza de Dante, explique-se-me tambem est'outro conceito : Can
« Grande fará morrer de dor a avareza de Dante. E como a fará morret de dor :
« negando -lhe, ou dando - lhe soccorro ? Si no primeiro caso, em vez de fazer mor
« rer de dor a avareza de Dante, faria morrer de fome elle mesmo ; si no segundo,
« peior ; pois que, dando-lhe largos soccorros, alimentaria, em vez de matar, a sup
aposta avareza , sabendo-se bem , que esta quanto mais come, mais se lhe augmenta
« o appetite. Mas seja aquella Loba figura allegorica do Guelphismo Papal, e direi :
« Can Grande, chefe da liga gibelina, fara a salvação d'aquella parte da Italia, em
« defeza da qual morreram os heroes virgilianos, ou fará a salvação do Lacio ,
« tirando - o ao Papa, e dando -o ao Imperador ; e fará morrer de dor o avaro Guel
« phismo, expulsando -o de todas as cidades d'esse Lacio, que ao Imperio é devido .
« Dizei isto, que dizeis uma verdade.» Com quanta verdade se possa affirmar tal
absurdo, já ficou em parte demonstrado, e completamente se verá em seguida.
Si, pois, pelas razões expostas, a Loba do prologo não é nem a Curia Romana,
nem o egoismo Papal, nem o Guelphismo, nem a avareza, permitta-se-me poder
considerar como provado, que Dante, depois de ter symbolisado o amor sensual
na Onça, a guerra civil no Leão, figurou allegoricamente a barbarie, ou a louca
bestialidade na Loba ; os quaes tres vicios capitaes do seu seculo, symbolisado
na selva aspera , e densa , eram os principaes obstaculos á magnanima intenção, que
o Poeta do altissimo canto tinha fixado em seu espirito de civilisar esse mesmo
seculo inculto, e barbaro. E estes tres vicios exactamente suggeriram a Dante a
distribuição, e a mesma gradação dos tres grandes circulos infernaes, a cada um
dos quaes seguem os menores ; no que elle mesmo affirma ter seguido a ethica de
Aristoteles, como se vae ver por esta prelecção que põe na bôca de Virgilio :
Non ti rimembra di quelle parole,
Con le quai la tua Etica pertratta
Le tre disposizion , che il Ciel non vuole,
Incontinenza, malizia, e la matta
Bestialitade ? e come incontinenza
Men Dio offende e men biasimo accatta ? (1 )

« Não te recordas d'aquellas palavras,


Com que a tua ethica trata largamente
Das tres disposições, que desagradam a Deus,
Que são incontinencia, malicia, e a louca
Bestialidade ? e como a incontinencia
Menos offende a Deus, e menos censura merece ? »

E que isto, que o Poeta aqui qualifica de malicia corresponde ás guerras injus
tas, e fratricidas, claramente o confirma n'estes versos :

D'ogni malizia, ch' odio in cielo acquista,


Ingiuria è ilfine, ed ogni fin cotale
O con forza, o con frode altrui contrista .
( 1 ) Inferno, C. XI, 79-84.
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 23

«Toda a malicia humana detestada pelo céo


Acaba na injuria ; e toda a injuria damnifica o proximo
Ou pela pratica da violencia, ou da fraude.»

Di violenti il primo cerchio è tutto ;


Ma perchè si fa forza a tre persone,
In tre gironi è distinto e costrutto.

« O primeiro circulo está exclusivamente cheio dos violentos ;


Mas porque se pode usar de violencia contra tres especies de pessoas,
Este circulo é construido, e dividido em tres giros.»

A Dio a sè, al prossimo si puone


Far forza ; dico in loro, ed in lor cose,
Com'udirai con aperta ragione.

« Póde -se usar de violencia para com Deus, para comsigo mesmo,
E para com o proximo : digo na sua pessoa, e nas suas cousas,
Como ouvirás de modo positivo, e evidente ( 1). »

Morte per forza, e ferute dogliose


Nel prossimo si danno, e nel suo avere
Ruine, incendj, e tollette damnose.

«Usa-se de violencia na pessoa do proximo, ou matando - o ou ferindo - o gravemente ;


Usa -se de violencia nas suas possessões
Por meio de ruinas, incendios, e extorsões damnosas. »

Onde omicide, e ciascun che mal fiere,


Guastatori, e predon, tutti tormenta
Lo giron primo per diverse schiere.

«Por isso o primeiro giro atormenta todos os homicidas,


Todos os incendiarios, todos os depredadores
Por classes distinctas, homicidas com homicidas, incendiarios com incendiarios, etc.»
Aqui estão descriptos todos os males, e todas as horriveis devastações da guerra.
A terceira grande divisão, que comprehende a bestialidade, ou a barbarie, pune os
fraudulentos, e os traidores; e a fraude, e a traição, são os principaes caracteristi
cos da barbarie de um povo decadente .

Ma perchè frode è dell' uom proprio male,


.
Più spiace a Dio ; e però stan di sutto
Gli frodolenti, e più dolor gli assale.

(1) Em logar opportuno explicarei o sentido em que se pode fazer violencia a Deus, segundo os principios
e Aristoteles, seguidos por Dante .
24 O INFERNO

« Mas porque a fraude é delicto proprio do homem


Mais desagrada a Deus ; e por isso os fraudulentos
Estão sotopostos aos violentos, e maior tormento os flagella.»

Per l'altro modo quell' amor s'obblia ,


Che fa natura , e quel ch' è poi aggiunto,
Di che la fede spezial si cria :

« Pelo primeiro modo de fraude, com que o homem engana a quem d'elle se fia,
Esquece-se, não só o amor natural, como o outro que lhe é adjunto ;
O amor da familia, da amisade, da patria, gerador de confiança especial.»
Onde nel cerchio minore , ov'è 'l punto
Dell Universo, in su che Dite siede,
Qualunque trade, in eterno è consunto( 1 ).

« Por esta razão, no terceiro, e ultimo circulo menor, onde é o ponto


Do universo, em cima do qual circulo demora Dite,
É punido eternamente todo aquelle, que commette traição .
Com philosophico, e profundo criterio collocou Dante no meio dos fraudulentos,
e dos traidores, os gigantes, como liame intermedio entre uns, e outros, querendo,
segundo me parece, significar nos mesmos gigantes a brutal ignorancia unida á nes
cia pretensão ; e mostrar que, emquanto durasse a barbarie, .era trabalho perdido
o ser gigante, no poder, e o querer fazer guerra a Deus. Em perfeita harmonia,
pois, com a systematisação do Inferno, é a explicação dada por mim ás tres Feras
symbolicas do primeiro canto . A primeira divisão dos condemnados fóra de Dite
é a da incontinencia, cujas manifestações, particularisadas no Poema, são compen
diadas na Onça. Dentro de Dite a primeira divisão pertence á malicia , e todos os
diversos modos d'esta são compendiados no Leão. A ultima divisão pertence á louca
bestialidade, ou barbarie, cujos caracteres constitutivos, que são a fraude, a brutal
ignorancia, a ferocidade, e a traição, acham -se substanciados na Loba. Allighieri
oppõe ás tres Feras symbolicas os tres predicados distinctivos do seu Veltro : amor,
virtude, sabedoria ; combinou depois estes tres predicados especiaes com os assum
ptos predilectos da Poesia civilisadora, de que algumas faiscas scintillavam em Cino
de Pistoia, em Del Bornio, em Guido Cavalcanti, isto é, o amor casto, as virtudes
marciaes, e a rectidão. D'esta Poesia de regeneração fala Dante no Volgare Eloquio.
Transcrevi ha pouco a passagem inteira de Rossetti, porque d'ella tomarei os
dados, para examinar as opiniões até aqui recebidas a respeito do Veltro. Não con
trastarei detidamente a opinião d'aquelles interpretes, que têem manifestado suas pre
ferencias sobre qual seja o personagem allegorisado no Veltro : uns querem que seja
Can Grande Scaligero ; outros, que seja Ugucião della Faggiola; outros, que seja
Henrique de Luxemburgo ; outros, finalmente, que seja Malaspina. Já ponderei em
outro logar, que no meu humilde conceito, a allusão dantesca, meditada devida
mente, não pode se referir a nenhum homem , que vivesse n'aquelles tempos. Con
tinuarei, pois, a sustentar que, si as tres feras são symbolos moraes (como antes da
invenção dos symbolos politicos, pensaram os primitivos commentadores), e si a
( 1 ) Inferno, C. XI , 64.
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 25

Loba personifica a avareza, é tão extravagante que seja Can Grande o incumbido
de mettel-a de novo no Inferno, como imaginar que possa ser qualquer dos outros
personagens indicados. Si as tres feras, porém , são symbolos politicos, e si a Loba
personifica a Curia Romana, e o Guelphismo, creio que o prophetisar que Can
Grande, ou outro qualquer capitão seja (attentos os caracteres attribuidos por Dante
ao seu Veltro), fará essa Loba morrer de dor, encerra a mesma extravagancia supra
a respeito da avareza. E na verdade, como é possivel que este Capitão, che non
ciberà ni terra nè peltro (não se alimentará nem dos productos da terra , nem do
dinheiro ), poderá se tornar a salvação do Lacio ? E de que modo ? Tirando - o ao
Papa, para entregal-o ao Imperador, como antes declarou Rossetti, e como são
forçados a declarar com elle todos os que tomam a Loba pelo Guelphismo, e o
Veltro pelo Capitão do Gibelinismo. E qual é o sentido que elles dão ao verso :
Questi non ciberà terra nè peltro
caracter principal, attribuido ao Veltro, para que não seja confundido com nenhum
personagem vivente ? O sabio Monti explicava : Este ( Veltro) não fará alimento de
seus desejos nem o poder, nem a riqueza. « Questi non farà cibo delle sue brame nè
il potere, nè la richessa » ( 1 ). Rossetti diz, que terra, e peltro significam territorj, e da
nari(2 ). Ora, que se nos mostre, por favor, como um Capitão, que não terá nem poder,
nem riquezas (e o poder dos capitães são as armas, e os soldados, e o dinheiro para
l'es pagar o soldo), será tão prodigioso , que reconquiste o Lacio para os Gibeli
ros ; que extermine de todas as cidades o Guelphismo, e o faça morrer de dor ? Os
commentadores têem feito todo o possivel (omne possum ), para evitar esta incon
gruencia, que talvez lhes lampejasse aos olhos da razão, tirando a seu modo o sen
tido d'aquelle ciberà, substituindo-o .por farà sua contentezza, suo desio, cibo delle
sue brame ; isto é , que fará todo o seu contento, todo seu desejo, alimento de suas
ambições. Mas seria ainda maior extravagancia o suppor que este Capitão devesse
se dedicar a uma empreza (qual a de reconquistar territorios) , que elle em seu co
ração despreza : ou seria necessario suppor um Capitão, que não só fosse sem
armas, e sem soldados, mas sem vontade . Com a virtude, com o amor, com a sa
bedoria, se civilisa , mas não se conquista ; para a conquista são indispensaveis o
poder
verso :
das armas, e do dinheiro. Por conseguinte, a significação plena, e natural do
Questi non ciberà terra nè peltro

é que este Veltro não se alimentará de cousas terrenas, não se nutrirá de suas
riquezas materiaes, que é o mesmo que dizer, não será um ser humano, mas sim
um symbolo da sabedoria celeste, que, fecundando de luzes a mente social , e derra
mando no mundo o verdadeiro sentimento de fraternidade, de sabedoria civil, afu
gentará de todas as cidades, villas , e aldeias a ignorancia brutal, a bestialidade, até
fazêl-a morrer de dor, e metter de novo no Inferno a Loba, verdadeiro symbolo
da barbarie do seculo de Dante.
Quando Dante quiz falar do homem, e precisamente de Can Grande , disse :
Parran faville della sua virtute
Il non curar d'argento nè d'affanni (3).

( 1 ) Proposta, vol. I, p. 158.


(2 ) Op . cit., vol . 1, p. 14.
( 3) l'araiso, C. XVII.
26 O INFERNO

« Parecerão luminosos signaes de sua virtude


O não curar de dinheiro nem de fadigas.»

O que significa, que não cuidará de riquezas, nem levará em conta os perigos
Mas, entre o não cuidar de riquezas, e não as ter, vae grande differença : o não
cuidar d'ellas era o evidente caracteristico da virtude de Can Grande ; mas si elle
não as tivesse tido, Dante não podia applicar-lhe est'outros versos :
Le sue magnificenze conosciute
Saranno ancora sì, che i suoi nemici
Non ne potran tener le lingue mute ( ).

« As suas magnificencias serão tão conhecidas,


Que seus proprios inimigos, deslumbrados do esplendor,
Serão obrigados a preconisal-as em altas vozes. »
Ora eis -aqui Can Grande, eis o homem magnifico, obsequioso, com indicios claros
de virtude, temperado na estrella de Marte, e por isso desprezador dos perigos; não
cuidadoso de riquezas, e por isso cheio de liberalidades. Mas o Veltro do primeiro
canto, que não se nutrirá, nem de fructos da terra, nem de ambição de dinheiro,
não só não é Can Grande, que, como homem tinha necessidade de se alimentar dos
fructos da terra, e que para ser magnifico, e generoso precisava de riqueza ; e que
para conquistar os Guelphos era mister que ardesse de ambição de dilatar o poder
do Imperio, e que tivesse armas e soldados ; não só, repito, não é Can Grande , nem
nenhum outro supposto Capitão d'aquelles tempos, visto que não é, nem póde ser,
nenhuma creatura mortal .
N'outro logar, onde Dante quiz significar a vinda de um Principe, que esmaga
ria a potencia papal de Avinhão, e aquelle gigante, que delinquia com ella, não
disse que esse heroe não se nutriria, nem de fructos da terra , nem do dinheiro ;
mas somente o designou sob aquelle titulo, que compete a um conductor do exer
cito : Dux.
Non sarà tutto tempo senza reda
L'aquila, che lasciò le penne al carro,
Per che divenne mostro e poscia preda ;
Ch'io veggio certamente , e però 'l narro ,
A darne tempo già stelle propinque,
Sicuro d' ogni ’ intoppo, e d'ogni sbarro ;
Nel quale un cinquecento dieci e cinque,
Messo di Dio, anciderà la fuia,
E quel gigante che con lei delinque(2).
« Não estará longo tempo sem herdeiro
A aguia, que deixou no carro as pennas,
Pelo que se tornou monstro, e presa de um gigante.
Porquanto vejo com certeza (e por isto o digo)
Estrellas já vizinhas, a cujo curso nada impede,
Trazer-nos o tempo, em que um General, por Deus mandado,
Matará a meretriz, e o gigante que delinque com ella . »
( 1 ) Paraiso , C. XVII .
(2) Purgatorio, c. XXXIII.
7
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 27

Ora, n’este passo, mal comprehendido ( 1) por muitos commentadores no sen


tito allegorico como aquelle do Veltro da Loba, si Dante entendessé alludir a Can
Grande, ou a Henrique, ou a Ugucião (como pelas razões adduzidas pelo Conde de
Troya parece mais provavel) , não disputarei. E occupado só por agora das allego
rias do prologo, observarei, que si no Cantico do Paraiso Can Grande não mostrava
senão faiscas de sua virtude (le faville di sua virtù ), e os povos não conheciam
ainda o seu valor, porque apenas tinha 9 annos ( e non se ne erano ancor le genti
accorte per non aver esso che nove anni), como podia Dante no Cantico do Inferno,
que foi primeiro escripto, prophetisar n'elle o Veltro destruidor da Loba, o heroe
redemptor da Italia ? Na dedicatoria, que Dante faz, do seu terceiro Cantico a Can
Grande, na qual devia certamente especificar os louvores, que o Senhor de Verona
merecia, chama-o pietoso, cortese, magnifico, porém não sapiente. E nenhum pane
gyrista de Can Grande disse nunca que elle fosse sabio. Ora , um dos predicados do
Veltro é a sabedoria. Demais, Dante era testemunha , que no meio do fausto da côrte
de Scaligero se mantinham bufóes, jograes, e aduladores, vilissima canalha, que
ousou por gestos até insultar Ugucião, e ao proprio Dante, que os repelliu com
dignidade. Como, pois, podia elle louvar como sabio (sapiente) ao dito Can Grande,
sem nodoar-se da mancha de adulador ? Dante adulador! Reflictam os sequazes de
Vellutello n’esta mancha, que imprimem no caracter de Dante, tomando Can Grande
pelo Veltro !
Deixarei portanto em paz os Scaligeros, que occupam no Poema o seu posto, sem
ambiguidades, e allegorias, e por conseguinte o Veltro nada tem de commum com
elles. Voltar -me-hei, pois, a Ugucião della Faggiola.
Tão debeis eram as provas, em que se apoiava a conjectura dos commentadores
sobre o ser Can Grande o Veltro, que o engenho, e erudição do Conde de Troya
poderam expellil-as do ninho, e n'elle collocar o seu heroe Ugucião della Faggiola !
Mas isto não quer dizer que Troya tivesse razão. Por maior valor, que se possa
conceder a Ugucião, tendo em consideração suas passadas emprezas militares, elle
não podia inspirar confiança ao partido gibelino, senão depois da victoria, que
alcançou em Val de Nievole, em 1315 , onde ficaram mortos no campo mais de
2 :000 Guelphos. Antes d'essa epocha, que cousa havia sido Ugucião ? Potestà de
Arezzo, de 1292 a 1296, onde, corrompido pela esperança, que lhe dava Bonifacio VIII
de nomear um seu filho Cardeal, tão injuriados se consideraram os Gibelinos com
similhante baixeza, e perfidia, que os miseros se retiraram immediatamente d'aquella
cidade, onde se tinham refugiado ( 2). Depois, em 1297, foi Capitão de aventura de
algumas pequenas cidades da Romanha, d'onde foi expulso. Feito em seguida Se
nhor de Pisa, e Luca, lá praticou taes ribaldarias, e com tão pouca

Sapienza, amore, e virtute

governou aquelles povos, que estes se rebellaram, e o expelliram do mando, sa


queando -lhe os Pisanos o palacio ( 1316). Refugiou -se na côrte dos Scaligeros,
onde teve o grau de Capitão general. « Guerreou com Can Grande contra Brescia ;
« depois voltaram -se ambos contra os Paduanos, que, em desprezo á paz, haviam
« tentado surprehender Vicencia , e cuja audacia foi punida com grandes estragos.
« Can Grande não julgou poder melhor defender Vicencia, do que conceder a Ugu
(

(1) Para comprehender esta predição, convem saber que Dante quer que se escreva por 500 a lettra D),
por 5 a lettra V, por 10 a lettra X. Estas tres lettras formam a palavra Dux, general; querendo significar, que
virá um general, que ha de matar a meretriz, e o gigante. Qual seja a meretriz, e o gigante aqui alludidos, não
é mister declarar agora, pois não é este o logar proprio.
(2) Dino Compagni, Chronica ; Arrivabene, Seculo de Dante, vol. 1, p. 378.
28 O INFERNO

acião o arbitrio supremo : o Faggiolano teve o titulo de Poiestà, e (por aquella


« sabedoria , amor, e virtude, que do velho tinha adquirido), inflingiu austera vingança
« (vendetta ), aos moradores, que tinham favorecido aos assaltantes ( 1).»
Parece, pois, que este Ugucião não tivera outra mira, senão alimentar-se dos
productos da terra , e do dinheiro (di cibarsi di terra , e di peltro); e si tinha valor
de braço, não tinha de certo nenhum dos predicados do Veltro de Dante, isto é,
Sapienza, amore, e virtute.

Em face do que precede, parece-me que Ugucião está inteiramente excluido da


allegoria do primeiro canto. Dante podia muito bem consideral - o como Capitão
valorosissimo ; podia ainda (si não fosse completamente falsa a carta de Fr. Hila
rio), dedicar- lhe o Cantico do Inferno; podia em alguma occasião ter posto n'elle
esperança de que com as armas desse principio á reforma politica ; nada d'isso,
porém, formava senão uma minima parte da grandiosa intenção de Dante, todo
votado á civilisação universal, que só podia ser operada pela sabedoria, amor, e
virtude, quesitos que falleciam completamente em Ugucião.
Emquanto, pois, não se abandonar a illusão de que no Veltro se occulta um
personagem historico contemporaneo ; em quanto se confundirem os logares, em
que Dante invocou realmente um libertador da Italia , um restaurador do Imperio,
um moderador dos abusos do poder temporal da Egreja, com os intuitos geraes
complexos de todo o Poema, que são, como deviam ser, expostos no prologo da
Divina Comedia, isto é, nos dois primeiros cantos, será sempre vā , e perpetua a
lide entre os interpretes sobre a qual dos tres personagens mencionados alludia o
Poeta, e quando todas estas aberrações não bastarem , outros, revolvendo o pó dos
mortos, e das chronologias, surgirão a preencher as lacunas com Ludovico o Ba
varo, Morello Malaspina, Matteo Visconti, Cartruccio Castracani, e outros. Em vez de
afanosamente se perderem em conjecturas na determinação de tal personagem , de
viam perguntar a si mesmos : Trata - se de pessoa viva , que esteja envolta na allego
ria do Veltro ? Eis o problema, que cumpria resolver, antes de andarem ás tontas
em busca da incognita (2). Si Dante fosse interrogado a respeito de quem fosse o
seu prophetisado Veltro, é bem provavel que désse a mesma resposta, que lhe deu
Virgilio :
non uom ; uomo già fui,

« Homem não , mas homem fui .»


Isto não quer dizer, que o Veltro houvesse sido um homem ; quer dizer, porém ,
que, não sendo já Virgilio um homem , mas sim um espirito, assim o Veltro não era

( 1 ) Troya , Veltro Allegorico, p. 161 .


(2) Eu devo aqui fazer justiça a um optimo italiano, e valente escriptor G. P. , que em uma Vemoria sobre
o Veltro offerecida ao Marquez Gino Capponi , foi o primeiro que em nossos tempos se oppoz , com robustas
razões e provas historicas, á commum illusão da personalidade contemporanea do Veltro. Porquanto aos
olhos de um homem como Dante, de tão largas vistas, e tão cheio da idea da sobrevivencia com afama no
futuro, as pessoas passam , e as cousas ficam . E Allighieri tinha bastante potencia de intellecto para ver que
so um grande ordenador do novo magno instiíuto podia ser o Salvador da Italia. D'ahi, não vendo-o, e não
o podendo ver em nenhum dos seus coetaneos, elle o collocou no futuro ... (Veja -se a Anthologia n.° 134,
fevereiro de 1832) . Mas, se o illustre sr. G. P. não vê, e com razão, entre os coetaneos de Dante um só persona
gem que podesse ser o Veltro, todavia opina , que o Poeta allude ao esperado renovar -se de um d'aquelles dois
Imperadores italianos Berengurio del Friuli, ou Guido de Spoleto, ungidos, sagrados, e coroados Cesares
ambos pelo Papa Formoso . N'isto não estamos de accordo ; porque o sr. G. P., bem que não diga positiva
mente que era um d'estes dois Imperadores o Veltro, comtudo fal - o entender, e contrasta a nossa these, que
sustenta não ser o Veltro « um ser humano » .
INTRODUCCÃO AO CANTO I 29

um homem vivo, era um ente moral, era o symbolo de um evento futuro, abstra
ctamente concebido na esperança, e grandiosa intenção de Dante. E depois de ter
visto na selva selvagem o seculo corrupto, nas tres Feras, os tres capitaes, e formi
daveis inimigos, que se oppunham á regeneração social, e depois de ter compre
hendido, que o maior d'elles era a barbarie, symbolisada na Loba, naturalmente
devia pensar, que o poderoso adversario, que viria por fim exterminal-a de todas
as cidades, seria a civilisação moral , e a sabedoria, e o amor, e a virtude, esparsas
no Poema destinado a esse desiderando, seriam os poderosos instrumentos de que
se havia de servir o Veltro.

E sua nazion sarà tra Feltro e Feltro.

« E sua nação será entre Feltro e Feltro .»

Porque se levantou tanto clamor contra os antigos commentadores, que inter


pretaram por feltros os céos ? E não se coaduna com as ideas cosmologicas profes
sadas por Dante, que de um céo a outro se filtravano le intelligenze ou para descer
ás sublunares, ou para subir até as supremas jerarchias ? O Poeta, pois, quiz signi
ficar que a nação do Veltro era entre os céos, e a terra, era o mundo, porque,
tendo como ponto de fé christā, que a verdade evangelica, pregoeira da civilisa
ção, será diffundida por toda a terra, era consentaneo que o Veltro, symbolo d'esse
immenso poder moral, não limitasse a sua missão dentro do territorio italiano. É
certo, porém, que Dante queria que essa civilisação começasse na Italia, e d'ahi a
salvação, que havia de vir aquella parte mais opprimida da Italia .
Per cui morì la vergine Camilla ,
Eurialo, e Turno, e Niso di ferute.
« Em defeza da qual morreram das feridas do combate
A virgem Camilla, Eurialo , e Turno, e Niso . »

Vê-se que a operação civilisadora do Veltro começaria na Italia ; da Italia, como


centro, se diffundiria por toda a Europa. É n'este sentido que diz o Poeta, que,
inaugurado na Italia o imperio da civilisação, e da moral , a Loba (a barbarie ), que
então assolava muitas partes da mesma Italia, seria afugentada de todas as cidades,
e mettida de novo no Inferno, d'onde a tinha vomitado a primitiva inveja

Là onde invidia prima dipartilla.

Eis um verso, que é um escolho terrivel para aquelles commentadores, que sus
tentam ser a Loba symbolo do Papa, ou do Guelphismo ! Ora, si a Loba é o Papa,
segue-se logicamente que o Papa, tendo tido no Inferno a inveja por mãe, no In
ferno seria de novo lançado ! De modo que o Papa, que, segundo Dante é o Summus
Sacerdos in æternum, o Depositario das chaves do reino dos céus, mettido agora,
pelo Veltro no Inferno, necessariamente levaria comsigo as chaves do Paraiso, e en
tão nem Dantei nem mais christão algum lá entraria ! Um tal absurdo não é sim
plesmente um absurdo, é uma impiedade grosseira, ou uma ignorancia supina do
verdadeiro conceito dantesco . O Poeta, usando das palavras primitiva inveja, está
indicando que allude áquelle acto de barbarie humana, suggerido por aquella in
veja, que no principio do mundo arrastou Caim a manchar-se do sangue innocente
de seu irmão Abel. É pois a esta primitiva barbarie humana que o Poeta allude ; e
30 O INFERNO

foi por isto que na terceira grande divisão do Inferno, onde a barbarie é punida,
a primeira fossa se chama Caina, que não precisa declarar que deriva de Caim ,
primeiro barbaro, primeiro invejoso, primeiro fratricida, primeiro homicida, e pri
meiro fraudulento ; crimes que o Poeta personifica precipuos na barbarie do seu se
culo. É por esta razão, ainda que Virgilio diz-lhe que, si quer que se effectue a civi
lisação italiana, e que elle possa cooperar para ella com todas as suas forças natu
raes, e sobrenaturaes, o caminho mais seguro era seguil-o, pois que elle o havia
de tirar d'aquella sociedade corrupta (a selva escura), e leval-o por uma região
eterna :
Ond' io per lo tuo me' penso e discerno,
Che tu mi segui, ed io sarò tua guida
E trarrotti di qui per luogo eterno.
O alto fim de Dante não era nem tornar á patria , nem abater o Guelphismo,
nem tirar o mando a Filippe o Bello, nem a Carlos de Valois. Tudo isso eram,
digamos assim, questiunculas de campanario, que o Poeta fazia entrar n'um ou
n'outro logar dos seus tres Canticos, como escuros do quadro de atiladas cores. E
qual fosse o fim principal da Divina Comedia, já ficou definido n'outra parte d'esta 9

dissertação ; mas, para que não esqueça, eil-o : Finis totius operis, et partis est remo
vere viventes in hac vita de status miseriae, et producere ad statum felicitatis (Epistola
a Can Grande). Diante pois da grande causa da humanidade, diante do generoso in
tuito de regeneral-a, o unico egual em dignidade ao altissimo canto, o unico que
podia ser concebido na divina mente de Dante : que vulto podiam ter os seus aggravos
pessoaes de Bonifacio VIII, as suas invectivas contra Filippe, Rei de França, e Car
los de Valois, e seus vituperios a Guelphos, e Gibelinos, e sobretudo as passageiras pri
vações, e miserias do seu exilio ? Tudo isso eram fogos fatuos ante a luz do Planeta,
que alumia.por toda a parte o caminho dos mortaes.
Che mena dritto altrui per ogni calle.
Ainda mais : Para realisar o aperfeiçoamento social, para remover da humanidade
aquella parte de brutalidade, aquella parte de força instinctiva, que a deturpava,
aquella ignorancia, que a envilecia, aquelle fermento de odios, que a azedava : que
valor podia ter o concurso dos Scaligeros, dos Uguciãos, e de outros apontados
como desempenhadores da missão do Veltro ? Quem reflectir que o proprio Dante,
aquelle immenso intellecto, que meditava a estupenda reforma, não se reconhe
cia sufficiente para leval - a a cabo, ha de convencer -se de que a nossa interroga
ção não pode ter outra resposta. O obstaculo, que lhe oppunha a barbarie era tão
espantoso, que o impellia de novo a voltar para o logar onde a luz do Sol emmu
dece (là dove l'Sol tace). Invoca o auxilio de Virgilio, mas ainda duvida, pois
diz -lhe :
.Poeta, che mi guidi,
Guarda la mia virtù s'ella è possente,
* Prima che all'alto passo tu mi fidi.

.... Poeta, tu que me vaes guiar,


Antes de me expores a lance tão difficil,
Vê bem se tenho bastante força para arrostal- o . »

E depois que Virgilio o conforta, assegurando -lhe, que elle não terá só o seu au
xilio na execução de tão ardua empreza, mas que o terá tambem de tres mulheres
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 31

bemditas (di tre dorthe benedette), das quaes recebeu a solemne missão de o guiar,
só então Dante dissipa os receios, levanta a cabeça, e diz resolutamente a seu
Mestre :
Or và, che un sol volere è d'ambedue .

« Eia, vamos, que uma só vontade será a de nós ambos.»

Aqui temos pois claramente declarada, não só a qualidade da alta missão civili.
sadora, como a opportunidade, a necessidade d'ella, segundo o systema ideal dos
primeiros periodos da humana civilisação, que Dante formára .
Roma, segundo Allighieri, havia conseguido o seu aperfeiçoamento civil sob o
Imperio ; e Virgilio tinha fechado aquella epocha prophetisando a nova, com a volta
dos reinos de Saturno (redeunt Saturnia regna ), e essa nova epocha foi a do Chris
tianismo. A humanidade, regenerada por este, achava-se, em 1300, necessitada de
aperfeiçoamento civil ; porque a deturpavam as libidinagens, as guerras fratricidas,
e todos os vicios produzidos pela barbarie. Mas este aperfeiçoamento civil não po
dia ter norma, que mais bella fosse, nem mais segura do que a da Monarchia Ro
mana, que dominou todo o mundo. Por onde Virgilio é o symbolo da sabedoria la
tina, que Dante mirava alliar com a da meia edade. Demais, a nova era, que nascia
com o Christianismo, devia fulgurar mais alem do que as romanas glorias, devia apu
rar, e retemperar a- moral civil com o elemento religioso de que Beatriz era verda
deira encarnação. Virgilio, prophetisando o reinado de Augusto, e o aperfeiçoamento
civil do Imperio, enviou Eneas aos reinos eternos guiado pela sibilla . Não repre
senta senão a parte poetica, porque o seu heroe era para elle o civilisador. Dante
pelo contrario, quiz representar ambos os personagens, porque não via nenhum no
seu tempo capaz de tão alta empreza .
Se vado io, chi resta ?
Se resto , chi va ?

« Si eu vou, quem fica ?


Si eu fico, quem vae ? » (1)
Quem o guia pois é Virgilio, isto é, a sabedoria romana, até aquelle ponto,
aonde podia chegar a civilisação do paganismo : começada porém a era da depu
ração moral christā, a guia é Beatriz, symbolo do novo elemento religioso. E tanto
é verdade, que vemol-a assentada ao lado de Rachel, que representa o Antigo Tes
tamento, como Beatriz o Novo : vemol-a movida pelas palavras de Lucia, que é a
imagem da Fé ; vemol-a chamada pela mesma Lucia verdadeiro louvor de Deus
( loda de Dio vera ): e a alta missão de Dante, em que tomam parte tres habitadoras
da Côrte Celeste, vemol-a executada por aquella Senhora gentil (Donna gentile ), que
é o symbolo da Misericordia, ou de Maria Santissima
Questa chiese Lucia in suo dimando,
E disse ; or abbisogna il tuo fedele
Di te, ed io a te lo raccomando.

« Esta chamou Lucia, e lhe disse :


N'este momento o teu fiel (Dante)
Precisa do teu auxilio, e eu t'o recommendo. »
( 1) Boccacio, Vida de Dante.
32 O INFERNO

E que Dante quizesse fazer entender que a sua missão era predestinada a abrir
uma nova era á humanidade, o mostra, fazendo-a partir do mesmo impulso divino,
e ligando á sua as anteriores missões, isto é, a de Eneas, e a de S. Paulo. D'esta ul
tima (da de Eneas já falámos) diz Dante a Virgilio :
Andovi poi lo Vas d'elezione,
Per recarne conforto a quella fede,
Ch’è principio alla via di salvazione.
Ma io perchè venirvi ? o chi ' l concede ?
Io non Enea, io non Paolo sono :
Me degno a ciò nè io, nè altri crede ( 1 ).

«Muitos seculos depois de Eneas, o vaso de eleição


Foi tambem ao seculo immortal (ao Paraiso ),
A fim de trazer de lá a prova da evidencia d'aquella Fé,
Que é o principio do caminho da salvação.
Mas eu por que razão devo ir ao Inferno ?
Não sou nem Eneas nem S. Paulo (que tinham missão especial)
Nem eu, nem pessoa alguma me acha digno de fazer tal viagem .»
E aqui Virgilio, para que Dante, e outros o cressem , explica - lhe como isso foi
disposto nos conselhos eternos, e que depozesse toda a duvida, pois que era elle pre
destinado por Deus para desempenhar tão alta empreza. Logo, Dante via em si só
reunidos o operante, e a operação . Mas os resultados somente o futuro os podia ver ;
porque não seria Can Grande, nem Henrique de Luxemburgo, nem Ugucião quemor
reu tres annos antes que o Poeta, nem todos os Guelphos e Gibelinos juntos que
haviam de produzir esses resultados, não só por incapazes, como porque a Italia não
estava ainda disposta nem preparada ( 2). Dante esperava, que se deveria verificar em
uma nova edade civil europea aquillo, que Estacio indica ter-se verificado pelo
Christianismo, depois da prophecia de Virgilio :
Già era il mondo tutto quanto pregno,
Della vera credenza , seminata
Per li messaggi dell' eterno regno ;
E la parola tua sopra toccata
Si consonava a nuovi predicanti ;
Ond ' io a visitarli presi usata ( 3 ).

«O mundo todo já estava impregnado


Da verdadeira crença diffundida
Pelos mensageiros do eterno reino ;
E a tua palavra supra indicada
Consonava com os novos prégadores ;
Por esta razão me dei a visital-os..

Si eu quizesse ver no Veltro allegorico um ente humano, este não seria outro,
senão Dante reunindo em si dois personagens : um vivente collocado no meio do
( 1 ) Inferno, C. 11.
(2) , ... a drizzare Italia
Verrà in prima ch'ella sia disposta
( Paraiso, c. Xxx. )
(3) Purgatorio, c . XXII.
INTRODUCÇÃO AO CANTO I 33

seu seculo, laborando sem cessar no sentido de uma alta missão civilisadora : outro
intellectual, collocado no meio da posteridade, na qual previa a influencia, e os
fructos da sua soberana empreza ; é, em resumo, o mesmo Dante antevendo, e indi
cando a influencia do seu genio, e da sua grande obra na plenitude dos seculos
futuros. Esta seria a unica variante admissivel, attenta a circumstantia notavel de
que n'aquelles tempos, em que elle escrevia, não havia outro homem, de quem se
podesse dizer que, sem outro poder, e sem outra riqueza, que a sabedoria, o amor , e
a virtude, poderia ridimir a Italia, civilisar a Europa, senão elle. Repito, seria esta
a unica hypothetica concessão que se poderia fazer aos que teimam ver no Veltro
allegorico um ser humano.
Satis superque. Tenho dito assás, e de sobejo. Não dissimulo, que se me póde
arguir de demasiado prolixo. A vastidão do ideal da Divina Comedia não exigia
menos. Conhecido bem o ponto, em torno do qual rodára a machina do pensa
mento capital de uma obra, é facil seguil-o em todas as suas evoluções. Por ter
sido Dante, por via de regra, tractado, e estudado perfunctoriamente, graves du
vidas, e grandes erros , e, direi mesmo, heresias, têem sido lançadas á sua conta.
A prolixidade só dilue, e enfraquece a idéa, quando o assumpto, que a encarna é
magro, e infecundo. Não é este de certo o da Divina Comedia ! E portanto, antes
quero que se note n'este meu trabalho abundancia superflua, do que exagerada
concisão, que, em vez de esclarecer, e amplificar, obscurece , e trunca pensamen
tos, que de sua natureza requerem ampla expansão. O segredo está em evitar a
monotonia , que é o que produz o enfado. Um escripto, em que se revesam as
mesmas cousas, mas em estylo variado, só póde enfastiar os que padecem de anes
-thesia intellectual. « A prolixidade está no enjôo, diz Bocage : tres versos máos
cansam mais depressa, que uma obra abundante de imagens, e pensamentos subli
mes, por mais comprida que seja. Alludia o grande Poeta á increpação, que alguns
dos seus emulos lhe faziam , de referir o successo por elle cantado com toda a
miudeza de circumstancias, como si a missão do poeta fosse só deleitar, e não
instruir. Aristoteles ensina, que a poesia é mais veridica, do que a historia Pouco
se me dará pois que digam , que ha muitas repetições nos meus commentarios a
Dante. Hei de apresental-o sob todas as formas ao paladar de todos. Elle mesmo
no seu Convito deu- nos o exemplo, offerecendo -nos as mesmas iguarias sob diver
sos condimentos. A intelligencia, a percepção, o gosto, não são eguaes em todos
os leitores. Um certo modo de dizer, que é intelligivel, e agradavel a uns, não o é
a outros. Ex abundantia cordis os loquitur, diz o Evangelho. Si a abundancia do
sentimento é fecundadora da palavra, por egual razão a abundancia de um as
sumpto não pode deixar de exigir toda a largueza no seu desenvolvimento. É isto
o que exactamente me impõe a Divina Comedia no seu intuito vasto, e complexo .
Consoante com o espirito d'estas observações, declaro que nos extensos com
mentarios de que faço acompanhar os primeiros cantos, seguirei quasi litteralmente
as explanações do notavel interprete J. B. Giuliani, que foi n'estes ultimos tempos
o que melhor, e mais authenticamente comprehendeu o segredo dos conceitos
dantescos. É natural que, inspirando-nos da mesma fonte, que é o proprio auctor
da Divina Comedia, reproduzamos por palavras diversas os mesmos conceitos,
com variantes, mormente sobre o Veltro. O sabio professor entendia, que o grande
reformador prophetisado pelo Poeta será um Sancto Pontifice, e por conseguinte
um ser physico ; eu pelo contrario entendo que o Veltro é um ser moral, é o
triumpho pleno da verdade sobre o erro, da sabedoria sobre a ignorancia brutal,
do amor sobre os odios fratricidas, da virtude sobre os vicios. Toda esta revolução
profunda, universal, não podia ser operada por um só Pontifice, por mais sabio, e
virtuoso, e sancto que fosse, salvo si attingisse á edade de Mathusalem. Si ao
3
34 O INF
ERN
O

menos se quizesse entender pelo Veltro o Pontificado, a explicação seria admissivel


sem repugnancia ; porque o Pontificado é um ser moral potentissimo, um ser moral
não transitorio, mas que permanecerá usque ad consumationem sæculi. A mesma
ligeira divergencia se dá no modo de interpretarmos o sentido allegorico da Loba ;
mas na essencia estamos de perfeito accordo. E devo dizer, não com vaidoso orgu
lho, mas com modesto desvanecimento, que, expondo todas estas minhas aprecia
ções ao referido professor Giuliani, este grande homem , a quem a sciencia não
entumecia, apertou -me a mão, dizendo : Benissimo, Monsignor ! Precisarei de uma
testemunha presencial ? Pois a tenho no venerando Conde Ambrogio de Lugo, que
em muitas cartas, que me escreveu, e possuo, depois da inesperada morte do
nosso commum amigo, confessa a plena approvação que, não só n'aquella occasião,
como em outras muitas, o sabio extincto dera aos meus trabalhos dantescos.
CANTO I

Adverte Dante que se acha como por encanto perdido n'uma selva escura – Declara que é difficil descre .
vel -a - D'ella sae a muito custo – Vae dar comsigo a um monte ameno irradiado pelo Sol nascente -
Tenta logo subil -o -- É impedido ao começar por tres Feras : uma Onça, um Leão, e uma Loba -- Ame.
dronta-se, e precipita -se de novo na selva – Um homem desconhecido apresenta -se -lhe, e fal- o parar -
Dante pede- lhe auxilio contra a ultima fera - O desconhecido declara - se Virgilio , e o interroga porque
volta de novo á horrenda selva - Dante mostra- se firme em querer subir o monte – Pede de novo a Vir
gilio que o soccorra contra a Fera – Mas Virgilio o dissuade da empreza , que para elle era insuperavel,
e que o meio de sair de tantas difficuldades era tomar outro caminho, sem indical -0-- Consola -o com
a predicção de que a Loba terá um vencedor, que ha de fazer a salvação da Italia – Indica -lhe os altos
predicados d'esse vencedor portentoso - Confortado assim Dante , Virgilio annuncia -lhe a viagem em que
lhe ha de servir de guia, levando -o pelo luferno, e pelo Purgatorio, promettendo- lhe que uma pessoa mais
digna do que elle ( Virgilio) o conduzirá depois ao Paraiso - Dante, reanimado, pede a Virgilio que o leve
pelo caminho, que lhe acabava de traçar.

Aos meus 35 annos, termo medio ( 1 ) commum da nossa vida, dei


accordo (2) de mim n’uma selva escura, porque do recto caminho (3)
me afastára .
E quanto (4) 'não é difficil descrever essa selva selvagem, aspera e
espessa, que só a lembrança d'ella me renova o terror no pensa
mento !
Lembrança em verdade tão amarga , que pouco mais o seria a
propria morte ! Mas, para tractar (5) do grande bem , que lá se me de
parou , altas cousas direi que então eu vi .
Tão profundo era o somno em que jazia, (6) no momento d'aquelle
meu desvio, (7) que não sei bem explicar como isso foi.
Mas depois que cheguci ao pé de um monte, (8) lá onde terminava
aquelle valle, que de horror me havia o coração transido,
Olhei ao alto, (9) e vi já suas espaduas banhadas dos raios do pla
neta, que por toda a parte os viandantes guia. (10)
Então arrefeceu um pouco o grão terror, ( II ) que no lago do cora
ção me andou immerso, durante aquella noite, que passei de angus
tias consunrido. (12)
36 O INFERNO

E qual o nauta , que afanoso escapando do naufragio , volta-se da


praia, e olha as ondas perigosas : tal meu animo, que ainda trémulo
fugia, volveu a remirar o passo, que ninguem jamais transpoz
illeso. ( 13)
Depois que dei repouso ao lasso corpo, ( 14) continuei a subir a so
litaria encosta , ( 15 ) andando de modo que o pé firme ficava sempre
mais em baixo . (16)
E eis que, no principio quasi da subida , surgiu uma Onça ligeira,
e muito prompta , que de pelle mosqueada era coberta . ( 17)
E collocada sempre ante meus olhos, tão pertinaz o passo me
impedia , que muitas vezes me voltei para tornar atraz . ( 18)
O tempo em que isto acontecia, era ao romper da manhã ; (19) e o
Sol assomava no horisonte com aquellas estrellas, (20) que o seguiam ,
quando o Amor divino creou tão bellas cousas ;
De modo que a hora matutina, e a doce estação da primavera,
fizeram-me conceber toda a esperança de triumphar da Fera de pelle
graciosa ; (21)
Mas não foi tal essa esperança, que me preservasse do terror, que
me causou a subita presença de um Leão, que sobreveiu .
Este parecia encaminhar -se para mim de cabeça alçada, e com
fome tão rábida, (22) que o proprio ar ambiente como que d'elle tre
messe . (23)
E após o Leão saltou uma Loba (24) magrissima, que parecia devo
rada de todos os appetites , que a muitas nações têem funestado. (25 )
Tão grande era o pavor que me vibravam seus olhos, (26 ) que
perdi toda a esperança de vingar o vertice do monte. (27)
E qual aquelle, que gostoso adquire o que deseja, (28) e chora, e
se amofina , si das mãos lhe foge ; tal me aconteceu , quando aquella
Fera insaciavel , (29) saíndo ao meu encontro , pouco a pouco de novo
me impellia para o logar, onde emmudece a luz do Sol. (30)
Emquanto me precipitava no tenebroso valle, (31 ) ante mim asso
mou um personagem, que pelo longo silencio parecia rouco . (32)
Quando em tanto deserto tal figura eu vi, (33) bradei-lhe : «Ó tu,
quem quer que sejas, sombra, ou homem , (34) amisera-te de mim ! »
Respondeu-me : « Homem não, mas homem fui: (35) Meus paes
foram Lombardos, e ambos por patria houveram a formosa Man
tua . ( 36 )
« Sob Julio Cesar nasci, ainda que fosse tarde, (37) e vivi em Roma
sob o reinado do bom Augusto, no tempo dos falsos mentirosos
Deuses . (38)
« Fui Poeta ; (39) cantei os heroicos feitos d'aquelle justo filho de
Anchises, ( 40) que de Troya veiu , depois de abrazada a soberba Illion. (41 )
CANTO I 37.

« Mas porque voltas tu á selva , que envenenou teus dias ? (42) Por
que não sóbes o deleitoso monte, principio , e causa de toda a ale
gria ? » (43)
Com vergonhosa fronte respondi : « Oh ! És tu aquelle Virgilio,
aquelle manancial , que esparge tão largo rio de eloquencia ?
« O dos outros poetas honra, e luz ! ( 14) Valham-me na tua pre
sença, como penhor de protecção, o longo estudo, e o grande amor,
com que tenho esquadrinhado o teu volume ! ( 45)
« Tu és o meu Mestre, e o meu Auctor : (46) De ti somente aprendi
o bello estylo , que tanta reputação me tem grangeado . (47)
«Vê ali a Loba , por temor da qual voltei do monte : (48) D'ella me
defende, ó famoso sabio , pois me faz tremer as veias, e os pulsos . » ( 49)
Vendo-me assim em lagrimas desfeito, disse : « Si queres saír d'este
logar selvagem, outro é o caminho, que te convem seguir. (50)
« Porque esta Loba que te causa terror, e pranto, não consente
que ninguem passe pelo seu caminho ; mas tanto o impede , que por
fim o mata . (51 )
« E a sua natureza é tão má, e perversa, (52) tão sedento, e insacia
vel o seu appetite, que , quanto mais come, mais se lhe desafia a gu
losina . (53)
« Muitos são os animaes com que se ella ajunta, (54) e com muitos
mais se ajuntará ainda , (55) até que venha um Veltro, (56) que a fará
morrer de dor. (57)
« Não se nutrirá elle da ambição de possuir largas terras, nem
grandes thesouros. Mas terá por norma dos seus actos a sabedoria ,
o amor, a virtude, e a sua nação será entre Feltro, e Feltro. (58)
« Fará a salvação d'aquella humilde parte da Italia , (59) em defeza
da qual pereceram das feridas do combate a virgem Camilla, e Niso,
e Turno.
« Perseguirá a Loba famulenta por todas as cidades, (60) até sub
mergil -a de novo no Inferno, d'onde fêl- a saír a primitiva inveja. (61)
« E pois penso, e tenho por certo, (62) que é de teu interesse que
me sigas ; eu serei o teu guia, e levar-te-hei d'aqui a uma região
eterna . (63)
« Lá ouvirás os clamores desesperados, verás os antigos espiritos
lastimosos invocar cada um a segunda morte. (64)
« E verás aquelles, que exultam no meio das chammas , (65) porque
а esperança os anima , que voarão opportunamente ao seio dos bem
aventurados .
« Si depois quizeres subir á região mais alta, lá encontrarás, para
guiar-te, um espirito mais digno do que eu ; (66) mas não te deixarei,
sem que elle te tome sob sua guarda .
38 O INFERNO

« Porquanto aquelle Imperador, que reina alem dos astros, 167) por
que fui rebelde á sua lei, (68) não me permitte entrar na sua cidade .
« Impera em todas as partes do universo, e lá reina ; porque lá
tem propriamente o seu Paço, e o seu Solio : oh, felizes os que elle
escolhe para tão ditosa mansão ! »
E eu lhe respondi : « Ó Poeta, não só estou prompto a seguir-te,
como te rogo por aquelle Deus, que não conheceste, (69) que, para
que eu me salve, d'este mal , e de cousa peior, (90) me conduzas a essa
região de que me falas, de modo que eu veja a porta de S. Pedro, (71)
e aquelles, que descreves em tanto desespero, que invocam uma se
gunda morte . »
Então Virgilio caminhou, e eu o segui. (72)
COMMENTARIOS AO CANTO I

(V. 1 ) Nel mezzo del cammin di nostra nheci, cai em mim , dei accordo de que
vita.- Ao fazer estes commentarios, pro estava dentro de uma selva escura. Es
cederei pela mesma forma que Dante tes verbos, comquanto muito significa
seguiu no. Convito. Discorrerei, portanto, tivos, não bastam ainda assim por si
sobre a Divina Comedia, como elle o fez sós para representar-nos o complexo
sobre as suas canções, explicandoprimei das idéas, que elle quiz encerrar no mi
ro o sentido litteral, e depois a sua allego ritrovai. Porque o ter errado a recta
ria, isto é, a verdade encoberta ; e uma vereda não importava necessariamente
vez ou outra , conforme convier em seu dever o Poeta chegar aquelle logar
logar, e tempo, referirei incidentemente silvestre, e tenebroso ; mas o ter-se elle
os outros sentidos ( moral ou mystico). ahi achado faz suppor que se tivesse des
(Conv ., tr. 2, c. 1 ). E principiando desde encaminhado ou desgarrado (entrado
já pela lettra do primeiro verso, é preciso por erro) ; que conseguintemente ahi
saber que a nossa vida procede á simi entrasse tão cheio de sonino, como es
lhança de arco, subindo, edescendo (Conv., tava quando se afastou do bom cami
tr. iv, c. 23 ). Onde seja o ponto supremo nho. Por isso, para melhor nos expli
(o meio d'este arco ), não se pode bem car essa sua aventura, dirá em outro
definir, mas crê -se,- que para o maior logar, que se desgarrou ou desencami
numero, sendo perfeitamente conforma nhou n'um valle ( Inf., xv, 50).
dos, é aos trinta e cinco annos. E Dante La selva oscura, allegoricamente, si
mostra-se firme n'esta crença, quando gnifica o estado dos vicios, ou, digamos,
ao falar da juventude diz : que ella é a vida viciosa, em que Dante jazeu
verdadeiramente o cumeda nossa vida ... adormecido até á edade ha pouco indi
e o cume do nosso arco (vida) é aos trinta cada . Do que elle mesmo-nos dá seguro
e cinco annos. D'aqui podemos concluir, testemunho, quando, falando com Fo
que o Poeta se achou na escura selva, rese, lhe traz á memoria a sua antiga, e
já na sua juventude, ou seja no cume da má convivencia , e acrescenta : d'aquella
nossa vida, o que quer dizer aos trinta vida (má, pois que era pungente o recor
e cinco annos da sua edade, e por con dal- a ), tirou -me este (Virgilio ), que me
seguinte aos mil e trezentos da nossa vae adiante, ha dias quando redonda se
salvação. mostrou a irmá d'aquelle, e o Sol mostrei
(2 ) Mi ritrovai, etc., que foi como si ( Purg ., XXIII, 118) ; e este tempo, si se
dissesse : despertei, e vi, ou, para falar pensa bem, corresponde exactamente
mais claramente , despertando do somno, áquelle dia em que o Allighieri, para es
em que jazia no ponto em que abando capar da selva, á qual já se tornava, re
nei a verdadeira estrada (v. II ), reco solveu seguir Virgilio, que lhe promet
40 O INFERNO

têra tiral- o d'ella para o conduzir a logar ao sentido principal, diremos, que o
eterno ( Inf., I, 114) . Verdade é, que nos smarrire ( desencaminhar ), uma cousa,
verbos citados,o adverbio altr'ier deve ou a si mesmo, não é sem esperança de
se tomar quasi no sentido de então, que tornar a achar - se a si ou a cousa : ao
está certamente determinado pelo quan passo que, para quem perdeu esta , ou
do que o acompanha. De resto, o nosso se perdeu a si, toda a diligencia é inutil.
Dante desgarrou-se na selva dos vi Perdido é aquillo que mais não espero
cios, depois que morreu Beatriz, a qual achar, disse Petrarca, porque descami
amparava -o, e guiava -o ao amor d'aquelle nhado por muito tempo, perdido para
bem ineffavel, alem do qual nada ha a sempre .
que aspirar (Purg ., xxx, 120 ). Ninguem ( 4) E quanto a dir qual era è cosa du
porá duvida sobre isto, si quizer since ra... tanto è amara , chepoco è più morte.
ramente acreditar na expressa confissão Em vez de Ah ou Ahi quanto, deve -se
em que o Poeta se manifesta á sua preferir a lição E quanto, por ser em
dama : As cousas presentes, com seus tudo conforme á maneira narrativa com
prazeres fallazes, desviaram meus pas que o Poeta se introduz em todos os
sos, logo que o vosso rosto se escondeu Canticos da sua divina Obra. Alem de
( Purg ., XXXI, 13 ). que a exclamação ahi obrigaria a inter
( 3 ) Chè la diritta via era smarrita. pretar cousa dura por cousa spiacente,
De tudo quanto acima discorremos, re ou
outra similhante, quando em vez
sulta claro o valor d'este chè : o qual não d'isso aqui significa ardua, malagevole,
é alternativa de de maneira que, ou de difficile, como no v. 13, XXXII, do Inf.:
onde, mas sim de porque; tendo o Poeta O sopratutte mal creata plebe, che stai
entrado na selva , precisamente porque nel luogo onde parlare é duro. Allighieri,
desgarrado abandonou o recto caminho. a quem a arte revelou todos os seus se
De maneira que, denota relação muito gredos, queria que a palavra correspon
diversa d'aquella que exigem os dous desse plenamente ao conceito, e pre
primeiros versos : e onde faz suppor que sentasse do melhor modo possivel a
Dante tivesse errado o caminho dentro verdade da cousa : mas, por isso que
da selva, quando similhante erro lhe esta selva selvaggia, como tambem
succedeu antes de entrar n'ella . aquelle tristo luogo infernal, eram de
Smarrita, e non perdutta, interpretou uma singularissima novidade, bem sen
Boccacio, e rasoavelmente, si se refle tia elle, que não podia descrevel -os de
cte na differença que Dante estabeleceu modo, que não ficasse muito áquem da
entre smarrire, e perdere no canto xxvi, realidade do facto .
9, do Par.: E fa ragion che sia la vista E quanto lhe era difficil descrever
in te smarrita e non defunta. E assim , qual fosse aquella selva... tanto lhe era
tambem na ultima estrophe da Canção : amarga ; porque , si só ao lembrar-se
Voi che intendendo il terzo ciel movette; d'ella, já se lhe renovava o pavor ( v. 6 ),
observa-se a mesma distincção n’aquel ali soffrido ( v. 20) ; o que não seria, si
les versos : Tu non sè morta, ma sè devesse bem imaginal -a, e descrevel-a ?
smarrita, anima nostra , che sì ti lamenti. Falando das proprias desventuras, o
Comquanto n'estes logares estejam as homem sabe experimentar muito mais
palavras defunta, e morta, em vez de vivo o sentimento d'ellas, do que só ao
perduta, é de notar, que entre esta , e recordal -as. Assim , a dor que já oppri
as outras duas não ha differença, len mia o coração de Ugolino só ao pensar
do -se na Divina Comedia : Mondo de no seu deploravel fim ( Inf., xxxi, 6 r),
ao na
fonto ( Par ., XVII, 21 ), Regno della per acrescentou -lhe novo martyrio
dutta ( Inf., III, 3 ), della morta gente rar essa historia cruel.
( Inf., VII , 86 ), e todos egualmente para Referi è amara a è cosa dura, porque
indicar o Inferno. Por isso, voltando assim o pede a razão das cousas, e a cor
COMMENTARIOS AO CANTO I 41

respondencia do tanto ao quanto. Alem ser aquillo que eram , mostrando todavia
de que, amara mal pode convir á selva, que foram homens, pela forma do corpo
não havendo accordo entre amara e humano, que ainda conservam ; por isso
qual era, nem tão pouco á paura, visto é que, tendo-se convertido em malicia,
que tanto è amara, daria a entender, perderam até a natureza humana. Mas,
que já se tivessem sentido os amargos visto que só a bondade pode fazer os
effeitos d'aquella, o que não é exacto . homens, mais do que homens, necessario
Amara, che poco è più morte ; tão é, que a perversidade faça menos do que
amarga é a morte, que o seu nome se homens, todos aquelles, a quem ella des
tinha por derivado da propria amar viou , e rebaixou da condição humana.
gura ; mors dicta quod amara sit ( Sancto Succede pois, que, quem tu vires defor
Izidoro, Ety ., liv. XI, c. 2 , art. 31 ). Este mado por vicios, não possas reputal-o
auctor foi muito estudado, e tido em homem . Aquelle, que a força arrebata as
grande conta pelo nosso Dante . riquezas alheias, todo inflammado de
Selva selvaggia, porque habitada por avareza, se pode dizer que seja simi
feras selvaticas, nem segnata d'alcun lhante a um lobo. Um homem feroz, e
sentiero, e por isso, orma umana ; as inquieto, que pleiteia, e litiga sempre,
pera, e forte, porque de aspri sterpi e poderás egualar a um cão. Aquell'outro,
folti, tanto que difficultava o desenre que se deleite em armar ciladas, e tenha
dar-se , e saír livremente d'ella. Estes prazer em subtrahir o alheio, com en
epithetos, dados á pavorosa selva em ganos, e fraudes, se pode comparar ás
que Dante se achou desgarrado, escla rapozas. Quem , impotente para reprimir
recem-se por meio d'aquella descripção a ira, ruge fremente de raiva, creia - se
do selvaggio bosco, onde são punidos que tem a animosidade do leão. Algum
os violentos contra si mesmos, e as suas medroso, e poltrão, que se arreceie tam
cousas ( Inf., xi , 3, 6, 7). bem das cousas em que não ha que temer,
Selvaggio, applicado á vida dos vicios, seja assimilhado aos gamos. Algum outro
que é a allegoria, queremos dizer a ver vadio, e papalvo, está como feito de um
dade encoberta ( Conv ., tr. II, c. 1 ) da só pedaço, e entorpecido ? diga-se que
selva escura, indica o estado diversa vive a vida dos asnos. Quem, sendo vo
mente bestial a que chega o homem, luvel, e inconstante, muda a cada hora
que n'ella se demora. Porque, sendo o de vontade, e de pensamento, em nada
viver no homem , fazer uso da razão differe das aves . Aquelle, que se afunda
( Conv., tr. iv, c. VII ), quem se afasta da nas vergonhosas, e torpes devassidóes,
razão, e usa todavia a parte sensitiva , entrega - se aos mesmos prazeres vis a
como faz todo aquelle que não raciocina que os porcos se entregam . E assim suc
sobre o fim da sua vida, e o caminho que cede, que quem , abandonada a virtude,
deve seguir, não vive como homem , mas deixa de ser homem , não podendo tor:
como animal (Conv., tr. II, C. VIII, e tr. iv, nar -se deus, transforma-se em bruto .»
C. VII ). ( Boezio Severino, Consolação da philo
Para maior esclarecimento , e confir sophia, traduzido por Benedetto Varchi,
mação desta verdade, tão importante liv. iv, prop. 3 ). Quem porventura du
pelas varias applicações a que se presta vidasse que o nosso Poeta tivesse tanto
em muitas partes da Divina Comedia, em mente estas razões do sancto philo
parece -me inteiramente opportuno re sopho de Roma, certificar - se - hia d'isso,
ferir aqui uma breve, e sabia argumen lendo aquelles versos do Purgatorio,
tação d'aquelle Boezio, que Allighieri em que os toscanos nos apparecem tão
se comprazeu de honrar com o titulo mudados da sua natureza, uns em lobos
de excellentissimo. « Tudo aquillo, que ou porcos, e outros em cães ou rapo
carece do bem , carece tambem do ser : zas, como si Circe os tivesse conduzido
donde succede que os nescios deixam de a pastar ( Purg ., XIV, 20, e seg . ) .
42 O INFERNO

Emtim, bem sei que estas citações scorte. A lição que diz alte cose, em vez
cansam muito a imaginação, ávida sem de altre cose, é mais propria ao caso, e in
pre de correr livremente ; mas para ella dubitavelmente a verdadeira. Deixando,
proceder com segurança, e vantagem no por ser demasiado difficil, e amargo de
estudo do divino Poema, é necessario dizer qual fosse aquella horrivel selva,
que ahi se detenha attenta, e o considere o Poeta dispõe-se a tractar do bem que
com amorosa diligencia. ali achou , e por isso acrescenta, que
Depois, aspra é a vida viciosa , pelos falará das altas cousas, que então viu na
pungentes remorsos que a acompanham , selva. Este discurso procede uniforme ;
e pelo receio das penas atrozes a que mas, mudando alte em altre, corre desor
ameaça condemnar - nos : Anciderammi denadamente. E qual será o espirito que,
qualunque m'apprende (mate -me qual si considerar bem attentamente, não
quer, que me conheça ), era o brado discernirá á primeira vista a inconve
com que a consciencia punidora dilace niencia da interpretação de Buti, e dos
rava a alma do desleal Caim (Purg., seus sectarios ? Eil- a : para tractar do
XIV, 132 ); e o mesmo brado persegue bem que achei n’aquella selva, falarei
sempre os miseros profanos, emquanto das outras cousas, que ahi descobri, as
não estão perdidos. É tambem forte, quoes não são bens ; é exactamente como
pela difficuldade de poder libertar-se si dissesse, que para tractar do bem ...
d'ella, mais ou menos grave, conforme falarei do mal. Pela minha parte não
mais ou menos profundamente n'ella se poderia decidir -me a acreditar, si não
jaż mergulhado. E Dante achava - se já m'o certificassem os olhos, que nas me
tão embaraçado nesta erronea selva, lhores edições da Divina Comedia si ti
que todos os argumentos, boas inspira vesse admittido um erro tão manifesto !
ções, ou acerbos remorsos, não bastavam Deve-se suppor, que ninguem lhe prestou
á sua salvação, fuor chè mostrargli le jamais um momento de attenção. E, por
perdute genti (excepto o mostrar-lhe a favor, pergunto eu , quaes são aquellas
perdida gente) (Purg., XXX , 136 ). cousas que Dante ahi descobriu ? Res
Ora quanto não é diversa esta oscura ponde -se -me : O monte, já vestido pelos
selva d'aquella tão luminosa, que Dante raios do Sol, as tres Feras, Virgilio, e
imagina ter encontrado no Paraiso ter cousas similhantes ; e não se attende
restre posto sobre o cimo do Purgato que tudo isto aconteceu fora da selva,
rio ? Não comprehendo, que não se e não dentro d'ella ; ao passo que o
fizesse jamais a comparação de uma Poeta quer falar d'aqueilas cousas que
com a outra , quando isso podia dar ahi, isto é, lá dentro, descobriu. Remo
uma luz infallivel para bem penetrar no vido assim da mente esse erro, cumpre
amago da principal allegoria da Divina apoiar-nos sobre a luz da verdade, a
Comedia. Porque, si a divinafloresta , na fim de podermos ser guiados com se.
qual Deus poz os nossos primeiros paes , gurança por desconhecida vereda.
allegoriza o estado de virtude, e de felici E para começar, tenha-se por certo,
dade d'esta vida (Mon., 1, 3, c. 19) , a que a Divina Comedia é , e se deve con
selva selvaggia, onde os homens soem siderar como uma narrativa poetica da
desgarrar-se, representará o estado de admiravel visão, apparecida a Dante,
vicio, e por conseguinte de miseria da . cerca de dous annos depois da morte de
mesma vida. E é na antiga selva do vir Beatriz, e recordada na Vita Nuova , com
tuoso , e feliz viver, que Dante já deses estas admiraveis palavras: Appareceu -me
perava que podesse rinselvarsi (reem uma admiravel visão, na qual vi cousas,
brenhar-se ) a sua degenerada Florença que me fizeram propor de não falar
(Purg., XIV, 66 ). mais d'esta bemaventurada, até que po
( 5) Ma per trattar del ben ch ' io vi desse mais dignamente tractar d'ella, e
trovai, dirò dell ' alte cose ch ' io v ' ho para conseguil-o, estudo quanto posso,
COMMENTARIOS AO CANTO I 43

como ella bem sabe, de modo que, si for Xxx:1, 130 ). D'onde vem que, pouco an
do agrado d'Aquelle, por quem todas as tes de findar a Divina Comedia, se de
cousas vivem , que a minha vida um tanto clara esvaecida a alta visão : All'alta fan
se prolongue, espero dizer d'ella aquillo tasia qui mancò possa ( Par., XXXIII, 143) .
que jamais foi dito de mulher alguma Fantasia por visione é de uso fre
(S LXIII). E não se comprehendem , quente entre os antigos commentado
porventura, na Divina Comedia, alem res ; e na Vita Nuova se tomam n'uma
de outras infinitas cousas, os maiores mesma significação, fantasia, sogno,
louvores á gloriosa Beatriz ? Após immaginazione, e visione. Bastem estes
esta belleza, sempre crescente á me exemplos : Allor cessò la fortefantasia
dida que subia as escadas do 'eterno entro quel punto ch ' io voleva dire ( p.
palacio, seguia Allighieri poetando ; mas 141 ), Lo mio sogno (visione ) fu rotto
entrado no empyreo, tão mudada a vê (p. 17), Disprarve tutta questa mia im
d'aquillo que nos é familiar, que, não maginazione subitamente ( p. 13 ), Tro
podendo descrevêl-a por meio de exem vai che l'ora che mi era questa visione
plos, nol-a faz imaginar possivelmente, aparitta, era stata la quarta della notte
dizendo que lhe parecia feita de modo (p. 6).
que só o seu Creador a podia gosar com Agora, que bastante temos divagado,
pletamente ( Par ., xxx, 21 e seg.). Por ponhamo-nos de novo a caminho , e
isso, como todo o artista , dado o ultimo para nos adiantarmos seguros, e expe
retoque, assim Dante n'aquelle ponto, ditamente, não nos será inutil o ter pri
deixou de seguir com o canto aquelle meiro removido todos os obstaculos.
continuo milagre de transfigurada bel As alte cose vistas na selva são aquel
leza . las da alta visione, que o Poeta imagi
Verdade é, todavia, que as vicissitu nou ter-lhe ahi apparecido. Esta visão
des proprias, e as do seu tempo, sugge foi chamada alta fantasia ( Par., XXXIII ,
riram a Dante o pensamento de fingir 148), precisamente pelas altas cousas,
aquella sua visão, como acontecida em que por meio d'ella se mostraram a
1300, a fim de alargar por este meio, e Dante, e por meio do seu Poema a nós.
estender o campo da sua narração. A E se deve advertir, que no canto i do
qual, por ter sido escripta em tempos Inferno, o auctor implora para si a al
diversos, tem dado logar a muitas di tezza de engenho, unicamente a fim de
gressões, que bem póde considerar quem ser capaz de cantar as altas cousas vis
quizer separar as cousas vistas na visão tas, e fielmente escriptas na sua memo
d'aquellas para as quaes a visão, por ria .
consequencia natural, chamou, e conduziu Alem de que, si se considerar este
o pensamento do narrador. canto, qual verdadeiramente é, como o
Si alguem se obstinar na persuasão de prologo de toda a Divina Comedia, não
que a Divina Comedia, na parte substan se tardará em concordar, que n'elle se
cial, não é mais do que uma poetica nar devia determinar todo o assumpto d'ella,
rativa de uma visão, recorde-se de que e isto é maravilhosamente estabelecido
Cacciaguida, confortando a timidez do polas altas cousas manifestadas a Dante
seu Dante, exhorta-o a pôr de parte todo na sua admiravel visão. Alem de que
o embuste, e a tornar manifesta toda a ainda, a determinação d'estas altas cou
sua visão (Par., XVII, 28). É o sancto sas, quanto não é adaptada a dignidade
doutor Bernardo, que via prestes a fu do exordio, ou, para melhor dizer, do
gir o tempo marcado ao sonho, ou para prologo ? Ouçamos a doutrina de Tullio,
melhor dizer, á visão do celeste peregri que nos é confirmada pelo nosso auctor
no, resolveu terminar promptamente o na Carta a Can Grande (S 19) : Para um
seu discurso : Porque o tempo foge, que bom exordio, requerem -se tres cousas ,
te adormenta , aqui faremosponto ( Par., que sáo: tornar benevolo, attento, e docil
44 O INFERNO

o ouvinte, sobretudo quando se tracta de di verità (Par., VII, 39) . Porque um só


uma causa admiravel. E ali se nos mos é o caminho, que nos conduz á nossa paz
tra tambem como isso se pode obter : (Conv.,tr. iv, c. 22 ) ; e a nossa paz, isto
In utilitate dicendorum benevolentia pa é, o nosso final repouso , é a doçura da
ratur : in admirabilitate attentio : in pos humana felicidade.
sibilitate docilitas. Ora, da mesma ma . ( 8 ) Ma poi ch ' io fui appiè d ' un colle
neira que Dante applica similhantes giunto. Para remover toda a duvida so
preceitos ao prologo do Paraiso, outro bre a verdadeira interpretação allego
tanto se pode fazer a respeito do pro rica d'este deleitoso monte, ao pé do
logo de todo o Poema. E seguramente, qual se achou Dante, apenas saíu da
n'aquelles versos : Ma per trattar del selva , parece - me opportuno indicar pre
ben ch' io vi trovai, dirò dell'alte cose viamente alguns principios, estabeleci.
ch ' io v'ho scorte : indica - se a utilidade dos por elle na sua Obra philosophica,
das cousas, que se vão dizer, declaran a que deu o nome de Convito .
do-as um bem , e d'esta maneira se con Antes de tudo, é de saber, - que
cilia a benevolencia . Depois, para gerar n'esta vida podemos alcançar duas feli
maravilha, e d'esta a attenção, acres cidades, segundo dous diversos caminhos
centa-se, que aquellas cousas, alem de bons, e optimos, que a ellas nos condu
serem um bem , são altas, isto é, gran gem : um é a vida activa, o outro a vida
des, e sublimes. Enfim , torna - se plausi contemplativa, a qual (ainda que pela
vel a possibilidade da narrativa ; porque, vida activa se chega á boa felicidade ),
de cousas vistas, e registadas na memo conduz-nos i optima felicidade, e bem
ria, não parece inverosimil, que outrem aventurança (Conv ., tr. iv, c. 17 ). Por
possa falar, e portanto d'ahi nasce a quanto o exercicio do nosso animo é
docilidade. Torna -se, pois, evidente, que duplo, isto é, pratico, e especulativo (pra
a lição alte cose é em tudo conforme á tico é tanto , quanto operativo ), e ambos
verdade, e alem d'isso eleva ao apogeo são deliciosissimos, ainda que o contem
de perfeição este canto , que é o princi plativo o é mais. O pratico é obrar por
palissimo da Divina Comedia . E aqui nós virtuosamente , isto é, honestamente,
pondo fim , me desculparei para com os com prudencia, com temperança , com
meus leitores por havel-os demorado fortaleza, e com justiça : o especulativo
tanto com tão pouca materia ; mas a não é obrar por nós, é considerar as
sua gravidade exigiria de mim mesmo obras de Deus, e da natureza, e este , e
uma paciencia maior. aquelle exercicio, é nossa bemaventuran
(6 ) Tant' era pien di sonno in su ça, e summa felicidade ( Ibid., tr. iv,
quel punto. Este somno de que Dante c . 23 ) . Um d'estes exercicios é verda
foi surpreso, quando saiu do recto ca deiramente mais pleno de bemaventu
minho é o somno que domina a alma, rança , do que o outro, como é o especu
quando se esquece de Deus ; somno tão lativo, o qual, sem mistura alguma, é o
funesto, que lhe faz parecer direito o exercicio da nossa parte mais nobre,
caminho torto ! (Purg. , XIII , 3 ). O somno que é o entendimento . E esta parte, na
da alma, é o esquecimento de Deus : presente vida, não pode ter perfeita
Somnus animæ est oblivisci Deum (San mente o seu exercicio, que é ver a Deus
cto Agost., Op., t. V, col. 807 ). Dante, (o Summo Intelligivel), senão enquanto
apenas morreu a sua Beatriz, que o o entendimento o considera, e o vé por
manteve por algum tempo no desejo seus effeitos... E assim apparece, que a
do Summo Bem, volveu os passos por nossa bemaventurança, e esta felicidade
caminho não verdadeiro, deixando -se le de que se fala, podemos antes achar im
var pelo falso prazer das cousas presen perfeita na vida activa, isto é, nas ope
tes (Purg ., xxxi, 34) . rações das moraes virtudes, e depois
( 7) Che la verace via abandunai. Via quasi perfeita nas operações das virtu
COMMENTARIOS AO CANTO I 45

des intellectuaes ; as quaes duas opera terra (Par., v , 39), ardente desejo das
ções são caminhos expeditos, que nos almas que se purificam ( Purg., VII, 26 ),
conduzem direitissimos á sua bemaven e perenne bemaventurança dos sanctos
turança ( Ibid.) . ( Purg., xiv, 96). E certamente nenhuma
Isto posto, é evidente, que o monte de cousa sensivel em todo o mundo é mais
que fala o Poeta significa a sublime digna de exemplificar Deus, do que o Sol,
contemplação, ou a optima felicidade, a o qual illumina de sensivel luz, primeiro
que o homem pode chegar n'esta vida. a si, e depois todos os corpos celestiaes,
E na verdade : que é a humana felici e elementares (Conv., tr. 3, c. 22 ). Mas
dade, senão a boa essencia, raiz, e fru por que razão imaginou o Poeta que
cto de todo o bem ? (Purg ., XVIII, 135 ). aquelle monte lhe appareceu já illumi
E este deleitoso monte não é o princi nado dos primeiros raios de Sol ? Se
pio, e causa de todas as alegrias ? (v.78). gundo a nossa interpretação (que é a
Não é porventura Dante que assim de mesma indicada por elle ), quiz significar
clara os seus pensamentos ? Mas sirvam no monte a felicidade da vida contempla
de prova as palavras de Brunetto Lat tiva ; nos primeiros raios, de que o Sol
tini, que ensinou a seu discipulo, que o banhava, aquella comoprincipiada visão
a verdadeira felicidade é o começo, e de Deus, mediante a qual os contempla- '
causa de novo bem ( Thes., vol. 2, p . 30 ). tivos experimentam n'este monte um an
Sancto Izidoro, depois, cuja doutrina tegosto das alegrias da eterna paz ( Purg .,
Allighieri segue em grande parte, vê XXX, 112 ). Esta visão de Deus nos seus
figurada a sublime contemplação no monte effeitos (aquella que se concede tambem
sobre o qual Moysés recebeu a lei do a quem se acha na primeira vida, e se
Senhor (De differentiis spiritualibus, SS exercita nas operações das virtudes in
29, p. 191 ) . Portanto, bem podemos tellectuaes), é principio, e causa de toda
dizer que Dante, apenas saíu da horri a alegria ; porque Deus totum est gau
vel vida dos vicios, concebeu o desejo dium ( Vulg . Eloq., t. I, c. 3 ). Quem toma
de entregar-se todo á vida contempla Deus por guia não pode deixar de attin
tiva, pela qual, como pelo caminho mais gir o porto de salvação ; porque Elle é
curto, chega ao monte deleitoso, ou luz, que illumina a todo o homem n'este
á optima felicidade, e bemaventurança . mundo, e é o caminho da verdade (Par.,
Mas depois veremos as justas razões XVII, 39). É o verdadeiro Sol, que vivi
por que saíu elle da vida viciosa . Chama fica todas as cousas em bondade, e com
valle a triste selva, por ser escura ( v. 2 ), o raio da sua luz dirige todos os vian
e profunda ( Inf., xx, 129 ). dantes com segurança. A este logar
O pavor tem a sua sede no coração, e liga -se tudo quanto dissemos acerca da
quando o invade, fal- o tremer ; treman vida contemplativa do entendimento ;
do de paura che è nel core ( V. n., SS xin ). cujo exercicio, sendo ver a Deus, que é
O coração é o principio do sentido, da o Summo Intelligivel, n'esta vida não se
palavra, e da vida no animal (Arist., de póde ter, senão emquanto o entendi
par. ani., 2, c. 1 ). mento o considera, e o vê por seus ef
(9) Guardai in alto. Isto quer dizer feitos.
que Dante saíu da selva com a cabeça ( 11 ) Allor fu la paura un poco queta :
inclinada, como costuma tel-a quem a N'aquelle ponto em que viu a ditosa luz,
tem carregada de pensamentos ( Purg ., o seu sobresalto ou pavor (o coração,
xix, 38 ), e volta á melhor vida. onde reside ) repousou algum tanto. Ar
( 10) Il pianeta Che mena dritto altrui refecer o pavor é cessar o estremeci
per ogni calle. Planeta no sentido litteral mento, que elle produz na cavidade do
é o Sol sensivel; mas no allegorico é o Sol coração, onde o sangue se reune. D'onde
intelligivel (Conv., tr. iv, c. 22 ), ou o alto resulta, que no pavor o homem se faz
Sol de justiça, qual é a vida dos justos na pallido ; porque o sangue que anda dis
46 O INFERNO

perso pelas reias, fugindo, corre para referir, e applicar propriamente ao ani
o coração que o chama (Canc., 1 , 1, 3 ) . mo, o qual, tendo rompido as prisões
O lago do coração é aquella cavidade do vicio , e como que ainda n'ellas se
em que jaz o sangue, que deriva do considerasse enredado, torna a pensar,
coração como da sua origem , e fonte a reflectir no opprobrio d'aquelle estado
( Arist . , de part. ani., 2 , c. 1 ). Estas dou miseravel de que fugia. Em summa, com
trinas de Aristoteles convem que tenha esta similhança ou comparação do nau
mos sempre presentes ao entendimento ; frago , Dante quiz demonstrar duas cou
porque assim nos será facil penetrar no sas : 1." , que o seu animo, embora já se
sentido de alguns dos passos difliceis, achasse fóra da selva, todavia ainda fu
que encontrâmos no estudo da Divina gia, tão grande era o horror, que lhe
Comedia . havia inspirado ; 2.", que seu animo, não
( 12 ) La notte ch ' i ' passai con tanta obstante todo esse horror, que a selva
pieta. A noite, que Dante passou em lhe incutia , ainda se voltava para traz,
tão grandes angustias, é aquella em que, a fim de vêl- a de novo , para reconside
sem saber como, entrou , demorou -se, rar bem o perigo de que tinha escapado.
e reconheceu achar- se na selva escura. É isso, com etfeito , o que elle nos faz
( 13 ) Lo passo non mai passato da conhecer bellamente com a compara
persona viva , é incontestavelmente a ção do naufrago que, tendo escapado
selva escura de que havia escapado o de ser engulido pelas ondas de mar
infeliz peregrino. Selva de que jamais tempestuoso , ao saltar em terra, volta -se,
pessoa alguma saiu viva, isto é, cantou ainda com a respiração farigada, para
victoria . Este é o sentido litteral . No de novo contemplar o perigo de que
sentido allegorico, porém , a selva es ditlicilmente se evadíra . Ha n'este simi
cura representa o estado dos vicios, e le grande, e admiravel naturalidade !
todo aquelle que n'ella entra troca o ( 14) Poi ch ' ebbi riposato il corpo
ser de homem pelo de fera : n'elle morre lasso : cansado por causa dos difficulto
o homem , e vive a fera ( Conv., tr. 2, c. 8 ). sos rodeios, que foi constrangido a fa
Isto posto , é evidente que o passo non zer, para sair da selva, e ainda mais por
passato giammai da persona viva ossia causa das afflicções de seu animo, tran
anima buona não pode ser outro senão a sido de pavor .
selva , isto é, o estado dos vicios. Tenho ( 15 ) Ripresi via per la piaggia di
interpretado pessoa viva por homem serta . Equivale a subida do monte, ao
bom , alma boa ; porque, viver, no ho pé do qual Allighieri havia chegado
mem , é usar da razão (Conv., tr. iv, ( v. 13 ) . Allegoricamente, a encosta do
c. 7 ) , e d'ahi vem o ser bom ; visto como monte da felicidade não poderia signi
si a vida do homem se conforma com a ficar cousa melhor, que a ardua virtude,
razão, a sua vida torna-se louvavel, por a qual é o caminho, que nos conduz á
que se conforma com a propria virtude nossa paz (Conv ., tr. iv, c. 22.), ao monte,
( Thes., 1, 6, c. 4). que é o principio, e causa de toda a ale
Antes de pôr termo á explicação gria ( v: 78). Bem se podia chamar de
d'este terceto, não creio inutil acres serta uma tal encosta, desde que o
centar uma observação, que até aqui não mundo após seu guia era transviado
foi ainda feita, que eu saiba ; mas de por mau caminho ( Purg ., xvi, 83 ), e
muita importancia para attingir a ver convertido em deserto de todas as vir
dade allegorica . Dante, em vez de dizer tudes. Ahi a gente humana contente, e
eu, que ainda fugia, disse o meu animo, satisfeita com os bens terrenos, não
para demonstrar claramente , que aquelle pensava na felicidade melhor ( Ibid., 103 ).
fugir, aquelle voltar para traz a fim de ( 16) Si che il piè fermo sempre era
remirar a triste selva, aquella mesma il più basso. Como si dissesse : « Puz -me
selva , são cousas todas, que se devem de novo em movimento para subir, tor
COMMENTARIOS AO CANTO I 47

nei a mover-me á maneira de quem em nós se accende naturalmente ( Purg .,


sobe, ou se encaminha por logar empi XVIII, 44 ). E Beatriz, explicando ao mesmo
nador. Muito, e largamente se tem dis Dante a razão por que o inflammaya no
putado sobre a intelligencia d'este verso, amor ardente, faz -lhe saber, que isso
e se disputará mais ainda, emquanto se n'ella procedia do seu perfeito ver em
não quizer attender á verdade da cousa, Deus, isto é, que com quanta maior cla
e ao genuino conceito do Poeta. Certa reza se aprende o bem , com outro tanto
mente, si o pé firme sempre ficava mais ardor se move o pé para elle ; como si
baixo, logo o mais alto era sempre o ou dissesse : move -se o affecto ( Par ., v. 6.).
tro, que se movia : o que determina pre Lê - se na Escriptura : Pes meus stetit in
cisamente a maneira de mover - se su directo (Ps. 23.), para denotar : o meu
bindo, muito differente de quem anda affecto, o meu animo esteve no recto ca
por uma planicie. Porquanto, cami minho.
nhando subindo, a pessoa apoia -se sem A interpretação, que até aqui tenho
pre no pé firme, que é o inferior, em dado ao sobredito verso, alem de ser
quanto que o outro pé se move para o bebida nas proprias palavras do Poeta,
alto. Ora , que se pode dizer mais a este é confirmada pelos antigos, e diligentes
respeito ? Dante, caminhando, segundo commentadores. Pedro Dante, entre ou
nos havia indicado, tinha de facto subi. tros, explica : « Pes auctoris ( id est affe
do ; mas, desesperado de poder prose ctio ) in quo magis adhuc firmabatur,
guir avante, por causa do impedimento, erat infirmior et fortior adhuc in eo ...
que lhe oppunham as tres Feras malva Pes superior est amor qui in eo tendebat
das, estava sobre o ponto de precipi. ad superna » .
tar-se na selva escura (v. 61 ). Os com Muito molestas se tornam estas in
mentadores antigos reconheceram bem, vestigações ao leitor, e muito mais a
que o sentido d'este verso se referia ao . quem as faz : si se quer, porém, proceder
modo de caminhar, subindo. Basta ci com toda a segurança na interpretação
tar, entre outros, Benvenuto de Imola, dos sentidos allegoricos do Poema, é
e Francisco Buti. O primeiro diz : Sim preciso entregar- se a esse trabalho com
pliciter loquendo, quando homo ascendit animo paciente .
montem , pes inferior est ille super quo ( 17) Una Longa leggiera, e presta
firmatur, et fundatur totum corpus sa molto. A Onça, pelo modo por que a
lientis : ideo dicit quod pes inferior sem descreve o Poeta, é manifestamente o
per erat firmior. Pouco diversamente mesmo animal, que a panthera, a qual é
Butti : « Aqui Dante descreve o modo salpicada de pequenas manchas brancas,
de subir, por isso que quem sobe firma e negras, como pequenos olhos, e amiga
sempre o pé, que fica atraz, e move o de todos os animaes, excepto o dragão
outro para diante ». ( Thes., 1, 5, c. 6 ). Estas noticias sobre a
Ora porque usou Dante uma tal ex panthera, Brunetto colheu -as de Alberto
pressão, si quiz dar-nos a entender uma Magno, cujas doutrinas, maxime sobre
cousa de tão pouco momento ? Si isto historia natural, eram communs no
pode ter apparencia de verdade na let tempo de Dante . Panthera est animal
tra, não acontece assim na allegoria, a totum varietate distinctum ; maculositas
cujo complemento aproveita maravilho ejus orbiculata est ad modum oculorum
samente a sentença encerrada n’aquelle ex fulvo colore interdum ad album, et in
verso . O pe ahi significa, metaphorisan. terdum ad ceruleum terminatorum . Fa
do, o amor ou o affecto do animo : amor cile est mansuescibile, pauci partus et
tuus, pes tuus (Sancto Ag.,Confess.); por difficilis propter unghium longitudinem ,
que o amor é como o pé, com que o ho et draconi infestum est (Alb . Mag., de
mem caminha. Com effeito, Dante cha an., 1 , 2, t . 2, c. I ).
mou pé da natureza aquelle amor, que Convem que attendamos bem a esta
O
RN
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48 O IN

descripção da Onça , si quizermos com aspecto da mulher é o principio motor


prehender os verdadeiros sentimentos da sensualidade, que difficilmente se
do Poeta a respeito da Fera, de que evitará, se não for refreado em tempo,
agora se tracta . segundo aquillo de S. Thomaz : Luxu
Uma Onça ligeira, por sua magreza ; ria vix vitari potest, nisi vitetar princi
muito prompta, pela agilidade dos seus pium ejus, scilicet aspectus mulieris pul
membros : magra, e lesta. Esta Onça chræ ( Thom ., XXII, 9, 6, 7, 2. c.). Mas,
de certo não devia parecer a Dante para remover toda duvida de que Dante
muito prompta, porque lhe corresse ao symbolisasse na Onça o vicio da lasci
encontro com grande pressa, mas sim via, basta recordar que elle mesmo diz
por seus membros subtis, e ligeiros, com haver trazido os lombos cingidos de
os quaes podia ser, e mostrar - se veloz uma corda , com a qual pensou algumas
na carreira . vezes prender aquella fera impertinente.
Coberta de pelle mosqueada, isto é, ( Inf., XVI, 106 ). E que era essa corda,
sarapintada de manchas brancas, e ne senão a virtù della continenza, mediante
gras : animal totum , varietate distinctum . a qual se subjuga o espirito da carne ?
A Onça ligeira, e muito prompta, al Lumbos enim præcingimus, cum carnis
legorisa a lascivia, por isso que este luxuriam per continentiam coarctamus
vicio é tão prompto em surprehender (S. Greg. Magn ., Hom . 13, in Evang.).
o homem , que se não resguarda ( Purg ., ( 18 ) Ch'io fui per ritornar, più volte
XXV, 120), como , si o domina, o conso volto. Tornar atraz, quer dizer reincidir,
me, e destroe promptamente, não só voltar aos antigos erros ou costumes.
por actos, como por desejos insoffridos. Parece -me que se deve unir io fui per
Que de pelle graciosa era coberta ritornar, e separando com uma virgula
( gaietta pelle ). Esta pelle graciosa de più volte volto, traduzir assim : Tanto
que a Onça era coberta, é o symbolo foi.o meu terror, que eu , tendo -me vol
da belleza feminil de que nasce a sym tado muitas vezes, estive para voltar á
pathia, e d’ahi a inclinação amorosa . selva escura, d'onde tinha saido.
Em diversas composições poeticas lyri Più volte volto. Não raro encontra -se
cas, Dante demonstra bem a verdade na Divina Comedia este jogo de pala
d'isto : Beltade appare in saggia donna, yras, e citarei alguns exemplos, a fim
que piace agli occhi; si chè dentro al core de que Dante seja julgado, segundo a
nasce un desio della cosa piacente ...che sua arte : Tu fosti prima ch'io disfatto,
fa svegliare lo spirito. N’um Soneto diz : fatto ( Inf., vi, 38) . Fur negletti i nostri
Amore e cor gentil sono una cosa. E é voti e voti in alcun canto (Par., III, 57 ).
bem notavel que o vocabulo gaio, de Nel modo che il seguente canto canta
que deriva gaietta, é usado por amoroso, ( Par ., v, 139 ) .
ou inclinado ao amor na Canção Io son ( 19 ) Temp'era dal principio del mat
venuto al punto della rota ; na qual o tino. Era a primeira hora do dia, quando
Poeta lamenta-se de que no hynverno, o ar começa a esclarecer- se com a luz
quando os animaes, ainda mesmo aquel do Sol : al mattino cioè, alla prima ora
les mais dados ao prazer da carne, ces del di ( Thes ., 1, 2, c. 49 ). Pelo contrario
sam de seus amores, emquanto que o Allighieri, querendo indicar o cair da
d'elle feryia com maior intensidade. E noite, diz : Temp ’ era già, che laer
tutti gli animali che son gai di lor na s ' anerava ( Purg ., VIII, 49).
tura, son d'amore, disciolli : Perochè il ( 20 ) E il Sol montava in su con quelle
fredo lor spirito ammorta . E'l mio più stelle. O Sol nascia, empinava- se no ho
d'amore porta . risonte, junto com o signo de Aries,
É, pois, evidente, que o Poeta na como quando Deus imprimiu o primeiro
gaietta pelle, que adornava a Onça, movimento em tão bellas cousas. Dante,
quiz, allegorisando, significar que o bello como seu mestre Brunetto, seguiam a
COMMENTARIOS AO CANTO I 49

opinião dos que sustentam , que o mun Quam facil não é aos grandes homens
do foi creado na primavera, quando caírem tambem em erros grandes ! Dante
Sol demora em Aries: Il primo giorno não deu indicio nenhum , que nos au
del secolo ossia il comininciamento del ctorisasse a conjecturar, que a graciosa
mondo, dicono savi, che fu qualtordici di pelle d'aquella Fera lhe fosse causa de
del mese di marzo (Thes. , II, c. 6 ). Isto esperar bem livrar -se d'ella ; antes a
faz -nos conhecer en que dia , e em que exclue ; porque na Fera elle não via se
ora Dante finge ter tido a sua visão, não motivo de pavor, tanto assim , que
que é precisamente na primavera, no por muitas vezes tentou voltar para traz,
plenilunio de 14 de março de 1300, na para fugir d'ella . E o si che, particula
primeira hora do dia, ou no principio da conjunctiva, é a clara conclusão das pa
manhā, na qual a nossa mente mais pe lavras precedentes a que se liga, e as
regrina, mais livre da carne, e menos quaes não são outras, senão as predi
occupada de pensamentos, é quasi di tas : Temp’ era dal principio del matti
vina nas suas visões. E che la mente no, e il Sol montava in su con quelle
nostra pellegrina Più dalla carne, e men stelle, etc. Sobre isto Perticari acrescen
da' pensier presa , Alle sue vision quasi è ta, que o sentido d'aquelles versos é todo
divina ( Purg ., 1X, 18 ). Por aquellas bel allegorico, sem attender bem (e seja
las cousas, não somente se devem en dito com reverencia ao homem grande ),
tender as estrellas do Aries, mas con que, antes da allegoria, se deve procu
junctamente o Sol. É por effeito d'esse rar o sentido da lettra ; porque o sentido
movimento, que Deus lhes imprimiu , litteral deve sempre andar adiante de
que toda a natureza se move, e por isso todos os outros , como aquelle, que os
Deus é chamado Primeiro Motor (Par ., encerra em si, e sem o qual seria im
XXIV , 38 ). Em relação especialmente á possivel, e irracional entender os outros,
creação , Deus é chamado o Primeiro principalmente o allegorico (Conv ., tr. 2,
Amor (Inf., III, 6 ), o Eterno Amor c. 1 ). É necessario, pois, primeiro atten
( Par ., VII, 33 ), o Amor das substancias der a sentença litteral, e depois a sua
sempiternas ( Par., XXVII, 38 ; x, 1 ). allegoria, isto é, a verdade occulta
( 21 ) Siche a bene sperar m ' era cagio l'ascosa verilà ( Ibidem ). Estes ensinos,
ne... L'ora del tempo e la dolce stagione. a que o nosso Poeta fielmente se atem ,
Este sì che ( de modo que ), indica indu devem ser seguidos por todo aquelle,
bitavelmente, que nenhuma outra cousa que se propõe interpretar a Divina
inspirava a Dante a esperança de li Comedia. E uma vez por todas : A his
vrar-se d'aquella Fera de graciosa pelle, toria da lettra, ou o sentido litteral, deve
senão a hora do dia ( o principio da ma primar na interpretação ; os outros de
nhā ), e a doce estação, que é a prima vem n'elle apoiar -se, como o edificio
vera . Por isso é sem razão que Perticari no fundamento , come l'edifizio al fon
se atira contra o bom Lombardi, repu damento (Conv., tr. 2 , c. 1 ).
tando como estranhissima, e falsa, a in Quanto ao insigne Lombardi, si não
terpretação com que elle explicava os me engano, errou fazendo crer a gra
citados versos, a qual interpretação é ciosa pelle objecto da esperança de
esta : A hora do dia, e a doce estação Dante ; interpretação sophistica, para
eram motivo para eu esperar razoavel não dizer falsa ; não havendo uma só

mente a graciosa pelle d'aquella Fera... palavra, que indique desejar Dante ma
« Taes estulticias não podiam entrar na tar aquella Fera, antes de fugir d'ella.
sagrada mente de Dante », grita o celebre Por conseguinte, attentas todas as ra
Fesarese, bem diversa é a construcção zões allegadas, de conformidade com a
dos seus versos, isto é, « a graciosa pelle mente do Poeta, devem - se construir os
d'aquella Fera, a hora do dia, e a doce citados versos do modo por que os tra
estação, me eram motivo de esperar bem » . duzi no texto do canto .
4
50 O INFERNO

A hora do dir, que era o principio da mina e s'inizia, isto é, a optima felici
manhã , induzia tambem Dante a espe dade, foi a soberba, e maximamente a
rar que triumpharia d'aquella Fera, por avareza, inimigaz, e destruidora de todo
que em hora tal os animaes ferozes, bem ( Purg ., xix, 122 ) . Finalmente, no
inimigos da luz, retiram -se para os seus assalto dos vicios de que o Poeta se
covis, e n'elles se conservam , e isso es achou de novo tentado, esteve quasi a
pecialmente na primavera, quando o dar - se por vencido, voltando do feliz
cio os impelle para o esconderijo. No caminho começado. É verdade que elle
psalmo 103, falando dos animaes fero só faz menção de tres vicios ; mas con
zes, diz o auctor inspirado : Ortus est vem reflectir que n'elles se comprehende
Sol, et in cubilibus suis collocabuntur . todo o mal, e d'elles fundamentalmente
No que respeita ao sentido litteral, deriva. Omnia peccata concluduntur tri
basta por agora ; depois, em logar mais bus generibus vitiorum , quæ videntur :
apropriado, explicaremos a allegoria. Ioanne Apostolo enumerata , cum dicit :
A doce estação, é a primavera, como Volite diligere mundum , quoniam omnia
tempo mais temperado, e natural para quæ in mundo sunt, concupiscentia cir
produzir todas as cousas ( Thes., 1, 2, nis est, concupiscentia oculorum , et am
C. 41 ), quando il Sole con migliore bitio sæculi (Sancto Ag., or ., t. V, col.
stella esce congiunto, e la mondana cera 807 ) .
Più à su modo tempera e suggella ( Par ., (22) O Leão Con la test'alta, e con
140). Diz que o Sol sae então com me rabbiosa fame, symbolisa a soberb. , Em
lhor estrella, porque aquellas constella verdade, ter a cabeça alta é indicio in
ções de Aries, e de Libra, mas especial fallivel do homem soberbo. É por isso
mente a primeira, eram julgadas de que Dante, para denotar a longa domi
mais benigno intluxo , e tempera, dispõe, nação, que a parcialidade negra exer
e reduz melhor a materia do mundo á ceria em Florença, disse : « Ella terá por
sua similhança, não só pela luz, como longo tempo a fronte alçada, Alto terrà
pelo calor, e melhor lhe imprime (sug lungo tempo le frontin ( Inf. , VI, 70 ). Simi
gella ) a sua virtude, e influencia. Em lhantemente, para indicar o orgulhoso
summa, allegoricamente, na primavera, Ricardo de Cammino, que tyrannica
e na hora da manhã as almas humanas mente dominava sobre Treviso, expri
estão melhor dispostas para receber a me - se d'este modo :
luz celeste , e elevar se a Deus.
Alem d'isto , com relação á esperança , E dove Sile e Cagnan s'acompagna,
que lhe inspirava aquella hora do dia , Tal signoreggia e va con la test'alla ,
de triumphar da Onça, tinha Dante outras Che già per lui carpir si fa la ragna.
razões para esperar livrar - se da fera, ( Par ., c. IX, 49-51.)
isto é, das instigações da lascivia ; por
que corria a doce estação em que Deus, « Em Trevisio, onde se ajuntam os dois rios Sile
não só creou o mundo, como redimiu o e Cagnano, Ricardo tyrannisa, e vac soberbo , em
homem da escravidão do peccado. Era o quanto que já se urde a conjuração que ha de extin
guil - o.
tempo pascal em que, pelos actos da
penitencia, o homem se purifica, e se
dispõe a reconciliar-se com Deus, me Depois, lembrando a Carlos II, que o
recendo os thesouros das graças, que estandarte da Aguia (o imperio de Roma)
n'aquelles dias acceitaveis, e de salvação, tinha já supplantado maior poder, que o
o Senhor especialmente se apraz de seu , o avisa de temer aquellas unhas
abril -os com largueza : tunc tempus acce ( artigli ), que a mais alto leão tiraram a
ptabile, tunc dies salutis. Mas o que fez pelle : Ch ' a più alto leon frasser lo
Dante perder a esperança de vingar 0 vello (Par., VI, 108 ). A altivez dos olhos,
vertice do monte, dove ogni ben si ter isto é, da cabeça, é signal de soberba,
COMMENTARIOS AO CANTO I 51

que exclue toda a reverencia, e temor : do temer . No livro do propheta Amos


Extollentia oculorum , signum est super lê-se : Leo rugiet, quis non timebit ? E
biæ , excludendo reverentiam et timorem Dante, reforçando o conceito, diz que
( Thom ., XXII, 7, 162 ). era tal o soberbo aspecto, e a furiosa
Con rabbiosa fame; porque é da na fome do Leão, que lhe pareceu metter
tureza da soberba o ter desordenado espanto até no ar. É uma bella hyper
appetite de excellencia em todas as cou bole, propria dos summos vates, que
sas. Superbia dicitur inordinatus appeti não deixam de ser inventores, ainda
tus excellentiæ in quacunque re ( Thom ., mesmo quando mais se esforçam para
XII, 9, 84, 2 ) . É por isso que o soberbo, imitar os conceitos dos outros.
esperando a sua salvação da ruina do ( 24) Ed una lupa, che di tutte brame :
seu vizinho , deseja que este seja pre separe - se o d do E, e leia - se : E d'una
cipitado da sua grandeza : lupa, si se quizer manter bem ordenada
a construçção , e tornar mais natural a
continuação do dizer, e a correspon
É chi, per esser suo vicin soppresso , dencia com o todo. Bargigi recorda- nos
Spera, eccellenza, e sol per questo brama que em alguns livros o texto diz : E
Ch' el sia di sua grandez ( in basso messo .
( Purg ., C. XVII , 115 , 117. ) di una lupa, no qual modo a continua
ção é clara . E o egregio Parenti, sem
duvida, adopta a lição E d'una lupa,
Em summa, na attitude altaneira com explicando : subentenda -se e a presença
que appareceu a Dante, con alta fronte de uma Loba, réassumindo a construc
e rabbiosa fame, são por tal modo ma ção, e o sentido do penultimo tercetto.
nifestas as propriedades da soberba, E, pois, facil de ver, como nos codices
que não é mister mais elucidação ; visto se póde ler egualmente Ed e E d ', não
como não ha quem ignore que é da se usando ali do apostropho.
indole da soberba tractar de cabeça le ( 25 ) E molti genti fe ' già viver gra
vantada os inferiores, e ao mesmo tempo me. Funestar quer dizer tornar infeliz,
o furioso desejo (rabbiosa fame) de que bem corresponde a palavra grame,
dominar os superiores, e os eguaes. que significa dolorosas, miseras, infeli
Superbia est elevatio vitiosa, quæ infe zes. Em outros logares, e na mesma si
riores despiciens , superioribus et pari gnificação é usado este vocabulo : pa
bus satagit dominari (Hugo de S. Victor, role grame ( Inf., XXVII, 15 ) ; turba grama
1 , oDeOSani.). D'aqui é facil conhecer
1,com (Inf., xv, 109) ; giostre grame ( Purg .,
soberbos, á similhança do XXII, 40 ). Algumas vezes gramo vale
ameaçador Roboam (Purg., XII, 46 ). tanto como de triste qualidade, de ma
procuram lançar o terror nas pessoas, ligna influencia, insalubre, ou cousa si
que os cercam , como si na presença milhante . Em tal sentido é chamada
d'elles
tremer !
o proprio ar devesse temer , e grama aquella lagoa de que se fala no
canto xx do Inferno, v. 77. Gramo é
( 23 ) Si che parea, que laer ne tre palavra viva nos dialectos italianos, e
messe. Quer dizer, que o ar, movido pelo especialmente no piemontez, e toma va
impeto do chegar do leão, como que re riamente a significação de mal ridotto,
cuava para traz, o que é acto de quem disfatto, cattivo, de rea qualità, etc.
foge ; e assim mostrava, impropriamente ( 26) Con la paura ch'uscia di sua
falando, que o temesse. Esta explicação, vista ; como se dissesse : Esta Loba cau
que é de Boccacio, parece dar valor sou -me tão grave afflicção, que eu não
á lição commum , que diz temesse em sabia já como me movesse ; tolheu -me
vez de tremesse, como se acha no texto todo o vigor de proseguir o arduo ca
de Bargigi. Alem disto , o tremer , aqui minho. Na Canção Amor che muovi tua
teria sempre logar, como natural effeito , virtu dal cielo, Dante volta -se para o
52 ( ) INFERNO

Amor, e lhe diz : Il tuo ardor... mi fa tem a sua culpa, foi constrangido a ex
sentir al cor troppa grave777. clamar :
Dante quer dizer, que o aspecto da
Loba lhe era horrivel, e pavoroso. Na Maledetta sie tu, antica lupa,
Che più che tutte l'altre bestie hai predi,
poesia dos soberanos mestres, e por Per la tua fame senzafine cura !
tanto na de Dante, tudo toma corpo ,
(Purg ., c. XX , 10.1
alma, movimento , acto , e palavra.
( 27 ) Dell'altezza . Alle 777 (vertice ), Maldita sejas tu , antiga Loha
está claramente por alto monte (Chegou Que mais que as outras feras damnificas
ao vertice da grandeza ). Em geral, pois, Com a tua cobiça sem limites. »
toma -se por logar sublime, como no
canto xxv, 32 , do Paraiso : Fai risuonar Aqui não se duvida que a Loba signi
la Speme in quest' alte77.7. fique avareza, e que as outrais duas Feras
Ora bem : qual é a allegoria, ou o denotem outros tantos, e diversos vicios.
verdadeiro conceito expresso por ima Não se duvidará tão pouco que essal
gem nas tres Feras ? Si não nos qui antig . Lobu seja a mesma de que se
zermos na difficil investigação em que fala n'este Cantico. Antiga , na verdade,
tantos pareceres se dividem , e contras é tambem a Fera malvada, que a inveja
tam , importa remontar ao principio das do soberbo Lucifer fe , primitivamente
cousas sobre as quaes não póde haver sair do inferno ( Inf., 1, 110) . Alem
duvida, menos que não pretendamos de que, as propriedades da Loba, ex
contradizer as manifestas declarações do pressa , e claramente indicadas por ara
Poeta . Este, a quem o attende, revela -se reza, no canto xx do Purgatorio, con
por si mesmo. Convem , pois, antes de formam -se exactamente com as da Lobar
tudo , humilhar o nosso ao seu pensa d'este canto 1. Aquella é devorada por
mento , uma fome sem limites ; esta é de instin
O objecto allegorico da Divina Co cto tão feroſ, e tão insaciavel o seu ap
media é o homem , emquanto que, me petite, que quanto mais come, mais se
recendo ou desmerecendo pela liberdade The desafia o furor de comer ( v. 99 ).
do arbitrio, se sujeita á justiça dispen Uma faz mais présas, ou causa mais es
sadora do premio ou do castigo ( Cart. tragos do que todas as outras feris ;
a Can Grande, Cu ). Com isto está de a outra amarida - se com muitos animies
accordo o fim geral, e immediato da ( v. 110 ), e faz viver miseraveis, e infe
Divina Comedia ; o qual consiste em lizes muilas gentes ( v. 51 ). Que mais
remover aquelles, que vivem na presente perfeita conformidade, ou similhança
vida , do estado de miseria , e conduzil -os se poderá desejar ? A verdade ahi appa
a felicidade eterna ( Ibidem , SS 15 ). O rece nua , e inteira.
genero, pois, de philosophia, segundo o Portanto a avareza foi com razão
qual se procede em toda a obra, é a chamada il male che occupa tutto il mon
parte moral ou a Ethica (SS 16 ). D'aqui do. Assim entendida a Loba pela ava
se torna visivel, e certo, que as tres in reza, podemos bem conhecer, e expli
dicadas Feras, para corresponder ao car, por que a cobiça do oiro fizesse
assumpto allegorico, ao fim , e ao ge lupo del Pastore ( Par ., IX, 1 , 27 ), e por
nero de philosophia proprio do sacro que lupi sejam chamados os Florentinos
Poema, não podem symbolisar senão (Purg., XIV, 50 ), claramente estigmati
objectos ou verdades moraes. E com sados de avaros no v. 77 do Inferno, e
effeito, que a Loba ( v. 49 ) representa em muitos logares ; e porque emtim , na
a avareza em geral, e não outra cousa Canção () patria degna, a avara Flo
que a avareza, temos o seguro testemu rença se apresenta descripta, e caracte
nho do mesmo Dante, o qual, ao saír do risada por lupa rapace. É ainda tam
circulo onde os avaros , chorando , cur bem por isso que Pluto, deus da riqueza,
COMMENTARIOS AO CANTO I 53

é chamado o grande inimigo, o maldi gorico em relação a Fera pessima, indi


cto lobo ( Inf., vii, 8 ).. cam -nos o recto caminho, que devemos
Para fazer melhor comprehender seguir na investigação da verdadeira
como a avareza funestou , ou tornou in significação moral da Onça, e do Leão.
felizes muitas nações, e é devorada de (28) E quale è quei che volentieri
uma fome insondavel ( che non ha fondo ), acquista, isto é, que de bom grado, com
é necessario attender bem a este nota satisfação, adquire um bem precioso, e
vel passo do Convito : « Em nenhum depois, perdendo -o, chora, e se entris
tempo se sacia a sede da cobiça : não só tece . Piange e s'attrista . Por uma syn
mente pelo desejo de augmentar os bens chysis, diz piange es’attrista, em vez de
adquiridos, os homens se atormentam , s' attrista e piange, afflicto em seu co
mas tambem se atormentem com o temor ração desafoga em pranto a sua tristeza.
de perdel-os : todas estas palavras são Dor, e pranto, andam frequentemente
de Tullio, no livro dos Paradoxos ; e para juntos. Em uma das suas Canções Dante
maior testemunho d'esta imperfeição das diz : Onde l ' aer s'attrista e tutto piange.
riquezas, eis o que diz o Boecio no livro Isto é sufficiente para convencer que
da Consolação : « Quantas areias rolam elle em tudo quanto diz procede com
no mar turbado pelo vento , tantas es justa ponderação, e medida, e que si
trellas reluzem , quanto a deusa da ri nada diz por obediencia a rima, faz, po
queza ambiciona alargar -se, e a geração rém , que esta corresponda plenamente
humana não cessará de chorar » (Conv ., ao conceito da sua mente.
t. IV, c. 12 ) . E que outra cousa quoti ( 29) Tal mi fece, la bestia senza
dianamente destroe, e mata as cidades, pace, a saber: fez-me triste, e plan
as regiões e os individuos, senão a nova gente ; todos os meus pensamentos
accumulação de riqueza nas mãos de ficaram cheios de pranto, e tristeza.
alguem
it's

La bestia senza pace. Litteralmente,


Por todas as considerações , deve -se esta Fera sem par é a Loba insaciavel,
ter por firme, que o Poeta, sob a figura devorada de todos os appetites ( di tutte
da Loba, quiz-nos fazer conhecer a ava brame); e allegoricamente é a avareza ;
reza em geral ( avarizia in •genere ), e porque as almas, que ella domina, e
não a da Curia Roma, ou a de Florença , fatiga, vivem sempre em tão febril agi
ou de qualquer outra região especial. tação, que todo o oiro que existe, e exis
Essas individualisações são meramente tiu na terra, não poderá fazel-as repou
arbitrarias. Todos aquelles, que as têem sar ( Inf. vii, 65 ). Porquanto as riquezas,
feito, mostram desconhecer a auctori falsas traidoras, promettem saciar toda
dade de Dante , ou desprezar suas ca sêde, e ambição ... e depois de accumu
tegoricas declarações, no que concerne ladas, longe de saciar, e mitigar essa
á verdadeira significação d'esta Loba de sede de enriquecer, a tornam mais into
que se tracta . Talvez me tenha alongado leravel (Conv. tr. 4, c. 12 ). A maior prova
muito sobre este ponto ; mas era con da vileza, e imperfeição das riquezas,
veniente, para não dizer necessario, de resulta do facto incontrastavel de que
terminar bem o sentido allegorico da ellas, depois de adquiridas, em vez de
Loba, a fim de que não se continue a quietação, produzem maior cuidado .
caír nos mesmos erros, não só a res Assim se lê na Canção Le dolci rime
peito d'ella , como a respeito da Onça , e ď amor che io solia. Tal tristeza, e dor,
do Leão, que se devem tambem moral
ente causava a Dante a Fera sem paz, irre
mente nder ,
e explicar. Pareceu -me quieta, a qual, saíndo -lhe ao encontro,
indispensavel occupar-me primeiro da rechaçava - o pouco a pouco para o logar
Loba ; visto como as expressas , e preci onde o Sol é mudo .
sas palavras de Dante, ao passo que nos (30) Dove il Sol tace, isto é, dove il
convencem do verdadeiro conceito alle sole non porge della sua luce. Onde jamais
54 O INFE
RNO

o Sol vibra os seus raios. Similhante bole, não si dá o mesmo na allegoria,


mente, o Poeta, para denotar que tinha onde só a verdade se comprehende.
vindo a um logar escuro, exprime-se Corria, com effeito, para a ruina quem,
d'esta maneira : l ’ venni in luogo d'ogni retrocedendo, abandonava -se de novo
luce muto . Eu vim a um logar privado á vida viciosa .
de toda luz, isto é, a selva escura . In basso loco, que vem a dizer no
Bellas, arrojadas, e estupendas são profundo valle ( v . 14 ) ; e allegoricamente
estas fórmas sob as quaes se revela a na vil escravidão do vicio (vile servitù).
mente do altissimo Cantor ; mas sobre Na Canção Doglia mi reca nelle core
qual fundamento se apoie a sua razão, ardira, pensando no homem , que se
talvez poucos o terão investigado, e ne afasta da virtude, Dante exclama : Oh
nhum o disse . Eis o meu humilde pare Dio, qual maraviglia ! Volere cadere
cer : Em um logar privado de luz, os in servo di signore, Ovver di vita in
objectos são como si não fossem , mal morte .

podendo por esse motivo mostrar -se, e ( 32 ) Dinanzi agli occhi mi si fu offerto
dar - se a conhecer á alma . Por isso ali, Chi, per lungo silenzio parea fioco ; que
por mais que os olhos se movam , e gi por ter estado longamente tacito, pa
rem , não ha cousa que lhes fale de si , e recia ter a voz rouca , ou enrouquecida.
que possa, por conseguinte, ser perce Ha quem explique, e substitua rouco
bida pela potencia sensitiva . Assim, sem por debil; significado que o Poeta mui
offender a verdade, diremos que no tas vezes attribue a tal vocabulo ; mas
logar, onde o Sol não vibra os seus rouco , sendo posto aqui em correspon
raios, as cousas não se tornam de ne dencia (como effeito á causa ), ao longo
nhu modo Sensiveis. Là dove | Sol silencio, julgo não errar, entendendo- o .
tace ( Inf., 1, 60 ) le cose non si rendono no sentido proprio, e natural de rouco .
in alcun modo sensibili. Sobre isto, não E n'isto me confirma, por maior força
podemos deixar de admirar a arte, com de razão, o sentido allegorico, que se
que Dante pôde reproduzir optimamente acha encerrado n'aquelle verso . Mas
o conceito, e sublime expressão de Je como Dante podia assegurar, que aquelle
remias : ne taceat pupilla occuli tui. No personagem era rouco da voz, si elle
propheta de Deus é a pupilla que en ainda o não tinha ouvido ? A resposta
mudece ; mas por isso que esta fala á é prompta, e facil, si se attende que o
alma, só quando a doce luz do Sol avi Poeta agora não é senão o narrador
venta o mundo, o nosso Poeta dirá, que do que viu, e verificou. O conceito das
onde tudo são trevas, là tace il Sole , suas palavras é este : « Eu vi um ho
ali toda a luz é muda . Considere -se mem que, quando me falou, mostrava
ainda aquillo de Virgilio : Loca nocte uma voz rouca , qual costuma ter quem
tacentia late ( En ., vi , 164). por longo tempo esteve calado ». Pare
( 31 ) Mentre ch ' io ruinava in basso cia rouco, explica Buti, como acontece
loco ; alguns codices trazem ritornava quando o homem , que esteve por longo
em vez de ruinava, que é a lição com tempo em silencio, querendo falar, o or
mum , e confirmada no canto XXXII, gáo vocal, pelo desuso, mostra -se impe
138 do Paraiso , onde o contempla dido de falar com accento claro. De uma
tivo S. Bernardo lembra a Dante o expressão similhante o Poeta serve - se
tempo em que elle, amedrontado da na Canção : « Donna pietosa e di novella
magra Loba, abaixava os olhos para se etate » ; na qual, entre outras cousas vis
precipitar no profundo valle : Quando tas em sonho, recorda : E un uom mi
chinavi a ruinar le ciglia . Alem d'isto, apparve scolorito e fioco, Dicendomi che
muito a proposito , e com subido crite fai ? Non sai novella ? Morta è la Donna
rio foi aqui posto ruinava ; porque, si tua che era si bella ? E um homem me
na lettra póde parecer alguma hyper appareceu pallido, e rouco, dizendo -me :
COMMENTARIOS AO CANTO I 55

Que fazes ? Não sabes que é morta a Italiano. Biondo, porém , Alberti, Bau
tua Dama, que era tão bella ? drand, e outros geographos, enumeram
Rouca, e tambem debil, era a voz de Mantua entre as cidades Lombardas.
Virgilio n’aquelles tempos, em que, pelo Mas, não existindo ainda no tempo de
máo desuso do mundo, a litteratura era Virgilio o que depois se chamou Lom
deixada uíquelles, que de senhora a tinham bardia, opinam alguns, e com funda
feito meretriz ( Conv., t. I, c. 9 ) e em mento, que Virgilio usou do termo Lom
que os homens se mostravam desleixa bardos para se fazer conhecer por Dante .
dos do estudo dos poetas, e sobretudo ( 37 ) Nacqui sub Julio, ancorchè fosse
de Virgilio ; o qual, sem embargo de tardi. Antes de entrar na explicação
ser universalmente estimado, foi tido d'este verso , importa determinar o sen
talvez em desprezo pelo proprio Guido tido proprio do adverbio tardi. Entre
Cavalcanti ( Inf., x, 61 ) . outras significações, tem elle a de em
( 33 ) Quando i ' vidi costui nel gran vão ; assim no canto vii, 27 do Pur
diserto. É a deserta encosta piaggia de- . gatorio, Dante faz dizer a Virgilio que
serta (v. 29, 11 , 62). Quanto não é si em vão conheceu Deus : tardi connobe
gnificativa esta palavra, para represen Iddio ; ' e no canto xx, 120 do Inferno,
tar-nos o desvio dos homens do caminho recorda que o famoso Asdent em vão
da virtude ! Damno deploravel, de que se arrepende (tardi si pente) de ter-se
o Poeta com boa razão se queixa mui feito adivinho, devendo antes applicar
tas vezes ! (Purg ., XXVI, 82 ; VIII, 131 ). se ao couro, e á sovella. Na signiti
(34) Qual che tu sii, od ombra, od uomo cação, portanto, de em vão, se deve
certo. Sombra chama- se a alma pela aqui tomar o tardi do texto . Virgilio faz
nova forma aerea, que reveste no outro entender que nasceu sob Julio Cesar,
mundo, porque d'esta, que é um corpo ainda que isso fosse em vão, ou de
ficticio (Purg., XXVI, 12 ) toma a sua ap nada lhe aproveitasse; porque não pode
be parencia ( Purg., xxv, 99). Homem ver dar-se -lhe a conhecer pela potencia do
dadeiro : anima con corpo di vera carne seu engenho, e deixar assim de receber
( Purg ., v, 33 ). os seus favores. Mas Virgilio verdadei
(35) Non uom , uomo già fui. Sendo o ramente nasceu sob o consulado de
homem um composto de alma , e corpo , Crasso, e Pompeo : Virgilius Maro in
e Virgilio tendo sido já privado d'este, vico Andes haud longe a Mantua natus,
era somente sombra . Em logar de res Crasso et Pompeo consulibus ( Eusebio,
ponder eu sou sombra, diz : não sou ho no livro de imperiali ). Julio Cesar oc
mem , mas já fui homem ; pois que na cupou a primeira dictadura mais de
palavra não sou homem deixava duvidar vinte annos depois ; como, pois, diz Vir
de que podesse ser um espirito angelico . gilio, que nasceu sotto ou regnante Julio
Em tudo isto se vê a admiravel precisão Cesare ? Deve -se procurar o verdadeiro
com que Dante fala ! Quiz assim mos conceito na allegoria : quanto á lettra,
trar que não seguia a opinião de Platão, basta sómente, que isso não seja dito
que dizia ser o homem a alma simples sem alguma verosimilhança, e esta ve
mente , mas sim a opinião dos Peripa rosimilhança existe : porque si Virgilio
teticos, que fazem o homem um com não nasceu precisamente no reinado de
posto de alma, e corpo : Homo est anima Julio Cesar, nasceu quando este já
et corpus ( Vulg. Eloq ., 1 , 2, c. 6 ). estava engrandecido pelos triumphos, e
( 36) E li parenti miei furon Lom ambição do poder.
bardi ( por nascimento , por origem ), e Que a verdade, pois, d'aquellas pala
por patria houveram a formosa Man vras, nacqui sub Julio, se encerra sob o
tua. Mazzoni , persuadido de que Mantua véo da allegoria, tornar-se -ha crivel
não estivesse comprehendida na Lom desde que se pensar, que Virgilio diz
bardia, diz que por Lombardo se entenda tambem ter vivido em Roma sob o rei
56 O INFERNO

do do bom Augusto. Isto , sob certo por seus escriptos subir a tanta honra,
ponto, é verdade, como egualmente é que se fizesse estimar, e entrar na graça
certo, que elle vivêra mais de vinte e do solemne Dictador. Certamente viveu
sete annos na patria , e em Napoles em Roma, pois que lá foram recebidas
grande parte do restante da vida. Por com apreço, e se tornaram famosas al
esta razão, manifesta - se claramente que gumas obras suas, singularmente a Bu
o nascimento, e a vida de que Virgilio colica, e a Georgica, e ahi recebeu pre
fala, se devem entender de modo diverso mio de Cesar Octaviano, e foi exaltado
do que a lettra sôa . E eis as gravissi com muita honra . Sim , em Roma, sob o
simas considerações em que me firmo : feliz reinado do bom Augusto, viveu
Primeiramente apraz -me repetir, que Virgilio na primeira vida de honra, e de
no texto, tomado ao pé da lettra , pode fama ; vida que ainda dura, e durarii
haver, e de facto ha, mais ou menos exa emquanto o mundo existir ( Inf., 11, 60).
geração, comtanto que se mantenha a Quasi no mesmo sentido allegorico
similhança da verdade , mas as palavras navega o erudito Perticari, como se ve
em que se encerra o conceito allegorico, das suas seguintes palavras : « Em razão
em relação a esta (verdade ), não são da syntaxe o il fossi tardi deve - se refe
exageradas, antes concebidas com todo rir ao nascimento, e não ao reinado de
o rigor. Sirva -nos um só exemplo : Julio Cesar. Nasceu Virgilio sub Julio
que monte jamais houve ou existe, que Cesare ; mas, tendo este sido morto,
se possa propria, e verdadeiramente enquanto elle era joven , nasceu mui
chamar principio, e causa de toda a tarde para poder ser poeta, como o foi
alegria ? Mas entendido este monte no tempo de Augusto. Dizendo que viveu
allegoricamente pela summa felicidade, no reinado do bom Augusto, quiz dizer,
que é possuir Deus, vemos que aquella que viveu a vida da fama, das obras, e
expressão ahi se adapta com admiravel, da gloria, que é a unica vida do homem
e perfeita conveniencia. Isto posto, é segundo Dante, o qual chama não vivos
de saber, que entre as vidas nomeadas, (non vivi) os homens obscuros. Dizendo
famosas, conta -se a vida da honra, e da finalmente Virgilio, que começou a vi
fama ( Thes., 1, 1 , c. 2 ), e aquella, pela ver depois dos 25 annos, dá melhor a
qual o homem se eterniza ( Inf., xv , 85 ) . conhecer, que não fala aqui da vida ani
D'esta similhante vida, que o homem , mal, mas sim d'aquella, que vive por
por seus esforços, adquire, ou conquista, obras grandes, e por virtudes cidadās» .
fala Dante na pessoa da bella Cuniza, Veja-se o Convito, pag. 118, 119, 209, e
no canto ix do Paraiso ; onde recorda 210, onde Dante explica o que seja vi
como a fama de Folcheto de Marselha, ver no sentido, que se deve entender
do qual grande celebridade permanece n'este logar.
no mundo, e durará ainda por muito ( 38 ) A tempo degli Dei falsi e bu
tempo, conclue com esta admoestação : giardi ; isto é , do paganismo, no tem
Vêde que o homem se deve fazer excel po das gentes antigas no antigo erro :
lente, de modo que a primeira vida genti antiche nell'antigo errore ( Par.,
( qual no mundo se vive, Purg ., VIII, 59 ). viii, 6 ) . Deuses falsos : Dei gentium dæ
deixa após si outra vida de honra, de monia ( Ps. 67 ) , mentirosos; porque
fama. Ora , para esta vida de honra, é entre os outros vicios do demonio,
que primeiramente nasceu Virgilio sob o prima o de ser pae da mentira : bugiardo
reinado de Julio Cesar ; porque, sob este e padre di menzogna ( Inf., xxi! I, 144 ).
reinado, tão propicio ás artes, começou (39) Poeta fui: Para que se saiba, que
a exercitar o proprio engenho no estudo Virgilio merecia este glorioso titulo, que
da sciencia, e da arte, mas foi em vão ; Dante lhe dava, cumpre attender a mis
porque, pela sua joven edade, não pode são, que este julgava propria dos poetas.
então instruir - se bastantemente, nem Esta missão Sancto Izidoro de Sevilha
COMMENTARIOS AO CANTO I 57.

circumscreve em termos precisos, a que rico da selva , será bom confrontar as


adhere fielmente Dante : Officium poeta muitas, e diversas maneiras sob que
in eo est, ut ea quæ vere gesta sunt, in ella nos é indicada : luogo selvaggio,
alias species obliquis figurationibus cum logar selvagem ( v. 60 ); gran noia, gran
decore aliquo conversa transducal ( Ety., de angustia ( v. 77 ) ; basso loco, valle
1, 8, c. 7, p. 367). D'esta definição não dis profundo ( v. 61 ) ; la dove il Sol tace,
corda Boccacio, o qual estabelece, que lá onde o Sol não reflecte seus raios
o officio de Poela é esconder a verdade ( v. 60 ) ; lo passo che non lasciò giam
sob fabulosa , e ornada linguagem , que foi mai persona viva, sarçal de que ja
o que sempre fizeram os grandes poetas. mais saíu pessoa alguma com vida
Quem meditar em todas estas cousas, ( v. 27 ) ; valle chè compunge il cuor di
poderá então comprehender com maior paura , valle, que transe de paror o co
segurança, qual seja o bello estylo, que ração ( v. 14 ) ; la fiumana ove 'l mar non
Dante diz ter aprendido de Virgilio. ha vento, rio sobre o qual nenhum poder
( 40 ) ... cantai di quel giusto Figliuol tem o mar ( Inf., xi, 108 ).
d'Anchise : isto é, de Eneas, quo justior Si considerarmos agora attentamente
alter, Nec pietate fuit, nec bello major estas determinações, qualificações, e cir
et armis ( Eneid., 1, 543 ; logar citado na cumlocuções com que o Poeta sempre
Monarch ., 1, 2, 3 ). nos representa a selva escura , sem du
(41 ) Venne da Troia (in Italia ), Poichè vida nenhuma, veremos admiravelmente
il superbo Ilion fu combusto . Ilion , ci que -ellas são as unicas possiveis, para
dade de Troya , assim chamada de Ilio, serem apropriadas á vida dos vicios
Rei, a qual, segundo escreve Pomponio ( vita di vizi), em que o homem se deixa
Mela, na sua cosmographia, foi sitiada arrastar, desde que é desviado do recto
pelos Gregos, e por fim tomada, incen caminho (la dritta via ), que é aquelle,
diada, e destruida. A denominação de que conduz a Deus (Inf., ix, 6 ; Par ., VII,
soberba allude á altivez dos Troyanos, 39 ) .
que tudo ousava : altezza de Troian che ( 43 ) Il dilettoso monte, Ch’è principio
tutto ardiva ( Inf., xxx, 14) . Dante, entre e cagion di tutta gioia ? O monte repre
as ruinas da soberba humilhada, e ex senta a optima felicidade, a qual Dante
tincta, que elle admirou no primeiro define claramente por la buona essenza
giro do Purgatorio, recorda que viu as d'ogni ben frutto e radice : a boa es
de Troya : Vedeva Troja in cenere e in sencia de todo o bom fructo, e raiz.
caverne : 0llion , como te basso e vil (Purg ., XVII, 135 ). Ora Deus, Bem Sum
mostrava il segno che li si discerne ! mo , é perfeito, é que constitue esta
Eu via Troya reduzida a cinza e a ca bemaventurança , a maior que se pode
vernas. Ó lion, quão baixo, e vil te mos gosar na terra como primicia da eterna .
trava o signal, que ali se vê ! Como si Nullum gaudium est extra Deum , sed
dissesse : Quanto a tua effigie te mos totum in Deo, cum ipse Deus totum sit
trava descaida da tua altiya soberba ! gaudium ( Vulg. Eloq ., 1, 1 , c. 3 ) . Leia - se
Mas, para abraçar,e distinguir bem nas sobre isto o commento ao verso 13 .
suas partes o conceito d'este terceto , Agora pergunto : por que razão Dante
é necessario ter presente aquillo da responde a Virgilio com acto de vergo
Eneida : Arma virumque cano Trojæ qui nha , e não de reverencia ? (Resposi lui
primus ab oris, Italiam venit. con vergongnoza fronte) . A razão d'esse
(42) Ma tu perchèritorni a tanta noia ? acto torna - se -nos patente, si reflectimos
Noia corresponde a pièta ( tristeza ), a no profundo, e angustioso valle (al basso
afflizione ( afflicção ), a agoscia ( angus e noioso luogo) para o qual Dante es
tia ), a affano (amargura ), e por fim á tava disposto a voltar, impellido pela
miseria. Agora aqui, para mais certifi Fera, e na exprobração, que lhe foi feita
car-nos do verdadeiro sentido allego pelo sabio gentil, quando lhe bradou :
58 O INFERNO

« Porque voltas ? . Esta exprobração não Similhantemente disse o mesmo Vir


se poderia entender, nem explicar, si gilio a Estacio :
não se soubesse, que a selva figurava Onde dall' ora, che tra noi discese
tambem a miseria do exilio que Dante Nel limbo dell' Inferno Giuvenale,
teve de soffrer injustamente (Conv., Che la tua affeion mi fe palese.
tr. I, c. 3 ). Mia ben'oglienza inverso te fu quale
Più strinse mai di non vista persona ,
(41) O degli altri poeti onore e lume. Si ch ' or mi parran corte queste scale .
Honra, porque Virgilio é o altissimo (Purgatorio , c. XXII, 11 , 18. )
poeta ( Inf., iv, ), que honra toda a
sciencia, e arte ( v. 61 e 66 ), e que, Desde o momento , em que o poeta Juvenal des
com o seu eloquio honesto , e ornado ceu ao meio de nos, n'este limbo do Interno, e me
fez saber o teu amor para commigo, e para com a
(onesto e ornato ), honra não sómente minha Eneida, a minha benevolencia para comtigo
a si, mas aquelles que o têem ouvido ; foi tal , qual nunca se desenvolveu entre pessoas não
ma qui che udito l' hanno ( Inf., 11, 113). conhecidas de vista, de modo que estas escadas me
pareceram curtas pelo prazer de achar-me a teu
Luz, porque a Encida é a divina chamma lado,
de que são alumiados mais de mil : la
divina fiamma, onde sono allumati più ( 46 ) Tu se ' lo mio maestro e il mio
di mille (Purg ., XXI, 94 ). autore. Dante quer dizer com isto que
(45 ) Vagliami il lungo studio e il The inspirou o talento poetico, e que tanto
grande amore, Che m’han fatto cercar se intammou na divina chamma, que, á
lo tuo volume (Mi sia a merito, mi similhança de Estacio , podia dizer a V'ir
giovi a impetrare il tuo soccorro ) ( Inf., gilio : Foste tu o primeiro que me en
XXVI, 80 ) ; isto é, a Eneida, a qual, viaste ao Parnaso .. tu prima m ' inviasti
pelo grande amor com que Dante se verso Parnaso ... ( Idem, 67).
propoz estudal-a, logrou sabel- a toda Il mio autore. Auctor, segundo o tes
de memoria ( Inf., xx, 114 ) . temunho de Uguccião, deriva do voca
Esquadrinhar, isto é, investigar, exa bulo grego authentein, que quer dizer
minar attenta , e miudamente, como digno de fé, e de obediencia . E assim ,
quem procura descobrir uma cousa pre auctor se toma por toda a pessoa digna
ciosa : esquadrinhar corresponde com de ser querida, e obedecida. Pelo que
exactidão ao verbo cercare do texto , e parece que Dante chamou Virgilio seu
se adapta perfeitamente á amorosa di auctor , por ser digno de credito , e de
ligencia com que Dante se esforçou para obediencia ; sendo que, as suas pala
arrancar a Eneida do olvido vulgar. vras, como as de Aristoteles, lhe eram
Longo estudo, e grande amor. Estudan de summa, e de altissima auctoridade :
do, e amestrando -se na honesta lingua somma ed altissima auctoritate .
gem da Eneida, Dante, por este longo ( 47 ) Tu se ' solo colui, da cui io tolsi Lo
exercicio tomou -se de grande amor por bello stile che m'ha fatto onore . Antes de
Virgilio, e este virtuoso amor não podia entrar na explicação d'este logar tão dis
deixar de fazel- o digno da benevolen putado, e tão diversamente entendido,
cia com que este se moveu a soccor será conveniente advertir primeiro, que
rel- o na deserta encosta ; porque amor Allighieri, por este estilo , que já lhe fazia
acceso pela virtude accende sempre honra , não podia indicar o da Divina Co
outro amor, comtanto que a sua cham media , que ainda não tinha escripto, nem
ma sc communique manifestamente á divulgado ; mas sim o doce estylo novo
pessoa amada : (Purg., xxiv ) , e as novas rimas que elle
tinha publicado, começando : Donne, che
amore avete intelletto d'amore ( Purg ., iv, 50) .
Acceso di virtù, sempre altro accese, É porém, certo, que d'este novo estylo,
Pur che la fiamma sua paresse fuore. Dante usou com arte mais admiravel no
( Purgatorio, c. xxl , u .) sacro Poema, em que elle chegou á
COMMENTARIOS AO CANTO I 59

maior perfeição desejavel. Quando, pois, nos segura prova as suas palavras a
começasse a poetar por allegoria, isso Can Grande, ao qual fez conhecer, que
nos faz elle saber n'aquelle soneto : Pa a maneira de discorrer (maniera del
role mie, che per lo mondo andate, Voi, trallare) usada na Divina Comedia era ,
che nascete poich ' io comminciai A dir segundo o costume dos poetas, occul
per quella donna, in cui errai: Voi che tando a verdade sob bellas fabulas: for
intendendo il terzo ciel movete. Mas qual ma sive modus tractandi est poeticus ,
seja o verdadeiro sentido , que se possa fictitius (Epist. a Can ., S 8) .
attribuir ao stile nuovo introduzido por ( 48 ) Vedi la bestia, per cui io mi volsi:
Dante, e aprendido de Virgilio, é -nos isto é, por causa da qual vou -me pre
melhor esclarecido na Vita Nuova , onde cipitando no profundo valle (ruinando
se acha grande parte d'aquellas poesias, in basso loco ( v . 61 ) : eia soccorre -me,
que mais conquistaram fama ao devo famoso sabio : tão famoso, que a sua
tado, e admirador de Beatriz. Ahi, entre fama ainda dura no mundo , e com o mun
outras cousas, que diz sobre o estylo do apostará duração. E durará quanto
em que devem escrever os poetas, con il mondo lontana ( Inf., 11 ) . Sabio mar de
clue : Porque grande vergonha seria todo o saber, e de quem toda a sciencia ,
para aquelle, que deixasse alguma cousa e arte recebem honra ( Inf., viii, 7 ; IV,
sob a roupagem da figura, ou da côr 73 ; vii, 3 ) .
rhetorica, e depois de perguntado, não ( 49 ) Ch'ella mi fa tremar le vene e i
soubesse despir d’esta roupagem as suas polsi. Como si dissesse : Pelo terror com
palavras, de modo que fossem verdadei que ella me perturba, não me resta uma
ramente entendidas ( explicação do so gota de sangue que não trema: men
neto xxv ). che dramma di sangue m'è rimasa , che
Esse versejar sob roupagem de figura non tremi ( Purg ., XXX , 47 ) .
ou de colorido rhetorico ( sotto vesta di Veias, e os pulsos estão aqui pelos .
figura ou di colore rettorico ); este estylo pulsos das veias (Le vene e i polsi sta
figurado, ou allegorico é aquelle, que per i polsi delle vene ), não sendo os
Allighieri novamente poz em vigor, deri pulsos ( falo segundo a sciencia dantes
vando - o de Virgilio , em cuja Eneida pa ca) senão o effeito do movimento do
receu -lhe descobrir uma continuada al sangue : Pulsant venæ omnes et simul
legoria , como pode verificar - se por mui invicem , quando cor movet, propterea
tos logares do Convito . Não devo deixar quod omnes pendent a corde ( Aristot .,
sem observação, que Dante teve tanto t . II, c. 15 ) . Venæ universæ simul cum
apreço o estylo allegorico do seu alto corde palpitare solent ( ibid .). Ora, o ter
Doutor, que estudou fervorosamente os ror, provocando uma tremura no cora
outros poetas, que empregaram o mes ção , commove o sangue por todos os
mo estylo , isto é, Horacio, Ovidio , Lu membros, e accelera o bater dos pulsos.
cano , Estacio , e Juvenal ; mas deu sem Concluida a sua queixa, Dante poz- se
pre toda a sua preferencia ao Mantuano , a chorar ( a lacrimare ). Que força não
qual soberano mestre de todos ; por isso deveriam ter no animo de Virgilio as
o admirâmos exaltado como o altissimo suas lagrimas depois de tantas demon
poeta ( Inf., iv, 80 ), a nostra maggior strações de reverencia e amor ? Foi, sem
Musa ( Par ., XV, 26) o nosso maior poe duvida, commovido por ellas, que lhe
ta
(Conv ., tr. iv, c. 26 ) il divino Poeta prestou o seu auxilio, aconselhando - o a
nostro (Mon. tr. II, c. 5) : aquelle que sair da selva selvagem , sob a promessa
Mostrò ciò che poeta la lingua nostra de guial-o por uma região eterna, isto
( Purg . Vii, c. 17 ). é, de salval-o, não só da Loba, mas da
D'este estylo poetico ou allegorico va Onça, e do Leão, que valia tanto como
leu-se Allighieri para adornar singular dizer -lhe allegoricamente ) : salvar- te
mente o seu divino Poema. D'isto dão
hei , não só dos perigos, e dos effeitos da
60 ( ) INFERNO

avareza, mas de todas as paixões, pela cançar, na medida de tio depravado de


meditação das verdades eternas, e prin sejo, sem damnificar o proximo ? / Cony.,
cipalmente do Inferno : Non solo della tr. IV , c . 12 ) . Deve estudar attentamente
avarizia, ma da tutte le passioni per me este capitulo do Convito quem quizer
ditazione delle Verità eterne e primie descobrir a exacta verdade, e conven
ramente dell'Inferno . cer- se da maravilhosa conveniencia nos
( 50 ) Per la sua via : sua refere - se á pensamentos do summo Poeta. Mas para
Fera, porque onde ella está, ninguem pór o sello a quanto se tem discorrido, e
póde passar sem encontrar a morte : como que para recreação da mente ta
por isso Virgilio aconselha Dante a se tigada, citarei alguns nobilissimos ver
guir outra vereda ( v. 91 ). sos da Canç. Doglia mi reca nello core
( 51 ) Ma tanto lo impedisce, che l'ucci ardire ...
de.Vê-se agora claramente que esta Fera, ( 54) Molti son gli animali a cui s'am
a qual mata só com o obstaculo que in moglia : Muitos são os animaes, que se
terpõe, não deve poder symbolisar, se ajuntam com ella , e isto ao pé da lettra :
não um vicio, que occupando o animo allegoricamente indica, que a avareza se
lhe dá a morte. Leia - se a Canção : Do faz mulher, ou, para melhor dizer, se
glia mi reca nello core ardire, e conhe nhora , dominadora de muitos hemens.
cer-se -ha que é particularmente a ava Os quaes precisamente por se deixarem
reza , que reduz o homem de senhor a possuir de similhante vicio, cessam de
servo ou da vida a morte. ser homens, para se tornarem animaes.
(52) Ed ha natura si malvagia e ria : Porque o homem , que afastou de si a
má para comsigo, perfida para com ou virtude, homem não é, mis animal, que
trem : porque os avarentos são animaes a homem se assimilha : Canç.: Doglia
falsos a si mesmos , e crueis para com ou mi reca nello core ardire. E para tornar
trem , que se conservam vestidos de lodo mais evidente a verdade da explicação,
vil, e deixam ir nús homens innanzi a cui que damos ao verso de que se tracta,
vizio è fuggitto ( diante dos quaes o vicio convem reproduzir as proprias palavras
fugiu ): Canç.: Doglia mi reca nello core de Dante na Epist. aos Card. 57 : Cupidi
ardire . E gritando contra aquelles, que tatem unusquisque sibi duxit in uxorem .
não têem em si verdadeira gentileza, e Por outro lado, a avareza é - nos franca
bondade, exclama: Oh falsos cavalleiros, mente apresentada como o mal che tutto
mios, e perfidos inimigos d'esta que ao il mondo occupa (Purg ., XX, 7).
Principe das estrellas se assimilha : ( 55 ) E più saranno ancora , subenten
Canç., Poscia che amor del tutto m'ha de os animaes, a quem a Loba se unirá,
lasciato. até que venha o Veltro (inimigo natural
( 53 ) Che mai non empie la bramosa da Loba ) que a fará morrer de dor, per
voglia, E dopo il posto ha piu fame che seguindo -a .
pria ; e eis- aqui porque a avareza tem ( 56 ) Infin che il Veltro Verrà, etc. É
feito miseravel muita gente . bem facil reconhecer que similhante Vel
Para as riquezas não ha abastança, tro, que fará detinhar de raiva ou furor
nem limite ; quanto mais se augmen a ávida Loba, se deve tomar como alle
tam , mais se multiplicam os desejos de goria. Visto que, propriamente falando,
adquiril -as, e com os desejos crescem é apenas verosimil que se possa dar, e
os receios de perdel-as; porque em tem surgir um tal Veltro. Alem de que, reco
po algum se satisfaz, nem se sacia a sê nhecendo -se visivelmente nas feições
de das riquezas... E que outra cousa da Loba as propriedades, e a natureza
arruina, e mata quotidianamente as ci da avareza, convem forçosamente admit
dades, os paizes, e as pessoas, senão a tir que o Veltro deva ser um inimigo
crescente concupiscencia de accumular mortal d'este grave vicio commum ; de
fortuna, que certamente não se pode al sorte que, repellindo - o de si, o faça uni
COMMENTARIOS AO CANTO I 61

versalmente detestar, e o obrigue a fugir Dante se queixa, e ao qual entende que


raivosamente do mundo, para refugiar será dado remedio, é espiritual, e por
se no inferno d'onde saiu, gerado pela isso só ao Pontifice, como conductor,
maldita inveja de Lucifer. Este indicio que é pelo caminho do Céo, pertence
por si só bastaria para convencer , de procurar sanal- o . Ninguem mais, nem
que o Veltro não poderia jamais ser um Imperador, nem homem de armas qual
Imperador, e muito menos um grande quer póde effectual-o, devendo -se ainda
Capitão, mas unicamente um Pontifice temer officio non commesso (Purg ., x,
sancto . O qual, lembrando -se de que o 57) . Sobre isto é conveniente considerar
seu reino não é d'esta terra, e que a elle que o Allighieri estava tão longe de que
justamente compete apontar a estrada rer indicar-nos debaixo da figura do Vel
de Deus ( Purg ., XVI, 107 ), afaste de si , e tro algum dos senhores da terra, que dá
dos outros seus companheiros o amor argumento a excluil-os sem receio de
desordenado das cousas mundanas; pro errar. Este l'eltro de facto não deve ali
curando assim fazer com que a hu mentar- se de terra nè peltro, o que quer
manidade, seguindo tão nobre exemplo, dizer, por concorde decisão dos inter
deseje, e trabalhe por alcançar o eter pretes, não ha de preoccupar-se, nem
no , e summo Bem . De resto , remetto buscar, nem saciar- se de ouro ou pos
quem se dignar ler-me, ao discurso que sessões, não ha de fazer consistir a sua
acrescenta : ei acerca do Veltro, no qual ambição ou delicia em thesouros nem
me esforcei por derrocar aquelles obsta dominios. Ora qual é, por favor, entre os
culos, que se oppõem a interpretação dominadores do mundo, o que não se
acima indicada. E aqui contentar-me-hei teria envolvido em taes cuidados ? Qual
de apresentar um unico argumento , que, é d'aquelles valorosos cabos de guerra
se excessivo amor me não illude, con reconhecidos no Veltro, o que não se
duz à recta conclusão da verdade que deixasse vencer , e senhorear pela cobiça
si busca. O mundo, segundo a constan de alargar o proprio haver, e dominio ?
te opinião do Poeta, transviava -se por Nenhum , por certo . Para que pois pro- .
máo caminho, porque a cobiça do ouro curar entre esses, que cibano oro, e terra ,
fizera do Pastor lobo ( Par ., ix, 130) e o o homem de amor, de sapiencia , e de
povo, que via o seu guia occupar - se tam virtude ? E não são esses dons tão dis
bem d'aquelles bens terrenos ( fallazes tinctos o ornamento principal, e como
imagens de felicidade ), de que elle é na que a divisa do verdadeiro Pastor dos
turalmente avido, di quel si pasce e più povos christãos ?
oltre non chiede (Purg., XVI, 102 ). Por Alem d'isto, mal se poderia dizer que
isso se declara, que a má conducta do um Imperador, a quem incumbe guiar os
Pastor : É la cagion che il mondo avea homens pela estrada do mondo (Purg .,
falto reo ( Pur ., VI, 104 ). Porque em ra XVI, 107 ) não havia de cibare terra ,
zão do máo exemplo estavam todas ne peltro, quando o mar, as areas, os
desgarradas as ovelhas, e os cordeiros Alpes, a terra , tudo lhe pertence (Mon., 1,
( Par ., 127-128) e já em todas as pas 1 , c . 2 ; Lett. al Princ. ital.). O mesmo pó
tagens do rebanho de Christo , ap de - se dizer, ainda que de modo mais
pareciam in veste di pastor lupi rapaci restricto, dos menores Reis, e Principes,
(Par., XXVII, 55 ). Mas este publico e designadamente de Can Grande, ao
damno ninguem poderia nem deveria qual de certo não é applicavel a prophe
remediar , senão um Summo Pontifice de cia de Dante, em vista de outra directa
grande sanctidade, e sobretudo despre mente opposta , que lhe foi annunciada
zador dos bens da terra : o qual, para di pelo adivinhador Mestre Scotto, dizendo
zer com o Poeta, não procure terra nem que elle, alem de Verona, se tornaria
peltro , nutrindo -se só de amor, de sa senhor de Padua , e de toda a Marca Tre
piencia, e de virtude. O mal de que visiana . E quando Dante diz no Paraiso
62 O INFERNO

(XVII) que as scentelhas da virtude de furor. Dor tem tambem de facto o signi
Can Grande brilhariam pelo seu despre ficado de raiva n'aquelle celebre verso.
zo das riquezas, e fadigas, não quiz di Ambo le m.ini per dolor mi morsi (Inf.,
zer com isso que elle seria o Veltro des XXXII, 58) . E pois que da raiva nasce a
tinado a fazer morrer de dor a Loba, dor, e acresce , como o effeito da sua
isto é, a extinguir a avareza, que tyran causa , assim um vocabulo faz as vezes do
nisava geralmente ; porque, comprehen outro : sirva para confirmação, e exem
dendo -se os limites do seu dominio den plo aquelle verso do Inferno, xiv , 65 :
tro de tão estreita zona, é claro que nullo martirio, fuor che la tua rabbia
Dante não podia alludir a elle ; por Sarebbe al luo furor (de Capaneo , dolor
quanto, sendo a aváreza universal, não compito. O que parece indicar que se
podia ser destruida, senão por um se afastam um pouco da verdade aquelles,
nhor universal, e este, na mente do que interpretam la farà morir de doglia
Poeta, seria o Imperador, ou o Papa, estrictamente por la ucciderà. E melhor
um pelo que respeita á terra, o outro se conhecerá isto, attendendo á verdade
pelo que respeita ás cousas do céo . Mas allegorica.
é evidente que mais no Papa, que no ( 58 ) E sua nazion sarà tra Feltro e
Imperador, punha elle a mira quando Feltro. Nação aqui está por nascimento ;
vaticinava o exterminio da avareza ; por pois que com outra significação não
que considerava que nenhum auxilio se poderia adaptar ao Veltro, entenden
seria tão opportuno, e efficaz como do como a lettra exige . De outro lado,
do Pastor da Egreja universal, o mais a allegoria poderia conduzir a diversa
proprio para mover as molas do coração significação; porque si nação n'este lo
humano, e extirpar d'elle o vicio. gar indicasse estado, dominio ou cousa
Esse Pastor pois, revestido de tão alta similhante, seria quasi inutil, tendo - se já
missão, non cibara terrà, nè peltro, isto é, dito que este Veltro non ciberà terra,
não aninhará no seu espirito a ambição nè peltro.
de adquirir bens mundanos ; visto como Nação por nascimento, geração, linha
o seu reino não é d'este mundo, con gem , é de uso frequente entre os bons
forme foi annunciado aos Apostolos : escriptores classicos italianos. Baste, en
Não queiraes possuir nem ouro, nem tre muitos, este exemplo: Ottone a papa
prata , nem dinheiro (Mon., II, C. 10 ). Mas Giovanni XII fece trarre gli occhi e ta
esse Pastor se nutrirá de sabedoria, para gliare le mani, e remise in sedia il papa
illuminar o seu povo no caminho de Deus Gregorio, que di nazione era suo paren
( Purg ., XVI, 106 ); de amor, para mostrar te (Ricord Malispini, Stor . fior ., c. 48 ).
se mais benigno com os pobres justos Entre Feltro, e Feltro. Os interpretes
( Par ., XII, 88 ), dispensando -lhes o bem , são accordes em dizer que estas pala
que a Egreja guarda ( Par., XVI, 82-83 ) , vras se referem a Feltro, cidade de Mar
e para ser tão amoroso de Cesar, como ca Trivisiana, e a Montefeltro na Ro
a mãe é de seu filho ( Par., XVI, 60 ): de vir . manha. Com ellas quereria Dante desi
tude, para que, retratando- se nas pala gnar Trevisio como logar do nascimento
vras, e nas obras de Christo (Mon., II, c . ou a patria do Pontifice prophetisado
16 ), se nutra da sapiencia d’Aquelle, que para extinguir a avareza, dando assim
disse : Eu sou o pão da vida (S. João, vi, bom argumento para crer -se que fosse
48), e possa attribuir a si aquella pala Benedicto XI, eleito Papa a 14 de outu
vra santa : O meu manjar é fazer a von bro de 1303; porque este foi exacta
tade d'Aquelle, que me enviou ( S. João, mente de Trevisio , de tão pobre nasci
VI, 38) . mento , que quasi não se conheciam seus
( 57 ) Morir di doglia, na minha opi paes ( Vill. , 1, 8, c. 6 ). O tempo , em que
nião, vale aqui tanto como morrer , pe elle foi chamado á Sé de Roma, accom
recer, consumir de raiva ou de raivoso moda -se perfeitamente á visão imagi
COMMENTARIOS AO CANTO I 63

nada por Dante em 1300. Para conven tanquam communes civilitatis principum
cer-nos que Dante, em relação ao Veltro, ( Epist . aos Card ., $ 10 ) .
não podia melhor personifical-o, que no Virgilio tinha chamado o Lacio Hu
referido Benedicto XI, homem d'aquellas milem Italiam (Eneid ., II, 522 ).
eminentes qualidades, e virtudes, com O Veltro salvará Roma. Quer Dante
que no Sacro Poema elle deseja ver or dizer, que o prophetisado Pontifice, pio,
nada a pessoa do supremo chefe da Egre e justo, fará renascer a antiga bondade
ja, apraz -nos mencionar aqui o que Dino de Roma, e com isso a Italia, e todo o
Compagni nos diz a respeito da eleição, mundo se restaurarão na tranquillidade
e predicados do eximio Pontifice : « Nosso de uma paz inalteravel. Agora pergun
Senhor Deus, que provê a todas as ne tarei como o Veltro, na significação de
cessidades, querendo restaurar o mundo um dominador qualquer da terra, pode
por meio de um bom Pastor, acudiu aos ria ser a salvação de Roma, onde tem a
reclamos dos christãos: assim permittiu sua Séde o successor do maior Pedro ?
que fosse chamado a assentar - se na ca Admittir tal hypothese, seria desconhe
deira de S. Pedro o Papa Benedicto, nhecer, ou contrariar as doutrinas es
nascido em Trevisio , frade dominica tabelecidas pelo Poeta, na Monarchia,
no, e prior geral, homem de poucos no Convito , na Epistola aos Cardeaes,
parentes, e de pequeno sangue :(humilde e collocal- o em perpetua contradicção !
estirpe ), constante , e honesto, discreto, 0 Veltro salvará Roma ou a humilde
e sancto. O mundo regosijou -se de nova Italia , emancipando- a da influencia dos
luz. Começou o bom Pastor a fazer Reis de França, maxime de Filippe o
obras piedosas : perdoou aos Colonnas, Bello, grande tyranno da christandade,
restituindo -lhes a posse , e goso de seus sobretudo da Italia. Effectivamente Bene
bens. Nas primeiras temporas fez dous dicto XI,não obstante sua indole branda ,
Cardeaes, um inglez, e outro foi o Bispo e pacifica, deu tantas, e taes provas da
de Spoleto, nascido no Castello de Prato, sua animadversão aos designios de Filip
da ordem dos Pregadores, chamado Ni pe em damno da Italia , que este monstro
colao, de pequenos parentes, mas de lhe propinou o veneno, quando reconhe .
grande sciencia, gracioso , e sabio, e de ceu impossivel attrahir o sancto Papa ao
progenie gibelina; pelo que muito se seu partido, como já tinha reconhecido
alegraram os Gibelinos, e brancos, os impossivel attrahir Bonifacio VIII , e d'ahi
quaes tanto pediram , que o Papa o os ultrages de Anagni.
mandou de pacificador para a Toscana ». (60 ) Questi la caccerà per ogni villa.
Quem com ponderado exame consi Villa aqui é tomada por cidade, como
derar todas, e cada uma das excellen se colhe de algun logares da Divina
tes virtudes de que foi enriquecido Comedia ( Inf., XXIII, 95 ; Purg ., XV, 97 ) :
Bene dicto XI, não deixará de reconhecer mais geralmente de paiz em pai; ( Purg .,
que só elle n'aquelles tempos deu indi xx, 35) . Allegoricamente quer dizer o
cios de ser, como certamente foi, o Vel Poeta, que o Pontifice, que elle prophe
tro annunciado, e destinado a extinguir tiza, perseguirá por todos os paizes a
a fam ulenta Loba, a restabelecer o pres insaciavel avareza, reprimindo os maus,
tigio de Roma, e reformar o mundo. e elevando os bons, e com tanto vigor
(59 ) Di quell' umile Italia fia salute. a perseguirá , que ha de obrigal-a a fugir
A humilde Italia em defeza da qual do mundo, e encovar - se no Inferno, que
morreram Camilla, e Turno, Eurialo , e ensacca em seu bojo todos os males do
Niso, é o antigo Lacio, e principalmente universo ( Inf., vii, 17) . Com effeito Be
Roma, capital do Lacio, que deve ser nedicto XI declarou guerra franca á ava
amada por todos os Italianos, como ori reza , citando -a publicamente ao seu su
gem commum da sua civilisação. Latiale premo tribunal, por meio de solemne
caput cunctis est pie Italis diligendum , excommunhão, que equivalia a mettel-a
64 ( INFER
NO
)

no inferno, segundo a phrase de S. Pau 7 de junho 1304 e 7 de julho do dito


lo, quando diz que excommungar a Egre anno . Este é o mez preciso em que
ja um peccador é entregal- o ás mãos do Dante começou a escrever o Poema.
diabo (1 Cor ., 5, 3 ) . Foi isto exactamente Assim n'este primeiro canto temos as
o que fez Benedicto XI com a sua Bulla duas epochas referidas, a poetica, e a
de 7 de junho de 1301, por meio da qual historica, a primeira no principio, e a se
fulminou os auctores, e cumplices do as gunda no fim do canto . Na primeira
sassinio de Bonifacio VIII. Filippe, e seus tinha Dante 35 annos ; na segunda 39.
scelerados cumplices Nogaret, e Sciarra Boccacio faz o Poeta começar o Inferno
Collonna certamente não contavam com ao menos um anno depois ; mas isto não
tanta fortaleza em Benedicto XI , e no passa de uma conjectura, e os criticos
seu satanico furor, d'elle se vingaram , não occultam que a Vida de Dante es
fazendo - o morrer de veneno em 7 de cripta por Boccacio é mais uma novel
julho de 1304. la, do que uma historia . O meu argu
Este começo de triumpho sobre a mento pois baseado no Veltro, ou em
Loba, ou avareza , determina a epocha Benedicto XI, em quem o Poeta poz toda
precisa em que Dante entrou a escrever a sua confiança, e de quem allegou um
a Divina Comedia ; cumprindo notar dos ultimos actos, isto, é a Bulla da ex
que o principio do Poema tem duas communhão , prova evidentemente que
epochas, uma ficticia, outra real, ou escreveu isto depois da Bulla, e antes
uma poetica, outra historica. A ficticia da morte do Papa .
é aquella em que finge acontecido o Entendi que devia elucidar bem este
assumpto do Poema em uma epocha an ponto , a fim de que não reste duvida
terior aquella em que foi escripto. A sobre quem seja o Veltro allegorico, o
real é aquella em que verdadeiramente qual, para dizer tudo n'uma palavra,
começou a escrever. Dante pois repor quando não fosse designadamente Be .
ta o principio do seu Poema a 9 de abril nedicto XI , ou outro Papa, seria sem du
de 1300, não porque então tivesse come vida a personificação da firmissima con
çado a escrevel - o , mas pela razão indica fiança, esperança, e fé do Poeta, de que
da. É portanto evidente que a epocha do mais cedo, ou mais tarde, brilharia no
verdadeiro, e real principio da Divina mundo a victoria final do espirito do
Comedia data do vaticinio, que Dante faz Evangelho, substituindo a barbarie pela
sobre o seu Veltro . Ora o Beato Bene verdadeira civilisação christā, mediante
dicto XI morreu a 7 de julho de 1304, não a poderosa influencia da Egreja, arca
tendo ocupado a cadeira pontificia, se da salvação moral das sociedades hu
não oito mezes, e dezesete dias: logo o manas .
verdadeiro, e real principio do Poema (61) Là onde invidia prima dipartilla.
não podia ser senão de poucos dias an Allude a inveja de Lucifer, que no
terior á morte de Benedicto ; porque de principio do mundo voltou as costas ao
outro modo não teria podido o Poeta pre seu Creador, e do qual a inveja é horri
conisaro triumpho sobre a avareza alcan vel fructo (Par., ix, 107), Invidia diaboli
çado em 7 de junho de 1304. Ha alem mors introivit in orbem terrarum ( Sap .,
d'isto outra razão pela qual se não pode C. 2 , V. 24 ); porquanto Lucifer, invejan
suppor, que Dante começasse a escrever do a felicidade do homem destinado a
posteriormente á morte de Benedicto, succedel - o na gloria que havia perdido,
e vem a ser que, morto este , dissipa por sua rebellião , tentou a nossos pri
ram - se -lhe as concebidas esperanças, meiros paes, da transgressão dos quaes
não sendo por conseguinte possivel nasceu a avareza , e os outros vicios, de
que escrevesse aquillo, que escreveu . que ella é raiz : Radix omnium malorum
Logo deve - se collocar o verdadeiro, e cupiditas (Epist. a Timoth ., c . 6 v. 10 ).
real principio da Divina Comedia entre Esta explicação destroe pela base a opi
COMMENTARIOS AO CANTO I 65

nião de alguns commentadores de que são justas, e necessarias para a sua pu


Dante quiz personificar na Loba a Cu rificação, conseguida a qual gosarão da
ria Romana, isto é, o Papado ! Admitti presença de Deus : esta esperança as
da tão absurda, e heretica interpretação, fortifica, e alegra no meio dos tormen
aconteceria que o Veltro allegorico ha tos ( Purg ., XXIII, 86 ; xix, 67 ; XXIII, 70).
via de perseguir com tal furor a Curia (66) Anima fia a ciò di mi più degna ;
Romana, que a obrigaria a fugir para isto é, Beatriz, que então tomará conta
o Inferno, d'onde a tinha abortado a de Dante, e o conduzirá ao alto ceo
primitiva inveja de Lucifer!!! Por for (Purg .).
tuna o proprio Dante repelle similhante (67) ... ribellante alla sua legge, isto é,
desproposito com o complexo da dou lei contraria, e repugnante á minha. Lei
trina do seu Poema, e com os principios em vez de crença, é tambem usado no
que deixou estabelecidos no seu livro Paraiso, xv, 143. Rebelde tem aqui um
a Monarchia . sentido mais brando do que a palavra
( 62) Penso, e discerno. Julgar é discer soa ; porque Virgilio, não por praticar o
nir aquillo que é do que não é ; é distin mal, mas por não praticar o bem ( por não
guir a verdade do erro. Aquelle Deus que ter a fé christā ), perdeu o céo ( Purg .,
ludo discerne (Purg ., xix, 52 ) ; é tambem VII, 25 ) . Porque a fé é o principio da sal
aquelle que tudo julga ( Purg ., xx, 48). vação ( Inf., 11, 30) ; pois não se podiam
Antes de tomar uma deliberação , exa salvar senão aquelles, que criam no Mes
mina -se, si é prudente, e justa ( Purg ., III, sias, que havia de vir fazer a redempção
55 ) ; pensa -se primeiro , depois se julga, do mundo ( Par ., XXX, 27) .
e por ultimo se escolhe : toda a palavra Agora, para melhor comprehender-se
de Dante tem sua justa medida . a razão por que Dante foi assim força
(63) Che tu mi segui, ed io sarò tua do a retroceder do caminho emprehen
guida E trarroti di qui per loco eterno. dido, será conveniente recordar que,
Como si Virgilio dissesse : Far-te-hei começando elle pela vida contemplativa,
passar por um logar eterno , a fim de a qual consiste nas operações das virtu
que outro obstaculo não te embarace a des intellectuaes, encaminhava-se á opti
subir o monte, que é principio, e causa ma das felicidades, que podemos gosar
de todas as alegrias (v.78 ). n'esta vida ( Conv ., tr. 4, 17 ). Mas não
(64 ) Oyudirai le disperate strida, advertiu , que para subir tão alto, era-lhe
Vedrai gli antichi spiriti dolenti, Che la necessario ter-se preparado na vida acti
seconda morte ciascun grida. Gritos des va, isto é, civil (Conv., tr. 2, 5 ) ; por
esperados porque são produzidos por que só quem n'esta vida tem já feito
dor desesperada . Invocam uma segunda progressos, sobe directamente á con
morte, isto é, a destruição da alma ; templação. Por este motivo é indigno
porque os condemnados já são verda d'ella aquelle que, tendo-se deixado
deiros mortos (Purg ., XXIII, 122 ); tendo dominar da gloria mundana, ou arras
perdido Deus, o alto bem do entendi tar da concupiscencia carnal, não se
mento ( Inf., 111, 18), e por isso a vida purifica primeiro nas directas operações
da alma . Na intensidade do tormento , da vida actual, para assim exhaurir os
invocam a morte da alma , e a morte vicios, que impedem a mente de poder
fugirá d'elles . Desiderabunt mori, et mors elevar-se á contemplação de Deus. Por
fugiet ab eis ( Apoc., ix, 6). Mors sécun isso, bem que o homem, que prompta
da (Ib ., XX , 14 ). mente se converte, deseje de subito en
(65) E vederai color, che son contenti trar na vida melhor, que é a contempla
Nelfuoco. Comprazem -se, isto é, vivem tiva, todavia, por conselho de razão, é
contentes ; porque , embora sejam hor constrangido a exercitar -se primeiro
riveis as penas do Purgatario , as almas, nas boas operações da vida civil. Estes
que as padecem, reconhecem que ellas ensinos são do Magno Gregorio, e se
5
66 O INFERNO

acham tambem referidos em Sancto Izi maior felicidade, que é permittido gosar
doro, no 1, 3 , c. 15 das Sentenças. Eram da terra ( Conv ., tr. 4, 22 ), prelibando-se
estes dous sanctos padres muito lidos, a eterna paz do céo (Par., XXXI, 3),
e louvados pelo nosso Allighieri. com a esperança certa da gloria futura .
Considerados estes preliminares, ra A dar fé , e testemunho da verdade
ciocino assim : Dante , apenas acordan d'esta interpretação, não será descabido
do do somno mental, e deliberando sair considerar, que effectivamente Virgilio
da selva erronea , converteu - se logo á conduz Dante ao Inferno, a fim de que
perfeita vida especulativa, ou da con elle conheça os vicios humanos, e os
templação, significada na subida pelo alto castigos , que por causa d'elles o homem
monte, cujos cabeços eram alumiados encontra no tribunal da eterna justiça,
pelos raios do eterno Sol. Mas, pois que e d'est'arte o resolva a fugir- lhes; e de
se não tinha bem ainda exercitado nas pois, enviando ao Purgatorio, para
operações da vida activa, eis que os vi exercital - o na pratica das virtudes mo
cios principaes da natureza humana raes (pratica indicada nas difficuldades
movem - lhe crua guerra, prohibindo-lhe com que se sobe a sancta montanha ) , o
a quella curta subida ao monte deleito põe na posse d'aquella felicidade, que
SO ( Inf., 11, 122 ) . Em tão misero estado, se encontra na vida activa ou civil, e que
o infeliz peregrino contrista -se, e nc des é figurada no Paraiso terrestre (Mon.,
espero de não poder attingir a bemaven 1, 3 , c . 15 ) . Esta felicidade é ainda im
turada summidade, volta para a selva perfeita, em relação aquella quasi per
dos vicios, de onde começava a sair. É feita, que se obtem na vida contempla
n'essa angustiosa circumstancia, que lhe tiva (Conv ., tr. 4, C. 22 ) . Por isso verá
apparece o bom Virgilio, o qual, por vir Beatriz, uma das almas escolhidas do
tude emanada do céo, e por conselho da céo, a qual, assumindo o encargo de Vir
razão, indica - lhe outro mais opportuno gilio, que cessa n’aquelle ponto ( como
caminho para subir á summa felicidade, não digno de exercêl - o d'ali por diante ),
symbolisada na sumimidade do monte . guiará Dante puro, e disposto a subir cis
Não satisfeito com isto, se lhe offerece estrellas, pela operação das virtudes in
para guial -o no indicado caminho, pro tellectuaes figuradas nas estrellas (Conv.,
mettendo -lhe que uma alma mais digna tr. 4, c. 19 ) . E assim conduzirá pelo su
appareceria para conduzil- o ao termo blime caminho da contemplação , de um
desejado. a outro céo, até o empyreo ; isto é, de
Esta viagem atravez de uma região uma á outra sciencia , até aí summa scien
eterna , que Dante finge lhe fòra aconse cia divina, e perfeita. Esta lhe fará ver
Thada pelo sabio Mantuano, figura exa a verdade, na qual repousa , não só a nossa
ctamente ( no Inferno, e no Purgatorio) alma ( Conv., tr. 2 , c . 15 ) , mas todo o in
o processo da vida activa, ou a conside tellecto ( Par ., XXVIII, 108 ).
ração e fugida do mal, e a operação das Chegado a tal altura, o mystico Pere
virtudes moraes ( Con ., tr. 4, C. 22 ) , na grino encontrará depois o seu doutor
qual é necessario , que primeiro, e san contemplativo Bernardo, que o ensinará,
ctamente , se submetta á direcção de um e ajudará perfeitamente a concluir o seu
digno Mestre todo aquelle que , sepa sancto caminho ( Par ., XXXI, 95 ), e por
rando - se da misera selva erronea d'este esse modo chegar aquella Visão de Deus,
seculo, quizer pela contemplação (via que maior não se pode alcançar no
gem ao Paraiso) elevar- se á feliz altura, mundo , por virtude da contemplação, e
que mais participa da luz de Deus, e que mediante a qual se saboreia de antemão,
é o principio, e causa de toda alegria. e directamente se espera a perenne fe
Porquanto, a contemplação é mais plena licidade dos sanctos . E na verdade , a
de luz espiritual do que tudo o que existe Divina Comedia tem o seu cumprimento ,
n'este mundo, e n'ella se pode gosar da quando Dante, tornando - se de novo filho
COMMENTARIOS AO CANTO I 67

da graça, pôde elevar - se á Visão de ctor, e mestre na sua mystica peregrina


Deus, quanto ao homem é concedido, e ção, elle proprio as manifesta nos ter
depois attingir aquella grande alegria mos mais encarecidos, e lisonjeiros, com
que o fez feliz n’este mundo , como que constantemente o louva , e exalta
aquelle que no desejo, e na vontade, na Divina Comedia . Virgilio é o homem
sentia - se voltar - se todo, e exclusiva de summa virtude ( Inf., x, 4) ; perito
mente para o Amor, que move o Sol, e em todas as sciencias, e artes ( Inf., iv,
as outras estrellas. O felix hominum ge 73 ) ; é o altissimo Poeta, que em si reune
nus, si vestros animos Amor quo cælum plenamente toda a sabedoria dos gentios.
regitur regat (Beocio, cit. na Mon., I, 1 , ( Inf., VII, 3 ) . Em diversos logares do
c. 11 ). Com este ensinamento, com o Purgatorio d'elle fala com a maior dis
qual se prescreve o ultimo termo da fe tincção. Por todos estes motivos, não
licidade a que o homem pode chegar na se pode deixar de reconhecer, que mui
terra, e se estabelece o verdadeiro prin bem lhe quadra a honra ou titulo de
cipio, e causa da bemaventurança eterna, mestre, que lhe dá Allighieri, o qual
Dante parece determinar qual tenha não se julga desairado de haver sob
sido a seu respeito o fim pelo qual a sua direcção, e auctoridade, conferida
admiravel visão divinamente lhe appare por decreto divino (Inf., xxi, 54), per
ceu, e qual o fim que se elle propoz na corrido a região eterna , e por interme
Divina Comedia , onde narrou aquella dio d'elle alcançado os maiores favores
mysteriosa viagem em pró do mundo que ( Inf., xv, 54 ; Purg., 1, 71 , v. 61 ) . A idéa
mal vive. da escolha de Virgilio teria sem duvida
De tudo o que fica exposto, vê - se occorrido a Dante após a meditada lei
claramente qual o papel que desempe tura dos altos versos da Eneida , e das
nha Virgilio na Divina Comedia, e que allegorias, que não podiam escapar á
pessoa elle ahi representa . É este o sua perspicacia. Já disse, e me apraz re
guia, senhor, e mestre de Dante, para petir, que aos olhos do nosso Poeta, a
S
encaminhal- o com philosophicos ensi Eneida era um poema, que encerrava
nos até á acquisição da felicidade da vida muitos sentidos. Ora, assim como Esta
activa ou civil, colhendo aquelle doce cio d'elle tirou razão para se tornar
D.
fructo, que os homens com tanta solicitude poeta , e christão, nãode admirar que
vão buscando por todos os ramos (Purg., tambem Dante achasse n'elle incentivo
XXVII ) . para se tornar virtuoso.
Não se deve, porém, reconhecer sob Depois, Beatriz, a mulher de virtude
1
a figura do sabio gentil a humana ra ( Inf., 11, 76 ), aquella a cujos bellos olhos
:
zão, ou a philosophia, e especialmente nada escapa ( Inf., x, 131 ), aquella para
a scienciamoral; porque seria de todo o quem a alma de Dante, sanctamente na
ponto inconveniente, que a philosophia, morada, de continuo se voltara ( Par.,
entendida pelo modo por que Dante XXVI, 88 ), se fará sua nova guia , para
d'ella fala no Convito, fosse absoluta amestral- o nas operações da vida con
mente representada por um sabio do Pa templativa. E não só o industriará em
ganismo. Nem depois se poderia con todas as cousas, que são proprias de
ciliar, que a philosophia, e menos ainda quem symbolisa a sciencia divina, mas
a razão humana, abandonasse o mystico tambem nos conhecimentos de physica,
Viajante , quando, entrando guiado por de astronomia, da metaphysica, e em
ella na posse da sociedade civil , se dirige todos os outros ramos da Philosophia
sob outro guia á vida menos imperfeita, divina, de que largamente se fala no
e mais bemaventurada. commento á canção Amor che nella
Emfim , quaes fossem as boas, e altas mente mi ragiona. Mas desde que Vir
razões, que levaram Dante a escolher o gilio , movido pelas preces, e lagrimas
cantor da Eneida, para ser seu condu de Beatriz, foi soccorrer o desgraçado
68 O INFERNO

Peregrino na deserta encosta, Dante, pois que de Deus depende o céo, e toda
attribuindo tudo isso á intervenção da a natureza ( Par ., XXVIII, 42 ), resulta,
mulher bemdita (donna benedetta ), tão que Deus póde dizer- se egualmente Rei
amada, quanto amante , protestou so do Universo ( Inf., v , 91), e Imperador do
lemnemente na sua Divina Comedia, céo (Par., XXV, 41), e indifferente, e lar
que lhe era devedor de grande mercê ; gamente Imperador do Universo ( Conv.,
desde esse momento tornou - se bom , e tr. 2 , 20 ) .
namorando - se da sabedoria, elevou - se á (69) Per quello Iddio che tu non conos
contemplação da verdade. D'ahi pôde cesti. E esta ? Como é que Dante, que
constituir -se feliz na terra, e bem dis rendo que Virgilio o satisfizesse no seu
posto, quando a divina graça o chamasse, desejo, lhe roga por aquelle Deus que
a subir á bemaventurança celeste. A elle não conheceu ? Que valor, e efficacia
Divina Comedia , portanto, é como a podia ter uma supplica, por amor de
glorificação de Beatriz pela impetrada uma pessoa desconhecida ? Quem pen
justificação ou salvação de Dante, e o sar com toda a reflexão, verá que ne
cumprimento d'aquella grande promes nhuma outra supplica teria sido mais
sa, que o excelso Poeta tinha registado valiosa , e mais propria do que esta . Em
na Vida Nova, isto é, de dizer em gloria verdade , uma supplica , para conseguir
da sua dama aquillo, que jamais foi dito o seu effeito, deve -se fazer por aquillo
de pessoa alguma. Em verdade, as cou que é mais caro , e desejado pela pessoa
sas que elle narra a respeito d'ella , são a quem é dirigida ( Purg ., vili, 25). Ora
admiraveis, pela elevação, e novidade. Virgilio, não tendo nenhum desejo maior,
Por tudo isso, insisto em dizer, que nem mais ardente, do que o de ver a
todo o processo do sacro Poema, para Deus (o alto Sol ) , em vez do qual lhe
quem comprehende o seu sublime ideal , era dado ver eternamente a tristeza, não
póde, de outro lado, reduzir-se a este podia ser rogado por cousa, que lhe
principal ensino de Sancto Izidoro : Ex fosse mais agradavel, e suspirada, do
pulchritudine circumscriptæ creaturæ , que por Deus, de cuja mansão elle de
pulchritudinem suam , quæ circumscribi sejaria ser um dos escolhidos ( v. 129) .
nequit, facit Deus intelligi ; ut ipsis ves ( 70) Acciocch'io fuga questo male e
tigiis revertatur homo ad Deum , quibus peggio. É aqui notavel como a selva
adversus est ; ut qui per amorem pul selvagem (selva de horror ), de que o
chritudinis creaturæ a forma Creatoris Peregrino errante quer sair, é conside
se abstulit, rursus per creaturæ deco rada um mal, que pode conduzir a cousa
rem , ad Creatoris revertatur pulchritu peior : tal exactamente é o vicio que
dinem ( Sent., I, 1 , v . 6, p. 121 ) . condemna, e arrasta ao tormento eterno
(68 ) In tutte parti impera e quivi ( Inf., xxvIII, 47).
regge (impera sobre todas as partes do ( 71 ) Si ch ' io vegga la porta di San
universo ) . Deus tem a séde do seu go Pietro, isto é, o Purgatorio, em cujo
verno no empyreo, onde é a sua cidade ; limiar se assenta o Anjo de Deus ( Purg .,
porque lá governa directamente senza IX, 104), vigario de Pedro (Purg.), e
mezzo governa (Par., XXX, 122 ); impera leva -me a esses infelizes, isto é, ao In
sobre todas as partes do universo, por ferno, onde os condemnados desespe
que n'este governa por meio de outros, radamente choram seus males eternos
governa per altrui mezzo. No céo go ( Inf., v, 115 ; XVI, 42 ) .
verna pelas intelligencias motrices ( Par., ( 72 ) Allor si mosse , ed io gli tenni
XIII, 59), e na terra por meio do Monar dietro, isto é, quando comprehendeu
cha, e do Papa, um no que concerne ás que o meu animo estava resoluto, e
cousas do céo, outro ás da terra, sendo anhelante a seguil- o, moveu -se , e eu o
que estes dous poderes bifurcantur a acompanhei, entregando -me com toda a
Deo ( Epist. aos Cardeaes, S 3). Mas, confiança a sua direcção.
INTRODUCÇÃO AO CANTO II

Persuadido Dante por Virgilio de que elle não podia saír d'aquella encosta
deserta senão pelo Inferno, promette seguil- o. Assim, na manhã de sexta feira
sancta, 4 de abril , partem de Florença para Napoles, e por volta da noite chegam
ao antro da Sybilla Cumana, o qual , no sentido allegorico, é dentro da dita encosta ;
porque ,si fosse fóra, desappareceria toda a razão d'esta viagem . É verdade que Dante
não diz ter entrado no subterraneo de Cuma; é verdade tambem , que em todo o
logar se pode fingir esta caverna, que conduz ao Inferno ; mas como a esta caverna
o guia Virgilio, que por ella já havia guiado Eneas, parece verosimil que por esta
mesma tenha egualmente conduzido Dante.
Como quer que seja , os dous Poetas chegam na noite de 4 de abril a esta
caverna; e aqui Dante, tomado de pavor, quer arrepender-se da promessa dada
a Virgilio, pretextando não conhecer uma razão plausivel, pela qual Deus lhe con
sinta descer ao Inferno ; mas Virgilio, narrando -lhe o como, e porque foi procu
ral - o na deserta encosta, o anima a perseverar no primeiro proposito.
N’este canto apparecem em scena tres Senhoras, das quaes é necessario que o
leitor tenha conhecimento ; porque são ellas, que tiram o Poeta da encosta deserta,
eo fazem guiar ao Inferno, ao Purgatorio, e ao Paraiso; não sendo Virgilio, senão
um
servo obediente d'ellas; e, allegoricamente, encerram a proposição, ou o
assumpto da Divina Comedia. A primeira d'estas tres Senhoras não se nomeia ;
mas é chamada Senhora gentil do céo, que se compadece de Dante, perdido na
selva do erro, e que abranda com lagrimas o severo juizo, que a divina Justiça deve
proferir contra elle. Esta Senhora, primeira que todas, toma interesse por Dante, e
o te
recommenda a Lucia, que é a segunda, e Lucia o recommenda a Beatriz, que é
a rc eira , e Beatriz desce do céo ao limbo, e expede Virgilio a soccorrer Dante ,
e, mediante o auxilio d'estas duas ultimas, o conduz pelo Inferno, e pelo Purga
torio .

O leitor intelligente percebe que toda esta narração é allegorica : levante o véo,
debaixo
e verá o peccador convertido pela meditação da Eternidade. — Os
primeiros impulsos da conversão partem da divina Misericordia. Sobre isto não
ha duvidar. Ora quando a divina Misericordia se compraz em chamar á con
versão um peccador, ministra - lhe um auxilio, que os theologos chamam Graça .
Todo o peccador tem o entendimento avesso áverdade sobrenatural,e a vontade
inclinada ao mal; por isso a Graça produz n'elle dous effeitos ; illumina-lhe com a
luz da verdade a mente obscurecida, e volta-lhe para o bem a vontade perversa.
Mas n’um peccador a cegueira do entendimento prevalece á perversão da vontade, ao
70 O INFERNO

passo que n'outro esta prevalece aquella ; por isto a Graça ora se chama illuminante,
ora motriz.
Dante confessa -se estranho a Beatriz, isto é, á Fé ; por esta razão convem - lhe
a Graça illuminante , optimamente personificada em Lucia, cujo nome deriva de
luz. Que faz a Graça para illuminar o peccador no conhecimento da verdade ? Cha
ma - o á Fé . Mas a Fé como pode ser communicada ao incredulo ? Por meio da
razão humana, ou da philosophia. Logo Lucia, que recommenda Dante a Beatriz,
é a Graça illuminante, que chama Dante á Fé, ou á sciencia divina, ou á sciencia
humano -divina, visto como não se dá sciencia divina, sem a humana, nem fé sem
a razão. A Fé pois, ou a sciencia divina, é racionalmente chamada Beatriz, porque,
segundo aquillo da Escriptura, só a sciencia faz bemaventurado o homem ; sentença
indubitavel no nosso caso , tractando-se de sciencia divina infallivel.
E assim Beatriz, que manda Virgilio a Dante, é a Fé, ou a Theologia, que por
meio da Philosophia chama Dante a si, e de incredulo o faz crente. A Philosophia
pois é melhor personificada em um pagão, privado da revelação , do que n'um chris
tão ; porque os christãos, ainda que queiram raciocinar como puros philosophos,
prescindindo de qualquer conhecimento, e idéa revelada, todavia não podem , por
que não têem duas razões, uma humana, e outra christan ; mas têem uma só razão
humano -christan . Diremos pois que a divina Misericordia envia a Graça a Dante, e
que a Graça o chama á Fé por meio da Philosophia. Mas, para voltar verdadeira
mente á Fé, ou á Religião, não basta abjurar os erros, e crer nas verdades divinas ;
é necessario alem d'isso detestar os vicios, e vencer as paixões desordenadas ; e
para conduzir o peccador a tanto , ou dispol - o á conversão, convem , pelo caminho
ordinario, começar por fazel - o contemplar as penas eternas, a que conduzem os pec
cados, e os vicios ; por isso Virgilio diz a Dante que não ha modo de sair da encosta
deserta, ou dos peccados, e dos vicios, se não passando pelo Inferno, e pelo Purga
torio. E assim para convencer o homem das excellencias da virtude, e n’ella estabe
lecel - o firmemente, nada lhe aproveita tanto , como mostrar-lhe as delicias do Pa
raiso : eis a razão por que Beatriz toma Dante de cima do Purgatorio, e o leva ao
céo .
Attento o grande, e disvelado interesse que Beatriz tomou por Dante, parece que
este , havendo - a por fim encontrado, preenchidas d'est'arte todas as suas aspirações,
devia voltar para casa. Aos que assim discorrem, e perguntam por que Dante havia
de ajuntar á sua Divina Comedia o Cantico do Paraiso, responderei perguntando
lhes egualmente por que razão o architecto, depois de ter feito as outras partes da
casa, faz - lhe o tecto ? Concluamos pois, que o assumpto da Divina Comedia é – A
conversão do peccador pela contemplação da eternidade.
CANTO II

Dante pára : teme as difficuldades da viagem ; pergunta a Virgilio si tera bastante força para sustental - o : o
sabio narra -lhe a missão que recebeu de Beatriz, para soccorrel - o : reanima-se, e prosegue.

O Sol mergulhava no Occaso. (1 ) O caír das trevas convidava todos


os viventes da terra a repousar das fadigas diurnas ; (2) e eu só me
dispunha a affrontar a dupla difficuldade do caminho do Inferno, e
dos embates da compaixão, (3) de que fará roteiro minha memoria ,
que d'esta vez não erra. (4)
Ó Musa ! Ó alto engenho ! inspirae-me ! (5) Ó memoria ! tu, que
gisaste no teu livro as cousas, que eu vi, (6) em referil-as aqui com
exactidão, manifestarás a tua nobreza ! ( 7)
« Ó Poeta, interpellei Virgilio, tu, que me vás guiar n’este transito
afanoso, (8) antes que me exponhas a passo tão difficil, examina bem,
si a minha tempera é de molde a medir- se com os perigos que ante
vejo. ( 9 )
« Dizes na tua Eneida, que o pae de Silvio desceu em corpo, e
alma ao seculo immortal . (10)
« Mas, si o Adversario de todo o mal ( 11 ) lhe concedeu essa graça, ( 12 )
todo o homem intelligente comprehende, que o não fez, senão em con
sideração ao grande resultado, que essa viagem havia de produzir ;
visto como fòra preordinado nos conselhos eternos, que o filho de
Anchises fundasse a fecunda Roma, e seu vasto Imperio , a qual Roma,
eo qual Imperio, ( 13) si a verdade se deve dizer, ( 14) não foram es
tabelecidos, senão para ser o logar sancto, onde se firmasse a cadeira
do successor do maior Pedro . (15),
« Durante essa peregrinação, que celebras com tanto encomio, (16)
ouviu Eneas os prognosticos da sua victoria contra o fero Turno, ( 17)
de que foi consequencia, bem que remota, a purpura papal.
« Muito depois, o Vaso de eleição foi tambem transportado em vida
72 O INFERNO

ao seculo immortal, (18) para receber lá o conforto da fé, que pré


gava , como fundamento de salvação.
« Mas, que motivo tenho eu para ir ao Inferno ? Quem me aucto
risa este commettimento ? Não sou Eneas, não sou S. Paulo : ( 19) nem
eu , nem pessoa alguma póde saber, si sou digno de similhante empreza.
« Si, pois, não estou mais disposto a seguir-te, é porque temo que
esta viagem possa ser havida como imprudente . Mas tu és sabio ;
comprehendes melhor o que não sei exprimir. »
E bem como aquelle que , fluctuando irresoluto entre diversos pen
samentos, acaba por abrir mão do que antes abraçára , assim me
aconteceu n'aquella encosta tenebrosa ; porque , pensando com mais
reflexão, arrependi-me da empreza começada com tão pouco sizo .
A estas minhas hesitações, respondeu a sombra do magnanimo
Poeta, dizendo : « Si bem comprehendo o teu arrazoado, (20) quer -me
parecer, que a tua alma está eivada de pusillanimidade. Não raro essa
fraqueza d'animo tem demovido o homem de executar nobres reso
luções , a pretexto de perigo tão fallaz, como a sombra mentirosa ,
ante a qual recua o timido ginete.
« Para dissipar o teu vão temor, dir-te -hei que razão me moveu a
procurar- te n'aquella encosta deserta , e quaes as cousas que ouvi, no
primeiro momento de compadecer-me de ti :
« Vagueava nas solidões do Limbo com as almas, que estam sus
pensas (21 ) entre a esperança , e o desespero, quando me chamou uma
mulher bemaventurada, ( 22) tão bella, que prestes lhe roguei me fizesse
a graça de honrar -me com seus preceitos.
« O brilho de seus olhos excedia o fulgor do Sol : (23) em linguagem
suave , e compassada, (24; começou a dizer-me com inflexão, e timbre
angelico : (25)
« O alma bemfazeja de Mantua, cuja fama ainda dura no mundo,
e com o mundo apostará duração ! (26) O meu amigo, tão amado meu ,
quanto malquisto da ventura, (27) acha-se n'uma deserta encosta , im
pedido por tal modo de proseguir no seu caminho, (28) que o terror o
obriga a retroceder para a selva d'onde saíra .
« E pelo que ouvi no céo acerca da sua penosa situação, muito temo
por sua sorte, e muito mais temo que tardio já lhe não chegue o meu
auxilio . (29)
« Eia, vae soccorrel-o ! Emprega todos os esforços da tua magna
nimidade (30) para salval- o . Protege-o com tal efficacia , que me deixe
em plena consolação .
« Eu, que te mando , sou Beatriz. Venho do supremo empyreo,
para onde desejo voltar. (31 ) Amor moveu-me a este passo, e por amor
são dictadas estas palavras, que te dirijo .
CANTO II 73

a Quando me achar na presença do Senhor meu Deus, (32) falarei de


ti com louvor muitas vezes , » (33)
« Calou-se, e eu prorompi : Ó Senhora da virtude, (34) por quem
somente a especie humana se avantaja em nobreza a todos os seres
contidos sob o céo, cujos circulos são menores ! (35)
« Tão suave é o teu preceito, que , si agora mesmo o executára ,
ainda me parecera tarde . Não é mister, portanto, que me encareças
as tuas vontades .
aMas, dize-me : Como não temes descer lá do alto, e luminoso
empyreo, para onde desejas voltar, a este aferrolhado antro de tre
vas ? » ( 36 )
« Pois que tanto desejas penetrar nos arcanos, respondeu-me, dir
te-hei em poucas palavras, para te não demorar, a razão por que não
temo baixar a este abysmo.
aOlha, só se devem temer as cousas, que podem ser nocivas a ou
trem ; mas não aquellas que , o não sendo, não podem causar temor . (37)
«Mercê de Deus, acho-me em taes condições , que nem a vossa mi
seria, nem a chamma d'este incendio me podem attingir. (38)
« Ha no céo uma Senhora gentil, que se compadece do infortunio,
que te mando soccorrer . (39) Sua intercessão lá mitiga o severo juizo
da divina Justiça . (40)
a Essa Senhora gentil chamou Lucia, e lhe disse : O teu fiel pre
cisa do teu auxilio : eu to recommendo . (41)
« Lucia, inimiga de todo o coração cruel , (42) veiu incontinenti pro
curar-me ao logar, onde me achava (43) assentada com a antiga Ra
chel . (46)
« Então me disse : Ó Beatriz, verdadeiro louvor de Deus ! (45) Por
que não soccorres aquelle, que tanto te amou , que por esse amor de
preferencia se elevára acima da esphera vulgar ? (40)
« Não ouves os écos angustiosos do seu pranto ? ( 47)
« Não vês, que elle se debate com a morte nas turbidas ondas
d'aquelle rio, sobre o qual não tem poder o mar ? » (48)
« Ouvidas estas palavras, eu , mais veloz do que aquelle , que faz
o que lhe convem , e afasta o que detesta, voei da minha mansão
ditosa a falar comtigo, animada da confiança que me inspira a tua
honesta linguagem , honra tua, (49) e de quantos a ouviram . » (50)
(C
Depois de Beatriz haver assim falado, lançando-me seus brilhan
tes olhos, aljofrados de lagrimas, parecia conjurar-me a partir de prom
pto .
« Ora aqui tens tu o motivo por que te procurei. Não foi, pois, de
impulso proprio, que te fui salvar d'aquella Fera pessima, que te im
pedia subir ao monte da virtude. (51)
74 O INFERNO

aLogo, por que vacillas ? Porque páras ante a caverna ? Porque


infamas teu coração de tanta cobardia, e não reages com denodo,
quando tens no céo tres Senhoras bemaventuradas, que velam por
tua salvação ? (52) Porque tambem não confias nas minhas palavras
tão promettedoras : 0 (53)
Então, quaes as flores, que , inclinadas, e esmorecidas com o frio
da noite, aprumam - se reanimadas ao primeiro alvor matutino, os
meus brios recobraram alento ; (51) e com o coração palpitante de ardor,
exclamei como pessoa resoluta : ( 55)
« Oh ! que piedosa não foi aquella , que me estendeu mão pro
tectora , em momento de tanta angustia ! ( 56) E que benevolo , e pres
tadio não foste tu , ó Virgilio, na rapida execução de seus precei
tos . (57)
« As tuas palavras insufflaram -me tão altos espiritos, que, desde
agora mesmo , me acho prompto, e firme para cumprir a promessa
que te fiz ! ( 58)
« Eia ... vamos ! uma só vontade dominará a nós ambos. (59) Tu és
o meu Mestre , o meu Guia, o meu senhor : (60) tanto basta para obe
decer-te !
Dito isto, calei- me. Virgilio proseguiu , e eu com elle, na descida
tortuosa , e precipite do caminho do Inferno. (01 )
COMMENTARIOS AO CANTO II

( 1 ) Lo giorno se n'andava. Giorno dor dos castigos da divina justiça ( Inf.,


está em logar de sole. Lo Sol sen ' va ... xx, 30 ). Em algumas circunstancias, ve
e viene la vera . Vae - se o sol, e vem a remos todavia que o Poeta nem sempre
noite ( Purg ., XXVII, 61). resiste aos duros embates d'essa com
( 2 ) Toglieva gli animai, che sono in paixão, como no triste caso de Fran
terra , Dalle fatiche loro. Quando a noite cisca de Rimini ( Inf., v. 13 ) ; na penosa
abraça a terra com as suas negras azas, situação de Ciacco ( Inf., vi, 59 ).
eo dia dá volta, si nasconde In Cielo, in ( 4) Che ritrarrà la mente , che non erra .
mare, e fra le fronde. Se posa e sotto Ritrarrà corresponde a narrare . Escreve
letto ogni animale (Sonet. xxvi). Dante mente em vez de memoria, e não es
diz isto á imitação de Virgilio : Nox creve sem justificada razão ; porque
erat et terras animalia fessa per omnes Mens dicitur a meminendo ( Thom ., 1 , 9,
alituum , pecudumque genus sopor altus 72, 1 , e 1 ) . La mente , che non erra. Por
habebat ( En ., VIII, 26 ). que a sua memoria é testemunha occu
( 3 ) M'apparecchiava a sostener la lar, e auricular da verdade das cousas
guerra Sì del cammino e si della pietate. que o Poeta viu, e ouviu, e por isso não
Eis a aspereza da vida penitencial. A poderá errar no roteiro, ou relação que
guerra , que o Poeta se dispunha a sus . d'ellas fizer. Todas estas cousas ella es
tentar, era a dupla difficuldade do ca creveu no livro que registra o preterito.
minho, e dos embates da compaixão Che il preterito rassegna (Par. XXIII,
pela sorte tristissima dos condemnados. 54). Similhantemente, para dar teste
A difficuldade do caminho refere - se ao munho da fidelidade de Tito Livio, diz
corpo aspra e forte via ( Purg ., 11, 65 ). que este nas cousas, que narra non erra
E com effeito, no curso da sua viagem ( Inf., XXVIII, 12 ) ; porque não faz senão
pelo Inferno, sentiu o‘Poeta faltar-lhe referir as cousas que viu ou ouviu (ve
algumas vezes o folego ao ponto de não dute o udite ). Aqui convem recordar que
poder ir adiante ( Inf., XXIV 44 ), e dese a Divina Comedia é a narração poetica
jar seguir por outra estrada ( Inf., xxvi, de uma visão, e que por isso lhe era
30 ). especialmente necessario o auxilio de
e si della pietate. Este effeito refe uma memoria fiel.
re - se ao animo, que por isso necessi ( 5 ) Ó musa ! Ó alto ingegno! Or
tava de ser provido de fortaleza, por m ' aiutate ! Esta invocação no sin
não cair em desmaios desmerecidos; gular é adopiada por Benvenuto de
porque dos condemnados não se deve Imola, e me parece que se deve ante
ter compaixão; não havendo maior sce
lerado por á lição commum Ó musas ; porque
que aquelle que se torna merece Dante n'este logar quiz sem duvida imi
RNO
76 O INFE

tar aquillo de Virgilio : Mus , mihi scritte nella mia memoria. Sotto maggio
causas memora. A musa pois, na alle ri paragraphi (SS III, ibidem ).
goria, significa a propria sciencia do au D'isto resulta que as cousas notadas
ctor ; e temos d'isto uma prova de cer na mente são n'ella escriptas , e d'ellas
teza, lendo na Vida nova : Per Orazio se compõe o livro da memoria, que é
parla l'uomo alla scienza medesima, o poder de recordar o que viu , e ouviu .
siccome ad altra persona, quivi nella Dante , seguindo o seu Virgilio (Eneid .,
suaPoetria : « Dic mihi, Musa, virum » , vi, 60 ), chama Eneas parente ou pae de
etc. Silvio.
ó alto ingegno ! Dante, segundo nos ( 7 ) Qui si parrà la tua nobilitate. No
mostra pelas palavras que lhe dirige Ca bilitate entende - se por la bontà della
valcante Cavalcanti, visitou os reinos cosa (Conv., tr. 4 , c . 16 ). Como si o Poeta
eternos pelo privilegio da elevação do dissesse : N'esta narração , que vou fazer
engenho : per altezza d'ingno ( Inf., x, da minha viagem , se manifestará tua
59). E na verdade imaginar uma visão de bondade, e perfeição : bondade, pela
tão altas cousas requeria , mais que tudo , qualidade, e alteza das cousas escriptas ;
uma soberana potencia inventiva. perfeição, com respeito ao modo em
Or m ' aiutate, vale tanto como dizer : que tal escriptura tem sido composta.
ajudae -me a desempenhar a grave em che mi guidi. Virgilio havia dito
preza, que me proponho executar. Na a Dante, que o seguisse, e que elle seria
opinião de Dante, para ser poeta , re o seu guia ( Inf., 1, 113 ) .
querem -se tres dotes : strenuitas inge ( 9) Guarda la mia virtù , s'ella è pos
nii, artis assiduitas, scientiarum habitus sente , Prima che all ' alto passo tu mi
( Vulg. Elog ., 1 , 2 , c. 4. ) ; e estes pre fidi. Como si dissesse : Considera , isto é,
ciosos dons os emprega, invocando a põe todos os olhos do teu entendimento ,
altura de engenho, e a Musa. Mas é de a fim de que vejas bem , si tenho forta
notar que a sciencia, como nós entende leza bastante para transpor o alto passo,
mos a Musa, abraça em largo sentido isto é, o arduo, escabroso caminho, e
tambem a arte. por ventura tambem profundo : arduo,
Ritrarre, como já observei, é corres malagevole camino e forse anche profon
pondente a narrare, e n’este sentido do ( v. 142 ) : tal era o logar eterno ( luogo
Allighieri o emprega muitas vezes na eterno) por onde Virgilio lhe havia pro
Divina Comedia, e mais claramente no mettido conduzil.o ( Inf., 1, 114) .
Convito, onde diz : Sono molti che per ( 10) Tu dici, che di Silvio lo parente ,
ritrarre ( narrare) cose poste in altrui lin Corruttibile ancora, ad immortale, Se
gua e commendare quella, credono più colo andò, e fu sensibilmente. Corru
essere ammirati che ritraendo (narrando ) tibille, isto é, vivendo ainda no nosso
quelle della sua ( tr. 1. C. 10) . mundo , onde todas as cousas morrem
(6) . . scrivesti ció ch'io vidi: isto é, que ( Par., XVI, 19 ) . Homo, si consideretur
registraste no teu livro che il preterito secundum utramque partem essentialem ,
ressegna (Par., XXII, 55 ) . Dante apraz- se scilicet animam et corpus corruptibilis
frequentemente em qualificar as cousas (Mon., 1 , 3, c. 45 ).
recolhidas na memoria, como il libro Ad immortale secolo ando, isto é, ao
della mente. Entre outros exemplos , mundo eterno . Secolo immortal com
estes : In quella parte del libro della prehende não só os logares infernaes
mia mente, dinanzi alla quale poco si (luoghi inferni) aonde Virgilio condu
poterebbe leggere, si trova uma rubrica ziu Eneas, como o céo (il Cielo) a que
che dice Incipit vita nova . Sotto la quale foi arrebatado o Apostolo das gentes.
rubrica io trovo scritte molte cose ( V. E fu sensibilmente, isto é, não só em
N. S 1 ). espirito, como em veste corporal (cor
Verò a quelle parole le quali sonno porale veste ) sensibilmente quer dizer
COMMENTARIOS AO CANTO II 77

com o corpo sensivel, ou com os sentidos, vido commentario d'estes versos, póde
como na Vida Nova, SS xxi, lá onde ler o livro de Monarchia, e o tratado 4,
Dante declarou ser induzido a descre C. 4 , e 5 do Convito. Sou todavia tentado
ver a sua Dona ( la sua donna) para a transcrever estas textuaes palavras no
satisfazer aquelles que não podiam ( a co proprio idioma original : Sará buono
loro che non la potevano) ver sensivel d' avertire che nel tempo istesso che Da
mente .
vid nacque ( nasceu ) nacque Roma, cioé
( 11 ) L'Avversario d'ognimale, é Deus Enea venue (veio ) di Troia in Italia,
summo Bem, cuja vontade é de per si che fu origine della nobillissima città
boa (Par., xix, 86) , e fonte d'aquella feli Romana . Perché assai é manifesta la
cidade, que é la buona Essenzia d'ogni divina elezione del romano imperio per
ben frutto e radice (Purg., XVII, 135) . lo nascimento della Santa Città, che fu
( 12 ) Cortese i fu :benigno, condescen contemporaneo alla Radice della pro
dente em permittir que Eneas fosse ao genie di Maria (c. 5 ) . E certo sono di
Inferno.Non par indegno ( cousa descon ferma opinione, che le pietre che stan
veniente ) a um homem de entendimen nonelle mura della santa città, siano
to pensar no alto effeito que essa viagem ( sejam ) degne de reverenza, e il soulo
de Eneas havia de produzir, isto é, il dev' ella siede sia digno oltré ( muito
nascimento della Santa Città. ( Conv., tr. alem) quello che per gli uomini é pre
4, c. 5) . Il chi e il quale, isto é, a alma diato, e provato ( Ibidem ).
Roma, e o seu Imperio universal (v. 20) ; ( 16 ) Per questa andata onde gli dai
porque no céo empyreo Eneas foi esco tu vanto ; querendo dizer : Por essa via
lhido para ser pae da fecunda geração, jem de Eneas, tu o celebras, glorificas,
gentil semente do nobilissimo povo de e exaltas como um entre aquelles pou
Roma ; (Mon., 1 , 2, c. 3. Inf., xxvi, 60). cos, que por supremo favor, e virtude,
E depois foi tambem destinado para ser mereceram o insigne privilegio de des
pae do Imperio, isto é, da Monarchia cer ao Inferno, e d'elle saír são, e salvo.
universal, que por direito divino era re Noctes atque dies patet atri janua Di
servada aos romanos : Divinus poeta tis: Sed revocare gradum superasque
noster Virgilius, per totam Æneidam , evadere ad auras, Hoc opus hic labor est.
gloriosum regem, Æneidam Patrem Pauci quos æquus amavit Jupiter, aud
romani populi fuisse testatur in memo ardens evexit ad æthera virtus, Dis geniti,
riam sempiternam (Mon., 1 , 2, c. 3 ). potuere ( En., VI, 127).
( 13 ) La quale alma gente Romana, e ( 17) Intese cose che furon cagione Di
il quale Impero universal fur stabiliti, sua vittoria : por que n'aquella viagem
por ordem da providencia predestinados Eneas encontrou Anchise, que lhe pro
(Conv., tr. 4, C. 4) para demorar no gnosticou a gloria que d'ella resultaria
logar sancto, nelle sante mura, isto é, aos Troianos ; e inflammando - lhe o ani
da cidade eterna, onde devia tambem mo com a idéa , com o amor da cele
ter la sua sede il successor del primo bridade porvindoura, o preveniu das
Pietro. Esta foi a primicia, che lascið guerras para as quaes se devia prepa
Christo dè Vicari suoi ( Par ., xxv, 14). rar, e de que meios se devia valer para
( 14) A voler dir lo vero ( a querer-se obter o triumpho. Nunc age, Dardaniam
dizer a verdade). Estas palavras demon prolem quæ deinde sequatur Gloria, qui
stram que o animo de Dante conservava maneant Itala de gente nepotes, Illus
ainda alguma affeição ao partido guel tres animas nostrumque in nomen ituras,
pho ! Expediam dictis et te tua fata docebo.
( 15) Maggiore aqui significa primo Assim fallou Anchy ses a Eneas ( En., vi,
( Par ., XXXII, 36 ). Adão nosso primeiro 756) .
pae, é chamado o maggior padre. Quem Vê -se pois que todas estas cousas
quizer ver mais amplamente desenvol manifestadas a Eneas na sua peregrina
O
ERN
28 O INF

ção ao seculo immortal, não só o in talis et regia per sacram B. Petri sede
struiram do modo por que havia de al caput orbis effecta, latius prasideres re
cançar victoria sobre o fero Turno, mas ligione divina, quam dominatione terrena.
tambem da gloria , que lhe era reserva Eis, segundo Dante, o verdadeiro des
da de fundar a alma Roma, onde havia tino de Roma e do imperio romano :
ser estabelecido depois o Amanto papal, o estabelecimento da Egreja de Jesus
ou , em outros termos, a sedia du Suc Christo, e a sua ditiusão ; este, e não
cessori di Pietro. Roma ... outro , foi o fim que se propoz realisar o
Cui post tot triumphorum pompas, Papa Leão III, quando, no seculo VIII,
et verbo et opere Christus Orbis confir restaurou o decaído imperio romano
mavit imperium ... quam Petrus et Pau na pessoa de Carlos Magno. Os moder
lus predicator in apostolic.im sedem as nos fizeram obra sacrilega quando o
Pergine proprii sanguinis consecrarunt destruiram , para preparar o caminho ao
(Epist. ad .Card ., S 11 ) . direito novo, que nos seus desvios do
Epilogo do commento d'este notabilis bom senso tanto damno tem trazido ao
simo passo da Divina Comedia : Dante, mundo ; porque esse chamado direito
como christão, sabia sobre este ponto novo se estreou por uma guerra grossa ,
aquillo que não podia saber Virgilio, o e universal contra o Papado, e a Egreja !
qual não viu, nem podia ver em Roma, Seria para desejar que os actuaes inva
e no imperio romano, senão uma grande sores dos dominios do pontificado se
potencia terrena, ordenada pelos Deuses recordassem , ao menos, de que o vene
para fim terreno, se bem que imperituro. rando rei Carlos Alberto deixou escri
Mas Dante , amestrando seu mestre em pta uma Historia sobre o fim desastroso
cousas, que elle de per si não podia dos perseguidores dos Papas: Historia,
saber, como pagão, o adverte que (a que elle concluiu com estas tremendas
querer-se que a verdade seja dita ), o palavras do propheta Zacharias: Et hoc
principal designio da Providencia sobre erit plaga qua percutiet Dominus omnes
Roma , e sobre o seu imperio, não era, gentes, quæ pugnaverunt adversus Jeru
nem podia ser estabelecer em ambos salem (XIV, 12 ). A nova Jerusalem é
uma grandeza terrena, mas uma gran Roma .
deza divina, e toda celeste ; por isso que Dante vibrára aquella setta nos mo
Deus preordenou em seus altissimos de mentos, em que Filippe o Bello machi
cretos, que Roma, e seu Imperio pagão nava trasladar a séde do papado de
dominassem o mundo, a fim de que na Roma para Avinhão, como havia ten
plenitude dos tempos christãos os Papas, tado pela aggressão a Bonifacio VIII,
residentes na cidade eterna, podessem e depois no tempo de Benedicto XI,
mais facilmente diffundir por todo o conseguindo por fim os seus intentos
mundo a religião verdadeira. É visivel sob ClementeV. Este passo pois do sacro
que Dante bebeu este grande pensa Poema liga -se perfeitamente aos louro
mento na celebre Allocução do Papa res, que tece o Poeta ao mesmo Bene
S. Leão, onde diz : Beatissimus Petrus, dicto XI ; assim como tem toda relação
Princeps Apostolici Ordinis ad Arcem com o epilogo, e commento que faz no
Romani destinatur imperii, ut lux veri Paraiso (XXVII, 61 , e seg. ), onde lamenta
tatis, quæ in omnium gentium revelabatur que os Papas estejam afastados de
salutem , efficacius se ab ipso capit per Roma, e preconisa o seu regresso de
totum mundi corpus effunderet. Cujus Avinhão, como se vê pelo confronto
autem nationis homines in hac tunc d'estes dous tercetos :
Urbe non essent ? aut quæ usquam gen
La qual, e il quale ſa roler'dir lo vero ),
tes ignorarent quæ Roma didicisset ? ... Fur stabilili per lo loco santo,
Roma, quæ erat magistra erroris, facta U ' siede il successor del maggior Piero.
est magistra veritatis: civitas sacerdo ( Inf ., 11 , 22 e segg .)
COMMENTARIOS AO CANTO II · 79

Epilogo e commento : teriosa viajem á região eterna, não é


diverso d'aquelle , que moveu Eneas, e
Ma l'alta Providenza, che con Scipio
Difese a Roma la gloria del mondo Paulo. E podemos ter como- certo, que
Soccorrà tosto, si com ' io concipio. elle exactamente visitou os reinos do
( Par., XXVII , 61 e segg. ) outro seculo (do outro mundo ), para
aprender os meios de defender, e forti
( 18 ) Andovvi poi lo Vas d'elezione. O ficar os direitos da Monarchia, concedi
vaso de eleição é a grande náo escolhida dos pela Providencia ao nobre povo de
pelo Espirito Sancto Lo Vas d'elezione Roma, e confortar os fracos, e estimular
è il gran Vassello eletto dallo Spirito os valentes a manter-se n'aquella fé,
Santo ( Par ., XXI, 127 ), para levar o no que conduz a salvação. Isto resulta evi
me de Christo a todas as nações. Com dentemente de todos os logares da Di
effeito, quando o Senhor enviou Saulo vina Comedia , e quem o duvidar, pense,
a Annanias, este ouviu uma voz que che al camino di nostra vita è termino
disse : Vade, quoniam Vas electionis est ľ Amor che muove il sole, e l'altre
mihi iste, ut portet nomen meum coram stelle, e que este mundo gosa de me
gentibus et regibus et filiis Israel. lhor disposição, quando se rege pela
S. Paulo foi ao seculo immortal para Monarchia. Ad optimum mundi disposi
excitar os homens a seguir a verdadeira tionem requeritus esse Monarchiam , sive
fé, infundindo -lhes a esperança de pos Imperium (Mon., 1, 1 , c. 13 ).
suirem os grandes bens, que elle viu no Allighieri prevê, que a elle peccador
Paraiso ; bens taes, e tão ineffaveis, que se attribuiria a presumpção de conside
jamais os olhos viram , os ouvidos ouvi rar - se digno de subir ao seculo immor
ram , nem desceram ao coração do ho tal; mas se justifica d'isto, recordan
mem . Raptus est in Paradisum et audi do solemnemente : Qui oriri solem suum
vit arcana verba, quæ non licet homini facit super bonos et malos, et pluit
loqui (Cor ., 2, XII, 4). Quella fede ch'è super justos, et injustos, aliquando mi
principio alla via di salvazione, é a fé sericorditer ad conversionem , aliquando
em Christo, sem a qual ninguem jamais severe ad punitionem , plus et minus, ut
subiu ao reino dos céos. Al regno di vult, gloriam suam quantumcumque male
Cieli non sali mai chi non credette in viventibus manifestat (Epist. ad Card. ,
Cristo. Nè pria, nè poi ch ' il se chiavasse S ix ) . Isto nos ministra uma nova prova
al legno. Esta doutrina elle corrobora de que o fim precipuo, e ultimo do
claramente em outros logares das suas Poema, não pode ser senão sacro in utro
obras, estabelecendo, que ninguem , por que sensu .
mais perfeito que possa ser em todas as ( 20) Se io ho ben la tua parola intesa,
virtudes moraes, e intellectuaes, em to L'anima tua è da viltà offesa . Aqui en
dos os
seus actos, e obras, se póde tende -se viltà por pusillanimità ( Conv .,
salvar sem a fé : Nemo quantumcumque I. I , c . 2 ) ; sendo certo que o homem ,
moralibus et intellectualibus, et secundum como no presente caso de Dante, pó
habitum et secundum operationem , perfe de -se tornar vil pelo medo (può divenire
clus, absque fide salvari potest (Mon., 1, vile per temenza ).
2, c. 7 ) . ( 21 ) Io era tra color, che son sospesi.
( 19 ) Ma io perchè venirvi ? O chi 'l Suspensas ( sospesi), por que não são
concede ? Io non Enea, io non Paolo nem condemnados, nem premiados (per
sono. Eneas foi ao seculo immortal, por chè non sono nè damnati, nè premiati).
permissão de Deus : Paulo foi lá tam Assim interpretam quasi todos os com
bem, por egual permissão ; «mas eu que mentadores; mas peço -lhes venia para
motivo tenho para emprehender esta dizer que erraram redondamente ; por
viajem ? » Esta hesitação de Dante revela que as almas que estam no limbo , se
manifestamente, que o fim da sua mys não soffrem a pena do sentido , soffrem
80 O INFERNO

a do damno ( se no sostengono la pena reflectir de si os eternos raios (gli eterni


del senso, sono damnate a quella del duol rai ); e por conseguinte a luz de seus
o del danno (Inf., iv, 28 ) ; sendo -lhes olhos bem podia ser comparada á luz
dado eternamente per luto o desejo de do astro maior, o mais digno exemplo
ver a Deus ( Purg ., 111, 42). É por isso do Sol intelligivel ( Par ., XVIII, 16 ).
que tambem aquelles, que estam no (24) Suave e piana; suave, isto é, for
limbo, são contados entre os conde mosa, doce, agradavel, deliciosa : abellita,
mnados ( fra la perduta gente), não go dolce, piacente, dilettosa (Conv., 1, 2, c. 1 ).
sando jamais do summo Bem do enten Piana significa lucida, clara, intelligi
dimento del sommo Benne dell'intellecto vel : di facil intendimento ( Purg ., VII, 34).
( Inf., 11); porque ahi vivem suspensos (25 ) Con angelica voce, qual convinha
no desejo sem esperança : sospesi senza aquella, que foi assumpta ao reino onde
speme vivono in disio ( Inf., iv, 42). De os Anjos gosam paz. Qual conveniva a
sejar sempre Deus sem poder esperar lei che fu assunta nel reame ove gli An
vel-o nunca, é a verdadeira suspensão gili hanno pace ( Vita nuova, S XXXII ).
perenne , eterna, em que agonisam as (26 ) E durerà quanto il mondo lonta
almas miseramente condemnadas ali ; na. Parece -me que se deve antepor esta
esta suspensão é com effeito a unica lição a outra sustentada modernamente
offensa, que ellas recebem no entendi quanto il moto lontana. Em verdade,
mento ( la sola offessa che esse ricevono quem bem a examina, vê que ella me
nell'intellecto ). Sim, de certo (é Dante lhor, e mais estreitamente se prende ao
que o affirma ), aquellas lá estam suspen verso anterior, e lhe completa o con
sas, porque por unico tormento têem a ceito. Dizer que a fama apostará dura ..
esperança cortada : perchè sol per pena ção com o mundo, vale o mesmo que
han la speranza cionca ( Inf., ix, 17) . dizer, que ella durará tão longamente
Quanta philosophia n'este só vocabulo quanto o mundo durar. Depois, a idéa
sospesi, para denotar os condemnados de mundo é mais significativa, como lo
no limbo ! Desejar com a certeza da gar onde a fama se diffunde, voando de
incerteza absoluta de não alcançar ja uma a outra edade, e encerra em si tam
mais o maior bem que se deseja, é sup bem a idéa de movimento de moto ), e
plicio, que só imaginado, é mil vezes por conseguinte a de tempo del tempo ),
mais horrivel, que o de Tantalo ; porque que do movimento se toma a sua razão
Tantalo via o que desejava ; isto satis de ser Che dal moto prende sua origine
fazia em parte o seu desejo ; mas dese ed essere (Par.).
jar ardentemente um bem summo, sem Lontano por lungo, é empregado no
ao menos de ter a esperança, não já de Purgatorio, viri, 57, onde n largo o
gosal -o, mas de vel-o, é genero de cas lungo mare se intendeper lontane acque.
tigo, que só Dante podia conceber ! E no Paraiso, xv, 49, Il lungo desiderio
( 22) Donna beata . Esta mulher é aquel (longo desejo ), que Cacciaguida teve de
la bemaventurada Beatriz, que vive no ver o seu Dante , é indicado como um
céo com os Anjos, e na terra vive com longo desejo, lontano digiuno.
a minha alma : Beatrice beata, che vive (27) L'amico mio e non della ventura,
in cielo con gli Angeli, e in terra colla quer dizer o verdadeiro amigo meu, o
mia anima ( Conv., 1, 2, C. 1 ) . amigo de mim , dos meus predicados, e
( 23 ) Luccevan gli occhi suoi più che não dos bens da fortuna ( e non di beni
la Stella ; isto é, brilhavam mais do que della fortuna concessi). Os amigos da
o Sol. Dante no principio de uma canção fortuna vão - se, quando esta cessa ; mas
chamou o Sol la stella che il tiempo ne os amigos nossos permanecem : porque
misura, e simplesmente, como por anto os amigos da fortuna, como a roda, gi
nomasia, la stella ( Conv ., tr. 3, c. 5 ). ram (Fab., de Brunetto ).
Por isso Beatriz, vindo do céo, devia É sempre bom advertir, que Beatriz
81
COMMENTARIOS AO CANTO II

não fala aqui como mortal, ou como mente contemplare ). Lo signore di questa
aquella menina innocentissima, que em gentilissima, cioè lo signore della gius
razão da convivencia intima dos paes tizia chiamò questa noble Beatrice a
de ambos, se fez amiga de Dante, tam gloriare sotto ( sob ) l'insegna (estan
bem creança de 9 annos ; fala assim , darte ), di quella Reina benedetta Virgo
como representante da Revelação divi Maria , lo cui nome fue in grandissima
na, a qual, de concerto com a Razão, riverenza, nelle parole di questa beata
representada por Virgilio , occupa-se, e Beatrice ( S XXIX ).
se interessa pela salvação espiritual de ( 33 ) Di te mi loderò sovente a lui.
Dante, que representa a humanidade Louvar uma pessoa na presença de ou
peccadora. Por isso diz : O meu amigo, tra, é fazer entrar aquella na graça
e não da ventura. A Revelação não tem d'esta , referindo - lhe os meritos da pes
amigos da ventura ; porque ama tambem soa de quem fala ( Lodarsi d ' uno ad

os seus inimigos, os peccadores, procu uno altro, è acquistar grazia di uno ad


rando illuminal- os, e como mãe desve uno altro, contandogli i meriti di colui
lada, trazel- os aos caminhos da verda colla persona che parla ). Esta interpre
deira ventura, que é Deus. tação de Cesari é auctorisada por Vir
( 28) Nella deserta piaggia è impedito gilio, quando por modo similhante pro
Si nel cammin : impedido por uma Fera mette a Catão falar d'elle com louvor
malvada ( Inf., 1, 96), que, pelo terror a Marcia : Grazie reporterò di te a lei
que lhe inspira, o obriga a voltar de (Purg ., 1, 83 ).
novo, a precipitar- se na tenebrosa selva . Não precisa advertir que Beatriz lou
( 29 ) Ch' io mi sia tardi al soccorso vará na presença de Deus, não Virgilio
levata. Temo, fala a modo humano, more como poeta, mas Virgilio, como sym
umano . Beatriz havia corrido em auxilio bolo da Recta Razão ( come Retta Ra
de Dante, levantando -se do logar onde gione).
se assentava com a antiga Rachel, Le ( 34) Ó Donna di virtù . A gentilissima
vandosi dalluogo ov'essa sedea con l'an Beatriz foi destruidora de todos os vi
tica Rachel (Par., XXXII, C. 7, 102 ) . cios, e rainha das virtudes. La gentilis
(30) Con la tua parola ornata . Por sima Beatrice fu distruggitrice di tutti i
modo tão delicado ganha Beatriz o ani vizii e reina delle virtù (Vita nuova , S x),
mo de Virgilio, preenchendo assim as quaes virtudes, antes que ella viesse
aquelle preceito : Que em cada genero ao mundo, foram ordenadas para lhe .
de discurso o orador deve principalmente servirem de servas furono ordinate a lei
mirar á persuação, isto é, deleitar o au per sue ancille (Purg., XXXI, 108). Se
ditorio, que tal é o principio de todas nhora da virtude significa reina delle
as outras persuasões (Conv ., tr. 2, c. 7 ). virtù, o signora a cui le virtù sono serve.
( 31 ) Ove tornar disio , visto como pela Esta virtuosissima Senhora basta de per
escada do eterno palacio, ninguem des si para fazer que a especie humana ex
ce, sem tornar a subir. Senza risalirvi, ceda em nobreza todos os outros seres
nessuno discende (Par., X, 87 ) : tanta, e conteúdos sob a lua ; sendo, que ella é
tão completa é a felicidade que ali se creatura perfeitissima; porque recebe
gosa ! Beatriz declara que vem de um da Divina Bondade privilegios superio
logar para onde desejava voltar : diz isto res ao que é humanamente possivel.
para demonstrar, que sem grande urgen Essendo che ella è creatura perfeittissi
cia, qual a de salvar seu amigo, não teria ma, in quanto riceve della Divina Bontà
descido . oltre il debito umano (Conv., tr. 3, c. 4).
( 32 ) Quando sarò dinanzi al Signor Por aqui se pode comprehender a razão
mio : quando eu voltar á presença de por que Beatriz é chamada verdadeiro
Deus, cuja face me é dado gloriosa louvor de Deus ( lode di Dio vera ). Don
mente contemplar (mi é dato gloriosa na della cortezia, signora della nobilità,
82 O INFERNO

e outras qualificações similhantes se en e desejos são inflammados nas delicias


contram frequentemente na Vita nuova , do Espirito Sancto : Li nostri affecti,
e no Convito. Emfim , de tanta excellen che solo infiammati sono nel piacere
cia foi Beatriz aos olhos de Dante , que, dello Spirito Santo (Par., III , 84 ) ; não
alem dos singularissimos titulos de que podia ser tocada do incendio moral do
a condecora, a proclamou como um limbo . Digo moral, porque no limbo
milagre, de que somente a admiravel não ha fogo, e por conseguinte não
Trindade é origem : Un miraclo, la cui pode haver incendio na accepção obvia,
radice solamente è la mirabile Trinitade e natural da palavra. Beatriz, com esta
( V., Š xxx ) , e come luce e gloria della circumlocução de palavras, quiz signiti
gente umana ( Purg ., XXX , 115 ) . car, que ella era feita de tal modo, ou
( 35) Ch ' ha minori i cherchi sui, é que a Graça de Deus a tinha constituido
da lua, a qual é a prima stella mais em tão felizes exempções, pondo a no
proxima da terra (Par., 11, 30 ). Céo : a gloriare nè terzi seggi (Par.,
( 36) Ma dimmi la cagion, che non ti XXX, 72 ), que podia ir ao limbo sem sof
guardi Dello scender quaggiuso in questo frer, nem a pena do sentido, nem a do
centro Dall'ampio loco, ove tornar tu damno, nem participar do lucto eterno,
.rdi. In questo centro, isto é, n'este nem do martyrio ( lo sono fatta tale, da
abysmo, que é il fondo di tutto l' uni non poter ricevere niuna pena d'animo,
verso ; è il ponto or centro della terra , e nè di senso , nin lutto, nè martyrio).
questa del mondo: centrum terræ , idem Non tanget illos tormentum mortis ( Sap.,
est cum centro mundi ( Thes., 1, 2, c. 35 ). III, 10 ) .
Dall' ampio loco, isto é, do empyreo, (39) Donna è gentil nel Ciel che si
céo, que é cheio de amor, e mais am compiange Di questo impedimento, ov’io
plo se estende : e più ampio si spazia ti mundo. Admiravel brevidade de ex
( Purg ., XXVII, 65; Epist. a Can Grande ); pressão é esta ! Ella só resume todo o
porque n'elle todo o mundo se encerra : discurso de Beatriz a Virgilio, e recorda
in esso tutto il mondo s’inchiude (Conv., ao mesmo tempo as tres Feras malva
tr. 4, C. 4 ) . das, que impediram Dante a subir o
Ove tornar tu ardi : Dove tornar di monte, a miseria, para a qual elle vol
sio ( Vita nuova ) ; havia - lhe dito Beatriz, tava, a salvação, que lhe podia vir do
e com effeito o desejo é um quasi ardor Mantuano, o conselho, e a ordem (il con
do animo : un quasi ardor dell' animo siglio è 'l mandato ), que este recebeu
( Par ., XXXIII, 48 ) . de Beatriz ! Ha bellezas no Poema de
( 37 ) Temer si deve sol di quelle cose Dante, que, para serem postas em todo
C'hanno potenza di fare altrui male ; o seu pleno esplendor, demandam mui
porque o objecto principal do temor é ta, e profunda attenção, fino criterio, e
o mal : timor respicit malum ut pro gosto ; requisitos que me fallecem .
prium objectum ( Thom ., 9, 42 , 10 ). De (40 ) Si che duro giudiziolassù frange:
outras cousas, pois, não se devem te tanta compaixão sente por aquelle in
mer, porque, não sendo um mal, não feliz (Dante ), que quebra (frange), rom
podem ser motivo de temor. pe (rompe), abranda (amollisce ); in cielo
( 38) I' son fatta da Dio, sua mercè, a rigida: que o julgou tão severamente,
tale, Che la vostra miseria non mi tange, que a abandonou a perdição ( la rigida
Nèfiamma esto incendio non m ' assale. giustizia, che a fatto severo giudizio di
Esta expressão é metaphorica. Incendio lui, abbandonandolo a perdizione).
aqui é tomado pelo ardente, e desespe Esta Senhora gentil, é Maria San
rado desejo de ver a Deus, unico tor ctissima, refugio dos peccadores, á qual
mento que se padece no limbo. Ora, o seu Divino Filho Jesus conferiu as
Beatriz, achando -se no pleno goso da attribuições da Misericordia, como mo
visão beatifica, onde todos os affectos, deradoras dos severos juizos da divina
COMMENTARIOS AO CANTO II 83

Justiça, segundo a interpretação dos dell'ottima felicità ), e diz que esta


padres, e doutores da Egreja. É esta a graça lhe foi impetrada por Maria ( e che
primeira vez que Dante introduz Maria tal grazia glifu impetrata dalla Vergine
Virgem na sua Divina Comedia . Tere Maria ). Com effeito, si a Donna gentil
mos occasião de ver, que frequentissi do primeiro Cantico da Divina Come
mas vezes seu doce nome é n'ella in dia, não fosse a Virgem Maria, a con
troduzido, em prova da profunda devo clusão ou termo do Sacro Poema de
ção, que lhe tinha. Com Maria começa certo não concordaria com o seu prin
o Poema , com Maria o finalisa, consa cipio, e a allegoria principal não con
grando a Maria toda a sua vida . Dia, e servaria a necessaria unidade de desi
noite invocava o seu nome : invocava il gnio, ou de acção.
nome sera, e mane (Par., xxIII, 88) , e (41 ) Questa chiesi Lucia in suo di
n'ella, como fonte viva de esperança, mando, E disse : Or abisogna il tuo ſe
depositava toda a sua confiança. A esta dele Di te, ed io a te lo raccomando.
grande Mãe são apropriados com tal Antes de passar adiante, cumpre averi
evidencia os dotes da Donna gentil, que guar rapidamente quem é esta Lucia .
de modo algum podiam congir a outra Todos os commentadores dizem que é
pessoa. E para melhor se comprehender a virgem martyr de Syracusa, talvez
a significação dos ineflaveis epithetos, porque d'ella alcançasse o Poeta a cura
que lhe são dados, basta advertir, que da vista enferma ( la sanità della vista
gentilezza, leggiadria ( formosura ), e offesa ). E somos conduzidos a crer, que
nobilità, são tudo a mesma cousa (Conv., elle, por gratidão do beneficio recebido,
tr. iv, c. 9 ), e que nobilità comprende lhe designasse no céo um altissimo as
ogni virtù ( iv, c. 8), e leggiadria fa sento (un altissimo seggio), juncto a
degno di manto Imperiale colui dov'ella Maria, e n'ella symbolisasse a Divina
regna ( Canç. ). A Virgem é chamada Graça. Por isso Lucia presta- se obe
Madre di virtù , condecorada com o ti diente a Donna gentile, que é a Madre
tulo de Augusta ( Par ., XXXII, 119 ), e ce di Grazia ». Isto, com mais ou menos
lebrada como la Regina del Ciel e del variantes, dizem todos. Nenhuma duvida
mondo. Por fim, frangere la severità opponho a que seja a virgem martyr de
del Divino Giudizio, não pode ser attri Syracusa, a sancta por elle symbolisada
buido senão á Virgem purissima, che ora na Graça illuminante, ora na Egreja.
levò a tanta nobilità ľumana natura , Limitar-me-hei a reproduzir aqui o que
che il Fattore ( Creador), non sdegnò eu disse no meu livro Jerusalem , quan
(não se dedignou ), di farsi sua fattura do, ha quatorze annos, descrevi o mar
( seu Filho ), e tão grande, e tão alta é a tyrio da virgem Lucia, no proprio thea
sua valia juncto ao Throno de Deus, tro do seu martyrio , em Syracusa :
que todo aquelle que quer alcançar « Pelo que se acaba de ler, vê- se que
alguma graça, e não recorre a Maria, se sancta Luzia, martyr Syracusana , não
illude , como aquelle que quer voar sem padeceu tormento especial nos olhos ;
azas : Donna sè tanto grande, e tanto mas, sendo certo que a sancta, como
vali, Che qual vuol grazia, e a te nonse advogada contra a cegueira, é sempre
sicorre: Sua disiança vuol volar senz'ali representada com os olhos n'uma ba
(Par ., XXXIII, 5, 13 ). A tudo acrescen cia, suppõe - se que essa tradição se tem
te-se, que o termo ( termine ), que mira perpetuado, ou porque o nome Luzia
a Visão (l'alta fantasia ) imaginada por significa luz, ou porque a sua interces
Dante, é a Visão de Deus, em cuja pre são se tenha revelado mais efficazmente
sença gosa-se de plena alegria (ogni propicia nas enfermidades dos olhos , ou,
gaudio ), isto é, mirava mesmo na terra finalmente, porque ( e isto nos parece
chegar ao da contemplação
summo mais verosimil) se tenha confundido a
(al sommo della contemplazione, come martyr Syracusana com a virgem mar
84 O INFERNO

tyr dominicana do mesmo nome, que plenamente com a verdade reconhecida


floresceu mais de mil annos depois ; a sob a allegoria.
a qual, para libertar-se das seducções (43 ) ... e venne al loco dov’io era . Bea
de um mancebo , que se dizia arrebatado triz no céo é collocada juncto a Rachel,
de seus lindos olhos, com as proprias e abaixo, bem que não directamente, a
mãos os arrancou , e os enviou ao per Maria. E assim ella permanecia da parte
tinaz seductor n'uma bacia, para seu opposta a Lucia, a qual por isso moveu
eterno desengano .» se do seu logar para falar com Beatriz.
... or abisogna il tuo fedele, Di le, ( 14 ) Che mi sedea con l'antica Ra
ed io a te lo raccomando. O teu fiel, o chele ; pois que na ordem em que estam
teu servo . N'esta significação, fedele é os terceiros assentos, Rachel assenta - se
empregado muitas vezes na Vita nuova : juncto de Beatriz (Par ., XXXII, 9 ). Ora ,
Chiamai misericordia alla donna de cor sendo Rachel figura da contemplação
tesia , e disse : Amore, ajuta il tuo fedele ( S. Izid ., de vita , act. et contem . ), não
( xx ). Os filhos da Sancta Egreja são póde deixar de acompanhar -se de Bea
chamados fieis, para distinguil- os dos triz, destinada para ser mestra de Dante,
infieis. Embora peccadores , são sempre na Divina philosophia, e guia para acom
considerados fieis. Dante era tambem panhal- o ao summo Bem , que por meio
peccador, ou, para melhor dizer, repre da contemplação começa a ser gosado
sentava os christãos peccadores, e in cá d'este mundo .
gratos á Egreja. É n’este caracter, e ( 45 ) Beatrice, loda di Dio vera . Bea
condição, que a Virgem Maria o re triz é verdadeiro louvor de Deus, o qual
commenda a Lucia, como symbolo da n'ella magnificou as suas grandezas, e
Egreja, da qual é Rainha a Mãe de Mi lhe fez brilhar um mais vivo raio da
sericordia , e com auctoridade de Rainha sua luz. Foi creatura tão perfeita, que
ordena, e não supplica a Lucia, que na terra dava a Dante uma quasi ima
preste auxilio a Dante. In suo diman gem do summo Prazer : del Sommo
do di Regina, ' e non già di suppliche Piacere ( Purg ., XXXI , 52 ). Nenhuma cou
vole. sa narra tanto a gloria de Deus, e cele
( 42 ) Lucia, nimica de ciascun crude bra os seus louvores, como a perfeição
le, isto é, inimiga das malvadas Feras das suas creaturas: Cæli enarrant glo
(delle malvaggie bestie), que impediam riam Dei, et opera manuum ejus annun
o caminho a Dante. Crudele, póde aqui ciat firmamentum ( Ps. 18 ). E Beatriz
significar máo (altivo ), vicioso (vizioso ), foi tão bella , que natureza, e arte, não
malvado (malvagio ). Na canção Do apresentaram jamais nada mais lindo,
glia mi reca nel core ardire, os avaros que ella (Purg ., XXXI, 50 ).
são chamados falsos animaes, crueis (46 ) Chè non soccorri quei che l ' amo
para si, e para os outros ( falsi animali tanto, Ch'uscio per te della volgare schie
a sè e ad altrui crudi) ; e almas crueis ra ? Dante sobresaíu á esphera vulgar,
são geralmente chamadas iniquas ou não só porque, inspirado pelo amor de
peccadoras : anime inique o peccatrici Beatriz, se consagrou á sublime profis
( Inf., XXXIII, 110). Assim é, por conse são de Poeta, mas ainda porque ella
guinte, que Lucia é justamente chamada com os seus olhos juvenis o sustentou,
inimiga de todo aquelle, que é cruel, e manteve por algum tempo n'aquelle
tanto em relação ás Feras, que im recto caminho, de que o mundo estava
pediam Dante, ameçando - o de morte desviado : dal qual il mondo era sviato
( 1. 107 ), quanto em relação ao mesmo ( Purg ., xxx, 121 ).
Dante, que, voltando ao vicio, torna (47 ) Non odi tu la pièta del suo pian
va - se cruel para si , e para a sua alma to ? isto é, não sentes, não te compade
(deveniva crudele a sè e rendevasi mici ces do seu pranto ? Non te compiangi
diale della anima sua ). Isto concorda del suo pianto ?
COMMENTARIOS AO CANTO II 85

(48) No vedi tu la morte che 'l com Por isso que , o que é bello, deve uni.
batte Su la fiumana, onde il mar non ha versalmente agradar. O Poeta seguia o
vanto ? A morte com que elle se deba ensino de S. Thomaz, o qual tem por
te : porque a Fera, por causa da qual bello, tudo o que se aprende com pra
elle gritava, e pedia soccorro, não deixa zer : Pulchrum dicitur id cujus apprehen
altrui passar per la sua via, ma tanto lo sio placet ( 1 , 9 , qu. 5, art. 4 ). Em sum
impedisce che l' uccide ( Inf., 1, 96). Esta ma , na Divina Comedia observa-se
!
morte com que Dante se debate, alle bello, per paciente, e alternativamente,
}
goricamente, é aquella de que temos piacente per bello, bello per onesto, onesto
falado muitas vezes, a morte occasio per buono, buono per laudabile: palavras
nada pelo vicio, o damno da razão, pela estas, que na philosophia dos Escolas
qual morte , o homem morre, e perma ticos, e na de Dante, mantém recipro
nece fera com similhança de homem : cas relações, e synonymias. Na poesia
e rimane bestia che uomo somiglia : de Dante ha um progressivo crescendo
morre como homem, e vive como fera : de luz, de bondade, e de belleza , que
é morto uomo e vive bestia. não desdizem dos principios de uma
Aquelle rio sobre o qual o mar não san philosophia. Quem pois, por uma
tem imperio ( porque não lhe paga o estranha aberração de verdadeira criti
tributo de suas aguas ), é a mesma cousa ca, não quizesse conceder a Dante tão
que a selva escura, em que Dante ía grande agudeza de intellecto, tão pro
precipitar- se, e determina melhor a si fundo conhecimento dos Padres da
gnificação allegorica: porquanto aquelle Egreja, e tão perpetuo uso do artificio,
6 rio é o rio do mal (il fiume del male), bastaria reflectir, que para cantar la
i
em cujas ondas quem se atufa, moral Salute, l’Amor, e la Virtù, como elle
5
mente se suicida, e d'esse rio se derivam fez, não se requeria nada menos, que
os rios do Inferno ( Inf., xvi, 121 ). Eis uma extraordinaria potencia de enge
agora, como todos os attributos da selva, nho, alem do commercio habitual com
e as circumlocuções com que é indicada, as artes , e sciencias .
concorrem para affirmar evidentemente , ( 50) ... parlare onesto Ch'onora te e
que a selva selvaggia não póde, nem quei che udito l'hanno . Virgilio, com a
deve significar outra cousa, senão a sua nobre Epopea conquistou mereci
vida dos vicios, o estado de erro, o rio damente o titulo de poeta, nome , que
do mal, a miseria da culpa, a escravidão mais que todo outro dura e piu onora
do peccado, e jamais o exilio. E por (Purg., XXI, 85 ) ; d'est'arte torna -se elle
tanto convem que aquella miseria, ou honra dos outros poetas que, illumina
infelicità, figurada na selva seja tal, que dos pela divina chamma (divina fiam
possa ainda adaptar-se, e verificar- se ma) da Eneida, lograram alcançar hon
geralmente n'aquelles, que emprehen rada fama .
dem il camino di vostra vita. ( 51 ) Dinanzi a quella fiera ti levai,
(49) Fidandomi nel tuo parlare onesto, Che del bel monte il corto andar ti tolse.
nella tua parola ornata ( v. 67 ). Parlare Foi Beatriz, que me mandou a toda a
onesto . Honesto, por bello, ou cousa si pressa salvar-te ( Per che me fece del
milhante, encontra-se não raro na Divi venir piu presto ). Dous são os caminhos,
na Comedia : Parlando cose che il tacere que conduzem ao delicioso monte da
é bello : discorrendo sobre cousas , que felicidade, a vida activa, e a contempla
é bello calar ( Inf., iv, 104 ); e n'outro tiva ; mas esta é a mais curta , e expe
logar com a mesma significação: É mais dita (è la piu corta e spedita ), visto que
honesto o calar, do que o falar: Più è nos leva a ver Deus , em quem repousa
il tacere, che il ragionare onesto (Par ., o nosso entendimento ( in cui si queta
XVI, 45). Mi è bello corresponde tambem nostro intelletto ( Vita nuova , ao v. 36 ;
ao a te piace : apraz-te, é-te agradavel. Inf., 1 ). O monte delicioso, principio , e
86 O INFERNO

causa de toda alegria, é o Calvario ( Inf., d'Enea parlando, in sua maggior loda
1, 77,78 ) . Diz -se bellomonte, não é porque pietoso il chiamma. Perochè, pietà è una
seja bello em si. É o monte , onde se nobile disposizione di animo, apparec
operou a nossa salvação ; logo, é o mais chiata (preparada ), di ricevere amore,
bello dos montes . Por isso não ha monte, misericordia , ed altre caretative passioni
que seja visitado, e subido por tantos ( Conv., tr. 2,9 ). D'aqui se vê claramente,
com maior fervor, do que o monte Cal como, e porque Dante chamasse pie
vario. Falo com experiencia propria ! dosa aquella ( Beatriz ), que se levantou
( 52 ) . Perchè ardire e franchezza do seu benaventurado assento, para
non hai, Poscia che tai tre Donne bene. enviar -lhe soccorro em tão critica cir
dette, Curan di te nella corte del Cielo : cumstancia .
臺A

Como si dissesse : A Virgem Maria mi (57) E tu cortese, ch ' ubbidisti tosto


tiga em teu favor a severidade do juizo Alle vere parole, che ti porse ! Virgilio,
de Deus ; Lucia, a quem a mesma Vir prestando -se de boa vontade a cumprir
gem te recommenda ; e Beatriz, que por as ordens de Beatriz, saíu logo a pro
conselho de Lucia, solícita ministra da curar o errante peregrino, e é esse acto
graça , moveu-se a chamar-me, para que de singular cortezia, que é aqui louvado:
te viesse salvar . cortese ; tanto mais, quanto cortezia si
( 53 ) E il mio parlar tanto ben t ' im gnifica geralmente as virtudes, e os
promette; isto é, prometto tirar-te d'aqui bellos costumes : cortesia significa ge
por um logar eterno (per luogo eterno), neralemente le virtù, e li belli costumi
e conduzir-te ao bello monte dese ( Conv ., tr. 2, c. 11 ).
jado. ( 58) Tu m ' hai con desiderio il cor
( 54) Quale i fioretti dal notturno gelo disposto ; isto é, me animaste tanto, que
Chinati e chiusi, poi che 'l Sol glim volto ao meu primeiro ponto de se
bianca , Si drizan tutti aperti in loro guir-te : Ch ' io son tornato nel primo
stello, etc. Aprumam - se todas abertas na proposto de seguitarti.
sua haste . De inclinadas, que eram , (59) Or va , chè un sol volere è d' am
aprumam - se louças ; esmorecidas, e bedue. Fiel a esta solemne promessa
murchas, expandem -se abertas, no seu feita a Virgilio, Allighieri lh'a renova
tronco : maravilhosa correspondencia, n'outro logar, e occasião opportuna.
e precisão de palavras! Com que flexi Tu sabes que não me separo da tua
bilidade a arte obtempera á natureza, e vontade : Sai ch ' io non me parto dal
lhe exprime a imagem verdadeira, e lu tuo volere ( Inf., xix, 38, 39 ).
cida ! Nem de outra sorte resultam as (60) Tu duca, tu signore, e tu maestro .
vivas bellezas da palavra. Todas estas honrosas qualificações cos
( 55 ) Tal mi fec ' io, di mia virtute tuma Dante, segundo a opportunidade,
stanca) ; isto é, abatida, vencida, quasi dar a Virgilio. « O meu caro guia, que
esmorecida, e inclinada. Alarguei todo mais de sete vezes me tens restituido a
o meu vigor, que era estreito : Rallar tranquillidade»: Ó caro duca mio, che
gai ogni mio vigore che era stretto : più de sette volte mi hai sicurtà renduta
(Purg., IX, 48 ); o realcei, de caido, e ( Inf., viii, 97 ) ; « Sejas tu a minha Guia
vil, em que se tinha tornado : lo rialzai, sabia, e fiel» : Scorta mia la saputa e
di caduto, e vil che divenne ( v. 15 ) ; e fida (Purg., XVI, 8 ). « Tu és senhor ; tudo
com o coração palpitante de ardor, e o que te apraz, me apraz a nuim » :
franqueza e si mi feci arditto e franco, Tu si signore; tanto m ' è bel, quanto a
segundo o conselho de meu Mestre sic te piace ! Inf., XIX , 91). « Mestre meu , ó
comefui consigliato del Maestro ( v. 123 ). minha luz ! » : Maestro mio, ó mia luce !
( 56) Ó pietosa colei, che mi soccorse ! (Purg ., VI, 29 ) . « Ó Sol, que esclareces
La pietà è, che fa resplendere ogni altra toda vista turbada » : Ó Sol, che sani
bontà col lume suo : perchè Virgilio, ogni vista turbata ( Inf., xi, 91 ), etc. Es
COMMENTARIOS AO CANTO JI 87

tas varias denominações fazem conhe todos os seus actos, presta-lhe obse
cer claramente o papel importante, que quiosa homenagem , reverenciando - o em
Virgilio representa na Divina Comedia ; tudo como seu autore, degno di tutta
mas não será descabido aqui observar, fede, e ubbienza (Conv., tr. 4 , c. 6 ). Assim
que Virgilio havia só promettido a Dante torna - se seu servo, e discipulo fiel , não
guial-o por uma região eterna ao dese esquecendo por seus actos, que aquelle
jado cume do monte delicioso. Desde, que se faz discipulo, e não segue seu
porém , que Dante se entrega a sua di mestre, aparta - se da razão ; porque, si
recção, como seu senhor, e mestre ; o caminho dos máos é escuro, e precipite,
desde que fosse cumprida a tarefa de o dos bons é luz esplendente (Conv., tr.
tal guia, era mister que fosse senhor, 4, c . 7 ) .
isto é, que tivesse toda a auctoridade (61) Entrai per lo cammino alto, e
sobre aquelle a quem se propunha guiar, silvestro. Alto, porque conduz ao pro
e podesse amestral- o convenientemente, fundo aby-smo ( Inf., XIII, 42 ) ; silvestre,
fazendo - o assim adquirir piena e vera porque a estrada era selvatica : selvag
experiencia das cousas do Inferno. Tal, gia ( Inf., iv, XIII, 92 ), qual se encontra
com effeito, se ostenta Virgilio ao ani por entre selvas desertas, não trilhadas,
no grato de Dante, o qual, por isso, em intonsas.
INTRODUCÇÃO AO CANTO III
Entraram os dous Poetas no vestibulo do Inferno, ou no Anti- Inferno, que é uma ·
vasta, e tenebrosa campina, por onde vagueam as almas d'aquelles que, emquanto
viveram , não cuidaram nem do bem, nem do mal ; não foram nem amigos dos bons,
nem inimigos dos máos : levaram vida, antes vegetativa, que racional, comendo, be
bendo, divertindo -se, sem jamais nutrirem o menor sentimento de virtude, de honra,
de zêlo, de paixão, nem compaixão. O seu castigo consiste em serem desprezados
por todos ; mordidos por moscardos terriveis, e compellidos a correr incessante
mente atraz de uma bandeira rapidissima.
Proseguindo chegam os Poetas ao Acheronte, rio que cinge o abysmo infernal, e
com as suas turbidas aguas forma os outros tres rios, Estyge, Flagetonte, e Co
cito. Acheronte significa privação de alegria, e isto para denotar que o primeiro
effeito
consciendo peccado é arrancar ao homem a paz do coração, a tranquillidade da
cia , a serenidade da razão. Na margem d'este rio da tristeza conserva -se
sempre uma multidão de almas condemnadas, que pelo barqueiro Caronte são trans
portadas ao Inferno. Caronte intima a Dante que se retire ; mas, vendo que lhe des
preza as bravatas, procura enganal-o com fazer - lhe crer, que ha outros portos, outras
barcas mais proprias , para transportar um homem vivo, e pesado, como elle: Vir
gilio porém fal-o emmudecer, declarando-lhe que Dante viaja pelo Inferno por de
creto do céo, e que portanto deve, sem mais objecções , passal- o para o outro lado.
N'este
Dante, comenos, treme a tenebrosa campina, após um relampago de luz vermelha.
ao ver este espectaculo, apavora -se, cae em terra sem sentidos, e n'este es
tado é conduzido por Caronte ; e isso porque, sendo o Inferno um mysterio de fé
que se crê , mas que se não comprehende, é de razão que n'elle se entre sem saber
como .

Poria aqui termo á synthese do objecto d'este Canto, si não fosse indispensavel
fazer larga menção de um episodio, que o tem tornado celebre.Diz o Poeta que,
applicando bem os olhos, viu, e reconheceu, entre os poltrões, e egoistas mordidos
por insectos, um tal que por sua fraqueza de animo fez a grande renuncia, gran
refiuto. Quem seria esse famoso renunciante ? Tullio Dandolo, na sua obra Roma
ei Papi, diz seccamente assim : «Á Otton, surdo ao chamado dos Brancos, vibrou
Dante o celebre, e mal entendido verso : Che fece per viltate il gran rifiuto» .Logo,
segundo Tullio,este,que fez a grande renuncia, seria Otton imperador dos Roma
nos. Mas os Ottonsforam tantos... : qual d'elles seria ? Tullio não o diz, nem podia
dizer, sem se expor a erro mais grave; porque os Ottons haviam cessado um seculo
antes, e não é bem claro que Allighieri remonte tanto aqui ao passado : pelo con
trario é clarissimo,pelas suaspropriaspalavras,que n'este versoallude a um indi
90 O INFERNO

viduo, que elle viu, e conheceu : Poscia ch ' io n'ebbe alcun riconosciuto – Guardai
e vidi.
Outros dizem , ora que Dante allude a Esaú, que renunciou por venda os direitos
de primogenitura a seu irmão Jacob ; ora a Diocleciano, que na sua velhice renun
ciou o imperio ; ora a algum cidadão forentino, talvez Torriano de Cerechi, que
por medo de gastar dinheiro, ou por egoismo renunciou o sacrificio de pôr-se á
frente dos Brancos, para sustental-os, e evitar os grandes males, que sobrevieram á
Patria , e ao mesmo Poeta ; ora finalmente a Juliano apostata, que renunciou a
Religião de Christo, fazendo -se seu maior perseguidor.
Tudo isto são conjecturas, que não resistem á mais superficial analyse. Quem
será pois o tal do gran refiuto ? Dante não o delara ; mas pelo que disse no canto
xxvi faz suppor, que o tal é Pedro Morone, ou Celestino V Papa, antecessor de Bo
nifacio VIII , que effectivamente renunciou o Pontificado, após cinco mezes de
exercicio ; morrendo clausurado no castello de Tumone (1296 ), e canonisado por
Clemente V em 1213. Bem desejára poder abraçar a opinião de Tullio Dandolo, e
de outros conjecturistas, a fim de pôr fóra da discussão o Sancto Papa ; mas não
creio ser possivel, em vista d'estas palavras que o mesmo Dante põe na bocca de
Bonifacio VIII, dirigidas ao Conde de Montefeltro , já frade :

però son due le chivi


che il mio antecessor non ebbe care .

« São duas as chaves que o meu antecessor renunciou...

Logo Dante é sacrilego porque põe no Inferno até os Sanctos! Não nos apres.
semos ; vamos de vagar. Que Dante haja sido temerario , admitto ; mas sacrilego,
heretico , jamais ! 1.º, porque Dante escreveu isto em 1303 , dez annos antes que
Celestino fosse canonisado, e por isso não se pode dizer que elle mettesse Sanctos
no Inferno: 2.º, porque não se pode tão pouco dizer que ahi mettesse um Papa,
visto como Celestino havia renunciado legalmente a tiara em Napoles, em presença
do Consistorio , a 13 de dezembro de 1294, reassumindo desde logo seus habitos
eremiticos ; 3.º porque, embora houvesse sido humilde, e sancto antes, durante, e
depois do Pontificado, não deixou todavia, por incapacidade mental, e por inexpe
riencia dos negocios, de commetter faltas deploraveis, nos cinco mezes em que foi
Papa (faltas que foram reparadas por seu successor, como damnosas aos interesses
temporaes, e espirituaes da Egreja ); mostrando - se d'estarte inapto para desempe
nhar um cargo, que aliás não procurou, mas que lh'o impozeram ; e que, si em
circumstancias normaes, é grave, mais grave se tornava n'aquelles tempos de dis
cordias municipaes, de pretensões ambiciosas de principes, e de horriveis pertur
bações em toda a sociedade ; estado de cousas, que exigia um homem de largas
vistas, de talento abalizado, de vasta experiencia, e energia. Por desgraça, todos
estes predicados falleciam em Celestino.
Mas, si Celestino era tão carecido de sufficiencia, porque razão Dante se volta
contra elle por causa da sua renuncia ? Não deveria pelo contrario louvar ? Res
ponde - se , que Dante sem duvida teria feito isto, e mais do que isto , com a melhor
vontade, si a renuncia de Celestino não tivesse dado logar á elevação de um seu
inimigo ao throno pontificio. Quaes fossem as razões de inimizade de Dante para
com Bonifacio, não é este o logar de examinar. Digo somente que Bonifacio foi
Papa, porque Celestino renunciou. Logo Dante attribuia á pusillanimidade de
Celestino a eleição de um Papa, que elle considerava seu inimigo, e inimigo dos
INTRODUCÇÃO AO CANTO III 91

interesses da Italia. Esta idea, justa ou injusta, o levava a raciocinar assim : « Um


bom Papa, um Papa humilde, e sancto, qual era Celestino, estava mais no caso de
fazer o bem da Egreja, e da Italia, do que Bonifacio , homem de indole severa, e
altiva, embora de profunda intelligencia. Quem, pois, não dirá ( continúa Dante),
que Celestino, por pusillanime, não fez grande mal com a sua renuncia ? Quantos
damnos temporaes, e espirituaes não se teriam evitado ? »
De tudo o que precede, vê- se que Çelestino era um Papa segundo o coração de
Dante ; Celestino podia confirmar as esperanças, e satisfazer os desejos de Dante ;
Celestino podia restituir a paz á Egreja, estimulando com o seu apostolico exemplo
os outros Pastores. Renunciando, pois, o poder das chaves nas mãos de um homem ,
que elle reputava menos proprio , desvaneceram -se os sonhos dourados de Dante ,
que na sua férvida imaginação figurava um futuro certo , e lisonjeiro, sob os auspi
cios de Celestino. D'onde se collige que Dante, digamos assim , não metteu no
Anti-Inferno este homem, senão pela muita estima que lhe tinha, não quanto á
sciencia, e á experiencia, mas quanto á bondade. Esta opinião é tambem de Mon
senhor Zenelli, Bispo de Trevisio, segundo se vê n'uma sua excellente obra, que
que tem por titulo : Lo spirito religioso di Dante.
Como já disse, admitto que Dante houvesse sido temerario, para com o homem
bondoso, mas não para com o sancto, que ainda o não era canonicamente. É ne
cessario não esquecer, e esta circumstancia é de summa importancia, que Dante
não metteu Celestino no verdadeiro Inferno ; mas sim no atrio, ou no Anti -Inferno,
e ainda assim procedeu com tanta reserva, e ambiguidade de termos, que só por
illações se pode concluir que o tal do gran rifiuto era Celestino.
O insigne commentador Nicolau Tomaseo, diz : « Talvez a renuncia de Celes
tino, feita por modo não espontaneo, mas por effeito de terrores, que lhe incutiu
Bonifacio, parecesse a Dante uma humildade não generosa ou digna : certamente
esta renuncia doeu-lhe muito, não tanto pelo facto em si, como por ter elle dado a
cadeira pontifical ao seu poderoso, e astuto adversario. Ao confessar, que Dante
usou com Celestino, ou de nimia irreverencia, ou de nimia severidade, deve -se
acrescentar, que elle deveria ter para isso alguma razão historica, que nos é desco
nhecida, ou ao menos baseada na falsa opinião do tempo , o que em certo modo o
desculpa ».
« O gran rifiuto, diz o eminente interprete J. B. Giuliani, refere -se ás summas
chaves,
como aquelle que as renunciou ( Inf., XXVII ), e não pode significar senão a
renuncia da maior grandeza a que o homem póde subir n’este mundo. Tal é a
excellencia do romano Pontifice, revestido do gran manto ( Purg ., xix, 104), guar
dador das chaves do céo ( Idem , 101), chamado grande Padre (Idem, 50), o maior
Padre, o Pastor das gentes christás ( Par., ix, 34).
«Demais, a palavra viltà, applicada ao animo, significa o mesmo que pusillani
midade (Conv., c.4, e 11 ) ; e o homem, que teme não estar ao nivel da empreza
começada, póde alguma vez tornar-se pusillanime. (Vita nuova, S 19 ), sem todavie
se tornar torpe. É pusillanime o que se considera menos do que é... e que sempre
considera os outros maiores do que são (Conv., iv). Não deve esquecer, que quando
Dante fingiu a sua Visão, e publicou o Inferno, Celestino não era ainda canonisado,
e por isso se faz injustiça ao Poeta, suppondo-lhe o proposito de offender um ho
mem de sanctidade provada. Pelo contrario, si bem se reflectir no sentido das
palavras do Poeta, ver-se-ha que elle ahi dá prova do mais alto apreço ás virtudes
do humilde Eremita, julgando-o dignissimo de occupar a cadeira de S. Pedro, e de
conduzir o exercito de Christo atraz da Sancta Bandeira (Par., XI, 37). Por isso é
summoas
que chavrifiuto
gran es ,
não quer somente significar a renuncia, que Celestino fez das
mas a renuncia da empreza de usar d'ellas em bem da salvação
92 O INFERNO

universal; empreza, que o seu animo inteiramente avesso ás cousas da terra, lhe
deveria ter persuadido, e facilitado .»
Recapitulando tudo o que fica dito, direi finalmente, que não se póde, sem in
justiça, chamar Dante sacrilego, ou blasphemo, porque, censurando Celestino pela
sua renuncia, e sobrevivendo sete annos á sua canonisação, não se tivesse retra
tado ! Não tinha de que se retratar, visto como não disse expressamente que
viu entre os poltrões, e cobardes Celestino Papa; disse apenas que viu um tal, que
por fraqueza de animo, por indifferença, e por amor do proprio socego, renunciou
a empreza de prestar serviço a Deus, e a humanidade; o que não pode deixar de
ser falta gravissima, em vista d'estas palavras de Christo : « Quem não é por mim ,
é contra mim » . Ora, não tendo o Poeta applicado claramente este principio a Celes
tino, não tinha, como já disse, de que se retractar. Falava do Papa pusilanime,
como homem, mas não do sancto, que então o não era.

Seis mezes depois de haver escripto o que ahi fica , recebi o primeiro volume do
importante Diccionario Dantesco, de que é auctor o meu distincto amigo, professor
G. Polletto, de Padua, e um dos mais atilados interpretes de Allighieri, no conceito
do sabio J. B. Giuliani. E não obstante encontrar n'este livro muitas circumstancias
já discutidas na minha synthese, todavia, a auctoridade do egregio Datofilo, de par
com algumas cousas novas, que acrescenta, obriga-me a reproduzir integralmente
a dissertação, que consagra aos factos referentes á renuncia do Papado por Celes
tino V ; dissertação conscienciosa, erudita, e irresistivel nas suas conclusões.
Depois de falar do nascimento, e virtudes pessoaes de Celestino, prosegue :
«Celestino, ardendo no desejo de tornar á primitiva tranquillidade, renunciou ao
Pontificado ( Inf., XXVII, 105 ). Alguns escriptores, aliás graves, enchergam no acto
d'esta renuncia as suggestões do Cardeal Caetano, que foi depois Bonifacio VIII,
que aspirava a succedel-o : outros vam até affirmar, que o sagaz Cardeal, servin
do-se de uma trombeta acustica, fizesse soar aos ouvidos de Celestino, quasi como
uma voz descida do céo, ordem de Deus, que renunciasse a tiara. Como quer
porém , que fosse, importa que, não só quanto a estas accusações, como quanto á
vida inteira de Bonifacio VIII, especialmente no que toca ao estudo de Dante, se
leia a bella Historia que d'elle escreveu Tosti. D'essa Historia, saber-se -ha tam
bem a razão por que Bonifacio conservou, por nove mezes em custodia, Celestino,
em Fumone, onde morreu em 19 de maio de 1296. O seu corpo foi trasladado, em
1327, para a egreja do Collegio maior, pertencente á ordem dos Celestinos, insti
tuida por Marone, em Aquilla.
O leitor haverá já comprehendido, que eu tenho por averiguado, que Dante no
gran rifiuto não allude a outro, senão a Celestino. Sei que Barcellini, nas suas
Industrie Filologiche, refutado depois por Betti, se esbofou por mostrar, que não
foi do Papa Celestino, que Dante entendeu falar, mas sim de Giano della Bella. E
Barlow, confutado por Nannarelli, opina, que Dante se referíra á Vieri de' Cerchi;
Goeschel, que se referira a um certo Cionacci ; outros, finalmente, chegaram até a
pensar, que se referira a Esau , a Diocleciano, etc., etc. O que certo é, que o vôo
da imaginação de certos criticos, se eleva muito mais alto, do que a phantasia dos
poetas : pena é, que a força do argumento não corresponda ! Desde os primeiros
tempos, em que se começou a estudar a Divina Comedia, foi opinião de muitos,
que Dante quiz falar de Celestino. A Chronica Milaneza, publicada por Muratori,
refere : «Cælestinus ... videns suam insufficentiam Papatui renunciavit» . E Pedro
Voragine, nos seus Annaes Genovezes, repete : « Qui (Cælestinus), videns suam inex
INTRODUCÇÃO AO CANTO III 93

perientiam ...» Mas, para demonstrar que no seculo de Dante se tinha por certo haver
elle alludido a Celestino, basta ver o que diz Fazio degli Uberti, no seu Dittamondo
(IV, 21 ) ;
Tra color così per cattivo si danna
- Il misero Giovanni lor delfino
Chi rifiutò l'onor di tanta minna,
Com'è in Inferno Papa Celestino.

Para confirmar a opinião de Fazio, parecem escriptas de proposito estas pala


vras de Petrarca : « Cælestinus Pontificatu Maximo velut mortifero farce deposito, in
antiquam solitudinem tam cupide repedavit ... Quod factum solitarii sanctique patris
vilitati animi quisquis volet attribuat, etc. »
Póde -se, pois, dizer hoje que, a despeito dos engenhosos esforços do P. Lom
bardi, a interpretação, que abraço, é a geral, e commum, entre os melhores inter
pretes, e estudiosos de Dante. O P. Tosti, falando dia renuncia de Celestino, es
creve : « Alguns infamaram a grandeza d'este acto, qualificando - o de pusillanimi.
dade, entre estes, o iroso Dante Allighieri, que na saida de Celestino do Pontificado
lamentava a entrada do detestado Bonifacio ». E em nota seguinte, acrescenta : « Pois
que não existem leis na republica, ou para melhor dizer, na anarchia dos commen
tadores da Divina Comedia , ousadamente me tenho lançado do lado d'aquelles, que
créem referir -se a S. Celestino aquelle verso :

Che fece per viltate il gran rifiuto ;

e que, si alguem , pensando referir - se o dito verso a Esaú, ou Diocleciano ( que não
tinham que ver, nem pouco nem muito com as cousas, que estavam na mente, e
no coração do Poeta ), quizesse -me contradizer, eu lhe daria toda a razão, mas
não a minha, que me leva a crer de modo diverso ».
Mas, aqui se fazem duas objecções : A expressão de Dante, Guardai e vidi
l'ombra di colui, etc., implica um reconhecimento de pessoa já conhecida : ora,
como póde crer -se que o Poeta tinha conhecido Pedro de Morone ? Mas, eu
. antes concedo, que dizer guardai e vidi é ainda dizer pouco ; e não tenho nenhuma
difficuldade de acceitar a lição de Witte vidi, e connobbi, que diz ainda mais ; lição,
que o illustre allemão colheu do texto concorde dos tres Manuscriptos, que elle
seguiu na formação do texto da Divina Comedia, e que foi acolhida nos seus com
mentos
por Boccacio, e Thiago de Lana ; encontrando -se tambem em outros co
dices. Logo, Dante conheceu o Papa Celestino, e o conheceu exactamente, segundo
Todeschini ( op. cit., vol. 1, pag. 195, 7 ), quando no outomno de 1294, o Poeta foi
a Napoles visitar o seu amigo Carlos Martel, em occasião em que ali se achava o
Papa Celestino, o qual, consagrado, e coroado em Aquila, demorou -se em Napoles,
instancias
a do Rei Carlos II.
Mas, ainda suppondo que Dante não tivesse ido no dito anno a Napoles, nem
que tivesse visto o Papa Celestino, aquelle vidi, e connobbi, não poderá fazer crer,
que o elle
logar douto
seu diz Guia lhe houvesse de algum modo feito conhecel-o ? Em outro
(Inf., iv, 121 ) :

Io vidi Elettra con molti compagni,


Tra' quai conobbi ed Ettore ed Enea ;

e isto, no caso presente, parece -me não mediocre esclarecimento.


94 O INFERNO

A segunda objecção é, mas só em apparencia, mais grave : Como é que Dante,


tão reverente á Sancta Sé Apostolica, poude collocar entre a turba dos cattivi (máos),
Le sciaurati ( vis ), um Papa declarado Sancto ? Mas, por favor, distinguậmos um
pouco : é verdade que Dante fala do Papa Celestino com palavras acerbas; vê
villà (vileza ), onde mais dignamente podia ver altissima humildade ( umiltà ), e por
isso admiravel grandeza de animo. Sim ; mas não esqueçamos, que nos achamos
no campo da poesia , e por isso das ficções, e das tradições populares; não nos
esqueçamos, como muito bem notou Tosti, que o successor de Celestino foi o de
testado (abborrito) Bonifacio ; e lembremo-nos, que o Cantico do Inferno, segundo
alguns, era já publicado em 1306, e que, de qualquer modo, si o Papa Celestino foi
canonisado por Clemente V, em 1313, no dizer auctorisado de Boccacio, de Villani,
temos claras razões para concluir, que aquelle decreto não foi publicado pelo seu
successor João XXII , senão em 1328, sete annos depois da morte de D.inte (Ct.
Todeschini, op . cit., vol. 11, pag. 351 , 2 ).
CANTO III

Chega o Poeta á porta do Inferno, e lê na fachada uma inscripção , que o espanta – Entra precedido de Vir
gilio -- Encontra no vestibulo as almas dos egoistas mordidas incessantemente por insectos crucis
Aborda o Acheronte, de cujas margens o barqueiro Caronte transporta para o outro lado as almas con
demnadas - Li, deslumbrado por um relampago, o Poeta các em profundo somno .

« Entra -se por mim na cidade da tristeza : ( 1) entra- se por mim no


abysmo da eterna dor: (2 ) entra-se por mim na mansão dos conde
mnados. ( 3 )
« A eterna Justiça moveu Deus a crear -me : (4) obra sou da Divina
Potestade, da summa sapiencia, e do primeiro Amor . (5)
« Antes de mim não foram creadas , senão substancias eternas, (6)
сеи
eternamente duro : (7) Vós , que em mim entraes, perdei toda a
esperança de saír ! (8),
Vendo eu estas palavras escriptas em caracteres negros (9) na
fachada de uma porta, voltei -me para Virgilio, e lhe disse : «Mestre,
o sentido d'esta inscripção me espanta !» (10;
E elle , como pessoa avisada, ( 11 ) notando em mim novos indicios
de pavor, respondeu : « Aqui, nada de cobardia, animo resoluto. (12)
« Somos chegados ao logar, onde, como te preveni, havias de ver
immersos em abysmos de tormentos os desgraçados, que perderam
o maior Bem do intellecto :) ( 13)
E depois, tomando-me pela mão (14) com semblante alegre , que foi
parte para me confortar, introduziu -me nas cousas arcanas . ( 15 )
Ali suspiros , lamentos , e clamorosos gritos reboavam (16) pelas
concavidades do antro, onde não scintilla o brilho das estrellas . ( 17)
Em face de tal espectaculo comecei a chorar.
Linguas diversas, (18) horriveis blasphemias, palavras de dor, (19)
bramidos de colera, vozes estridulas, e roucas , (20) d'envolta com um
NO
96 O INFER

121 )
phrenetico bater de palmas , produziam tumulto tão vertiginoso
n'aquella atmosphera de escuridão eterna , (22 ) qual o sibilante rolar
das areias impellidas pelo furacão. ( 23)
E eu , que por tão confuso alarido tinha a cabeça cheia de hor
ror , (21 )
perguntei : « Mestre, que é isto que ouço ? Que gente é esta,
que parece tão subjugada pela dor ? »
« A esta misera condição, respondeu -me, são condemnadas as tris
tes almas d'aquelles, que viveram sem infamia, e sem louvor.
« As alm:1s d’esses vis egoistas acham -se confundidas com o negre
gado côro dos anjos, que nem foram rebeldes , nem fieis a Deus , (25 )
mas só cuidaram de si , e só viveram para si .
« Os céos, porque elles lhes não manchassem a natural belleza , os
expelliram de seu seio , 261 e o Inferno os não recebe, porque os anjos
máos teriam alguma gloria de vel-os lá.»
Tornei a perguntar: « Mestre, porque são elles atormentados
com tanto rigor, que lhes arranca tão fortes, e pungentes lamenta -
cões ? »
« Eu te direi, respondeu, em muito poucas palavras: a estes infe
lizes fallece a esperança de morrer ; por seu maior castigo, sabem que
sio eternos , e que a sua vida é tão infame, que invejam outra qual
quer condição .
« ( ) mundo não soffre que lhes perdure a memoria : despreza -os
a divina Misericordia, e a Justiça ; não nos occupemos d'elles : olha -os,
e passa adiante .)
E limitando -me a olhar, vi uma bandeira, que circumvolava com
tanta rapidez, que não levava geito de parar . (27)
Após ella seguia tão longo tropel de almas, que me surprehendeu
ver, que a morte houvesse arrebatado tanta gente! (28)
Depois que n’aquelle tumulturrio bando pude reconhecer alguem ,
vi, e conheci a sombra d'aquelle, que por imbecil fez a gran renun
cia . (29)
Em continenti comprehendi, e tive por certo, que aquella era a
seita dos máos, desagradaveis a Deus, e aos inimigos de Deus. ( 30)
Esses desaventurados, que não viveram (31) nunca para a virtude,
estavam nús, e cruelmente mordidos por moscardos, e vespas, que
em grosso cardume lhes enxameiavam em torno .
Tão picantes eram as mordeduras, que lhes faziam o rosto escor
rer em sangue, que , misturado com as lagrimas, caía na terra, onde
era logo sugado por vermes asquerosos. (32)
E depois , applicando outra vez os olhos, vi que remoinhava gente
na margem de un grande rio , (33) pelo que eu disse : « Mestre, si te
apraz que eu saiba, explica-me quem são aquelles, e que lei os faz
CANTO III 97

parecer tão apressados a passar o rio, (34) segundo estou lobrigando


atravez d'esta atmosphera pardacenta ? » (35)
« Estas cousas , respondeu - me , te serão manifestas, quando che
garmos á triste borda do Acheronte . »
Então de envergonhado abaixei os olhos, e, temendo causar-lhe
enfadamento com outras perguntas, abstive-me de falar até que che
gassemos ao rio.
E eis que, ao abeirarmol-o, vimos, que se encaminhava para nós,
remando uma barca, um velho de barbas, e cabellos encanecidos, (36)
gritando : « Ai de vós, ó alnas maldictas !
« Não espereis jamais ver o céo ; (37) aqui venho transportar- vos
para a outra margem, que é o principio do Inferno, onde tudo são
trevas , fogo, e gelo !
« E tu, que ahi estás, o homem vivo, retira-te d'estes, que são
mortos . » (38) Mas, vendo-me permanecer firme, disse : « Outros são os
canaes , outros os portos, por onde deves passar : aqui não ha barca
ligeira , que te possa transportar. » ( 39)
E o meu Guia lhe bradou : « Não te enfurecas, Caronte : no céo,
onde se pode tudo o que se quer, deseja- se que este homem visite o
Inferno , e não lhe perguntes mais nada. (40)
A estas palavras imperiosas, as faces barbaçudas do piloto da
livida lagôa , despiram as rugas da colera, (41) que lhe produzia em
torno dos olhos uma orla chammejante . (42)
Mas aquellas almas que estavam fatigadas, e nuas , (43 ) apenas
ouviram as ameaças crueis do barqueiro infernal, mudaram de côr,
e rangeram os dentes.
Blasphemavam contra Deus , contra seus paes , (44) contra a raça
humana , contra o logar em que nasceram, contra a hora em que
nasceram, contra seus avós, e contra si proprias !
Depois , disparando em doloroso pranto, reuniram -se todas na
funesta praia, que espera cada um d'aquelles, que morreram na ira
de Deus . (45 )
Em seguida, o demonio Caronte, revolvendo os olhos côr de
brazas, acenou a todas que entrassem na barca, fustigando com o
remo aquellas, que se demoravam . (46)
Similhantes ás folhas, que no outomno se despegam da arvore,
uma após outra, até que o ramo restitue a terra todo o seu despojo, (47)
os miseros filhos de Adam lançam -se á barca um após outro, aos
acenos do piloto, como o passaro acode ao silvo do chamariz ! (48)
Assim embarcados, vogam pelas turbidas ondas do Acheronte,
Emeantes
ra .
que aportem alem, já áquem outra turba de almas se agglo
7
O
ERN
98 O INF

« Meu filho , me disse o carinhoso Mestre, todos os que morrem


fóra da graça de Deus, aqui se reunem de todas as partes do mun
do . (49)
« E mostram ardente desejo de passar o rio, porque a divina Jus
tiça os aguilhôa com estimulo tão forte, que o temor do Inferno se
lhes converte em desejo de entrar n'elle . (50)
« Nenhuma virtuosa alma passa jamais este rio, (51) e agora pódes
comprehender a desabrida furia, com que Caronte recusou dar-te
passagem . )
Apenas concluiu Virgilio a sua pratica, a tenebrosa campina tre
meu com tão violento arremesso , que, só relembral-o , me renova o
espanto , e o suor ! (52)
D'aquella terra ensopada de lagrimas, irrompeu um vento fu
rioso, seguido de uma luz sanguinea á guisa de relampago, que por
tal modo me alheou os sentidos , que tombei como homem dominado
de somno . (53)
3

COMMENTARIOS AO CANTO III

( 1 ) Per me si va nella città dolente. deiros mortos: i veri morti ( Purg ., XXIII,
Por città dolente deve - se entender por 122 ) ; porque são privados da nossa ver
especial modo a cidade chamada Dite : dadeira vida , que é Deus, bem do en
città che ha nome Dite ( Inf., viii, 68 ); tendimento : privati della nostra vita,
a terra desconsolada ; la terra sconsola che è Dio, ben d'intelletto ( Inf., in , 17 ) .
ta ( Inf., 77 ) ; terra da tristeza, da afflic A repetição trina das palavras: Perme
ção, do pezar. Tristitiæ civitas. E tanto si va : é para augmentar o terror. Estas
lhe é apropriado este titulo , que o rio diversas maneiras de considerar o In
Acheronte, que se encontra na sua en ferno pela pena, que n'elle se padece,
trada, significa tristeza. É pois chamada tem um não sei que de sublime, ainda
cidade da tristeza em contraposição ao que pareçam mui faceis na linguagem
Paraiso, que é a cidade da alegria : città commum . É admirabilissima a engenho
guadenti. Paravit enim illis civitatem ( Ad sa gradação ahi estabelecida : começa-se
Heb ., xi, 16). Sede, accessistis ad Sion pela città dolente; depois, reforçando o
montem , et civitatem Dei viventis, Ieru conceito, indica-se, lo eterno dolore;
salem cælestem et multorum milium An por fim , completa-se a idéa terrivel, in
gelorum frequentiam ( Id ., XII, 22 ). Oc dicando- se a vera morte dos inimigos
corre ainda que dolente significa triste, de Deus ! Quem penetrar no amago das
afflicto, agoniado. Dolente de' suoi pec palavras do poeta, encontrará de certo a
cati : contricto , pezaroso de seus pecca gradação ascendente , e correspondente
dos. á pavorosa verdade das cousas descri
(2) Per me si va nell'eterno dolore. ptas.
No abysmo infernal, onde jazem con (4) Giustizia mosse il mio alto Fat
demnados aquelles, que morrem na ira tore. O Inferno foi feito por Deus para
de Deus, fóra da graça de Deus : quelli Lucificer, e para os anjos seus sequazes
che murion n'ella ira di Dio (IV, III, 122 ); no momento da sua rebellião, á qual
abysmo onde a alma jamais se justifica: alludia Jesus Christo disse : Videbam Sa
dove l'anima mai non si scolpa ( Purg ., tanam sicut fulgor de cælo cadentem
XXIV, 85 ) ; onde o damno é interminavel: (Luc., X, 18 ). N'outra occasião disse,
dove il danno é interminabile ( Inf., xv, falando do tremendo juizo universal :
43) ; onde é inutil o pranto , e o arrepen Separae -vos de mim maldictos para o
dimento : dove vano il pianto e il penti fogo eterno, preparado para o Diabo, e
mento (iv, xxi, 5 ). para os anjos seus sequazes. Discedite
(3) Per me si va tra la perduta gente . a me maledicti in ignem æternum , qui
Antro onde estão as almas destruidas : paratus est diabulo e angelis ejus (Math .,
anime distrutte ( Inf., ix, 79), os verda XXV, 41 ) .
100 ( ) INFERNO

Giustizia mosse : Como si dissesse : A consequencia a creação d'este foi con


eterna Justiça, que não tolera do crime temporanea com a queda dos anjos ;
a impunidade, determinou Deus a fabri assim subsiste a verdade, que não foram
car -me. O Inferno é uma grande fabrica, creadas outras creaturas antes do Infer
cuja architectura é concebida, e descri no . Quanto a ser o Inferno no centro
pta pelo nosso Poeta. da terra, não passa de uma expressão
( 5 ) Fecemi la Divina Potestate, La figurada, que serve para significar a con
Somma Sapienzia, e il Primo Amore. traposição em que o Inferno se acha
Eis-aqui expressa a unidade, e trindade com o Céo .
de Deus : a unidade no primeiro verso, ( 7 ) Ed io eterno duro ; porque o In .
a trindade nos dous seguintes. Por isso ferno foi creado immediatamente (senza
que ao Pae se attribue o poder, a sabe mezzo ) por Deus, com um só acto da
doria ao Filho , e o amor ao Espirito sua infallivel justiça ( infallibile giustizia)
Sancto, são as tres Divinas Pessoas in para serem n'elle punidos os malfeito
dicadas com estes attributos. O Poeta res, que viveram até á ultima , sem te
faz concorrer todas tres na formação mel- a ( senza temerla 108 ). Eterno está
do Inferno, porque nas obras ad extra, por eternamente , ao modo latino : æter
como dizem os theologos, aquillo que num latrans (Eneid ., vi, 401 ). Como
faz uma Pessoa , faz tambem a outra. quer que seja o sentido é o mesmo.

Este concurso divino na formação do Tanto a porta, como o Inferno, durarão


Inferno engrandece a idea da terribili eternos: Ite in ignem æternum .
dade do logar. (8 ) Lasciate ogni speranza, voi che
( 6 ) Dinanzi a me non fur cose create, entrate. Estas palavras estão escriptas
isto é , os anjos, que foram as primeiras para eterna desesperação dos condemna
creaturas le prime creature ( Inf., vil, 95 ); dos, e tambem para todos aquelles, que
os novos amores em que, creando-os, negam o Inferno, e que, si o admittem,
expandiu-se o eterno Amor, i nuove negam a eternidade de sua duração. Os
amore in cui, creando, s'aperse l' eterno prescitos lá gritam com desesperados
Amore (Par., xxix, 17 ) . Cousas eternas, clamores, invocando uma segunda morte
creadas antes do infernal calabouço, são ( Inf., 1, 175 ) sem esperança de obtel-a
tambem os Céos. Em verdade, os anjos, porque a morte fugira d'elles eternamen
e os Céos se podem dizer creados, te : et mors fugit ab eis.
como são em seu ser completo ( Sicco ( 9) Parole di colore oscuro; porque
me sono in loro essere intero ), e por isso são cobertas de vapor caliginoso, que
têem razão de eterna duração : hanno o valle infernal continuamente exhala :
ragione di eterna durata ( Purg ., vii, 69 ) . della caligine che sempre nera fa la
Vê -se pois que os anjos são indestructi. valle inferna ( Purg ., 1, 45 ) ; tanto assim
veis, e eternos. Mas aqui surge uma que ao proprio Dante toldou a cor do
objecção, e vem a ser : Si o Inferno foi rosto : annebiò il colore del viso ( IV, 129 ) .
feito para os anjos rebeldes, e o Inferno Estas palavras de côr escura eram a ul
está no centro da terra , segue- se que a tima circumstancia, que tornava terrivel
terra existia antes do Inferno : Como aquella inscripção : 1.", porque aquella
pois diz a inscripção que antes d'elle porta conduzia á habitação da dor ; 2.º,
não foram creadas, senão cousas eter porque essa dor era grandissima ; 3.°,
nas, isto é , os anjos ? Existia tambem a porque era eterna ; 4.", pela horribilidade
dos caracteres .
terra, que é destructivel, e por conse
guinte não eterna ? Sem ouvir a conclu Para incutir um profundo espanto,
são, respondo logo : Segundo a dou não precisa mais nada ! E si causam
trina mais commum , os anjos rebeldes espanto a quem está fóra : que espanto
foram precipitados no Inferno, no pri não causará a quem está dentro ? Por
meiro dia da creação do mundo ; por isso Dante disse :
COMMENTARIOS AO CANTO III IOI

( 10) Il senso lor m'è duro. Como si cia, os condemnados perdem o bem (a
dissesse : « Si bem as comprehendo, a bemaventurança ) do entendimento : la
sua significação é grave, é dura ! E que beatitudine dell'intelletto.
me dizes, Mestre ? Deveremos nós per ( 14) E poichè la sua mano alla mia
manecer sempre n'este abysmo a que pose. Acto de egual benevolencia, e af
me conduzes ? » Duro no caso presente fecto practicou Virgilio com seu fiel
quer dizer doloroso: duri lamenti ( Inf., Alumno , no decurso d'esta viajem : Pre
XI, 122 ) . semi allor la mia scorta per mano (Inf.,
( 11 ) Como persona accorta, isto é, XI, 11 , 130 ) .
como
pessoa sabia, e experimentada, ( 15) Mi mise dentro ( dalla porta)
como se mostrou n'outra occasião altra alle segrete cose : introduziu-me a ver
fiata ( Inf., XI, 22 ). aquillo, que se esconde aos olhos dos
( 12 ) Qui si convien lasciare ogni sos mortaes : a vedere ciò che si nasconde
petto . Sospetto n'este sentido, isto é, de agli occhi de ' mortali.
pavor, e temor ( di paura o timore) é de O que Virgilio disse em tres versos,
uso vulgar na Toscana. Non abbia sos Allighieri disse n'um só :
petto : Não tenha medo. Foi n'este mes
mo sentido que Virgilio disse a Dante : Tantum effatta Mates) furens antro se immisit
aperto :
Aqui convem que toda a pusillanimida Ille (Ænea) ducem haud timidis vadentem passibus
de desappareça (ogni viltà convien che qui æquat. ..
sia morta ); querendo dizer, que a pos
silla nimidade devia desapparecer abso Pandere res alta terra et caligine mersas .
lutamente, como desapparece a pessoa
( Eneid ., vi, 262 , 65.)
que morre . Que belleza não encerra
este conceito ! Dante, como observa To ( 16 ) Quivi sospiri pianti ed alti guai.
maseo, reproduziu litteralmente n'este Aqui entendem-se suspiros por angustia
logar as palavras de Virgilio : Nunc ani (per angoscia ), e prantos por dor (per
mis opus Enea, nunc pectore firmo dolore ). Pianger di doglia, è sospirar
( Eneid . vi, 261 ). d ' agnoscia ( Vita Nuova, S XXXII ). Alti
( 13 ) Le genti dolorose c'hanno perdu guai : porque ahi os lamentos não são
to il ben dell' intelletto : são as almas simples suspiros; mas soam como bra
condemnadas all'eterno dolore, priva midos fortes; visto como as almas, que
das da visão de Deus, o verdadeiro Bem, ahi soffrem tormentos, são estimuladas
em que repousa o entendimento ; vero de continuo pela mordedura de mos
in che nel si queta ogn ' intelletto ( Par., cardos, e vespas : stimulate de continuo
XXVIII, 108 ) . Pois que a ultima perfei da mosconi e da vespe (v. 65 ) .
ção da nossa alma, em que está a nos ( 17) ... l'aer senza stelle; porque ahi as
sa ultima felicidade, é a sciencia, ou a trevas são eternas : Quivi tenebre eterne
especulação da verdade, como ensina o (v. 87) ; a noite é profunda : notte pro
Philosopho (Aristoteles ), no sexto livro fonda (Purg ., XXIII, 123 ).
da Ethica, quando diz que a verdade é o ( 18) Diverse lingue: linguas estra
bem do entendimento (Conv., tr. I, c. 2 ; nhas não ouvidas nunca ; porque ahi se
tr. 11, c. 14). Ora Deus é a verdade, fonte acha gente de todas as nações. Em mui
d'onde deriva toda a verdade , e fóra tos logares da Divina Comedia o vocabu
da qual nenhuma verdade se espraia . lo diverso tem a significação de estranho;
Ch' uscì del fonte onde ogni ver deriva como se vê na Vita Nuova : M'appar
( Par., iv, 116 ), e Di fuor dal qual nes vero certi visi diversi e orribile a vedere
sum vero si spazia ( Par., IV, 125 ) ; por ( S xx111).
que é a unica que pode contentar o orribili favelle; porque, invejosos
nosso entendimento : che solo può con de toda outra sorte : invidiosi d'ogni
testare nostro intelletto . Por consequen
altra sorte (v. 48), não deviam, senão
102 O INFERNO

proromper em blasphemias contra o Po Quando o tufão sopra, diz Buti, então


der Divino, e a especie humana . O vento vae redemoinhando com im
( 19) Parole di dolore ; quaes aquellas, peto : Quando il turbo spira, allora il
de gente que, fortemente opprimida, vento con impeto va in gyro . Note - se
fortemente se lastima: di gente che, bem a força, e brevidade da phrase dan
forte gravata, forte si lamenta ( v. 44 ). tesca, e como cada palavra, empregada
Bramidos de colera, proferidos por quem na descripção d'este tumulto de horror,
parecia agitado pela ira ( Inf., xxiv, 69). é emphaticamente impregnada da pai
(20) Voci alte e fioche: isto indica que xão que a move, exprimindo a imagem
a dor, ora fazia aquelles miseros soltar sensivel do objecto com tanta vivacida
altos gritos (stridere), ora vencidos por de , que nos parece ter presente aos
ella, mal podiam gritar. olhos o horrendo quadro ! Ha n'este
... e suon di man con elle, quer dizer, Poeta enargueias primorosissimas.
que a essas vozes estridulas, e rouque ( 24) Ed io ch ' avea d'orror la testa
nhas, ajunctavam o estalido de mãos, cinta . De horror, e não de erro ; digo -o
que batiam uma na outra, como faz firmado na auctoridade de muitos codi
quem se abandona ao desespero: suoni ces, e edições acreditadas. Com effeito ,
di mani percottendo l'una nell'altra. as scenas horriveis, e dolorosas, que o
( 21 ) Facevano un tumulto, um confuso Poeta testemunhava, não podiam deixar
estrepito , um estrondo de espantoso so de, ao passo que lhe provocavam lagri
nido : un fracasso d'un suon pien di mas de subita compaixão, lhe incutir
spavento ( Inf., ix, 65 ). horror, e arrepios de cabellos: tutti arri
Em todo o valle do abysmo doloroso ciar li peli ( Inf., XXIII, 19 ). Este logar me
retumba o éco de infinitos berros : della lhor se explica por aquelle de Virgilio :
valle d'abisso dolorosa, Che tuono acco Mihi frigidus horror membra quatit...
glie d' infiniti guai ( Inf., iv, 8 , 9). Obstupui, steteruntque comæ (Eneid., III,
( 22 ) ... aria senza tempo tinta ; por 29, 773 ) . Cumpre observar, que as la
isso que a profunda noite, que ahi reina grimas de Dante eram, não só um ef
sempre, faz tenebroso o valle infernal : feito natural das dolorosas cousas, que
la profonda notte che sempre nera fa la presenciava, como um effeito sobrena
valle inferna (Purg., , 45 ). A eternidade, tural da consideração de que a triste
verdadeiramente, é todo o tempo, tutto sorte d'aquelles desgraçados lhe seria
tempo (Purg ., XXXIII, 37 ), e fóra de todo reservada, si não se tivesse convertido
o tempo , e fuor d'ogni tempo, sem an em tempo .
tes, nem depois : senza prima, nè poi Os commentadores, que seguem a li
(Purg. , xxix, 16 ). Mas, tomando - se tam ção D'error la testa cinta, explicam que
bem , em vez de perpetuidade (perpe Dante cria se achar no Inferno, onde
tuità) , a eternidade pode dizer- se sem estam os peccadores positivos, quando,
tempo, senza tempo, emquanto que, si pelo contrario, achava -se no Anti-Infer
teve o antes, não terá o depois: se ebbe no, onde estam os peccadores negativos.
il prima, non avrà il poi, isto é, succes ( 25 ) Mischiate sono a quel cattivo coro
são de tempo. Senza tempo , por eterna Degli angeli, che non furon ribelli, Ne
mente, é usado por Eusebio, na vida de fur fedeli a Dio ; os quaes, quando Lu
S.Jeronymo : Cristo solo, è senza tempo, cifer levantou os olhos contra o seu
eternamente generato da Dio Padre ( Vit. Creador, levò le ciglia contra suo Fat
de P. P., vol . iv ). tore ( Inf., xxxiv, 35 ) ; não foram nem
( 23 ) Come l'arena, quando il turbo rebeldes a Deus, nem fieis; mas se en
spira. O tumulto, n’aquellas trevas eter colheram como egoistas despreziveis. O
nas , move - se em torno, como a areia principio ou origem da queda dos anjos,
envolvida por impetuoso vento : come foi a maldicta soberba de Lucifer ( il
l'arena avvoltolata da impetuoso vento. maledetto superbire ), e com elle parte
COMMENTARIOS AO CANTO III 103

dos anjos foram precipitados no abys lhante a areia enrolada, e sacudida pelo
mo. Mas aquelles, que se reconheceram tufão. Mas se observe, que os anjos não
obra da divina Bondade, permaneceram rebeldes, nem fieis a Deus, e as almas
exaltados na gloria con grazia illumi tibias, que viveram sem infamia, e sem
nante, e con lor merito ( Par ., xxix, 35, e louvor : senza infamia, e senza lode,
seg.). Ao passo que aquelles, que se inertes para militar sob um publico Ve
portaram com indifferença, são exclui xillo, são agora condemnadas a correr
dos pelo Poeta da companhia dell' continuamente atraz de uma bandeira ,
Imperatore del doroso regno, e desde que não tinha nome algum, nem côr.
nhados pelo Rei do Céo : não estam De tal guisa a ignobil pena d'estes des
nem no Inferno nem no Céo. Nota Lom aventurados corresponde em tudo á sua
bardi, que a esses egoistas parece que cega vida (cieca vita ).
alludira S. Clemente de Alexandria, no ( 28 ) E dietro le venia sì lunga tratta
septimo livro dos Axiomas, n'estas pa Digenti, ch'io non averei credutto, Che
lavras : Novit enim aliquos quoque in morte tanta n'avesse disfatta. «Aquella
Angelis propter socordiam humi esse obscura bandeira, explica Buti, era se
lapsos, quod nondum perfecte ex illa in guida de tão grande tropel de gente,
utramque partem proclivitate in simpli que eu não acreditaria jamais, que ti
cem illum atque unum expediissent se vessem morrido tantos, por isso pare
habitum ( Ed. d'Oxford , 1715 ). receu -me que o numero d'esses mise
( 26 ) Cacciarli i Ciel per non esser raveis fosse grandissimo, onde para che
men belli, Nè lo profundo Inferno gli il numero di questi miseri fosse grandis
riceve , Chè alcuna gloria i rei avrebber simo» . Em logar de morto , Dante em
d'elli. Non est eis concessum habitare prega disfatto lá onde fala de Ciacco :
in cælo , quia clarus locus est et amænus Tu fosti prima ch ' io disfatto , fatto ( Inf.,
(Petri. Lomb. Sent., 1, 11, d. vi, c. ). A Mi VI, 42 ; Purg., XXIII, 87 ). Similhantemen
sericordia despreza-os : misericordia gli te, a Pia de Ptolomeu, para indicar que ,
sdegna (v. 50 ). Nem o profundo inferno, nascida em Siena, foi morrer em Ma
onde estam as almas, e os anjos negros remma, dizendo : Siena mi fe, disfecimi
(neri) os recebe ; porque os rebeldes de Maremmi (Purg ., V, 134) .
clarados, vendo juncto a si os pusilla ( 29) Guardai, e vidi l'ombra di colui,
nimes, e indifferentes, teriam que se Che fece per viltate il gran rifiuto. Este
gloriar, e de algum modo experimenta passo já foi explicado na introducção.
riam algum allivio em suas dores ; o que Passemos adiante .
a inflexivel Justiça não consente. Para ( 30) Incontanente intesi, e certo fui,
dar- nos ainda um novo motivo de me Che quest' era la setta dei cattivi A Dio
ditar, quam cega, e vil ( cieca e vile ), spiacenti ed a' nemici sui. Como se dis
seja a vida d'estes poltrões, Dante, per sesse : Pelo modo por que eram casti
guntando a causa por que elles se la gados (al modo della loro pena ), e por
mentam tão fortemente, fez que Virgi haver reconhecido um d'elles, compre
lio lhe respondesse em breves palavras : hendi logo que esta era a seita dos que
«A Misericordia , e a Justiça os despreza : não agradam a Deus, nem aos inimigos
Non ragioniam di lor, ma guarda e pas de Deus, e que não se distinguiram por
sa.» Mirem - se n'este espelho os egois nenhuma acção digna de ser honrada :
tas, e indifferentes para com Deus, e per onorata nominanza fregi(Inf., iv, 76 ).
para com o proximo ! Está entendido que esta seita dos pes
(27 ) vidi un'insegna, Che girando simos indifferentes é a d'aquelles, que
correva tanto ratta, Che d' ogni posa mi seguiam em longa fila a bandeira escu
pareva indegna: era levada, impellida ra, e que estam separados das almas
com impeto . E eis-aqui a razão d'aquelle atormentadas no profundo inferno, e
revolvimento , que a Dante parecia simi das glorificadas na eminencia dos Céos.
104 O INFERNO

( 31 ) Questi sciaurati, che mai non fur tigos aos condemnados. Não impõe uma
vivi, isto é, que não viveram nunca para só pena, que não esteja em completa
a virtude, para a honra, para o amor da relação com a culpa, de modo que, a
verdade, e do bello, cousas, pelas quaes Divina Comedia é um verdadeiro tra
o homem se torna excellente : si fa ec tado de Ethica christā !
celente ( Purg ., IX, 41 ), e se eterniza : ( 33 ) Vidi gente alla riva d'un gran
( e s' eterna) . Na sua vida de cegueira fiume. Esta é a triste margem do Ache
( cieca vita), nada praticaram, que lhes ronte, o máo rio : è la triste rivera
conciliasse fama; sendo certo que d'Acheronte ( v. 78 ), il mal fiume ( Purg .,
aquelle , que consome a vida, sem 88 ), ou o caminho do mal, pelo qual
adquiril-a, deixa de si na terra tal ves não passa nunca alma virtuosa. Alli
tigio, qual o que o fumo deixa no ar, ghieri, para indicar os rios do Inferno,
e na agua a escuma : Cotal vestigio in serve - se das ficções da mythologia, visto
terra di sè lascia. Qual fumo in ære, od como, segundo a sua opinião, os poetas
in acqua la shiuma ( Inf., xxiv , 51 ). Dei usurpam alguma vez o modo de dizer
xar na terra o mesmo vestigio, que o dos gentios, sobretudo no que respeita
fumo deixa no ar, e a espuma na agua, particularmente aos nomes de seus sa
é uma bella imagem ! crificios, e da sua crença ; mas usurpam
( 32 ) Elle rigavan lor di sangue il suas ficções para representar a verdade
volto, Che mischiati di lacrime a lor (Conv ., tr. 2, c. 5 ) . A verdade, porém,
piedi, Dafastidiosi vermi era ricolto. E na essencia, permanece intacta, ainda
horribilissima esta pintura ! Aquillo que que occulta sob bella mentira ( ancorchè
a ignavia, a indolencia, opera nos ani nascosa sotto bella mezogna). Assim, si
mos, que acommette, aqui se declara por Dante dá ao barqueiro da livida lagoa
castigo correspondente, isto é, por um (al nochier della livida palude), o nome
estimular terrivel, proprio para impellir de Caronte, se afasta todavia do antigo
os preguiçosos á vida do trabalho, e da erro (dalla antica error ), para denotar
actividade . Estam nús ( ignudi ), porque n'elle um verdadeiro demonio. O mes
no mundo foram despidos de todo o mo se pode dizer de Minos, de Cerbero,
sentimento nobre, bom , que tornasse etc. , os quaes figuram na Divina Come
recommendavel a sua memoria (fregia dia como outros tantos rigidos execu
la loro memoria ) ; por isso, já que em tores da divina Justiça, e por isso infal
vida não obedeceram ao generoso im liveis nos seus julgamentos : cui fallir
pulso de seguir a virtude, e o conheci non lesse ( Inf., xxix, 123 ) .
mento do bem : a seguir virtute e conos ( 34) Ch' io sapia quali sono, e qual
cença ( Inf., xxvi, 131 ), aqui são con costume Le fa parer di trapassar si
strangidos a obedecer a moscardos, pronte. Isto faz crer, que aquellas almas
vespas picantes ; e porque, finalmente, estendiam as mãos em acto de suppli
por sua indifferença, nunca tiveram la car ; Orantes... tendebantque manus, ri
grimas para o infortunio, nem compai pæ alterioris amore ( Eneid ., VI, 294) .
xão para o faminto, aqui alimentam com Costume aqui tem o valor de lei (di
as suas lagrimas, e sangue vilissimos, e legge), lei que foi feita, e foi imposta ás
renascentes vermes ! Quadro este hor almas, que partem d'este mundo ( Purg .,
roroso , e verdadeiro de uma conscien 1, 89 ) . Vi muitas manadas de almas nuas,
cia perennemente lacerada pelo senti e parecia que cada uma era sujeita á lei
mento da propria vileza, vilià, e da diversa, segundo os diversos actos, e
certeza de que padece uma pena equiva diversas attitudes, em que eu as via :
lente , apropriada, aos seus delictos : Per D'anime nude vidi molte gregge... E
quæ pecccaverit quis, per hæc et torque parea posta lor diversa legge ( Inf., xiv,
tur ( Sap ., XI, 17 ) . A esta divina norma 19 ).
atem - se Dante na designação dos cas ( 35 ) Fioco lume. Atravez do ar escuro,
COMMENTARIOS AO CANTO III 105

ou frouxamente illuminado. Pardacento, lavras ao verso seguinte, eu creio, que


isto é, entre escuro, e claro . a lição vulgar non qui per passare deve
( 36 ) Ed ecco verso noi venir per nave ser tida por verdadeira. Por isso que, si
Un vecchio bianco per antico pelo. Com se separasse qui do per passare, a ordem
razão observa Cesari, que é esta uma das palavras exigiria que se interpretas
das mais bellas, e animadas pinturas, se : Verrai a piaggia, non qui, isto é,
que a poesia póde produzir ! Virgilio non a questo luogo. Com tal interpreta
havia dito, falando d'este barqueiro: Cui
plurima mento Canities inculta jacet
haronte,
ção tornar-se - ía van a ameaça de Ca
visto como Dante já ahi estava .
(Eneid ., VI, 299 ). É pallido ! Em nenhum Por outro lado , é manifesto que o cruel
outro logar manifesta -se com mais evi barqueiro teve suspeita que Dante (o
dencia quanto o Poeta florentino sobre homem vivo ) pretendesse se metter na
puja o engenho, e estylo de seu Mestre ! barca junctamente com as almas con
Si se confronta aquillo da Eneida (vi, demnadas, para transportar- se á outra
284 ) , com o que o nosso Allighieri por margem. Por isso denuncia-lhe : « Attin
aqui vae descrevendo, teremos de que girás ( verrai) a praia opposta por outra
grandemente nos deliciarmos, e colher via, não por este rio (non per questo
abundante fructo . Quando a arte parece fiume), mas por outros portos (per altri
querer tentar as suas maiores provas, porti), não por este a que foste condu
todo aquelle , que lê, e ouve, não poderá zido, isto é, não sendo transportado por
deixar de dizer : « Aquelle, que viu a esta barca (non passando su questa nave );
verdade, não a viu melhor do que eu » : é necessario que mais leve barca te trans
Non vide me' di me chi vide il vero porte ( più leve legno convien che tiporti ).
( Purg ., XI, 68 ). Si esta tal barca, que Caronte ironica
( 37) Non isperate mai veder lo cielo. mente indica, deve ser mais leve, cum
Effectivamente aquelles, que entram pre admittir, que ella seja rebocada (pu
pela porta, cujo limiar a ninguem é ne xada ) por outra não tão ligeira (no
gado : cui sogliare a nessuno è negato. tanto leggiero ); do contrario não exis
( Inf., xiv, 87 ), devem perder toda a es tiria o termo de comparação. E onde
perança : lasciare ogni speranza , não só isto se vê, senão nas palavras non qui
de subir aos bemaventurados , como de per passare ? Mas Dante explica bem o
escapar á dor eterna : alla ' eterno dolore seu pensamento. Pelas crueis palavras
( Inf., III , 9). do infernal barqueiro, sente - se elle to
( 38 ) E tu che se' costi anima viva, mado de pavor, e Virgilio o tranquillisa,
Partiti da cotesti che son morti. Anima dizendo-lhe que por ali não passa ja
viva ( que ainda estás nel mortal corpo ), mais alma boa : quinci non passa mai
separa - te d'estes que não são homens, anima buona (v. 122 ), que foi tanto como
mas sombras : defunctaque corpora vita dizer-lhe : por este rio, (per questo fiu
(Eneid ,, vi, 305 ). Estes são, pois, ver me), e sobre aquella barca ( e su quella
dadeiros mortos : veri morti, porque barca ), jamais passa alma boa ; sendo
estam privados da verdadeira vida : della que, para ser n'ella transportado, é pre
vera vita, que é Deus, summa bemaven ciso que seja do numero d'aquelles, que
turança do entendimento : somma bea morrem no desagrado de Deus (che
tutidine dell'intelletto ( Conv., tr. 3, c. 13 ). muiono in ira di Dio) . Esta interpreta
( 39) ...Per altre vie, per altri porti, ção concorda com a de Buti, que diz :
Verrai a piaggia, non qui : per passare , « Tu attingirás facilmente a praia op
Più lieve legno convien che ti porti. Bem posta , por outros canaes, e por outros
que outros commentadores opinem que portos, que não este ; não passarás, pois,
se deve referir o qui a verrai, antes do nem por este rio, nem sobre esta barca ».
que per passare, pondo depois do qui Em summa, Caronte mentiu com o des
dous pontos, e reunindo as outras pa caramento de um demonio, que era ;
106 O INFERNO

elle sabia, que afora aquelle porto , não lhas, tudo parecia fogo : pintura mais
havia outro por onde Dante passasse ao energica, do que aquella de Virgilio :
outro lado, isto é, ao Inferno : portanto , Stant lumina flamma (Eneid ., vi, 98 ).
era palmar a mentira . ( 43 ) Ma quell' anime ch' eran lasse e
(40) Vuolsi così colà dove si puote Cið nude. Nuas da carne, só com corpo ar
che si vuole, e più non dimandare. Porque tificial, corpo fittizio (Purg., XXVI, 12 ),
a sua viagem por este reino tenebroso, è mudaram de côr ( cangiar colore ), e
fatale, isto é, providencial, determinada rangeram os dentes pela dor desespe
no céo (volato in cielo ), e a vontade rada ( e dibattero i denti, per disperato
divina não pode jamais soffrer restric dolore ). Como estas almas possam es
ções (e alla divina Voglia non puole il tar sujeitas a similhantes paixões, e
fine mai essere mor770). Voluntas Dei manifestal- as visivelmente, basta atten
omnipotentiæ est coa qualis ( Epist. reg. der que ellas, logo que abandonamo
et sen . ital., SO 4) . corpo mortal, revestem outro de forma
(41 ) Quinci fur quete le lanose gote aerea. D'ahi resulta , que ellas falam ,
Al nocchier della livida palude. Isto de e riem, e choram , e suspiram, segundo
nota, que elle, arrebatado de ira infer a diversidade dos affectos, configuran
nal, gritou a Dante : « Retira -te do meio do-se variamente (parlano, e rideno, e
d'estes, que são mortos» . Mas logo que fanno i lagrime e i sospiri, secondo la
Virgilio lhe fez a intimação em nome do diversità degli affetti, si configurano va
céo, as barbaçudas faces, inflammadas riamente). No Purgatorio, canto II, v. 33,
de colera, aquietaram -se, desenruga querendo Virgilio prevenir uma objec
ram - se : rabida ora quierunt ( Eneid., vi, ção de Dante, no sentido de lhe parecer
101 ). E ainda aqui o nosso Allighieri, estranho, que corpos intangiveis possam
allude aquell'outras palavras de seu Mes soffrer tormentos materiaes, disse -lhe :
tre : Tumida ex ira, tunc corda residunt « O Poder Omnipotente dispõe similhan
( VI, 408). Os corações inchados pela ira, tes corpos a padecer tormento de fome,
acalmam -se. Tudo isto demonstra como de sêde, de calor, e de frio, como viste
o nosso divino Poeta tinha bem presen no Inferno ; mas subtrahe ao nosso co
tes á memoria os conceitos já uma vez nhecimento o modo por que o faz; ma
expressos, e como nunca lhe fallecia a nifesta as suas obras, mas não a razão
arte de reproduzil -os em forma sempre das suas obras. A sofferir tormenti, e
variada, sempre graciosa , e sempre ac caldi e gieli Simili corpi la Virtù dis
commodada ás circumstancias ! A mão pone, Che come fa, non vuol ch' a noi
do verdadeiro artista, ainda mesmo si sveli ( Purg ., II, 31 , 33 ). Com duas
nas partes minimas, e fugazes do seu palavras havia dito antes Sancto Agos
lavor, faz resplandecer, e admirar o cu tinho : miris , sede veris modis. Por
nho da sua mestria. modos admiraveis, porém verdadeiros.
O Acheronte é chamado livida lagoa; Quem reflectir bem n'estas doutrinas,
porque da sua agua escura , forma - se que Dante tinha inconcussas na sua
uma lagoa, que se chama Estyge: da mente, poderá vencer muitos obstacu
sua onda bruna ( v. 118) , una palude fa los, que lhe difficultam a intelligencia
c ' ha nome Stige ( Inf., vii, 106 ) ; tene
do verdadeiro sentido da Divina Co.
media .
brosa palus Acheronte refuso (Eneid., vi,
76 ). Remis vada livida verrunt ( Ibidem , ( 44 ) Bestemmiavano Iddio, e i lor pa
320 ). renti. Não se pode imaginar mais cruel
(42 ) Che ’ntorno a gli occhi avea di desesperação ! Nascidas para a felicida
fiamme rote. Os olhos, que eram de de, e oppressas pelo eterno lucto, a que
braza : occhi di bragia ( v. 107 ), tinha foram condemnadas, essas infelizes blas
elle rodeado, circulado de chammas phemavam contra tudo que a natureza
(avea de fiamme rote). Olhos, sobrance tem de mais caro, e sagrado, tornan
COMMENTARIOS AO CANTO III 107

do- se, á guisa de Satanaz, adversarias Senhor em uma ligeira barquinha, den
de todo o bem ! tro da qual podem assentar-se a sua
(45 ) Poi si ritrasser tutte quante in vontade , commodamente! E mais de
sieme, todas são impellidas a reunir- se cem espiritos dentro se assentam. E piu
na funesta praia, pela Justiça Divina, que di centi spiriti antro sediero ( Purg., II,
as esporeia, che le sprona ( v. 125 ), dis 45 ) ; Sediero aqui está por sedieno, mu
para ndo em doloroso pranto, por causa dado o 1 em r ( por causa da rima ) .
da sua condemnação eterna ( il loro eter (47 ) Come d' autunno si levan le foglie
no danno ). O peccador, ao ser lançado L'una appresso dell'altra, infin che 'l
no Inferno,
parece com effejto gritar a
Deus : « D'ora em diante, nenhum temor
ramo Rende alla terra tutte le sue spo
glie. N'este passo notam os commenta
tenho mais de ti : 0 mai piu non ti temo » dores toda a similhança com aquelle de
( Par ., VII, 77 ). O principio da verda Virgilio : Quam multa in silvis autumni
deira sabedoria é o temor de Deus, as frigore primo lapsa cadunt folia (Eneid. ,
sim como a cessação d’este temor é o vi, 30g) . Concordo ; mas parece que o
principio de todo o mal, temporal , e discipulo não ficasse inferior ao seu
eterno . mestre ; visto como, alem do lapsa ca
(46 ) Caron dimonio, con occhi di bra dunt folia estar comprehendido na phra
gia , Loro accennando, tutte le raccoglie, se si levam le foglie, esta acrescenta
Batte col remo qualunque s'adagia. Que o despegar -se ( il dispeccarsi), que fa
entrem na barca, em a qual recebe zem as folhas una appresso dell' altra,
quantas que ahi se reunem de todos os e completa maravilhosamente a harmo
paizes : convegnon qui d' ogni paese ( v. nia do verso, pondo - se em evidencia a
123 ) . Sómente com um aceno de seus verdade do facto. Notou tambem Cesari,
3 olhos chammejantes, basta para reunil -as que, salvo il frigore primo de Virgilio,
na sua barca, em qualidade de ministro em que Dante lhe ficou somenos, em
da rigida Giustizia , que nos condemna tudo o mais se lhe avantajou em grande
dos converte em desejo ardente o mesmo distancia .
terror da pena, que lhes é imposta ( v. ( 48) Similemente il mal seme d'Adamo
126 ) . Huc omnis turba ad ripas effusa Gittansi di quel lito ad una ad una Per
i ruebat (Eneid ., vi, 304 ). cenni, com’augel per suo richiamo. Por
1 Batte col remo qualumque s' adagia. filhos de Adam ( il mal seme) enten

Fustiga com o remo toda aquella, que dem - se os perversos (i malnati), a plebe
procura assentar-se dentro da barca, das almas sobre todas as outras desgra
porém não que se demora em entrar çada : sovra tutte mal creata plebe ( Inf.,
n'ella , o que é muito differente . Ada XXXII, 13) . Creatura sobre todas infeliz:
giarsi aqui não significa entreter-se, é esta uma das syntheses, que se en
$ estar á mira ( stare a bada ); porque as contram frequentemente na linguagem
almas prescitas, em vez de tardas, mos do povo, e até nos primeiros escripto
tram-se pelo contrario promptas , pressu res classicos italianos. Giovanni Villani ,
>
rosas , impellidas de desejo ardente de escrevendo dos tempos de Romulo, con
transpor a livida lagoa: la livida palude clue : Potete vedere, come il commune
>
(v. 98, e 125 ). Condemnadas ás penas popolo erano ignoranti del vero Dio
eternas, começam logo a experimen ( 1 , 26 ) .
tal- as, desde que Caronte, reunindo-as na (49 ) Figliuol mio, disse il Maestro cor
funesta praia (riva malvagia ), as fustiga tese, Quelli che muoion nell'ira di Dio ,
com o remo, quando ellas procuram as Tutti convegnon qui d'ogni paese.Como
sentar - se nas tabuas da barca . Differen são affectuosas, e cheias de gentileza ,
temente d'estas desgraçadas, que entram estas palavras ! tanto mais depois da
no Acheronte , aquellas, que aproam á foz tacita reprehensão (v. 76). Chegados á
do Tibre , são recebidas pelo Anjo do triste margem do Acheronte ( trista ri
108 O INFERNO

viera ), eis que o Mestre, com o doce dextramente dá ao vocabulo viva a si.
nome de filho, chama o seu alumno, e gnificação de boa, traduzindo : nulli fas
benevolo ( cortese ), corresponde ao de casto sceleratum insistere limen (Eneid.,
sejo que este mostrou de saber a con vi, 565 ) . Na verdade, viver no homem,
dição d'aquellas almas, e que lei as tor é usar da razão, vivere nell'uomo é ra
nava tão pressurosas de transportar -se gione usar ( Conv ., tr. iv, c. 7 ) ; seguindo
á margem opposta do rio infernal . os caminhos da virtude, e da sciencia,
Aquelles que morrem na ira de Deus para que elle foi feito ( fatto ), e assim
são os incredulos, são os peccadores ser vivo, importa tanto como ser bom
obstinados na maldade, nos vicios, e ( buono ). Campre notar aqui que a alma
crimes detestados por Deus , como avver de Dante, quando viaja pelo Inferno
sario d'ogni male ( Inf., 11, 16) ; n'aquella para contemplar as penas dos miseros
praia funesta reunem -se os malvados condemnados, já é boa, isto é, livre do
de todos os paizes : tutti convegnon qui vicio ; mas para que a emenda se torne
d'ogni paese : quid vult concursus ad completa, é necessario adquirir ainda
amnem ? ( Eneid ., vi, 318). aquella sensivel, e efficaz experiencia.
( 50) E pronti sono a trapassar lo rio, ( 52 ) Finito questo, la buia campagna,
Chè la divina Giustizia li sprona, Si, Tremò si forte, che dello spavento La
che la tema si volge in disio . A gran mente di sudore ancor mi bagna. Assim ,
deza d'este conceito, sublimemente ex o espanto, que causou a Dante aquelle
presso, excede a mente humana ! É terremoto , é tal que, só em pensal -o, ex
uma das mais admiraveis, e tremendas cita - lhe o suor : que tão forte foi o abalo
concepções do Poeta theologo ! Os mi que soffreu ! ... salsusque per artus sudor
seros condemnados conhecem a pro cit. (Eneid., 11, 73 ). Já ficou dito n'outra
pria culpa, comprehendem a sua incom . parte, que mente está em vez de memo
portavel ignominia, sentem de antemão ria. Era venuta nella mente mia , La
o horrivel supplicio que os espera, e não gentil donna, diz o mesmo Dante na
obstante o desejam ardentemente , por Vita Nuova, e depois explica : Dico che
effeito do aguilhão com que a divina questa Donna già era venuta nella mia
Justiça os impelle ! Isto quer dizer, que memoria ( S XL ).
assim como durante a vida resistiram ( 53 ) La terra lagrimosa diede vento,
obstinadamente aos toques frequentes Che balenò una luce vermiglia, La qual
da graça , cedendo de preferencia ao es mi vinse ciascun sentimento E caddi,
timulo dos vicios, e dos appetites car come l'uom cui sonno piglia. « Tene
naes, da mesma sorte são arrastados ao brosa campina, onde o ar é sempre
castigo merecido com desejo tão ar negro : dove l'aria é sempre nera ( v. 29) ;
dente, qual aquelle que os arrastava ao tremeu tão fortemente, que a lembrança
peccado ! Oh, summa Sapiencia ! Quam do espanto, que tive, ainda me banha
admiravel é o magisterio, que exerces de suor (di sudor, ancor mi bagna )». Em
no Céo, na Terra, e no Inferno, e quam muitos logares da Divina Comedia, Dante
rectamente distribues o premio, e o exprime este effeito constante da natu
castigo ! reza ( Inf., XXXII, 70 ; XVII, 31 ; XVI, 10) .
Terra lagrimosa (ensopada de lagri
() Somma Sapienza ! Quanta è l'arte , mas, que ahi derramam as almas deses
Che mostri in Cielo, in terra , e nel mal mondo,
E quanto giusto tua virtù comparte ! peradas pela dor) : diede vento, fez saír
( Inf., xix, 10.)
de si um vento furioso ; porque , se não
fosse furioso, não produziria terremoto,
(51 ) Quinci non passa mai anima buo o qual é causado pelo vento, que na
11a . Caronte, quando gritou a Dante, terra se esconde, per vento, che in terra
chamou - o alma viva (anima viva), como si nasconde (Purg., xxi, 105) ; e o vento
jinda vivendo com corpo ; mas Virgilio se origina dos ardores oppostos (per gli
COMMENTARIOS AO CANTO JII 109

avversi ardori), da esphera do sol, ou ainda tinha os olhos annuviados pelo


dos vapores inflammados ( o do vapori involucro mortal, não poude suster-se
accessi), debaixo da terra pelo nascente diante d'este Ministro , que é d'aquelles
sulphur, ou por outra causa desconhe do Paraiso (di quei di Paradiso ), e se
cida : o per altra incognita ragione (Inf., inclina deslumbrado ; e isto, porque os
X, 77) . D'onde se vê , que nascem aquel sentimentos lhe permanecem vencidos
les terremotos, por causa dos quaes ir (vinti), ou ligados ( legati), como quem
rompem da terra exhalações ardentes, está possuido de somno. O somno, se
e seccas, que produzem o vento ; e este gundo Aristoteles, não é senão um liame
no contrastar (nel contrastare) com O de todos os sentidos : Somnus est vitæ
frio do ar, faz disparar em forma de otium , non operatio : est enim ligatio
relampago o fogo incendiado. Por isso omnium sensum externorum ( Arist.Mor.,
é que Allighieri, ao ver extincto todo o 1, 2, c. 1 ) . E eis porque Dante acrescenta ,
calor (ogni calore ), no Inferno, e sen que ao clarão d'aquelle relampago, elle
tindo ao mesmo tempo algum vento caiu como homem tomado de somno
( alquanto vento ), admirou -se, porque ( cui l'uom cui somno piglia ), e com
não sabia quem o podesse agitar : chi effeito adormeceu ( e s'addormentò disf
lo muovesse ( Inf., XXXIII, 105). Segundo fati ), porque cada um dos seus sentidos
a physica de Aristoteles, que o nosso lhe permaneceu ligado (ciascum senti
Poeta fizera sua propria ( Inf., XI, 101 ), mento gli rimase legato ). O Poeta quer
os ventos, bem que se revezem em lo nos fazer saber, que esta sua passagem
gares diversos, são de uma mesma na pelo Acheronte, o rio do mal ( il fiume
tureza (Met., 1, 2, C. 2 ). del male), se verificou em sonho ( in so
Todos estes signaes annunciavam a gno ), e por divina virtude ( e per divina
vinda de um enviado do Céo (Messo del virtù ); porque, especialmente em sonho,
Cielo ); verificando -se os mesmos effei a sua Beatriz lhe impetrava inspirações,
tos, que em outras occasiões o prece que o revocassem do caminho fallaz
dem, e o fazem conhecer manifesta ( della via fallace ), ao caminho da ver
mente ( Inf., ix, 64, 65 ). Mas Dante, que dade, e da salvação ( Purg ., xxx, 130, 133 ).
INTRODUCÇÃO AO CANTO IV

Despertado Dante do profundo somno, conheceu que se achava alem do Ache


ronte , ou na summidade do Limbo , primeira caverna do abysmo infernal. Esta ca
verna tem 250 milhas de fundura, e outras tantas de largura : comprehende o circulo,
eo poço. O poço tem de largura 210 milhas ; e o circulo, que o contorna, tem de lar
gura 17 milhas, e meia. A circumferencia da caverna gyra 770 milhas, e a do poço,
660. O circulo entre Acheronte, e o poço, não é plano ; mas pende para o poço, ou
para o fundo do Inferno, 5 milhas ; quero dizer, que quando os dous Poetas, des
cendo da borda, chegam ao poço, se acham 5 milhas mais baixos do que estavam,
na summidade da borda . Atravessam, pois, o circulo directamente, sem voltar nem
para a direita, nem para a esquerda.
N'este circulo estam as almas dos meninos christãos, mortos sem baptismo, e
por conseguinte tambem os filhos dos infieis ; assim como os infieis adultos ante
riores, e posteriores ao christianismo, que não conheceram, os quaes não observa
ram devidamente a lei natural : estam egualmente n’este circulo os meninos mortos
sem a circumcisão. Dante põe no Paraiso os infieis adultos, que viveram antes do
christianismo, porque, tendo observado devidamente a lei natural, suppóe, por uma
piedosa ficção poetica , que Deus lhe revelára o mysterio da Redempção, e assim
salva o principio catholico, de que ninguem se salva, senão pela graça de Christo
Redemptor. Mas não mette no Paraiso os adultos mortos depois do christianismo,
ainda que tenham perfeitamente observado a lei natural, e não tenham tido meio
de conhecer o christianismo. Esta doutrina não é inteiramente expressa pelo Poeta,
mas se deduz do seu silencio n’este canto, e muito mais das suas palavras no Pur
gatorio, e no Paraiso, onde teremos occasião opportuna de discutir esta doutrina
de modo a deixar sem sombra de duvida a sua orthodoxia.
CANTO IV

Dante, despertado por um forte trovão, acha -se na orla do primeiro Circulo, a que foi levado pela graça
superna: entra com Virgilio no Limbo , onde estam os meninos, que morrem sem o baptismo : conti
nuando, váo dar a um senhoril castello , dentro do qual estanceiam os sabios da antiguidade , que, embora
pagãos, tiveram vida virtuosa : d'estes, recebe Dante honroso acolhimento. Desce depois ao segundo
circulo.

Um horrido trovão , que acompanhou aquelle terremoto, e san


guineo relampago, quebrou-me o profundo somno, do qual despertei
tão azoinado, como pessoa, que acorda por violencia . (1 )
Mal me puz em pé, volvi tranquillamente os olhos em redondo,
fixando bem a vista , para conhecer o logar, onde eu estava . (2)
Verdade é, que me achei no principio do valle doloroso do Inferno,
onde vagueiam os tristes écos de infinitas lamentações. (3)
Tão profundo, e tenebroso era aquelle abysmo que , por mais que
eu fitasse os olhos na voragem, não via nada . (4)
Virgilio, todo pallido, começou a dizer-me : « Agora vamos descer
ao mundo cego : irei adiante, e tu atraz » . (5)
« E eu , que o vi de côr mudada , disse : « Mestre, como te seguirei,
si tu te espantas, quando em outros perigos sempre me animaste ? »
« Não temas , respondeu : a angustia dos condemnados, que penam
lá no fundo, pinta-me no rosto a impressão de piedade, que tu tra
duzes por medo. (6)
a Andemos mais depressa, que o caminho é longo » : (7) Dizendo isto,
entrou , e me fez entrar no primeiro circulo, que cinge o abysmo .
Alli, pelo que pude ouvir, não havia pranto ; mas suspiros tão
fortes, que faziam tremer aquella atmosphera eterna. (8)
E esses suspiros eram arrancados por dor interna do animo, não
provocada por tormento externo : dor, que alanceava muitas, e gran
des turbas de meninos , de mulheres, e de homens insignes . (9)
Disse-me o bom Mestre : « Não perguntas, que espiritos são aquel
les, que tu vês ? (10)
8
114 CANTO IV

« Agora, antes que prosigas , quero que saibas, que elles não pec
caram na sua vida : foram , pelo contrario , pessoas boas , e dignas ;
mas isto não basta ; porque não receberam o baptismo, que é a porta
da fé, que tu professas . ( 11 )
« E, pois que viveram , e morreram antes do Christianismo, não
adoraram devidamente a Deus ; e d’este numero sou eu . ( 12 )
« Por similhantes defeitos , e não por algum outro reato , fomos
excluidos do Paraiso ; tendo por castigo unico o desejo sem esperança .»
Grande dor partiu me o coração, quando taes palavras ouvi: (121
porque pude conhecer, que pessoas de muito valor, (14) jaziam n'a quelle
Limbo, suspensas entre o Céo , e o Inferno !
Eu , por querer fortalecer m
- e nos principios d'aquella fé, que vence
todo o erro, perguntei: « Dize -me, meu Mestre, dize m- e senhor : saíu já
d'este Limbo alguem , que ou por merito proprio, ou de outrem ,
subisse á bemaventurança ? » ( 15)
E elle , percebendo o sentido encoberto das minhas palavras, res
pondeu : « Tinha eu caído de fresco n'este abysmo, quando vi descer
aqui um Poderoso, coroado com o signal da victoria ; (16)
« Levou comsigo a alma de Adam , a de Abel seu filho , a de Noé ,
a de Moyses legislador, a do obediente patriarcha Abraham , a de
David rei , a de Jacob , com seu pae Isaac, e com seus irmãos, e a
de Rachel, por quem tantos trabalhos supportou ; ( 17) e outras muitas
almas, que fez bemaventuradas; e cumpre que saibas , que antes
d'estas, nenhuns espiritos humanos se salvaram .» ( 18)
O discurso de Virgilio não interrompia o nosso caminho ; conti
nuavamos, porém , a passar a seiva, a selva digo de espiritos compa
ctos .

Não nos haviamos afastado muito da entrada do Inferno, quando


vi um fogo , que allumiava aquelle hemispherio de trevas. ( 19)
Estavamos ainda um pouco distantes d'aquelle logar ; mas não tanto,
que eu não podesse discernir em parte , que gente honrada o habita
Va . (20)
" Por isso exclamei a Virgilio : «Ó tu, que honras toda sciencia, e
arte, dize-me: Quem são aquelles, que por sua grande qualidade hono
rifica tanto se distinguem da condição dos outros companheiros ? » (21 )
Respondeu : « A honrada fama, que os preconisa no teu mundo,
alcança-lhes no céo a graça de assim se avantajarem aos outros . » (22)
Emquanto Virgilio me falava, ouvi uma voz, que bradou : «Hon
rae o altissimo Poeta ! A sua sombra , que d'aqui havia saído, eil-a ,
que volta . ) ( 23)
Depois que a voz emmudeceu, vi quatro grandes sombras , que
vinham para nós : seu aspecto não era triste, nem alegre. (24)
CANTO IV 115

O bom Mestre ( 25 ) entrou a dizer me : « Vê lá aquelle, que de


espada em punho precede aos outros : é Homero, poeta soberano.
Aquell'outro , que vem atraz, é Horacio satyrico. (26) () terceiro é
Ovidio, e o ultimo é Lucano. (27)
« Por isso que cada um d'elles tem commum commigo o nome de
poeta, nome que uma voz unisona proclama , eis porque elles me
fazem esta honra, e fazem bem . (28 )
D'estarte vi reunir- se a bella escola d'aquelle Senhor do altissimo
canto , que vòa como aguia sobranceiro aos outros . (29)
Após uma breve practica entre si , voltando-se para mim , sauda
ram -me com ar gracioso, e por este acto de cortezia o meu Mestre
sorriu agradecido . (30)
Honra maior ainda me fizeram : aggregaram -me á sua companhia ,
ticando eu o sexto entre poetas tão insignes. (31 )
Depois nos dirigimos ao ponto , onde ardia aquelle fogo, discor
rendo sobre cousas , que é bello calar aqui , como era bello discutir
. n'aquella occasião. (32)
Chegámos ao pé de um nobre castello, cercado de sete altos mu
ros , e defendido em torno por um formoso regato . (33)
Vadeamol-o, como si estivera secco : com estes sabios entrei no
castello por sete portas, encontrando dentro um prado de louçan ver
dura .
Estavam lá pessoas , que moviam os olhos com lentidão, e siso :
os seus semblantes denunciavam grande auctoridade : nas raras vezes ,
que falavam , exprimiam- se com doçura. (34)
$ Retirando - nos todos a um dos lados , parámos n'um logar espa
çoso , claro , e alto, d'onde podiamos ver todos aquelles espiritos . (35)
Estando assim em pé no ameno prado, mostraram -me os espiri
tos magnos dos sabios, que, ao vel-os , de complacencia, e orgulho me
exaltei .
3 Vi Electra com muitos companheiros, entre os quaes conheci
Heitor, e Eneas: vi Cesar armado com seus olhos vulturinos . (36)
Vi Camilla, e Pentesilea d'outro lado ; e vi o rei latino assentado
> com Lavinia , sua filha.
L
Vi aquelle Bruto, que expulsou Tarquinio : vi Lucrecia, Julia,
Marcia, Cornelia , e vi separado de todos Saladino. (37)
Depois, levantando um pouco mais os olhos, vi Aristoteles, mestre
dos sabios , assentado no meio de uma familia de philosophos .
Todos o contemplavam com admiração, e respeito. (38) N'esse nu
mero vi Socrates, e Platão , que mais que todos os outros se lhe
approximavam no saber .
Vi Democrito , que ensina ser o mundo o resultado de uma for
116 CANTO IV

tuita combinação de átomos : vi Diogenes, Anaxagoras , Thales, Em


pedocles, Heraclito, e Zeno :
Vi Dioscoride , insigne observador da qualidade das cousas natu
raes : Orpheo, Tullio, Livio, e Seneca , o moralista :
Vi Euclides, geometra, e Ptolemeo, Hyppocrates, Avicena, Galeno,
e Averroes, o grande commentador.
Não me posso recordar de todos os sabios que vi, porque o largo
assumpto , que me proponho tractar, obriga-me a tanta presteza que ,
não raro , deixo de dizer muitas das cousas, que vi.
A companhia dos seis ficou reduzida a mim , e a Virgilio . Este
meu sabio Guia, por caminho diverso d'aquelle, que tomaram os ou
tros quatro sabios, levou -me da região serena para aquell'outra, que
treme convulsa, e chego a um sitio profundamente caliginoso .
:

COMMENTARIOS AO CANTO IV

( 1 ) Ruppemi l ' alto sonno nella testa recobra o uso tranquillo dos sentidos, o
Un greve tuono, sì ch ' io mi riscossi, primeiro movimento do Poeta foi averi
Come persona che per forza è desta. Ao guar a forma geral do logar, fixando
fuzilar da luz vermelha, lampejada da bem os olhos sobre todas as particula
terra lagrimosa, Allighieri foi tomado ridades d'elle, a fim de conhecel - o plena
de somno profundo. Agora, em conse mente . Admiravel pintor da natureza é
quencia do forte estrondo de infinitos este Dante !
clamores, que se ouvem no valle infernal, ( 3 ) Vero è chi in su la proda mi tro
nella valle inferna ( v 9 ), rompe -se-lhe o vai Della valle d'abisso dolorosa. Isto
somno , que o retinha vencido, (vinto), é, no hospicio doloroso ( ospizio di do
e d'elle desperta como excitado pela lore ), como aquelle, que mette em si
violencia. Cousa similhante póde succe todos os males do universo, che il mal
der por improvisa luz. Como se inter dell'universo tuttu insacca ( Inf., vii, 18), e
rompe o somno, quando de repente que, sendo o receptaculo de infinitos, e
nova luz bate nos olhos fechados : duros tormentos, faz tremer a atmos
phera eterna, quasi continuamente con
Come si frange il sonno , ove di butto vulsada pelo estampido de trovões.
Vuova luce percuote il viso chiuso . Dante ouvia de cima o confuso estrondo
( Purgatorio, xvi , 40.) dos gritos, prantos, e lamentações das
almas condemnadas, que estavam no
Mais de uma vez usa Dante d'esta fundo do abysmo, divididas, e ligadas
mesma expressão, que demonstra bem cada uma na sua caverna, segundo os
a natureza , segundo elle a concebêra , diversos peccados de que eram punidas.
de um quasi liame de cada um sentido, (4) Oscura, profond ’ era e nebulosa.
(d’um quasi legamento di ciascum senso ). Oscura per tenebre eterne (Inf., 1 , 87 ) ;
Por isto o despertar do somno é um profonda, porque aquelle valle, ou sumi
como desligar- se do somno : come uno douro, estendia - se até o centro da terra .
slegarsi dal sonno ( Purg ., xv, 119 ), rom E por isso era tão nebuloso, que por
pendo os ligames com que estavam pre mais que a vista se internasse no fundo,
sos os sentidos. furando a espessa , e escura atmosphera :
(2 ) E l'occhio riposato intorno mossi. forando l'aura grossa , e scura ( Inf., XXXI,
Depois de ter caído de profundo som 37 ), não distinguia cousa alguma. Por
no, levanta -se, respira com socego, e quanto os olhos vivos ( gli occhi vivi)
lança as vistas em redor para conhecer não podiam ir ao fundo, por causa da
o logar onde se acha. Tudo isto é na escuridão : ire al fondo per l'oscuro ( Inf.,
turalissimo. Apenas a mente estupefacta XXIV, 71 ) .
118 O INFERNO

( 5 ) Or discendiam quaggiù nel cieco congruencia nos affectos constitue o


mondo. Isto é, andarei adiante, e tu me que se chama bello da natureza .
seguirás, querendo assim te tornar mais ( 7 ) Andiam , chè la via lunga ne sospi
seguro. Esta explicação de Boccacio é gne. Phrase similhante, em diverso sen
de certo a verdadeira, visto como n'ou tido, encontra -se mais de uma vez na
tro logar ( Inf., XIII , 118 ) Virgilio, para Divina Comedia. Quando o homem pru
indicar que Dante devia ir atraz do Cen dente conhece, que uma obra que tem
tauro , e que elle iria atraz de ambos, de executar é grande, e o tempo é pouco,
The recorda : Este seja agora o teu pri procura adiantar- se o mais depressa que
meiro guia, e eu o segundo ( lo sarò póde.
primo e tu sarai secondo). Que foi o No primeiro circulo, que cinge o aby's
mesmo que lhe dizer : assim como até mo, quer dizer no primeiro circulo do
aqui andei a diante de ti, ti andai innanzi carcere tenebroso , nel primo cerchio del
(Purg. , XXIII, 118 ), agora andarei atraz carcere cieco. ( Purg , XXII, 102), que
de ti, para dar -te toda segurança a res fórma propriamente o Limbo do Inferno,
peito do novo guia (o Centauro ), a cuja ( 1X, 14) .
guarda nos submettemos. ( 8) Quivi, secondo che per ascoltare.
(6) L'angoscia delle genti. « A agonia , Os condemnados ao Limbo não soffriam
que arranca suspiros aquelles miseros, tormentos corporaes, e externos, mas só
que se revolvem n’este profundo valle, tormentos de espirito, e de coração.
espelha -me no rosto a compaixão que Suspiravam em vão por ver o alto Sol de
tu, enganado pela pallidez da minha cor, Justiça. Pairavam entre os bemaventu
crês que seja temor. Não ha em mim rados, e os condemnados. Por isso
apparencia de temor, mas de commise chamam - se suspensos (sospesi): Io era
ração, di pietà ( Vita Nuova, S XXXVII)» . fra color che son sospesi.
Para melhor apreciar os conceitos do (9 ) E ciò avvenia di duol senza mar
nosso sabio Poeta , será bom considerar, tiri. Turbe n'este logar está por schiere,
que a alma humana demonstra na face fileiras, esquadrões, etc. , nos quaes ap
o espelho da paixão, que a domina, si por parecem distinctas as almas relegadas
um grande esforço a não occulta (Conv., no Limbo , le anime relegate nel limbo
tr. 3, c. 8 ). Porque o rosto mostra a côr ( V., 94, 104 ) .
do coração, isto é, o estado do coração Os meninos aqui collocados são aquel
manifesta -se pelo exemplo do rosto : les parvulos innocentes, mordidos pelos
( Vita Nuova, SS 15 ) . E a piedade, como dentes da morte, antes que fossem isen
o tremor, revela-se pela pallidez da face, tos da humana culpa :
(al palor della faccia ), e especialmente parvoli innocenti,
na vista amortecida dos olhos, nella Da ' denti morsi della morte, arrante
vista smorta degli occhi ( Vita Nuova ; Che fosser dall' umana colpa esenti :
Purg ., ix, 35 ). N'este advertir de Dante (Purg ., vii , 30, 33.)
na pallidez da côr de Virgilio ha muita Viri (varões) indica a gente de muito
belleza ; porque faz suppor que elle an valor, di molto valore, que n’aquelle Lim
dasse muito attento sobre todos os ges bo estavam suspensos tambem ( v . 45 ) .
tos, e accidentes de seu Mestre ; o que Matres atque viri defunctaque corpora
era muito natural em um homem , que vita Magnanimûm heroum , pueri innu
se achava n'aquellas condições de terror ptaque puellæ ( Eneid ., vi, 305).
extremo . Dante porém intrepretou mal ( 10) Lo buon maestro a me: Tu non
a perturbação de Virgilio ; mas ainda dimandi, etc. Porque faz Virgilio a Dante
n'isto ha belleza ; achando -se elle do esta pergunta ? Para manifestar- lhe que
minado de medo n'aquella occasião, era as suas perguntas lhe são agradaveis,
naturalissimo suppor seu Mestre domi quando são feitas a proposito, como
nado d'este mesmo sentimento . Esta esta. Dante precisava que Virgilio lhe
COMMENTARIOS AO CANTO IV 119

Jesse tal segurança, depois da expro pagão para esclarecel -o sobre a certeza
bração, que lhe havia feito anteriormen da sua crença ? Respondo por partes.
te, por causa de uma pergunta intempes Dante, que em theologia era discipulo
tiva, que The fizera ; exprobração, que o fiel do excelso doutor Sancto Thomaz
envergonhou por modo, que nada mais de Aquino, sabia , que desde que o ho
The perguntou até chegarem ao Ache mem está firme nos principios da fé
ronte (Inf., 111, 70 ). por auctoridade divina, certamente não
( 11 ) Ch'einon peccaro .Mas não conhe diminue, antes augmenta, o merito da
ceram as tres virtudes sobrenaturaes, que sua crença, quando, para manter- se mais
fazem o homem sancto : fé, esperança , ligado a ella, procura aliunde outras ra
e caridade : conheceram as virtudes na zões, e congruencias, que mais a corro
turaes, não commetteram peccados po borem, e lh'a tornem mais agradavel,
sitivos; viveram sem vicio ; mas isto não sem que aliás a sua convicção deixasse
era bastante ; não receberam o baptis de ser inconcussa, independente d'essas
mo, non ebber battesmo, porta por onde razões, e congruencias. An est licitum et
se entra na fé, que tu professas ( Che è conveniens quærere rationes, et alia tes
porta della fede che tu credi). timonia ad fidei robur præter divinam
( 12 ) E se furon dinanzi al Cristia revelationem ? Respondeo: quando quis
nesmo, Non adorar debitamente Dio. En promptus est fidei credere propter divi
tenda -se bem : os que estão n'este Limbo nam auctoritatem , et propter eam credit,
não são réos da peccado actual, mas só sed ex hoc quod afficitur fidei, quærit
do original. Não creram no Messias alias rationes, et congruentias, sine qui
promettido, não tiveram a fé necessaria bus tamen crederet, sed eas quærit ut
para conhecel-o, nem para serem co magis roboretur in fide, et sibi in ea
nhecidos por elle : Fidem namque ab complaceat, non solum non minuit fidei
omnipotente Deo cognoscimur (S. Greg. meritum , imo auget.
Mag. Hom ., 31 , 1 ). Alem d'esta allegação ( que de per si
( 13 ) Gran duol mi prese al cor quando dispensa todas as outras) , offereço ainda
lo intesi. As paixões, os affectos referem mais duas em justificação do nosso
se todos ao coração como a sua propria Poeta ; 1.", que Dante não tinha nenhu
séde, e onde demora, reside o espirito ma duvida de que Jesus Christo hou
da vida, lo spirito della vita ( Vita vesse descido ao Limbo, para libertar as
Nuova, So u ). almas, que lá estavam, não aquellas de
( 14) Gente di molto valore. Toma- se quem Virgilio aqui fala, mas as dos
aqui valor como poder da natureza, ou Sanctos Padres, que morreram na ver
como bondade por ella dada ... mediante dadeira fé do Messias promettido ; mas,
a qual o homem torna-se verdadeira como apoz o sentido litteral vem o alle
mente gentil (Conv ., tr. 4 , C. 2 ) . gorico, Dante perguntou, não a Virgilio
( 15 ) Dimmi, Maestro mio , dimmi Si pagão, mas a Virgilio representante da
gnore ...Di quella fede che vince ogni recta razão , de que a fé catholica se
errore. Uscinne mai alcuno, o per suo serve para demonstrar seus motivos de
merto O per altrui, che poi fosse beato ? credibilidade, e tão certo estava d'isso,
Move -se grande questão a respeito que formulou a duvida em forma de
d'este passo da Divina Comedia , que pergunta : 2.', que esta pergunta era sug
de certo não é facil em ser deslinda gestiva ; isto é, por ella quiz certificar -se
do, sem maduro reflectir. Como em, da veracidade de Virgilio, a fim de que
verdade, justificar Dante de querer podesse viver tranquillo a respeito de
adquirir certeza da verdadeira fé (fede tudo o mais que d'ali por diante lhe
verace ), por outras razões, e testemu houvesse de dizer. Não cessarei de notar
nhos, que não os da divina revelação ? que no Sacro Poema é tudo disposto
Como é que elle christão recorre a um com conta, peso , e medida .
120 O INFERNO

Di quella fede che vince ogni errore. nismo (como se manifesta do seu falar
A fé que vence, ou triumpha vencedora precedente ), visto como sabia que de
de todo erro, é a fé verdadeira, la fede pois da instituição do Christianismo era
verace (Par., xiv, 41 ) : visto como, illu necessario o baptismo, para alcançar -se
minada pela summa luz do céo, conven a salvação eterna : porque não havia de
ce com plena auctoridade, não podendo pronunciar o nome de Christo, institui
mentir, nem desviar - se do caminho da dor do Christianismo, e do baptismo ?
verdade, que é Deus, de quem a mesma Observando eu que não sómente
fé recebe a vida ( Conv., tr. 4, c. 15 ; Purg ., n'este logar, como em nenhum outro
VII, 40 ) . do Inferno, Dante jamais faz nomear
L'scinne mai alcuno, o per suo merlo por alguem o nome de Christo, creio
O per altrui, che poi fosse beato ? A ex que o motivo d'este silencio é aquelle
plicação d'estes dous versos já foi pre Sanctum et terribile, que do nome de
venida anteriormente. Completal-a -hei Christo predisse David (Ps., 110, 9 ), já
nos seguintes versos. Diz Dante que Vir para não profanar a sanctidade de tão
gilio comprehendendo o sentido occulto, augusto nome n'aquelle infame calabou
encoberto , da sua pergunta (E quei ço , já para evitar o espanto que devia
che’ntese il mio parlar coverto ). lá produzir. Lombardi.
( 16 ) Rispose: io era nuovo in questo sta Em summa, o Poeta christão absteve
to , Quindo ci vidi venire un Possente Con se de pronunciar o sacrosancto nome
segno di vittoria incoronato. Este pode . de Christo n'um abysmo, onde não ha
roso (Possente) que Virgilio viu descer mais redempção, nem amor, la dove non
ao Limbo era Christo, o summo Poder ha piu redenzione, e amore, l ' obediente
que abriu os caminhos entre o ceo, e a Abraam patriarca. É obvio que Dante
terra la somma possanza ch’aprile strade allude aqui á obediencia exemplar, com
tra'l cielo e la terra (Par., XXIII, 38 ) co que Abraham se dispoz a sacrificar seu
roado do esplendor de alta victoria, que filho Isaac, desde o momento , em que
alcançou com ambas mãos pregadas na ouviu o preceito do Senhor. Admiro que
cruz , incoronato con segno dell'alta vitto o illustre Tomaseo, e outros apropriem
ria che s'acquistò con l'una e l'altra á Moyses o epitheto obediente contra o
palma (Par ., 1x, 121 ). Sim : Jesus Christo, manifesto conceito do Poeta, quando
triumphante da morte , e de Lucifer, diz :
desceu ao Limbo para arrancar a gran Di Moisé legista, e obediente
Abraam patriarca.
de preza (as almas dos sanctos Padres)
ao poder d'este nosso inimigo, nostro Israel con suo Padre, e co'suoi nati.
nemico, que as tinha n’aquelle circulo su Jacob combateu uma noite inteira com
perno, in cercchio superno ( Inf., XII, 33 ). um Anjo, a quem por fim venceu ;
Segundo Boccacio, somente quarenta, sendo então abençoado e chamado
e oito annos se haviam passado depois Israel, isto é, principe de Deus (B.
da morte de Virgilio até a paixão de Latini, Thes., 1 , 1 , c. 41 ) . Nequaquam
Christo, o que faz suppor que Virgilio Iacob appellabitur nomen tuum , sed
morrera quinze annos antes da vinda do Israel : quoniam , si contra Deum fortis
Redemptor. fuisses, quanto magis contra homines !
Suscita -se aqui outra duvida : Qual a (Gen., XXXII, 28) .
razão do falar encoberto de Dante ? ( 17 ) E con Rachele, per cui tanto fe:
Porque occulta elle o nome de Christo tendo Jacob servido per sete annos
na pergunta , assim como Virgilio na res a Labam , a fim de que podesse obiel-a
posta ? Porventura por ser Virgilio gen por esposa (Gen., xxix, 18, 27 ).
tio ? Assim o entendem Landino, e Da Mencionando os Justos da primeira
niello. Mas, si não obstante ser gentio, edade, prima età, Allighieri indica os da
sabia Virgilio os principios do Christia segunda edade começada de Noé, e de .
COMMENTARIOS AO CANTO IV I 2 I

pois aos outros que se comprehendem cousa, senão que aquelle fogo , ou lume
na terceira edade, que durou de Abraham vencia ( vincea) as trevas d'aquelle logar
até David , que principiou a quarta eda rotundo , alumiando -as na metade do
de do seculo , che principiò la quarta dito logar ; porque, sendo o hemisphe
etade del secolo ( do mundo ). ( B. Lat., rio a metade de uma esphera, o lume ,
Thes., 1 , 1 , C. 40 ) . que alumia uma metade d'esta, por
De tudo isto transparece o admiravel maior que seja, não pode ser visto da
engenho do nosso Poeta, o qual, queren outra metade : querendo o Poeta de
do indicar todos os justos das primeiras monstrar que d’este lume não participa
edades do mundo, mostrou o mais fino vam aquell'outras almas, que não se ti
tacto em restringir- se somente aquelles, nham distinguido no mundo por grandes
que maior lustre deram á sua edade. cousas. As trevas pois illuminadas, for
Assim, em relação a quinta edade co mando uma meia esphera, mezza sfera ,
meçada da transmigração de Babylonia circumdavam o nobre Castello, nobile
até o nascimento de Christo, contenta Castello, d'onde aquelle logo vivo, e
se em recordar muitos homens famosos, vencedor, vivo e vincente, em forma de
singularmente entre os philosophos, como luz, lumiera ; era bastante para subjugal
Platão, e Aristoteles, que n’aquella edade as, dissipando -as. Por aquelle hemisphe
viveram ( Thes., iv) . Vê-se que ainda rio de trevas o Poeta não quiz fazer en
mesmo n’aquillo, em que a arte parece tender todo o escuro Inferno, tutto il
menos cabida, e a poesia offerecer menos buio Inferno, mas tão somente a parte
bellezas, o soberano genio de Dante sabe tenebrosa, parte tenebrosa , que fazia
vasar a sua profunda doutrina em nobres contraste com a luz do Castello, e que
conceitos, e em não vulgares ensina em torno d'este parecia disssipar-se . Não
mentos . entra em duvida que n'este logar Dante
( 18) E vo'che sappi che, dinanzi ad imitou aquillo de Virgilio : Noctem flam
essi, Sipiriti umani non eran salvati. Faz mis fanalia vincunt. (Eneid ., 1 , 700 ).
nos o Poeta saber, que nenhum espirito Allegoricamente esta luz, que dissipava
humano se salvou, antes das almas dos as trevas, significa a sabedoria d'aquelles
sanctos Patriarchas, que Jesus Christo sabios, que afugenta de redor delles as
fez bemaventuradas (fecelı beati), foram trevas da ignorancia do mundo, verda
salvos, isto é, constituidos em plena visão deiro Inferno das almas. Bianchi.
de Deus, nella visione de Dio (Par., XXVIII, Vincia está por vincea, como ridia e
109), os Anjos creados em estado de conoscia foram empregados em logar
innocencia, e que se conservaram fieis de rideva, e conosceva no soneto : lo mè
a Deus (fedele a Dio), quando outros sentii svegliar dentro allo cuore ( Vita
muitos foram arrastados pela soberbia Nuova, S 24 ) .
de Lucifer á eterna perdição. Angeli ( 20 ) Di lungi v'eravamo ancora un
beati non fuerunt usque ad confirmatio poco Mas non sì ch ' io non discernessi
nem ... nam angelus indigebat gratia in parte, Che orrevol gente possedea
qua ad diligendum Deum perfecte et obe quel loco . Estavamos ainda pouco distan
diendum adjuvaretur (Petr.Lomb., Sent., te d'aquelle fogo ( da quel fuoco) mas não
liv . 2, d. 5, f.). Vê-se que Lucifer, e seus tão distantes (lontani) que eu em parte
sequazes, por não terem esperado maior não distinguisse que gente respeitavel
luz, maggior lume, que lhes devia resul (onorevole) occupava aquelle luminoso
tar da confirmação da graça , e tornal - os logar, quel luminoso luogo. Isto confirma
perfeitos, caíram no Inferno ( Par., XIX, o que o Poeta disse n'outra parte ( Inf.,
48 ). XXIX, 56 ) que as almas occupam no In
( 19) ... io vidi um fuoco Ch' emispe ferno o logar, que lhes é destinado pela
rio di tenebre vincia. Adverte Boccacio infallivel Justiça, dall' infallibil gius
que Dante aqui não quer dizer outra tizia.
I 22 O INFERNO

( 21 ) O tu, che onori ogni Scienza ed virtus, sed ipsa virtutem . (S. Ag., de
arte, Questi chi son c' hanno cotanta or Civit. Dei, 15 ).
ranza, Che dal modo degli altri li dipar ( 23 ) Intanto voce fu per me udita :
te ? Dante sabia que seu Mestre empre Onorate l'altissimo Poeta: L'ombra sua
gára todas as sciencias, e artes nos torna, ch'era dipartita. Eis a sua som
seus poemas , nos quaes mostrou quanto bra , que havia partido, (era diparitita)
podia a lingua dos Latinos, cuja gloria torna agora a occupar o seu logar
foi : dove mostrò quanto poteva la lingua ( Purg ., XXII , 101 ). É claro que allude
de ' Latini, di cui egli fu gloria ( Purg ., á ausencia de Virgilio, quando Beatriz
VII, 16 ). Como Poeta, Virgilio foi honra, o mandou soccorrer a Dante . Esta voz,
e lustre dos outros poetas : degli altri que aquelles poetas proferiram una
poeti onore, e lume ( Inf., 1 , 82 ) e auctor nimes, é muito notavel ; porque mos
da alta tragedia, dell'alta tragedia ( Inf., tra que Dante, não só prestava hon
xx, 113 ) ; o sabio Mantuano devia , alem rosa homenagem a Virgilio, come la
do valoroso engenho, ter o habito das nostra maggior Musa (Par., XVI, 15 ),
sciencias ( l'abito delle scienze), e'um lon mas tambem o fazia digno de admira
go exercicio da arte . Por todos estes ção d'aquelles homens, que lhe pareciam
dotes logrou ser um d'aquelles solemnes insignes, e competentes no campo da
vates, que elle celebra na sua Eneida ( VI, poesia ! Fez mais : com o mais nobre
062 ). No vulgar Eloquio , entre outras proposito imaginou, que o mesmo Ho.
cousas, que diz em gloria de Virgilio, es mero , Poeta soberano, lhe rendesse essa
creve : Iste, quem tragicum appellamus, honra , e que n'isso procedia bem ! Assim
summus videtur stilorum , et illa quæ provou que, si entre a turba dosmedio
summe canenda diximus, isto solo sunt cres surge sempre , e domina a inveja
stilo canenda : videlicet, Salus, Amor, ( l'invidia ), o homem Grande honra a
Virtus, etc. Tal a Dante se antolhava propria arte, e por ella honra aquelles,
Virgilio, o qual com alta tragedia, e que a cultivam com perfeição, recom
com toda a excellencia de doutrina, e mendando - os á estima, e respeito dos
outros .
arte, cantou a probidade das armas :
cantare la probità dell' armi ( Inf., xx, (24) Poichè la voce fu restata e queta,
113 ). Virgilius nullius disciplince c.r Vidi quattro grand ' ombre a noi venire :
pers ... disciplinarum omnium peritis Sembianza avevan nè trista nè lieta. Sem
simus (Macrobio, De Somnio Scipionis, blante nem triste , nem alegre , como con
1 , 1. pag. 18, 37 ). vinha a sabiosque eram (v. 110) , os quaes
( 22 ) ... L'onrata nominanza, Che di nem com as cousas prosperas se ale
lor suona su nella tua vita, Grazia gram demasiado, nem com as adversas
acquista nel Ciel che sì gli avanza . A se inquietam excessivamente. Aqui o
gloria, que ainda os acompanha no teu nosso Poeta sem duvida applica aquelle
mundo (nella tua vita) lhes concilia a dito de Seneca a respeito de Socrates :
graça no Céo, que por isso se lhes dá Virtutem sic coluit, ut nunquam vultus
preferencia, separando -os d'aquelles, ejus letitiæ blanda vanitas exhilaret, nec
que jazem na profunda noite, ou na tristitia ulla contraheret (Senec., De
Sent. orat.).
plena escuridão (o nel pien buio &
Inferno ), devendo a gloria ser sectaria ( 25 ) Lo buon Maestro. Assim o chama
da virtude, e não a virtude sectaria Dante ; porque benevolo (cortese ), e
da gloria ; podendo finalmente tornar prompto se mostrou em satisfazel- o no
se agradavel a Deus, e merecer por isso tacito desejo de saber quem fossem
alguma recompensa ; porque Deus, se aquellas grandes Sombras ( grandi Om
não deixa sem punição o crime, não bre ), e por que depois viu reconhecido
deixa tambem sem premio a virtude: exaltar Homero sobre todos os outros
Gloriam et honorem non debet sequi poetas. Não podendo ser sabio quem não
COMMENTARIOS AO CANTO IV 123

é bom (Conv., tr. t, c. 27) era de raz.io, nella sua grandeza) mostrou - se a Dante
que fosse dado a Homero o titulo de bom aquella philosophia , que foi la gentile
( Vita Nuova, S25). Este apresenta -se evirtuosissima donna da sua mente . Bem
com a espada em punho (la spada in cabida é aqui a sentença de Varrão :
mano ) para significar as armas (le armi), Hoc uno modo sapiens se laudat, quæ in
que elle celebrou com o seu altissimo ipso apparent bonna , in aliis prædicando.
Canto. Cum spata, interpreta Pedro Saturem - se bem d'estes generosos en
Dante, ad significandum quod de præliis sinos os animos mesquinhos , a quem
multis Græcorun dixit. Unde Horatius : o merito alheio produz não só inveja,
Res gestæ regumque ducumque, et tristia como angustiosas vigilias! Si não são
bella, quo scribi possent numero, mons Cains no fratricidio, são na inveja ! É por
travit Homerus. isso que Virgilio disse que aquelles, que
( 26) L'altro è Orazio satiro che viene. o honravam com o titulo de altissimo
Com tal qualificação preferiu Allighieri poeta , faziam bem , porque se mostra
recordar o lyrico de Venuza, que por vam limpos da lepra da inveja .
meio de satyras insignes corrigiu os (29) Cosi vidi adunar la bella scuola.
costumes, tornando - se, como Virgilio, e Di quel signor dell'altissimo canto , Che
Estacio, um dos grandes civilisadores do sovra gli altri com ' aquila vola . A bella
mundo (Purg. , xxiv, 98 ) . Poeta satyrico escola , na qual Virgilio occupa o seu
é chamado por antonomasia Juvenal logar (Purg., XXII ), d'aquelle senhor
( Conv., tr. 4, c. 1 ) a quem parece Dante (Homero ), que precede os tres como
disputar aqui o primado da satyra. soberano (sovrano). É este o poeta a
( 27) Ovidio è il terzo, e l'ultimo è Lu quem se deve o altissimo canto, e que ,
cano. Comquanto não adhira sem res qual aguia, võa mais alto que todos os
trições á admiração de Dante por estes poetas . Summo engenho, summa arte,
dous Poetas, sobretudo do primeiro, e summa doutrina o sublimaram a tão
por causa do seu erotismo, devo todavia eminente gráo de excellencia ; e havel- o
acatar no discipulo a grata, e affectuosa egualado é a singular gloria de Virgilio !
menção que d'elles faz, de cujas obras ( 30) Da ch ' ebber ragionato insieme
soube aproveitar-se com attenta discri alquanto, Volsersi a me con salutevol
cão. cenno : E il mio Maestro sorrise di
( 28 ) Perocchè ciascun meco si conviene tanto . « Sorriu meu mestre por tão affe
Nel nome che sono la voce sola, Fanno ctuosa demonstração para commigo. »
mi onore, e di ciò fanno bene. Já notei Isto indica que Virgilio lhes houvesse
que só entre as almas mediocres a pari manifestado o amor , e veneração, em
dade de profissão gera a inveja, e o que tinha o seu Discipulo , assim como
ciume, enquanto que os verdadeiros sa o estudo com que se esforçava por assi
bios, e grandes (savi e grandi), não só se gnalar -se na poesia . Esta declaração mo
não amofinam com o merito dos outros, veu aquelles grandes genios a olhal- o
como pelo contrario os louvam , hon com benevolencia, visto como o Amor
rando n'elles a propria arte, e a si mes inflammado pela virtude inflamma sem
mos. A paridade de profissão solo nè vizio pre outro , comtanto que a sua chamma
si è cagione d'invidia , e de mal giudizio reverbere no exterior.
(Conv ., tr. c. 4, c. 11 ). Nenhuma gran
deza pode o homem ter por maior, do que Amore Acceso di virtù sempre altro cocese ,
o seu virtuoso obrar , que é a sua pro Pur che la fiamma sua paresse fuore.
pria bondade, mediante a qual as gran ( Purg ., XXII , 10, 12. )
dezas das verdadeiras honras, da verda Uma similhante affeição concebeu
deira, e clara fama, se adquirem , e con Virgilio para com Estacio, quando o
Servam . (Conv., tr. 1 , c . 9 ). Sabia, e cor informou Juvenal que este lhe tinha
tez na sua grandeza ( saggia e cortese grande amor ( Purg ., mv ). E o sabio
124 O INFERNO

Mantuano sorriu por aquella affectuosa ravam a Dante, que os escutava , talento
demonstração, não só de prazer proprio, de poetas: Ch’a poetar mi davano in
como pela surpreza que ella havia de telletto (Purg ., XXII, 128 ).
produzir no seu Discipulo , visto como ( 33 ) Venimmo appiè d'un nobile cas
então ignorava a causa. Cum causam tello. Sette volte cerchiato d'alte mura ,
cognoscimus (alicujus rei) eos, qui sunt Difeso intorno d'un bel fiumicello. Si
in admiratione restantes, cum quodam quizermos attender ao modo commum
derisione despicimus, (Mon., 12, c . 1 ) . de falar, pela palavra nobilità entende -se
( 31 ) E più d'onore ancora assai mi perfeição da propria natureza em cada
fenno, Ch'essi mifecer della loro schie uma das partes do seu todo. Isto se en
ra , Sì ch'io fui sesto tra cotanto senno . tende quer se tracte da natureza animada,
E d'isto podemos argumentar como quer da inanimada. Assim chamâmos
Dante, pelo longo estudo , e grande amor nobile pietra,nobile pianta, nobile cavallo,
votado a Virgilio, aspirasse, e obtivesse, nobile falcone (Conv., tr. 4 , c. 16 ). Esta
a honra de ser aggregado á bella escola. perfeição indica Aristoteles na sua Phy
Aqui não ha louvor, que não venha da sica quando diz : « Cada cousa é maxi
gratidão, e da reverencia ; e bastariam mamente perfeita quando attinge a vir
estes poucos versos para dar materia tude propria. Por conseguinte, voltando
a discorrer - se utilmente sobre as gen ao nosso proposito, nobile castello quer
tilezas reciprocas, que devem haver dizer perfeito em todas as suas partes
entre os sabios, e sobre o modo por ( perfetto in tutte sue parti ), qual convem
que cumpre respeitar os homens gran á nobilissima gente, que n'elle habita .
des . Dante, que fugia de se louvar Mas que significa este castello na in
a si mesmo, era constrangido pela ne . tenção de Dante ? Para attingir a ver.
cessidade a registrar o proprio nome dade occulta sob tão bella mentira
(Conv., tr. c. 2 ; Purg. xxx , 63 ) ; mas si ( sotto sì bella menzogna ) cumpre obser
é obrigado a confessar algum merito var, que o castello, alem de ser cercado
proprio, é para attribuil - o todo aquelles sete vezes de altos muros, reflecte ex
sabios, dos quaes recebeu tanta honra. plendor tão vivo, que vence as trevas
E este seu acto de digna modestia pôde em torno , e encerra dentro de si os
antecipar lhe a doçura d'aquella gloria, espiritos magnos, assentados sobre um
que o juizo das seculos lhe tem confir prado de fresca verdura (su d’un prato
mado, e que nenhuma nação civilisada di fresca verdura ).'Quem considera bem
lhe poderá jamais contestar. tudo isto, não hesita em convencer -se de
( 32 ) Così n'andammo infiso alla lu que o notavel castello deve symbolisar
miera, Parlando cose, che il tacere è bello, l'umana Nobilità e Probità, que Dante
Si com'era il parlar colà dov'era . Aqui nos descreve no Convito, dizendo por
somos admoestados de que , quando o exemplo : Nobilitate dovunque è virtù ;
Sabio deve falar ou calar, considera pri e come nel cielo molte e diverse stelle
meiro o tempo, e o logar opportuno ( Inf., rilucuno ( reluzem ) riluce in essa, na no
XXVI, 77 ); porque um , e outro acto adqui breza ogni virtu intellettuale, e mortale,
re belleza , e louvor. Salomão disse : Ha e anco le medesime corporali bontadi.
tempo de falar, e tempo de calar (Conv., (Conv ., tr. 4 , c. 6 ). Portanto nobres
tr, 4, c. 2 ) . (nobili) são propriamente aquelles sipi
Qual fosse o assumpto sobre que riti magni, que Dante colloca dentro do
discorriam aquelles poetas, Dante não luminoso castello.
nos diz ; mas podemos bem conjecturar Os sete altos muros symbolisam as tres
que a practica rolasse sobre a sua arte. intellectuaes virtudes (tre intellettuali
Temos d'isto a prova em Virgilio, e virtù ) bem como as quatro virtudes car
Estacio, que, enquanto caminhavam deaes (le quattro virtù cardinali), a que
sós, discorriam sobre cousas, que inspi se reduzem todas as virtudes moraes,
COMMENTARIOS AO CANTO IV 125

che sono i frutti della nobilità umana pendo como o Poeta christão, sabendo
( Conv., tr. 4, c. 16). que aquelles nobres espiritos ( ornados
Quanto ao bello ribeiro (al bel fumi de perfeita virtude natural, mas privados
cello) que defende a humana nobreza) da fé necessaria á salvação eterna), não
symbolisa sem duvida o amor , ou o eram dignos da bemaventurança celeste,
estudo com que se deve adquirir a sabe ideou representar-no -los em uma habi
doria, e a virtude, em que consiste a tação amena, si não bordada de delicias,
nobreza dos homens : dove la nobilità ao menos exempta de martyrio , e escla
degli uomini consiste (Conv. , tr. s, c. 12 ) . recida por uma luz jucunda avivadôra
Transpor a pé enxuto aquelle ribeiro do verde esmalte da natureza ! Isto é o
era pois causa facil aos magnos espiritos, que se chama talento creador !
e a Dante, porque em todos elles era ( 34) Genti v ’ eran con ochi tardi e
já radicado o amor da sabedoria, recto gravi, Di grande autorità ne ' lor sem
caminho que conduz alla verace nobilità, bianti: Parlavan rado, con voci soavi.
que distingue, e exalta o homem. O espelho da mente é o rosto, e sin
N'este castello da nobreza diz Alli gularmente os olhos; nos quaes a alma
ghieri, que entrou com os sabios por se mostra tão manifesta que, quem os
sete portas. Estas portas são o symbolo observa com attenção pode conhecer a
das sete sciencias do trivio, e do quatri paixão, que là vai por dentro (Conv., tr.
vio, isto é, grammatica , dialetica, rhe 3, c. 8). Dante tinha presentes á memo
torica, arithmetica , musica , geometria, ria aquelles dous oraculos da Escriptura :
e astrologia, que são membra di Sapien Sapientia hominis lucet in vultu ejus
za, e servem de guia, e auxilio para (Ecclesiastes, vill, 1 ). Ex visu cognosci
adquirir as outras sciencias, a que me tur vir, et ab occursu faciei cognoscitur
lhor se apropria o nome da virtuosissima sensatus ( Ecclesiastes, xix, 25). Gravi
philosophia ( Conv ., tr. 4, C. 27 ). significa o mesmo que digno, honesto.
Todos aquelles grandes, e sabios as De grande auctoridade. A muita au
sentam-se em um prado, sempre florido ctoridade, que torna os sabios dignissi
e ameno ( sempre di fresca verdura ), mos de fé, e de obediencia (Conv ., tr. 4,
para denotar a sua honrada fama (ono c . 8).
rata nominanza ), que dura perenne em Falavam raras vezes, exprimindo- se
sua plena louçania, como premio da com doçura. O sabio, considerando que
virtude : Honor est præmium virtutis suas palavras devem ser bem recebidas,
(Mon., 1 , 2, c. 3 ). e fructiferas, usam d'ellas com discri
Concluamos portanto, que os adornos ção, e opportunamente ; porque em
que aformoseiam o castello, a varia con todas as nossas operações devemos so
dição d'aquelles, que o habitam, as sete bretudo attender ao modo de falar ( Conv .,
muralhas, que o circumdam, o ribeiro tr. 4, C. 2 ). E para que melhor, e mais
que o defende, e o esplendor que d'ella seguro effeito produzam as palavras,
irradia, concorrem para fazermos co devem ser proferidas com voz suave, e
nhecer n'elle o symbolo da humana no doce a quem as ouve, e d'est'arte se
breza, inteiramente ligada com a virtude, tornarão persuasivas da verdade cujos
e sabedoria, assim como com aquella interpretes fieis são (Conv., 1 , 2. 1 ).
gloria , e felicidade, que é dado gosar na Verba oris sapientis, gratia (Ecclesias
terra . É estupendo o engenho com que tes, x, 12 )
Dante imaginou offerecer -nos em cada (35) Traemmoci così dall ' un de ' can
um d'aquelles sabios o exemplo de al ti In luogo aperto, luminoso ed alto, Si
guma singular virtude moral, ou intelle che veder si potén tutti quanti. Diz
ctual, que mesmo no seio do paganis Boccacio que Allighieri aqui imitou Vir
mo se elevou ao maior gráo da possivel gilio no sexto livro da Eneida : Dixerat
perfeição humana ! Não é menos estu Anchises: natumque unaque Sybillam
126 O INFERNO

Conventus trahit in medios, turbumque deliniou o seu immortal quadro da Ceia,


sonantem , etc. , Mas talvez Allighieri tão famoso, e conhecido : ahi agrupou
tivesse antes aquillo do Apocalypse : elle os Apostolos a tres e tres, obtendo
Et sustulit me in spiritu in montem ma assim uma distribuição symetrica , que
gnum et altum , et ostendit mihi civi corresponde bellissimamente ás exigen
tatem sanctam Jerusalem , descendentem cias da pintura, e que deve ser o estudo
de cælo, Deo habentem claritatem Dei principal dos pintores antes de esboçar
(XXI, 10 ) . seus quadros.
D'este logar de Dante tirou sem du li Electra com muitos companheiros
vida Rafael o seu bellissimo Parnaso, da sua descendencia ( della sua descen
pintado a fresco em uma das galerias denga ), entre os quaes conheci Heitor,
da Vaticano. Os pintores devem sempre Eneas, e Julio Cesar armado con gli occhi
inspirar -se da imaginação dos poetas. grini, isto é, negros, e lucidos como os
Rafael fazia - o muitas vezes , recorren de um grypho (animal biforme , fabulo
do a Ariosto , a Bembo, a Castiglioni. so ). Electra, filha de Altante, mulher de
Por isso logrou tornar - se maximo. Dante Corito , rei da Italia, que de Jore gerou
tem sido o fecundo manancial dos pinto Dardano fundador de Troia. Julio Cesar
res . Não ha scena da vida do divino fazia - se com terra de descender de
Poeta que não tenha sido pintada com Eneas por via de seu pae : nascetur pul
as suas cores. O terrivel Miguel Angelo, chra Trojanus origine Casar .
alma dantesca, aprendeu muito d'elle . Vi Camilla ( Volscorum egregia de
Sabia - o tão a peito, e lhe era tão caro, gente Camill,7, Eneid ., XI, 432 )., a virgem
que gravou em seus cartões os assum que morreu defendendo a humilde Italia
ptos de todos os cantos da Divina Come ( Inf., 1 , 106 ): Pentesilea, a rainha das
dia . Peccado foi que se perdessem ! Amazonas, que , segundo descreve Da
( 36 ) Io vidi Elettra com molti compa rete Troiano, veio com multidão de mu
-

gni, Tra’quai conobbi ed Ettore ed Enea, lheres em socorro dos Troianos quando
Cesare armato con occhi grijagni, etc. os Gregos sitiaram Troia por dez annos ;
( ) cantor dos direitos da Monarchia, foi morta na batalha por Achilles, como
concernente ao povo romano não podia menciona Virgilio no primeiro livro da
deixar de enfileirar em continuação aos Eneida .
outros espiritos grandes ( altri spiriti O rei Latino, do qual teve o nome o
grandi), não só Enéas, eleito para ser povo de Roma, assentado com Lavinia
pae da fecunda Roma, e do seu Imperio : esposada fatalmente com Eneas, que foi
eletto per Padre dell'alma Roma e di dos Romanos a gentil semente ( Inf.,
suo Impero (Inf., 11 , 20 ), mas tambem XXVIII, 60 ). Lavinia fuit Albanorum Ro
Electra, Heitor, e Cesar, que por ordem manorumque mater, regis Lalini filia et
do senado, e do povo Romano tomou nas hæres, etc. (Mon.).
mãos o sacrosancto estandarte da aguia Vi aquelle Bruto. Este Bruto é muito
dominadora do mundo ( Par ,, vi, 52 ). conhecido por sua qualidade de vinga
D'estas personagens, e de outros, que dor de Lucrecia, ultrajada por Tarquinio.
seguem , forma Allighieri grupos dis Julia, a filha de Julio Cesar, e mulher
tinctos uns dos outros, e fal- o com en de Pompeo, aquella que, ao dizer de
genho, e naturalidade. As razões da Valerio Maximo, apenas viu uma veste
arte exigiam que elle com admiravel ensanguentada, suspeitando ter sido
mestria distribuisse os seus personagens morto seu marido, foi tão grande a sua
de modo que evitasse toda a monotonia, dolorosa impressão, que no mesmo in
e confusão. Leonardo de Vinci, est'ou stante deu á luz o filho de que se achava
tro genio estupendo, não podia deixar gravida, e morreu de desespero.
de ter ante os olhos da mente esta bem Marcia, mulher de Catão Uticense.
ordenada classificação dantesca, quando Cornelia, filha de Scipio Africano, e
COMMENTARIOS AO CANTO IV 127

mulher de Graccho, senhora de rara estoicos, Dioscorides de Anazarba,medi


prudencia, e facundia. co , e botanico illustre, Orpheu, e Tullio,
(37 ) E solo in parte vidi il Saladino. por muito estimado por Dante, que do
Este foi homem de summa virtude, tanto seu livro De Amicitia serviu - se como de
que de simples soldado se tornou soldão guia para introduzil- o nas partes mais
de Babilonia. E quem não conseri'a ainda intimas da philosophia , inspirando-lhe
Saladino na memoria , quando das suas todo o amor por esta sciencia ( Conv., tr .
munificencias, e liberalidades se faz 2 , c. 13 ). É Cicero por elle recommen
menção ? (Conv., tr. 3, c . 12 ) . Parece dado, não só como insigne entre os
um d'aquelles nobilissimos, e bons, cuja philosophos, e oradores, mas como vir
memoria é amada, não só por todos os tuoso cidadão, por ter contra Catilina
que practicaram acções tão dignas como defendido a liberdade romana (Conv.,
as suas, mas tambem por aquelles, que tr. 4, c. 5 ). Livio, o grande historiador,
antes de morrer, desejaram practicar que não erra ( Inf., xxvIII, 12 ), muitas
eguaes ( Conv. , ibid . ) . vezes lembrado no Convito, e na Monar
( 38 ) Tutte l ' ammiran , tutti onor gli chia como digno narrador das virtudes
fanno. Assim como os poetas prestam dos gloriosos romanos (Conv., tr. 3,
homenagem a Virgilio , honrando - o com c. 11 ) : Titus Livius gestorum romanorum
o titulo de altissimopoeta , assim tambem scriba egregius (Mon., 1 , 2. c . 3 ) . Sene
toda esta philosophica familia admira ca , o moralista, é chamado por Dante
Aristoteles como philosopho excellente . o mais inclito dos philosophos na epis
E Dante lhe tinha tal veneração, que tola a Cino de Pistoia : Inclitissimus
o celebrou como mestre da razão hu philosophorum Seneca ( 3 5 ). Euclydes e
mana (Conv., tr. 4, c . 6 ), como aquelle, Ptolemeu a quem se deve o Almagesto,
a quem a natureza deu um engenho quasi e o livro de Judiciis, são os auctores
divino, e a quem abriu todos os seus segre dos quaes parece que Allighieri apren
dos ( ibid. tr. 4. 27). Junto ao philosopho dêra tudo quanto soube de astrologia ,
de Estagyra estavam Socrates, e Platão, e geometria ( Conv ., tr. 2, c. 14). Hippo
os que deram principio á verdadeira phi crates de Cos, medico antiquissimo;
sophia, que depois foi posta em sua plena Avicena, medico arabe, celeberrimo,
luz pelo summo Aristoteles ( ibid, tr, 4, Galeno de Pergamo. Tudo isto não con
c. 6). vence de outra cousa, senão que na Di
Democrito de Abdera, Diogenes Cy vina Comedia os personagens revestem
nico de Sinope, Anaxagoras de Clazo um duplo caracter, um litteral, que a
mene, Thales de Mileto , Empedocles de historia e a tradição lhes assigna, outro
Agrigento, que se lançou no Etna, para allegorico, inventado pela phantasia do
tornar-se celebre, Heraclyto de Epheso , Poeta para occultar sob o véo a verdade ,
Zeno de Cizziaco, fundador da seita dos que elle tem na sua intenção.
INTRODUCÇÃO AO CANTO V
A segunda caverna é larga como o poço na primeira, isto e, tem 210 milhas, e a
sua circumferencia 660. O poço d'esta segunda caverna tem de largura 165, e de cir
cumferencia 550. ,
Os dous Poetas atravessam o circulo directamente, sem voltar nem para a direita,
nem para a esquerda. Este é o primeiro circulo penal, do Inferno, em cuja entrada
está Minos, juiz de todos os condemnados.
Este Minos foi outr'ora rei de Creta, não tyranno , mas severo, inflexivel, sem
piedade, nem compaixão ; por isso os sabios antigos o fizeram juiz do Inferno, onde
não deve haver piedade, nem compaixão : ensinando -nos d'est'arte , que a justiça sem
piedade, e compaixão é virtude infernal. Propter insignem justitiam fabulati sunt,
Minoem apud inferos judicem animarum constitutum fuisse ( Cic., Tusc., C. v). As
almas, assim como se mostram impacientes em passar para o outro lado do Ache
ronte, assim tambem em se apresentar ao tribunal de Minos; porque, n'uma, e n'ou
tra circumstancia, são impellidas pelo aguilhão da divina Justiça ; por isso, apenas
ouvem a sua sentença, descem ao circulo, que lhes é destinado. Comparecem pois
uma apoz outra na presença do juiz, confessam - lhe todas as suas culpas, e elle, co
nhecedor infallivel da gravidade dos peccados, cinge-se, açoita-se tantas vezes com
a cauda, quantos são os circulos a que lhe apraz fazer descer a alma examinada :
si se açoita duas vezes, a alma conserva -se ali no circulo dos libidinosos; porque,
não obstante ser o primeiro circulo das penas positivas, todavia conta -se por circulo
penal tambem o Limbo ; mas as almas, que estão no Limbo, não se apresentam a
Minos, por isso não se açoita elle nunca menos de duas vezes.
N'este circulo são punidos os libidinosos, cujo castigo é serem fustigados, e
arrastados sem cessar por uma tempestade furiosa; por esta razão quando chegam
ás bordas do poço do abysmo, chamado Ruina, redobram os lamentos, os clamores,
e blasphemias contra Deus. Os peccadores d'este circulo não têem outro peccado,
senão o da lascivia, emquanto que os peccadores dos circulos sottopostos podem
ter, alem do peccado proprio d'aquelle circulo, os peccados, que se punem nos cir
culos superiores. Os libidinosos são divididos em duas classes: uma é a d'aquelles,
que peccaram propriamente por desafogo da paixão brutal, como Semiramis, e Cleo
patra: a outra é a d'aquelles, que peccaram por gentileza, ou, para melhor dizer, por
fragilidade de coração, isto é, por se terem apaixonado de alguma pessoa por suas
amaveis qualidades, como Dido por Enéas, e Paulo por Francisca. D'estes segun
dos o Poeta mostra ter compaixão: aos outros trata com indifferença, embora sejam
pessoas famosas.
Celebre assás é este canto por causa do infortunio de Francisca de Rimini, de
:
.
130 O INFERNO

que mais adiante me occuparei. Por agora merecem minha attenção duas cousas,
que não foram notadas por nenhum dos commentadores, que tenho lido. A primeira
é que Dante não conhece Francisca nem Paulo ; porquanto, si bem que, ao ver
aquellas duas sombras andarem juntas abraçadas com tanta demonstração de amor,
imagine que sejam os dous cunhados infelizes, todavia se faz dizer por Francisca
quem são : mas Francisca conhece Dante ; porque falando -lhe, cita - lhe a sentença
de Virgilio, que chama seu Doutor, sem embargo de Dante o não fazer conhecer a
ninguem no Inferno, por mais que lhe perguntem ; e porque lhe diz, que si ella
fosse bemquista de Deus, terçaria pela paz do mesmo Dante ; dando assim a perce
ber que falava a um homem , que procurava a paz, que não encontrou na sua pa
tria .
A segunda cousa é observar, que Dante crimina a Tavola Rotonda, famoso ro
mance d'aquelles tempos, como origem do amor infausto dos dous cunhados : e da
narração de Francisca resulta, que ninguem podia conhecer a causa do seu inces
tuoso amor ; por conseguinte nem a historia, nem a voz popular obrigou o Poeta a
inculpar aquelle romance. Em logar opportuno será explicado o segredo d'esta
allusão ao livro immoral .
N'este canto ha um verso, que muitos commentadores crêem dictado pela neces
sidade da rima, e o verso é este Cotali uscir d'ella schiera ove è Dido. « Taes
aquellas duas almas saíram do circulo onde está Dido » . Mas esta critica nem é si
suda, nem verdadeira ; pois o verso é cheio de bello significado, por isso que diz,
que Francisca , e Paulo estavam no circulo d'aquelles libidinosos, que peccaram por
gentileza de coração, e não por desafogo de paixão infame.
Virgilio, no intimar silencio a Minos, diz-lhe : Non impedir lo suo fatale anda
re. A respeito do sentido d'est'outro verso é necessario dizer duas palavras; por
quanto o Fato o fatale (o Fado, o fatal) que se lê na Divina Comedia pode ser uma
das razões por que alguns qualificam Dante de pagão no sentido gentilico ! E pois
de saber que fado aqui é synonymo de palavra, e significa decreto de Deus ; por isso
o fatale andare significa viagem decretada por Deus. Assim o alto fato di Dio, que
se lê no canto xxx do Purgatorio, significa genuinamente a alta palavra de Deus,
o Alto decreto de Deus. Em taes expressões pois não ha sombra de paganismo.
Comquanto a experiencia me vá tornando cada vez mais escrupuloso em accei
tar, e seguir as novas lições, que muitos querem fazer substituir a commum , toda
via acceitei aquella do trigesimo verso proposta por Zanide Ferranti Si da contrari
venti é combattuto, e acceitei por muitos motivos : 1.°, porque é muito facil mudar
o sì em si, e depois em se ; visto como si sem accento não dá sentido ; 2.º, porque
tal maneira de dizer é familiar a Dante, que pouco depois diz : Sì forte fu l'affe
ttuoso grido ; 3.°, porque o Poeta no verso seguinte fala da tempestade infernal
como de cousa conhecida ao leitor, dizendo la bufera, e não una bufera ; por isso
convem que a tenha ao menos indicado antes ; 4.° , porque o comparar o mugido
de uma caverna infernal ao mugido de mar tempestuoso é bella comparação, ainda
que os ventos, que agitam o mar, soprem todos para uma direcção : mas compa
rar o mugido de uma caverna infernal por ventos contrarios ao mugido do mar
por ventos contrarios é dizer pouco ; porquanto, si, á imitação dos algebristas,
tiramos aquillo , que é commum aos dous membros da equação, resta-nos a caverna
de um lado, e o mar do outro, sem nenhuma similhança.
Antes de ir adiante, não posso deixar desapercebida a estupenda definição que
da Omnipotencia de Deus nos dá o Poeta, quando nos diz : Vuolsi così colà dove si
puote ciô che si vuole. « Assim foi decretado no Céo , onde se pode tudo o que se
ques» . Não se pode dar uma idéa mais justa, e precisa da Omnipotencia de Deus !
Um dos taes livres pensadores quiz provar-me que Deus não é omnipotente sem
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 131

limites ; porque, dizia elle, Deus poderá mui bem fazer Troia resurgir das suas
ruinas, mas não poderá fazer que Troia não tenha sido destruida. Ao que respon
di : Si Troia foi destruida, foi porque Deus quiz : si agora Deus quizesse que Troia
não tivesse sido destruida, deixaria de querer o quequiz : logo seria instavel na sua
vontade, e isso ‘ repugna com a sua immutabilidade : por conseguinte, em vez de
dizeres que Deus não pode fazer, que Troia não tenha sido destruida, deves dizer,
que Deus não o pode fazer, porque não quer.
Este canto, como disse ha pouco, passa, e com razão, por um dos mais cele
da Divina Comedia , por causa do mimoso, e tocante episodio de Francisca de Ri
mini, cuja morte tragica Dante tornou perpetuamente memoravel, como dous secu
los depois Camões tornou a de D. Ignez de Castro, consideradas ambas sob prisma
differente, visto que especie diversa determinou o infortunio de ambas. Tão sabido,
porém, é o desastrado desfecho d'aquella luctuosa tragedia, quanto incertas, e ob
scuras as circumstancias de tempo, e de logar da scena, direi mesmo, dos proprios
protagonistas, apenas conhecidos por figurarem seus nomes no martyrologio das
mallogradas victimas do ardor funesto. Sabe- se que foram de Ravenna, e de Rimini;
mas, quando nasceram, e quando morreram , e onde morreram , são particularidades,
que os interpretes não procuraram nunca apurar com exactidão, e d'ahi provém a
escassez de noticias, que se encontra em seus commentarios, os quaes, em geral,
ou não passam de repetições uns dos outros, ou de conjecturas, que se perdem
n'um labyrintho de duvidas, e de contradicções, que tornam cada vez mais difficil
o deslindar o enredo do drama. Julguei indispensavel, pois, tomar -me mais corpo a
corpo com o assumpto, a fim de melhor facilitar a intelligencia do texto . Li tudo
quanto pude haver á mão a tal respeito. Depois, resolvi ir visitar o theatro, onde a
scena se passou. Fui a Ravenna, a Rimini, e a Pesaro. Interroguei com toda solici
tude as tradições locaes : nada, porém, me adiantaram, porque estão totalmente
apagadas. Só uma inscripção latina, estampada n’uma velha rocha, descoberta, não
ha muito, na fortaleza (rocca ) de Pesaro, segredou-me parte do mysterio dos
seculos, relativamente a um ponto capital das minhas investigações, e de que fala
rei em occasião opportuna. As innumeras chronicas, que compulsei, eram tam
defectivas, e discordes, que todo o meu trabalho consistiu em procurar conciliar, e
coordenar os seus dizeres n'um só corpo , o mais possivelmente homogeneo. De
todos os commentadores, Boccaccio foi o que mais me serviu de orientação, no
tocante a certas circumstancias íntimas do episodio, sem deixar de ser incoherente
algumas vezes em suas apreciações. Em todo o caso, é o interprete de maior au
ctoridade, já por seu nome nas lettras, e já por sua vizinhança do tempo em que o
caso se passou ; pois elle mesmo nos diz, que antes de escrever o seu commento,
teve colloquios especiaes com um gentil homem de Ravenna, chamado Pedro Gardino,
que havia sido um dos mais intimos amigos de Dante, e que fora provavelmente o
mesmo que instruíra o Poeta ácerca de todas as particularidades do drama sangui
noso. Pelo dito Boccaccio, portanto, começarei a exhibir o peculio de informações,
que ajuntei no meu giro atravez de nebuloso proscenio.
« É pois de saber, diz Boccaccio, que Francisca foi filha de Guido de Polenta,
senhor de Ravenna, e de Cervia ; aconteceu que, apoz longa, e desastrosa guerra
entre elle, e os Malatestas, senhores de Rimini , chegaram, por esforços de media
neiros, a termos de pacteada paz. E para que esta se tornasse mais firme, concor
daram ambas as partes em pôr-lhe o sêllo com reciprocas allianças matrimoniaes :
assentando -se que Guido devia dar por esposa sua bella, e joven filha Francisca a
Giovanni, filho de Malatesta de Verruchio. Fazendo-se publico esse convenio , um
. dos amigos de Guido, disse -lhe : «Vêde bem o que ides fazer ; porque , si não pro
cederdes n’este negocio com toda a circumscripção, poderá resultar escandalo.
132 O INFERNO

Deveis conhecer perfeitamente vossa filha, e seu caracter altivo. Si ella chegar a ver
Giovanni antes da celebração do matrimonio , nem vós, nem ninguem conseguirá
resolvel-a a tomal - o por marido; por isso, no dia das nupcias, o mais prudente,
será que, em logar d'elle, venha algum irmão seu com procuração de recebel-a por
esposa» . Era Giovanni homem valoroso , e se esperava que, por morte de seu pae,
seria o senhor de Rimini. Por esta razão, sem embargo de ser deforme no corpo,
pois era coxo e desancado (zoppo, e sciancato ), e por isso conhecido por Gianciotto,
Lanciotto, e Sciancado ( por qualquer de cujos nomes será nomeado d'aqui por
diante ), Guido o queria para genro, de preferencia a qualquer irmão. Todavia,
tomando em consideração o conselho do amigo, dispõe secretamente as cousas, de
modo que, no tempo aprazado, veiu Paulo, irmão de Gianciotto, com procuração
d'este, para receber Francisca. Era Paulo de bello, e agradavel aspecto, alem de
bem composto em seus costumes. Na vespera do casamento, andando com outros
cortesãos a passear n'uma das avenidas do palacio de Guido, uma das damas de
Francisca mostrou-lh'o pela fresta de uma janella, dizendo-lhe : « Eis acolá o que ha
de ser vosso marido ». E assim ficou acreditando Francisca, que desde aquelle mo
mento lhe poz olhos , e coração. Celebrou -se effectivamente o artificioso consorcio :
seguiu Francisca para Rimini, e não deu pelo engano , senão no dia seguinte , quando
viu Gianciotto levantar -se do lado d’ella ! É facil crer, quanto , vendo - se enganada ,
ardesse em despeito , como tambem não será duvidoso, que lhe ficasse tambem
ardendo no coração o amor votado a Paulo . Si com elle chegasse a demasias, não
ouvi nunca dizer , senão aquillo , que Dante escreveu ; o que é possivel , que assim
fosse. Mas creio antes , que fosse uma ficção do que podesse ter acontecido ; mas
que d'isso não tivera certeza .
« No emtanto, continuando Francisca, e Paulo, em toda a familiaridade, e tendo
Gianciotto ido para algumas terras vizinhas exercer as funcções de governador,
( potestà ), os dous, sem suspeitar perigo algum, começaram a abusar. Percebendo
isso um creado particular de Gianciotto, foi avisal-o, promettendo que, quando elle
quizesse, lhe faria ver a cousa com seus proprios olhos. «Acceso, e transportado de
colera, Gianciotto voltou occultamente a Rimini, e tendo visto Paulo entrar na
camara de Francisca, foi logo á porta, na qual, não podendo entrar, por estar
trancada por dentro, bateu com força, e chamou de fóra Francisca : ambos conhe
ceram -lhe a voz. Então Paulo, crendo que, fugindo subitamente por uma cataracta,
que do aposento descia a outro, podesse em todo, ou em parte encobrir o crime,
lançou -se por ella, dizendo a Francisca, que lh'a fosse abrir ; mas não logrou seu
intento ; porque, ao atirar-se em baixo, a orla de uma armadura, que trazia no peito,
enganchou -se n'um ferro, que prendia a um pau d'aquella cataracta. N'esse entre
mentes tinha Francisca aberto a porta a Gianciotto, crendo tambem ella que, não
encontrando Paulo , ficaria justificada : entrando, porém, Gianciotto, viu logo, que
Paulo estava retido pela orla da armadura, e, correndo para matal-o com um
punhal, Francisca, julgando poder evitar tal catastrophe, atravessou -se entre Paulo,
e Gianciotto, no momento em que este vibrou o golpe de modo, que trespassou o
peito de Francisca, sem o querer. Exasperado Gianciotto com este incidente, como
quem amava Francisca muito mais do que a si proprio, assassinou Paulo. Deixando
assim ambos mortos, subitamente partiu, voltando ao logar do seu emprego. Foram
os dous amantes sepultados no meio de lagrimas, na manhã seguinte, em uma se
pultura.»
Eis-aqui a narração de Boccaccio, em que se mostra contradictorio ; porquanto,
dizendo pouco antes, que não ouvíra falar nunca que os dous amantes abusassem
da sua familiaridade, e que somente Dante o dissera, e isso mais por ficção do que
era possivel acontecer, do que por certeza que tivesse do facto ; agora diz que
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 133

Gianciotto, avisado por um servo das infidelidades da mulher, e do irmão , fel-os


espreitar, e por fim os surprehendeu, e matou. Esta contradicção, si não altera a
substancia do facto capital, denota pelo menos o desejo de attenuar as circumstan
cias do duplo crime ; figurando Francisca morta por casualidade, e d'est’arte desar
mando os odios da familia d'esta contra a de Gianciotto, que ainda existiam em
seus descendentes, e ao mesmo tempo fazendo pairar duvidas sobre a existencia da
falta attribuida aos dous cunhados. É isto um sentimento louvavel em Boccaccio ;
mas que não supprime as consequencias logicas das cousas, que refere, tanto mais,
quanto são referidas, ainda que mais resumidamente, por outros, entre os quaes
figura nada menos, que Petrarca, auctoridade respeitavel, já por seu elevado cri
terio, já por ser quasi contemporaneo do funebre desenlace do amor dos dous
cunhados, aos quaes allude no seguinte terceto :

Vedi Ginevra, Isotta, e l'altrêa amanti


E la coppia d ' Arimino, ch ' insieme
Vanno facendo dolorosi pianti.
« Vêde Ginevra Isotta , e outras amantes ,
E os dous de Rimini, que unidos
Vão soltando dolorosos prantos. »
(Del Trionfo d'Amor, cap. II )

Como disse, do nascimento, e das nupcias de Francisca, bem como desua morte,
não se sabe nem dia, nem anno exacto. No tocante ás razões do casamento, Cle
mentini, tambem antigo, e outros, relatam que Guido de Polenta, para gratificar
aos Malatestas de Rimini, e fazer-se forte pelo apoio d'elles, cedêra a bella filha
Francisca ao valoroso Gianciotto. Isto confirma em termos vagos o dizer de Bocca
ccio. Ha outra variante singular. O auctor das glosas sobre Dante (Delle chiose
sopra Dante ), publicadas em Florença por Piati, em 1846, e que por muito tempo
foram falsamente attribuidas a Boccaccio, escreve que « a mãe de Francisca promet
teu por palavras a filha a Paulo, e que Gianciotto , vindo a Ravenna receber Fran
cisca por procuração de Paulo, seu irmão, achou-a tão bella, que declarou o querel- a
por mulher, e que, ninguem ousando oppor-se a resolução de tão grande senhor,
effectivamente a recebeu por sua mulher. « O mesmo Clementini, e Rossi referem
tambem ser constante que a mulher de Guido de Polenta promettêra sua filha a Paulo
( por elles tido por viuvo) ; mas o velho Guido, persistindo em sustentar sua pala
vra dada a Gianciotto, se celebraram com este as nupcias contra a vontade da mãe,
e da filha (pag. 609 ).» Toda esta confusão de idéas prova sómente, que a historia
do artificio empregado no casamento da infeliz Francisca, de que fala Boccaccio,
corria já alterada. Razão tenho eu de não me desquitar da auctoridade do mesmo
Boccaccio, e eis-aqui mais um motivo : O circumspecto Benvenuto de Imola, no
commento ao canto xxviii, falando d'aquelle semeador de escandalos Pedro de Me
dicina, diz que foi este quem cimentou, e atiçou a discordia entre os Polentanos, e
Malatestas ; discordia, a que exactamente allude Boccaccio, quando exhibe, como
penhor da consolidação da pactuada paz entre essas duas familias, as allianças
matrimoniaes reciprocas ; sendo certo que, alem do casamento de Francisca com
Gianciotto, houve mais ó de Concordia, irmã do mesmo Gianciotto, com Bernar
dino, irmão de Francisca .
Como Francisca se enamorasse de Paulo, e vice-versa : como a mutua chamma
irrompesse entre elles no momento da imprudente leitura do pernicioso romance
134 O INFERNO

dos amores de Lanciotto com Ginevra, mulher de Arthur, Rei de Inglaterra, e como
por fim fossem conduzidos ao doloroso passo, Dante nol- o diz. Alguns opinam ques
o dia da declaração do amor reciproco foi o dia da surpreza, e da morte, excluindo
toda a supposição de haver precedido longa practica deshonesta. É isto mesmo que
o Poeta dá a entender ; porque, como logo diremos, elle procurou afastar tudo que
podesse aggravar a sorte dos dous amantes. Mas, segundo Boccaccio, o abuso das
relações precedeu ao dia da morte, não direi que longo tempo, conforme se deduz
d'estas rapidas palavras do citado Benvenuto : Hæc autem in brevi significata Joanni
fuere. Ambos simul in dicta camera , ubi convenerant mactavit. Este in brevi signifi
cata quer dizer, que as primeiras manifestações de practicas deshonestas foram logo
communicadas ao Gianciotto.
Quanto aos fructos do malfadado consorcio, não passaram, segundo Clementini
( pag. 582), de dous filhos, um de nome Francisco, que morreu antes da mãe, e uma
de nome Concordia, que sobreviveu não só á infeliz mãe, mas até ao pae, e ao
avô .
Do dia, e anno da sanguinosa scena tambem nada se sabe com precisão. Dos
versos do Poeta nada se collige ; da narração de Boccaccio tambem não ; e dos com
mentadores subsequentes muito menos ainda, ou porque não cuidaram de investi
gal- o, ou porque não poderam descobrir. Rossi (pag. 475 ) explica esse silencio pelo
esforço, que os Malatestas, e Polentanos, para evitar maior escandalo, e vergonha,
empregaram para occultar todos os vestigios do sinistro successo : Ne muliebris
magis pateret infamia , altissime compressa est. Mas a chronica de Baldo de Bran
chi, escriptor do seculo xv, colloca a catastrophe entre 1288 e 1289 ; porque, depois
de referir os acontecimentos d'esse periodo, acrescenta : In questo mezzo accorse
nella casa di Malatesta uno strano caso. Por isto Rossi na segunda edição da
Historia de Ravenna, reportando o facto não já a 1276, mas a 1289, addiciona a
particularidade de , n'aquella occasião, haver sido Estevão Colonna, novo Reitor
da Romanha, tomado de subito horror por causa do facto atroz, e se passado de
Rimini a Cesena, em setembro do dito anno. Mas Cantinelli, escriptor Faetino con
temporaneo, diz que Estevão Colonna entrou em dezembro, e que foi a Rimini
precisamente no dia 12. Portanto, somente Branchi, e Rossi, ou para melhor dizer,
Branchi, porque é anterior, determinam epoca, á auctoridade dos quaes ateve -se
Clementini com outros, que vieram depois, entre os quaes hoje se encontra quem
se julgue com direito de fixar o dia 4 de setembro de 1288, como aquelle em que
teve logar a horrivel catastrophe ! É de esperar, diz chistosamente Tonini, que no
correr dos seculos appareça alguem que indique, não só a hora, como até o minuto,
o segundo!
É insustentavel que de 1288 a 1289 Gianciotto estivesse ( vivendo Francisca)
exercendo o emprego de potestà em algumas terras visinhas. A querer algum pre
valecer -se d'esta ultima circumstancia, suggerida por Boccaccio, seria preciso admittir
que elle exercesse mais de uma vez esse emprego em diversos tempos : o que se
contesta. É verdade que segundo Clementini, ( p. 581 ), foi Gianciotto potestà em
Forli em 1271 ; mas é que este historiador, tendo encontrado no livro iv de Rossi,
que em o dito anno foi Pretor d'aquella cidade um Giovanni Malatesta, não procurou
mais averiguar, si foi Gianciotto, ou Giovanni Ramberto ! Ninguem poderá suppor
que Gianciotto guelpho furibundo obtivesse tal cargo em uma cidade de assanhado
gibelinismo, como era então Forli ! Dirá sim que o governador fosse aquelle Gio
vanni Ramberto Malatesta, consanguineo do velho Malatesta de Verruchio, e que
era exactamente então acerrimo adherente dos Gibellinos.
O que é fóra de toda a duvida é que Gianciotto exerceu em Pesaro o em
prego de potestà no anno de 1285, como se lê na nscripção latina, a que já alludi,
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 135

embutida no marmore achado na fortaleza (rocca) d'aquella cidade, por mim fiel
mente copiada . Agora mesmo recebo de Florença o numero 17 do Spettatore di
Firenze, de 1857 , em que essa inscripção havia sido já publicada , traduzida da letra
gothica :
ANNO : DOMINI: MILLESIMO
CC ° : LXXX ' : INDıcTIONE
XIII TEMPORIBUS DOMINİ
HONORII PAPÆ : IIII : Esis
STENTE : POTESTATE
IOHANNE : NATO : M
AGNIFICI : VIRI :
DOMINI : MLATESTE

Quando porém entrasse Gianciotto no exercicio do dito emprego não se pode


precisar bem ; sabe -se somente, que elle o exercia, sendo Papa Honorio IV, e que,
segundo calculos seguros, não podia ser senão depois de 2 de abril do dito anno ;
sendo possivel que tivesse sido nomeado algum tempo antes, ou que então já hou
vesse commettido os dous assassinatos ; pois vimos que Boccaccio nos diz, que o
referido Gianciotto, apenas assassinou Francisca, e Paulo, voltou para o logar do seu
emprego. Por conseguinte é quasi certo que o drama sanguinolento teve logar,
não em 1288 ou em 1289 ; mas entre fins de 1283, e correr do anno de 1284 a prin
cipios de 1285 ; como tambem é consequencia obvia, que em Rimini, e não Pe
saro, foi o theatro da cruel scena.
Os testemunhos, que confirmam esta tradição antiquissima, uns são tacitos,
outros quasi positivos. Tacitos são todos aquelles, que na exposição da scena san
guinosa, não indicando logar, fazem , em boa exegése, subentender o logar do domi
cilio da familia das victimas. Taes testemunhos são : 1.º, o proprio Dante ; 2.º, a
chronica latina de Marco Batalha ou Batalha riminense, escripta em 1354 ; 3.°, a
chronica anonyma vulgar, que alcança até 1385 ; 4.º, o commento latino de Benve
nuto de Imola, escripto em 1386 ; 5. , outro commento, tambem latino, escripto
por impulso dos padres do concilio de Constança, em 1416, por fr. Giovanni de
Serravalle, da diocese de Rimini, na republica de S. Marino, e depois Bispo, e Prin
cipe de Fermo ; 6.", o auctor das citadas glosas sobre Dante ; 7:", finalmente a
chronica de Baldo de Franchi, de 1474. Foi necessaria toda a má fé do Narratore
Storico Italiano, compilado por Pedro Veroli, e publicado em Florença em 1840,
para que fosse substituida a seu talante Rimini por Pesaro; introduzindo outra
falsidade, qual a de ter Malatesta com toda a sua familia refugiando -se em Pesaro
em 1288 ; bem como a de repetir a fabula de terem os dous amantes, depois de
treze annos de amor occulto, e comprimido no coração, achado folga de poderem
uma vez abandonar-se a sua paixão. Erro este que annos antes o Marquez Carlos
Troia havia inserido no seu Veltro Allegorico (p. 33) ; mas erro de que se retractou
formalmente em uma carta de 26 de abril de 1853 ao dr. Tonini, que havia pulve
risado tal asserção, mostrando com a auctoridade do Antigo Analista Forliense que
Malatesta, expulso de Rimini n'aquelle anno, buscou abrigo, não em Pesaro, mas
no Conde de Romanha : Deduxit se ad dominum Comitem Romanhiolæ . E si por
momento se admittisse, acrescenta Tonini, que n'esse anno os Malatestas estiveram
refugiados em Pesaro, então Giancciotto já não poderia levar comsigo Francisca, sua
136 O INFERNO

primeira mulher, mas sim Zambrosina, a segunda, e os filhos d'esta, como se mostra
por um breve de dispensa concedido por Nicolau IV, em 8 de agosto de 1288, a
Maletistino, neto de Malatesta de Verruchio, e a Ignez, filha de Conrado Conde de
Montefeltro, ligados em quarto grao de parentesco . Ora, aquelle Malatestino, si foi
neto de Malatesta, não foi outro senão Tino, filho de Gianciotto, e que no tes
tamento do avó é chamado Malatestinus qui dicitur Tinus. Este Tino portanto
nasceu de Zambrasina : logo si em 1288 elle era já nascido, e não creança, se deve
concluir, que as nupcias de Gianciotto com a segunda mulher se celebraram , não
em 1290, como diz Clementini, mas em annos anteriores.
É de saber que similhantes promessas , nupciaes eram frequentes, n'aquelles
tempos, entre creanças quasi nas faixas : per fanciulli presso che in fascie. Esta dis
pensa pois concedida ao neto do velho Malatesta corta peremptoriamente a questão,
e torna bem evidente que o vinculo conjugal, que ligava Gianciotto a Francisca
havia sido muito antes cortado pelo ferro homicida ! Temos ainda outra prova de
haver Gianciotto passado a segundas nupcias, não só antes de 1290, como muito
antes de 1288 : é outra bulla, pela qual o Papa, em julho de 1298, concede a Guido,
segundo filho de Gianciotto com Zambrasina, a parochia de Sancta Paula de Ronco
freddo, vaga por morte de Ramberto, outro filho do velho Malatesta ; bulla que
nos offerece duas particularidades assaz importantes : 1. ", que nos motivos da con
cessão se attendem os meritos pessoaes do beneficiado, alludindo -se precisamente
á compostura dos costumes (morum decor) ; o que mostra como elle já se achava
em edade de dar provas de indole recommendavel; 2.", que se dispensa da falta de
edade, diz a bulla, por ser elle menor de 25 annos (infra vicesimum quintum ætatis
annum ); locução que, si bem parecesse pouco propria para se applicar a um menino
não saído da infancia, como elle seria se elle tivesse nascido depois de 1291 , com
tudo unida ao decor morum assenta bem no rapazinho de seus doze ou treze annos,
pelo menos : de modo que tendo elle nascido cerca de 1285, e sendo o segundo
filho, as nupcias de sua mãe com Gianciotto deviam remontar a fins de 1283 a prin
cipios de 1284. Como, em vista de conclusões taes, se pode ainda sustentar que Fran
cisca foi morta em 1288 ? Acresce que, de fevereiro de 1283 por diante, de Paulo de
Malatesta não se encontra absolutamente noticia, nem menção alguma, quer em
documentos publicos, quer em particulares! A ultima vez que o seu nome apparece
é como Capitão do Povo, e Conservador da paz em Florença, em 1282 até o referido
mez ; (1) tendo-se casado em 1269 com Orabile Beatriz, filha de Uberto Conde de
Ghiagginolo. A gentileza de seu rosto , e garbo de maneiras conciliaram-lhe a anto
nomasia de Bello, e no seio da familia era conhecido por Pauloccio, mimoso dimi
nutivo de Paulo .
Si alguem , por mero desejo de sophisticar, quizer tomar a serio a asserção da
Chronica de Pesaro, que faz suppor Francisca em 1288 segunda mulher de Gian
ciotto, e que o tragico acontecimente teve logar em 1296, se lhe responderá, entre
outras cousas, que então a edade de Paulo orçaria por 50 annos, e o leitor de
criterio poderá imaginar, si a bella filha de Guido, que tambem já não deveria ser
creança, teria razão de inflammar -se de paixão tão violenta por um homem cujas
faces começavam a encrespar-se de rugas sulcadas por meio seculo de existencia !
Em summa, o citado Boccaccio, que nasceu em 1313, sete annos antes da morte
do grande Poeta, e que foi informado por pessoas ainda vivas de todas as circum
stancias do facto, deixou, não só no seu Decameron , como no seu Commento his
( 1) Dominus Paulus Domini Malateste de Veruculo Capitaneus Populi, etc. Comunis, et Conservator pacis
civitatis Florentiæ , erat in officio die 32 decembris 1282 , et renunciavit offcio die 1 februarii 1283, secondo
l ' uso comune ( Indictione xi cum gratia Populi, p. 296 ).
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 137

torico, lido nas assembléas de Florença em 1374, indicios não duvidosos de que a
scena de sangue se passou em Rimini, aonde diz elle, como vimos, que Gianciotto
veio ás occultas logo que pelo creado soube das cousas, que se davam entre a
mulher, e o irmão. Em Rimini indicaram-me as ruinas de um palacio, que fôra
residencia dos Malatestas, e que n'elle provavelmente foram mortos os dous cu
nhados. Ou fosse ali, ou n'outro edificio, o que é indubitavel é, que o facto foi
practicado dentro da cidade de Rimini, e que os dous infelizes foram sepultados na
egreja de Sancto Agostinho ; não se sabendo já hoje onde é a jazida . Ouçamos o
testemunho que se segue : O escriptor Corsucci, no seu livro que tem por titulo :
Il vermicello della seta (bicho de seda ), e que foi impresso em Rimini em 1581 , diz :
« Constou - me por pessoas dignas de fé, que, no tempo da feliz memoria de Paulo III,
foi Julia filha de Cicero achada em uma urna com um vestido de seda recamado
de ouro, ainda tão bella, e tão perfeita, como si fôra urdida de novo, tendo- se
passado mais de mil annos !
« Não ha muitos dias que, na egreja de Santo Agostinho de Rimini, foram
achados em uma urna de marmore os corpos de Paulo Malatesta, e de Francisca,
filha de Guido de Polenta , senhor de Ravenna, os quaes foram trucidados por
Lanciotto de Malatesta, senhor de Rimini , irmão do dito Paulo, por havel -os encon
trado em distracção deshonesta .
«As vestes d'aquelles dous corpos eram de seda , e depois de tantos, e tantos
annos ainda pareciam tão bellas, como si fossem novas ! Na cathedral de Rimini
acha-se hoje fragmento d'essa seda . »
Notam-se aqui duas circumstancias, uma das quaes surprehende por uma espe
cial singularidade . Dante, como si fôra illuminado por espirito prophetico, fez dizer
Francisca, que Paulo jamais se separaria d'ella : Questi, che mai da me non sia diviso.
Apoz tres seculos, são elles dous encontrados juntos na mesma sepultura ! A outra
circumstancia é que Boccaccio assignalou no Commento , que vimos, que os dous
amantes foram no meio de lagrimas postos juntos n'uma mesma sepultura.
« Eis -aqui, diz Tonini, as novas opinióes, que têem apparecido sobre os motivos
de morte dos dous cunhados, e sobre a realidade da culpa : Dante, primeiro narra
dor do caso acerbo, sem embargo de mostrar-se pungido de compaixão pela sorte
dos dous infelizes, lançou sobre a memoria de ambos uma nodoa indelevel, e n'isto
tem tido tantos imitadores, quantos depois d'elle tractaram do facto, porfiando
entre si qual mais lhe carregasse as cores. Em tal numero não figura Boccaccio ,
para quem a culpa dos dous cunhados é mais que duvidosa. E a Boccaccio se
poderão ajuntar Gradiningo, e Branchi ? o primeiro annunciou o facto com o
titulo de novelleta ; o segundo com um simples quer- se dizer, ( vuolsi dire) . Foi
por isto que em apoio de tão grande auctoridade, qual a do Certaldese, appare
ceram alguns dos nossos que julgaram poder -se reivindicar a honra da gentil
Francisca, argumentando ; « que os dous cunhados em 1288 não estavam mais
em edade de serem arrastados por amor tão fogoso, visto como então Paulo con
tava vinte annos de casado, e Francisca quatorze : que antes é de crer que
ciumes de mando, e não da mulher, movessem o braço do fero Gianciotto contra
seu irmão, e que a morte de Francisca procedesse de uma desventura casual,
atravessando -se entre os dous no momento de ser vibrado o golpe : que os amigos
de Gianciotto, talvez, para attenuarem a odiosidade, que lhe attrahiu acto tão atroz,
fizessem correr voz que o practicára por vingar sua honra de esposo ultrajado, e que
o facto assim alterado chegasse aos ouvidos de Dante, o qual, ou o cresse verda
deiro, ou d'elle se aproveitasse para cobrir de maior vergonha os abominados
Guelphos : que Allighieri afinal de contas era Poeta, e Poeta imitador de Virgilio,
o qual, por querer ser exacto expositor das tradições patrias, e nacionaes, admi
138 O INFERNO

tiu na sua Epopea o assaz conhecido anachronismo de fazer de Dido uma apaixo
nada amante de Enéas : que finalmente se sabia que o celebre episodio de Fran
cisca havia já corrido de bôcca em bócca quando o seu auctor buscou abrigo
na côrte de Ravenna, e é constante que o animo generoso do Poletano Guido o
Novo não se mostrou resentido da mancha que o Poeta desterrado imprimira na
memoria de sua tia, embora hovesse esta delinquido em ponto tão grave . »
«Taes e similhantes são as cousas (prosegue Tonini) que têem sido ditas por
aquelles a quem pareceu possivel lavar a mancha da culpa dos dous cunhados, tão
tristemente celebres. Entendemos porém não dever deixar de registrar estas escu
sas, tanto mais, quando não seria a vez unica que no divino Poema se notasse que
seu auctor, vencido pelas exigencias da poesia, diz Carlos Troia, calou em parte a
historia, e offendeu a verdade com os mais bellos versos, que o homem póde es.
crever ! Mas quem, depois de ter visto que aquelles que procuraram justificar os
dous amantes, figurando -os inexactamente mortos em 1288, em que suas edades lhes
não permittiam entregar- se a amor tão fogoso, não considerará demasiada audacia
o investir contra o Poeta, increpando -o, ou de não ter sabido a verdade , ou de ter
mentido ? »
Mais subtilmente procedeu Ferruci quando pensou justificar os dous amantes,
dizendo : « Que o proprio Poeta não imputou a Francisca outra culpa, senão a ter
recebido o beijo do tremulo Paulo n’aquelle dia, que foi o primeiro, e ultimo em
que a paixão os venceu.. « Depois, commentando o sublime verso 138, e lendo-o
com esta singular interrupção : Quel giorno ! ... piu non vil eggemmo avante, tentou
afastar toda a sombra de consummação da culpa , com observar que os dous
amantes são collocados no Inferno em um logar, onde o ar é mais brando, e que a
tempestade, em consideração a elles, cessa algumas vezes o seu furor, como na
occasião em que tiveram de falar com o Poeta ; admittindo assim a variante ci tace.
Mas tudo isto pode ter algum merito como subtileza, mas não como fiel explicação
do sentido verdadeiro .
«Mas, conclue Tonini, seja o que for, ou possa parecer ao leitor, de nossa parte
estamos inabalavelmente convencidos sob a fé dos documentos, que a lacrimoša
catastrophe teve logar muito antes de 1288, e que o theatro da scena foi Rimini,
(sem que de um facto deshonesto, e atroz resulte gloria a esta cidade, que pelo
contrario véla a face de tristeza, e vergonha ante essa nodoa de sua historia, em
bora a celebridade de que os versos immortaes do summo Poeta revestiu o facto)
nós, qualquer que fosse o motivo de tão grande infortunio, ou qualquer que fosse
o intuito de Allighieri, pomos termo a estas palavras, repetindo :
Onorate l'altissimo Poeta. (1)»

Eis-aqui portanto o que pude colher nas minhas penosas perlustrações pelo
vasto campo das controversias sobre a deploravel desventura da bella filha de Guido
de Polenta ! Si não cheguei a resultados positivos, e indubitaveis, parece - me toda
via, que consegui desfazer o erro commum, que collocava a morte dos dous
amantes entre os annos 1288 a 1289, habilitando por conseguinte o leitor, sob
dados plausiveis, a fixar, si não o dia, ao menos o anno, ou o periodo provavel,
em que teve logar a scena luctuosa, e o theatro em que ella se passou. Em synthese
conscienciosa, enfeixei tudo, quanto podesse esclarecer as peripecias de um drama,
que no rolar de seis seculos tem sido tão variamente apreciado, sem que a duvida
em todos os espiritos deixasse de permanecer latente sobre muitas circumstancias

( 1 ) Este Tonini, escriptor esmerado, e judicioso, é natural de Rimini.


INTRODUCÇÃO AO CANTO V 139

intimas do facto capital. Assentei portanto, que me devia afastar do modo perfun
ctorio, porque até aqui os commentadores haviam discutido um ponto da Divina
Comedia, ao qual anda ligado um dos episodios de maior belleza, e sentimento,
que se tem conhecido ! Dante com a sua Francisca de Rimini, e Camões com a sua
Ignez de Castro ficaram , cada um na sua esphera, inimitaveis na summa alteza de
duas concepções, tanto mais estupendas, quanto, assentando ambas em factos reaes,
os dous genios as fizeram passar para o dominio do ideal poetico, dando-lhes um
colorido tão vivo, tão natural, tão animado de toques seductores, que as evidencias
da historia foram subjugadas pelos encantos da ficção : em outros termos : a histo
ria annullou-se na ficção ; a ficção ficou sendo a historia viva ! Vel - o -hemos.
Consideremos agora o estupendo episodio nos seus motivos, nas suas bellezas
artisticas, e nos seus fins. Dante encontrou Francisca filha de Guido duas vezes
morta : morta na vida, morta na reputação. De bocca em bôcca o seu nome voava
como um estribilho de escarneo, e de execração. Nos tempos semibarbaros as pai
xões são as leis mais fortes da sociedade. Eram estas paixões, que dictavam como
principio invariavel, que pela vingança se conquista a honra. O proprio Dante nol-o
diz em uma das suas composições lyricas :
Che bell'onor s'acquista in far vendetta.
Si a publica opinião, embuida em maximas similhantes, denunciava Francisca, e
Paulo como reprobos, preconisava Gianciotto como prototypo da honra cavalleirosa.
Mas o Poeta com a mesma imtrepidez, com que mettia no Inferno os dous primeiros
entre os libidinosos, arrancava ao segundo a falsa corôa de gloria, mettendo-o lá
tambem entre os fratricidas. Não haverá aqui dupla contradicção ? Si mette os dous
amantes no Inferno como culpados, porque condemna á pena mais cruel aquelle,
que os matou, para vingar a propria honra ? Respondo, que não ha contradicção ;
1.°, porque, por mais provada que fosse a culpabilidade de Francisca, e Paulo,
Gianciotto não tinha o direito de os privar da existencia, não só porque a vida
é de ordem superior á honra, como porque Deus, unico Arbitro da vida, e da
morte, nos adverte no livro da Lei, que a vingança pertence a Elle, e não ao offen
dido : Vindicta mihi; 2.',. porque o Poeta não estabeleceu como regra sua o prin
cipio, de que pela vingança se adquire a honra ; mas apenas registrou a idéa domi
nante no seu tempo. E a prova é que metteu no Inferno o assassino de Francisca, e
de Paulo.
Ainda aqui se offerece outra duvida : « Procedeu Dante com rectidão, mettendo
no Inferno a infeliz Francisca, e collocando Cunizza no Paraiso, aliás muito maior
peccadora ? Si no seu conceito Cunizza pôde merecer o dom do arrependimento,
porque não havia de conceder, com maioria de razão, dom egual a Francisca ? »
Cunizza foi sem duvida muito maior peccadora, que Francisca; mas Cunizza não
morrera de morte precipitada, em occasião proxima do peccado mortal, como
Francisca. Abandonando o mundo, ou abandonada pelo mundo, Cunizza recolheu
se em si ; entregou -se a practicas religiosas, e segundo todas as demonstrações
exteriores, se arrependeu dos seus erros passados, caso em que diz outro Poeta :
« Si um Deus fulmina os erros da ternura,
« Uma lagrima só lhe apaga o raio. »

O mesmo não podia o mundo julgar a respeito de Francisca, e Paulo, arrebata


dos de improviso d'esta para a outra vida, em circumstancia tão critica, que excluia
toda a apparencia, toda a possibilidade de arrependimento. O mundo tinha pois
140 O INFERNO

como principio de fé, que os dous miseros cunhados tinham perdido o Paraiso, e que
n'elles se verificára aquelle oraculo de Christo aos phariseos : In peccato vestro morie
mini: Morrereis no vosso peccado .
Assim esboçada no voz popular a condemnação dos dous amantes : que podia
fazer o Poeta ? Mettel-os no Paraiso ? Isso, não só lhes não restituiria a reputação,
como seria um novo escandalo, sem nenhum proveito para a memoria d'elles ; o
que não acontecia, mettendo - os no Inferno ; porque o mundo, que é tão facil em
praguejar os extraviados, encarecendo-lhes as faltas, é tambem facil em compa
decer- se d'elles, quando vê que o castigo excede desmesuradamente a culpa com
mettida. Assim fez o Poeta . D'aqui a universal compaixão ; d'aqui o perdão, ou o
total esquecimento do delicto em presença da enormidade do supplicio ! A estas
considerações philosophicas acrescia, que Dante, achando -se então com a alma
tambem enferma d'aquelle amor, que se transvaza nas paginas da Vita Nuova, as
duas victimas do punhal de Gianciotto pareceram-lhe mais infelizes, que culpadas.
Acrescia sobretudo que, segundo Carlos Troia. no seu Veltro Allegorico, o sangue
de Francisca circulava, ainda que de mui longe , nas veias do Poeta, pela razão
de parentesco entre os nobres antepassados de Guido de Polenta, e os Allighieris
de Ferrara .
Todas estas considerações humanas, bem que justificassem a benevolencia do
Poeta para com a desditosa filha de Guido, não lhe davam todavia bastante segu
rança do exito, que poderia ter uma tentativa de rehabilitação de sua memoria.
O facto tinha tido grande brado na Europa ; ninguem ousava pôr em duvida o exe
crando motivo, que lhe deu existencia ! O Poeta mediu bem a extensão do commetti
mento, e dos perigos pessoaes a que se expunha, rasgando o sudario que envolvia tão
tenebrosos mysterios ! Invocando porém toda a energia do seu caracter, e toda a
potencia do seu genio creador, recorreu a um expediente inaudito, como soe aconte
cer nos casos desesperados ! Evoca do Inferno a sombra ensanguentada de Francisca,
fal-a, em pleno tribunal de um mundo inimigo, confessar o seu crime ; pondo-lhe
nos labios, não já purpurinos, mas lividos, palavras tão doces, tão repassadas de
ternura , que seriam capazes de apiedar selvas, e rochedos, quanto mais humanos
corações .
Este episodio é tão estupendo, tão artisticamente encaminhado que, quanto
mais lido, mais se comprehende a habilidade da engenhosa urdidura ! O Poeta ,
como já observei, encontrou esboçada na opinião popular a sentença de con
demnação eterna dos dous miseros amantes, em vista do grave delicto, e pois pro
curou melhoral-os de condição, não no Inferno, onde tudo é estabelecido por lei
immutavel, mas no mundo. Em tão generoso empenho, calou todos os incidentes,
que podessem aggravar a sorte dos dous infelizes, e tornal-os menos dignos de com
paixão. Assim, deixou correr a phantasia pelo assumpto pathetico, e por entre o
lyrico, e o tragico, vai rematando o quadro com cores tão finas, tão delicadas, tão
enternecedoras, e tocantes

Que o tronco o sabe, que o rochedo o sente,


(1

Que a terra geme , e que fará quem ama ? »

Novo Midas, o Poeta florentino transforma a mulher peccadora n'uma triste.


victima das fraquezas humanas, e converte lagrimas de sangue negro em candidas.
perolas, pavorosos cyprestes em risonhas perpetuas, e saudades ! Todo o seu fito
é envolver na sombra o peccado dos dous amantes, e apresental-o com todas
as possiveis circumstancias attenuantes, figurando-os punidos cruelmente ao pri
meiro passo falso (al primo fallo ), e occultando a particularidade odiosa de ser
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 141

Paulo casado, e Francisca tambem casada, e não obstante persistiam em amar


se, e amar- se tão sem recato, que indicava um certo calejo na paixão, que por fim
descaíu em demasias, que serviram de pasto ás murmurações, que não tardaram em
repercutir no animo sombrio de Gianciotto ! Nada d'isso porém faz o Poeta perce
ber ; esforça -se em não levantar o véo, senão n’aquelle tanto a que a historia se
presta, para fazer conhecer, atravez dos escuros do quadro, os personagens postos
em scena, ao passo que a sua imaginação aproveita todas as circumstancias, que os
podem fazer sympathicos, e communica ás suas ficções tal colorido de verosimi
Ihança que, longe de poderem ser desmentidas pelos factos sabidos, as torna pelo
contrario criveis como verdades indispensaveis ao complemento da historia ! Dante
é historiador, mas historiador ao modo dos Poetas, que da verdade tiram o funda
mento, e materia para suas ficções, dando-lhes uma apparencia tão viva, e natural ,
como se estivessem presentes aos factos, que descrevem ! E quem jamais revelou
ao Poeta a primeira raiz (prima radice) do amor de Francisca, e de Paulo, e as
cruciantes angustias de Ugolino dentro da horrivel torre Muda ? Mas quem poderá
contestar a verdade d'essas narrações, e d'ellas se não commoverá ? É que em Dante
a ficção se transmuda em facto visivel, palpavel, como a sua arte , emula da natu
reza. Arrebata-nos de modo, que não deixa respiro ao nosso assombro, nem tempo
de distinguir o fingido do verdadeiro, porque ambos se nos apresentam identicos !
Leiam- se todas essas epopeas, que servem de corôa á civilisação dos povos
antigos, e modernos, e se conhecerá, que a ficção ahi se revela de prompto, em
quanto que quem estuda a Divina Comedia sente crescer em seu animo a fé na
veracidade da Viagem ao Inferno descripta pelo Poeta, sem que jamais surja a
menor duvida de que aquillo seja uma simples ficção, um sonho sonhado pela al
teza de engenho ( per altezza d'ingegno ). É o que exactamente acontece quando
acabamos de ler o presente episodio ! Aqui a ficção é tão poderosa, tão travada de
indicios vehementes de veracidade, que não deixâmos de ficar acreditando, que
Francisca, e Paulo estejam effectivamente no Inferno ! Quantas pessoas não têem
dito : « Dante é um admiravel Poeta ; mas não lhe podemos perdoar o ter mettido
no Inferno os dous infelizes amantes de Rimini, que tanta compaixão nos causam ! »
Eis o maior, e o mais bello elogio, que se pode fazer ao maravilhoso talento do
auctor da Divina Comedia ! Eis completamente preenchido o, seu desideratum , que
era excitar a compaixão a favor dos dous infelizes, que continuariam a ser tractados
pelo mundo com o mais injurioso desprezo, si o Poeta os não tivesse mettido no
Inferno ! Si elle resuscitasse, mostrar -se-hia tão satisfeito das increpações, e impro
perios, que lhe tem attrahido a sua dureza de coração, como satisfeito se mostraria
o actor, que, por ter desempenhado ao vivo o papel do tyranno cruel, os especta
dores, tomando a ficção por verdade, o cobrissem de maldições como si fôra o
proprio tyranno ! Tranquillisem-se porém os praguentos sentimentalistas. Em vez
de censuras, rendam preito, e homenagem á potencia creadora de Allighieri ! Si
por uma ficção estupendamente artistica elle metteu no Inferno Francisca, e Paulo,
por outra não menos estupenda os rehabilitou na compaixão dos seculos, de forma
que o ser villão para com elles foi acto de cortezia.

E cortesia fu lui esser villano.


(Inf., xxxm , v. 150.)

Em tudo o que precede, tivemos occasião de admirar em Dante o altissimo


Poeta ; passaremos agora a admirar n'elle o profundo philosopho christão. No
reverso do quadro sombrio veremos o alto fim moral d'este inimitavel episodio.
Dante, condemnando Francisca ás penas eternas, não foi levado, nem do sentimento
142 INFERNO

de malevolencia para com ella , como injustamente pensam alguns, nem tão pouco
foi levado pela razão da arte ; pelo contrario não fez, senão confirmar a sentença
proferida pelos contemporaneos da infeliz dama, e por elles estampada sobre a campa
da que elles chamavam esposa adultera, que havia votado amor a outro homem , que
não era seu marido. Pois bem, o Poeta, sem innocentar, como moralista severo, a
amante de Paulo , entra em uma especie de reconvenção com os accusadores
d'ella, e procura demonstrar, com todo o rigor da logica , que, si Francisca foi
criminosa, e digna das penas eternas, mais criminosos, e mais dignos de reprovação
eram os seus accusadores, como auctores das leis immoraes, que auctorisavam como
licita a violação da fé conjugal, como se vai ver.
É sabido que, durante tres seculos, o amor platonico permaneceu na região de
um ideal elevado, não só excluindo toda a paixão sensual, como sendo pelo con
trario uma fonte de toda a virtude . O epitheto de galante, que propriamente si
gnificava alegre, prazenteiro, no sentido de agradavel, amavel, etc., e que designava
o complexo de qualidades exigidas no homem de gentil porte, era dado a todo o
cavalleiro que, para se tornar agradavel, e amavel, testemunhava, primeiro á es
posa de seu senhor, e depois as todas as damas, um respeito, uma affeição, um
amor mais ou menos absoluto . Assim, a galanteria tinha, em provençal, o nome de
serviço ás senhoras. A galanteria do cavalleiro servente ( serviente) não era pois, sob
outra forma, senão a forma feudal do amor platonico, e constituia, por sua alliança,
o que se chamava amor cavalleiroso, isto é, humanamente espiritualista, comple
tamente estreme de todo o fermento corruptor. Entretanto, para dizer tudo em
summa, a galanteria , e o amor cavalleiroso foram descaindo de toda a sua pureza
primitiva, de toda a sua idealidade theorica, até que por fim a galanteria, tornan
do-se mais facticia, e convencional , do que natural , achou-se collocada em plano
escorregadio, perigoso, em que o culto desinteressado, e virtuoso prestado á mulher
se converteu em paixão sensual, e criminosa.
Assim foi que já no tempo de Dante, como observa Venturini, o amor chamado
platonico, ou cavalleiroso, não era senão um véo commodo para salvar o decoro
especialmente das mulheres inclinadas a um amor todo sensual. Foram então es
tabelecidos tribunaes, sob a denominação de « Côrtes de Amor » (Corti di Amore),
compostos unicamente de mulheres, as quaes accusavam esta ou aquella, que hou
vesse sido surprehendida em algum desvario não platonico. Si o facto arguido era
por estes tribunaes declarado conforme com as leis da honestidade da moda, a
mulher accusada era plenamente reintegrada na sua reputação, em face de cuja
decisão o marido ou o amante não tinha o direito de recalcitrar, e pelo contrario
era obrigado a crer, que a sua mulher, ou a sua amante tinha todas as virtudes de
uma Penelope , ou de uma virgem Diana.
As Côrtes de Amor regulavam -se pois por um codigo seu, que tinha trinta e um
artigos, alguns dos quaes contradiziam-se claramente, mas estas contradicções eram
necessarias, para que toda a mulher accusada fosse absolvida. Não transcreverei
todos os artigos ; mas irei citando aquelles, que têem toda applicação ao nosso caso.
É escusado dizer, que Dante repellia as disposições d’esse codigo, e das Côrtes
de Amor ; porque ellas legitimavam toda a voluptuosa intemperança. Porquanto,
segundo o artigo xyil, o novo amor obrigava o antigo a pôr-se no andar da rua :
Novus amor veterem compellit abire. O artigo xxxi dispunha, que nada prohibe que
uma mulher seja amada por dous cavalleiros : Unam fæminam nihil prohibit a
duobus amari.
Dante pois, querendo estigmatisar essa novidade immoral, escolheu Francisca
de Rimini, como aquella cujo miserando fim encheu de profunda compaixão toda
a Italia, e foi assumpto de todas as lendas do seu seculo.
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 143

O Poeta acolheu tristemente os écos do clamor publico, que denunciavam


uma catastrophe originada pelas iniquidades da moda, então tida em grande
honra.
Seria licito affirmar, que Francisca, mulher de Gianciotto, houvesse perdido o
decoro de mulher honestissima, por ter amado o irmão de seu marido ? « Não ! » res
pondia á moda. O primeiro artigo do codigo era clarissimo : Causa conjugii ab
amore non est excusatio recta. Quer dizer : Uma mulher, por ser casada, não pode
com justiça se escusar de amar outro homem . Logo si Paulo amava Francisca, esta
devia amar a Paulo .
Foi firmada n'este artigo, que Francisca respondeu a Dante :
Amor, che' a nullo amato amar perdona,
Mi prese del costui piacer sì forte,
Che, come vedi, ancor non m'abbandona.

Com estas palavras ella se defende, como se defenderia diante das Côrtes de
Amor, e certamente seria absolvida.
O artigo xxx, dispunha : Amor nihil potest amori denegare : Quer dizer : « Amor
não perdoa a quem não ama o seu amante .
Amor a nullo amato amar perdona

O artigo xxx determinava : Verus amans assidua, sine intermissione, coamantis


imagine detinetur. Com razão dizia Francisca em sua defeza :
«Amor prendeu-me a Paulo com laço tão indissoluvel,
Que, como vês, ainda aqui no Inferno me traz ligada a elle . »
Outras razões são adduzidas por Francisca.
O artigo 11 dizia : Qui non celat, amare non potest, « Quem não dissimula não pode
amar » .

O artigo xu : Amor raro consuevit durare vulgatus, « Rara vez póde durar o amor
divulgado ».
E disse Francisca :
Soli eravamo e senz'alcun sospetto.
« Estavamos sós, e sem sombra de suspeita alguma »
O artigo xv : Omnis consuevit amans in coamantis aspectu pallescere, a Todo o
amante costuma empallidecer em presença do amante » .
E Francisca exactamente disse :

Per più fiate gli occhi ci sospinse


Quella lettura, e scolorocci il viso.
« Por mais de uma vez, durante aquella leitura,
Languidos olhares trocaram-se entre nós, e pallido o rosto se nos fez .»
Artigo xvi : In repentina coamantis visione cor tremescit amantis.
E Francisca disse ainda :

Questi che mai da me non sia diviso .


«Este, que jamais se separará mim .
144 O INFERNO

Porque verus amans assidua, sine intermissione, coamantis imagine detinetur,


como estabelece o citado artigo xxx.
La bocca mi baciò tutto tremante .

« Todo tremendo a bócca me beijou. »

Em summa, Paulo amou a Francisca, e Francisca por gratidão amou a Paulo ;


preenchendo ambos todas as disposições do Codigo de Amor, de conformidade
com as normas prescriptas pela moda do seu seculo, que convertia a virtude em
vicio, e considerava um dever de boa consciencia amar-se o que se devia aborrecer,
observar-se o que se devia repellir. Mas um similhante amor, bem que sensualissimo ,
como se manifesta evidentemente de toda a narração de Francisca, todavia não
chegou nunca ás ultimas consequencias, porque Francisca, que Dante quiz figurar
como escrupulosissima observadora das leis do Codigo do Amor, sabia que o artigo
xiv admoestava que : Facilis perceptio contemptibilem reddit amorem , difficilis eum
charum facit haberi. Pelo que o amor de Francisca e de Paulo não passou de um
borborinho de doces pensamentos ( dolci pensieri), e uma expansão de doces suspi
ros (dolce sospiri), e o maior peccado de Paulo foi ter beijado todo tremulo a
bôcca de Francisca, e o maior peccado de Francisca foi não tel - o repellido ao pra
cticar aquelle acto immodesto, mostrando -se pelo contrario tão complacente depois
da morte, que, a despeito das sancadilhas a que os forçam os açoites da tempes
tade infernal, andam sempre junctos ( insieme vanno), e ella, a impenitente, se alegra
de que Paulo jamais se separará d'ella (mai da lei non sia diviso ).
Ora, não obstante a moda recebida absolver a Francisca, o Poeta, mettendo -a
no Inferno, manifesta que a moda era contraria aos bons costumes, isto é, que o
Codigo do Amor, e as Côrtes de Amor não serviam , senão para fomentar todas as
torpezas sensuaes, para permittir a violação da fidelidade do thalamo conjugal, e
de todos os deveres sagrados da sociedade publica, e da sociedade particular.
Tomou como exemplo de perdição moral a catastrophe dos amores de Francisca,
para lavrar um protesto solemnissimo contra a moda do seu tempo, que conduzia
as almas á inevitavel perdição eterna, visto como os seus sequazes morriam na
impenitencia, pela falsa persuasão em que estavam de que, bem longe de se terem
deslisado um ceitil das normas da honestidade, e do dever, tinham pelo contrario
satisfeito plenamente essas normas, uniformisando -se antes ás prescripções do
Codigo do Amor, do que ás do Decalogo, no qual aliás está escripto não somente
o non mocaberis (guardarás castidade ), mas tambem o non concupices ( não deseja
rás a mulher do teu proximo ) .
Emfim , o episodio de Francisca, que tão grande celebridade tem dado ao
canto y do Inferno, encerra os mais profundos ensinos da mais pura moral christã,
si bem se meditar na intima essencia do artificio poetico.
O certo é que Dante, mettendo no Inferno a desventurada Francisca, foi o mais
prestadio á sua memoria ; porque, por um milagre estupendo da sua phantasia
poetica, logrou attenuar a odiosidade, que pesava sobre seu nome, ora cercando de
circumstancias duvidosas o seu peccado, ora figurando - a como uma triste victima
das paixões legalisadas no seu tempo, já finalmente cingindo a sua fronte, até então
denegrida pelo labéo da infamia , de uma certa aureola de immortalidade mun
dana, que, si não pode despertar emulações, desperta sem duvida a compaixão de
todo o coração sensivel. Este admiravel episodio é mais uma nenia affectuosa, do
que uma satira pessoal. Assim o entendeu Guido de Polenta o Novo, sobrinho da
desditosa Francisca, o qual, em vez de offensa, considerou um verdadeiro serviço
INTRODUCÇÃO AO CANTO V 145

o ter o altivo Poeta arrancado a infeliz dama ao supplicio moral da reprovação


social, e ao mesmo tempo por ter fulminado o seu assassino com uma apostrophe
terrivel, que lhe marcou na face, e na de seus descendentes um vergão eterno !
Caina attende chi in vita ci spense . »

« Caim espera no Inferno o nosso cruel assassino .»

Verso terrivel, por concisão, e clareza ! E tanto mais terrivel, diz Morandi, quanto
Francisca tem a sciencia prophetica dos condemnados, e a sua previsão é já uma
sentença da divina Justiça contra aquelle, que cortou o estame da sua vida a sua
mulher, e a seu irmão !
Caina attende chi in vita ci spense.

Este verso ... parece uma serpente , que surge de improviso do meio da herva
com a lingua fulgurante ! Como tal devia parecer sem duvida a Gianciotto,
quando sob os olhos lhe caíu este canto v, no qual faz elle figura pouco inferior á
de Pilatos no Credo ! E este verso terrivel se imprime tão profundamente na nossa
memoria, porque é o ultimo, que Francisca profere aqui ; e , bem que occupe o meio
do terceto, é artisticamente destacado dos outros dous pela concisão da fórma, e
pela terribilidade do pensamento ! É uma setta vibrada no cavernoso coração do
desancado, e coxo Gianciotto !
Coragem de Dante !

10
CANTO V

Na entrada do segundo circulo Allighieri encontra Minos, juiz do Inferno, que o adverte com voz em grita , que
não se illuda com a largura da porta. Virgilio impóe-lhe silencio. Aqui são punidos os peccadores carnaes,
cujo supplicio consiste em serem continuamente arrastados com violencia por uma tempestade furiosa :
entr'elles descobre Dante a infeliz Francisca de Rimini , de quem ouve a historia triste do seu infausto
amor .

Assim do primeiro desci ao segundo circulo, (1) que é menos espa


çoso ; mas tanto maior é o tormento, que punge, e faz ganir os mise
ros condemnados .
Ali está Minos em gesticulação horrivel , bramindo, e rangendo os
dentes : (2) no vestibulo examina as culpas das almas, e lhes arbitra o
castigo, segundo as dobras da cauda em que se enrosca . (3)
Quero dizer, que quando a alma prescita comparece em sua pre
sença, confessa - lhe seus peccados, e elle, conhecedor infallivel da gra
vidade dos delictos , vê qual o logar do Inferno que lhe convem ; (4) cin
ge-se com a cauda tantas vezes, quantos são os circulos a que lhe apraz
fazel- a descer. (5)
No infando pretorio regurgitam sempre muitas , 6 que vão sendo
interrogadas,uma após outra : dizem o mal que fizeram , ouvem a sua
sentença, e depois lançadas no fundo da caverna, que lhes foi pres
cripta .(7)
Minos, ao ver-me , interrompeu o exercicio do seu alto ministerio,
gritando -me: «Olá tu , que vens a este doloroso hospicio , toma conta
comtigo, vê como entras, e de quem te fias : não te illudas com a
amplidão da porta ! o (8)
« E porque tambem gritas tu ? (9) bradou-lhe o meu Guia. Não ouses
impedir sua viagem decretada pelo Destino : ( 10) no Céo, onde se pode
tudo o que se quer, assim foi resolvido. Não lhe perguntes mais
nada . »
Agora começam a se me fazer ouvir os dolorosos lamentos ; ( 11)
agora chego a logar, onde muitos prantos me rasgam o coração. ( 12)
148 O INFERNO

Passando alem , achei-me n'uma região de todo ponto escura, a qual


mugia como tempestuoso mar (13) batido de ventos contrarios.
Um furacão infernal, que não dá treguas, arrasta com impeto os
condemnados , torcendo- os, e flagellando-os n'uma roda de martyrios
crueis .
Quando chegam diante da voragem , ( 14) redobram os gritos, os
prantos , e as lamentações, de mistura com blasphemias contra o Poder
divino .
Ouvi de Virgilio, que a tão aspero tormento ( 15) eram condemnados
os peccadores carnaes, que escravisam a razão aos prazeres voluptuo
SOS .

E assim como no inverno os estorninhos voam unidos em bandos


largos, e espessos, (16) da mesma sorte o furacão infernal impelle os
espiritos máos, unidos, e compactos, nas mais diversas direcções oppos
tas: nenhuma esperança jamais os póde confortar, ( 7) não de que cesse
o seu tormento, mas de que lhes seja minorado.
E quaes os grous em longas filas ( 18) vão cantando pelos ares seus
lamentos, taes eu vi algumas sombras, açoitadas pela tempestade,
vir ululando dolorosamente : pelo que perguntei : « Mestre, que pes
soas são aquellas, a quem o negro tufão tanto castiga ? »
« A primeira, respondeu , das que tu desejas conhecer, foi impera
triz de muitas nações . ( 19)
« Foi tão desenfreada no vicio da lascivia, (20) que para fugir ao vi
tuperio, que merecia por sua libidinagem , fez legalisal-a no codigo das
suas leis.
«É Semiramis, de quem se lê , que succedeu a Nino, e foi sua espo
sa : governou a terra, que hoje jaz sob o dominio do Soldão da Baby
lonia .
« A outra é Dido, que se suicidou por amor de Enéas, faltando á
fé jurada ás cinzas de Sicheu : (21) após ella vem Cleopatra , famosa por
sua incontinencia . (22)
Vi Helena, que occasionou tantos successos adversos ; (23) e vi o gran
de Achilles , ( 24) que por fim combateu com amor , e por amor ven
cido .
Vi Paris , Tristam ... e milhares de outros , (25) que me indicou com
o dedo, todos sacrificados no holocausto de amor .
Depois que ouvi o meu Doutor nomear as mulheres antigas, e os
cavalleiros modernos de tal guisa mortos, venceu-me a compaixão de
duas almas , e quasi que perdi os sentidos ! (26)
Então prorompi : « O poeta, de bom grado falaria aquelles dous,
que lá vão juntos abraçados , e que ao vento parecem tão ligeiros.» (27 )
« Espera, disse Virgilio , que elles se approximem mais de nós ;
CANTO V 149

nessa occasião lhes pedirás por aquelle amor, que os vae guiando, (28)
que satisfaçam teu desejo : elles virão.»
Logo que o vento os inclinou para nós , bradei-lhes : « Ó almas an
gustiadas , (29) si outrem vol- o não veda, vinde comnosco entreter breve
colloquio . »
Quaes saudosas pombas, mais levadas pelo amor que pelo ven
to, (30) voam com azas abertas, e certeiras ao doce caro ninho : taes
as duas sombras , obedecendo ao mesmo impulso, saíram do circulo,
onde está Dido, e vieram para nós atravez d'aquelle ar maligno : tão
forte lhes soou o meu affectuoso grito !
aó alma graciosa e benigna (31) (exclama Francisca), que affrontas
as trevas d'este abysmo, para visitar nós outros infelizes, cuja morte
tingiu de sangue o mundo!
« Si o Rei do Universo , (32) se dignasse sorrir propicio ás nossas
preces, nós terçariamos pela tua paz, pois tanto te compadeces do
nosso atroz infortunio !
« Tudo o que ouvir, e dizer te aprouver (33) nós tambem ouviremos,
e diremos , emquanto o vento , como agora, nol-o permitte . (34)
« A terra, que me foi berço (35) demora lá junto ao mar, onde o Pó
com seus ribeiros vem na paz buscar descanço .
« Amor, que rapido incendeia todo o coração gentil, (36) captivou este
dos encantos da bella pessoa, que me foi arrebatada (37) de modo tão
insolito, que ainda hoje me ultraja !
« Amor, que não perdoa deixar de amar a quem ama, (38) a este me
prendeu com amor tão forte, que ainda, como vês, não me abandona.
« Amor á morte egual a nós ambos arrastou : (39) o logar, onde Caim
é castigado, aguarda aquelle, que da vida o fio nos partiu .» (40) Taes
foram as palavras, que ambos nos disseram .
Depois que ouvi aquellas almas offendidas, (41 ) inclinei o rosto a terra ,
e assim o conservei, até que o poeta me disse : « Em que cuidas tu ? »
« Ai ! respondi, quantos doces pensamentos, quantos desejos arden
tes não os arrastariam a tão doloroso passo !»
Depois, voltando-lhes a face, disse : « Francisca, a narração dos teus
martyrios arranca-me lagrimas de tristeza , e dó ! (42)
« Mas dize-me : No tempo dos doces suspiros , (43) ainda quando inde
cisos eram os desejos, por que segredos de amor os podeste conhecer ? »
E ella respondeu : « Não ha dôr, que maior seja , do que lembrar o
tempo feliz nos dias da desgraça, e bem o sabe o teu Doutor ! (44)
« Mas, si tanto desejas conhecer a primeira origem do nosso in
fausto amor, (45) contar-te-hei como quem, chorando, fala.
« Por distracção, liamos um dia, (46) como foi de amor vencido
Lancillotto : estavamos a sós, sem suspeita de mal que nos viesse. (47)
l
150 O INFERNO

« No correr da leitura, languidos olhares trocaram-se entre nós, (48)


e pallido por vezes o rosto se nos fez : (49) mas um só foi o ponto, que
decidiu da nossa sorte . (50)
« Quando lemos que tão sôffrego amante beijára o suspirado riso,
este , a quem ligada serei eternamente , todo tremulo a bocca me beijou.
« O livro, e o auctor do livro foi o nosso Galeotto : (51) n'aquelle dia
findou nossa leitura ! » (52)
Emquanto um espirito assim falava, o outro jazia em lagrimas
banhado, e tal compaixão o peito me opprimia que, qual corpo
morto, em terra baqueei. (53)
COMMENTARIOS AO CANTO V

( 1 ) Così discesi del cerchio primaio que por isso teria sido melhor não ter
Giù nel secondo, che men loco cinghia. O nascido : meglio sarebbe per lei il non
Inferno dantesco é construido em forma nascere ( Venturi).
de amphitheatro . Seus circulos vam-se Dante allude sem duvida áquillo, que
estreitando de cima para baixo, e por de Judas disse o divino Mestre : Bonum
conseguinte restringindo - se a área res erat ei, si natus non fuisset.
pectiva. Está visto que ás almas, á me Terrivel lição para aquelles que , fu
dida que descem para o centro do abys gindo de confessar -se espontanea, e
mo, se augmenta o supplicio ; porque, utilmente n'este mundo ao ministro re
alem da afflicção do animo, ha a dor presentante do Deus de reconciliação,
do corpo, e a pena do sentido, que as e de misericordia, são compellidos no
atormentam por tal forma, que não gri Inferno a confessar -se, sem proveito, ao
tam simplesmente, nem suspiram como ministro executor das vinganças inexo
no Limbo, mas ululam como cães fusti raveis de Deus ! Não é isto uma simples
gados asperamente : E tanto più dolor phantasia poetica ; visto como, segundo
che pugne a guaio. podemos conjecturar pelos principios
( 2 ) Stavvi Minos orribilmente, e rin da nossa crença, e pelas practicas juri
ghia. Minos range os dentes por grande dicas da terra, os demonios encarrega
raiva : Allegoricamente o ranger dos dos de atormentar as almas, devem
dentes indica o humor acre com que saber quaes as suas culpas, a fim de po
alguns juizes do mundo, revestindo-sede derem applicar - lhes o devido castigo. E
medonho aspecto, ou por falso zelo da verdade que os demonios, que foram
justiça, ou por parcialidade, julgam con seus socios nos peccados, as podem já
tra a razão, e o direito. conhecer ; mas, para maior tormento
(3 ) Esamina le colpe nell'entrata , d'ellas, são constrangidas a confessal-os.
Giudica e manda, secondo che avvinghia. O systema penal de Dante é admira
Com todo o acerto colloca o Poeta vel de conformidade com os principios
o juiz n'este segundo circulo, porque é geraes da jurisprudencia divina, e huma
o primeiro que começa a entrar em pro na , diz Ortolan.
cesso, litteral e allegoricamente. Representando Minos a rigorosa jus
(4) Dico, che quando l'anima mal nata tiça, ministro do alto Senhor infallivel
Li vien dinanzi, tutta si confessa ; E quel dell'alto Sire infallibile, diz a Dante
conoscitor delle peccata Vede qual loco « não te illudas» .
d'Inferno è da essa. No terceto anterior ( 5 ) Cignesi colla coda tante volte,
declarou em geral o officio do juiz ; agora Quantunque gradi vuol che giù sia messa .
declara em especial. Mal nata, infeliz, Para tornar verosimil a ficção litteral,
152 O INFERNO

de que Minos é demonio, attribue -lhe se explicam. É proprio do nosso Poeta


uma cauda, em que se envolve, como condensar n'um simples traço cousas
se fòra uma toga, e pelas voltas, que faz ditas um pouco longamente, como que
com ella, indica aos demonios, seus offi rendo d’uma assentada imprimil -as na
ciaes, subalternos, os gráos das penas, mente do leitor.
que vão ser impostas ás culpas das almas, ( 8 ) Von t'inganni l'ampiezza dell'en
que examina. trare; porque não te será facil entrar, e
« Allegoricamente, diz Bianchi, a cau sair. Aqui imita Virgilio : Facilis descen
da de Minos figura o juizo da conscien sus Averno ; Noctes atque dies patet atri
cia, que se condemna a si propria, e se janua Ditis ; Sed revocare gradum, su
prende nos laços da culpa . Que os pec perasque evadere ad auras, Hoc opus,
cados são prisões da alma, que a impe hic labor est ( Eneid ., vi, 126). Mas Dante
dem de voar a Deus, é locução meta tinha sobretudo em mente aquelle texto
phorica frequente nas Sagradas Escri do Evangelho : Lata porta et spatiosa via,
pturas. » est quæ ducit ad perditionem (S. Matth .
( 6 ) Sempre dinanzi a lui ne stanno 7, 13 ) .
molte. Estão sempre muitas almas na Butti, explicando este passo, diz : « Vè
presença do juiz : porque em grande lá como entras, e qual o guia que te
affluencia são continuamente transpor conduz por estes logares ; não sei quem
tadas por Caronte ( Inf., III, 119) : vão te possa conduzir com segurança ; por
cada uma por sua ordem , sendo inter que sem o auxilio da graça de Deus,
rogadas ; confessadas as culpas, e ou ninguem aqui póde entrar, e sair depois.
vida a sentença, são precipitadas no Não te illudas com ver a porta tão am
logar do supplicio que lhes foi designa pla, visto como, si a entrada é larga, es
do. Sono precipitate, e strascinate al treitissima é a saída. Isto que o Poeta
luogo del supplicio loro assegnato (Ven finge ter -lhe dito Minos é verosimil ,
turi ) . quanto ao sentido litteral ; porque o de
No vi livro da Eneida descreve Virgi monio procura sempre arruinar toda
lio o apparato formidoloso d'essa scena obra boa, impedindo -a pelo terror. Finge
de angustia : Quæsitor Minos urnam tambem que isso lhe dissesse , porque
movet; ille silentum conciliumque vocat, visitava o Inferno com o fim de detestar
vitasque et crimina discit. os vicios, sendo testemunha das penas,
Allegoricamente, mostra Dante a mul que ahi lhes são impostas. Mas, no sen
tidão de peccadores, que ha no mundo, tido allegorico , o Poeta allude aquelles
e como todos, máo grado seu, vão cha christãos que, como elle, entram incon
mados ao juizo da propria consciencia, sideradamente no circulo de pessoas de
e dos seus similhantes, como outros vida viciosa, no qual é de grande perigo
tantos juizes implacaveis : não são de entrar ( Grita a consciencia significada
tropel chamadas a este juizo, vão com or por Minos): Olhae como entraes; não
dem , segundo a ordem dos peccados: di confieis em vós mesmos, nem em pessoa
zem a si mesmos o que fizeram , e ouvem alguma, senão na graça de Deus, por
o que os outros dizem ; depois são lança que sem ella, quem entra no antro dos
das em profundo desprezo, e aviltamen vicios, ainda mesmo por especulação
to no conceito dos bons, e no seu pro innocente , n'elle permanecerá ; e por
prio conceito, por mais impavidez que fim sereis motejados, e perseguidos
mostrem apparentemente ( Butti). pelos proprios viciosos , parodiando in
( 7) Dicono, e odono, e poi son giù vol juriosamente aquillo que de Christo
te. Para melhor apreciar a belleza, e Senhor nosso diziam os Fariseos : cum
força de verdade d'este ultimo verso, é publicanis et peccatoribus manducat ma
necessario meditar bem nos outros que gister vester. Tal é a gratidão dos vi
precedem, e ver como reciprocamente ciosos para com aquelles , que á simi
COMMENTARIOS AO CANTO V 153

lhança do Divino Mestre, misturam -se ( 13) Che mugghia come fa mar per
com elles para cural -os, ou para tentar tempesta. A tempestade incessante, que
experiencias. arrasta os espiritos com violencia. Mena
( 9) Perchè pur gride ? Como si Virgi gli spirti con la sua rapina. Aqui a pa
lio lhe dissesse : Porque, como Caronte, lavra rapina significa forza rapitrice; que
gritas tu tambem ? Não admira que o vale tanto como dizer que arrebata os
Diabo grite, diz Butti, porque vive sem espiritos com violencia. No Thesouro de
pre devorado de raiva . É de razão que Brunetto Latini lê -se : Rapinosamente,
grite quem não tem razão . no sentido de rapace impeto.
( 10 ) Non impedir lo suo fatale anda Os libidinosos, diz Butti, acham -se
re ; porque o designio da divina Vonta n'um logar privado de toda a luz ( di
de não pode ser jamais contrariado, ogni luce muto ), como merecido suppli
sendo ella egual á sua omnipotencia : cio de terem vivido em toda a sua vida
Alla divina voglia non può mai essere mundana submersos nas densas trevas
troncato il fine, essendo essa eguale all do peccado da luxuria , que de todos
onnipotenza. Voluntas Dei omnipotentiæ os peccados é o que mais cega o enten
est coæqualis (Epist. Reg. et Senat. ital., dimento ; que alem d'isto pela mesma
S 4) . No conceito de Dante, como no razão por que se deixaram arrastar pelo
de seus mestres in divinis, fato é L'alto impeto dos appetites carnaes, andando ,
fato di Dio ( Purg ., xxxi, 142), l' eterno e tresandando de especie em especie de
statuto (Par., XXI , 95 ) ; isto é, ordem da volupia, sem parar jamais em seu conti
providencia, l ' ordin di providenza, se nuo moto, são no Inferno açoitados, tor
gundo a qual tudo acontece por fim de cidos, e retorcidos em reviradas evolu
terminado a provveduto fine (Par., VIII, ções pelos embates furiosos de uma tem
104). Boccaccio escreve : Temporalis or pestade incessante, eternamente flagel
dinis explicatio, in divinæ mentis aduna ladora ; verificando-se o oraculo divino,
ta prospectu Providentia est ( Lib ., vi, que diz que as almas condemnadas são
p . 6) . punidas de modo correspondente ao
( 11 ) Dolenti note , indicam não só modo por que peccaram : Per quæ peccat
mente gritos desesperados, disperate quis, per hæc et punietur ( Sap ., XI, 17 ).
strida ( Inf., 1 , 115 ) ouvidos pelo Poeta Lá são os luxuriosos punidos pelo vento
viajando pelo reino da dor, mas todos os no ar (puniti dal vento nell'aere): pu
sons (suoni) escutados por diversos mar nidos pelo vento, em castigo da sua in
tyrios, e principalmente lamentações, constancia, e volubilidade nos proposi
que ahi são ferozes, lamenti che quivi tos de continencia ; e punidos no ar, em
sono feroci ( Purg ., XII, 114). O muito castigo da sua leviandade; significando
pranto pois (molto pianto ), significa que assim como o ar, por sua leveza,
os gritos, o pranto, e o lamento, que cede ao vento, assim por sua leviandade
feriram o coração de Allighieri, especial cedem os luxuriosos ao sopro de todas
mente no circulo de que agora fala tão as paixões sensuaes . Admiravel com
vivamente, como si n'elle já se achasse , binação do systema penal dantesco !
e visse os imaginados tormentos. Dante diz tambem no Convito, que a
( 12 ) I' venni in loco d'ogni luce muto. vida molle, effeminada, lubrica, que os
Depois que passei alem da porta de luxuriosos levam no mundo é punida no
Minos, achei-me n'um logar, onde reina Inferno pelo continuo agitar -se violen
sempre profunda noite ; la profonda tado, que pode ser egualmente a figura
notte che sempre vi regna (Purg ., XVI, 1 , da tempestade da alma, como a escurida
44 ); noite verdadeiramente privada de de do logar é a figura da luz do enten
todo planeta : veramente privata d'ogni dimento apagada pelas paixões sensuaes.
pianeta (Purg ., XVI, 1 ). Loca nocte tacen ( 14) Quando giungon davanti alla
tia late (Eneid ., vi, 265). ruina. Esta maldicta ruina tem sido o
154 O INFERNO

quebra bofes dos commentadores, que a verso seco (Par., XXVIII, 70 ), isto é, arre
explicam de modo vario. Landino, por bata por seu movimento velocissimo.»
exemplo, explica a ruina allegoricamen ( 15 ) Intesi che a così fatto turmento .
te pelo cair da cousa amada (pel cade Dante conheceu pela qualidade da pena :
re della cos.z amata ), que para mim é il modo della pena ( Inf., x , 64) que
um ovo de gemma sem clara ! Megalotti aquelles peccadores carnaes eram con
explica pelo despenho da fenda por onde demnados a similhante supplicio, exa
desceu o Poeta, e onde desemboca a torren ctamente porque escravisaram a razão
te do ar que arrasta em roda os espiritos. ao instincto ou appetite sensual : all '
Biagioli explica pelas farpadas, e agudas instinto o appetito sensuale ( Purg .,
pontas dos rochedos, que lastram a subi . XXVI, 84) . É de justiça que sejam cas
da da borda do precipicio pelo qual des tigados com um ar negro, e tempestuoso
cambam as almas. Scolari explica, dizen aquelles que offuscam o sereno lume
do : 0 Inferno de Dante não vae sempre da razão com a sombra ou antes com a
descendo para baixo ? Minos não manda treva da carne tenebra della carne : xiv,
para o fundo as alm.is, que condemna ? 56), em cujo deleite fatigam -se inces
Porque pois tanto martellar sobre a rui santemente : S' affaticano senza posa .
da diante da qual chegam as almas dos Já ficou dito, que no Inferno, qual Dante
luxuriosos. Vellutello explica pela rui o figura, e descreve, o castigo não só
nosa tempestade : rovinosa bufera. Mas, mente denota a natureza, e as similhan
objecta Venturi, si esta furiosa tempes ças da culpa (la natura e le sembianze
tade é exactamente aquella , que impelle della colpa ), mas tambem faz conhecer
as almas, como pode a ruina entender -se os tristes effeitos, que d'ella resultam :
d'este modo ? O Padre Aquino, seguindo Per quæ peccat quis, per hæc et punietur.
Daniello, melhor a entende por aquella ( 16 ) E come gli stornei ne portan l'ali,
abertura, e rotura, que o Poeta finge ter Nel freddo tempo, a schiera larga e
sido feita até ao centro da terra, quan piena. É sabido que os estorninhos, e
do os anjos rebeldes foram precipitados outros passaros, costumam no outono ,
do Céo, e que tem as bordas de rochedos como por tacita convenção, procurar as
agudos, e farpados ; e por isso os luxu regiões quentes, formando bandos lar
riosos, quando pelo furacão arremessa gos, e cerrados. Dante tira d'isto um si
dos chegam diante d'aquelle precipicio, mile allegorico para descrever a situação
gritam , e blasphemam a Divina Justiça, dos peccadores carnaes, que unidos em
pelo temor de serem pela furia do vento extensas, e espessas fileiras, similhantes
lançados no aby-smo. com similhantes (uniti in lunghe e spesse
O sabio Giuliani corta a difficuldade schiere, simili con simili), são arrasta
n'estes termos : « Não podendo aquelles dos violentamente pelo furacão infernal,
miseros espiritos recear saírem do logar, que os leva de encontro uns aos outros,
que lhes foi destinado por Minos, não se torcendo -os, ferindo -os de modo cruel :
deve entender aqui ruina por precipicio voltando e percotendo li molesta ( v. 33 ),
(per balzo diruto ou alto burrato), mas a saber : o furacão fustiga - os ora d'aqui,
sim pelo furacão per bufera ou vento ora d'ali, ora vindo de baixo , ora de
ruinoso desordenado em seus effeitos cima: Di qua, di là, di giù, di su gli
( disordinato nei suoi effetti). Ruina é mena. Castigo terrivel, mas merecido, diz
propriamente o logar, onde o vento im Magalotti, á inconstancia , e agitação de
petuoso se precipita , para investir com os animo, de que os libidinosos se deixam
espiritos máos, e torcel - os cruelmente. arrastar n'este mundo pelos encontrados
Allighieri, falando do primeiro Movel embates do amor impuro . Compara o
( primo mobile ) o nono Ceo, diz que este movimento irregular dado pelo furacão
arrebata consigo o alto universo : Dunque aos espiritos máos com o vôo dos es
costui, che tutto quanto rape L'alto uni torninhos, que é irregularissimo. Bella ,
COMMENTARIOS AO CANTO V 155

e mui bella similhança tirada, com finis legios : privilegio de entrar em corpo, e
sima agudeza, de animaes tidos em vi alma no Inferno; privilegio de não dor
lissimo preço (até porque são damni mir por tantos dias ; privilegio de não
nhos ) . comer ; privilegio de andar sobre as
( 17 ) Nulla speranza gli conforta mai. aguas; privilegio de vencer tão longo
Os condemnados não são jámais con caminho em tão curto espaço de tempo ;
fortados de esperança alguma, nem e privilegio por conseguinte de distinguir
quanto á cessação de seu tormento , aqui os luxuriosos através da escuridão
nem sequer quanto à sua minoração ; do ar.
porque no Inferno, como no Céo, tudo ( 19) Fu imperatrice di molte favelle,
é estabelecido por lei inquebrantavel, e Isto é, de muitas nações, que falavam
eterna : tutto è stabilito per infrangibile diversas linguas ( che parlavano diverse
e eterna legge (Par ., XXXII, 55 ) . lingue); ou porque foi Rainha da Baby
( 18) E come i gru cantando lor lai. lonia, onde primeiro foram confundidas
O primeiro simile dos estorninhos escla as linguas ( Venturi ) .
rece particularmente como são arrasta ( 20) A vizio di lussuria fu sì rotta .
dos pelo tufão os espiritos máos (spiriti Como si dissesse : Abandonou -se tão
mali), ao passo que este segundo nos sem freio ( senza freno ) aos excessos da
faz conhecer, e quasi ouvir os seus do luxuria , que declarou licito tudo quanto
lorosos suspiros (i dolenti loro sospiri). dicta o appetite carnal, ao ponto de , para
Os grous nas suas circumvolações pelo fazer desapparecer a infamia de ter-se
ar, vão em longas filas soltando vozes casado com o filho, não trepidou em
de som lamentoso, e triste . O vulgo legitimar por uma lei as nupcias entre
considera-os por isso aves agoureiras . paes, e filhos ! Não ha duvida que esta
Esclareçamos melhor o pensamento do depravada é Semiramis :
Poeta : com o simile dos estorninhos Hæc libidine ardens, sanguinem si
quiz indicar que o circulo designado aos tiens, inter incessabilia stupra et homici
espiritos máos estava cheio a não poder dia, quum omnes quos regiæ arcessitos,
mais, e assim empilhados, e verberados meretricis habitu, concubitu oblectasset,
pelo sôpro rijo da tempestade , se entre occideret, tandem filio flagitiose conce
chocavam cruelmente , sem se poderem pto, impie exposito, inceste cognito, pri
desviar, nem pela parte de baixo, nem vatam ignominiam publico scelere obte
pela parte de cima , nem por nenhum xit. Præcepit enim ut inter parentes ac
dos flancos: Di qua, di là, di giù, di su . filios, nulla delata reverentia naturæ ,
E com o segundo simile dos grous quiz de conjugiis adpetendis, quod cuique li
denotar duas cousas : 1.', que a turba, bitum esset, licitum fieret (Pauli Orosii
não só era grossa, pois occupava a es Hist., lib . 1 , c. 4) .
trada de ambos os lados, mas tambem Mas cumpre observar que, pouco antes
era tão longa como a mesma estrada ; de referir esta lei, aquelle advogado dos
2.", que a dita turba não andava silen tempos christãos de cuja doutrina serviu
ciosa, como as outras que veremos, mas se Sancto Agostinho : Quello avvocato de '
ululava continuamente pela violencia tempi cristiani Del cui latino Agostin si
da dôr. ( Bennassutti ). provide (Par., X, 120), havia dito : Huic
Naturalmente suscitar-se -ha aqui uma mortuo ( Nino regi Assyriorum) Semi
duvida . Como é que o Poeta podia ver ramis uxor successit; e isto parece que
aquelles luxuriosos, que estavam envol foi o que Dante quiz traduzir, dizendo :
vidos do ar negro (aer nero ), e tão Semiramide ... Succedette a Nino e fu
negro, que elle mesmo disse a principio : sua sposa : o que basta para imprimir o
Sou chegado a um logar privado de toda sello da verdade na lição commum, que
a luz, d'ogni luce muto ? Respondo, que diz succedette, excluindo a que traz o
esta viagem de Dante é cheia de privi sugger dette, aliás admittida por abali
156 O INFERNO

sados commentadores, não obstante a gune interlitam , imperio adjecit (Ori


precisão, que se nota sempre em Alli sio ) .
ghieri, toda a vez que allega algum tex . Por tudo isto podemos ter por firme,
to. E aqui elle não faz, senão citar vul que Dante conhecêra, e crêra que o rei
garisando aquillo que se lê na Historia Nino teve sob seu dominio toda a terra
de Paulo Orosio, a quem não raro cos da Asia (Brunetto Latini, Thes., 1 , C. 2 ) ,
tumava recorrer como a auctoridade
na qual alguns julgaram comprehendi
indubitavel (autorità irrepugnabile ), tan do tambem o Egypto, e que d'ahi Semi
to mais tendo o exemplo de Sancto ramis não só succedeu em tal imperio,
Agostinho, que muitas vezes o cita na mas cercou de muros a cidade de Ba
sua Cidade de Deus. Nem o mesmo bylonia, si é que não foi a sua funda
Orosio deixa de repetir : Regnavit Ninus dora ( Se pure non ' l ' ebbe fondata ).
annis Lii , cui successit (ut dixi) Semira Nenhum lido nas cousas da edade
mis uxor ( lib . II, c. 3 ) . Não menos o repete media ignora que em 1300, a que re
Dante depois : Ninus Assyriorum rex monta a Visão do Poeta, o Soldão do
cum consorte thori Semiramide, per 110 Egypto se chamava tambem Soldão de
naginta annos et plures ( Ninus per lir, Babylonia, e terra do mesmo Egypto.
et Semiramis per xlii), ut scribit Oro ( Inf., xxvii, 90 ). Esta crença popular,
sius, imperium mundi armis tentavit et segundo a opinião do insigne orien
totam Asiam sibi subegit (Mon., 11, 9 ). talista Dechel Amari, deve ter nascido
Isto corrobora com tanta certeza a lição de se confundir com a antiga Babylonia
succedette, que o cantor do imperio a cidade de Bagdad, que até 1171 foi
considera quasi identica a obra de Se capital do califado do Egypto, e passou
miramis com a de Nino, como tendo depois ao rigido dominio do Sultão, ou
ambos concorrido para a fundação da Soldão dos Musulmanos, chamado tam
Monarchia universal. Embora a lição bem Soldão do Egipto. Bagdad ainda
sugger dette pareça a melhor, nem por hoje faz parte da provincia Irak-Arabi,
isso se deve crer por verdadeira aquella, que exactamente é considerada como
que se encontra aqui traduzida no texto provincia de Babylonia. Em similhantes
dantesco. Demais, ainda que o Poeta noticias portanto Dante não ultrapassou
tivesse ahi dito que Semiramis dette o seu seculo, e as referiu taes quaes as
sugger a Nino, para significar que foi recebeu da tradição, ou dos livros mais
sua mãe, não teria de certo acrescenta em voga.
do que foi sua esposa , mas sim concu Finalmente , quanto aos vicios de Se
bina ou outra cousa peior ; não podendo miramis, e dos excessos a que se deixou
ao grande mestre faltar rimas opportu arrastar pelo máo'amor (malo amore)
nas, nem o criterio preciso para com por seu filho, tambem chamado Nino :
prehender que nenhuma lei civil podes appelato Nino per nome del padre i Thes.,
se jamais legitimar nupcias prohibidas iv ) falou-se de sobejo no terceto, que
pela natureza. O haver pois indicado precede ao verso de que nos occupâ
que aquella magnanima senhoreou a mos. Por conseguinte, bom ou máo
terra, que depois caiu nas severas mãos grado, se ha de ceder á força da verda
(Correggitrici mani) do Soldão ( v. 60) de, e ler sem duvida como Dante mos .
( Inf., XXVII, go), adverte como no verso tra ter lido n'aquella sua Historia ; suc
antecedente foi obrigado a dar algum cedette a Nino e fu sua sposa . Nem
indicio do acto heroico, pelo qual ella aproveita repetir que n'isto haveria des
pôde succeder no reino Assyrio ao seu ordem na construcção, pois que, quan
esposo Nino: Virum animo, et habitu do não fosse justificado pelos rhetori
filium gerens. E antes quiz ella unir a cos, acharia facil justificação em mais
Ethiopia ao Imperio, e fundar Babylo de um logar da mesma Divina Comedia,
nia: Æthiopiam bello oppressam , sani especialmente lá onde Allighieri vem a
COMMENTARIOS AO CANTO V 157

saber, que seu trisavô no baptisterio de dos primeiros, e mais severos commen
S. João Baptista foi justamente christão, tadores da Divina Comedia, Francisco
e Cacciaguida : Insieme fui cristiano e de Butti : Virgilio, por bocca de Dante,
Cacciaguida (Par ., xv, 135. ) diz que Dido rompeu a fé promettida ás
Fecharei esta extensa , e calamitosa cinzas do corpo de Sicheu, seu marido :
dissertação com a seguinte advertencia E ruppe fede al cener di Sicheo. « Dido
de Bianchi, que muito corrobora os ar com effeito foi Rainha de Carthago ,
gumentos precedentes: « Advertirei que a qual saiu de Tyro para escapar aos
assim o verso de Dante não indica, se furores de Pygmalião, seu irmão, que por
não um só facto simples, e innocente cubiça do thesouro de seu marido, e
da historia de Semiramis, qual o de ter por ambição do reino, o matou. Sicheu ,
succedido no reino a Nino seu marido. apparecendo - lhe em visão, e referindo
A outra lição de sugger dette, bem que lhe como tinha sido morto, aconselhou-a
apoiada em poucos codices, revela uma que fugisse quanto antes com o the
particularidade de sua brutal inconti souro, indicando -lhe o logar onde o
nencia libidinosa, como em prova do tinha escondido . Immediatamente , ella
que disse no terceto antecedente . Diz reduziu a cinzas o corpo de seu marido,
nos que ella chegou a esposar o filho e com ellas, e com o thesouro, embarcou
chamado Ninia, ou Nino ; e assim com em navios, que se achavam no porto,
um traço digno de Dante põe em rele destinados a outros rumos , e seguiu com
vo duas qualidades fóra de uso humano, alguns cidadãos, que a quizeram acom
isto é, mãe, e esposa do mesmo indivi panhar. Apoz alguns contratempos , che
duo. A respeito da historia de Semira gou á Africa, onde comprou ao rei Jarbas
mis, de seus artificios para succeder no tanto terreno, quanto podesse ser abran
throno a seu filho, e de suas outras gido por um coiro de novilho ; e depois
proezas, pode-se, alem de Paulo Orisio , de fiar os cabellos, e desfazer o coiro
ler o celebre historiador Justino. Em uma em delgadissimas tiras, cercou grande
palavra, tanto uma, como a outra lição, parte do terreno, e n’elle fez edificar
sustentam-se com a historia, a qual nos uma cidade, que foi chamada Carthago,
diz que Semiramis succedeu no reino a derivação de Carta , que n'aquella lingua
seu marido, como tambem nos diz que significa coiro : levantou logo um templo
se namorou de seu filho, e, pouco se em honra do Sicheu, e n'elle recolheu
importando com as murmurações do pu suas cinzas, rendendo - lhe cultos como
blico, tomou-o por marido. Quem qui a seu Deus, sob solemnes protestos de
zer que escolha, entre as duas versões, que não se casaria jamais. Mas no correr
a
que lhe aprouver . » dos annos, como diz Virgilio, Eneas,
(21 ) ...che s'ancise amorosa . Dido, navegando pelo mar, foi conduzido pela
filha de Belo : regina et mater Cartha fortuna a Carthago, onde Dido se apai
ginensium (Mon., II , 13 ) a qual tanto xonou por elle, e o teve comsigo algum
ardeu de amor por Eneas, que se suici tempo : depois, proseguindo Eneas para
dou, entristecendo , assim a sombra do a Italia, Dido, devorada de dôr por esta
primeiro marido Sicheu , e a de Creusa , separação, suicidou-se ; e é por isto que
que fora mulher de Eneas : Noiando ed Dante a colloca n'este 'segundo circulo
a Sicheu ed a Creusa (Par., IX, 97 ) . dos luxuriosos, porque morreu por amor
Com toda a razão diz o illustrado sr. deshonesto. Outra porém é a verdade
Conselheiro Viale : « Continúa Virgilio , verdadeira , continúa Butti ; porquanto
ainda depois de morto, a calumniar a S. Jeronymo diz, no primeiro livro con
honestissima Dido, Rainha de Carthago, tra Joviniano, que Dido foi senhora tão
modelo de castidade vidual.» Na verda casta, que preferiu suicidar -se, fazendo
de assim é ! É exacto que Dido se suici se arder na pyra , a casar com o rei Jarbas,
dou, mas porque ? Ouviremos agora um que a queria por esposa . Tudo corro
158 O INFERNO

bora o facto historico de ter sido Car pelo latino poeta mestre , e pelo poeta
thago fundada por essa mulher castissi toscano discipulo, dizendo :
ma, cujas tradições de honestidade fica
ram tão arraigadas no paiz, que quando Taccia il volgo ignorante : io dico Dido,
Che studio d ' onestade a morte spinse,
os Romanos conquistaram aquella cida Non quel d ' Enea com ' ë' publico grido.
de, e a pozeram em chammas, a mulher
de Hanibal com seus filhos, para não Cale-se o vulgo ignorante : eu canto Dido,
Que se suicidou por amor da honestidade,
perderem a sua castidade, arremeçaram E não por amor de Eneas, como diz a fama publica.
se heroicamente ao fogo, e morreram
queimados ! Isto diz S. Jeronymo. En Todavia direi, em honra do caracter
contro n'outros historiadores que, mo brando, e honesto de Virgilio, que a sua
vendo - se o rei Jarbas, com grande exer injustiça para com Dido não foi inspira -
cito, com o fim de pôr a cidade em da pela malevolencia, mas por politicas
assedio, despeitado pela repulsa de Dido, razões mui conhecidas. E Dante , tam
esta já não tendo meio de entretel-o com bem no interesse da sua Monarchia uni
palavras, nem querendo mais illudil-o, versal, cuja origem ia entroncar com o
uniu o patriotismo á castidade, suicidan Romano Imperio, abundou no sentido
do-se ; e d'est'arte salvou seus concida de seu mestre pelas mesmas considera
dãos das calamidades da guerra, de que ções : ambos eram Poetas.
estavam ameaçados. Não é exacto que ( 22 ) Poi è Cleopatr.is lussuriosa ). Diz
Eneas fosse a Cathargo, circumstancia Boccaccio que Dante lhe dá o epitethode
que Tito Livio teria registrado, si fosse luxuriosa, para não confundil- a com
verdadeira. S. Agostinho confirma esta outras Cleopatras, algumas das quaes
asserção. E portanto, fez mal Virgilio não foram manchadas dos vicios da fa
em irrogar essa infamia á memoria de migerada rainha do Egypto, cujas de.
mulher tão notavel por sua castidade, vassidões são assás conhecidas.
só com o intuito de ornamentar seu ( 23) Elena vedi per cui tanto reo Tem
Poema, aliás admiravel, sem esse episo po si volse. Por causa da qual Helena foi
dio de máo espirito. Maior mal fez o destruida Troia, de cuja destruição resul
nosso Dante, repetindo essa invenção taram grandes mudanças desastrosas em
calumniosa, e tanto mais censuravel por todo o mundo ( Vilani, Stor ., tr. 14) Tyn
isto, quanto podia ter consultado histo daris, incerta nimium laudata rapina
rias verdadeiras, e não ficções poeticas. ( Stalcio, Achilleidos, iv, 72 ). De cujo
Todas as desculpas, que se lhe possam rapto nasceram sanguinosas guerras:
dar, não serão sufficientes. Elle, que foi Miscere cruentas Europæ Asiæque ma
tão franco em dizer verdades duras aos nus... Jupiter et tristes edixit cædibus
outros, si ainda vivesse, sem duvida nos annos ( Ibid . 1 , 18 ) .
ouviria docilmente . » Mas, si Helena mulher de Meneláo,
Dido, diz de seu lado Boccaccio, foi foi, como dizem todos, arrebatada vio
mulher de exemplar castidade, que, para lentamente por Páris Troiano, teria
não faltar á fé ás cinzas de seu marido, Dante razão de punil-a como luxuriosa ?
heroicamente se suicidou . Mas Allighie Landino é o unico que discorda de que
ri, porque segue a opinião de Virgilio, o rapto fosse violento , exprimindo - se
mette-a entre os libidinosos, dizendo, n’estes termos : «Bem que alguns dizem
como se viu : L'altra è colei, che s'an que Helena não foi arrebatada por vio
cise amorosa . Erupe fedde al cener di lencia , mas de sua livre vontade seguiu
Sicheo . Páris (non la rapi, ma essa di sua vo
Petrarca (observa Venturi) nel Trion lontà lo seguio ).» Entre esses alguns,
fo della Castità, respeitosamente, sem a quem allude Landino, figura de certo
nomeal- o, reprehende Dante, e restitue Dares Frigio, que na sua Historia De ex
a Dido a reputação, que lhe foi tirada cidio Troiæ , justifica essa importante
COMMENTARIOS AO CANTO V 159

circumstancia de não ter sido Helena Rimini, e de Paulo, seu cunhado. Andam
violentada ; não sendo por conseguinte, abraçados, porque o amor, que os li
como em geral se pensa, causa inno gou no mundo, ainda os liga no Inferno,
cente, mas funestissima das cruentas e a ligeireza com que andam é allego
guerras, que por tantos annos lavraram ricamente tomada pela leveza, ou le
entre Gregos, e Troianos : . logo Dante viandade com que se deixaram levar da
não lhe fez injustiça em collocal- a entre violencia d'aquelle amor (della violenza
os libidinosos. Que errados que são os d'amore ). Mais claro : facilidade com
juizos humanos ! Dido, castissima, passa que foram impellidos pelo impeto da
por impudica: a sr . Helena, travessa paixão, com esta mesma facilidade são
de conta, passa por honrada ! levados pelo furacão infernal, de modo
( 24 ) ... e vedi il grande Achille, que que parecem movidos mais rapidamen
depois de ter vencido tantos inimigos te do que os outros espiritos. E paion
no campo da batalha, por fim combateu si al vento esser leggieri . Ha outro en
com Amor por Polissena, e teve em seu sino allegorico n'este passo. Allighieri,
amor assás dolorosa sorte : e ebbe in suo antes de falar aos dous espiritos , consulta
amor assai dogliosa sorte ( Trionf., 1 , Virgilio, que symbolisa a razão; que
25 ). Dante dá novamente ( Purg ., xx, 92 ) rendo admoestar -nos com isto, que antes
o titulo de grande a Achilles, recordan de perguntarmos aos outros os motivos
do que Estacio n' Achilleida o chama intimos de seus desastres infamantes,
grande Achilles : Magnusque tibi præ devemos ouvir as inspirações da nossa
ludit Achilles ( 1,9). razão, para não incorrermos na pecha
(25 ) Vedi Paris, Tristano ... e più de intromettidos , expondo -nos tambem
di mille. Paris, o raptor de Helena. a sermos interrogados sobre factos
Tristam, sobrinho de Marco, Rei de nossos, que nos atlijam , ou envergo
Cornovaglia, na Gran Bretanha, o pri nhem .
meiro dos cavalleiros andantes, e que (28) ... e tu allorli prega Per quell'amor
por amor da Rainha Isota practicou che i mena . Isto é, em nome do amor
admiraveis provas de valor ; mas por reciproco, que ainda os entretem em tão
fim , colhido com ella em flagrante, foi inseparavel união. Virgilio diz no livro
com a sua propria gloriosa lança tras vi da Eneida , que nos condemnados
passado . Veja- se a Tavola Rotonda, ou a dura eternamente aquella mesma paixão,
historia de Tristam . Os outros milhares em que foram mortos ; mas a Sancta
foram tambem mortos por causa de suas Theologia ensina o contrario ; ensina
travessuras amatorias. que entre os condemnados reina odio
( 26 ) Poscia ch ' i ' ebbi il mio dottore summo , como summa caridade entre os
udito. « Tão fundo foi o meu sentimento que se purificam no Purgatorio. No
de piedade, que quasi desmaei» ( Pietà juizo final, entre os corpos dos condem
mi vinse, e fui quasi smarrito). Diz quasi, nados, e as almas, que lhes pertence
porque o desmaio de pesar não foi com ram, haverá de parte a parte repugnancia
pleto, foi parcial. Quer o Poeta fazer horrenda de se tornarem a unir ; e por
nos entender, que elle não se compade que ? Porque foram socios intimos no
ceu de que aquellas mulheres, e caval peccado ! Dante conhecia perfeitamente
leiros fossem condemnados ao Inferno ; esta doutrina ; mas aqui não é o theolo
mas tão somente de que se tivessem go que fala, é o Poeta, que reproduz a
deixado arrastar pelos excessos do amor doutrina que ouve de seu guia . Mesmo
impuro, tornando - se dignos do eterno n'este canto elle se mostra verdadeiro
castigo. Aqui a piedade é no sentido de theologo .
compaixão, commiseração, etc. ( 29) O anime affannate ... s’altri nol
( 27) Parlerei a que' duo, che insieme niega. Anime affannate quer dizer o
vanno. Tracta-se aqui de Francisca de mesmo, que anime innamorate ; porque
160 O INFERNO

a consternação, o tormento, em que se aspectos desejados : ... gli aspetti desi


acham se deve considerar qual effeito ati (Par., XVIII, 4) . E isto se requer,
do amor desastrado, que os força andar a fim de que as outras palavras, a que
unidos sob o fustigo cruel da tempestade se une aquella, encontrem correspon
infernal (bufera infernal). E é por este dencia no forte, e affectuoso grito.
amor, que Allighieri lhes deve rogar, Com azas abertas e firmes as pombas
que satisfaçam seu desejo, falando -lhe. dirigem -se ao doce ninho, como se não
Anima afannata entende - se alma, que fossem levadas pelas azas, mas sómen
exactamente se lastima com amargura te pela propria vontade : o instincto é
dos olhos com que amor a tinha assettea que as leva (Par ., I, 114). Exactamente
da , e preza : anima, che appunto si la n'esta significação, volere deve ser en
menta degli occhi onde amore l'aveva tendido por instincto, impeto primo, ou
saettata e presa (Conv ., 11, 9 ). Vinde fa amore naturale (Purg., XVII, 92 ), que
lar -nos, si outrem vol-o permitte : S ' vem a ser a mesma cousa que prima
altri nol niega. Aqui abstem -se Dante voglia ( vontade, desejo ), qual nas abe
de pronunciar o nome de Deus, falando lhas : lo studio difar lo mèle ( Purg ., XVIII,
com pessoas, que morreram em pecca 57, 59 ). Donde resulta que andaram
do mortal, e portanto na ira de Deus : pouco avisados alguns commentadores,
nell'ira di Dio ( Inf., III, 122 ). Não ob sustentando que volere (vontade) não se
stante, o modo terno, por que manifesta póde attribuir as pombas, mas sómente
o desejo de falar aos dous miseros disio (desejo), e que por isso dal voler
cunhados, revela a sua alma graciosa, e portate se deve referir as duas almas de
benigna (v. 88), nem o gentil coração de Francisca, e de Paulo. Dizer isto é, desco
Francisca podia desconhecel-a, tanto nhecer de todo o conceito de Dante, o
que : qual no apresentar- nos as pombas, leva
(30) Quali colombe dal disio chiamate, das pelo amor de seus filhos, quer de
Con l’ali aperte e ferme, al doce nido terminar a viva força d'este amor, ex
Volan per l ' aer ; dal voler portate. As cluindo toda a idea de que as pombas
pombas incitadas só por amor natural tivessem outro motivo de voar, senão o
voam pelo ar com azas abertas, e firmes amor, com que acudiam ao pipilar de
( aperte e ferme) ao ninho de seus doces seus doces filhos, dolci nati.
filhinhos : assim aquellas duas almas (31 ) O animal grazioso e benigno.
consternadas, attrahidas pelo meu forte, Como si exclamasse : 0 alma, que ain
e affectuoso grito, saindo do circulo , da cravada no corpo mortal, fitta nel
onde está Dido, vieram para nós, atra mortal corpo (Purg., xiv, 10) vens, atra
vés d'aquella atmosphera maligna, trazi vés d'este ar negro ( perso ), ver nós ou
das, mais pela promptidão do amor, do tros, que tingimos o mundo ( tignemmo il
que pelo sopro do vento. Nos adjecti mondo ) com o nosso sangue, quando
vos aperte e fermeparece alludir aquelle fomos traspassados de um só golpe, que
verso de Virgilio : Celeres neque com nos cortou o fio da vida : ci spense la vita
movet alas ( Eneid ., v, 213 ) . De resto, ( v. 107 ) . Graciosa , e benigna se anto
nenhum simile mais exacto se poderia Thou a alma de Dante aos dous infelizes
encontrar ; porque não serve somente cunhados , distinguindo logo n'elle aquel
para esclarecer o conceito do Poeta, la benigna vontade, em que o amor se
mas para completal-o . faz sempre conhecer perfeitamente :
Em apoio da interpretação supra , basta Benigna volontade, in che si liqua
attender que desejo ( desio ), como n'ou Sempre l'amor, che drillamente spira
tros logares da Divina Comedia, signi ( Par ., xv , 1 , 2.)
fica ( do mesmo modo que desiderium
entre os latinos ) objecto desejado, (og Não deve offender os ouvidos a pala
getto desiderato) ou os doces filhos de vra animal, que nos apparece fugaz na
COMMENTARIOS AO CANTO V 161

doçura do verso, aliás caracterisada por intercederiamos pela paz, ou felicidade a


adjectivos subsequentes, não apropria que aspiras, visto a compaixão que mos
veis senão ao homem, que é naturalmen tras por termos caído na culpa, que nos
te companheiro sociavel, e mais perfeito condemnou a tal martyrio cruel. Deus
que todos os animaes (Conv., II, 4, 9) ; não podia de certo ser amigo, nem ouvir
ou antes animal divino, desde que pelo propicio ás preces d'aquelles, que o ti
uso da razão participa da divina nature nham offendido em cousa tão grave , e
za,dacchè colla ragione partecipa della por conseguinte morreram na sua ira.
divina natura ( ibid. III, 2) . S. Gregorio ( 33 ) Di quel che udire, e che parlar ti
chamou o anjo rationale animal (Hom. piace. De boa vontade ouviremos, e res
in Epiph .). ponderemos, emquanto, como agora, o
Como, e por que modo aquelles dous vento se mostra sereno.
miseros amantes tivessem conhecido, Aqui Francisca de repente abre o seu
que Dante viajava pelo Inferno, tendo coração gentil, e, medindo pelo proprio o
ainda a alma encerrada no corpo de desejo de Paulo , dirige a palavra, não
verdadeira carne (anima fitta in corpo só a quem lh'a pede, como a quem a
di vera carne), não é facil de attingir acompanha na desgraça commum.
com precisão. Não errará porém quem ( 34) Mentre chè'l vento, come fa, si
crer, que elles isso conheceram pelo tace. Isto é, emquanto o vento cessa de
facto de o verem exempto da furia da mugir, e de arrastar-nos com a sua furia
tempestade infernal (bufera infernale), violenta.
e pelo facto tambem de o verem atur Si tace corresponde ao taceat no tão
dido de compaixão pela sorte d'elles. celebre texto de Jeremias : Neque ta
Cumpre notar, que d'aquelles dous ceat pupilla oculi tui ( Thren ., II, 18);
companheiros de infortunio, o que se palavras com que cada um do povo de
apresenta para responder a Dante é Israel, em vista de tantas calamidades
Francisca ; porque, como coração mais de Sião, parecia excitar seus olhos a não
gentil, era a mais apta para fazer sentir cessar ( restarsi) de chorar. O que resul
a verdade de tão lacrimosa narração. ta claramente do que precede : Deduc
Sobreleva, que ella, para mostrar-se in quasi torrentem lacrymarum per diem , et
divisivel de seu amante, fala em nome noctem ; non des requiem tibi. Vê-se por
de ambos, como uma só alma dominada aqui quanto descabidamente se applica
dos mesmos sentimentos, e effectos. É este texto do Propheta no sentido de
por isso que, quando ella acaba de articu explicar as seguintes palavras dantescas :
lar suas queixas, o Poeta considera suas Là dove ' l sol tace ( Inf.. 1 , 60), e loco
palavras como ouvidas de ambos. N'isto d'ogni luce muto : ( v. 28) ; nas quaes
devemos admirar a delicada gentileza, phrases tace e muto, indicando privação,
como a sublime arte do mesmo Poeta, prestam-se admiravelmente a fazer com
mediante a qual as flores da poesia des prehender como as cousas, tornando -se
abrocham da mais arida sciencia ! E a visiveis, mediante a luz, falam (parlano)
sciencia, que elle nos quer ensinar é : aos olhos, e pelos olhos á mente ( Inf.,
Que o amor consorcia o amante com a VII, 120 ; VIII, 8 ) .
pessoa amada : Amor congiunge l'aman Emquanto o vento nol-o permitta. Pa
te colla persona amata : d'onde veio a rece aqui haver contradicção em Dante ;
dizer Pythagoras : Na amisade se faz um porque, tendo dito anteriormente que
de mais : Nell'amistà si fia um di più ... a tempestade infernal não cessa nunca
Sicchè l' amor d'una si communica n'ell' (la bufera infernal non resta mai) agora
altra, e così l'odio e il disiderio ed ogni diz que ella cessou. Não ha porém con
altra passione (Conv., iv, 1 ). tradicção alguma. Bem que a tempes
(32 ) Se fosse amico il Re dell'universo. tade infernal não cesse jamais ali, onde
Si o Rei do universo fosse nosso amigo, tudo é estabelecido por lei eterna
II
162 O INFERNO

( per legge eterna stabilito ); todavia , parecem ambos offendidos ( offese), me


havendo sido determinado pelo Céo nos de terem sido mortos cruelmente,
que Virgilio mostrasse o Inferno, e o do que da infamia que d'esse facto lhes
Purgatorio a Dante, a este foi tambem resultou aos olhos do mundo . Esta idea
concedida toda a graça de que houvesse fixa, tenaz, exacerba-lhes o martyrio.
mister, para alcançar o efeito da provi É notavel que os condemnados no In
dencial viagem (del fatale viaggio ). ferno de Dante se mostram sempre ze
Alem d'isto, a tempestade é sim incessa losos da sua reputação no mundo , elles
vel ( incessabile ), em infligir a devida que não a respeitaram emquanto vive
pena aos espiritos máos, mas ella deve ram !
completar o seu gyro, e depois voltar Não ha duvidar que a pessoa de
sobre elles com maior furia, torcendo -os, Francisca lhe foi arrebatada com violen
e retorcendo -os com toda a violencia . cia, ou expellida do corpo mortal : ca
Póde- se pois dizer que a hora em que o ciata del corpo mortalle (Par. , X, 127 ), e
impeto do ventos e modera é exactamen assim, segundo a sua propria declaração,
te aquella , em que as almas contam que determina precisamente a violenta morte
a sua furia se redobra, para nenovar a que ambos sucumbiram . Foscolo opi
n'ellas a eterna Hagellação. É esta a na que a bella pessoa, que foi arreba
sorte que Francisca, e Paulo esperam , tada a Francisca de Rimini não foi a sua,
depois de terminado o seu breve dialo mas a de Paulo , com quem ella se tinha
go com Dante, a quem, como ficou dito, casado, na persuasão de ser elle o seu
foi concedida aquella graça por vontade verdadeiro marido, e não mero procu .
suprema , que pode tudo o que quer . rador do irmão . Mas esta subtil inter
Por isso diz Megallotti: Pieno è il Poe pretação contradiz a mente do Poeta.
ma di grazie singularissime della divi. ( 38 ) Amor, ch'a nullo amato amar per
na bontà concessi al nostro Dante. dona. Como si dissesse : « Amor não per
( 35 ) Siede la terra, dove nata fui. doa, que nenhuma pessoa amada deixe
Como si dissesse : Ravena, onde nasci, de amar com egualdade a quem a ama”.
é situada nas margens do Adriatico, lá O nosso poeta Bocage, que era auctori
onde o rio Pó, desejoso de saciar o seu dade na materia, define bem as condi
curso, e gosar de paz, ou descansar, vae ções impostas aos amantes n'um soneto,
desembocar com outros rios seus con que começa :
fuentes : Sulla marina dove il Po dis
<A frouxidão no amor é grave offensa,
cende Per aver pace co ’ seguaci sui Offensa , que se eleva a grao supremo :
( Inf., v, 98-99 ). Amor requer paixão, ardor, extremo,
( 36 ) Amor, che al cor gentil ratto Com extremo, e ardor se recompensa .”
s ' apprende. Apodera - se d'elle rapido
com a sua chamma : S'appiglia rapido Entre as cantigas populares da Tosca
colla sua fiamma ( Purg ., XX, 12 ). Amor, na, ouve - se uma, que acaba por este
e coração gentil são uma só cousa, da estribilho : Bisogna amar chi vuol esser
mesma sorte que a alma presa, e namo amato . ( Quem quer ser amado é mister
rada transfunde -se toda no gentil cora ser amante). O proprio Allighieri expli
ção ( Vita nuova , S xx ) . cou amplamente o sentido do verso ,
( 37) Prese costui della bella persona, que ora nos occupa , em um soneto, que
Che mi fu tolta. Como si dissesse : se encontra na Vita nuova, S xx, e que
« Este pobre Paulo deixou -se arrastar começa :
dos attractivos da minha pessoa , que
Anore e cor gentil sono una cosa
me foi arrebatada com violencia, na Siccome il Saggio in suo ditado pone, ele.
hora da culpa. por mão fratricida » ( v.
106 ). Está entendido que Francisca fala O sabio, a quem allude, é Guido Gui
por si, e por Paulo, por isso ao Poeta nicelli , que Dante reverenciava como
COMMENTARIOS AO CANTO V 163

pae, e que na sua canção, que cita no (41 ) Da che io intesi quelle anime offen
Convito ( IV, 20), assim se exprimia : se. Offendidas ou pelo peccado da lu
Al cor gentil ripara sempre amore
xuria, ou pela morte cruel, ou pela in
Siccome augello in selva alla verdura ...
famia : dal dolore della ria fama. Foi
Foco d'amore in gentil cor s ' apprende, isso, diz Dante, que me fez inclinar o
Come virtute in pietra preciosa. rosto de tristeza, e compaixão : di tris
tizia e pietà : a saber, de dor, e compai
Reproduzindo inteiro um d'estes ver xão, não do seu castigo, mas do seu
sos, entendeu Dante fazer a maior hon peccado, que lhes foi causa do seus tor
ra ao seu prezado mestre Guinicelli, e mentos, consequencias necessarias de
não menos ser agradavel ao seu amigo haverem passado do amor honesto, e
Cino de Pistoia, que havia tambem es licito ao deshonesto , e illicito, repro
cripto : vados pela divina justiça. Virgilio, vendo
Secondo umano corso di natura seu discipulo n'aquella posição de an
A nullo amato amar perdona Amore. gustia, perguntou -lhe : « Quem pensas
tu ?» ( Che pense? ) Quando respondi a
( 39) Amor condusse noi ad una morte. Virgilio, exclama Dante : « Ai de mim ,
Amor que quando é assim extremo tolhe que me compadeço de ver a natureza
quasi toda a liberdade n'outra cousa humana cair muitas vezes, por fragilida
(non lascia quasi altro pensare ) ( Vita de, da alteza da virtude no abysmo do
Nuova, S xxxIx), conduziu-nos, dous vicio ! » ( Aqui ha uma allegoria : a sen
incautos, diz Francisca, a sermos co sualidade, representada por Dante,
lhidos em flagrante delicto, e mortos commuve -se, e entristece -se pelas cou
(uccisi). Mas a Caina, onde são punidos sas mundanas ; mos a razão, represen
os fratricidas ( Inf., xxiv, 32 ), espera tada por Virgilio , o desperta d'esse vão
que nos arrancou da outra vida : colui pensamento , e diz- lhe que o affugente ).
che si tolse d'altra vita, ( Inf., xxiv) A des E Allighieri, bem que desejasse com
venturada Francisca, reconhecendo ter prazer com seu Mestre, explicando - lhe
commettido a culpa de romper a fé, o motivo, todavia calou - se, si tacque,
para com seu marido (rotto fede), e opprimido que estava de compaixão,
menos, compadecida de si, do que do em vista de tão lastimosa desgraça . E
seu cumplice , mostra- se indignada con- quando respondeu, quasi esquecido
tra Gianciotto, mais por ter morto seu d'aquella pergunta, prorompe exclaman
irmão, do que a ella propria. O logar, do :
onde Caim é castigado, aguarda aquelle, Ai ! quantos doces pensamentos , quan
que da vida o fio nos partiu : Caina tos ardentes desejos não os arrastavam
attende chi vita ci nos spinse. É sublime a tão doloroso passo, isto é, até o ponto,
de energia esta imprecação ! ou até onde, diria Petrarcca , os fez
( 40 ) Queste parole da lor si fur porte. chegar o amor (ove li aggiungese amor ),
Tem havido quem, interpretando mal e que pela embriaguez d'esse amor,
a mente do Poeta, tenha supposto que ( e che per ebbrezza d ' amore) foram
estas palavras foram proferidas por arrastados do honesto ao deshonesto,
Paulo. Bem havia dito o mesmo Poeta, da fama á infamia, e da vida á morte!
que alguns formam sua opinião , antes Com effeito , muitos doces pensamen.
de examinar os preceitos da arte, e de tos deveriam ter precedido aquella ca
investigar com criterio o sentido dos tastrophe dolorosa ; porque o amor não
versos dos outros : nasce, nem cresce subitamente, mas exi
ge algum tempo para cevar, e nutrir o
E cosi ferman sua opinione, pensamento (Conv., 11 , 2 ) : tomando de
Prima ch ' arte , e ragion per lor s ' ascolti.
pois maior porporção, o animo, preso
( Purg ., XXVI , 122 ) . por elle, entra a desejar a pessoa amada,
164 O INFERNO

e não arrefece, senão depois de pôr -se quam dolorosa é a lembrança da vida
de face a face com ella : si raffronta mundana perdida para sempre.
(Purg., XVII, 51 ; Vita nuova , S x ). Francisca julga feliz esta vida ; por
(42 ) ... i tuoi martiri A lagrimar mi que em comparação do Inferno, de certo
fanno tristo, e pio. Martyrio, em geral, é é mil vezes mais feliz quem vive aqui,
tomado por tribulação, tormento , etc. É apesar de todos os pesares, do que la
vocabulo muita vez usado nos escriptos no horroroso, e eterno supplicio.
de Dante . (45 ) Ma se a conoscer la prima radi
( 43) Ma dimmi : al tempo de' dolci sos- ce Del nostro amor tu hai cotanto affe
piri, A che e come concedette Amore, tto, Farò come colui que piange e dice.
Che conosceste : dubbiosi desiri ? Como si Si tantus amor casus cognoscere nostros
perguntasse: Dize-me: no tempo em que ( Eneid ., 11, 10) . Como, si Francisca dis
suspiraveis na doçura do amor : SOS sesse : Já que de modo tão enternecido
piravate in dolcezza d'amore ( Vita nuo- procuras conhecer a causa primaria do
va , S XXVII ), por que circumstancia ou de nosso desastrado amor, fal- o -hei ba
que modo Amor vos permittiu perceber nhando em lagrimas as minhas palavras.
a timida vontade, ainda não manifestada Sic fatur lacrymans. Talia fundebat
em vós ambos : Del timido volere che lacrymans. (Eneid., vi 1 ; 11 , 3 44 ), veja
non s ' apriva ? (Purg., XVIII, 8). Em se aqui, adverte Costa, como Dante
summa: qual foi a primeira raiz ou o soube exprimir um mesmo conceito
principio do vosso notorio amor ? Del com diversas harmonias, que correspon
vostro palese amore ? ( v. 124) . dem a dous diversos affectos. O Conde
(44) ... nessun maggiore dolore, Che Ugolino indignado, e Francisca queixo
ricordarsi del tempo felice Nella mise- sa, dizem a Allighieri que estão promptos
ria ; e ciò sa 'l tuo Dottore. Notavel, e a responder a sua pergunta. Mas o pri
singular indicio de gentileza, n’estas meiro indignado diz com accento aspe
palavras allusivas a Virgilio ! É verdade ro, e terrivel : Parlare e lagrimar ve
que uma sentença similhante se encon- drai insieme; a segunda com tenue, e
tra em Severenio Boecio : In omniadver- dulcissima voz diz : Farò come colui che
sitate fortunæ infelississimum genus est piange, e dice. Certamente a pessoa, se
infortuni fuisse felicem (De Cons. Th., gundo a qualidade, e o impeto dos affe
lib. 11, p. 4). Mas, alem de não ter Dante ctos, de que está dominada, modula o .
em occasião alguma dado o titulo de som da palavra. É admiravel como todos
seu Doutor a Boecio, sem embargo de os personagens postos em scena na
apreciar muito seus escriptos, e cital - os Divina Comedia se alternam concorde
algumas vezes , no caso presente il suo mente no diapasão, por vario modo re
Dottore não póde, nem deve ser outro, petindo uma palavra. Por norma tal po
senão o Mantuano, que sob tal caracter demos deliciar-nos em ouvir os versos
se tem mostrado in tutta Visione del do altissimo Cantor, os quaes vibram
Inferno e del Purgatorio ( Inf., II, 140 ; um som alto ou baixo, lento ou rapido,
Purg ., xxv, 29 ; Inf., XII, 3 ; Purg ., III, conforme exige a paixão d'aquelle, que
42 ). Logo no primeiro Canto Dante o no sacro drama é introduzido a falar.
declarou por seu Mestre, e auctor pre- Não errou aquelle , que disse crer ou.
dilecto : Tu se'lo mio maestro e il mio vir na poesia de Dante uma musica sua
autore . O Infandum , regina, jubes reno- ve, e perenne !
vare dolorem , de Virgilio encerra a mes- Farò come colui che piange e dice.
ma idéa da citada sentença. Francisco Butti explica este verso assim : « Falarei
Butti confirma o que acabo de dizer, chorando, não por contricção do pecca
declarando que Francisca fazia aqui do, mas, porque perdi aquillo, que repu
allusão a Virgilio ; porque Virgilio, que tava felicidade, isto é, o poder peccar a
tambem já era morto, podia avaliar meu gosto , como antes da morte . » Com
COMMENTARIOS AO CANTO V 165

effeito, esta explicação é theologica, por re. Quando lemos (eis o passo), que o
que no Inferno não ha arrependimento. nobre cavalleiro Lancillotto beijou o de
(46) Noi leggevamo un giorno per sejado viso ( che il disiato viso fu bacia
diletto . Como si dissesse : « Liamos em to dal si nobile cavallier Lancillotto
certa occasião por mero deleite o livro (Conv., iv, 105 ), este pobre Paulo, a
dos amores de Lancilloto, e de Ginevra . quem amor me ligará eternamente
Estavamos sós, sem a mais leve suspeita Questi, che mai da me non sia diviso )
de sermos surprehendidos em malicia ; todo tremulo os labios me beijou ( La
porque nem mesmo desconfiavamos de bocca mi baciò tutto tremante ).
nós ambos, que, embora nos amassemos, Riso aqui diz tudo : por um tropo
não haviamos manifestado nunca O
mimosissimo o Poeta quiz significar a
menor indicio de demasias . bôcca, fonte do riso, pelo mesmo riso,
(47 ) ... e senz' alcun sospetto. Aqui até para evitar a repetição da palavra
sospetto, na significação de temenza ou bôcca no verso immediato . A bôcca, que
paura (temor, ou medo) encontra -se na por meio do riso patenteou o amor da
Divina Comedia em mais de um logar
alma de Ginevra : La bocca, che videndo
( Inf., ix, 51 ; Purg ., XXII, 125 ), e se em svelò l ' amore della anima di Ginevra .
prega ainda hoje na linguagem toscana O mesmo Dante, sempre avido de
Venha , não tenha medo ( Venga, non exaltar a sua amada Beatriz, canta :
abbia sospeito ).
(48) Per più fiate gli occhi ci sospinse Voi le vedete amor pinto nel riso,
Quella lettura... Como si dissesse : « Em Ove non puote alcun mirarlafiso.
mais do um logar, aquella leitura, des Vós lhe vēdes no riso, o amor pintado
pertando em nossos corações um mes Onde ninguem a pode encarar fixamente.
mo sentimento, excitava nossos olhos Wita nuova .)
a olharem -se mutuamente com indecisos
desmaios » : In più di un luogo, quella Não continuarei em tão miudo exa
lettura , destandoci in cuor un medesimo me de bellezas, em um episodio, onde
sentimento, sospinse gli occhi aguardar cada palavra é idéa, e sentimento, é
ci ľun l'altro. É nos olhos, onde o imagem viva do objecto, e que só se
aspecto da alma apaixonada mais se póde julgar, e apreciar com o coração !
traslada. Negli occhi, ove ' sembiante ( 51 ) Galeotto fu il libro, e chi lo scris
più si ficca ( Purg ., xxi, 11 ). O grão se . Querendo dizer : « Galeotto foi o
mestre Bocage verteu lindamente este auctor d'esse livro, que nós dous lia
conceito, dizendo : mos, e que teve a arte perniciosa de
„ Eu antes quero
nos arrastar ao precipicio. » Em termos
Muda expressão
mais claros : 0 alcoviteiro entre Lancil
Os labios mentem , lotto, e Ginevra chamava- se Galeotto ;
Os olhos não . nome, que se deu depois a todo o alco
viteiro. Por isso Dante, valendo-se da
(49) ...e scolorocci il viso : Lo fece d'un duplice significação de tal nome, põe na
color pallido quasi d'amore ( Vila nuova, bôcca de Francisca, aquellas palavras
S XXXVII), desenhando assim no rosto a sublimemente ambiguas de sentido, e
côr do coração, il colore del cor ( Ibid ., que em phrase rasgada querem dizer :
S xxv ) . Um alcoviteiro foi para nós o livro,
( 50) Ma solo un punto fu quel che ci como um alcoviteiro foi aquelle , que o
vinse. Como si dissesse : « Mas um só escreveu : Un lenone fu per noi il libro ,
lance d'aquella aventura foi o ponto come un lenone fu quen gli che lo scrisse
que nos venceu, que uniu para sempre ( Fratricelli ).
os nossos corações com vinculos de ( 52 ) Quel giorno più non vi leggem
amor»: uni i nostr icuori, li legò con amo mo avante. Como si dissesse : « N'aquel
166 O INFERNO

le dia, apoz o beijo de Paulo , findou a pudor como a virtude, e quem se acon
1
nossa leitura , porque fomos victimas do selha com o coração tem o dever de
punhal fratricida .. respeital - a.
Este verso vale de per si a immortali ( 53 ) Mentre che l'uno spirto questo
dade poetica do auctor da Divina Co disse, L'altro piangeva sì, che di pieta
media ! de, etc. Como dissesse ; Emquanto Fran
A sua varia belleza arrebata-nos a cisca dizia estas cousas, Paulo (altro
admiração ; mas nos impõe o dever spirto) se debulhava em lagrimas, por
de não levantar muito o delicado sen que reconhecia que foi o auctor princi
dal, que envolve o artificioso concei pal da desventura da illustre Dama .
to ! ... A belleza tem tambem o seu ( Fratricelli ).
INTRODUCÇÃO AO CANTO VI

A terceira caverna tem 175 milhas de diametro, 550 de circumferencia : o diame


tro do seu poço tem 140, a sua circumferencia 440. N'este circulo estão os glutões,
cuja pena consiste em serem flagellados por uma chuva de agua immunda, de neve,
e de saraiva, assim como em soffrerem um cheiro horrivel, que o fundo do poço
exhala por causa das immundicias ahi accumuladas pela chuva, e finalmente em
serem arranhados, esfolados, e esquartejados pelo Demonio Cerbero. Este monstro,
que é o guarda dos glutões, ladra horrivelmente com tres bóccas sobre as desgra
çadas almas, que desejariam ser surdas, para lhe não ouvir os ferozes latidos ; mas
se aquieta, em lançando -lhe Virgilio um punhado de terra nas fauces vorazes ;
symbolisando assim os glutões villissimos, cuja lingua se amordaça com um jantar,
uma ceia, etc. Eis a razão por que Dante no seu Poema não escrupulisou parodiar a
mythologia gentilica, visto como os sabios pagãos sob o véo das suas allegorias ou
mythos explicavam aquella moral, que hoje com mais conspicuidade, e pureza expli
camos philosophos christãos. Assim pois este Cerbero, que arranha, esfola, e esquarte
ja as almas dos glutões, não significa outra cousa, senão os remorsos dos miseros con
demnados, isto é, o verme de que falam as sagradas lettras ; verme , que não morre,
que eternamente roe .
Aqui Dante é conhecido por Ciacco, seu concidadão, e que na lingua florentina
quer dizer porco. Dante fal - o predizer os futuros acontecimentos da sua Patria ; sendo
digno de notar-se que o Poeta não manifesta o menor desejo de conhecer nenhum
dos habitantes d'este circulo, sem duvida para significar assim o desprezo em que
tem esses villissimos comilões, egoistas, que do ventre fizeram o seu Deus, na phrase
do Apostolo.
Depois de ter falado com Ciacco continúa a seguir Virgilio, e andando pisa por
necessidade os desgraçados reprobos de que o circulo está cheio, sem d'elles falar;
mas sim da vida futura ; cumprindo d'est'arte o conselho que lhe deu Virgilio no ves
tibulo do Inferno, quando passava por meio dos ignavos, dos quaes são primos co
irmãos os glutões, dizendo : «Não te occupes d'elles, mas olha-os, e passa adiante.
Nom ragioniam di lor ma guarda e passa » . E si Dante mostra alguma compaixão
de Ciacco, é unicamente por ser seu concidadão ; e quasi em todos os circulos vere
mos o Poeta dar provas de amor patrio, salvo quando graves crimes tornam indi
gnos de toda a contemplação alguns dos seus conterraneos.
168 O INFERNO

Os dous Poetas atravessam o circulo directamente até o poço : aqui, pela pri
1 meira vez, dobram á esquerda, e gyram por uma setima parte da sua circumfe
rencia ; rodeiam o arco, no fim do qual acham o ponto de onde se desce á quarta
caverna. Ciacco roga a Dante que no seu regresso do Inferno recorde seu nome aos
florentinos ; e assim fazem as almas de todos os condemnados, que não deixaram
inimigos na terra, e por isto esperam que se tenha d'elles compaixão, porque só
foram inimigos de si.

4
CANTO VI

No terceiro circulo, onde se acham os dous Poetas, sáo punidos os gulosos, cuja pena é serem expostos a uma
furiosa chuva de agua sordida, mesclada de neve, e saraiva, alem de serem cruelmente esfolados pelas
unhas, e dentes do cão Cerbero : entre estes condemnados Dante encontra Ciacco , celebre comilão floren
tino, do qual ouve prognosticos a respeito do futuro da patria.

Ao abrir -se -me de novo o entendimento, que se tinha fechado ante


o quadro compungente do tragico fim dos dous amantes infelizes, (1 )
vejo em torno de mim, por todas as partes para onde me volte, novos
tormentos, e novos atormentados.
Sou chegado ao terceiro circulo da chuva (2) eterna, maldita, e pe
sada, sempre invariavel, sempre a mesma.
Saraiva grossa , agua immunda, e neve chovem incessante no te
nebroso recinto d'este circulo, e do fundo, pela estagnação do lôdo,
exhala horrivel cheiro .
Cerbero, fera cruel, e monstruosa, (3) com tres bốccas ladra como cão
sobre a gente, que ahi jaz submersa.
Este monstro tem os olhos rubros, a barba engordurada, e negra,
o ventre enorme, as patas guarnecidas de unhas, com (4) as quaes arra
nha, esfola, e esquarteja os espiritos.
A pancada da chuva fal-os soltar uivos caninos : no voltar o lado do
corpo dam allivio ao outro lado : por isso muitas vezes se revezam os
miseros profanos. (5)
Quando nos viu Cerbero, o grão verme, (6) abriu a bôcca, e nos
mostrou os dentes : todos os membros tremiam-lhe de raiva . (7)
E o meu Guia estendeu as suas mãos, apanhou terra, e lançou um
gran punhado dentro das tres sedentas fauces.
Qual o cão, que, ladrando ao forasteiro, mais deseja um osso, que
offendel-o , (8) e depois que lh'o atira, cala-se, e tracta de o roer que,
170 O INFERNO

era esta toda sua contenda : assim fizeram as immundas bôccas do


1
Demonio Cerbero , o qual aturde tanto as almas , que desejariam ser
surdas .
Nós passamos atravez das sombras enfraquecidas pelo peso da
chuva, e punhamos os pés sobre a sua vaidade, que parecia pessoa. (9)
Aquellas almas jaziam todas por terra , ( 10) a fóra uma, que se levan
tou , para assentar- se, apenas nos viu passar por diante .
« O tu , que passeias vivo por este Inferno, bradou-me , reconhe
ce-me , si pódes : nasceste muito antes da minha morte. » (11)
E eu lhe respondi: « Póde ser que o teu estado angustioso tenha
operado em ti tal transformação, que me não possa agora occorrer de
ter-te visto já alguma vez .
« Mas dize-me : Quem és tu , que foste condemnado a logar de tanta
dor, e a pena tão ignominiosa, que, si ha outra maior, não creio que
possa ser tão repugnante ? »
E elle a mim : « Florença, tua cidade, que é tão cheia de inveja,
que lhe trasborda o sacco, (12) teve-me no seu seio em vida regalada,
e feliz . (13)
«Vos outros meus concidadãos me chamastes Ciacco : por causa da
damnosa culpa da gula, (14) como vês, aqui sou atormentado sob esta
terrivel chuva.
« Eu alma infeliz não sou a unica punida aqui ( 15) por este vicio :
porque est'outras são castigadas com pena similhante por peccado si
milhante . » E nada mais me disse .
Eu lhe respondi: « Ó Ciacco, o teu aflictivo estado confrange-me por
modo o coração, que me desafia a chorar ! ( 15)
« Mas dize-me, si sabes, ( 17) quando terão fim as discordias civis de
Florença ? ( 18 ) dize -me, si ainda existe lá algum justo, e qual a causa de
tanta dissenção ? »
E elle respondeu : « Após longas disputas de palavras, passarão á
effusão de sangue, e a parcialidade selvagem expulsará a parcialidade
adversa com muito damno.
« Mas depois a parcialidade selvagem ha de caír dentro em tres
annos, (19) e a sua contraria ha de prevalecer, mediante um tal , (20) que
negacêa entre ambas.
« A facção negra terá por longo tempo o collo alçado, opprimindo
duramente a facção branca , sem levar em conta suas queixas, e amea
ças .
« Existem lá dous justos , mas não são ouvidos: (21 ) Soberba, Inveja,
e Avareza, eis as tres faiscas, que atearam nos corações toda discor
dia . »

Aqui findou Ciacco o seu lacrymoso som, (22) e eu acrescentei :


CANTO VI 171

« Preciso ser ainda esclarecido : faze-me pois a graça de responder


a outras perguntas.
« Dize-me : Onde está Farinata, e Tegghiaio, que tão dignos foram ? (23)
onde Thiago Rusticucci, Henrique , Mosca, e outros, que em bem fazer
empregaram seus talentos ?
« Dize-me onde estão, e faze que eu os conheça, porque tenho desejo
de saber, si o céo os tem contentes, ou si o Inferno os atormenta . )
« Esses taes, respondeu, demoram entre as almas mais negras : (24)
são punidos em diversos circulos por culpas diversas : si desceres ao
fundo do abysmo os poderás ver .
« Mas quando voltares ao doce mundo, rogo-te que lembres aos
cidadãos de Florença o pobre Ciacco : (25) outras cousas não te digo,
nem te respondo mais. )
Então, voltando os olhos de través, mirou -me um pouco, inclinou
a cabeça, (26) e caiu com ella ao lado dos outros condemnados .
E o meu Guia me disse : « Elle não se levantará, (27) senão ao som
da angelica trombeta, quando vier o Poderoso adversario julgar o
mundo.
« Cada um voltará de novo á sua triste sepultura ; reassumirá a sua
carne, e a sua fórma ; ouvirá a sentença de condemnação, que eterna
soará aos seus ouvidos . »
Depois passamos entre o immundo amalgama das almas, e da
chuva, com todo o nosso vagar, discorrendo um pouco acerca da outra
vida .
Por essa occasião perguntei : « Mestre, estes tormentos crescerão
depois da grande sentença final, ou serão menores, ou abrazadores
como agora ? »
(
Respondeu -me: « Recorda-te dos principios da tua sciencia, se
gundo os quaes uma cousa experimenta maior prazer, ou maior dor,
quanto mais perfeita é no seu ser .
« Posto que esta gente maldita não attinja nunca a verdadeira per
feição, todavia espera , que depois da resurreição será menos imper
feita . )
Rodeámos aquelle circulo em toda a sua circumferencia, falando
de muitas cousas mais, que não repito : chegámos ao ponto, onde se
desce ao circulo dos avaros , e ahi encontrámos Plutão , o gran ini
migo .
1
COMMENTARIOS AO CANTO VI

( 1 ) Al tornar della mente , che si chiu Cerbero, cão monstruoso do Averno,


fructo da união de Echidna com Tisi
se Dinanzi alla pietà de'duo cognati, Che
di tristizia tutto mi confuse : Como si
dissesse : « Ao reassumir o uso ordinario
1 phone. Segundo Hesiodo, tinha cincoen
ta cabeças ; tres, segundo outros . Dante,
dos meus sentidos, perturbados pela diz Boccaccio, o colloca n'este circulo,
compaixão, e tristeza, que me causou a não já como guarda, mas como symbo
lastimosa sorte dos dous cunhados (Fran lo allegorico do damnoso vicio da gula ,
cisca , e Paulo ), achei-me no fundo do com o qual muito se caza a etymologia
circulo infernal, onde por todos os lados , do nome Cerbero, que quer dizer Creo
que eu voltava o corpo, e os olhos, su borus, isto é , devorador da carne ; defi
perabundavam condemnados, muito nição, que abrange o vicio da inconti
mais compactos, que no circulo prece nencia em todas as suas manifestações.
dente ; porque infinito é o numero Nenhum demonio pois podia figurar o
dos glutões, beberrões, e parasitas, que vicio da gula com tanta propriedade ,
do mundo todo chovem n'esta caver como Cerbero, porque é cão, animal
na » ,
por natureza mais guloso, que todos os
(2 ) I' sono al terzo cerchio della pio outros, e tão guloso, que torna a comer
va, etc.: Como si dissesse : « Sou chega aquillo mesmo, que expelle do estomago;
do ao terceiro circulo infernal, sem que de onde vem o dito vulgar : voliou ao
saiba dizer como a elle desci, visto que vomito. Isto exactamente costumam fa
me achava alheiado dos sentidos, e não zer os individuos dados ao vicio da gula,
perguntei ao meu guia o modo por que como se pode ver em escriptores anti
se operára essa transição, não só por que gos, que pintam asquerosas scenas da
não era cousa que eu necessariamente glutoneria. Nas tres guelas de Cerbero
devesse saber, como porque essa minha symbolisa Dante os tres caracteres ge
pergunta envolveria um peccado de cu raes dos glutões : 1.", são faladores in
riosidade ou de ociosidade, que é mãe supportaveis, sobretudo quando estão
do peccado. A chuva extravagante, e com o ventre cheio ; porque , não po
molesta, que jorra continuamente aqui, dendo bem expedir as palavras, por te
não tem regra nova, nem qualidade rem a lingua entumecida pelos ardores
nova : não tem regra nova,porque chove do cravo, e da mostarda, que condimen
sempre do mesmo modo : não tem qua tam os manjares, e a voz rouca pelas
lidade nova, porque chovem sempre as continuas exhalações do estomago, o
mesmas cousas : não ha variedade de seu falar confuso assimilha -se ao ros
sorte alguma ». nar dos cães ; 2.º, os cães, si não são
( 3 ) Cerbero fiera crudele e diversa. fustigados, ou si nada percebem que os
174 O INFERNO

incommode, não ladram nunca ; de seu lavras do propheta dirigidas aos intem
lado os glutóes, pelo torpor que lhes perantes, que nas doçuras dos banque
causa o muito comer, e beber, conser tes se entregam aos excessos do vinho :
vam - se ás vezes taciturnos; mas em con Ululat... qui bibitis vinum in dulcedine
tinenti murmuram , e ladram , si presen (Joel., 15 ) . Não menos deixou de lem
tem qualquer motivo, que lhes possa brar -se dest'outras palavras biblicas ap
difficultar ou diminuir aquillo, que elles plicadas ao genero do castigo reservado
esperam comer ; 3.º, os glutões não pela divina justiça aos glutóes : Aquis et
soffrem que os outros comam , e, á ma grandinibus et pluviis persecutionem
neira do cão, que olha sempre mais para passi ( Sap ., XVI, 6 ).
o osso que o companheiro roe, do que Profani. Litteralmente chama -se pro
para aquelle que elle devora, não olham fano o logar, que outr'ora foi sagrado,
com menos avidez para as iguarias, que e depois reduzido a uso commum . Uma
os outros comem , e para aquellas, que egreja, por exemplo, que no seu princi
estam nos pratos, do que para aquellas, pio foi consagrada ao culto divino, e
que elles derricam . depois profanada. Allegoricamente po
Alem d'isto, quando Dante diz que rém , Dante chama aqui profanos os in
Cerbero tem os olhos vermelhos (occhi temperantes, que foram bons emquanto
rossi) quer significar um dos effeitos seus corpos foram , na phrase do Apos
da gula nos comilões, nos quaes, por tolo, vasos sagrados, em que habitava a
demasiado comer, e beber, as evapora graça do Espirito Sancto ; mas que de.
ções quentes do estomago geram hu pois foram profanados pelas concupis
mores na cabeça, que depois, distillan cencias da carne, na phrase de outro
do- se pelos olhos, excitam as membra Apostolo, e por isso condemnados a re
nas interiores, e os tornam vermelhos, volver -se, como porcos, n'esse immun
e lagrimosos. Quando diz que Cerbero do lodaçal, sob a fustigação de uma chu
tem a barba gordurenta, e esqualida va maldicta : Per quæ peccatquis, per hæc
( la barba unta , ed atra ), quer indicar que et torquetur ( Sap ., X1, 17 ).
os gulosos, pela soffreguidão, e voracida (6 ) Quando ci scorse Cerbero, il gran
de com que comem, não podem evitar vermo. Como nos circulos precedentes
que o succo das iguarias trasborde pela Caronte, e Minos tentaram amedrontar
barba, que se torna humida, pardacen os dous Poetas, tambem n'este Cerbero,
ta, e nojosa pela alteração lenta do pó, o grão verme, os recebeu com latidos
ou pela impregnação dos fragmentos similhantes aos dos cães, que procu
farinaceos: Spiritus teter saniesque ma ram espantar, arreganhando os dentes,
net ore trilingui: (Horacio, Carm ., 112 ). quem se lhes approxima. Chama- lhe grão
É impossivel deixar de reconhecer a verme pela circumstancia do logar em
admiravel propriedade d'estas allego que se acha, isto é, pelo facto de viver no
rias ! centro da terra, como aquelles reptis,
(4 ) E il ventre largo, e unghiate le conhecidos por vermes.
mani.Ventre largo, para poder, comendo, ( 7 ) Non avea membro che tenesse fer
accumular n'elle muitas iguarias : patas mo . Todos os membros tremiam -lhe
guarnecidas de unhas, para poder agar convulsos pela gana impetuosa, não já
rar com segurança as viandas, e tam de espantar, mas de morder os dous
bem para arranhar, esfolar, e esquarte Poetas.
jar os espiritos: Graffia gli spirti, li (8) Chè solo a divorarlo intende e pu
scuoia, ed isquatra. gna. Como si dissesse : Emquanto que
( 5) Volgonsi spesso i miseri profani. parece travar batalha com o mesmo pão,
A pancada da chuva faz esses miseros que recebeu : inquantocchè pare abbia
glutóes ulular como cães. Seguramente battaglia col pasto medesimo che ha tolto .
o Poeta lembrou - se aqui d'aquellas pa Leo occidens cervum , intendit cibum . In
COMMENTARIOS AO CANTO VI 175

tende e pugna tem a mesma significa apresenta - os como corporeos, que assim
ção do contendere latino. já o tivera feito Virgilio no sexto livro
É uma verdadeira pintura do cão es da Eneida . Fal-o porém pela natureza
faimado, que inesperadamente encontra do supplicio, o qual, não sendo interno,
comida ( Bianchi ) . como o verme roedor, mas sim externo ,
Este mesmo commentador, falando pois que consiste na pancada de chuva
do grão verme, diz : “ As Sanctas Escri grossa, era preciso corporificar os es
pturas chamam figuradamente verme piritos, dando - lhes fórma de pessoa, a
tudo aquillo que constitue o eterno sup fim de que podessem sentir o castigo.
plicio dos condemnados no centro da Não cesso de admirar o engenhoso ar
terra, onde se geram os vermes ; e Cer tificio do systema penal de Allighieri!
bero, que quer dizer devorador, é o grão ( 10) Elle giacen per terra tutte quan
verme com razão destinado a atormen te. O Poeta, falando litteralmente das
tar as almas dos comilões no Inferno ». almas que pelo peso da chuva maldicta
No ultimo canto, veremos Lucifer jazem no pantano infernal, allude alle
egualmente qualificado de verme malva goricamente aos glutões, que n'este
do (verme reo ). Verme é pois, por certa mundo, opprimidos pelo peso dos man
similhança, tomado por Dante do nome jares, e das bebidas espirituosas, jazem
generico dos monstros do Inferno. Fr. espojados em leitos molles, com o mes
Alberigo na sua visão tambem chamou mo torpor dos porcos, que se revolvem
o diabo verme. Fraticelli acrescenta : inquietos na lama, após excessivo ali
Cerbero com os seus latidos póde ser mento . Si por egual os dous Poetas, em
tambem symbolo do perpetuo remorso desprezo da vil condição d'essas almas,
da consciencia dos condemnados, de que calcam com os pés a sua vaidade, perso
fala Isaias : Vermis eorum non moritur. nificada em corpos phantasticos, ainda
Cerberus hæc ingens latratu regna tri por outra allegoria isso quer significar,
fauci (Eneid ., vi), Tria Cerberus extulit que em vida não tinham já verdadeiros
ora, Et tres latratus simul edidit (Ovid ., corpos de homens, mas de brutos, que
Met. iv ) . Che al gran vermo infernal haviam trocado a vida racional pela
mette la briglia : Que ao grão verme vida animal ; não vivendo, senão para
infernal a brida mette ( Ariosto ). os prazeres do ventre, seu Deus unico :
(9 ) Noi passavam su per l'ombre che Deus ejus, venter ejus ( Butti ) .
adona La greve pioggia, e ponavam le ( 11 ) Tu fosti, prima ch'io disfatto,
piante Sopra lor vanità, che par persona. fatto. É esta uma das celebres similitu
La greve pioggia. Passavamos por so des de Dante, de que o erudito escri
bre aquellas sombras, enfraquecidas pelo ptor Venturi, de Florença, fez uma col
peso da chuva, e pisavamos seus corpos leção interessantissima. Não é preciso
phantasticos , que parecem pessoas. notar que ha toda a propriedade nas
La greve pioggia. A pesada chuva palavra do Poeta. O homem nasce
faz que ellas se humilhem, e se rendam feito, e morre desfeito : nasce feito pela
( Daniello). Landino porém , e Vellutello união do corpo com a alma ; morre des
explicam assim : A chuva terrivel reune, feito , porque se decompõe pelo rompi.
e aperta em um logar os espiritos con mento d'essa união ; de modo que elle
demnados. já não existe , nem a alma , que se foi,
Sopra lor vanità, che par persona. nem o corpo que ficou : não é mais
Isto é , passavamos sobre a sua qualidade homem ; morreu . Foi isso exactamente
espiritual intangivel, não sujeita aos sen que havia acontecido con Ciacco, que
tidos ; tendo todavia similhança de pes fallecêra em 1286, dezenove annos de
soa perfeita, e palpavel. ( Venturi) . pois do nascimento de Dante ; por esta
Sendo os espiritos seres impalpaveis, razão lhe disse : Nasceste antes da
invisiveis aos nossos olhos, aqui Dante minha morte .
176 O INFERNO

( 12) D'invidia sì, che già trabocca il perdeu o summo bem eterno ! Diz que
sacco . «A tua cidade está tão cheia de não está só, para que Dante ficasse sa
inveja , que já não pode contel-a em si, bendo, que não era elle o unico infeliz,
e por isso a faz trasbordar, como o sacco, que expiava ali o peccado da gula; mas
que demasiadamente cheio trasborda . » que muitos outros padeciam por simi
Tornemos isto mais claro : Entre as mui lhante culpa pena egual.
tas invejas, que fermentavam em Flo . ( 16 ) Mi pesa sì che a lagrimar m’in
rença, havia uma, diz Boccaccio, que vita . « Peza -me tanto o teu tormento,
causou muito damno á cidade, maxi que me convida a chořar.» Dante mostra
mamente aquella parcialidade, que d'ella uma certa compaixão, que , á porporção
era o alvo : quero falar da inveja, que a que elle prosegue para o centro de valle
familia dos Donatis tinha da familia do aby smo, se lhe vai diminuindo, e por
dos Cerchis. Os Donatis, bem que no fim extingue-se inteiramente. (Fraticel
bres antigos, não eram ricos, nem ama li ).
dos, por causa do seu orgulho, ao passo ( 17 ) ... Se tu sai... Porque,pergunta
que os Cerchis, se não eram de antiga Dante, cousas futuras a um condemna
prosapia, eram riquissimos commercian do ? Não é a prophecia um dom especial
tes, muito affaveis, e generosos ; condi da graça divina ? Como pode merecel -a
ções, que os tornavam influencias predo . um condemnado ? Estas perguntas são
minantes no governo da republica. Por justas ; mas por ora não importa aqui
estas circumstancias, os Donatis, não discutir esta questão. O que importa
podendo suffocar a inveja, que os rala saber é, si Dante attribue ou não esse
va por dentro, fizeram -n'a trasbordar dom aos condemnados. Sim, attribue
(trabocare il sacco) por actos de vio lhes por uma ficção poetica, para tornar
lencias, que accenderam odios profun mais agradavel, e vario o seu Poema
dos. com essas prophecias de cousas, que
( 13 ) Seco mi tenne in la vita serena. finge futuras, mas que já são passadas.
A tua cidade teve - me no seu seio em No canto x, elle explicará o modo como
vida serena. Diz serena em comparação os condemnados podem antever as cou
da vida perturbada, e molesta, que pas sas futuras. ( Bennassutti ).
sava no Inferno, onde não havia os ban Quem fosse esse Ciacco, celebre co
quetes opiparos, e os deleites de Flo milão florentino, ha duvidas, si fosse
rença. nome proprio ou appellido. Mas das pa
( 14) Per la dannosa colpa della gola. lavras de Boccaccio, creio poder-se de
Dannosa, porque do mesmo modo que na duzir com segurança que existiu com
vida o vicio da gula enfraquece o corpo effeito um homem d'esse nome ; por
pelo peso de excessivo comer, e beber; que diz elle na Novella Ottava, Gior
assim tambem na eternidade enfraquece, nata nona, o seguinte : «Existiu em
e acabrunha a alma a incessante pan Florença um individuo, por todos cha
cada de uma chuva grossa, que a ator mado Ciacco, homem de uma gulodice
menta cruelmente, como si dissesse : sem egual, não lhe bastando as posses
« Eu aqui me enfraqueço, me acabrunho para sustentar as exigencias do ventre.
sob o peso d'esta tormentosa chuva, Era aliás bem comportado, de tracto
que vês : Io mi fiacco, mi domo sotto la ameno pelos seus bellos chistes, mas
molesta pioggia come tu vedi» . Por estas inclinado a maledicencia : viveu sempre
palavras faz Ciacco saber a Dante qual com aquelles ricos, que faziam dos bons
o vicio punido n'este terceiro circulo. manjares a sua bemaventurança, com os
( 15) Ed io anima trista non son sola. quaes jantava, e.ceiava frequentemente,
Com toda a propriedade diz que é alma ainda que nen sempre fosse convidado » .
triste, isto é, desaventurada ; porque Vê-se que Boccaccio lhe deu o mesmo
outro nome não pode ter a alma que nome que Dante lhe havia dado quando
COMMENTARIOS AO CANTO VI 177

fez dizer ao mesmo Ciacco : « Vos outros sobre uma manjadoura, dizendo : «Feri
meus concidadãos me chamastes Ciac das curam - se com sangue, e não com pa
co » . Isto parece denotar que o appelli lavras » . Tão cruel affronta provocou a
davam com este nome, para significar maior indignação no publico, sobretudo
simplesmente sua similhança com nos parentes de Lore, que logo tomaram
porco, que quer dizer Ciacco cm lin as armas. Os parentes de Geri fizeram o
guagem florentina. Esse appellido não mesmo : travaram - se luctas, multiplica
podia deixar de lhe ser deshonroso , ain ram -se as represalias ! E assim forma
da que o merecesse ; mas Dante, que se ram -se essas duas facções terriveis, uma
mostrou compadecido da sua miseravel chamada dos Brancos (Bianchi ), deriva
situação, não lhe aggravaria o tormento , ção de Bianca, mulher de um Cancillieri;
chamando -lhe em face Ciacco , si, como e outra chamada dos Negros ( Neri)

observa Lombardi, só fosse costume contraposição ao nome da sua rival.


chamal-o Ciacco por de traz das cos Com o andar do tempo a facção dos
tas : dietro alle spalle. Optimo, antigo Brancos foi appellidada selvagem , por
commentador, diz : « Foi Ciacco muito que d'ella se tornou chefe Vieri dos
famoso na paixão dos manjares deli Cerchis, homem rico, e estimado ; mas
cados, e, de envolta com as suas bu de nobreza nova, vindo pouco antes de
fonerias, teve maneiras affaveis para Ancona, e dos bosques do valle Nievole
com os bons, e ditos picantes para ou de Sieve, e d'ahi a denominação de
com os máos, que por isso o detes selvagem . A facção dos Negros tinha por
tavam » . Salvini observa que Ciacco quer chefe Corso Donati, de nobreza antiga,
dizer porco , pela similhacca da soffre mas não tão rico, nem muito amado do
guidão voraz dos glutões com o estre povo, por causa do seu caracter altanei
pito, que faz o porco quando mastiga as ro, e faustoso, como si o ser nobre con
bolotas. Fraticelli sustenta que Ciacco sistisse em desprezar os pequenos . Ora
é nome proprio, accrescentando que em bem , em 1300, os Brancos de Pistoia,
Florença existe ainda a familia dos auxiliados pelos Brancos de Florença ,
Ciaccos. Bianchi com Biagioli conside expulsaram de Pistoia os Negros, mas
ram o nome de Ciacco uma corrupção depois os Brancos de Florença, que
de Iacob . tinham ajudado os Pistoenses a ex
( 18 ) Li cittadin della città partita. pulsar os Negros, foram por estes ex
Città partita. Allude á cidade de Flo pulsos de Florença em 1302, mediante
rença dividida em facções, a saber : a o apoio de Carlos de Valois, ou Carlos
facção dos Brancos, e a facção dos chamado Senterra .
Negros. Nasceram ellas em Pistoia de Estas ultimas voltas, e reviravoltas de
dous ramos da familia Cancillieri . O cousas constituem o objecto das predic
caso foi este : Dous mancebos Lore, e ções de Ciacco a Dante, dizendo-lhe
Geri, parentes mui chegados, brincando que dentro em tres annos a facção sel
junctos um dia, o primeiro deu uma vagem , após luctas sanguinolentas, será
bofetada no segundo. O pae do offen derribada do fastigio da victoria pela
sor, profundamente pesaroso d'esta in facção negra, que se tornará dominan
juria feita a Geri, obrigou o filho a diri te absoluta .
gir-se a sua casa, a fim de lhe pedir per ( 19) Infra tre Soli. Dentro de tres
dão. Mas este acto tão louvavel, em vez gyros do sol em torno do Zodiaco : tres
de ser acolhido com agradecimento, annos. Desde o plenilunio de 1300 a
como convinha, não serviu senão de abril de 1302, quando os Brancos foram
exacerbar ainda mais o caracter feroz totalmente rechaçados de Florença, de
do pae do offendido, que em continenti correram 25 mezes : assim pois verifica
fez agarrar o humilde rapaz, e, com toda se a prophecia dentro dos tres annos,
a barbaridade lhe mandou cortar a mão ou no correr do terceiro anno . Está en
12
178 O INFERNO

tendido, que estes factos predictos por sue arti (lisonjear, manobrar com arti
1
Ciacco tinham já acontecido quando ficiosa astucia), então esse acariciador
Dante escrevia ; mas fingindo a sua vi ( Piaggiatore) poderia ser mui bem Bo
são em 1300 ( Inf., xxi, 112. e Purg ., II, nifacio VIII , o qual, ao passo que fingia
98 ) faz por este modo a prophecia da amoroso cuidado de pacificar Florença,
historia . procurava secretamente afeiçoal-a aos
( 20) Con la forza di tal che testè piag seus enteresses politicos, e que por meio
gia. De um tal, isto é, de Carlos de das forças de Valois, que se podiam
Valois ( che testè piaggia) que neste tambem chamar suas, pois que foram
momento emprega doces, e lisonjeiros por elle ministradas, fez por fim prepon
modos com os Florentinos. Assim ex derar a facção negra . Leiam -se Campa
plicam alguns commentadores, entre os gni, livro 2.º in principio, e Villani, livro
quaes Costa. Mas esta explicação, acres 8.•. Butti tambem refere o testè piaggia
centa Bianchi, discorda da Chronologia, a Bonifacio, explicando assim : Agora
visto como sabemos, que Carlos não está no meio dos dous partidos : Ora
veiu a Florença, senão em novembro stà di mezzo tra l' un partito e l'altro.
de 1301 , e Ciacco prediz as cousas, que Está de observação, vendo para onde
aconteciam na primavera de 1300, exa melhor lhe correm as aguas. Piaggiare
ctamente quando elle falava. Vejamos significa propriamente andar costa a
como a
este respeito discorre Ugo costa, espreitando monção favoravel de
Capeto no canto xx, 70, do Purgatorio: atirar -se ao alto mar.
( 21 ) Giusti son duo, ma non vi sono
Tempo vegg'io non molto dopo ancoi intesi. É difficil adivinhar quaes fossem
Che tragge un altro Carlofuor di Francia,
Per far conoscer meglio e sè ei suoi. esses dous justos a quem allude Ciacco.
Mas do mesmo silencio dos nomes, diz
« Eu vejo um tempo não mui distante d'este dia, Bianchi, se poderia argumentar que um
Em que outro Carlos sai de França, fosse o proprio Dante, e o outro o seu
Para fazer melhor conhecer sua má natureza, e a de
sua familia . grande amigo Guido Cavalcanti, que
Benvenuto d'Imola chama Alter ocu
Logo não tinha n’aquella hora saído lus Florentiæ in tempore Dantis. Mas
de Florença ; e pois, querendo -se refe outros commentadores, não crendo
rir a Carlos de Valois o testè piaggia, Cavalcanti digno de tanto elogio, por se
convirá tomar o verbo piaggiare no ter mostrado n'aquelle tempo muito
sentido do costeggiare la marina, e dar fero, e descomedido (troppo fiero e smo
á expressão de presente, em vez de fu dado), inclinam-se antes para Dino
turo, o tom de visão prophetica. De Campagni, que muito fez em bem da
mais, é sabido que Bonifacio VIII tinha paz, junctamente com Dante. Outros
com grandes promessas convidado Car porém acreditam , diz Venturi, que os
los de Valois, irmão de Filippe o Bello, dous justos são Barduccio, e Giovanni
a passar á Italia, a fim de começar a Vespignano, dos quaes fala Villani. Vel
empreza da Sicilia contra o Aragonez, e lutello, e outros, mas com pouca felici
que vindo o Principe, o Papa (no inter dade de alvitre, entendem pelos dous
valo em que esperava o tempo oppor justos a lei divina e humana. Boccaccio
tuno de navegar) mandou - o a Florença primeiro que todos havia dito que
com o intuito de compor as dissenções alguns viam nos dous justos o mesmo
civis. O Francez opprimiu, a seu bel Dante , e Guido ; mas nada affirma ; por
prazer, a facção adversa á Corte de onde se vê que tudo são hypotheses, e
Roma, e a sua casa, e, carregado de des com razão me aconselhou o sabio Giu
pojos brancos, e negros se fui, com vento liani que não optasse por nenhuma
de feição. Mas, si a paggiare se quizesse d'ellas, limitando-me a respeitar o silen
dar a significação de lusingar, menar cio do Poeta .
COMMENTARIOS AO CANTO VI 179

( 22 ) Qui pose fine al lacrimabil suo que as almas condemnadas se mostram


no. Querendo significar que Ciacco desejosas de fama, para imitar a Virgilio,
falava chorando, e disse cousas de fazer quando disse que o piloto Palinuro, não
chorar a muitos, cujas desgraças pro podendo ser tirado do Inferno por Eneas,
gnosticava, começando pelo proprio alegrou - se, mitigando - se -lhe de algum
Poeta, a quem annunciava o exilio per modo a dôr do seu triste coração, logo
petuo . Entretanto o Poeta não se deu que Encas lhe assegurou, que a sua me
por satisfeito ; pediu-lhe que se dignasse moria seria eternamente perpetuada pelo
ainda de informal- o de outras cousas, monte , que lhe tomou o nome .
e per isso pergunta -lhe :
(23) ... Farinata, e il Tegghiaio, che ...pulsusque parumper
fur sì degni ? ... Dimmi ove sono « Infor Corde dolor tristi; gaudet cognomine terra.
ma me em que logar d'este valle doloroso
estão Farinata, e Tegghiaio, que foram Mas allegoricamente Dante quer dizer,
varões tão dignos ? » Diz que estes dous que os condemnados desejam ser lem
Florentinos foram muito dignos, não brados no mundo ; porque emquanto
porque o fossem em realidade, moral viveram procuraram tornar - se notáveis
mente falando, mas porque eram como pela impudencia de seus vicios. ( Butti. ) A
taes considerados no conceito do vulgo, boa fama é tão doce, que até os con
que sempre julga os homens, e as cousas demnados, achando - se na mais triste
pela apparencia. (Boccaccio ). condição, desejam , não obstante, que se
Pergunta em seguida onde estão fale d'elles, para não serem esquecidos.
Thiago Rusticucci, Henriques, e Mosca, Mas é que elles desprezaram na vida o
que foram insignes na arte de bem fazer, meio unico de alcançar a immortalidade
ou que empregaram todo o seu talento da fama ; a virtude! (Boccaccio.)
em fazer o bem : che a ben far poser ( 26) Cadde con essa a par degli altri
gl'ingegni. Fala ironicamente ; porque ciechi. Inclinando a cabeça, caiu com
estes forentinos foram viciosissimos, ella ao lado dos outros cegos, isto é,
visto como, alem do vicio da gula, tive dos outros condemnados. Cegos porque
ram outros mais graves. ( Butti) . não viram que pelo caminho dos vicios
(24) E quegli: Ei son tra le anime più perdiam, como perderam, o alto bem do
nere. Esses por quem perguntas, res entendimento : Deus.
ponde Ciacco, estão entre as almas (27) Più non si desta. Virgilio ( ao ver
mais negras , isto é, mais criminosas ; caír Ciacco ) agora, diz a Dante, não se
jazem em circulos diversos por culpas levantará mais, senão quando soar a
diversas, pelas quaes são atormentados trombeta angelica. Tornará cada uma
no fundo do Inferno : Diversa colpa giù á sua triste sepultura para reassumir
gli aggrava al fondo. a sua carne, e ossos. Ciascun ritroverà
Estam em circulos diversos por di la trista tomba. Chama triste, por causa
versas culpas. Isto quer dizer que pelo da tristeza que causa á alma condemna
nefando peccado sodomitico Thegghiaio da o reunir- se a seu antigo corpo ; por
Aldobrandi, e Thiago Rusticcuccisão pu que isso redobrará o seu tormento .
nidos na cidade de Dite ( canto xvi ) ; Pergunta Dante a Virgilio, si os tor
Farinata punido por incredulo ( canto x) ; mentos dos condemnados crescerão de .
Mosca por scismatico ( canto xx ); pecca pois do juizo universal, ou si minorarão,
dos, que por serem mais graves, são ou si se conservarão no mesmo estado ?
castigados do fundo do Inferno. (Bocca Responde - lhe com os principios phi
ccio). losophicos de Aristoteles, que quanto
( 25 ) Ma quando tu sarai nel dolce mais perfeito é o ser, mais apto se tor
mondo, Pregoti ch ' alla mente altrui mi na para gosar o bem , ou para sentir o
rechi. Aqui finge Dante litteralmente mal E porque d'esta resposta se pode
180 O INFERNO

ria concluir que depois do juizo universal é bem perfeito, como é provado no pri
haverá perfeição nos condemnados, isto meiro livro da Ethica ; o que não seria
é, melhoramento nas suas condições si o homem não se aperfeiçoasse por ella
penaes (como alguns têem entendido), em todas as suas partes. A alma sem o
Dante faz Virgilio explicar- se mais cla corpo não tem perfeição da natureza.
ramente, dizendo : Assim como entre os bemaventurados a
Tuttochè questa gente maledetta
caridade será perfeitissima, assim entre
In vera perfezion giammai non vada, os condemnados será perfeitissimo o
Di là, più che di qua, essere aspetta. odio. Ha tambem no mal uma certa per
feição : perfeição da ira. A bemaven
Tudo isto quer dizer que as almas turança da alma redundará no corpo por
condemnadas serão depois da resurrei que elle possue a propria perfeição. Do
ção menos imperfeitas, do que antes, corpo é ultima perfeição o ajuntar- se á
porque depois da resurreição, unindo natureza espiritual. Até aqui Sancto
se de novo a seus corpos, ficam menos Thomás de Aquino. Poremos o remate
imperfeitas, pela obvia razão de que o com este texto de Sancto Agostinho :
homem não pode ser considerado per (
Cum fiet ressurectio carnis, et bono
feito, ou completo, achando -se separado rum gaudium majus erit, et malorum
do corpo. Aqui pois a perfeição é en tormenta majora .» Depois da resurrei
tendida no sentido philosophico, e não ção da carne, os gaudios dos bons, e os
moral, e espiritual. « A bemaventurança tormentos dos máos serão maiores.
INTRODUCÇÃO AO CANTO VII

A quarta caverna tem 140 milhas de diametro, e 440 de circumferencia. O dia.


metro de seu poço é de 105 milhas, a sua circumferencia de 330. Os dous Poetas gy
ram um septimo da circumferencia da caverna, ou 62 milhas e seis septimas partes
de milha : aqui encontram uma fonte, de que deriva um ribeiro que, atravessando o
circulo, vae ao poço, e do poço desce á quinta caverna, e vae formar a lagoa Estyge :
os dous Poetas voltam ao longo d'aquelle ribeiro, e seguindo o seu curso chegam
ao poço, e do poço descem á sobredita quinta caverna. Na quarta caverna são pu
nidos os avaros, e os prodigos : estes peccadores, assim como se hostilisam, e blas
phemam reciprocamente no mundo, assim o fazem no Inferno. São condemnados a
rolar enormes rochedos com toda a força do peito, soltando urros ferozes provoca
dos pela fadiga, e pela dor. Á esquerda dos dous Poetas estão os avaros,á direita
os prodigos : uns, e outros encontram-se nos dous pontos oppostos do circulo, e
aqui jogam marradas horriveis, de envolta com reciprocas injurias ; depois voltam
para traz, e chegados ao outro extremo opposto, repetem as marradas, e as injurias,
gritando o prodigo ao avaro : « Porque retens o teu dinheiro ? » E o avaro ao pro
digo : «Porque dissipas o teu ? » E assim por diante, durando esse duelo de marra
das, e injurias por toda a eternidade.
O monstro, guarda d'este circulo , é Plutão, deus da riqueza, segundo a mytho
logia, e symbolo da avareza , segundo Dante ; e aqui se deve notar que elle no pri
meiro Canto personificou, na opinião de muitos, a avareza na Loba magra do monte,
agora a personifica em Plutão sob o nome de lobo, como logo veremos. Este mons
tro apenas vệ entrar os dous Poetas, prorompe, para os intimidar, n'estas palavras
abstrusas :
Pape Satan, Pape Satan , alepe.
A interpretação d’este verso tem sido o grande busilis dos commentadores, dan
do -lhe cada um o sentido que lhe apraz. Depois de ter feito um grosso peculio de
todas estas interpretações discordes, sem que por ellas eu ficasse sabendo qual
fosse o verdadeiro sentido do famigerado verso, caiu-me, como por encanto, nas mãos
um documento precioso, em que se me deparou a sua genuina intelligencia . Este
precioso documento é uma carta do Padre Giuseppe Venturi, censor dos estudos
do real lyceu de Verona, dirigida ao seu amigo, e discipulo J. B. Giramonte, em
27 de fevereiro de 1811 , e publicada nos n.ºs 21 e 22 do Giornale Veronese de 16, e
19 de março d'aquelle anno. Alexandre Torri, enviando essa carta ao cavalleiro
Prospero Frecavalli, depois de referir -se ás diversas interpretações do dito verso,
sobretudo á extravagante phantasia de Benvenuto Cellini ( seguido n'este ponto por
182 O INFERNO

Monsenhor Dionisi ), que pretendeu mostrar que Dante fez Plutão falar francez,
para vingar- se de Filippe o Bello dos males, que seu irmão Carlos de Valois cau
sou a Florença, diz : «Mas aquelle que , no conceito do celebre Monti, levou a palma
em desvendar o mysterio d'aquella confusa diabolica linguagem , foi o eruditissimo
polyglotta veronez Giusieppe Venturi, em uma notavel carta que, por se ter tornado
rarissima, e quasi perdida, creio ser agradavel ao meu amigo, e a todos os estudiosos
dantescos, pondo-a sob seus olhos com outra do referido Monti, em que dá plena
approvação á glosa de Venturi. Eis a carta : « Á explicação do verso Pape Satan, diz
elle, ajuntarei a de outro verso , não menos obscuro que Dante põe na bocca de
Nemrod ( Inf., XXXI ), dada tambem por Venturi; e assim terás occasião de ver uma
brilhante amostra da sciencia polyglotta d'aquelle meu venerando mestre , que n'este
ramo de saber humano teve poucos rivaes, como me seria facil provar por seus
eminentes trabalhos philologicos, especialmente no que respeita ao grego, e ao
hebraico » .
Agora passarei a transcrever a citada carta de Venturi, em que não sei o que
mais admire, si o primor da erudição, ou si a singeleza, e modestia do dizer. Ou
çamol-o arrectis auribus.
«Meu caro J. B. Giramonte - ... Tenho julgado conveniente colligir todos os
vocabulos dos idiomas classicos, empregados por Dante na Divina Comedia , e fazer
d'elles um volume, que não será pequeno, acompanhando esses vocabulos das res
pectivas significações genuinas, e que terá por titulo — Dante Polyglotta —. Mais de
uma vez vos tenho falado d'este meu trabalho, lendo - vos algumas passagens, e vós,
que amais o divino Poeta florentino, porque sabeis gostal -o, muito me tendes ani
mado a levar por diante a empreza. Espero concluil-a com mais ou menos demora,
e será toda vossa. Entretanto, por agora , contentae -vos com a explicação do primei
ro verso do Canto vii, reproduzindo -o aqui com os sete subsequentes, necessarios
para a intelligencia d'elle.

Pape Satàn Pape Satàn aleppe.


Cominciò Pluto colla voce chioccia .
E quel Savio gentil, che tutto seppe,
Disse per confortarmi: Non ti noccia
La tua paura , che poder ch'egli abbia ,
Non ti torrà lo scender questa roccia.
Poi si rivolse a quell ' enfiata labbia,
E disse : Taci, maledetto lupo :

« Commummente tomam os commentadores o primeiro verso por uma interjeição


de dor, e de espanto, e fazendo derivar a palavra Pape do latim, ou do grego, sem
dar a razão, ligam-n’a a Satan, e aleppe, duas palavras evidentemente hebraicas. De
não as reconhecer como taes tem nascido a inversão do seu genuino sentido. Alguns
começaram a vislumbrar alguma cousa, mas não passaram da superficie. Ora, con
siderando que o Satan dos Hebreus é o mesmo que o Lucifer dos Christãos, cha
mado por Dante Imperator del doloroso regno ( Inf., XXXIV) ; considerando que a
alavra aleppe na lingua hebraica significa exactamente aquelle, que exerce o poder;
considerando que a este poder correspondem as palavras de Virgilio a Dante ate
morisado .
...Non ti noccia
La tua paura, chè poder ch'egli abbia
Non ti torrà lo scender questa roccia.
INTRODUCÇÃO AO CANTO VII 183

considerando que os Hebreus de todos os tempos, e tambem os Cabalistas chris


tãos de então (vejam -se Reuclino, e Corn . Agrippa) criam ser a linguagem da Biblia,
e do Targum a propria dos Anjos tanto celestes, como infernaes; não hesito em de
clarar que aquellas palavras de Plutão, ministro de Satanaz, são todas hebraicas, in
clusive a palavra Pape, a qual dividindo-se em duas pa pa quer dizer qui qui (aqui,
aqui). Dado este verdadeiro sentido tereis a clara, e authentica explicação do verso
assim :

« Qui qui Satanasso, qui qui Satanasso é Imperator, ossia commanda . »

«Aqui, aqui no Inferno, Satanaz é Imperador, manda, e governa. »

Cumpre não esquecer que a palavra Plutão significa riqueza, e que Plutão é cha
mado em grego, e em latim o Deus da riqueza ; e aqui Dante chama Plutão aquelle
Diabo, que está de guarda ao circulo, onde são punidos os prodigos, e os avaros, isto é ,
os que peccaram ou por excesso, ou por falta de amor da riqueza . Ora este guarda,
ao ver entrar no circulo Dante, e Virgilio contra todo regulamento infernal, sem dar
satisfação ao Imperador do Inferno, e pelo contrario mostrarem -se ambos sobrancei
ros ás penas, a que estam sujeitos todos que ali entram, bradou-lhes com voz rou
quenha, e aspera, para intimidal-os : «Audazes, quem vos auctorisou a entrar aqui ?
Aqui Satanaz é Imperador, aqui elle manda, e governa, e portanto retirae-vos. » A
esta intimação ameaçadora, a resposta de Virgilio é a mais propria, e accommodada
para reanimar Dante, dizendo -lhe : « Não te deixes aviltar pelo terror ; pois que por
maior que seja o poder, que elle se arrogue, não logrará impedir -te que desças
esta rocha » .
« Vê- se pois que as palavras de Plutão devem ser tomadas por hebraicas ; visto
como em lingua hebraica ellas dão um significado claro , e accommodado , tanto ao
pensamento , e á soberba d'elle, que não tolera ver violado o reino do seu Impera
dor, como a resposta de Virgilio, que conforta , e persuade Dante a não temer
aquella soberania estulta, que se annulla diante da vontade de Deus, como o mesmo
Virgilio lança em rosto a Plutão, quando lhe diz : « Cala -te, maldicto lobo ; a nossa
viagem a este abysmo infernal é determinada lá no céo, onde Miguel puniu a so
berba violação da fidelidade devida a Deus» . Demais, Virgilio aqui é chamado sabio
gentil, que tudo soube. Estas duas prerogativas, que Dante lhe attribue, si as palavras
de Plutão não são hebraicas, e não encerram a significação, que lhes tenho dado,
não seriam n'este logar rememoradas por Dante , o qual nada escreve sem razão
intencional. Si aquelle celebre Pape Satan não fosse, senão uma expressão de es
panto, de arrogancia, e de raiva, como em geral se crê, certamente para compre
hendel-a não teriamos necessidade de sabedoria, e de doutrina ; mas, si as palavras
são hebraicas, e encerram um conceito, indispensavel é sem duvida o conhecimento
do idioma hebraico ; e pois que o conceito recorda a soberania, e o imperio de
Satanaz no Inferno, para fazer retroceder os dous viajantes, a sabedoria poderia de
per si discernir, que o poder do Rei dos Diabos não impediria jámais a Dante de
descer ao abysmo avernal, desde que era isso vontade de Deus. Coherentemente,
portanto, recordou Dante a sabedoria, e sciencia de Virgilio , visto que as palavras
de Plutão eram hebraicas.
«Ponhamos agora o verso nos caracteres originaes, e bem que vos não seja diffi
cil lêl-os ( pois me lembro da facilidade com que aprendeste de mim os principios
da grammatica hebraica, e com que traduzieis algum Psalmo com elegancia toscana);
184 O INFERNO

todavia não é descabido pôr tambem esse verso com os nossos caracteres, para
melhor se lhe reconhecerem os accentos :

‫פא פא שטן פא פא שטן אלף‬


Pa pa Satàn : pa pa Satàn Alèph.

« Não vos admireis, si lcio pa a palavra grega, que na Biblia é sempre lida po ;
porque o alef tem por sua vogal naturalissima o a , e em materia de linguas importa
attender mais aos consoantes do que ás vogaes ; ouvindo-se exactamente os Tyro
lezes pronunciar Schloffen e lo aquillo, que em boa pronuncia tedesca se diz, e se
escreve Schlaffen e la . E depois, quem não sabe, por pouco que conheça os diale
ctos formadosda lingua hebraica, ser commummente no Targum pronunciado A quan
do na lingua matriz se ouve o 0 , o Kamez em vez de Cholem ? Quanto á palavra he
braica Aleph, si hem vos lembrardes, é ella Benoni, ou participio activo da terceira
conjugação, omittido o prefixo, e significa imperante, dominante, etc., e se faz ter
minar em eppe do mesmo modo que Joseph se pronuncia , e escreve Giuseppe.
« Não me pergunteis, si Dante sabia o hebraico, e as outras linguas de que se
serve . Dir-vos- hei sómente, que não é difficil que do hebraico tivesse algum co
nhecimento. Na Italia, e em Paris, onde estudou, e defendeu conclusões, existiam
muitos doutos n'aquella lingua, que lh'a podiam ter ensinado ; sendo indubitavel que
elle tinha engenho, e memoria para aprender, e reter tudo bem e depressa.
« Si vós, como amigo sincero, me disserdes que esta minha interpretação do Pare
Satan vos não desagrada, remetter-vos-hei o mais breve possivel a que dou a outro
verso mais obscuro .
Rafel mai amech zabi almi,

onde, ao que me parece, o Poeta põe na böcca de Nemrod palavras apropriadas


áquelle orgulhoso fundador de Babel.
« Adeus : conservae -me a vossa preciosa amizade, e crede - me vosso =Giuseppe
Venturi. = Verona , 27 de fevereiro de 1811. »
Eis agora o extracto da carta do cavalleiro Vincenzo Monti, um dos mais au
ctorisados interpretes Dantescos.
«Milão, 25 de agosto de 1818. - Siantes de dar ao prelo as minhas ninharias (cian
ce) ácerca do celebre verso Pape Satán, etc. , tivesse tido noticia da interpretação
do sr. Abbade Giuseppe Venturi, eu lhe teria dado toda a preferencia. Não emitti
aquella minha opinião, senão por simples conjectura, e unicamente por tornar bem
claro o erro d'aquelles, que pretendem vender -nos Aleppe por uma interjeição de
dor, e de maravilha. Agora folgo de ver tambem pela glosa do dito sr. Venturi, a que
me submetto, supprimida aquella interjeição, que de certo não tinha justificação pos
sivel, e muito vos agradeço o favor de dissipar-me as trevas em que me havia en
redado uma falsa interpretação . Adeus » .
Ora bem, agora, que passei o cabo outr'ora das tormentas, e hoje da Boa Espe
rança, graças á mestria do polyglotta Venturi,que espancou por uma vez o nevoeiro,
que impedia ver o horisonte, continuarei a synthese do que se passa n’esta quarta
caverna .

Direi de passagem que, depois de profunda reflexão sobre o complexo das ideas
catholicas de Allighieri, e escudado com a auctoridade de abalizados interpretes an
tigos da Divina Comedia , creio ter podido desfazer outro engano bem sensivel, em
que , sem duvida por inadvertencia, têem caido os commentadores modernos a res
INTRODUCÇÃO AO CANTO VII 185

peito do tempo do verbo usare, empregado no verso 48 d'este canto : verbo que ,
sendo tomado no presente, e não no preterito, dá uma significação odiosa ao supre
mo Ministerio da Egreja, estabelecendo o vicio da avareza como congenito com o
Papado, com o corpo Cardinalicio , como tambem com o sacerdocio christão ; absurdo,
que jamais poderia ser sustentado pelo Poeta que, fustigando alguns Papas, e Car
deaes, respeitou sempre a sua hierarchia canonica. Adiante verá o leitor tudo isto
demonstrado com severa imparcialidade.
Virgilio, enfastiado do jogo de marradas, e de improperios entre os avaros, e os
prodigos ; scena, que elle não está disposto a empregar bellas palavras em descrever,
começa a philosophar com Dante sobre a fortuna, considerando-a uma intelligencia
celeste, etc.
Dante segue o systema de Ptolemeo, que attribue a cada um dos astros, que
gyram em torno da terra, uma intelligencia motriz. Assim como, segundo esse sys
tema, a circulação dos astros opera -se com tal ordem sob a direcção de uma in
telligencia reguladora, que a sua luz se diffunde por todas as partes da terra alterna
damente ; assim tambem segundo Dante, a circulação dos esplendores mundanos, isto
é, das honras, e das riquezas, é regulada por uma similhante intelligencia motriz ; mas
subordinada a Deus, que a constituiu distribuidora geral dos bens, e dos males na
terra, segundo as exigencias dos tempos, e os occultos designios da sua Providencia.
É pois entendido que o Poeta não toma aqui a Fortuna por aquella fatalidade cega, e
arbitraria dos Pagãos. Chama Providencia o que o Paganismo chamava Fado, ou
Fortuna ; porque a Providencia é quem dá, e tira os imperios, é quem dá e tira os
bens mundanos, conforme lhe apraz. Dante, que vivia n'um seculo, em que a astrologia
judiciaria era reputada nada menos que um dogma, procura, por bôcca de seu Mestre,
atacar pela raiz os erros da credulidade supersticiosa , bebidos na leitura dos livros
classicos latinos, lidos, e explicados sem o esmerado correctivo da idea christā , no
concernente á verdadeira origem dos bens, e dos males d'esta vida, onde tudo se
move, não segundo a estupidez cega do acaso, mas segundo os designios providen
tes do Soberano Arbitro do universo .
A doutrina portanto de Dante é eminentemente catholica, e sem embargo d'isto
lhe valeu o labéo de hereje, por mal comprehendida pelos seus detractores, entre os
quaes Cecco d'Arcoli n'aquelle terceto do principio do segundo livro de Acerba,
que diz :
In ciò peccasti, o fiorentin Poeta,
Ponendo che li ben della fortuna
Necessitati sieno con lor meta .

Em que peccou o Poeta florentino ? Quem peccou foi o critico em o não compre
hender. O Poeta não diz que a acção da Providencia tolhe o exercicio das nossas
faculdades em adquirir os bens da fortuna, si os necessitâmos, e conserval- os, si os
tivermos. Nada diz que offenda a liberdade humana ; quer somente ensinar que
devemos fazer bom uso dos bens da fortuna, os quaes, si são o producto do nosso
trabalho, da nossa intelligencia , da nossa actividade, nem por isso deixamos de ser
responsaveis do bom ou máo uso, que d'elles fizermos ante Deus, de quem recebe
mos os dons da intelligencia, da actividade, e da liberdade. O Divino Redemptor
declara no seu Evangelho, que todos nós, homens, e povos, lhe havemos de dar
contas dos talentos que d'elle recebemos.
São estes os principios que o Poeta theologo procura implantar no seio das so
ciedades humanas. O sabio Giuguenè, transportado de admiração pela formosura
d'este quadro, exclama : « Não se encontra em nenhum outro Poeta um tão bello
186 O INFERNO

retrato da Fortuna, nem mesmo talvez n'aquella excellente Ode deHoracio : 0 Diva ,
gratum quæ regis Antium , acima da qual não ha nada na poesia antiga ... É este
um dos trechos de Dante , que são raramente citados ; mas que serão relidos com
frequencia por aquelles, que lograrem vencer as difficuldades, e saborear o gosto das
bellezas d'este Poeta desegual, e sublime ! »
Em summa , este canto é uma meditação sobre o uso das riquezas : pecca o
avaro, não fazendo as depezas uteis, e necessarias, por demasiado afferro ao dinheiro:
pecca o prodigo, fazendo despezas superfluas, e superiores ás suas circumstancias.
Os bens d'este mundo são dons de Deus a nós concedidos, como a outros tantos via
jantes, a fim de chegarmos á Patria celestial : convem fazer d'elles o uso que faz o
viajante para chegar á sua casa. Si elle se priva do sustento, e de outros commodos
ao ponto de cair desfallecido no caminho, é louco : si dissipa seu dinheiro no come
ço do caminho, de modo que lhe falte antes de chegar a casa, é egualmente louco.
Os bens do mundo, repito, devem servir de escada para o Céo. Si te superabun
dam, emprega -os em obras uteis a ti, ao proximo, á sociedade : si são escassos, mo
dera os teus appetites, diminue as tuas necessidades, calcula tuas despezas com a re
ceita, e serás rico. Os appetites são necessidades imperiosas ; o homem mais pobre é
aquelle que tem mais desejos ; o mais rico é aquelle que menos os tem. Não creias
que as riquezas satisfaçam o homem . Diz Dante que o seu Inferno considerado, se
gundo um dos seus muitos sentidos, representa os homens máos d'este mundo :
logo, nos condemnados, que com toda a força do peito rolam rochedos enormes,
“ sem cessar um instante , deves allegoricamente ver os avaros, que se fatigam inces
santemente por accumular fortuna ; e si todo o ouro do mundo, como diz Virgilio a
Dante, não seria bastante para dar descanço a uma só d'aquellas almas extenuadas,
muito menos póde apagar a sede de dinheiro n'um só avaro. A fazenda não faz,
senão alimentar a paixão, como a lenha alimenta o fogo. Examina os ricos, que co
nheces, e não encontrarás um só que viva contente. Nem me digas, que si tu fosses
rico, saberias dominar a tua cubiça : és do mesmo barro ; terias as mesmas paixões.
Foge pois da avareza ; mas olha não te precipites no vicio opposto : a prodigalida
de é quasi tão funesta como a avareza, ou antes, não sei decidir qual é peor ; por
por um lado o avaro, para enriquecer, se arruina a si, e ao proximo ; por outro
que, si
lad o prodigo , para satisfazer seus appetites , arruina a si, e a sua familia . É conselho
o
de prudencia collocar-te na meio d'estes dous viciosos extremos : In medio consistit
virtus, si extrema non sunt vitiosa .
CANTO VII

Na entrada do quarto circulo os dous Poetas encontram Plutão, que tenta intimidal- os com estranha vozeria :
Virgilio manda- o calar, e desce com seu discipulo ao fundo da caverna , onde são punidos os avaros, e
prodigos: Discorre ácerca da Fortuna : Passam depois á quarta fossa, dentro da qual está a lagoa Estyge,
e dentro d'ella jazem atufados os iracundos, e por baixo d'estes os acidiosos , ou inertes no serviço de
Deus.

Pape Satan, pape Satan aleppe, ( 1) começou Plutão a gritar com


voz rouquenha, e aquelle Sabio gentil, que tudo soube, disse , para me
confortar: «Não te assustes : qualquer que seja o poder que se elle
arrogue, não impedirá que desças esta rocha » .
Depois, voltando-se para o tumido focinho, (2) bradou-lhe : « Cala
te lá, maldicto lobo : roe -te por dentro com o teu furor satanico .
« Não é sem motivo a nossa vinda ao Inferno : (3) assim aprouve lá
no alto, onde Miguel (4) vingou a soberba violação.o (5)
Quaes as vélas enchadas pelo vento, (6) ao lascar- se o mastro,
tombam confundidas; tal a fera cruel na terra baqueou .
Depois descemos nós á quarta fossa, baixando mais, e mais ao
doloroso abysmo, que do universo ensacca os males todos . (7)
Oh Justiça de Deus ! Quem , senão tu, accumula tantos novos tra
balhos, e tormentos, quantos eu vi ! (8) e porque a nossa culpa (9) assim
nos martyrisa !
Como as ondas lá sobre Charybdes, (10) encontrando-se, quebram-se ,
e recuam ; assim aqui os condeminados se embatem, e retrocedem. (11)
N'este circulo os vi mais numerosos, do que nos anteriores,(12 ) e
„das duas partes oppostas vinham uns contra os outros soltando gran
des uivos, (13) ao rolar com toda a força do peito enormes pesos.
No encontrão feriam -se, e ali mesmo, cada um voltando para traz,
gritava o prodigo ao avaro : «Porque retens o teu dinheiro ? » Respon
dia o avaro : « Porque dissipas o teu ? »
188 O INFERNO

D'est'arte tornavam através do tenebroso circulo ( 14) a entrechocar


se no extremo opposto, reciprocando o injurioso mote .
Depois, quando cada um chegava ao ponto opposto, retrocedia de
novo, para ir topetar com o adversario no outro ponto : e eu , que
tinha o coração quasi pungido, disse : « Mestre meu, agora me demons
tra, que peccadores são estes , e si foram clerigos todos os calvos ,
que estão á nossa esquerda ? » ( 15)
E elle me respondeu : « Todos aquelles , que estão a nossa esquerda,
e direita foram tão calvos de entendimento no mundo, que não sou
beram guardar justa proporção nos seus gastos.
« O ladrar d'elles, como cães, claramente o manifesta, quando che
gam aos dous pontos oppostos , onde o antagonismo da culpa os separa
com violencia .
« Estes , que não têem cabellos na cabeça, foram clerigos, e grandes
clerigos, Papas, e Cardeaes, em quem a avareza exerceu todo o seu
imperio. » (16)
E eu acrescentei : « Mestre, entre estes deverei certamente reco
nhecer alguns, que foram manchados de tal vicio » .
« Como te illudes, me respondeu : elles levaram vida tão ignobil,
que os torna aqui desconheciveis.
« N'este duelo de marradas se baterão eternamente : os avaros re
surgirão do sepulchro com a mão fechada, (17) e os prodigos com os
cabellos rapados .
« Prodigalidade , ( 18) e avareza tiraram-lhes o Paraiso , e os consti
tuiram n’esta rixa sangrenta : qual ella seja , não perco bellas palavras
em descrevel-a .
a Agora, ó filho, pódes ver a curta duração dos bens commettidos
á Fortuna, pelos quaes a especie humana tanto esgrime.
« Porque todo o ouro, que houve, e ha na terra ( 19) não será bas
tante para fazer pousar uma só d'estas tristes almas fatigadas.»
« Mestre, lhe disse eu : explica-me ainda , que cousa é essa Fortuna,
em que tocaste de passagem , em cujas mãos se acham todos os bens
mundanos ? )
E elle me respondeu, exclamando : «Ó creaturas insensatas, (20) que
crassa não é a ignorancia que vos damnifica ! Quero agora que a
minha doutrina a todos esclareça (21 ),
« Aquelle, cujo saber transcende tudo , creou os Céos , e designou a
cada um d'elles uma intelligencia directora , de modo que da sua alta
esphera se torne visivel a toda a parte da terra , distribuindo luz com
egualdade, e proporção :
« Similhantemente prepoz aos esplendores humanos (22) uma ministra,
e motriz universal, que de tempos a tempos transferisse os bens cadu
CANTO VII 189

cos (23) de pação a nação, (24) de familia a familia, (25) sem que n'essa
permutação intervenha o arbitrio do homem .
« Por onde se explica que, ao passo que uma nação impera, outra
decae , segundo o juizo d'aquella ministra universal , que é occulto
como a serpe na herva.
« O vosso saber não pode impedir as suas permutações : ella provê,
julga, e governa o seu reino como as outras intelligencias regem o
seu .

( As suas permutações não admittem treguas : a velocidade é con


dição essencial do seu regimen : (26) d'ahi as frequentes mudanças no
estado das cousas .
« Esta é aquella , tão continuamente maltractada (27) por aquellesmes
mos, que a deveriam louvar, considerando quanto em geral é justo o
seu governo : incontestaveis , e ingratos elles a censuram, e maldizem
sem razão.
« Mas ella é bemaventurada, não ouve as maldições humanas : (28)
alegre com as outras primeiras creaturas, gyra a sua esphera, e se
goza feliz em si mesma .
« Agora desçamos á caverna do maior tormento : todas aquellas es
trellas, que estavam no horizonte quando nos partimos, começam a
declinar para o occidente, e nos é defeso demorar muito aqui. » (29)
Atravessámos o circulo para o outro lado sobre uma fonte, que
ferve, e se vasa em um regato, que d'ella deriva.
A agua era muito mais escura que roxa , ( 30) e , seguindo nós o curso
d'aquellas lividas ondas , entramos por um caminho estranho.
Este triste regato, quando desce á raiz das malignas encostas negras,
fórma uma lagôa, que de Estyge tem o nome . (31)
E eu que estava todo attento a observar, vi pessoas chafurdadas
n'aquelle pantano , todas nuas , e com semblante irado.
Estas feriam -se cruelmente, não só com as mãos , mas com a cabe
ça, com o peito, e com os pés, mordendo-se, e comendo-se a boca
dos .
O bom Mestre disse : « Vê agora , o filho, as almas d'aquelles , que
se deixaram vencer pela ira : e quero ainda que tenhas por certo, que
debaixo d'agua ainda ha outras, que suspiram , (32) e a fazem ferver
na superficie, como teus olhos estão vendo.
Atufadas no pantano dizem : « Tristes fomos no doce mundo, que
se alegra com a luz do sol : (33) lá cevavamos no peito uma raiva,
que nos tirou toda a vontade de fazer o bem : por isso agora estamos
consumidas n'este immundo charco de tristeza , e vão rancor ) .
Tal é a dolorosa canção, que lhes sussurra na garganta ; porque
não a podem exprimir com palavras inteiras.
190 O INFERNO

Assim , proseguindo entre a borda enxuta , e o terreno lodoso,


percorremos em roda grande parte de circulo d'aquelle tremedal, de
olhos sempre voltados para os infelizes, que sorviam lama ; até que
finalmente chegámos ao pé de uma torre.
COMMENTARIOS AO CANTO VII

( 1 ) Pape Satàn, pape Satán, alep anjos creados, pouco antes de Adam , e
pe. Não obstante já ter deixado n'ou Satanaz, porque este, si perdeu a graça,
tro logar a genuina interpretação do não perdeu a lingua ; 2.", para indicar
sentido d'este verso, todavia, para mais que a cubiça dos bens terrenos é a mais
radical-a na mente do leitor, ainda ad diffundida de todas ; -3 .", para significar
dicionarei estas breves considerações que os hebreus são hoje aquelles, que
illustrativas do erudito Bennassutti. no mundo mais consideram Plutão seu
Deus, e é por isto que este fala o idio
Qui Satan, qui qui Satan commanda. ma d'elles.
«Aqui Satanaz , aqui no Inferno impera Satanaz.» (2 ) Poi si revolse a quell'enfiata labbia.
Bôcca arrogante, que metonymicamen
« Este, e somente este sentido corres te traduzo por focinho ; porque, alem
ponde exactamente ao conteúdo do de exprimir mais desprezo , é mais pro
terceto seguinte. Com effeito, Virgilio, prio do lobo, nome que Virgilio da
che tutto seppe, isto é, que soube logo a Plutão. Não é estranho, que Dante
o sentido de todas aquellas palavras, escrevesse labbia ; porque se diz tam
como soube tudo n’este mundo, volta bem Biblia em singular, se bem que seja
se para Dante amedrontado, explica-lhe um plural neutro.
o sentido d'ellas, e o reanima, dizendo : Lupo. Opportuna denominação ; por
«Não te importes com as bravatas de que já no primeiro canto a cubiça dos
Plutão ; porque, por maior que seja o bens terrenos é symbolisada por muitos
poder que o seu Satanaz aqui tenha, na Loba magra do monte.
asseguro-te que não terá força de te ( 3 ) Al cupo. Exprime a descida suc
impedir de descer a este quarto cir cessiva ao logar, onde crescem as tre
culo do Inferno .» Admira, exclama Ben vas .
nassutti, que depois d'esta authentica (4) Là dove Michele. A Satanaz, como
interpretação do sabio polyglotta Giu o mais soberbo, e chefe de todos os de
seppe Venturi, ainda os modernos com monios, era natural que Virgilio recor
mentadores continuem a manter as in dasse a derrota, que o Anjo Miguel lhe
subsistentes interpretações anteriores ! » deu no Céo .
Agora perguntarei: « Porque faz Dante ( 5 ) Strupo, em vez de stupro, não
falar Plutão em hebraico ? » Por muitas por causa da rima, como querem Lan
razões, respondo : 1.", porque o hebrai dino, Daniello , e Volpi, mas por meta
co é a lingua mais antiga do mundo, e these (mudança na ordem das lettras
com toda verosimilhança se figura ter de alguma palavra ). Os antigos classi -
sido aquella em que deveriam falar os cos italianos tambem escreveram strupo
192 O INFERNO

em prosa , como se pode ver no Vocabo e tormentos, mas sim de restringil-as


lario da Crusca (Lombardi). no verso . A primeira interpretação po
Diz-se strupo por stupro como se diz rém é a genuina ; porque diz mui bem
ghirlanda, e grilanda ( grinalda ) . Morir Bianchi, esta interrogação de Dante não
colla ghirlanda (Morrer virgem ). Estu é uma interrogação de quem ignora , mas
pro é crime bem conhecido em ambos de quem se admira . Espantado do que
os codigos, civil, e ecclesiastico ; mas via, exclamou : « Oh justiça de Deus, que
aqui é tomado por soberba ; a especie mão engenhosa, e omnipotente accumu
pelo genero. Dante, apropriando-se do lou no Inferno tantas afficções, e tantas
sentido das Sanctas Escripturas, que penas, quantas eu vi ?,
por catachrese dão muitas vezes aos (9) Nostra colpa. A culpa punida
actos de infidelidade contra Deus os n'este circulo é a avareza . Scipa do
nomes de peccados carnaes, toma aqui verbo scipare, que significa rasgar, rom
por estupro a violação da obediencia de per, consumir , despedaçar.
vida a Deus ; obediencia, que pela pri ( 10 ) Come fa l'onda là sovra Cariddi.
meira vez foi violada por Satanaz, e Cariddi por Caribde. O choque, e
seus sequazes, movidos pela soberba . contra choque das ondas nas duas vora
(6) Quali dal vento le gonfiate vele. gens do estreito de Messina, chamadas
Bellissima comparação. Cahirem confu Scylla, e Charybdes na occasião de tem
samente enroladas as vélas do navio pestades são por demais sabidos.
inchadas de vento, ao lascar -se de im ( 11 ) Cosi convien che quila gente riddi.
proviso o mastro, tem toda a proprieda Como si dissesse : Assim como as ondas
de com o rapido baquear da soberba, em Charybdes se chocam, e se quebram
fofa de presumpção, da fera cruel, ao uma
nas outras, recuando depois do
ouvir as palavras de Virgilio. embate, assim é força que os condemna
( 7) Che il mal dell'universo tutto insac dos n'este quarto circulo se encontrem,
ca. Diz Dante que desceu com Virgilio á e voltem como se faz no baile da ridda.
quarta fossa, verdadeiro valle de dores, Riddi do verbo riddare, dansar. Ridda,
que, á similhança de um grande sacco , baile em que as pessoas dansam circu
recolhe em seu bojo todos os males do larmente. Mas aqui os avaros, e prodi
universo ; males, que se resumem na gos não bailavam alegremente, abra
avareza, origem de todas as desgraças, çando - se, mas horrivelmente marrando
e atrocidades d’este mundo ( Avaritia se, trocando muitas injurias, como já fi
radix omnium malorum ). Nada é mais cou dito n'outra parte, e como verernos
atroz do que o avaro : Avaro nihil est ainda agora adiante.
scelestius ( Eccles.). ( 12) Più che altrove troppa. « Vi aqui
( 8 ) Ahi giustizia di Dio, tante chi maior numero de condemnados que
stipa. Como si exclamasse : Oh tremen nos circulos superiores». E porque maís
da justiça ! quem, senão tua mão omni numerosos ? Porque , sendo a avareza o
potente, reune , condensa, e recalca mais geral de todos os vicios, como ha
n'aquelle abysmo tantos trabalhos, ou pouco se disse, mais numerosos são os
tantas afflições, e tormentos, quantos eu seus sequazes, e victimas .
vi ! ( 13 ) E d'una parte e d' altra con
Chi stipa, ammuchia , e calca lagiù. grand' urli. A saber : dos dous lados,
Alguns entendem esta interjeição de ou dos dous pontos oppostos do circulo.
outro modo , traduzindo : « Oh justiça de Mais claro : os avaros, e os prodigos
Deus, quem póde restringir na mente, são postos no mesmo tormento, mas
ou figurar na imaginação tantas penas, aquelles n'uma metade do circulo, e es
e trabalhos ? » Outros interpretam ainda tes n'outra metade , rolando com toda
fe
que o Poeta não fala da difficuldade de a força do peito rochedos enormes,
restringir na mente aquellas angustias, rindo - se cruelmente no encontrão nos
COMMENTARIOS AO CANTO VII 193

dous pontos oppostos. Diz o Poeta que segundo o Apostolo, que diz : avaritia
soltavam grandes uivos, isto é, suas est idolorum servitus; o prodigo não
vozes de lamentação soavam como falta menos a estes deveres, tornando
uivos de cão ; porque pela grande dor, se escravo da bestialidade, que é idola
que sentiam, seus clamores perderam tria, sob outra forma. Alem d'isto, na
o timbre de voz humana. Depois do apreciação das nossas culpas , a divina
encontrão, voltava cada um gritando : justiça não olha somente ás obras, mas
« Porque retens?» «Porque dissipas ? » sobretudo á vontade, e não pecca menos
Porque são expostos a este tormento ? quem quer, e não póde, do que quem
Pela analogia com o peccado. Durante quer, e póde . Estas duas operações ve
al vida, expozeram-se ao peso de todas as rificam -se exactamente no avaro, e no
fadigas, cuidados, e mortificações, para prodigo : portanto, si aos olhos do
adquirir riquezas : adquiridas estas, ag. mundo a prodigalidade pode parecer
grava-se o peso : o avaro não sabendo menos aggravante do que a avareza , aos
onde escondel-as, para não ser d'ellas olhos de Deus são egualmente culpaveis,
defraudado ou roubado : o prodigo, porque a avareza procede da perversão
agitando-se em mil duvidas sobre que do coração, e a prodigalidade da perver
genero de superfluidades deve dissipal são da razão : um vende a alma ao diabo,
as : ora estes pesos enormes sob que o outro vende a alma á voluptuosidade:
que vergam o avaro, e o prodigo, sym ambos são idolatras. Dante pois proce
bolisam os rochedos desmesurados, que deu juridicamente bem , condemnando
rolam no Inferno, ferindo -se mutua os ao mesmo tormento .
mente ao encontrarem - se , como na ter ( 14 ) Così tornavan per lo cerchio tetro,
ra se chocaram seus interesses, e d'este Da ogni mano all'opposito punto, Gri
choque nasciam injurias, e imprope dandosi anche loro ontoso metro. Não é
rios. muito claro o movimento d'estes pec
Mas diz- se que Dante é injusto, sujei cadores. Vellutello fal - os mover pelo
tando a tormento egual culpas des diametro do circulo, tomando mezzo
iguaes, visto como a avareza é peccado cerchio por metade do espaço circular,
mais grave, que a prodigalidade; por não da circumferencia. Eu creio o con
quanto define Aristoteles a avareza, di trario ; creio que elles se movessem pela
zendo, que ella consiste em não dar, e circumferencia : admittida esta interpre
despender onde, e como, e quando tação, a cousa torna-se clarissima. Cosi
convem, como em adquirir mais do que tornavan per lo cerchio tetro, a saber :
convem ; assim como define que a pro voltavam pela circumferencia, e não só
digalidade consiste em dar, e despender mente da maior do circulo, mas de todos
tanto, e como, e onde não convem . os menores concentricos. Da ogni mano,
Por estas definições parece com effeito isto é, de toda a parte da circumferencia
que a prodigalidade é menor vicio, que ao ponto opposto : all' opposito punto ;
a avareza ; logo não é de razão que pois que, movendo-se dous pela circum
sejam punidos com penas eguaes. Res ferencia da contraria parte, o ponto,
ponde-se que o vicio da prodigalidade onde se encontram é opposto àquelle ,
não é em si menor que o da avareza ; de onde partiram ( Torrelli).
porque, si a avareza procede do appeti ( 15 ) Dissi : Maestro mio, or mi di
te desenfreado de ajuntar riquezas, a mostra Che gente è questa, e se tuttifur
prodigalidade procede de uma estulticia, cherchi Questi chercuti alla sinistra nos
que irmana com a bestialidade . Si as tra. Dante havia descido a este quarto
origens são differentes, os effeitos são circulo exactamente no ponto em que
eguaes. Si o avaro falta á caridade para os dous semi-circulos dos prodigos, e
comsigo, para com o proximo, e para dos avaros se uniam, e faz duas per
com Deus, fazendo da riqueza seu idolo, guntas a Virgilio :
13
194 O INFERNO

1.', que qualidade de peccadores fosse In cui usò (continúa Lombardi) leu
aquella ; tambem Caetani. A lição in cui usa é
2.", si foram todos clerigos. seguida, e sustentada por Biagioli ; mas
Começa Virgilio por satisfazer a pri as razões que adduziu não nos demove
meira pergunta, e, em vez de dizer que ram a separar-nos da Nidob, parecen
elles eram todos avaros, ou prodigos, do -nos clarissima das palavras de Dante
usando uma periphrase, « diz que em a allusão a Papas mortos : Sembrandosi
quanto viveram no mundo foram todos chiarissima, da tutto il contesto, l' allu
de um entendimento tão transtornado sione ai morti colà veduti.
( si guerci della mente ), que não fizeram Sou ainda escudado com auctoridade
suas despezas com justa medida. » Res de outro interprete acima de toda exce..
pondendo assim em geral, individualisa pção. Francisco Butti, nascido tres annos
depois por estas palavras : depois da morte de Dante, e que nos
( 16) Questi fur cherci, che non han seus commentos se serviu do autographo
coperchio Piloso al capo, e papi e car original do Poeta, traz tambem o verbo
dinali, In cui usa avarizia il suo soper no preterito passado In cui usò avarizia
chio. Esta resposta de Virgilio exige mui il suo soperchio.
to criterio na interpretação ; criterio que, Vejamos agora como interpreta este
declaro com a devida venia, não tem terceto : « Questi fur cherci. Agora mostra
sido cuidadosamente exercitado pelos Virgilio a Dante os que foram clerigos ;
modernos commentadores, e d'ahi um indica entre os prodigos, e avaros todos
grande equivoco que tem passado em aquelles, que têem coroa na cabeça, di
julgado : attenda o leitor. zendo claramente : « Foram clerigos to
In cui usa, em vez de In cui usò, como dos estes, que não têem a cabeça co
se lê em todas as edições antigas. Os berta de cabellos, e que antes a têem
Academicos da Crusca encontraram in calva. Che non han coperchio Piloso al
cui usò em treze manuscritos ; e admira capo, e foram papi e cardinali, em
que , tendo elles, onde a razão pedia, quem a avareza costumou fazer suas
inserido no seu diccionario palavras de ultimas provas : in cui usò avarizia ».
um assaz menor numero de textos, não Esta interpretação dada por um ho
tenham inserido a presente, como exi mem do alto criterio de Butti, conside
gia a syntaxe em conformidade com o rado cinco seculos e meio como um dos
fur, o que sem duvida modifica muito o mais exactos commentadores da Divi na
sentido da maledicencia do Poeta, o qual Comedia, dissipa o erro geralmente, ou
collimava incontestavelmente Papas, e quasi geralmente, abraçado, que Dante
Cardeaes passados, e determinados, e declarára a avareza , como endemica, ou
não Papas, e Cardeaes presentes, e fu privativa da classe dos clerigos, dos Pa
turos ; por isso empregou o verbo no pas pas, e dos Cardeaes ; erro que se desfaz
sado in cui usò, e não in cui usa . N'este pela propria significação da palavra soper
reparo, que considero essencial, sou es chio , que quer dizer superabundancia, re
cudado com a auctoridade de interpretes dundancia , sobejidão, superfluidade, etc.;
mui graves, como Lombardi, o qual, es negação absoluta da mesquinhez, sordi
tranhando essa omissão dos academi dez, tacanharia, que caracterisam a ava
cos da Crusca, accrescenta : Si porven reza. E aqui me cae do bico da penna esta
tura parecêra aos academicos que o sensata observação do erudito Bennas
accento na palavra usò podia impedir a suti: « Como se vê, diz elle , mettem na
ilisão com a seguinte a, devia tirar-lhes clausula da avareza Papas, e Cardeaes,
todo o escrupulo o verso, entre outros, que Dante sempre accusou, e zurziu por
116 do canto xxvi do Purgatorio : seu demasiado fausto ! Viver com fausto ,
isto é, com largueza, magnificencia, e
Col dito ( e additó un spirto innanzi). luxo não é de certo proprio de ava
COMMENTARIOS AO CANTO VII 195

ros, mas de prodigos ! » «Alguns com rar a sanctidade do Ministerio Supremo.


mentadores, conclue Bennassutti, talvez Si quiz immolar Bonifacio VIII as suas
se tenham enganado com a palavra ava vindictas politicas, começou por despo
rizia posta n'este verso » . jal-o do augusto caracter, que temeu
Creio queha muito engano tambem na profanar».
latitude dada ás sobreditas palavras, que De tudo o que precede, fica eviden
são estas : Questi fur cherci, che non ciado : 1.°, que Dante, empregando o
hanno coperchio Piloso al capo, e papi verbo usar no preterito passado, não
e cardinali. E que Butti traduz assim : podia alludir senão a certos Papas, e Çar
«Tu me perguntas, diz Virgilio a Dante, deaes, que já tinham morrido, comomui
si estes da nossa esquerda foram cleri to bem diz Lombardi , e não aos Papas,
gos, visto que têem o cabello cortado, e e Cardeaes futuros, até porque seria
eu te respondo : Tutti quanti, isto é, da desmentir a qualidade, que elle tanto
direita e da esquerda, todos os que es prezou, a coherencia christá ; visto como
tam n'este circulo fur guerchi, isto é, em quasi todo o sacro Poema patenteia
transtornados da mente . Não diz cherci o mais profundo acatamento ás summas
( clerigos), mas guerchi. No verso ante chaves, e á inviolabilidade do caracter
rior havia dito Dante : Questi chercuti pontifical; 2.º, que, alem dos clerigos
alla sinistra nostra, isto é, estes que á Papas, e Cardeaes, elle não diz que
nossa esquerda têem os cabellos corta viu ali outros clerigos , avaros ou pro
dos ao modo de clerigos. Não se enten digos, como alguns têem acreditado.
de que tivessem a tonsura ou corôa na Não é que eu supponha impossivel que
cabeça ; porque d'aquelles não teria du tenha havido, e possa haver clerigos
vidado Dante, ao contrario, estaria certo Papas, e Cardeaes infectados d'estes
que fossem clerigos, e não teria pergun vicios ; creio mesmo que terão havido,
tado. É isto o que decorre do texto ». e hão de haver ; porque, sendo homens,
D'esta exposição resumbra a duvida estão sujeitos a todas as fraquezas
de que, si alem dos Papas, e Cardeaes, humanas ; o que porém é absolutamen
houvesse ali outros clerigos : porque te inadmissivel, é que elles tenham
quando Virgilio diz : Estes foram cleri sido avaros, e prodigos pela simples
gos, e Papas, e Cardeaes é como si razão de serem clerigos ; isto é absurdo
dissesse : « Foram clerigos, e clerigos, tão grande, que não pode caber na ca
que foram Papas, e Cardeaes» . Esta beça de ninguem, principalmente na
interpretação é auctorisada por um cabeça de Dante, ainda mesmo grande
commentador anonymo de grande me como ella foi. Condemnar uma classe
rito » Questi furono chierici, chierici inteira pelos desmandos de alguns de
grandi, cioè papi e cardinali. Estes seus membros, é iniquo. Pouco importa
foram clerigos, e clerigos grandes, isto que Cicero houvesse dito que os sacer
é , Papas e Cardeaes». dotes eram excessivamente avaros (ga
Quaes fossem esses determinados nus avarissimus); porque entre o sacer
Papas, e Cardeaes accusados pelo Poeta docio pagão, e o sacerdocio christão ha
de excessivo amor de riquezas, infeliz um abysmo , não ha termo de compara
mente não deixou elle seus nomes no ção. O proprio Dante que via no padre
escuro, e por isso . imitarei a discrição catholico uma imagem viva da providen
com que Ozonan se exprime nas se cia na terra , não podia considerar n'elle
guintes palavras : «Dante foi contempo uma imagem encarnada da avareza,
raneo de quatorze Papas, teceu louvo como symbolo da sua classe. Os que
res a dous, guardou silencio a respeito elle, com razão, ou sem razão, conside
de sete, e dos outros cinco se propoz rou indignos, metteu-os no Inferno, de
censurar as imperfeições da humanida clinando seus nomes.
de, sem todavia cessar jamais de vene ( 17) In eterno verranno agli due cozzi;
196 O INFERNO

Questi risurgeranno del sepulcro Col conveniencia com os astros de que vem
1 pugno chiuso, e questi co'crin m07ji. tractando.
Como si dissesse : Resurgirão os avaros ( 23) Ordinò general ministra e duce.
com a mão fechada, em signal de tena Ordenou que os bens mundanos fossem
cidade com que afferrolharam nas mãos distribuidos por uma intelligencia geral,
o dinheiro : Sinistra compressis digitis e motriz, a que nós chamamos Fortuna.
tenacitatem , atque avaritiam significat Sancto Agostinho havia dito : «Nos eas
(Diodoro Siculo ). Resurgirão de cabel. causas, quæ dicuntur fortuitæ (unde etiam
los cortados os prodigos, não só em fortuna nomen accepit) non diximus nul
signal de que foram doudos, como de las, sed latentes, easque tribuimus, vel
terem vendido os proprios cabellos, para veri Dei, vel quorumlibet spirituum vo
dissipar o seu producto em superfluida luntati: Nós não dissemos que não exis
des. Vendeu até os cabellos da cabeça, é tam aquellas causas, que se chamam for:
um proverbio . tuitas (das quaes a fortuna recebe o no
( 18) Mal dare ( despender mal ) refe me); dizemos tão somente, que são
re-se ao prodigo : mal tenere ( possuir occultas, e que as attribuimos, ou á
mal, ou não fazendo nenhum uso do di vontade do verdadeiro Deus, ou de al
nheiro ) refere - se ao avaro : lo mondo gum outro espirito ». É isto exactamen
pulcro, isto é, o Paraiso : Parole non ci te o que está dizendo o Poeta .
appulcro. Do adjectivo pulcro forma (24) Di gente in gente. De nação a
aqui o verbo appulcrare, adornar, em nação. Que não é isto uma phantasia
bellecer. Como si dissesse : Qualquer do Poeta diz-nos a Historia sagrada, e
que seja este combate ( questa zuffa) não profana, mostrando -nos como os pode
estou de humor a procurar bellas pa rosos, e ricos imperios assyrios, persas,
lavras, para descrevel-a, até porque es gregos, e romanos passaram a novos
tás vendo com os teus proprios olhos senhores, que os fizeram descer do
( Lombardi). apogeo das grandezas ao aviltamento
( 19 ) Chè tutto l'oro, ch'è sotto la luna, das grandes miserias ! Em contraposi
E che già fu, di queste anime stanche ção vemos, por exemplo , as duas Ame
Non poterebbe farne posar una . Todo o ricas surgirem da selvageria, e do atra
ouro que existe, e existiu na terra não zo, e se tornarem fontes abundantes de
seria capaz de contentar uma só d'estas riqueza, e de civilisação, mas que por
almas extenuadas, ou de lhes dar des sua vez serão condemnadas a passar por
canso . transmutações, e vicissitudes dolorosas,
( 20 ) E quegli a me : O creature scioc ou por abusos de suas forças, ou por
che, Quanta ignoranza è quella che v’of aberrações dos designios da Providencia.
fende ! Oh creaturas insensatas! Aqui (25) D’uno in altro sangue. De uma a
Virgilio não só se dirige a Dante, como outra familia. É este outro tremendo phe.
a todos os homens em geral. nomeno social, que na Historia antiga,
( 21 ) Mia sentenza ne imbocche. Como e hodierna se apresenta a cada pagina !
si dissesse : « Quero que tu recebas a mi Volvamos os olhos para todas as partes
nha doutrina , como as creanças rece do mundo , e veremos quantas familias
bem a comida, que lhes mettem na antigas, nobres, e opulentas não têem
bôcca. Esta expressão demonstra egre desapparecido, e si alguma d'ellas exis
giamente a importancia do ensino, que tem, vemol- as rojar no pó da decaden
se segue, e o paterno amor de Virgilio cia, saudando humilhadas o cortejo de
para com o seu discipulo » (Bianchi). outras, hontem plebeas, e obscuras, e
( 22 ) Similemente agli splendor mon hoje nobilitadas pelos fructos da sua
dani. Chama esplendores mundanos as industria, ou pelas riquezas adquiridas
honras, e as riquezas, já pelo brilho, pelo seu trabalho ! « Examinae diz um
que d'ellas resulta, já por conservar a pensador, examinae a origem intima
COMMENTARIOS AO CANTO VII 197

da decadencia das nações, e das fami porém nas suas operações (volvendo
lias, e lá encontrareis no fundo o verme, a
sua roda com toda a celeridade ),
que roeu pela raiz essas grandezas des como asoutras intelligencias motri
moronadas. Esse verme, sabeis qual é ? zes ( os anjos) .
É o esquecimento, e o desprezo das ( 29) Già ogni stella cade, che saliva
leis d'aquelle Ente Soberano, que na Querendo dizer : « É mais de meia noite.
sua justa indignação derruba os pode Do começo do Poema até este ponto
rosos soberbos dos seus assentos, para são decorridas 18 horas. Começou com
fazer occupal-os pelos humildes : Depo manhã : Temp’ era dal principio del ma
suit potentes de sede, et exaltavit hu tino : depois veiu a noite : Lo giorno se
miles » . n'andava : logo eis 12 horas, porque era
( 26 ) Necessità la fa esser veloce. Por o Equinocio. Agora as estrellas decli
que diz Dante que o ser veloz é uma nam para o occidente : Ora le stelle ca
necessidade indeclinavel da Fortuna ? dono : logo têem passado o meridiano,
Será ella o Fado dos pagãos ? Pelo con ou meia noite ; e eis outras 6 horas que,
trario. Os dias do homem são breves, unidas ás primeiras 12, fazem 18 (Bian
diz Job : Breves dies hominis sunt. Uma chi ) .
geração passa, outra geração vem. Ge (30) L'acqua era buia molto più che
neratio præterit, generatio advenit (Ec persa : E noi in compagnia dell ' onde
cles., 14). bige Entrammo giù per una via diversa.
Ora, si o homem tem a vida tão curta ; A agua era muito mais escura, que
si uma geração succede a outra veloz rôxa, era trigueira, ou de uma côr en
mente, é claro que a Fortuna ou a in tre purpurea, e negra, tirando mais
telligencia superior, encarregada de per para negra (Conv. tratt., 4, 20). Ao lon
mutar os bens mundanos, ou o deve go d'aquellas aguas pardacentas, quer
fazer com promptidão, ou não o deve dizer o Poeta, descemos á quinta caver
fazer nunca, visto como o objecto, ou na por uma vereda estranha, sem que
base de suas operações, isto é, a nação, eu mesmo saiba dizer como descesse .
ou a familia, passa, e voa com rapi Foi o mesmo que me aconteceu, quando,
dez. depois de passar o Acheronte, baixei do
( 27) Quest è colei, ch' è tanto posta in Limbo ao circulo dos luxuriosos, e d'este
croce Pur da color, che le dovrian dar aos dos glutões, e d'este ao dos avaros :
lode, Dandole biasmo a torto e mala do circulo dos avaros conheci que des
voce. Por quem, e quando é a Fortuna cia para o dos violentos, mas tambem
malsinada, e posta na cruz ? Por aquelles não sei como : quero dizer : até ao cir
que, depois de terem recebido, e gosa culo dos avaros fui levado pela graça di
do os favores da Providencia, que lhes vina, de modo que a não conheci ; agora
porporcionára todos os meios de enri começo a conhecel -a : até aqui não tinha
quecer, d'ella se queixam com blasphe feito outra cousa, senão resistir ao seu
mias, si , por seus proprios excessos, ou impulso ; d'ora avante cooperarei com
por casualidades imprevistas, chegam a ella ; porque nada de bom se fará sem
perder suas riquezas, quando a deviam a graça .
bemdizer pelos dias felizes que lhe con ( 31 ) Una palude fa ,che ha nome Stige,
cedeu durante a sua prosperidade! Questo tristo ruscel, quand' è disceso
( 28 ) Ma ella s'è beata, e ciò non ode : Appiè del maligne piagge grige. Quin
Con l' altre prime creature lieta Volve to circulo . Estyge quer dizer odio, tris
sua spera, e beata si gode. Mas essa in teza, e tambem horror.
telligencia celeste, que recebe suas or ( 32 ) Che sotto l'acqua ha gente che
dens de Deus, e d'elle gosa, é bemaven sospira , E fanno pullular quest' acqua
turada , e não dá ouvidos aos queixu al summo, Come l'occhio ti dice u ' che
mes acerbos dos ingratos : prosegue s'aggira. Virgilio, depois de chamar a
198 O INFERNO

attenção de Dante sobre as mutuas, e Boccaccio vê litteralmente no castigo


crueis dilacerações das almas d'aquelles, d'estes iracundos uma satyra pungentis
que no mundo se deixaram dominar sima aos Toscanos do seu tempo, so
pela ira, acrescenta : « Quero que acre bretudo os Florentinos, cuja ira, e sede
dites que debaixo da agua pantanosa ha de vingança se tornára uma enfermidade
outras almas que suspiram (e são as moral mais corrosiva, e desastrada do
mais perversas ), de modo que fazem a que a lepra, que perseguia o povo he
agua pullular na superficie » . Estes pec breu : vê no genero do castigo uma se
cadores aqui punidos são, sem duvida rie de admiraveis allegorias. Diz o nosso
nenhuma, aquelles que n'esta vida fo Poeta que os iracundos estão enterrados
ram mais iracundos, que os outros, e com todo o corpo dentro da lagoa ; diz
não os preguiçosos (accidiosi), como que a agua d'esta lagoa é quente, negra ,
creem alguns commentadores. Os per nebulosa, e lodacenta : Eis magistral
guiçosos ( sob a denominação de noncu mente carecterisadas as tres qualidades
ranti ficaram no anti-Inferno, a respeito dos iracundos ! Começa por ser a Es
dos quaes disse Virgillio a Dante : Non tyge symbolo da tristeza, do odio, e do
ragioniam di lor : ma guarda e passa. horror. São exactamente os sentimen
Estes d'aqui, ou aqui castigados, são tos dolorosos, que acabrunham os ira
aquelles, a quem a ira excessiva abateu, cundos; o ser quente a agua da lagoa
e tornou inertes para fazer o bem ; ora, symbolisa o humor colerico dos iracun
uma cousa é não fazer o bem por im dos ; humor que de subito se accende,
pedimento dos accessos constantes da e se apaga, ferve, e desce : o ser nebulo
ira, e outra cousa é não curar d'elle. Assim sa symbolisa outro attributo dos ira
iracundia é diametralmente opposta á cundos, que é conservar longamente a
preguiça ; seria injustiça grande punir ira occulta, mas depois pouco a pouco
mais severamente os desgraçados pre se desvanece como as evaporações do
guiçosos, que não fizeram o bem , do pantano ; o ser negra symbolisa a ter
que os perversos iracundos, que fizeram ceira qualidade dos iracundos, os quaes
o mal positivo. E tanto mais me firmo não sómente não expellem de si a ira,
n'esta opinião, quando é ella corrobora mas pelo contrario a convertem em odio
da por outros commentadores, que en permanente até que possam desafogal-o
tendem ter querido Dante significar por por algum acto de vingança, e isto pro
aquelles suspiros, que faziam a agua pulu cede da compleição colerica, isto é,
lar, as convulsões da ira, as furias inter terrca, que se pode symbolisar na ne
nas da inveja, e o abatimento do orgu grura da agua da lagoa, cuja lama é de
lho, que os prostra na mais negra triste natureza negra, e se conforma isto com
za, como lamentando-se confessam nos a interpretação da palavra melancholia,
seguintes termos : que se diz derivar de melan , græce, que
(33 ) Nell' aer dolce che del Sol s’alle no latim significa negro. Em resumo :
gra. Esta tristeza, que S. João Damas por estas tres propriedades da agua da
ceno definiu uma certa tristeza aggra lagoa quiz o Poeta exprimir as tres
vante quædam tristitia aggravans, e que propriedades dos iracundos notadas por
Sancto Thomaz de Aquino chama , vapo Aristoteles, a saber : pela negridão da
rações tristes, e melancolicas vaporatio agua a tristeza ; pela nevoa as trevas,
nes tristes, et melancholicæ , Dante tradu que a ira produz no entendimento ;
ziu por accidioso fummo,querendo dizer pela effervescencia o furor subito que os
que o vicio da tristeza, resultante da ira arrebata ; e pelo tremedal fetido (conco
inutil, ou não saciada pela vingança, lhes mitancia natural ) a vida ociosa, inerte,
tornára tão obscuro o entendimento, sordida em que viveram no mundo, re
como o fumo obscurece o logar a que volvendo -se no torpor, como os porcos
se apega. A imagemé perfeita. na lama.
COMMENTARIOS AO CANTO VII 199

« Elles mesmos confessam que , em ção de preguiçosos, negligentes, etc.,


quanto estiveram no mundo, a despeito mas de tristes. Assim tambem o havia
do álegre espectaculo do universo, vive entendido Daniello, o qual interpreta
ram tristes em todos os seus pensamen accidioso fummo por espirito de tristeza,
tos, em todas as suas cogitações odientas, e de raiva (spirito di tristizia e di rab
que os tornaram incapazes , e cegos bia ); baseando esta intelligencia na si
para o bem ; e que hoje occultos sob a gnificação, que n'aquelles tempos, como
lama da lagoa Estyge, como castigo de attesta Du Ferne, tinha o adjectivo latino
terem trazido occultos no peito seus accidiosus, então tomado no sentido de
desordenados desejos de vingança, ape tristis. Poggiali, abundando no parecer
nas podem susurrar ou gargarejar suas de Daniello, diz que os iracundos enter
lamentações, porque o lodo, que con rados no pantano da Estyge, lastimam
tinuamente engolem, lhes não permitte se, dizendo : « Occultavamos dentro de
exprimir o seu triste hymno com phra nós turbidos fumos de lento, mas sober
ses inteiras, e completas. (Boccaccio ). bo rancor, que um dia devia proromper
Tudo isto me confirma na opinião de em sensiveis injurias, e offensas contra
que accidiosi aqui não tem a significa Os outros » .
INTRODUCÇÃO AO CANTO VIII

Sobre as duas margens da lagôa Estyge , que circumda a cidade de Dite, estam
duas torres, que diriamos dous telegraphos. Quando chega alguma alma condemna
da, os demonios, que guardam a torre exterior, dam aviso por meio de duas almena
ras aos outros demonios, que estam na torre exterior, os quaes correspondem com
autra, significando que expedem de prompto o piloto Flegias com a barca, para ir
recebel-a. Este Flegias, segundo Lactancio, in libro Divinarum Institutionum , foi
filho de Marte, e homem perverso, arrogante, e desprezador dos Deuses. Segundo
Servio, teve elle dous filhos, Issio, e a Nympha Coronis, com a qual por sua bel.
leza engraçou Apollo, e delle houve um filho, que foi chamado Esculapio. Irritado
Flegias com a violação de sua filha, correu cego de furor a Delphos, e incendiou o
templo de Apollo, que era tido em grande veneração pelos gentios. Teve logar
este incendio, segundo Eusebio, in libro Temporum , no anno 23 Danko, rei dos
Argiros, 3752 da creação do mundo. Enfurecido Apollo com esse sacrilego desacato,
fulminou Flegias, condemnando sua alma a viver no Inferno com um grandissimo
rochedo suspenso sobre a cabeça, ameaçando de esmagal-o a todos os momentos ,
de que lhe resulta um continuo, e tormentoso terror. Virgilio tambem fala d'elle,
dizendo :
... Phlegyasque miserrimus omnes
Admonet et magna testatur voce per umbras :
Discite justitiam moniti et non temnere divos.
Crê Daniello que Flegias é posto por Dante n'este circulo dos iracundos, por
ter sido iracundissimo. Esta interpretação, comquanto abraçada por Landino, e
Vellutello, parece inadmissivel a Lombardi ; por isso que o officio, que Flegias exerce
de conductor de almas a Dite, logar onde são punidos os incredulos, o apresenta
como pertencente ao numero d'estes ; porque desprezar os Deuses (temnere divos )
é mais delicto de incredulidade do que de outra qualquer especie. Mas eu entendo
que todas estas interpretações se conciliam perfeitamente, desde que n'este circulo são
punidos os dous vicios, que se personificam em Flegias: a iracundia, e a increduli
dade. Allegoricamente quer o Poeta significar n'este castigo de Flegias que, si a
ira, e o desprezo da Divindade eram entre os proprios pagãos considerados delictos
graves, por superioridade de razão o devem ser entre os christãos, os quaes em face
202 O INFERNO

dos principios de uma religião revelada, ensinada universalmente pela Sancta Egre
1
ja, não podem de boa fé ignorar o dever de respeitar com profundo acatamento
o verdadeiro Deus trino em pessoa.
Flegias pois, ao chegar com a barca ao ponto onde estavam os dous poetas, grita
logo furioso, exprobrando a Dante, que elle considera um condemnado, o não ter
vindo ha mais tempo ; quebra porém das carnes, e se devora por dentro de raiva,
quando Virgilio lhe diz que são inuteis os seus gritos, e as suas alegrias ; porque elle,
e Dante só se demorarão alli o tempo preciso, para se transportarem ao outro
lado da lagoa.
Entram na barca, e emquanto atravessam o pantano , apresenta- se a Dante Fi
lippe Argenti, todo coberto de lama, e entre elles ha um breve dialogo aspero. Este
Filippe Argenti, introduzido tambem por Boccaccio em uma das suas novellas, é por
elle descripto n'estes termos : « Filippe Argenti, da nobre familia dos Caviccioli, um
dos ramos dos Adimaris, foi cavalleiro riquissimo de Florença, e tão rico, que fez
ferrar de prata os cascos do seu cavallo , d'onde lhe adveiu o sobrenome de Argenti.
Teve figura agigantada, côr morena, musculoso, de força prodigiosa, e ao mesmo
tempo irascivel, e arrogante como ninguem ». A familia do Adimaris pertencia á
facção contraria a Dante, e conta- se que um d'elles fazia forte opposição a sua
volta ao seio da patria. Alguns commentadores querem que Filippe Argenti fosse
inimigo figadal do Poeta, e que sempre impugnou com feroz tenacidade a idéa
do seu regresso a Florença. Mas com razão objectam outros, que essa asserção é
contraria á época do Poema, que é 1300, tempo em que Dante não tinha sido
ainda exiliado, e em que já era fallecido Filippe Argenti. Esta circumstancia de
certo é essencial. Accresce que mesmo das palavras do Poeta se deduz que Filippe
Argenti o não conhecia pessoalmente ; pois que, encontrando-o na lagoa Estyge,
pergunta - lhe quem é, que ainda vivo vem ao Inferno, como sendo um grande sce
lerado : perguntando- lhe Dante por sua vez quem era elle assim tão hediondo, res
ponde-lhe ao mesmo tempo com azedume, que, si viaja no Inferno, não é para se
demorar, como elle, e os outros condemnados ; e conclue por lhe declarar que, a
despeito da hediondez em que se acha a sua figura enlameada, todavia bem o co
nhece por um espirito maldicto, e que como tal deve permanecer no pranto, e na dor.
Ora, Dante podia ter conhecido Filippe Argenti, em vida, sem que d'elle fosse
conhecido, como acontece muitas vezes. Mas porque o mette no Inferno? Pela
mesma razão por que lá metteu outros homens famosos por crimes, que só conhe
cêra de nome. Demais, tractando o Poeta de flagellar n'este circulo os iracundos,
tomou por typo Filippe Argenti, caracterisando n'elle todos os iracundos em geral.
Si o figura mordendo -se, e dilacerando-se de raiva, por não poder vingar-se d'elle, é
por ser isso proprio da indole do iracundo. Mas como explicar esta sua falta de
caridade para com elle, regosijando -se com os seus tormentos ? Explica -se muito
bem, 1.º, porque Filippe Argenti, que no mundo fôra um soberbo , e arrogante pro
vocador gratuito, deu d'isto provas no Inferno insultando Dante, que o não offendêra ;
2.º, porque nenhum vinculo de caridade nos prende aos condemnados, inimigos'im
placaveis de Deus, contra quem na sua permanente contumacia nutrem odio profun
do. Si Dante pois conforma a sua ira com a ira divina; si exulta de ver no Inferno mal
tractado, e vilipendiado Filippe Argenti, a sua alegria, em vez de peccado, é uma
virtude ; mesmo porque vê na humilhação, e ludibrio d'esse espirito iracundo a justa
punição do vicio n'elle personificado. Si Virgilio louva seu discipulo pela indignação
com que este trata Filippe Angenti, chamando -lhe espirito maldicto, é porque o
Mantuano distingue a indignação da ira. Com effeito a ira, diz S. Thomaz de Aquino
com Aristoteles, ainda que de algum modo tolha a serenidade da razão, não lhe tolhe
a rectidão. Quem se indigna segundo a recta razão, continúa o Dr. Angelico, a
INTRODUCÇÃO AO CANTO VIII 203

sua indignação é louvayel. Si porém exulta com a vingança injusta, como cas
tigar um innocente, ou punir um culpado, não segundo a ordem da razão, ou por
meios não legitimos , em tal caso, a ira torna -se viciosa, e condemnavel. Quem não
se indigna, quando ha razão para isso, diz Chrysostomo, pecca; porque a paciencia
passiva cimenta os vicios, alimenta à negligencia , estimula os máos no caminho
do mal, como faz entibiar os bons no caminho do bem. É melhor a ira, que o
riso, diz Salomão ; porque com a indignação no rosto se corrige o erro.
Assim pois nem Dante se mostrou contradictorio comsigo mesmo, enchendo-se
de ira, quando flagella os iracundos, nem a sua ira contra Filippe Argenti era re
vestida de odio, ou de desejo irracional de vingança ; era uma ira justa contra
um grande vicioso, ou contra um soberbo endurecido no peccado : é tão certo isto,
que Virgilio, quando o abraça, louvando -o, não o chama alma iracunda, mas sim in
dignada, como observa Boccaccio. O proprio Dante ensina, que a indignação pro
vocada por amor da justiça, e da virtude , se chama ira honesta e louvavel; nem elle
no Inferno, por onde viajava, para purificar -se de seus peccados, podia commetter
um peccado .
Entretanto, adverte -nos o mesmo Angelico Doutor, que não só é difficil manter
o equilibrio na indignação, como é muito facil ultrapassar a linha, e cahir nos ex
cessos da ira. Por isto admoesta-nos a combater fortemente o appetite irascivel ;
sopitando - o com o duro freio da paciencia christā, de modo que nem nos arraste
a palavras, nem a actos indignos de um ente racional, sobretudo seguidor do
Homem Deus, o qual, si expelliu com indignação os que profanavam o tem
plo, tinha auctoridade para fazel-o, e com a mesma auctoridade nos ordena com
estas memoraveis palavras : Aprendei de mim , que sou humilde, e manso de cora
ção. Irascimini et nolite peccare, diz o Psalmista.
Voltando agora á tentativa dos dous Poetas de entrar na cidade Dite, direi que
não foram tão bem sortidos como pensavam ; porque os demonios não deram cre
dito ás palavras de Virgilio, quando lhes assegurou que por disposição divina con
duzia Dante ao Inferno. Por fim bateram- lhe com a porta na cara, e do que se se
guiu, veremos no canto subsequente .
CANTO VIII

Emquanto os dous Poetas gyram em torno do pantano, Flegias, ao ver o signal na torre, corre com a sua
barca para transportal-os a Dite. Encontram no trajecto Filippe Argenti. Chegados ás portas da cidade ,
os demonios oppõem feroz resistencia a entrada de Dante. Procura Virgilio accommodal -os : batem -lhe
as portas. A despeito d'este insulto, assegura ao seu Discipulo que vencerá a batalha, e que não está longe
quem os ha de soccorrer.

Proseguindo a narração do canto antecedente digo (1) que , muito


antes de chegarmos ao pé da torre , foram nossos olhos attrahidos
por duas almenaras, que viråmos collocar no alto do mirante, (2) e
por outra , que correspondia de tão longe, que difficilmente a vista
podia abranger. (3)
E eu, voltando-me para o mar de todo o saber, (4) disse : «Mestre,
que significa aquella almenara ? (5) e que responde a outra ? e quem são
aquelles, que as accenderam ? "
Respondeu-me : « Si o fumo, que evapora do pantano te lo não
esconde, já pódes ver atravéz das aguas turvas o barqueiro que es
perâmos.) (6)
Não vôa mais ligeira a setta despedida pelo arco, (7) do que uma
barquinha, que vinha singrando para nós, governada por um piloto,
que gritava: « Agora é que chegas, alma perversa ? » (8)
« Flegias, Flegias, d'esta vez gritas em vão, respondeu-lhe o meu
Senhor : não nos terás em teu poder, senão o breve tempo necessario
para nos transportar ao outro lado d'este pantano . »
Qual aquelle que, ouvindo ter sido presa de um grande engano,
d'elle se dóe em sua ira comprimida ; tal ficou Flegias ao saber, que
não eramos duas almas prescitas.
O meu Guia desceu á barca primeiro, depois me fez tambem en
trar, 9) e somente depois que entrei, é que ella pareceu carregada. ( 10)
Apenas entrámos, aquella antiga prôa (11) moveu-se , sulcando a
206 O INFERNO

agua mais fundo do que costuma , quando transporta as almas con


demnadas.
1
Emquanto atravessavamos o paludoso charco, (12) apresentou-se-me
um quidam todo enlameado, e me disse : « Que scelerado és tu , que
antes da morte vens á Dite ?, ( 13 )
E eu lhe respondi : « Si ainda vivo venho ao Inferno, não é para
me demorar : - ( 14) mas quem és tu assim tão hediondo ? » « Bem vês,
respondeu , que sou um , que choro .» ( 15)
Repliquei-lhe em continenti : « No pranto, e no lucto permanece, ó
espirito malvado ! Por mais deforme, que te faça o lodo, eu te co
nheco ».
Então acceso em ira agarrou a barquinha com ambas as mãos : (16)
mas o meu vigilante Mestre o repelliu, dizendo : « Vae-te d'aqui com
os outros cães ) .
Depois, abraçando-me o collo, (17) beijou-me o rosto, e disse : (18)
« Alma altiva, e indignada , bemdicto o ventre, que te cingiu ! »
«Aquelle foi no mundo um poço de orgulho : nenhuma obra boa
adorna a sua memoria ; (19) por isso é, que a sua alma é tão furiosa
aqui.
« Quantos similhantes a elle não são lá no mundo considerados gran
des reis, (20) que depois de mortos serão chafurdados n’esta lama, como
porcos; porque não deixaram de si, senão horriveis desprezos ! »
E eu lhe disse : «Mestre, bem grato me seria vel- o atufado n'este
tremedal , (21 ) antes que saíssemos d'elle » .
Respondeu -me: « Será satisfeito o teu desejo, (22) não só antes de
saíres do pantano, mas logo que a borda te permitta ver: será mesmo
conveniente que goses tal espectaculo ».
Dentro em minutos, vi outras almas enlameadas cobril-os de tantas
injurias, e vilipendios, que por isso ainda louvo, e agradeço a Deus . (23)
Todas gritavam : A Filippe Argenti !» ( 24) e o soberbo espirito
florentino (25) de raiva a si mesmo se mordia, e lacerava.
Ali o deixamos no ludibrio, e d'elle já me não occupo : mas
me fere os ouvidos um doloroso pranto ; por isso aguço quanto posso
a vista para diante . (26)
O bom Mestre me disse : « Filho, agora se avizinha a cidade dolo
rosa , que se chama Dite, (27) com graves cidadãos, com grande exer
cito .. (28)
E eu lhe respondi : «Mestre, com effeito, já vejo dentro do valle as
suas mesquitas, vermelhas como se saíssemi do fogo ».
E elle me disse : « O fogo eterno , que no interior as inflamma,
communica-lhes no exterior o aspecto rubro, como estás vendo n'este
baixo Inferno ) . ( 29)
CANTO VIII 207

Chegámos finalmente dentro d'aquellas profundas fossas, que cir


cumdam a cidade desconsolada : os muros me pareciam, que eram de
côr ferrenha. (30)
Após um longo, e tortuoso gyro, abicámos um logar, onde o
piloto gritou : « Sáiam da barca, que é aqui a entrada da cidade» .
Eu vi lá sobre as portas mais de mil anjos (31) chovidos do Céo,
os quaes colericamente diziam : (32) « Quem é aquelle, que ainda vivo
vem ao reino da gente morta ? » Eo meu sabio Mestre fez signal , que
queria lhes falar secretamente.
Então mostraram acalmar um pouco o grão furor, e disseram :
«Vem tu só, e ess'outro, que temerario aqui entrou , que se retire.
« Volte sosinho pela estrada por onde veiu como louco : tente- o, si
sabe : porque tu, que o guiaste a esta região de trevas, ficarás com
nosco » .

Pensa agora, ó leitor, qual não seria o meu desanimo quando ouvi
aquellas maldictas palavras, que me tiraram toda a esperança de
voltar ao mundo !
Então exclamei : «O meu caro Guia, tu que sete vezes (33) me tens
confortado nas minhas duvidas, e temores , não me abandones agora
n'este transe cruel : e si nos é vedado seguir mais alem , então volte
mos sem demora sobre os nossos passos ) .
E aquelle Senhor, que me havia conduzido até ali , disse : « Não
temas : ninguem nos ha de embargar a entrada, attenta a promessa que
nos foi dada por pessoa Tal , que não engana, nem pode ser enga
nada .
« Espera -me porém aqui ; e emquanto eu vou, e volto, alimenta de
boa esperança o espirito attribulado de que não te deixarei nas trevas
d'este baratro .
Dizendo isto, parte, e aqui me abandona o doce pae, ficando eu em
grande duvida ; porque o sim, e o não se me contendem na cabeça . (34)
Não pude ouvir o que elle disse aos demonios : (35) mas não se de
morou lá com elles muito tempo; pois que cada um, qual mais de
pressa , se recolheu na cidade .
Aquelles nossos crueis adversarios fecharam as portas na cara do
meu Senhor, o qual voltou para mim a passos lentos .
Vinha de olhos baixos, e com todos os signaes de tristeza : (36)
não falava; mas parecia dizer entre suspiros : « Quem são aquelles , que
me impediram entrar na cidade dolorosa ? »
E me disse : « Tu, por me veres irado, não te amedrontes : porque
eu vencerei a batalha, qualquer que seja a resistencia, que elles lá den
tro preparem .
« Esta insolente presumpção lhes é habitual ; já usaram d'ella na
208 O INFERNO

defeza de outra porta menos secreta, (37) que por isso se acha ainda
1
sem fechadura.
« Esta porta é a mesma, em cuja fachada viste a inscripção negra : (38 )
e já d'aquella altura vejo vir atravessando os circulos intermedios , sem
guia alguma, um grão personagem , por cujo auxilio nos será certa
mente aberta a porta da cidade » . (39)
COMMENTARIOS AO CANTO VIII

( 1 ) lo dico seguitando ch'assai prima. Manzoni que Dante finge ter-se feito
Alguns commentadores, por este modo esse signal com duas almenaras, para
de começar, pretendem confirmar a opi denotar que as almas eram recebidas
*******

nião de que Dante escrevesse os sete can pacificamente na cidade de Dite. Não
tos precedentes anteriormente ao seu será porém descabido pensar tambem
exilio, e que depois d'este recomeçára o que Dante entendesse ser systema
trabalho encetado. Aisto, porém, respon accender no alto da torre tantas lumi
de, ao meu ver, optimamente o Marquez narias quantas eram as almas, que che
Scipião Maffei, que pela mesma razão gavam (Lombardi).
se poderia dizer tambem , que Ariosto ( 3 ) Ed un altra da lungi render cenno.
interrompêra o seu Poema, e depois o Isto demonstra a grande amplitude dos
continuára n'outro paiz ; visto como diz circulos infernaes, e da lagoa Estyge.
no principio do canto xvi : «Narro a Observa Butti que Dante quer por esta
bella historia, começando de novo a allegoria significar que, si ha ordem, e
trabalhar : Dico la bella historia ripigli concordia entre os máos, quando se
ando ; e no principio do canto xxı diz : trata de defender a sua cidade , ou os
«Mas tornando ao trabalho começado, interesses communs, por força de razão
que urdo por vario modo » : Ma tornan devem os bons mantel - as entre si ; por
do al lavor, che vario ordisco. (Lombar que toda desharmonia na combinação
di ) . das forças, e nos meios de empregal-as
Diz Bianchi, que o argumento tirado é funestissima, segundo aquillo do Evan
d'este modo de começar é fraco, e que gelho : Omne regnum in se divisum de
a historia, que a tal respeito se conta, é desolabitur » .
muito incerta. Parece -lhe mais simples (4) Ed io rivolto al mar di tutto il
entender, que este canto segue, e com senno .É uma variante hyperbolica do
pleta a narração começada no fim do Quel savio gentil, che tutto seppe. Que
precedente, acerca das cousas, que Dan Dante considere Virgilio encyclopedico,
te viu no gyrar, e transpor a lagoa ; que creio que se não lhe pode levar a mal ;
em summa o fim de cada canto é um ao contrario é muito louvavel o seu
quasi repouso do Poeta . proceder . O discipulo tem razão de re
( 2 ) Per due fiammette che i vedemmo putar sabio o seu mestre . Não ensina,
porre. O escoliaste, escrevendo de Thuci senão quem sabe, e não aprende senão
dides, refere que estes signaes de fogo quem ignora. Logo aquelle , que ignora ,
se faziam em tempo de guerra, e de paz, deve reputar sabio aquelle , que ensina.
só com a differença que no tempo de Demais, não é mera cortezia em Dante
guerra se faziam dous ; por isso pensa dizer que Virgilio soube tudo. Lamartine ,
14
210 O INFERNO

falando de Cicero , não se limita a dizer da saudação brutal, e ameaçadora com


que elle soube tudo quando se soube que foi recebido pelo piloto.
no seu tempo, mas sim que soube tudo (10) E sol, quand' i' ſuidentro, parve
quanto se pensou no seu tempo ; o que carca. A barquinha só pareceu carrega
é de certo mais alguma cousa . Pelo que da quando Dante entrou ; isto é, sómen
respeita a Virgilio, Boccaccio justifica te pelo peso de seu corpo ella afundou.
optimamente a hyperbole de Dante, di Esta imagem é bebida em Virgilio, quan
zendo que Virgilio soube com effeito do diz que Eneas foi transportado na
todas as artes, e sciencias humanas : barca para o outro lado do Acheronte.
artes liberaes, philosophia moral, e na
... Simul accipit alveo
tural, medicina, etc., e que , alem d'isto, Ingentem Eneun : gemuit sub pondere cymba
mais do que nenhum outro do seu tem Sutilis, et multam accepit rimosa paludem .
po soube a sciencia sacerdotal, que era
então de grandissimo preço. ( u ) Secando se ne va l'antica prora.
( 5 ) Almenara, em vez de fogo ( foco ), Já ficou dito, que a barquinha só pare
é termo muito mais apropriado. Alme ceu carregada, depois que Dante n'ella
nara , derivada do Arabe, significa o entrou , e por isso na sua marcha ia -se
pharol, posto nas torres, ou atalaias, aprofundando mais nas aguas da lagoa,
para dar rebate de inimigo. que de costume, isto é, do que quando,
( 6 ) Già scorgere puoi quello, che s'as transportava os espiritos.
petta. Responde -lhe Virgilio que, si o Antica prora, antiga proa. Antiga,
fumo que se evapora do pantano lhe não porque foi feita, e destinada ao transpor
impede o descortinar ao longe, já po te das almas condemnadas desde a crea
derá ver aquelle, que se espera, isto é, cão do Inferno. Chama proa por meio
o piloto, que, em virtude dos avisos tro nymia, tomando a parte pelo todo, como
cados, deve vir recebel-os. a quilha pela náo. “ As quilhas portugue
( 7 ) Corda non pinse mai da sì saetta . zas sulcavam alegres os mares do Le
Toma a corda pelo arco . O simile é o vante » ,

mais expressivo. E porque diz nave pi ( 12) Morta gora. Canal de agua mor
ccioletta , pequenina barca ? Porque não ta ; o continente pelo conteúdo.
havia senão duas almas a transportar. ( 13 ) Chi se ' tu, che vieni anzi ora?
In quella. Este pronome aqui tem signi Mas por que indiciospoude este espirito,
ficação adverbial : vale o mesmo do que e os demonios conhecer que Dante era
in quel mentre : n'aquelle mesmo mo vivo ? Por muitos , e diversos: 1.º, pelo
mento em que falava Virgilio. peso de seu corpo, que fez a bar
(8 ) Che gridava : Or se ' giunta, ani quinha aprofundar -se mais que de cos
ma fella! O piloto Flegias, vindo ainda tume : 2.º, pelo rumor que faz o corpo
em alguma distancia, toma Dante por em seus movimentos : 3. ", pelo movi
uma alma condemnada, e por isso lhe mento tambem dos objectos tocados
grita : « Agora é que chegas, alma per pelo corpo, como a terra, e as pedras
versa ! » Landino , porém , diz que não foi com o recalcar dos pés : 4.", finalmente
só pela distancia que o piloto se equi pela aspiração, e respiração, que alarga,
vocou, mas principalmente pela razão e estreita a guela.
de que um dos effeitos da ira é cegar, e ( 14) S'i vegno, non rimango: aSi ve
aturdir o homem de modo, que muitas nho ao Inferno, respondeu Dante, não
vezes não vê, nem ouve. é paran'elle permanecer, como vós ou
(9) E poi mi fece entrare appresso tros condemnados ; venho por graça
lui. Virgilio desceu primeiro á barquinha, especial do Céo .»
e depois Dante ; porque Virgilio com o ( 15 ) Vedi che son un che piango. Que
seu exemplo devia dar coragem a Dante, rendo dizer : « Não tens tu sentimentos
o qual jamais entraria primeiro, em vista de piedade ? Bem vês que sou um triste
COMMENTARIOS AO CANTO viii 2 II

que choro » . Persiste em não dizer quem mas pelo contrario foi dominado de uma
é ; nova incivilidade, que se paga mui soberba arrogante, desprezadora dos
cara a Dante . outros, sem que aliás houvesse pratica
( 16) Allora stese al legno ambe le ma do em toda sua vida uma só obra boa,
ni. Despeitado com a resposta de Dante, que recommende a sua memoria ; por
o espirito maldicto fez o que costumam isso no Inferno é tão furiosa .
fazer os iracundos, que se servem das ( 20) Quanti si tengon or lassù gran
mãos, como de garras, para vingar- se regi. Como si dissesse : Quantos simi
materialmente . O caracter dos indivi lhantes a Filippe Argenti não se têem
duos dominados de ira, e soberba é bem lá no Mundo em conta de grandes reis,
descripto aqui, e Dante introduz esta e de personagens dignissimas, que depois
scena, exactamente para dar -nos uma de mortos serão condemnados a vir
idéa da indole d'elles, e dos effeitos da chafurdar -se, como porcos, n'este lama
sua ira, que até no Inferno conservam çal, por não deixarem de si, senão hor
para seu maior martyrio (Bennassutti). rendas memorias, que os tornam des
( 17) Lo collo poi con le braccia mi preziveis aos olhos da divina Justiça !
cinse. Virgilio abraça o pescoço de Dante ( 21 ) Molto sarei vago. Muito deseja
em signal de singular benevolencia , si rei vel-o afferrado pelo topete, e metti
gnificando por esta demonstração que do n'este lodo. Dante não se mostra sa
elle havia praticado um acto nobilissimo, tisfeito com a affronta, que fez a aquelle
e virtuoso em repellir com indignação condemnado, chamando - lhe em face
um reprobo de tal ordem , indigno de espirito maldicto ; deseja ainda outra
toda commiseração . Nota -se que Virgilio desforra mais picante, e terrivel ; deseja
chama seu Discipulo alma indignada, e vel -o arrastado pelo lodaçal pelos outros
não iracunda, animas degnosa, e non ira condemnados, no meio de apupos, e vi
conda; porque, indignando-se contra um lipendios! É muito ! Sim, é muito para
soberbo provocador, e irascivel, pra este mundo ; mas lá no Inferno a cousa
ticou uma virtude, que Aristoteles qua é outra. Em tudo isto o Poeta pinta a in
lifica de mansidão, mansuetudo. A ira dignação de que se possue, quando se tra
em taes circumstancias é permittida aos cta de castigar o mal; alem d'isto, elle sa
proprios sanctos, uma vez que se con bia que esse seu desejo de ver abatido, e
servem dentro dos limites estabelecidos humilhado o soberbo espirito florentino,
pelo Psalmista : Irascimini, et nolite estava no gosto de Virgilio, que, como
peccare (Boccaccio ). gentio, não perdoava offensas recebidas,
Demais, Dante precisava d'este con e elle entendia que Dante tinha sido
fôrto, depois do terror que lhe causára offendido.
aquelle furibundo espirito, que por pou Tenho adoptado o verbo acciuffare
co o não afoga na lagoa. ( afferrar, agarrar pele topete ), em vez
( 18) Baccionmi il volto . Beijar o ros de atuffare, que não diz nada. Acciuffa
to é indicio de cordial, e virtuoso affecto, re é do codice Ambrosiano ; a este ver
emquanto que beijar a bocca quasi sem bo corresponde o verbo azzuffare ( vir
pre é gesto lascivo, e Dante não emprega ás mãos, bater-se ), que é do codice Com
palavras, que possam produzir equivocos. postrini. Estes dous codices são as me
Foi assim que elle disse.expressamente , lhores lições, e o Ambrosiano ainda
que Paulo beijou a bôcca de Francisca melhor. A scena, que se segue, justifica
(Boccaccio). plenamente a minha preferencia (Ben
; ( 19 ) Bontà non è che sua memoria nassutti ) .
fregi. Querendo dizer que Filippe Ar (22 ) Di tal disio converrà che tu goda.
genti não se limitou no mundo a domi Querendo Virgilio dizer : « Será satisfeito
nar-se d'aquella soberba interna, que o teu desejo, não só antes de saírmos
faz lá comsigo pensar muito alto de si ; da lagôa, mas agora mesmo ; convirá
212 O INFERNO

que goses de tal espectaculo, isto é, que do cavallo : Qui equum ferris argenti
vejas injuriado, e maltratado fortemente ferrari fecit.
o homem orgulhoso, e irrascivel, que na ( 26 ) Per ch ' io avanti intento l'occhio
sua vida injuriou, e maltratou a todos, sbarro. Sbarro de sbarrare, que signiti
como ainda ha pouco te injuriou, qualifi ca tirar a tranqueira, ou venda dos olhos,
cando -te de scelerado : depois da scena, metaphora muito expressiva para si
a que vaes assistir, terás motivos de lou gnificar o arregalar bem os olhos, con
var, e agradecer a ina Justiça , e ao trahindo o mais possivel as palpebras,
mesmo tempo de aprenderes a fugir ao que são a guarnição, ou defeza dos olhos
vicio da soberba . ( Poggioli ).
( 23 ) Che Dio ancor ne lodo, e ne rin ( 27 ) S'appressa la città, c ' ha nome
grazio. Dante louva e agradece a Deus Dite . Navegando os dous Poetas pela
pcr ter-lhe proporcionado a satisfação agua morta da lagoa chegaram tão perto
de ver os insultos, e ludibrios de que foi da cidade situada no meio d'ella, que
objecto Filippe Argenti. Pela confronta começaram a ver os maiores, e mais
ção dos logares em que Dante se compa altos edificios. É de notar que Dante
dece dos condemnados , e em que se com aqui imita Virgilio, quanto lh'o permitte
a
praz com os seus tormentos, parece, nossa religião : visto como Virgilio
observa Lombardi, que se pode estabele descreve o Inferno, e nos primeircs cir
cer, que elle se compraz com os castigos culos põe os menores peccadores, e
d'aquelles, que foram directamente ini aquelles, que têem alguma mescla de
migos de Deus, ou do proximo, e se com imagem de virtude, ou alguma ligeira
padece de todos os mais. Assim , por apparencia de virtude. Depois descreve
exemplo, aqui elle applaude o supplicio os Tartaros circumdados do Flegetonte ,
de Filippe Argenti , como applaude o rio de fogo ; apresenta as portas com
de Capanco no canto xiv , 13 ; o de Vanni columnas de diamante, as torres como
Fucci no canto xxv, 4, etc. , ao passo que sendo de ferro ; põe Tisiphone, furia
se compadece dos luxuriosos no canto v, internal, como guarda da entrada. Si
62, dos glutões no canto vi, etc. milhantemente Dante nos circulos su
( 24) Tutti gridavano: A Filippo Ar periores põe os mais ligeiros peccados,
genti. Como si todos os condemnados os quaes, porque procedem da inconti
gritassem : « Companheiros! a Filippe nencia, são dignos de alguma commise
Argenti ! afferrae- o pelo topete, e, arras ração (Landino ).
tando-o por este pantano, dae-lhe, dae La città che ha nome Dite. Segundo
lhe, pelas costas (dagli, dagli addosso ).» Volpi, e todos os interpretes, Dite foi
É uma scena egual a que se passa n'uma assim chamada pelos Poetas por causa
tourada, em que todos gritam : á unha ! da derivação do nome de Plutão, seu
á unha ! isto é, morra o boi. rei, que tambem se chama Dite, isto é,
(25 ) E'l fiorentino spirito bizzarro, etc. rico . Dante, por isso, como já ficou dito
E o florentino espirito soberbo, assim n'outro logar, chama Lucifer Dite, e
trauteado pelos ultrages de seus infernaes Imperador do doloroso reino ; por con
companheiros, mordia -se, e remordia - se seguinte Dite deve ter para nós a mes
de raiva. Um dos motivos porém da ma significação que cidade de Lucifer :
grande raiva foi terem - lhe os compa e isto não só porque do centro do Infer
nheiros declarado o nome, que tão obsti no , onde está infincado Lucifer, Dante
nadamente occultara até ali a Dante . fal- a chegar até este logar com tal deno
Spirito bizarro. Diz Bennassutti que minação, como porque de todo o seguin
o epitheto de bizarro aqui é tomado no te infernal espaço dos vizinhos muros até
sentido de extravagante, alludindo o o mesmo Lucifer, constitue Dante uma
Poeta á bizarria com que Filippe Ar porção do Inferno, a que chama fondo
genti mandou ferrar de prata os cascos d'ella trista conca ( Inf., ix, 16) ; por
COMMENTARIOS AO CANTO VIII 213

todas estas considerações ouso assegu gular, com relação a muro, em vez de
rar que por cidade de Dite entende o fossem plural, que melhor concorda
Poeta não somente o visinho logar, ( Venturi). Biagioli, com outros, lê mi
onde são atormentados os incredulos, parea, parecendo - me que a lição Nido.
mas todo o espaço infernal até Lucifer; beatina tira a esta locução o bello
e que, assim chamando - a, quiz denotar grammatical, e construe assim : Os mu
encerrados n’ella aquelles, que por Lu ros, isto é, aquelle vasto recinto parecia
ciferina instigação, mais do que por fra me de ferro (Lombardi).
gilidade humana, peccaram, ao contra ( 31 ) Più di mille... Dal ciel piovuti.Mais
rio dos condemnados nos primeiros cir de mil anjos rebeldes expulsos do Céo.
culos (Lombardi). E porque tantos demonios na porta ?
( 28) Co ' gravi cittadin, col grande Porque formavam elles o corpo da guar
stuolo. Gravi, cheios de gravidade, e de nição d'aquella fortaleza, os quaes de
modestia (Landino ). Gravi, mais aggra viam naturalmente correr logo á porta,
vados de tormentos. ( Venturi ). Gravi, para averiguar quem eram aquelles dous
mais aggravados de culpa (Lombardi). forasteiros, cujas intenções ignoravam
Gravi mais aggravados de culpa, e de cas (Bennassutti).
tigos ( Poggiali.) Bennassutti porém inter ( 32 ) Stizzosamente Dicean. Conhece
preta assim : « Com os seus cidadãos gra ram logo os demonios, que Dante vivo
ves, ou aggravados de males muito não era para elles um bom boccado.
maiores do que os que tens visto até D'ahi os phrenesis de raiva, e os obsta
aqui», e acrescenta : «Melhor ainda me culos a oppor-lhe, como fizeram todos
quer parecer que cidadãos graves de os guardas infernaes nos circulos ante .
vem ser tomados aqui por famosos ; por riores . Os demonios resistiram sempre á
que o conceito de Dante é collocar os entrada de Dante no Inferno. Diz con
ignobeis no atrio do Inferno, e os famo ceituosamente Boccaccio que elles tal
sos no verdadeiro Inferno, e os mais vez, por alguma razão occulta, presen
famosos dentro da cidade Dite, que en tissem que Dante, entrando no Inferno
cerra maiores supplicios por maiores e conhecendo occularmente a natureza
culpas , das culpas ali punidas, e podendo
Outro commentador anonymo inter acontecer que, achando -se incurso em
preta assim : algumas d'ellas, fosse tocado de arre
Coi gravi cittadin, isto é, com demo pendimento, em vista das penas horri
nios ; e col grande stuolo, isto é, com veis, e voltasse á vida virtuosa, oppu
grande exercito de homens, ou de es nham - se á sua entrada.
piritos humanos atormentados n'ella (33 ) Che più de sette Volte. Como se
Dite dissesse : « O meu Guia, tu, que mais de
(29) ... in questo basso inferno. N'este sete vezes, em todos os meus transes, e
baixo Inferno: pleonasmo por exigen perigos, foste o meu conforto , e a mi
cia da rima . Esta phrase, diz Biagioli, nha salvação, já reanimando-me, quan
indicando uma circumstancia particular, do por fraqueza quiz retirar a promessa
não é um pleonasmo, como parece a de seguir-te n'esta viajem ; já quando
quem a qualifica d'este modo. O Poeta me mostrei atterrado diante da negra
divide o Inferno em duas partes : uma inscripção da porta do Inferno; já quan
a que chama alto Inferno, outra a que do fui ameaçado por Caronte , por Mi
chama baixo Inferno. Na primeira é pu nos, por Cerbero, por Plutão, por Fle
nida a incontinencia ; na segunda a ma gias, e ainda ha pouco por Filippe Ar
licia, e a louca bestialidade. genti : como , depois de tantas provas
(30) L. mura mi parea che ferro de amor, me queres agora abandonar,
fosse. Discordancia attica, ou elegante, privando-me de todo o soccorro ? Si
em virtude da qual põe o fosse no sin nos é recusado andar ävante, voltemos
214 O INFERNO

immediatamente para traz pela mesma de Lombardi, no conceito de Biagioli,


estrada por onde viemos» . faz perder uma grande belleza. Virgilio,
( 34) Chè il no , e il sì nel capo mi ten diz elle, não articula palavra, mas sus
zona . Mi tenzona , em vez de mi tenzona pira, e os seus suspiros são eloquentis
no combatem : zeugma consimilhante á sima linguagem , com que exprime o
que foi notada no verso 28 tenzona, conceito que Dante, que bem conhece
segundo Biagioli, não está aqui em vez o que é natural, traduz n'este : Chi m'
de tenzonano ; mas diz Dante, e devia ha negato le dolenti case ? Quem me
dizel - o ; porque uma é a idéa, como recusou a entrada n'aquella cidade do
um é o contraste das duas forças op lorosa ?
postas. Este modo de dizer é assás en ( 37 ) Che già l'usaro a men segreta
genhoso, e vivaz ; d'elle usou tambem porta. Allude as palavras da egreja no
Petrarca : Officio Divino do sabbado Sancto : Ho
... V'ivomi intra due,
die portas mortis, et seras pariter Sal
Ne si, nè non nel cor mi sona intero , vator noster disrupit. Suppoe Dante que,
entrando Jesus Christo no Inferno, para
«Vivo entre duas, tirar as almas dos Sanctos Padres, os
Nem sim, nem não me soa inteiro no coração .
demonios se lhe oppozeram , fechando
( 35 ) Udir non pote ' quello, ch' a lor lhe a porta principal ; e que o mesmo
porse. Si bem que Dante não tenha po divino Salvador, quebrando todas as
dido ouvir as cousas que Virgilio disse portas, permaneceu àquella eternamen
aos demonios ; todavia se deve suppor, te sem fechadura, men segreta: assim
que lhes dissesse que a sua vinda ao denomina a primeira porta em compa
Inferno com aquelle companheiro vivo ração d'aquella da cidade de Dite, por
era determinada pelo Céo ; mas que os estar em mais baixo, e recondito logar .
porteiros da cidade dos incredulos não ( 38) La scritta morta . Refere -se aquel.
prestaram as suas palavras aquella fé, la inscripção de côr escura, que come
que em todos os circulos precedentes se çava :
lhes havia prestado (Lombardi). Per me si va nella città dolente, etc.
( 36 ) D'ogni baldanza e dicea n’e sos
piri. Despojados os olhos de toda a alti (39 ) Tal, che per lui ne sia la terra
vez, humildes abatidos. Dicea ne' sospi. aperta. Isto é, o Anjo do Senhor pelo
ri, dizia suspirando. Esta interpretação qual será aberta esta cidade.
INTRODUCÇÃO AO CANTO IX

Estão ainda os dous Poetas na quinta caverna, a qual, como já dissemos, tem
105 milhas de diametro, e 330 de circumferenci a : o seu circulo é dividido em dous
de largura egual, isto é, 8 milhas e tres quartos. O primeiro é a lagoa Estyge, que
os dous Poetas atrevessaram no barca de Flegias : o segundo é a cidade Dite, e,
com mais precisão, o mais alto plano da cidade . Esta é redonda : tem no meio o
poço com 70 milhas de largura, e em torno do poço um circuito de 8 milhas e tres
quartos ; sendo a periferia da cidade de 77 milhas e meia. Tanto a lagoa , como o
circulo da cidade têem o seu declivio ; é dividido em duas partes eguaes, isto é, de
2 milhas, e meia.
O barqueiro Flegias, antes de desembarcar os dous Poetas, fez um grande
gyro, mas por fim voltou em direcção á torre, onde os embarcou ; e por isso os
dous Poetas, não gyraram á esquerda outro arco, senão aquelle do poncto, onde se
embarcaram .
Assim quando entraram na cidade, voltaram á direita; mas não importa, porque
depois cortaram o circulo á esquerda para descer ao abysmo, e d'est’arte tornaram
á porta da cidade, ou á torre, onde embarcaram : em summa, não fazem , senão uma
volta á esquerda, como dirá o mesmo Virgilio na nascença do Flegetonte.
Os dous Poetas, baixando ao Inferno, movem guerra aos demonios ; agora, que
são chegados á capital, não admira que encontrem a maxima opposição. Mas como
soe acontecer no mundo que, tomada a fortaleza principal do inimigo, acabada está
a guerra ; assim os dous Poetas entram na cidade, sem encontrar mais opposição
propriamenta dita ; mas apenas perigos, ameaças nos centauros, e nos demonios
alborcadores, ou traficantes. Mas Virgilio humilha Malacoda, dizendo-lhe : « Acredi
tas tu, Malacoda, ver-me aqui são, e salvo das esgrimas de vós outros, si n'isso não
interviesse a vontade divina ? » Virgilio, que conhece a difficuldade do passo, vae só
sinho falar com os demonios, usando de meios brandos, e humildes; mas, apesar d'isto,
não consegue que seu discipulo entre na cidade ; pois os diabos fecham -lhe a porta
na cara.Volta a Dante, a quem encontra desanimado por essa repulsa insolente ; mas
Virgilio o conforta, assegurando- lhe que a sua descida ao Inferno é certa, attenta a
firme promessa de Beatriz : diz-lhe que espera um anjo a cada instante, o qual
abrirá a porta da cidade. Depois, não apparecendo o anjo, accrescenta : « Si o anjo
não vem ... » Mas vendo de novo Dante desanimado por este scu falar duvidoso ,
corta o discurso, mostrando nova confiança na promessa infallivel de Beatriz. Esta
reticencia de Virgilio tem sido até hoje um nó gordio, que farei todo o possivel por
cortar, mediante o auxilio dos ensinos do proprio Dante.
216 O INFERNO

Virgilio até á cidade de Dite havia -se mostrado intrepido, e quasi desprezador
soberbo dos monstros infernaes, como Caronte, Minos, Cerbero, Plutão, e Flegias.
Diante de Dite mudou de proceder : tornou- se humilde, mansueto, cauteloso ;
conservando-se assim até o fundo do abysmo. Não teme somente por Dante, mas
por si proprio ; não dá sómente razão de Dante, mas dá tambem de si ; dizendo aos
centauros, aos diabos, que Deus quer que Dante veja o Inferno, e que elle o
conduza, e lh'o mostre : A razão d'isto é que Virgilio representa a Razão, e Dante o
Sentido ; e por isso fóra de Dite, onde são punidos os peccados de sentido, teme
sómente por Dante ; dentro de Dite , onde são castigadas a violencia, e a fraude,
peccados da razão, deve temer, e teme com effeito por si. E posto que Virgilio es
teja certo de superar todos os obstaculos, mediante a graça divina ; todavia se man
tem humilde ; porque a graça divina não faz o homem soberbo, mas humilde. No
alto Inferno, fóra de Dite, não teve nem esta humildade, nem este temor ; porque
caminhava pelo seu reino, e quiz ensinar como a razão deve imperar sob o senti
do : tudo isto é cheio de philosophia, e de theologia mystica transcendental!
Vejamos. Virgilio, que mandado por Beatriz a conduzir Dante ao fundo do In
ferno, recua diante dos demonios, significa que a graça ordinaria não basta para
executar a grande obra da conversão do peccador ; mas que, em certos casos, é
necessario um auxilio da graça extraordinaria ; e o anjo, que chega , que abre a
porta, e afugenta os demonios, que se escondem, ao vel-o no limiar, como fogem , e
se escondem as rās ao apparecer da hydra inimiga, significa que a graça extraordi
naria não falta aquelles, que fazem bom uso da graça ordinaria. Entram os dous
Poetas, sem nenhuma resistencia, não vendo sequer um demonio ; e isso para signi
ficar que aquelles obstaculos, que são insuperaveis as forças do homem , mesmo
armado da graça ordinaria, aplainam-se mediante a graça efficaz ; por isso toda a
nossa obra reduz -se a invocal- a com toda a humildade.
Dentro de Dite são punidos em cavernas ardentes os atheus á direita, e á esquerda
os heresiarchas com os seus sequazes. D'onde se vê que Dante considera mais cul
pados os heresiarchas, e os hereges do que os atheus, provavelmente por conside
ral-os fóra do uso da razão. Mas entendâmos bem : Dante não fala de certo d'aquel
les infelizes, que nascem na heresia ; fala d'aquelles que, tendo nascido no seio da
verdadeira religião, a abandonaram , para seguir outra fabricada, a seu capricho,
adulterando os principios da crença salutar ensinada pela egreja mãe, unica repre
sentante fiel de Jesus Christo. Tem pois toda a razão de os considerar peiores, que
os atheus, como veremos no canto seguinte .
Temos ainda de desatar outra difficuldade de alta importancia. Fóra da cidade
das dores é punida a incontinencia : dentro é punida a violencia , e a fraude, mas a
violencia é punida no circulo sotoposto aos atheus, e aos heresiarchas : logo os
atheus, e os heresiarchas a que categoria de peccadores pertencem ? A natureza não
procede por saltos, mas a passo regular em todas as cousas. O homem por exem
plo, está entre o anjo, e o bruto : ora existem, e ham de existir sempre alguns
homens privilegiados de entendimento tão agudo, que se approximem ao menos per
feito dos anjos ; ha outros tão obtusos, tão estupidos que mal se distinguem do
bruto nas relações intellectuaes : d'onde o proverbio philosophico : « Os extremos
se tocam .

Assim acontece a respeito dos peccadores, e dos peccados : a incontinencia frisa


com a violencia. Os iracundos, que se dilaceram mutuamente na lagoa Estyge, par
ticipam da violencia ; mas são mais vizinhos da incontinencia, que da violencia. Os
atheus, e os heresiarchas, que ardem dentro de Dite , foram sem duvida incontinen
tes maximos na libidinagem , na ira, e no orgulho, que são as fontes ordinarias da in
credulidade, e da heresia ; mas approximam -se mais da violencia, que da inconti
INTRODUCÇÃO AO CANTO IX 217

nencia, e por isto estão dentro da cidade Dite; mas a sua violencia é diversa d'aquella ,
que é punida no circulo sotoposto ; é uma violencia inicial, negativa, como é
incontinencia negativa aquella dos indifferentes. Os atheus fazem violencia a si pro
prios, para não crer n'um Deus Creador universal, punidor dos máos, e premia
dor dos bons : os heresiarchas fazem violencia a si proprios, crendo poder estabe
lecer uma religião melhor do que aquella estabelecida pelo Creador, e por isto estão
entre os incontinentes, e os violentos positivos.
Admiravel, profundissima jurisprudencia theologica de Dante !
Este canto, repito, está cheio de ensinos os mais elevados, e salutares !
Não é sem grande fundamento que o Poeta adjura todos os entendimentos sãos
a ver, e a meditar a doutrina, que se envolve sob o véo dos versos estranhos, ou
mysteriosos, não só d'este canto, como de toda a Divina Comedia.

O voi ch ' avete gľ intelletti sani


Mirate la dottrina che s'asconde
Sott il velame degli versi strani !

Os entendimentos sãos, a quem allude o Poeta, são os entendimentos na sua


lucidez natural, allumiados pela sciencia da fé, bem distinctos dos entendimentos
imbuidos dos absurdos do paganismo, quaes os entendimentos dos Poetas gentilicos.
Qual é pois a doutrina que nos convida a ver sob o véo de versos estranhos ? É,
por exemplo, esta : que nem Virgilio no seu estado presente, nem Dante , quando
nos offerecem exemplos da mythologia, entendem offerecel-os no sentido da estulta
superstição pagā, mas n'aquelle que significam, e aquelle que significam é uma dou
trina catholica, invertida, e alterada pela mythologia, que não é mais do que um acer
vo indigesto, confuso das tradições biblicas.
Assim pois, quando Dante symbolisa nas tres furias infernaes o remorso, toma o
remorso como o verme roedor da consciencia do peccador, não só n'esta vida, como
tambem -na outra, segundo o Evangelho. Os sabios, e legisladores do paganismo tive
ram um ideal confuso d'esse genero de supplicio. Sem desenvolver largamente todos os
pontos da congruencia entre a theoria pagā, e a theoria biblica, direi apenas que o
rosto de Medusa, que tinha o poder de converter a gente em pedra , e contra o
qual Virgilio vendou os olhos de Dante, representa o prazer sensual, que petrifica o
coração do homem, obscurece- lhe o entendimento, e extingue n'elle todo o gosto
das cousas divinas. O castigo celeste, essa vindicta da Divindade sobre o criminoso,
personificava- se entre os antigo nas Erinnys, ou Eumenides, por euphemismo. Essas
implacaveis deusas, verdadeiras imagens do verme roedor, ou do remorso, experi
mentavam um prazer secreto, e selvagem em atormentar os criminosos no Inferno.
Era uma concepção analoga á do Satan no livro de Job, usurpada pela mytho
logia.
Com effeito, sobre o vertice da torre da cidade de dores, onde são punidos os
incredulos, e os heresiarchas com seus sectarios, estão as tres furias: Megera, sym
bolo da inveja, Alletto, symbolo da lascivia, e Tesyphone, symbolo da violencia,
querendo o Poeta significar com isso que a inveja, a lascivia, e a violencia são as tres
paixões ou vicios, que arrastam o homem á incredulidade, e á heresia. A historia
effectivamente demonstra que os incredulos, e os herejes são infectados d'estes tres
vicios, sobretudo da lascivia .
Medusa foi mulher bellissima, e sensual, cujos attractivos escravisavam todos
aquelles que lhe rendiam culto, amollecendo-os por forma que os tornavam inca
pazes de obras grandes, e dignas ; por isto, segundo a mythologia, a sua cabeça,
chamada Gorgona, conserva no Inferno o poder de converter em pedra os que
218 O INFERNO

olham para ella por curiosidade, isto é, os converte em viciosos, e lascivos.


Foi esta a razão por que Virgilio , ouvindo que as furias chamavam Medusa, para
converter Dante em pedra, não só manda que Dante volte as costas, e tape os olhos,
mas elle mesmo o volta de costas, e com as suas proprias mãos venda- lhe os olhos até
que passe o perigo. Quiz o Poeta significar com isto que os paes de familias, os
mestres, e educadores da mocidade não consintam , que seus filhos ou alumnos se
ponham em contacto com objectos animados, ou inanimados, que lhes possam sus
citar ideas torpes, e deshonestas.
Esta ficção mythologica de Medusa é pois outra usurpação das tradições bibli
cas. Era a imagem confusa, a reminiscencia vaga, alterada do fructo do Paraiso,
que por sua belleza seduziu Eva ao peccado, apenas o viu. A mythologia não fez
senão tomar o effeito pela causa, isto é, personificou o fructo em uma mulher for
mosissima, cuja presença arrebatava a todos que a viam , etc.
Ha finalmente n'este admiravel canto ainda outro passo que alguns criticos, por
mal interpretal-o, censuram Dante de ter posto na bocca do enviado do Céo uma
fabula gentilica, qual a extracção violenta de Cerbero do Inferno por Hercules ,
em virtude da ordem de Euristeo . Em vista das considerações precedentes, relati
vas ao sentido em que Dante toma os factos mythologicos, limitar-me -hei a dizer
com o Anonymo Romano, que a supposta inconveniencia desapparece desde que se
entende, e se entende com razão, que o Poeta aqui allude de novo á descida de
Christo aos Infernos, fingindo engenhosamente que o Redemptor tivesse então
atado o cão Cerbero com uma cadeia de ferro ao pescoço, e com um tal açaimo
na bócca, que o monstro não podesse nem avançar, nem ladrar, e que , pelos inuteis
esforços que fazia para libertar -se d'estas prisoes, tinha o queixo, e o pescoço pe
lados. Como é bella esta imagem ! Só Dante possuia o segredo dos effeitos !
CANTO IX

Depois de varios incidentes, e de terem visto as Furias infernaes, entram os dous Poetas, mediante o auxilio
de um Anjo, na cidade de Dite, na qual são punidos os atheus, e herejes dentro de tumulos inflammados.

Conhecendo Virgilio pela pallidez de meu rosto o sobresalto em


que fiquei, quando o vi de volta repellido pelos demonios , immedia
tamente concentrou ( 1) toda a indignação, reassumindo sua habitual
serenidade.
Parou attento como quem escutava (2) ; porque nada podia distin
guir através d'aquella atmosphera escura, e nebulosa.
Então começou a dizer: « Não obstante devemos vencer (3)
talha, senão ... um tal que se nos offereceu ... Oh quanto tarda
aquelle que ha de viro .
Vi perfeitamente que elle dissimulou suas primeiras palavras com
as ultimas, que sem duvida desdiziam as primeiras .
Ainda assim me intimidaram ; ( 4) porque eu interpretava as suas
phrases truncadas em peior sentido do que aquelle que encerravam .
Por isso, perguntei-lhe : « Mestre, acaso desce a este triste abysmo
alguem do primeiro circulo, onde a pena unica é esperar sem espe
rança ? »
E elle respondeu : « Raro acontece que algum de nós faça este
caminho por onde vou. Verdade é que de outra feita desci aqui a pe
dido d'aquella cruel Ericto, (5) que evocava as almas aos seus corpos .
« Pouco depois da minha morte, fez -me ella entrar n’aquella cidade,
com o fim de lhe revocar um espirito do circulo de Judas.
«Aquelle circulo é o mais profundo, tenebroso, e afastado do Céo,
que tudo move : sei bem o caminho ; (6) tranquillisa-te.
220 O INFERNO

« Este pantano, que deita cheiro desagradavel, circumda toda a


cidade dolorosa, que não poderemos entrar sem indignação . » (7)
Virgilio disse outras cousas , que não conservo de memoria ; por
que a minha vista me tinha chamado toda attenção para o vertice
inflamnado da alta torre, onde de improviso appareceram em pé,
(8)
todas n'um ponto, tres Furias infernaes tintas de sangue , que tinham
membros, e gestos feminis .
Eram cingidas de hydras esverdeadas, tendo por cabellos serpen
tesinhas , que se lhes enroscavam pelas frontes horridas .
E Virgilio, que bem conhecia as miseras escravas da rainha do
eterno pranto, me disse : « Vê lá as infernaes Erinnys !
« A da esquerda é Megera : aquella da direita, que chora, é Aletto :
Tesipho está no meio . E calou -se.
Cada uma d'ellas dilacerava o peito com as unhas : todas tres fe
riam -se com as mãos ; vociferavam tão alto, que de medo me acostei
ao Poeta.
Olhando de cima para mim , gritavam : « Venha Meduza, que o
converteremos em pedra ! Fizemos mal em não castigar Theseu , quan
do ousou assaltar estas muralhas ) .
Disse-me então o meu Guia : « Volta-te para traz, e conserva os
olhos tapados ; porque se Gorgone apparece, e tu a vires, perderás
toda a esperança de voltar ao mundo » . E elle mesmo voltou-me de
costas, e não confiando nas minhas mãos , com as suas proprias ven
dou -me os olhos.
Oh vós que tendes entendimentos sãos , 9) vêde a doutrina que se
occulta sob o véo d'estes versos estranhos !
E já através das turbidas ondas (10).da Estyge vinha um estrondo
de som espantoso, similhante ao rumor de um vento, provocado com
impeto pelos ardores oppostos, ( 11) que enrola em seu turbilhão uma
selva, derruba as arvores, despedaça os ramos, fal-os voar pelos ares
fóra, e que, precedido de uma espessa nuvem de pó, vae suberbo
afugentando feras, e pastores .
Então Virgilio, vendo vir o auxilio celeste, desvendou -me os olhos,
e me disse : « Agora fixa bem a vista ( 12) n'aquella espuma eterna, ( 13)
no ponto onde o fumo é mais denso » . ( 14)
Quaes fogem as rãs diante da hydra inimiga , procurando cada
una occultar-se o mais que pode sob o lodo ; taes vi fugir de todos
os lados mais de mil almas condemnadas diante de um personagem,
que transpunha a Estyge a pé enxuto .
Com a mão esquerda em movimento continuo, affastava do rosto
aquelle ar espesso da lagoa, parecendo não ter outro incommodo, se
não esse .
CANTO IX 221

Comprehendendo mui bem que era um enviado do Céo, voltei


me para meu Mestre, que me fez signal que estivesse quêdo, e me
inclinasse quando elle passasse por diante de mim .
Ah quanto me parecia estar indignado ! Chegou á porta , e com
uma yarinha abriu-a, sem nenhuma opposição .
Ó banidos do Céo, gente relapsa, (bradou do limiar da horrivel
porta) d'onde vem essa audacia que em vós se alberga ?
« Porque resistis aquella vontade soberana , que não encontra estorvo
em seus designios , e que , por haverdes tentado contrastar, se têem
por mais de uma vez duplicado vossos tormentos ?
a Que vos aproveita recalcitrar contra o seu aguilhão ? Que vol-o re
corde o vosso Cerbero terrivel, que por seu atrevimento ainda conserva
pellados o focinho, e o pescoço » . (15)
Depois voltou pela paludosa Estyge, sem nos dizer palavra ; (16)
mas, dando visos de homem , que se preoccupa de cousa mais seria
do que aquillo que tem ante os olhos. E nós reanimados com as pa
lavras sanctas , movemos os passos para a cidade .
Entramos sem nenhuma resistencia ; e eu, que tinha grão desejo
de conhecer as condições internas d'essa fortaleza, apenas achei-me
dentro, corri os olhos em torno, e por toda a parte vi uma campina,
onde superabundava dor, e tormento .
Do mesmo modo que na planicie de Arles , onde o Rhodano forma
um lago, e na de Pola , vizinha ao Guarnaro, que fecha a Italia, e
banha seus confins, se notam muitos sepulchros , ( 17) que formam um
quadro de saliencias, e depressões; assim tambem alli tumulos espar
sos offereciam o mesmo aspecto, com a differença que era mais affi
ctivo.
Porquanto, entre os sepulchros as chammas eram distribuidas de
modo, que os tornavam tão incandescentes, que mais o não pode ser
o ferro entre a bigorna , e o martello do artifice.
Todos estavam descobertos, e de dentro saíam lamentos tão dolo
rosos, que pareciam de miseros atormentados .
E eu perguntei : « Mestre , que gentes são aquellas, que sepultadas
se fazem ouvir de dentro de taes tumulos com tão pungentes suspi
ros ? »
« Aqui , respondeu , são punidos os heresiarchas com seus sectarios ( 18)
de todas as seitas, e os tumulos estam muito mais cheios d'elles do
que tu pensas .
« N'elles é sepultado similhante com similhante, e os tumulos são
mais ou menos ardentes, segundo a culpa dos herejes . » E voltando
d'esta vez á direita , passámos entre os tumulos menos inflammados,
e os altos muros da cidade .
1
1
F
COMMENTARIOS AO CANTO IX

( 1 ) Più tosto dentro il suo nuovo ris (2 ) Attento si fermò com ' uom che as
trinse . Toma aqui o effeito pela causa. colta. Virgilio esperava um Anjo ; mas,
O que Virgilio concentrou foi a ira, que não podendo ver nada ao longe por
The accendeu no rosto a nova côr, isto causa da amosphera escura do Inferno,
é, a cor vermelha, phenomeno proprio e do espesso fumo da lagoa, escutava
da ira, gerada, segundo Aristoteles, pela a ver si ouvia algum rumor de alguem
ebulição do sangue em torno do cora que viesse.
ção, de onde reflue para o rosto ; por ( 3 ) Pur a noi converrà vincer la pun
que o sangue inflammado corre por todas ga, Cominciò ei : se non ... tal ne
as veias, e membros do corpo, produ s ' offerse. Oh quanto tarda a me ch'al
zindo a turvação do espirito. Virgilio, tri quì giunga. Não vendo vir o Anjo,
vendo pela pallidez de Dante, que a sua começou a dizer : « Será necessario que
nova côr, ou alteração do rosto, o tinha nós dous somente vençamos a batalha
apavorado, em continenti, para confor contra os demonios, si não vem o au
tal-o, suffocou toda a ira de que se achava xilio, que se me offereceu ... Oh quan
possuido pela repulsa dos demonios, e to me parece tardar em chegar aqui o
reassumiu a sua côr natural, e costuma Anjo que espero ! » Eis a explicação da
da serenidade. Imitou n'isto o que elle tão celebre reticencia de Virgilio , consi
proprio havia dito do habil capitão, per derada justamente por Morando um dos
sonificado no seu Eneas, que, ao ver mais bellos , e dos mais artificiosos tre
esmorecidos os seus soldados, compri chos de Dantel Questo é uno de ' più bei
me a dor no coração, e na face simula passi di Dante, e dei più artificiosi.
esperança, e audacia, a fim de reani Se non ... « Esta reticencia, diz Frati
mal-os. Spem vultu simulat, premit alttım celli, indica um pensamento truncado
corde dolorem . Emfim , Dante mudou de pelo temor ou pela duvida, e tal parece
côr por medo, Virgilio por indignação : ser o conceito : « Todavia será necessa
sublime contraste offerece a natureza rio que nós mesmos entremos n'esta
em seus phenomenos ! A ira incandes disputa, e vençamos a batalha se non ...
ce o sangue, o medo gela-o; effeitos di • si não nos chega o auxilio do Céo. Mas
versos de uma só causa : a alteração do que digo ? Tal ne s'offerse... Tal auxi.
sangue. No primeiro caso, o sangue es lio se nos offereceu, que não pode fa .
palha- se, no segundo concentra-se. A lhar. Oh que me parece mil annos
pallidez porém pode ser o resultado de a demora d'aquelle que espero aqui ! » E
duas causas, diz o mesmo Aristoteles, aquelle, que devia chegar era o Anjo, que
ou de enfermidades, ou de terror subito, o mesmoVirgilio tinha visto já descer, no
como agora o de Dante . fim do canto antecedente, pela rocha .
224 O INFERNO

Taes suspensões ou reticencias não são sua purificação; e por isto, sempre que
1
frequentes em Dante ; comtudo algumas surgia qualquer embaraço, receiava ver
ha. Veja -se Inf., XXIII, 109 ; e o Purg ., mallogrado o seu intento.
XXVIII, 22.» Seculos antes havia Butti observado,
(4) Ma nondimen paura il suo dir que em toda essa scena de duvidas, e
dienne. Como si Dante dissesse : «Não hesitações meticulosas, imaginada por
obstante as ultimas palavras de Virgilio Allighieri, não teve elle outro fim prin
modificarem o sentido das primeiras, cipalmente, senão nos ensinar : 1.", que
todavia não deixaram de me causar enganosos são os juizos, que se fazem sob
terror ; porque eu talvez tomava o seu a impressão de suspeitas, e de medos ;
dizer truncado em peior sentido do que 2.", que antes de julgarmos as palavras
elle tinha na mente. Porquanto Virgilio do sabio , devemos examinar bem o sen
queria dizer : « Será necessario que nós tido d'ellas, tomando sempre á boa par
dous, por nossos proprios esforços, ven te as suas sentenças.
çamos a batalha contra os demonios, ( 5 ) Congiurato da quella Eriton cru
se não chega esse Anjo, que espero ; da. « Quando fui conjurado por aquella
porque fui mandado por Beatriz, cuja cruel Ericto a descer a este abysmo».
palavra não soffre quebra. Beatriz não Quasi todos os commentadores confun
pode ser enganada, nem ter-me enga dem o caso aqui indicado por Virgilio
nado, quando me disse que eu fosse com o caso narrado por Lucano em o
salvar o seu fiel amigo, e conduzil- o a canto vi da Pharsalia . Mas isso é absur
ver o reino das perdidas gentes (perdu do : 1.°, porque o facto de Lucano não
te genti ); é portanto indubitavel que hei entende com Virgilio ; 2.º, porque Virgi
de conduzil - o, venha ou não venha o lio era vivo ao tempo d'aquelle facto ;
Anjo esperado, e com elle entrarei , cus 3.°, porque a Ericto de Lucano, por in
te o que custar, na cidade das dores » . stancias de Sextus, filho de Pompeu Ma
Eis-aqui pois ( continúa Dante) o verda gno , fez evocar a alma de um soldado
deiro sentido das palavras truncadas de pompeiano traidor, e morto no campo
Virgilio; mas eu, interpretando -as di da batalha, para d'elle saber quando
versamente, cria que elle quizesse dizer : teriam fim as guerras civis entre seu
« Si não estou enganado, si não tenho pae, e Julio Cesar; mas quando morreu
entendido mal Beatriz, etc. « E esse seu Virgilio, as ditas guerras haviam cessa
estado de duvida, e de descontiança do havia muitos annos. Diz-se porém : é
enchia-me de terror ; mas por fim tran um anachronismo familiar aos Poetas .
quillisou-me com as suas ulteriores de E eu respondo, que não ha aqui ana
clarações ». chronismo, nem o podia haver; porque se
Todos estes contrastes de pensamen tracta de convencer Dante com a verda
tos, e palavras são admiraveis bellezas ! de nas mãos, e não com uma invenção ,
Optimamente diz Tomaseo, que estes cuja falsidade seria em continenti co
medos pueris de Dante são mais bellos, nhecida por elle, que assim teria toda a
e poeticos do que as quixotadas de razão de considerar - se enganado por
Eneas, atirando - se de espada em punho Virgilio, e cair por conseguinte em
para traspassar as sombras infernaes ! maior terror. O engano não era, tão
É preciso, porém , saber, que os medos pouco, proprio de Virgilio, que em toda
de Dante allegoricamente significam os a Divina Comedia representa a recta
temores do peccador que, embora já razão . Si pois Virgilio não allude, nem
convertido, mas ainda mal seguro em póde alludir ao facto de Lucano, a que
seus propositos de emenda, teme a cada allude ? Allude a um facto a nós desco
ameaça de perigo que a sua fragilidade nhecido ; mas que sabia devermos nós
recáia nas culpas de que se está puri acreditar em Dante, o qual havia lido
ficando. Dante visitava o Inferno para um facto similhante em Lucano. Era só
COMMENTARIOS AO CANTO İX 225

necessario, para capacitar Dante, que ção da mente. Filhas de Acheronte,


Virgilio provasse com algum facto a que quer dizer tristeza, ou privação da
sua asserção de ter já descido ao Infer graça, e da Noite, que quer dizer igno
no, e o facto, que serve para provar isso, rancia. Sancto Epiphanio as define
é exactamente a descripção dos contor assim : Aletto quer dizer sem repouso ;
nos da cidade de Dite, e do ultimo cir porque incansavelmente instiga a máos
culo de Judas. Quanto a Ericto, ou ella pensamentos ; Tisiphone, que quer dizer
podia ser ainda viva quando Virgilio ira, instiga a más palavras ; Megera,
morreu, ou Ericto é aqui tomada por que quer dizer tempestade, arrasta а
nome commum de maga, como a toma más obras. São figuradas em forma de
Ovidio no livro xv das Heroides (Ben mulheres, porque seus nomes indicamo
nassutti ) . sexo : são sanguinosas, porque d'ellas
(6) Ben so il cammin ; però ti fa secu nascem todas as crueldades : são cingi
ro . Como si dissesse : « certamente sei das de serpentes, porque induzem a frau
bem o caminho ; por isto te dou toda des : estão entrançadas na cabeça, por
segurança ; porque, si eu pude andar que sua missão é urdir enganos : são
por esta região infernal, por mandado servas de Proserpina, que quer dizer
de uma feiticeira, duvidas que possa, soberba, ou se interpreta sotto entrante
ainda com maior confiança, andar por di lungo, isto é, que se insinúa de lon
mandado de Beatriz ? Tranquillisa -te ge, ou subtilmente nas boas, como nas
pois » . más obras : são chamadas virgens, por
( 7) U' non potemo entrare omai senz' que são estereis de todo o bem . Com
ira. Querendo dizer : « Não podemos en as unhas dilaceram o peito, para signi
trar na cidade, sem nos indignarmos ficar que os peccados ensanguentam o
contra os demonios, que nos fecharam a coração ; batem palmas, para significar
porta na face com tanta villania »; isto é, a festa que faz o Inferno quando recebe
não ha modo de descermos aos ultimos uma alma condemnada ; gritam por Me
circulos do Inferno, sem entrar n'ella. dusa , porque ella, que tem por cabellos
(8) Trefurie infernal di sangue tinte . serpentesinhas, em signal de ser mais as
Aqui, diz Butti, manifesta Dante a razão tuta que as outras, convertera Dante em
por que olhava attentamente para o ver pedra, como por sua funesta belleza
tice da torre, lembrando-se de que no tornava os homens estupidos, insensiveis
canto anterior lhe tinha dito Virgilio, aos gritos da consciencia. Alem de que,
isto é, qualquer que fosse a sua resis Medusa quer dizer esquecimento, que é
tencia que os demonios lhe preparas uma especie de terror ; por isso ella, e
sem dentro da cidade , elle havia de suas irmãs Gorgones significam terro
entrar. Qual ch ' alla difension dentro res. Gorgone quer dizer terror, porque
s'aggiri. Que furias são aquellas? Ou tres são as especies de terror, symboli
çamos ainda Butti : Acheronte, rio in sadas nas tres irmás, que são : Stenio, que
fernal, gerou da Noite tres filhas: Alecto, se interpreta debilidade da mente, que
Tisiphone, e Megera, e deram -nas por é o principio do terror: Euryale, que se
damas de honor a Proserpina, a qual, interpreta lata profundidade, ou loucu
tendo-as ao seu serviço, ordena que ra, produzida pela terror : Medusa,
vão pelo mundo a promover discordias. como já se disse, significa esquecimento ,
E porque os sabios não fingem estas cou que é quando o terror, não só impede
sas sem motivo, cumpre ver o que elles a conhecer as cousas não sabidas, como
entendem, e o mesmo Dante, por estas faz esquecer as cousas sabidas: em
furias. Entendem que são ellas as que summa, as tres furias, que se apresen
perturbam a mente dos peccadores, que tam ao Poeta no vertice da torre, são o
peccam por malicia ; por isso são cha symbolo do remorso , de todos os pecca
madas furias, que significam perturba dos de malicia em todas as suas espe
15
226 O INFERNO

cies, correspondentes ás origens allego e conhecidas pelos sabios ( loc.cit.). Dante


ricas indicadas » . falava segundo o espirito do seu tempo,
(9) O voi, ch'avete gl' intelletti sani. e de toda a antiguidade. Na Vita Nuova
Esta apostrophe é dirigida aquellas que, despreza elle aquella poesia, que sob os
por não entenderem as cousas occultas ornamentos das palavras não offerece
sob o véo d'estes versos, não querem cousas solidas. E no Convito diz : « Um
que o auctor tivesse na mente outra sentido chama -se litteral, e é aquelle que
causa, senão aquillo, que unicamente não vae alem da lettra ; o outro chama
resumbra no sentido litteral ; por isso se allegorico, e é aquelle que se occulta
convida os homens de boa fé sincera, sob o manto das fabulas, ou antes é uma
e de intelligencia despreoccupada a me verdade occulta sob uma bella mentira.
ditar as altas verdades, que estão en E n'outro logar : « Entendo tambem mos
voltas nos versos estranhos da Divina trar o verdadeiro sentido, que não será
Comedia . O Poeta chama -os estranhos, comprehendido por ninguem, si o não
porque antes d'elle ninguem havia ur explicar ; porque está occulto sob a fi
dido ficção alguma d'este genero sob gura allegorica .
versos vulgares, mas sempre sob versos Butti, explicando esta apostrophe sob
litteraes, e por isto os versos do seu as verdades occultas sob o véo de
Poema parecem estranhos, e desconhe versos estranhos, diz : «Cumpre que
cidos pelo estylo ( Boccaccio ). saibamos que Dante n'este seu Poe
Dante mostra-se sempre, ainda mes ma intenta demonstrar o modo, como
mo nas suas ficções, o moralista insi o homem, privado da graça de Deus,
gne, que na diffusão das verdades uteis deve readquiril-a. E porque o primei
ao genero humano jamais se afasta da ro passo é debellar os vicios, e OS

orbita traçada pela tradição christã. Diz peccados, nos ensina os meios no pri
elle que sob o véo de versos estranhos meiro canto, no qual demonstra que aos
se occulta grande copia de doutrina, que vicios, porque procedem da incontinen
antes d'elle, diz mui bem Boccaccio, cia, e da intemperança, resiste mui bem
ninguem tinha propagado em versos a razão com auxilio da graça gratis data .
vulgares sob o véo das allegorias : N'es Por isto o Poeta diz que em todos os
te sentido seus versos são com effeito logares em que se achou em lucta com
estranhos, isto é, desusados. Ha novida os vicios todos, para vencel- os, bastou
de na fórma ; na essencia porém não é lhe Virgilio, isto é, a razão, como acon
uma invenção temeraria do Poeta, é uma teceu quando foi ameaçado por Caron
verdade capital. Em prova d'isto, o eru te, Minos, Cerbero, Plutão, Flegias, e
ditissimo Tomasêo cita os seguintes Filippe Argenti. Mas agora, que é che
textos : Sacrarum rerum notio sub pio gado á cidade, onde se punem , não
pigmentorum velamine, honestis et tecta simplesmente os vicios, porém sim os
et vestita nominibus, enunciatur. A noção mais graves, e gravissimos peccados de
das cousas sagradas enuncia-se, não só malicia, e de bestialidade, como origina
coberta , como vestida de nomes hones rios da soberba, e da inveja, para com
tos, sob o pio véu das ficções ( Macrobio batel -os, a difficuldade é maior, e muito
Somn. Scip ., 1. 2 ). « E impossivel, diz mais séria ; porque aqui não basta a
S. Dionysio Areopagita, que o raio di razão com a graça gratis data, é neces
vino resplandeça em nós, senão cir sario o auxilio da graça especial, que se
cumdado da variedade de véos sagra chama gratum faciens; e por isto diz
dos » (Hier. 1 ) . E São Thomaz de Aqui que na cidade de Dite os demonios lhe
no : « Sob as similhanças, e figuras fizeram mais forte opposição, que em
occulta-se a verdade figurada» ( Summ ., parte alguma, pela razão de que os pec
2 , 2 , 8). Diz mais: « O véo do Templo cados ahi punidos são de muitas espe
significava as cousas occultas ao vulgo, cies, cada qual ntais grave, e damnosa.
COMMENTARIOS AO CANTO IX 227

A prova é que Virgilio não conseguiu Observe bem o leitor intelligente, diz
pacifical-os, que antes o repelliram com Poggiali, esta dantesca explicação da
villania. E assim diz agora Dante que origem de alguns ventos quanto é con
no alto da torre estão, para defen forme ás mais applaudidas theorias da
del-a, as furias, que significam as raizes nossa moderna Physica, tanto mais
do peccado da soberba , e da inveja, aperfeiçoada !
procedentes da malicia, e que por isso O Poeta applica todos os phenome
são chamadas servas de Proserpina. nos produzidos pelo vento impetuoso aos
Todas estas furias pois oppunham - se á effeitos produzidos pela chegada do en
entrada de Dante na cidade, para que viado do Céo á cidade de Dite. Assim
elle não conhecesse os ditos peccados como, por exemplo, o vento não encon
ali punidos, nem, para evital-os, ensi trou estorvo na sua marcha através da la
nasse o remedio ou os meios aquelles , goa, assim tambem o Anjo não encontra
que lessem seu Poema ». o menor obstaculo no atravessar o pan
( 10 ) E già venia su per le torbid ' on tano : assim como o vento faz afugentar
de. Isto quer dizer, que depois de ter as ovelhas, e os pastores pelo espanto
Virgilio tapado os olhos a Dante, para que lhes incute com o seu aspecto tur
que não visse Medusa, percebeu o mes bido, e soberbo; assim o Anjo faz fugir
mo Dante vir por sobre as turbidas diante de si os demonios aterrados por
ondas da Estyge um rumor de som es seu aspecto grave, e indignado.
pantoso, que fazia tremer ambas as Li rami schianta, abbatte, e porta fö
margens, similhante a um vento impe ri. Os ramos arranca, abate, e fal-os
tuoso provocado por calores contrarios, voar pelos ares. Alguns commentadores
o qual açoita a floresta, torce, derruba, querem que se entenda fori por fiori.
e faz voar pelos ares os ramos das ar Mas observa Lombardi, que fori (isto é ,
vores, e, proseguindo desempeçado, pul fuori) em vez de fiori cabe aqui muito
verulento, e soberbo, afugenta as feras, melhor por dupla razão : 1.", porque flo
e os pastores . res são proprias de prados, e de jardins,
Temos aqui uma das mais bellas com e não de selvas intonsas ; 2.", porque
parações, e ao mesmo tempo uma das muito enfraqueceria a imagem o figurar
pinturas mais vivas, e animadas, que se o vento , depois de açoitar a floresta, e
podem encontrar na poesia, e na pro espedaçar os ramos, o lançar pelos ares
sa ! Analysemos rapidamente : 0 es as flores. É portanto mais natural que
trondo espantoso, que precede a che o vento quebre os ramos, derrube -os, e
gada do Anjo á cidade de Dite (un fra os faça saltar fóra ou longe da selva.
casso d'un suon pien di spavento) é aqui Não estou de humor a reproduzir as
comparado de menor para maior com o razões contrarias, as quaes, sobre se
facto dos Actos dos Apostolos : Et fa rem mui prolixas, são mais phantasiosas,
ctus est repente de Cælo sonus, tanquam que naturaes.
advenientis spiritus vehementis. ( 12 ) ... drizza il nerbo Del viso ...que
( 11 ) Impetuoso per gli avversi ardori. vale o mesmo que dizer : aguça o gume
É de saber (diz Butti, commentando da vista . E assim se deve entender este
este logar) que o vento se gera dos va passo, e não de outro modo ; pois que
pores seccos da terra, que se elevam para reconhecer, e distinguir um objecto
até ás nuvens, e lá, feridos pelos ardo no meio da nevoa, e nevoa como era
res do Sol, repercutem o ar, e uma par aquella , não basta levantar o nervo optico
te do ar repercute a outra, e assim se simplesmente, mas é necessario aguçar
produz o vento, que não é outra cousa, bem o gume, a força, o vigor da vista
senão o ar repercutido, e batido ; sendo ( Lombardi ).
que quanto mais contrarios são os ar ( 13 ) ...schiuma antica : escuma ab an
dores, tanto mais impetuoso é o vento. tiquo existente, ou que existe n'aquella
228 O INFERNO

lagoa, desde que os condemnados ira entendido o conceito de Dante, será


cundos começaram a submergir -se n'ella , uma belleza poetica, accrescentada a
e a tornar espumosa a sua agua pelo es . um facto historico , ao passo que, en
trebuxar phrenetico, produzido pelos tendido pela fórma por que pretendem
tormentos. Em summa, existe desde que os commentadores, seria uma fabula
existe o Inferno (Lombardi). supposta historia (Lombardi).
(14)...quel fummo è più acerbo. Sen ( 16 ) E non fè motto a noi ... O Anjo
do o fumo, ou a nevoa acerba aos olhos, não dirige a palavra a Virgilio, por ser
e tanto mais acre quanto é mais densa, este condemnado, nem a Dante, por
emprega Dante o più acerbo em vez de ser tambem mal visto do Anjo pelos
più denso, e esta maior densidão pro graves vicios de que se suppunha réo, e
vinha do fugir precipitado, e do escon de que ainda não estava purificado com
der -se dos demonios debaixo de agua, pletamente . Por esta mesma razão só no
ao aproximar-se o Anjo, como as rās Purgatorio começarão os Anjos a falar
fogem , e se enterram no paul, ao appro com Dante ( Lombardi ). Acrescenta Bia
ximar-se a hydra inimiga. ggiali, que o Anjo não dirige a pala
( 15) Ne porta ancor pelato il mento e vra nem a Virgilio, nem a Dante ; por
il gozzo. Na introducção a este canto , que o seu caracter de Enviado exige
parece- me que deixei plenamente ex que vá direito ao seu fim , e volte de
plicado o sentido em que Dante usou egual modo, sem distrahir - se com outras
d'esta fabula ; agora reproduzo com sa cousas.

tisfação a seguinte glosa corroborativa, ( 17) Fanno i sepolcri tutto il loco varo.
emanada de tão conspicua auctoridade. Os sepulchros n'aquellas visinhas pla
« Todos os commentadores , desde o pri nicies tornam varia ( ondulante ) a cam
meiro até o ultimo, entendem indicada pina, não só pelas deseguaes saliencias
aqui a fabula da violenta extracção do do solo, como pelas pedras sepulchraes
Cerbero do Inferno, executada por or esparsas por aqui, e por ali. A respeito
dem de Eurysthes. Causa-me grande ad d'estes sepulchros dizem- se muitas cou
miração, que nem um de tantos interpre sas, que não creio por fabulosas. que
tes tenha podido conhecer o intoleravel será verdade é, que n'aquella campina
absurdo, qual o de ter um Enviado do costumavam enterrar os mortos pela
Céo (Messo del Cielo) se servido de uma maneira indicada. Ha quem deduza
fabula, para confundir a audacia dos aquelle varo, não do varius ( ou do va
demonios ! Nunca jamais ! Já Virgilio rio, por syncope ) , mas do varus latino ;
n'este mesmo encontro recordou a des significando, n’este caso, que os sepul
cida do nosso Salvador Jesus Christo ao chros não tornam varia , mas curva

Inferno ; e porque pois não havemos de aquella campina. Não me desagrada o


mais antes entender, que fosse Cerbero pensamento, nem vejo que de nenhu
em tal occasião acorrentado, e amor ma sorte transtorne o sentido, nem o
daçado de modo, que não podesse des desapprova a Crusca, desde que cita
de então arremeçar-se, nem ladrar con Francisco Butti ( Venturi ).
tra alguem ? Porque não havemos de ( 18) Co ' lor seguaci d'ogni setta. Ar
entender que elle , debatendo - se em es dem aqui nas chammas infernaes os
forços, e guinadas inuteis, com a cor heresiarcas com os seus sectarios: Ario
rente, e com a mordaça, tenha pelado o com os Arianos, Sabellio com os Sabel
focinho, e o pescoço ; e que finalmente, lianos, Eutyches, com os Eutycheanos,
como em perpetua memoria do facto , etc. S. Gregorio Mag. ( Dialogo, iv, 35 ),
da mesma maneira que a porta do In havia dito : Consociam - se nos tormen
ferno se conserva até hoje sem fechadu tos os similhantes com os similhantes,
ra, se conserve tambem Cerbero com o a saber : os soberbos com os soberbos,
focinho, e o pescoço pelados ? Assim os luxuriosos com os luxuriosos, etc.
INTRODUCÇÃO AO CANTO X

No primeiro circulo dentro da cidade, por onde caminham os dous Poetas, são
ao lado direito punidos os incredulos, que negam a existencia de Deus, a immor
talidade da alma, a vida futura. Estes incredulos são christãos, e pagãos ; porque a
· incredulidade, ou o atheismo foi, e é peccado mesmo nos homens privados da Re
velação, visto como a razão natural demonstra, e persuade a todos que existe um
Deus premiador do bem, e punidor do mal ; sendo certo que aquelles, que o negam
são homens corroidos de vicios tão grosseiros, que lhes apagam a bella luz do en
tendimento .
Entre os atheus encontra Dante dous cidadãos florentinos, com os quaes fala :
o primeiro é Farinata, da illustre familia dos Ubertis, homem de grande valor, e
chefe dos Gibellinos de Florença. Em Mont'Aperti juncto ao rio Arbia desbaratou
em uma sanguinolenta batalha (setembro 1260) o exercito guelpho, e, entrando
triumphante em Florença, d'ella expelliu todos os Guelphos, inclusive a familia de
Dante. Mas quando os Gibellinos no furor da victoria formaram concelho em Em
poli para reduzir Florença a cinzas, Farinata se oppoz com firmeza romana, e
só por isso a cidade foi salva . Dante faz justiça ao cidadão, mas não perdoa ao
incredulo blasphemador do nome de Deus.
O segundo é Cavalcante Cavalcanti, da nobre, e antiga familia Cavalcanti, o qual
n'aquelles tempos, diz Christoforo Landino, foi por sua virtude, e prudencia contado
entre os principaes Guelphos da Republica Florentina ; mas incorreu na infamia de
professar a doutrina epicurista ; é verdade que mais commedido, e encoberto do que
Farinata : por isso Dante não o faz sair todo fóra do tumulo, mas sómente a cabeça,
ao inverso de Farinata.
Do mesmo Farinate ouve Dante que jazem com elle no sepulchro Frederico II,
e o cardeal Octaviano dos Ubaldinos. Frederico II da casa dos Hohenstanfens, filho
de Henrique VI, e neto de Barbarouxa, era Rei de Napoles, e de Sicilia, e por favor
dos Gibellinos, e protecção de Innocencio III, havia sido eleito Imperador. Foi Prin
cipe magnanimo, favorecedor munificente dos litteratos ; mas de costumes depra
vados, sectario infrene do Epicurismo, e inimigo implacavel da Egreja Romana, e
por fim excommungado , e deposto pelo proprio Innocencio III.
Octaviano, chamado Cardeal por antonomasia, e tão ardente Gibellino, que não
duvidou dizer : « Si a alma existe, eu a tenho perdido pelos Gibellinos » . Conta-se que
rompeu n'esta escandalosa blasphemia por occasião de queixar-se de que Frede
rico II não lhe correspondia, como julgava merecer. Outros historiadores dizem que
elle proferira taes palavras momentos antes de morrer.
Em honra da severa imparcialidade de Dante, vemol-o metter no Inferno tres
230 O INFERNO

celebridades gibellinas, Farinata , Frederico II, e o Cardeal Octaviano, réus con


fessos do Epicurismo; como por outro lado vemol - o reconhecer, e louvar a virtude
de muitos Guelphos. Não menos sobresáe a sua imparcialidade no facto de metter
tambem no Inferno Cavalcante Cavalcanti, Guelpho, pae de seu primeiro amigo
Guido Cavalcanti. Não se pode dizer que o fizesse por inimizade pessoal, porque
já não o alcançou . Fel -o simplesmente por elle ser incredulo, e mesmo por uma
certa advertencia a seu amigo Guido. Qual seria o verdadeiro motivo d'essa a postro
phe a Guido ? O sentido litteral do texto é este : « Emquanto Dante falava com Fari
nata , surgiu do tumulo Cavalcante Cavalcanti, que lhe pareceu estar de joelhos, por
que só tinha de fóra a cabeça. Olhou ao redor de Dante ; e porque ? Porque, perceben
do pela conversa que o interlocutor de Farinata era Dante, amigo inseparavel de seu
filho, fez comsigo este raciocinio : « Dante deve ter alcançado, por seu alto engenho, o
privilegio de vir em corpo, e alma ao Inferno : ora sendo meu filho egual a elle na
elevação do engenho, deve ter tambem alcançado tal privilegio, e por conseguinte
ha de estar aqui com elle » . N’este presupposto, olhou em torno de Dante, e não
vendo Guido, disse - lhe chorando : « Si caminhas por esse carcere tenebroso em vir
tude de alteza de engenho, onde está meu filho ? Porque não está comtigo ?»
Respondeu-lhe Dante que não vinha só ao Inferno; mas vinha conduzido por
Virgilio, a quem seu filho Guido teve porventura em desprezo. «Ao ouvir isto,
Cavalcante Cavalcanti ergueu-se subitamente, e gritou : « Como dizes que teve em
desprezo ? Pois não tem ainda ? Já não vive meu filho ? » Vê -se que o verbo no pre
terito fez crer a Cavalcante, que seu filho já era morto. Effectivamente quando
Dante escreveu isto, si attendermos a epoca real em que o escreveu (1304 ), Guido já
tinha morrido ; mas si attendermos á epoca ficticia, isto é, aquella em que o
Poeta finge a sua viagem mistica ( 9 de abril de 1300 ), Guido ainda vivia ; pois sua
morte teve logar em fins de 1300. É que Dante no momento estava em certo erro
de que pede esclarecimentos a Farinata, como opportunamente se verá.
À vista da resposta que lhe dá Farinata, Dante mostra - se arrependido do modo
equivoco por que falou a Cavalcanti, e pede a Farinata que lhe diga, que seu filho
Guido vive ainda, e que se lhe não respondeu promptamente foi por achar-se no
erro de que elle Farinata o acabava de tirar, isto é, si os prescitos conheciam o pre
sente .
Tudo são bellezas n'este Poeta ! Até nas suas malicias, quaes a de Tacito, mos
tra-se engenhoso, e sublime !
A respeito finalmente do verdadeiro sentido d'aquella apostrophe a Guido Caval
canti, limitar-nos-hemos a reproduzir aqui a serie de conjecturas, que sobre o as
sumpto forma un escrupuloso commentador.
CC
Virgilio, a quem talvez o vosso Guido teve em desprezo. Não é facil entender como
podesse Dante suspeitar Guido, poeta lyrico, e philosopho de grande valor, inimigo,
ou desprezador de Virgilio. Um Poeta desprezador do maximo dos Poetas latinos !
Seria suppor em Guido Cavalcanti muito máo gosto, nem o seu amigo lhe teria
feito grande serviço em divulgal-o ! Tem -se dito que a razão de ser Guido consi
derado desprezador de Virgilio é porque, desejoso de cultivar, e illustrar a nascente
lingua toscana, não quiz nunca escrever em latim. Mas isto não é razão por que se
podesse suppor que elle odiava Virgilio ; visto como todos nós, pelo facto de gostar
mos de escrever na nossa lingua, não significâmos o menor desprezo dos grandes
escriptores gregos, e latinos. Tem - se dito tambem que pôde julgar Guido anti- vir
giliano, por não ter este jamais querido pôr mão n'um Poema epico ( á imitação do
cantor de Eneas ), a cujo tentame, talvez, por mais de uma vez, o estimulasse o seu
amigo Allighieri : ainda esta razão não satisfaz mais do que a outra. Eis o que eu
creio mais provavel: Guido era Guelpho, como tambem era Dante até 1300, epoca
INTRODUCÇÃO AO CANTO X 231

da visão, e da sua mudança de politica. E muito facil admittir que Guido Cavalcanti
não concordasse com a idéa do imperio universal concebida, e prégada pelo seu
amigo, si bem não deixasse de reinar sempre entre ambos a mais restricta, e mutua
amisade. Creio, pois, seria esta a razão por que Dante insinuava que Guido teve em
desprezo Virgilio, não como Poeta, nem como symbolo da philosophia natural, mas
sómente como cantor, e sustentador da origem divina do imperio romano, a que o
Guelpho era contrario, etc. Tudo isto serão conjecturas : mas não se pode ir alem,
pela ausencia de mais particulares noticias ácerca d'estre illustre Florentino ».
Vê-se que entre tantas, e tão diversas hypotheses, este consciencioso commen
tador não figura uma só com relação a motivos religiosos. E Dante, que metteu no
Inferno seu mestre Brunetto Lattino, e até proprios parentes, pelo facto de serem
incredulos, ou herejes, não teria hesitado em lá ter mettido Guido Cavalcanti, si
como tal o considerasse. Não, o Poeta da rectidão não desmentiu jamais este titulo
que lhe deram seus comtemporaneos, e que lhe tem sido confirmado por unanime
acclamação dos vindouros.
CANTO X

Caminhando os dous Poetas entre os sepulchros, e as muralhas, Dante manifesta a Virgilio o desejo de ver os
peccadores que ali jazem , e de falar com algum : ouve uma voz que o chama: É Farinata dos Ubertis, com
o qual conversando, é interrompido por Cavalcante Cavalcanti , que lhe pergunta por seu filho Guido : Res
ponde-lhe em parte ; reata a sua conversa com Farinata , que lhe vaticina o exilio, e o informa de outras
cousas.

Agora o meu Mestre vae, e eu após (1) elle, por uma secreta viella,
entre as muralhas, e os tumulos inflammados.
Exclamei : « O Virgilio summamente virtuoso ! tu, que me conduzes,
como te apraz, por estes circulos impios, digna-te de falar-me, e sa
tisfazer o meu desejo .
« Não será possivel ver a gente, que jaz n’estes sepulchros ? Elles
já estão abertos, e ninguem os (2) vigia . )
« Todos serão fechados, respondeu, quando os peccadores, que os
occupam, voltarem do valle de (3) Josaphat revestidos dos proprios cor
pos que deixaram no mundo.
« D'este lado (4) tem o seu cemiterio Epicuro , e seus sectarios, que
sustentam morrer a alma com o corpo.
« Todavia serás satisfeito (5) dentro em pouco, tanto em relação á
pergunta, que me fizeste, como quanto a outro desejo que me occul
tas . )

E eu a elle : « Caro Mestre meu, não te occultei (6) o meu coração,


senão por querer ser breve nas minhas palavras ; e tu mesmo, por
sabiaş advertencias, me tens a isto habituado» .
«Ó toscano ! tu , que ainda vivo andas pela cidade (7) de fogo eterno,
falando tão honestamente , ( 8) não te enojes de parar um instante para
me ouvir.

« A tua linguagem manifesta-te natural d'aquella nobre patria, a


que talvez fui demasiado ( 9) nocivo , d
234 O INFERNO

Estas palavras irromperam de improviso de um d'aquelles sepul


chros, e pelo terror que me incutiram , approximei -me um pouco mais
do meu Guia .
E elle me disse : « Volta-te, que fazes ? Vê lá Farinata , que se levanta
do tumulo ; pódes vel-o da cintura para cima ) .
Eu já tinha fixado os olhos na sua attitude, e o via em pé de peito,
e fronte (10) alliva, como si tivesse o Inferno em grande desprezo .
E com as suas mãos robustas o meu Guia impelliu-me por entre os
tumulos até elle , dizendo -me: « Fala -lhe com toda a franqueza ». ( 11 )
Apenas me abeirei ao tumulo , Farinata olhou-me um ( 12) instante,
e depois perguntou -me com ar de desdem : « Quem foram teus ante
passados ? »
E eu , que estava desejoso de obedecer-lhe, ( 3) nada dissimulei :
disse-lhe tudo sem (14) rebuço . Então , levantando ( 15) elle os olhos,
disse : « Foram ferozes inimigos meus , de minha familia, e do meu
partido ; por isso os dispersei duas vezes » .
Respondi-lhe com emphase : « Si os meus maiores com os seus allia
dos foram dispersados por vós, voltaram de todas as partes, ( 16) a pri
meira, e segunda vez ; mas os vossos não aprenderam a arte de fazer
o mesmo » .
N'este comenos, vi surgir ao lado de Farinata uma sombra , que
só tinha a cabeça fóra do tumulo . Creio que estava ajoelhada. » ( 17)
Correu a vista em de torno mim, como quem parecia averiguar si
havia alguem commigo, e desvanecida a sua supposição, disse-me
chorando : « Si viajas por este carcere tenebroso por privilegio de al 1

teza de engenho, meu filho onde está ? Porque não vem comtigo ? »
Respondi-lhe : « Não desco a este abysmo por mim só ; conduze me
aquelle que lá me espera, a quem teu filho Guido porventura teve
em desprezo ) .
As suas palavras, e o genero de seu supplicio me tinham já reve
lado o seu nome ; por isso dei-lhe tão plena resposta .
Ao ouvir que seu filho teve em desprezo a Virgilio, subitamente
poz-se em pé, e gritou : « Como dizes que meu filho teve ? Pois não
tem ainda ? A doce luz do sol já lhe não brilha nos olhos ? »
Quando percebeu que a minha resposta se demorava , caiu de
costas , e não se tornou mais visivel . ( 18)
Mas aquell'outra sombra magnanima, ( 19) a pedido da qual eu ha
via interrompido o meu caminho, não mudou de aspecto , não moveu
a cabeça, nem se voltou para traz .
E reatando o fio de seu discurso, disse : « Sim , si os meus gibellinos
não aprenderam bem aquell'arte, isso me causa maior tormento do que
este leito de chammas. ( 20)
CANTO X 235

« Mas não luzirá cincoenta mezes a face da Senhora, que reina aqui ,
(21) sem que deixes de saber quanto seja difficil a arte de voltar á
patria !
« E si porventura exerces alguma auctoridade no doce mundo, dize
me : Porque aquelle povo é tão cruel em todas as suas leis contra os meus
parentes ? » (22)
Respondi : « A grande carnificina, que tingiu de sangue as aguas
do Arbia foi a causa de se fazerem essas leis nas nossas assem
bléas ) . ( 23)
Depois, suspirando, Farinata sacudiu a cabeça, e disse: « Não fui
eu só o movel d'essa carnificina ; nem certamente me teria resolvido
com os outros a dar similhante batalha, si não tiveramos para isso ( 24)
razão justificada.
« Mas lá onde se ajuntou conselho para se deliberar a destruição
de Florença, fui eu o unico, que a defendeu de viseira levantada. »
« Ah, lhe respondi, possa um dia repousar a vossa descendencia ! (25)
Mas rogo-vos que dissolvais a duvida, que me tem posto a cabeça em
confusão .
« Si bem comprehendo o que ouço (26) de vós outros, parece que
conheceis o futuro , e não o presente . »
« Como aquelles, que têem a vista (27) defeituosa, disse elle, nós
vemos as cousas longinquas ; e tambem esta previdencia é uma graça
do summo Rei.
« Quando as cousas se approximam , ou existem, então é inutil o
nosso intellecto ; porque nada sabe da vossa condição humana.
« D'onde pódes deduzir que o nosso conhecimento é nullo , desde
aquelle ponto em que nos for trancada a porta do futuro . »
Então eu quasi arrependido da minha culpa, disse -lhe : « Agora
informareis aquelle , que acaba de sumir-se no tumulo, que seu filho
ainda pertence ao mundo dos vivos.
« E fazei- lhe saber que , si antes não lhe respondi promptamente ,
foi porque me achava no erro de que vos acabais de tirar -me.»
E já o meu Mestre me chamava ; por isso roguei ainda a Farinata
com maior instancia, que me dissesse quem estava comsigo n'aquella
tumba .
Respondeu-me : « Aqui jazo com mais de mil : estão commigo Fre
derico II , (28) e o Cardeal ; quanto aos outros emmudeço ) .
Dizendo isto, se escondeu no sepulchro . E eu voltei os passos para
o antigo Poeta, revolvendo no pensamento aquella predicção que me
parecia aziaga . (29)
Virgilio moveu-se ; e, andando, perguntou-me : « Porque estás assim
pensativo ? » Satisfiz a sua pergunta .
236 O INFERNO

E aquelle Sabio me recommendou , dizendo : « Conserva bem na


memoria o que tens ouvido contra ti ; mas agora presta attenção ao
que te vou dizer (e levantou o dedo) : (30)
« Quando te achares diante dos brandos olhos d'aquella Dona, que
tudo vê, (31 ) d'ella saberás as contingencias futuras da tua vida. »
Depois volveu os passos á esquerda ; e assim deixámos os muros
da cidade, encaminhando-nos para o centro por uma azinhaga, que
vae dar n'um valle, que exhala um cheiro insupportavel.
COMMENTARIOS AO CANTO X

( 1 ) Lo mio Maestro, ed io dopo le creta, não caíndo em nenhum dos dous


spalle. O meu mestre vai adiante, e eu extremos perigosos , e que elle, por ter
atraz. Diversas razões assim o determi seguido atraz, tambem ficou illeso ; si
navam : 1.', porque o caminho era tão es gnificando assim que quem se dirige
treito, que não nos permittia ir empare pela recta razão, não pode se precipitar
lhados, e porque as chamma reverbe na sensualidade, que é uma das princi
rantes dos sepulchros me queimariam : paes origens da heresia.
2.", porque Virgilio, sendo meu guia, (2 ) ... e nessun guardia face. Pois
devia ir adiante, até porque assim me como ? Não ha sentinella, que guarde o
preservava de alguma surpreza dos de Cemiterio da cidade de Dite? Não : porque
monios, despeitados sobretudo contra osdemonios, que lhe compunham a guar
mim, por ter sido eu a causa da severa nição, tinham fugido precipitadamen
reprimenda, que elles tinham recebido te com a chegada do Anjo , e erravam
do Enviado do Céo . » Tudo isto é litte dispersos pelos esconderijos. Cumpre
ralmente falando ; mas allegoricamente porém advertir, que pelo falar de Dante ,
ha aqui, segundo Butti, um bello ensino comprehendeu Virgilio duas cousas : 1.",
moral. « Dizendo Dante que Virgilio o que Dante se achava no falso presuppos
guia por aquelle secreto caminho, quer to de que aquelles sepulchros tivessem
significar que quando a razão guia o sido recentemente abertos em conside
peccador por um caminho secreto, isto ração a elle ; 2.º, que o desejo do mes
é, separado dos vicios, póde seguir com mo Dante não era simplesmente ver
toda a segurança de não ser impedido algum incredulo qualquer, mas de cer
pelos mesmos vicios ; porque, si a razão tificar -se, si entre os epicuristas se
(Virgilio ) se mettesse a passar pelos -achavam aquelles, que elle sabia terem
muros, que significam obstinação, e pelos sido contaminados d'essa torpe abo
sepulchros, que significam absorpção da minação, como Farinata , e Cavalcante
razão ( porque o hereje tem a falsa opi Cavalcanti. Respondendo- lhe pois Vir
nião de que a verdade verdadeira está gilio, começa por advertil-o de que
de seu lado) , se exporia ao perigo de aquelles sepulchros não foram fechados
permanecer na falsa opinião ; porque nunca, e que não o serão, senão depois
quem uma vez se enreda na obstinação do Juizo Universal. Em seguida , para
da heresia, d'ella. não se solta, si a graça satisfazer o seu tacito desejo, passa a
especial do Céo o não arranca : por isso indicar-lhe o logar, onde estavam os
diz Dante que Virgilio por entre os sepulchros dos epicuristas, a fim de que
muros, e os sepulchros seguiu com tal podesse entre elles procurar o que de
destreza, que não se afastou da trilha se sejava ; acrescentando, que ahi podia
238 O INFERNO

elle saciar seu desejo, não só quanto ao Cidade de fogo era Dite, onde o tor
que abertamente pediu, como quanto ao mento era de fogo. Porque são os
que tacitamente desejava ( Lombardi) . herejes atormentados com fogo ? Por
( 3) Quando di Josaffà pui torneran que era este o supplicio proprio a que na
no . Josaphat, palavra hebraica, que meia edade eram condemnados os do .
quer dizer valle do juizo, onde se reuni gmatisadores de heresias ; sendo queima
rão todos os homens, e Anjos para se dos vivos, si d'ellas se não retractavam.
rem julgados no ultimo dia do mundo . Alem de que, fòra esse supplicio impos
(4 ) ...da questa parte ... Porque in . to aos réus do peccado de impiedade
dica Virgilio a Dante sómente estes ? na lei antiga, como prova, entre outros,
Por duas razões : 1.°, porque acolá , onde o exemplo de Coré e seus sequazes
estavam os dous Poetas, jaziam somente (Bennassuti).
os epicuristas; 2.', para significar que ( 8 ) ... così parlando onesto . Exacta
esta é a seita, que maior numero tem mente Virgilio o tinha adivinhado. Era
de sequazes, tanto no paganismo, como impossivel que um hereje florentino,
no christianismo, e, por desgraça, até no ouvindo falar um florentino, não se le
catholicismo ! Em geral toda a heresia, vantasse. Pelo seu falar honesto, e poli
que surge entre os catholicos, é fructo do com o seu Mestre conheceu logo
do epicurismo redivivo: epicurismo é a Farinata, que Dante era toscano; por
sensualidade nas suas mais largas ma que, em verdade, quando por toda a
nifestações; é a victoria da depravação Europa, e não menos por quasi toda a
do sentimento sobre a razão ; é por fim Italia, se falava uma lingua barbara, a
o delirio da razão (Bennassutti). Toscana distinguia-se pela gentileza de
( 5 ) Quinc' entro sodisfatto sarai tos linguagem.
to. Mas como sabe Virgilio que pouco ( 9) Alla qual forse fui troppo molesto.
adiante jaziam nos tumulos espiritos fio Com effeito, unindo -se Farinata aos
rentinos, e que se levantariam ao apro Gibellinos de Siena, e de outras cidades
ximar -se Dante ? Sabe pela razão de em damno dos proprios concidadãos
attribuir Dante a Virgilio, puro espiri Guelphos, tornou-se funestissimo á sua
to, uma certa presciencia. E com effei patria, pelos males, que acarretou sobre
to propriedade dos espiritos separa ella . Villani, lib. vi, 75. Fui talvez muito da
dos verem as cousas atravez do em mnoso . Emprega o adverbio talvez (nota
baraço dos sentidos. É assim que Vir Landino ), para não se privar inteiramen
gilio tambem vê no coração de Dante te de desculpa, como si dissesse : « Si fui
o desejo, que lhe occulta : E al disio muito damnoso, os meus adversarios de
ancor che tu mitaci.E que desejo é esse ? ram - me causa para isso ».
É o de falar com alguns d'aquelles epi ( 10) Ed ei s'ergea col petto e colla
curistas. fronte. Erguia -se com o peito, e a fron
(6) ...non tegno nascosto . Dante, to te altaneira, como quem demonstrava
mando por uma delicada exprobração desprezar as chammas em que ardia no
o dizer-lhe Virgilio que elle lhe occulta Inferno, para significar a sua obstinação,
e rebeldia ás doutrinas daEgreja; obsti.
va um desejo, procura justificar-se, alle . nação, e rebeldia filhas da soberba,mãe .
gando não lhe ter dito tudo, não por
falta de confiança, mas por não querel- o da heresia. Erguia -se quasi com todo o
enfadar com muitas perguntas ; come corpo fóra do sepulchro , paramanifestar
dimento a que o mesmo Virgilio o ha bem , que elle no mundo não fazia mys
via disposto por anteriores advertencias. terio da sua incredulidade, que pelo con
São finezas de parte a parte, que cum trario publicamente declarava despre
o é
pre sejam praticadas nas nossas relações zar o Inferno, o Purgatorio, e o C ,
sociaes .
porque nada disso existia ( Butti).
( 7) O Tosco, che per la città del foco. Farinata, favorecido por Frederico II,
COMMENTARIOS AO CANTO X 239
e, depois da sua morte, pelo rei Manfre veias dos quaes circulava o antigo san
do, seu filho, exerceu dura oppressão gue romano ( Boccaccio ).
sobre os Guelphos, de Florença. Distin Tudo isto é litteralmente falando ;
guiu -se muito como sectario da doutri mas allegoricamente quiz o Poeta ad
na de Epicuro : sustentava sem rebuço moestar- nos que, quando responder
que toda a bemaventurança dos homens mos aos incredulos, e herejes, não de
consistia nos deleites temporaes, não vemos usar de ambiguidades, mas de
seguindo n'esta parte a seu mestre palavras claras, decisivas que lhes tirem
Epicuro, o qual jejuava longamente, para todo o pretexto a subterfugios, que são
ter o prazer de comer pão secco. Ao as armas da heresia ( Butti) .
invez d'isto, Farinata era um verdadei ( 15 ) .. levò le ciglia un poco in soso.
ro sybarita, amigo de viandas delicadas, Levantou os olhos para cima como
de vinhos exquisitos, etc. ( Boccaccio). quem procurava lembrar- se da familia
( u ) Le parole tue sien conte. « Vai fa Allighieri ( Porticelli).
lar-lhe, disse Virgilio a Dante ; mas se Levantou os olhos para cima, não
jam francas e claras as tuas palavras; para exprimir amargura, como querem
porque Farinata é soberbo , e despreza alguns, mas para exprimir assombro, ao
os vis aduladores. » ver Dante desenvolver a sua nobre li
Sejam tuas palavras manifestas, não nhagem, gloriando- se de descender do
ambiguas , nem duvidosas : porque, para antigo sangue romano. E por isto Fari
responder a herejes, é necessario ser nata, para humilhar o orgulho de Dante,
muito explicito, e circumspecto (Daniel diz : « Estes teus antepassados foram
lo ) . meus ferozes inimigos, de minha familia,
( 12) Guardommi un poco. Porque e do meu partido ; por essa razão os
olhou elle um pouco ? Para ver si co dispersei duas vezes : per duo fiate dis
nhecia Dante ; si era algum seu contem persi, como acrescentando : a primeira
poraneo notavel, e poi quasi sdegnoso. vez, que os dispersei foi em 1248, quan
E porque se mostra elle de aspecto ira do expelli de Florença todos os Guel
cundo ? Mostra -se de aspecto iracundo, phos, entre os quaes teu avô Caccia
porque pelas feições do rosto de Dante guida : a segunda, quando os desbaratei
suspeitou, que fosse filho de paes, seus co em Monte Aperti, deixando elles no cam
nhecidos, e inimigos politicos ; mas para po da batalha 2500 cadaveres.
certificar- se, pergunta -lhe em tom arro ( 16) S’ ei fur cacciati, ei tornar d '
gante quem foram seus antepassados ? ogni parte. Respondeu Dante ao pé da
( 13 ) Io, ch' era d'obedir disideroso. lettra : Si os meus maiores foram com
Porque estava Dante desejoso de obe seus alliados Guelphos expulsos de Flo
decer a Farinata ? Porque sabia que, rença por ti, elles voltaram de todas as
declarando- lhe quem foram os seus an partes, uma, e outra vez : a primeira em
tepassados era lembrar- lhe pessoas pou 1251 , em consequencia da completa
co sympathicas, contra as quaes rompe derrota dos vossos Gibellinos em Figli
ria em palavras acerbas, e n'esse caso ne : a segunda, pelo desbarate , e morte
Dante aproveitaria a opportunidade , para do rei Manfredo em 1266. Mas os vossos
dar -lhe uma resposta categorica, se correligionarios não aprenderam a arte
gundo a recommendação de Virgilio. de voltar á patria, porque ainda estão
( 14) Non gliel celai, ma tutto gliel' dispersos. Ma ia ostri non appreser ben
apersi. Como si Dante dissesse : « Não quell' arte.
lhe occultei nada, disse -lhe abertamente ( 17) Todo o dialogo havido entre o
quem foram seus antepassados». Dante Poeta, e Cavalcante Cavalcanti , compre
declarou francamente a Farinata, que os hendido entre o verso 52, e o verso 71 ,
seus antepassados foram os Allighieris, já reproduzido na introducção. Seria
honrados cidadãos de Florença , nas ocioso repetir aqui as explicações.
240 O INFERNO

( 18 ) Supin ricadde, e più non parve supposta descida de Dante ao Inferno,


fuora. Como si dissesse : « Cavalcante, e da prophecia de Farinata, ao fim de
vendo que eu me demorava em respon junho de 1304, data da rotura das ne
der, tornou a caír de resupino dentro do gociações, dos dous partidos ; por onde
sepulchro, e não appareceu mais. » Caiu se vê a precisão com que disse Farinata
de peito para cima, como estava d'antes, que, dentro do espaço de cincoenta
e não se fez mais visivel. Com isto quer mezes, Dante havia de saber quanto
significar Allighieri, que o soberbo cáe era difficil aprender a arte de voltar á
para traz, e não de bruços ; porque cair patria ; isto é, que, exiliado pelos seus
de costas é proprio do soberbo, que proprios amigos Guelphos, nunca mais
tanto se exalta, e estufa o peito para reentraria em Florença !
diante, em ar de arrogancia, que vem a ( 22 ) E se tu mai nel dolce mondo reg .
cair de resupino. Em summa, o cair para ge. Se não é aqui formula condicional,
traz é signal de soberba, como o cair mas deprecativa, do latim sic, que vale
de bruços é signal de humildade ( Butti). così no italiano. Encontral - a -hemos mais
( 19 ) Ma quell' altro magnanimo. Isto vezes na Divina Comedia, como em os
é, Farinata, que havia feito parar Dante, mais antigos escriptores. A particula
não mudou o aspecto, non mutò aspetto, mai não é aqui negativa, não é o nun
não moveu o pescoço, nè mosse collo, quam dos latinos, mas o unquam, que
nem se voltou para o lado , para onde quer dizer alguma vez . A palavra regge,
os dous dialogavam , nè piegò sua costa : isto é, rieggia, rieda é derivada do an
conservou - se immovel. Eis os tres cara tigo reggere, rejere isto é, riedere, como
cteristicos modos do magnanimo, ainda feggiere, fregere,etc., que a final quer di
mesmo quando ouve cousas, que lhe zer voltar . É egualmente um modo de
desagradam . Mas é de saber que no precativo imitado dos latinos . Sic te diva
conceito de Dante esta magnanimidade potens Cypri sic tua Cyrneas fugiant
em Farinata não era virtude, era vicio, examina taxos ( Fraticelli).
era soberba ; porque no Inferno não Farinata chama doce este mundo, em
pode haver virtude (Butti). comparação ao mundo acerbo, em que
( 10) Ciò mi tormenta più che questo elle vive, atormentado n'um leito de
letto. Como si dissesse : « Si os meus fogo.
Gibellinos têem aprendido mal a arte de De todas as leis, que se faziam em
voltar á patria, isso me atormenta mais Florença, no sentido de favorecer os Gi
do que este leito de fogo .» Eis- aqui mais bellinos expulsos da patria, eram exce
uma prova da soberba indomita de Fa ptuados os Ubertis, parentes de Farinata ;
rinata ! Suavisaria a dor, que padece no mas quando essas leis eram em sentido
meio das chammas, com o prazer de vexatorio , os Ubertis eram postos na
ver os seus Gibellinos voltarem uma, e cabeça do rol dos mais culpados. A for
muitas vezes a Florença, de mão arma mula geral era : « Salvem - se todos, me
da, para reduzil- a a cinzas, ainda mesmo nos os Ubertis » ( Butti) .
que fossem sempre rechaçados, com per ( 23 ) Tale orazion fa far nel nostro
das de muitas vidas de parte a parte! Isto tempio. Querendo dizer : « O estrago, e
demonstra a obstinação com que os con grande carnificina , que nos Guelphos
demnados desejam no Inferno os mesmos florentinos fizeram os Gibellinos capita
males que desejavam n'esta vida ( Butti ) . neados por vós em Monte Aperti (car
( 21 ) La faccia della donna che qui nificina tão horrivel, que tingiu de san
regge. A Senhora é a Lua, que no In gue as aguas do rio Arbia) foram a cau
ferno se chama Proserpina, m' ulher de sa de se estabelecerem em nosso templo
Plutão . leis severas contra vossa familia» ,
Cincoenta mezes exactamente decor Orazion. Em um governo republica
reram, desde 7 de abril de 1300, data da no, como era o de Florença, as leis
COMMENTARIOS AO CANTO X 241

eram precedidas de arengas oratorias cidade, que elles jamais poderão gozar, é
pro ou contra . A essas arengas chama duplicar- se-lhes o supplicio (Butti).
Dante oração, como os discursos de Foi com effeito n'este intuito que
Cicero no forum romano chamam - se Dante fez votos pelo repouso , e paz dos
Orações. parentes de Farinata, o qual, que pouco
Nel nostro tempio. Antigamente as antes se queixava amargamente contra
leis faziam -se nas egrejas pela multidão as leis crueis, que pesavam sobre seus
do povo (Butti). parentes, não podia agora deixar de
Póde ser tambem, que Dante chame accolher os votos de Dante pelo socego
templo ao edificio, em que se faziam as d'elles, e isto lhe servia de aggravo ao
leis, ao uso dos Romanos, que chama tormento no Inferno. Aos infelizes do
vam templo á curia. Com effeito, Cicero mundo é contra toda a caridade christā
diz : Curia est sedes et templum publici augmentar-lhes a afflicção (afflictis non
consilii. addenda est afflictio ), mas aos conde
(24) Senza cagion sarei con gli altri mnados no Inferno é caridade augmen
mosso. Como si Farinata dissesse : « Não tar-se-lhes a pena, como o ensina o
fui eu o unico florentino, que fez esse mesmo Dante por bócca de Virgilio.
estrago, e carnificina nos Guelphos em ( 26) ... Se ben odo. Querendo Dante
Monte Aperti ; outros florentinos lá es. dizer : « Segundo o que de vós outros
tavam commigo ; no emtanto Florença condemnados ouço, parece que anteve
não se mostra cruel contra as familias, des as cousas futuras, mas ignorais as
como se mostra contra a minha ; nem é presentes ; porquanto, Ciacco, quando
menos certo, que si eu, e elles demos me appareceu no circulo dos gulosos,
essa batalha contra a patria, é porque predisse o futuro de Florença ; agora
tiveramos para isso boa razão » . aqui observo que nem Cavalcante sabe
(25) Deh se riposi mai vostra semen que seu filho ainda vive, nem vós sabeis
za. Assim o Céo dê uma vez respouso a si exerço auctoridade em Florença;
vossa descendencia ( Venturi). Ah Fari sendo eu ha poucos dias um dos Priores
nata, possa um dia resultar da vossa d'aquella cidade, e que melhor, que
prophecia a meu respeito a paz, e o ninguem, vos podia dar a razão das
repouso da vossa familia, e n’este espe leis contra os vossos parentes .
rança, dissolve -me a seguinte duvida, (27) Noi veggiam , come qui c'ha
isto é : « Eu vos rogo pelo repouso dos mala luce. Isto é, vemos como o pres
vossos parentes, que me tireis d'esta du byta, que vê melhor as cousas de lon
vida, que me tumultua na cabeça». Aqui ge, que as de perto ; e esta mesma de
occorre uma objecção textual, a saber : feituosa previdencia é uma graça es
si os condemnados desejam o bem estar pecial, que, para maior supplicio nos
dos seus parentes, que vivem no mundo? so, nos é concedida por Deus, a fim
« Parece que sim, visto que Dante assim de que possâmos mais ou menos conhe
o mostra entender ; mas contra o que cer, que o nosso futuro será eternamente
geralmente se crê; visto como os con tormentoso .
demnados não podem querer senão o Em verdade Sancto Thomaz de Aqui
mal; por conseguinte não podem que no ensina, que os conhecimentos adqui
rer a felicidade de seus proprios paren ridos pelos condemnados não lhes ser
tes». A isto porém se responde que, vem, senão de maior tormento ( Sum .
não obstante o Mestre das Sentenças Th. Supl., 98). A doutrina pois de Dante,
deixasse indecisa a questão, Sancto isto é, que os condemnados, sabendo
Agostinho estabelece que as almas con tes, não é uma simples ficção poetica;
demnadas, para maior tormento d'ellas, é uma verdade baseada no ensino da
podem desejar a felicidade dos vivos ; mais ou menos as cousas futuras, por
porque desejar para outros aquella feli permissão de Deus, ignoram as presen
16
242 O INFERNO

Egreja. Alem de outra provas temos reu em poucos minutos, e, ao expirar,


esta lembrada por Tomaseo : « É opi. soltou tão forte grito, que foi ouvido
nião commum dos padres da Egreja, que fóra pelo imperador, e seus corte
o diabo previsse a vinda de Christo, mas zãos, que assistiam ao acto atroz . Tira
não soube ao certo , depois do seu do o cadaver do tonel, disse o mon
nascimento, si elle era o Redemptor da stro imperial: « Eis- aqui ! vós dizeis, que
humanidade» . Tinha suspeitas, em vista a alma sobrevive á morte do corpo; mas
dos actos maravilhosos da vida de Chris por onde saiu a alma d'este criminoso ?
to, que elle era o Filho de Deus, e por Responderam os circumstantes : « E por
quando o Redemptor lhe permittiu , onde saiu o grito, que vós, e nós ouvi
que o tentasse no deserto, disse : « Si tu mos ?». Enfiado com a resposta, não dei
és o Filho de Deus, converte em pão es xou por isso de permanecer no seu he
tas pedras». E verdade que consta, do diondo epicurismo.» E’ICardinale. Disse
Evangelho tambem que um demonio ex Farinata que tambem jazia com elle o
pellido de um corpo por Jesus Christo, Cardeal, sem declarar -lhe o nome. E
gritou : « Tu és o Filho de Deus». Mas porque ? Porque o Cardeal dos Ubal
não disse isto por sciencia certa, mas por dinos era por antonomasia chamado o
illação tirada das cousas extraordinarias Cardeal.» Esse Cardeal Octaviano, diz
que via Jesus Christo fazer com frequen Butti, foi socio de ambos no gibellinismo,
cia, e por toda a parte ; o que é confir e
no epicurismo. Alguns momentos
mado por aquelle celebre texto : Diabo antes de morrer proferiu estas palavras
lus licèt totius caput mendacii, multa ta execrandas : « Si a alma existe, eu a perdi
men, conjiciendo de his præcipue frequen por amor dos Gibellinos ! » Eram Car
ter evenerunt, prenoscit (Bollandistas, i deaes d'este jaez, que Dante metteu no
1050). Que infinitamente diversa não é seu Inferno !
a condição dos bemaventurados ! Estes ( 29 ) A quel parlar, che mi parea ni
conhecem o presente, e o futuro, diz mico . Querendo dizer : Quando voltei
Sancto Agostinho : Quid est quod non para Virgilio, andando meditava n'aquel
videant, qui videntem omnia vident? Que las palavras de Farinata. Cincoenta me
é que pode escapar ao conhecimento zes não se passarão, etc., as quaes pare
dos que têem ante os olhos Aquelle, que ciam envolver um triste annuncio para
vê todas as cousas ? O mesmo Sancto mim, mas eu não atinava qual elle fosse;
Doutor diz, que aos espiritos immundos porque Farinata como que falaya de
é concedido saberem alguma cousa de um exilado, e eu não era tal.
verdade das cousas temporaes. Já S. Pedro ( 30 ) E ora attendi qui: e drizzo 'l dito.
havia dito : Orai, e vigiai; porque o diabo, E agora attende ao que te vou dizer, e
vosso adversario, á similhança do leáo levantou o dedo, como fazem aquelles,
rugidor, anda ao redor de vós, procurando que querem imprimir as proprias pala
a quem devorar. O diabo não penetra nos vras na mente do ouvinte . Poder-se-ha
nossos pensamentos; mas os conhece talvez explicar o gesto de Virgilio d'este
pelos nossos actos exteriores ; porque o modo : Levantou o dedo para cima , como
diabo, como diz Dante, sabe a arte de quem apontava para o Céo, onde es
fazer syllogismos . tava Beatriz, a respeito da qual passa a
( 28) Qua entro è lo secondo Frederico. falar immediatamente ( Bianchi ).
Frederico II não era simplesmente um ( 31 ) Di quella, il cui bell'occhio tutto
desbragado epicurista , era tambem um vede. Como si dissesse : Quando estive
barbaro cruel. D'elle refere Butti o facto res diante dos meigos olhos de Beatriz,
seguinte : « Condemnando Frederico II isto é, da sciencia divina, a quem nada
um criminoso á pena ultima, ordenou é occulto, saberás todas as vicissitudes
que fosse elle mettido n'um tonel bem futuras da tua vida ; mas agora é inutil
aferrolhado . O misero padecente mor que penses n'isto.
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INTRODUCÇÃO AO CANTO XI

Chegados os dous Poetas ao despenhadeiro do segundo circulo de Dite, septimo


do Inferno, são obrigados a retardar um pouco a descida para se acostumarem á ex
halação horrivel, que evapora do fundo do circulo, a que devem descer. Procuram
abrigar-se por traz da coberta de um grande sepulchro, que está do lado es
querdo, que é o dos hereges, e Dante por uma inscripção, que lê, conhece que
aquelle é o sepulchro do Papa Anastacio II , desviado pelo heresiarcha Photino do
caminho da verdadeira doutrina catholica. Não devo passar a diante, sem primeiro
pôr em pratos limpos este estupendo equivoco, que tem vindo de seculo em seculo
nodoando as paginas da Divina Comedia , sem que até hoje nenhum dos commen
tadores, aliás eminentes catholicos, na sua generalidade, tenha querido ou podido
desfazer cabalmente ; sendo por todos encarado sob prismas diversos. Dizem uns :
« O Papa Anastacio II foi mettido por Dante entre os hereges, porque, si como chefe
supremo da Egreja condemnou publicamente a heresia de Photino, como homem
particular a abraçou». Dizem outros : « É falso que o Papa Anastacio II tenha abra
çado a heresia de Photino, que elle condemnára ; somente é verdade que o bom ,
e caridoso Pontifice tentou chamar outra vez ao gremio da Egreja o herege, de
pois de condemnado o seu erro, como se prova pela correspondeneia particular
trocada entre ambos ». Dizem ainda outros : « Dante confundiu Anastacio Papa com
Anastacio Imperador, que foi exactamente o que seguiu a pestifera heresia de Pho
tino» . Dizem finalmente outros : « Não foi Anastacio II que Dante metteu no Infer
no, foi sim Anastacio IV » .
Analysemos rapidamente todas estas sentenças, aliás tão pouco dignas de espiri
tos illustrados ! Quanto a ter Anastacio II abraçado, como homem , a heresia de Pho
tino, depois de havel - a condemnado, como chefe da Egreja, é absurdo de taes di
mensões, que, para reduzil-o a pó, não ha meio mais peremptorio, do que entregal- o
ao braço secular do senso commum, que é o maximo vingador dos maximos absur
dos ! Quanto a ter procurado, por cartas particulares, chamar Photino ao gremio
da Egreja, não é absurdo, é cousa peior que absurdo : é um anachronismo tão ver
gonhoso, quanto repugnante ! Vejamos, sem rodeios : Anastacio II morreu em 498,
e Photino em 376, isto é, 122 annos antes de Anastacio II. Mirabile dictu !
Desenrolemos o novello até o ultimo fio .
Anastacio II, eleito Papa em 28 de novembro de 496, escreveu ao Imperador
Anastacio em favor da religião Catholica, e a Clodoveo, felicitando - o pela sua con
versão, e não consta ter elle condemnado a heresia de Photino, pela simples razão
de ter sido elle já condemnado antes por um concilio, como se vae ver.
Photino, heresiarcha do seculo iv, havia sido diacono, e discipulo de Marcello
244 O INFERNO

Ancirano, e com applauso elevado á séde de Sirmico . Era homem de grande enge
nho, saber, e eloquencia; predicados que realçava por costumes irreprehensiveis.
No correr do tempo, caiu em erros detestaveis; tornando - se sectario obstinado de
Acacio, bispo heretico. Sustentava Photino com este herege que Jesus Christo era
puro homem , e que pelos meritos de sua boa vida se tornou filho de Deus. Em con
sequencia d'esses monstruosos erros, foi Photino condemnado, e deposto por um
Concilio, celebrado em Sirmico, no anno de 351 , e logo depois exilado pelo Impera
dor Constancio. Juliano Apostata o restituiu á patria, escrevendo - lhe uma carta apo
logetica. Foi porém de novo exilado por Valentiniano, e morreu na Galacia no re
ferido anno de 376 , sem jamais ter vindo a Roma !
Agora perguntarei, em vista do que fica rapidamente exposto, si é possivel que
o papa Anastacio II podesse ter feito tudo o que se lhe attribue, principalmente o
ter mantido correspondencia particular com um defuncto de 122 annos de antece
dencia !
Mas cheguemos depressa ao fim da urdidura. Setecentos annos depois, tão adul
terados e confundidos corriam os factos, que Graciano incluiu na sua collecção de
Decretaes, sem duvida de boa fé, a seguinte novidade : « Anastasius secundus, natio
ne Romanus, fuit temporibus Theodorici regis. Eodem tempore multi clerici, et
Presbyteri se a communione ipsius abgerunt, eo quod communicasset, sine concilio
Episcoporum , et Presbyterorum et clerici cunctæ Ecclesiæ catholicæ , diacono Thes
salonicensi, nomine Photino, qui communicaverat Acaccio : et quia voluit occulte revo
care Acacium et non potuit, nutu divino percussus est ... Ideo ab Ecclesia Romana
repudiatur.» (Decret. Gratiani, p . dist. xix , 8, e g. )
Antes de tudo cumpre advertir que muitas das Decretaes colligidas por Gracia
no foram reprovadas, como falsas, pela Egreja, entre as quaes exactamente esta, de
que é extrahido o trecho citado, nem o contrario devia ser; porquanto n'este tre
cho não ha somente o anachronismo intoleravel, qual o de figurar Anastacio II coe
taneo dos dous heresiarchas Acacio, e Photino; ha tambem a inaudita asserção de
apresentar o clero de Roma em rebellião aberta contra o chefe supremo da chris
tandade, facto nunca visto !
O sabio J. B. Giuliani, explicando este passo da Divina Comedia, reproduz o
referido trecho de Graciano, dizendo : « Tudo isto é falso ; porque, por testemunho
authentico de Nicephoro, de Evagirio, e sobretudo de Anastacio bibliothecario,
Acacio morreu no Pontificado de Felix II, a quem succedeu Gelasio, e a este
Anastacio II, o qual, escrevendo ao Imperador Anastacio, fala -lhe de Acacio como
já fallecido, e junctamente o Papa Felix III . Ora, como poderia Anastacio II tractar
de restituir as honras ecclesiasticas ao heretico Acacio , ha tanto tempo fallecido ?
Mas dizem alguns que Anastacio não tractára de reintegral-o nas honras, mas
sómente de inserir de novo o seu nome nos livros da Egreja , e que por isso
as palavras de Graciano não deveriam ser olhadas como falsas. Por este estra
nho presupposto, as palavras de Graciano foram por longo tempo tidas por ver
dadeiras em puro damno da reputação do innocente Anastacio, que aliás todos sa
bemos que foi o mais conciliador, e zeloso de procurar o accordo entre a Egreja do
Oriente, e a do Occidente. Como quer que seja , não deve maravilhar, que Dante,
confiado na auctoridade de Graciano (que elle chama restaurador de um e outro co
digo, que tanto aprouve ao Céo (Par., x, 105 ) , mantivesse, e propagasse aquella
falsa opinião sobre Anastacio II. Demais, Dante não tinha que apurar a critica de
uma historia, tida, e havida no seu tempo como baseada em verdade provada».
Diz com razão Giuliani, que a falsa historia era tida por verdadeira nos tempos
de Dante ; e, para não accumular exemplos, baste dizer que Boccaccio, cuja illus
tração não precisa de encarecimentos, commentando o mencionado passo na Divi
INTRODUCÇÃO AO CANTO XI 245

na Comedia, cáe nos mesmos anachronismos, assim como Butti , e outros commen
tadores primitivos.
Outrosim : não foi Dante quem confundiu Anastacio Papa com Anastacio Impe
rador ; toda essa confusão de nomes nasceu dos commentadores, transviados por
Natal Alexandre ! Não menos falso é dizer que Dante se deixou illudir pela mal di
gerida Chronica de Fra Martinho de Polonia, como pensam alguns. Dante não fez,
senão seguir Graciano, nem desmentiu o seu caracter de verdadeiro catholico, fa
zendo figurar Anastacio II entre os hereges. Não foi Dante, que o metteu no Infer
no, nem tão pouco affirmou que elle lá estivesse ; disse simplesmente, que leu seu
nome n'uma inscripção posta na tampa de um sepulchro. Direi mesmo que Dante
não seria coherente, se não fizesse menção de Anastacio II ; porquanto , propondo
se metter no seu Inferno os hereges mais qualificados, e vendo nos Canones da
Egreja um Papa declarado herege, não podia, sem quebra da sua imparcialidade,
deixar de falar n'elle; mas ainda assim falou de modo, que indica toda a reserva ,
não fundamentando a sua condemnação, como fel- o por occasião de metter outros
Papas no Inferno. Accresce que, si Dante sustentou sempre com toda a energia a
infallibilidade do Papa nas definições de fé, e costumes, não sustentou, nem devia
sustentar, a impeccabilidade do Papa como homem ; e no caso presente não se
tracta de um Papa, que commettesse uma heresia, falando ex cathedra, mas de um
Papa arguido de ter, como homem particular, abraçado uma heresia, que impor
tava nada menos que a negação da divindade de Jesus Christo, cujo Vigario elle
era ! Portanto não podia descrer da fé do Papa, como chefe infallivel da Egreja , o
Poeta que estabeleceu a seguinte regra de salvação :

Avete il vechio e il nuovo Testamento,


E il Pastor della Chiesa, che vi guida:
Questo vi basti a vostro salvamento.

Finalmente , quem quizer ainda mais se convencer da calumnia atroz, que pesou
sobre a memoria do innocente Anastacio II, poderá ler o Cardeal Baronio, An.
497, e o Cardeal Bellarmino no tom. I de suas Controversias, liv. 4, de Romano
Pontifice, c. x. Poderá ler tambem o diligentissimo investigador Poggiali, que, segun
do Lombardi, assegura : « Que nenhum dos quatro Pontifices, que tiveram o nome de
Anastacio, foi contemporaneo de Photino, e muito menos infectado dos seus erros
hereticos» . Por conseguinte não foi tão pouco Anastacio IV que Dante metteu no
Inferno.
Reatando o fio da synthese do canto, direi que Dante n'este circulo se occu
pou não pouco dos atheus, e abstrahiu inteiramente dos hereges, dos quaes nada
diz, senão que viu o sepulchro de Anastacio Papa, e isso por uma mera casuali
dade. Esta reserva do Poeta, que é sempre explicito não menos com factos, que
com palavras , até mesmo com o silencio, não póde deixar de ter sua razão. Ora,
si reflectirmos que os quatro atheus por elle mencionados foram homens de enge
nho, e valor ; si reflectirmos ainda que Farinata de mais de mil atheus, que jaziam
com elle, não indicou senão o nome de Frederico II, e do Cardeal Octaviano , occul
tando o de todos os outros por não serem dignos de menção, comprehenderemos
facilmente, que Dante quer significar, que entre os hereges não podem existir pes
soas de engenho, de valor, e dignos de fama. Bem entendido : elle não fala d'aquel
les, que nascem na heresia, mas d'aquelles que, tendo nascido no seio da Religião
Catholica, dissentem em algum artigo de fé da Egreja Mãe, e estes certamente não
podem ser senão meias cabeças, isto é, mediocridades.
246 O INFERNO

Emquanto os dous Poetas esperam habituar o olfacto ao máo cheiro , Virgilio


instrue Dante acerca dos tres circulos infernaes, que devem percorrer, e explica
lhe a razão por que os luxuriosos, os glutões, os avaros, os prodigos, e os iracundos
são punidos fóra de Dite, e quanto má seja a usura.
N'este canto, do sexto terceto até o fim , Dante demonstra que cousa seja pro
priamente o seu Inferno. A tres origens capitaes reduzem-se os peccados : a incon
tinencia, a violencia, e a fraude : os incontinentes, quaes são os luxuriosos, os glu
tões, os avaros, os prodigos, os iracundos, e os mesmos negligentes, visto que por
serem menos criminosos, são punidos fóra da cidade de Dite . Na ultima, e na mais
profunda caverna do Inferno são punidos os fraudulentos, quaes são os rufiões, os
simoniacos, os adivinhos, os velhacos, os hypocritas, os ladrões, os politicos tre
dos, os semeadores de discordia, os falsificadores dos metaes, das pessoas, e da
verdade : depois os traidores dos parentes, da patria, da hospitalidade, e dos supe
riores. De envolta com os incontinentes, e os fraudulentos, são punidos os violentos
mais criminosos, que os incontinentes, e menos que os fraudulentos, e são de tres
especies : violentos contra o proximo, contra si mesmo, contra Deus, contra a Na
tureza, e arte. Eis aqui a materia do Inferno de Dante , ou a substancia do primeiro
Cantico : tudo mais é secundario em relação a isto.
Este canto é um d'aquelles, que parecem mais languidos, e tediosos a certos
criticos, que no oceano da Divina Comedia não descem ao fundo da doutrina; não
passam da superficie, á similhança de aves aquaticas, que colhem a espuma, porém
não as perolas ! Julgam que o mais epico, e moral dos Poemas não passa de um
acervo de invectivas, e vinganças politicas! Entretanto, quem considerar que n'este
canto se acha encerrada, como já disse, a materia do primeiro Cantico; quem refle
tir na propriedade, simplicidade, naturalidade, e elevação, com que Dante traduz
em verso a Ethica de Aristoteles, e a profundeza dos altos conceitos moraes, não
deixará de considerar este canto um dos mais bellos, e interessantes de todo sa

cro Poema .
CANTO XI

Chegados os dous Poetas á orla de um alto despenhadeiro, que está sobre o septimo circulo , param um pouco
atraz da coberta de um grande tumulo , que tem n'uma inscripção o nome do Papa Anastacio . Emquanto
ahi se demoram , Virgilio instrue Allighieri a respeito da condição dos outros circulos, que restam a visitar.
O primeiro, em ordem ao septimo, é dividido em tres gyros, cada um dos quaes encerra uma especie de
violentos: o segundo, isto é , o oitavo, é dividido em dez fossas, cada uma das quaes contém uma especie
de fraudulentos: o terceiro, isto é , o nono , é dividido em tres espheras, ou circulosinhos concentricos, cada
um dos quaes tem em si uma especie de traidores. Depois falam acerca dos incontinentes, e dos usurarios,
até que chegam ao ponto por onde descem ao fundo.

Chegamos a extremidade de um alto precipicio circular, (1) que era


cingido em torno por grandes fragmentos de pedras, e que demorava
sobre uma pilha dos mais crueis tormentos.
E ahi , por causa do horrivel cheiro, (2) que exhala o profundo
abysmo, fomos obrigados a pôr-nos atraz da tampa de um grande
tumulo, onde li uma inscripção , que dizia : « Guardo Anastacio Pa
ра , (3)
que por Photino foi desviado da boa doutrina » .
Convem , disse o Mestre, que desçamos um pouco de vagar, a fim
de que avezes o teu olfacto a este ar corrupto, e não tenhas depois
precisão de te resguardar.
E eu lhe disse : « Procura alguma compensação (4) de geito que o
tempo não passe inutilmente » , « Bem vês, respondeu , que penso exa
ctamente n'isto ) . (5)
« Filho meu , começou elle a dizer depois : Sob estes penhascos ha
tres circulosinhos, (6) que se vão gradualmente restringindo, como os
anteriores, que já deixaste.
« Todos estão cheios de espiritos maldictos : mas, para que te baste
sómente vêl-os, para conhecel-os , escuta desde já por que culpa , e
com que penas são punidos n’este carcere .
«Toda a malicia, detestada pelo Céo, ( ) é sempre uma injuria ; e
toda a injuria offende a outrem ou pelo emprego da força, ou da
fraude.
248 O INFERNO

« Mas porque a fraude é culpa propria do homem, (8) mais desagra


da a Deus ; e eis porque estão os fraudulentos no ultimo dos tres
circulosinhos, e maior dor os assalta, (9)
« O primeiro dos tres está totalmente cheio dos violentos ; mas,
porque se pode usar de violencia contra tres qualidades de pessoas,
é elle construido, e dividido em tres gyros . ( 10)
« Póde alguem usar de violencia contra Deus, contra si, e contra o
proximo ; (11) digo contra as suas pessoas, e contra os seus bens, como
passarei a demonstrar-te com razões evidentes .
« Faz-se violencia ao proximo em sua pessoa matando -o , ou ferin
do-o gravemente : faz- se violencia em seus haveres, arruinando-os, de
vastando-os, e lhes impondo alcavalas damnosas .
« Pelo que no primeiro gyro são atormentados , por turmas diversas,
e cada um segundo seus flagicios, todos os homicidas, todos os incen
diarios , todos os exactores iniquos .
« Faz violencia contra si quem se suicida, e delapida seus bens :
por isto é justo, que se arrependa inutilmente no segundo gyro quem
de moto proprio se priva do vosso mundo , assim como, quem dissi
pa em jogos , e prodigalidades a fortuna ; reduzindo-se depois a chorar
miserias, e privações lá onde devia passar dias fartos, e jucundos. (12)
« Póde- se fazer violencia a Deus , crendo- o com a mente, e negan
do-o no coração, (13) e blasphemando-o por injuria ; o que importa o
desprezar sua divina Natureza , e bondade .
« E por isso o terceiro , e menor gyro estigmatisa com o seu terri
vel sinete Sodoma , e Cahors , (14) como tambem os que blasphemam
a Deus com palavras . (15)
« Ora a fraude, de que toda a consciencia é mordida , ( 16) póde o
homem usar contra aquelle, que n'elle se fia, e contra aquelle, que
d'elle não se fia . (17)
a Esta segunda especie de fraude parece que rompe somente aquelle
vinculo de amor, que constitue a Natureza ; por isto n'este segundo
circulo estanceam , e penam os hypocritas, os lisongeiros, os bruxos,
os falsarios, os ladrões, os simoniacos, os rufiões, os traficantes, e
gente de egual sordidez .
« Mas pela primeira especie de fraude, com que o homem engana
a quem n'elle se fia, se esquece aquelle referido amor natural, e depois
aquell'outro , que se lhe ajuncta, do qual se gera uma confiança espe
cial . ( 18)
« Por esta razão no terceiro, e ultimo dos tres circulosinhos , onde
é o ponto do universo, e séde da cidade de Dite, é punido eterna
mente todo aquelle, que engana a quem n'elle se fia . » ( 19)
E eu disse a Virgilio: «Mestre, assás clara é a tua prelecção ;
CANTO XI 249

distingue perfeitamente os circulos d'este baratro, e os peccadores que


elle encerra , e pune .
« Mas dize-me : Aquelles do lodoso pantano, a quem o furacão
arrasta, e aquelles, a quem a chuva flagella, e aquelles, que se abal
roam injuriando- se ; porque não são punidos dentro da cidade inflam
mada , si Deus os tem em ira ? e si os não tem , porque são castigados
do modo, que viramos ? (20)
Respondeu -me : « Porque agora, mais que de costume, delira o teu
engenho ? Ou será que a tua attenção se preoccupa de outra cousa ?
« Não te recordas d'aquellas palavras precisas, com que a tua
Ethica tracta das tres disposições, que desagradam a Deus, que são a
Incontinencia, a Malicia, e a louca Bestialidade ? (21 )
« E de como demonstra , que a Incontinencia offende menos a Deus,
e menos censura merece, do que as outras duas ? Si tu considerares
bem esta doutrina da tua Ethica, e si consultares a tua memoria so
bre quem sejam aquelles, que nos circulos de cima padecem fóra da
cidade de fogo , (22) comprehenderás a razão por que são separados
d'estes reprobos, e porque a divina justiça, menos irritada contra elles,
os martella . )
Então exclamei a Virgilio : « Oh Sol de sapiencia, que illuminas a
todo o entendimento confuso ! Tu me satisfazes tanto, quando dissolves
as minhas duvidas, que o duvidar me é grato, (23) só pelo prazer de
ouvir as tuas sabias soluções ! mas agora volta um pouco ao ponto,
onde disseste, que a usura mais oftende a divina bondade, e me escla
reças esta nova duvida . »
« A Philosophia em mais de um logar, me disse Virgilio, demons
tra a quem a entende como a Natureza procede da Intelligencia divina,
e das leis por ella estabelecidas :
« E si consultares ainda com attenção os principios da tua Physica,
encontrarás após algumas paginas, que a arte humana segue quanto
póde a Natureza, como o discipulo ao mestre, de modo que a vossa
arte vem a ser quasi neta de Deus. (24)
« Ora , si tu remontares a tua memoria ao principio do Genesis,
saberás que é da Natureza, e da arte que o homem deve tirar seus
meios de vida, e de aperfeiçoamento. (25)
« E porque o usurario toma caminho diverso, (26) despreza a Natu
reza em si mesma , e a arte sua companheira ; pondo na industria dos
outros a mira da sua esperança .
« Segue-me agora, que me apraz que andemos : (27) porque a con
stellação dos Peixes vem assomando no horisonte, e o Carro jaz todo
sobre o Cauro, e o precipicio, por onde havemos de descer, não é aqui ,
é alem .
COMMENTARIOS AO CANTO XI

( 1 ) Venimmo sopra più crudele stipa. Virgilio, que não deixe sem alguma com
Como si dissesse : « chegamos ao extre pensação o tempo, que perdiam em fami
mo confim da alta ribanceira do abysmo, liarisar o olfacto com a fetidae vaporação.
a que deviamos descer: isto é, chegá Quer significar com isto que a vida é bre
mos aquella parte, que no circulo dos ve, e o tempo é precioso . Já o Apostolo
luxuriosos se chama ruina , que é aquelle havia recommendado que , emquanto
vão, aquella voragem, que se abre no Deus nos permitte o goso do tempo,
meio de todos os circulos, e por onde devemos empregal-o em cousas uteis, e
se desce ao circulo seguinte. Esta ri boas. Dum tempus habemus, operemur
banceira, ou borda era de forma circu bonum . De todas as cousas, que possui
lar : nós nos achavamos sobre uma caver mos na presente vida , só o tempo é
na, onde os peccadores agglomerados, nosso, no dizer de Seneca , e todas
amontoados, como sardinhas em tigela, as outras pertencem á fortuna, e por
mais que em outra parte padecemo isso devemos ter todo o cuidado em não
tormento mais cruel por causa da com perdel-o.
pressão violenta. ( 5) Vedi che a ciò penso . Penso exa
Entende-se por stipa um acervo de ctamente n'isto, respondeu -lhe Virgilio.
cousas accumuladas umas sobre as ou Estas palavras fazem-nos comprehender
tras, como fazem os nautas quando es que o homem prudente mantem a pre
tivam uma embarcação, pondo-lhe o cisa circumspecção a respeito das cousas,
lastro. Chama-lhe o Poeta più crudele que deve fazer, sem que seja necessario
stipa, porque sendo ahi punidos os mais advertil-o. A prova de que Virgilio já
graves peccados, mais crueis são as estava disposto a não perder tempo é o
penas : aqui toma-se o continente pelo que se segue (Boccaccio ).
conteúdo. O conteúdo são os peccado (6) .. son tre cerchietti. E porque diz
res, que estão empilhados na caverna. circulosinhos ? Porque á proporção que
(2) Del pu770... Era a exhalação pu íam descendo para o fundo do Inferno,
trida de todos os circulos inferiores. os circulos íam- se estreitandó. Só falta
Para produzir nausea bastava a exhala vam aos dous Poetas 32 milhas para
ção do septimo circulo, que era o de chegarem ao centro da terra , que é o
sangue fervente, que é exactamente o termo do Inferno (Bennassutti) .
immediato . ( 7) D'ogni malizia, ch ' odio in cielo
( 3 ) Anastasio Papa guardo. Este triste acquista. Isto é, de toda a malicia pro
novello já ficou victoriosamente desen priamente peccaminosa, que se differen
rolado n'outro logar. ça d'aquella, que melhor se diria pru.
(4) Alcun compenso. Pede Dante a dente artificio, de que os proprios san
252 O INFERNO

ctos usaram em caso de necessidade Quer dizer que, si o prodigo, emquanto


(Lombardi). viveu na terra , tivesse regulado bem as
A malicia propriamente peccaminosa riquezas, que recebeu da munificencia
é aquella, que nasce da perversidade divina, teria gozado uma vida commoda,
do pensamento, e do desejo, e esta é a aprazivel, no remanso da alegria .
peior especie, porque d'ella nascem todos ( 13 ) Col cor negando...Nega Deus no
os males ; por isto Dante faz distincção coração o atheu : blasphema- o delibe
quando diz : «Toda malicia, que chama radamente quem ultraja os seus divinos
contra si o odio do Céo » (odio in cielo attributos, o que quer dizer, fazer injuria
acquista ). Diz odio, porque as operações directa contra Deus. Faz injuria indire
practicas, que se seguem da malicia, são cta a Deus quem despreza a Natureza,
más, e por conseguinte Deus as tem em a sua bondade , os seus productos, que,
odio, isto é, pelos peccados da malicia, mediante a nossa industria, nos minis
a alma perde a graça de Deus : perder a tram todos os meios necessarios á vida .
graça de Deus é incorrer na sua ira. Si ( 14) Del segno suo e Sodoma e Caor
a alma persiste impenitente , a ira de sa. Como si dissesse : Deus estigmatisa
Deus converte -se em odio, e este odio com o sello (sugella ) da sua eterna re
manifesta - se na obcecação, no endureci provação Sodoma, famosa cidade da
mento da alma , que a conduzirá aos ex Pentapolis, por causa do infame vicio
cessivos tormentos eternos ( Boccaccio ). com que seus cidadãos deshonraram,
Odio in ciel acquista. Querendo dizer : injuriaram , a Natureza ; e porque foram
Toda malicia humana detestada por no mundo abrazados pelas chammas da
Deus acaba na injuria , na injustiça. Esta mais desnatural concupiscencia , são no
divisão da injuria ( adverte mui bem Inferno tambem flagellados pelas cham
Daniello) foi feita por Marco Tullio mas do fogo eterno, como mesmo em
no primeiro livro de Officiis, dizendo: vida foram reduzidos a cinzas pelo
Cum autem duobus modis, id est aut vi fogo chovido do Céo. Não menos esti
aut fraude fiat injuria: fraus quasi vul gmatisa Deus com o sello da sua repro
peculæ, vis leonis videtur: utrumque alie vação Cahors, cidade da Guienna em
nissimum ab homine est, sed fraus odio França, cujos cidadãos de tal modo en
digna majore, etc. tregaram - se á usura n'estes tempos
( 8) ... frode è dell'uom propriomale. ( Dante é quem fala ), que Cahorsense e
A fraude é culpa propria do homem ; mas Usurario se tornaram synonymos : e
não consiste ( como a violencia ) no abu aquelles, que desprezam Deus em seu
so de forças, que tem communs com os coração, e falam com o coração, isto é,
outros animaes, mas no abuso do enten falam de Deus como sentem de Deus,
dimento, e da razão, dote seu proprio são blasphemadores .
( Venturi ). Com effeito, diz Bianchi, no tem
( 9) Più dolor gli assale. Sendo a frau po de Dante havia em Cahors muitos
de maior peccado que a violencia, por usurarios. De um decreto do rei Filippe
que é o abuso da razão, por isto requer o Audaz vê-se que o nome de Cahorsino
maior tormento . se tornava synonymo de usurario : con
( 10) In tre gironi. O septimo circulo tra usurarios (diz o decreto ) qui vulga
é dividido em tres giros. Este septimo riter Caorcini dicuntur.
circulo é o primeiro dos tres circulosi ( 15 ) ...col cor favella . Ácerca d'esta
nhos mencionados. expressão, que Dante repete ainda em
( 11 ) A Dio, a sè, al prossimo... É cinco versos mais abaixo, alguns com
maior peccado fazer violencia a Deus, mentadores nada dizem , e outros mal a
menor fazer a si, e menor ainda fazel- a entendem. Landino, Vellutello, e Ventu
ao proximo. ri opinam que Dante não ajunta col
( 12 ) ... là dov'esser dee giocondo. cor, senão para excluir aquelles, que
COMMENTARIOS AO CANTO XI 253

blasphemam só com a bócca. Enganam consciencia, para distinguil-a da fraude


se : blasphemar Deus é attribuir-lhe não licita , como seriam os estratagemas mi
só cousas, que são indignas da sua divi litares na guerra justa ( Bennassutti).
na natureza, como negar -lhe outras que ( 17) Può l'uomo usare in coluiche si fida .
são essencialmente suas, como a bon Enganar quem não se fia no fraudulento,
dade, a justiça, a misericordia , e a pro é somente esquecer o amor natural , pois
videncia. Aquelles portanto que blas que por amor natural deve o homem
phemam Deus com o coração, e com a ser sincero com o seu proximo, ainda
bocca, como hereges manifestos, Dante mesmo que este não tenha motivo para
os colloca entre os hereges, postos por confiar: por isso no segundo circulo es
elle no sexto circulo ; e n'este mais bai tanceiam, e penam os hypocritas, os li
xo quer antes collocar entre os malicio songeiros, etc.
sos aquelles, que por humanos respei ( 18 ) Di che la fede spezial si cria .
tos, ou para obter alguma vantagem , ou O amor que gera uma confiança es
para occultar algum damno, cobrem pecial é o amor da familia, da patria ,
occultamente a sua perversa crença etc.

com apparencias christás. Isto pois quer ( 19 ) Qualunque trade, in eterno è con
Dante significar com o col cor negan sunto . Vê-se por aqui, quem practica, ou
do, etc. no presente verso, e com o col emprega a fraude contra a pessoa, que
cor favella no verso 51 ; aliás a quem n'elle confia, vae penar esse delicto no
collocaria entre os maliciosos ? sendo menor circulo, isto é, no mais profundo,
antes de genuidade que tudo que tem e estreito dos circulos infernaes, e por
na bocca, tenha tambem no coração isso em maior tormento.
( Lombardi). ( 20) Ma dimmi: quei della palude pin
( 16) La frode, ond' ogni concienza è gue. A pergunta é esta : « Mas dize -me:
morsa . A fraude de que toda a con Porque os luxuriosos, os glutões, os
ciencia é mordida, segundo aquillo de avaros, e prodigos não são punidos
Cicero : Sua quemque fraus,et suus terror dentro da cidade de Dite, si Deus os
maxime vexat : suum quemque scelus tem em ira ? E si os não tem em ira,
agitat ( Pro Rosc . ) . Landino, Vellutello, por que razão são punidos de maneira
e Venturi em parte, suppondo que a tão cruel, como vimos ? Explicarei me
fraude pode ser tomada em bom , e em lhor a minha duvida : Dentro da cidade
máo sentido, dizem que Dante ajuntou são punidos os sodomitas, mas não são
á fraude as palavras ond ' ogni concien elles luxuriosos ? São punidos aquelles ,
za è morsa , para denotar que fala da que delapidam seus bens, mas não
fraude perversa, e peccaminosa. Mas prodigos ? E quantos não delapidam
quando tambem fosse o nome de frode seus bens por causa da gula, e da luxu
de tal indifferença, falando aqui Dante ria ? Porque pois não são aqui punidos ?
da fraude, como d'aquella, que já acima Ou porque estes delapidadores de seus
indicou pelo segundo injurioso fim da bens, e estes sodomistas não são punidos
malicia, odiada do Céo, seria superflua fóra da cidade na lagoa pingue ou la
esta nova significação ( Lombardi ). macenta ? »
La frode, etc. A fraude, que deixa ( 21 ) Non ti rimembra ...Como si
sempre remorso na consciencia do frau dissesse : « Não te recordas d'aquellas
dulento etc. Ou : a fraude de que ge palavras com as quaes a Ethica de
ralmente toda a consciencia tem al Aristoteles (que chamo tua porque a
guma cousa de que se exprobrar, sen tens estudado tanto , que a sabes de cór,
do o peccado proprio do homem , e sendo como si fôra obra tua) tracta extensa
proverbio do Psalmista : omnis homo mente das tres disposições do cora
mendax ( Bianchi ). ção humano, que desagradam a Deus,
La frode. A fraude que grava toda a quaes são : a incontinencia, a malicia
254 O INFERN
O

ou fraude, a bestialidade ou violencia ? e pois o Poeta diz quasi pela razão de


como tambem demonstra que a inconti que, propriamente não se pode dizer
nencia offende menos a Deus, e merece ser a arte neta de Deus, senão figurada
menos reproche que as outras ? Não tens mente, até porque, participando a arte,
por ventura idéa precisa d'estas tres dis por maior perfeição a que ella póde
posições ? Incontinencia é ultrapassar o chegar, dos defeitos inherentes a todas
limite : malicia ou fraude é o abuso da as obras do homem , seria pouca reve
razão : bestialidade ou violencia é imi rencia chamar com toda a propriedade
tar os animaes irracionaes, isto é, em a arte neta de Deus, que é a perfeição
pregar a força, a ferocidade contra ou absoluta (Boccaccio ): Ars imitatur natu
trem , sem nenhum respeito á razão. ram in quantum potest. A arte, para ser
(22 ) Che su di fuor sostengon peniten verdadeira arte, deve imitar a Natureza
za. Querendo dizer : si consultares tua o mais que é possivel ( Bennassutti).
memoria sobre quem sejam aquelles ( 25 ) Prender sua vita , ed avanzar la
que padecem fóra da cidade das dores, gente. Como si dissesse : Recorda-te das
isto é, os luxuriosos, glutões, avaros, primeiras palavras do Genesis, que enten
prodigos, iracundos, etc., comprehende derás que o homem deve procurar os
rás a razão por que estão separados meios de subsistencia , e de progresso,
d'estes reprobos, e porque a divina isto é, melhorar a sua condição pessoal,
Justiça offendida d'elles os atormenta ; aperfeiçoar a sociedade, nas duas gran
mas offendida menos d'elles do que des fontes, a Natureza, e arte, isto é, na
d'estes, os castiga menos que a estes ; agricultura, e na industria ; porque Deus

-
porque o peccado d'aquelles, que sof disse ao homem que elle comeria o pão
frem fóra da cidade, consiste em have com o seu suor. Antes do peccado a Natu
rem ultrapassado a meta nos prazeres, reza offerecia ao homem innocente seus
nas despezas, na ira : em summa, é pec fructos, que para isso foi elle posto no
cado de incontinencia. Ao contrario , Eden, a fim de cultivar aquelle ameno
aquelles, que padecem dentro da cida jardim ; mas, delinquindo, a Natureza só
de, não ultrapassam sómente a meta , lhe não bastava, era preciso recorrer á
mas fizeram mal ao proximo, injuria a arte, á industria, para viver: In labore
Deus, e á Natureza . vultus tui vesceris pane (Genes., 13, 19).
( 23 ) Che, non men che saver, dubbiar ( 26 ) E perchè l'usuriere altra via
m'aggrata. Esta amavel fineza de Dante tiene. Querendo dizer : « E porque o usu
para com seu Mestre mostra quanto lhe rario segue uma vida diversa (contraria
satisfizeram as suas explicações. Prefe áquella estabelecida por Deus no Gene
rir o duvidar ao saber, parecendo um sis ), e põe toda a sua esperança de en
absurdo, é aqui uma belleza, é um mo riquecer, em modos, e meios illegitimos
do de dizer emphatico, de que encon de enriquecer, quaes os juros exorbi
tram -se muitos exemplos nas poetas, e tantes , e esfoladores do proximo, por
escriptores latinos de gosto apurado. isso despreza directamente a Natureza
Não se encontram somente nos escri em si mesma, e indirectamente a arte,
ptores latinos: abundam tambem nos filha da Natureza » .
escriptores portuguezes de bom cunho. ( 27 ) Ma seguimi oramai, chè il gir
( 24) Si che vostr ' arte a Dio quasi è mi piace. Como si dissesse : Agora se
nipote. Isto é, filha da filha ; porque, gue -me, que é mister que andemos :
sendo a Natureza filha de Deus, isto é, porquanto a constellação dos Peixes,
creatura sua , e sendo a arte filha da que precede duas horas a Ariete, em
Natureza, emquanto se esforça em tor que se acha o Sol, surge no horisonte ;
nar-se similhante a ella, pelo analogodes por isso d'aqui a duas horas assomará
envolvimento das suas leis, vem a ser a Ariete, isto é, o Sol ; faltam em summa
arte, por assim dizer, quasi neta de Deus; duas horas para amanhecer o dia ; e o
COMMENTARIOS AO CANTO XI 255

Carro, a Orsa maior jaz toda sobre o tanto longe ; não é aqui , é alem . Poucas
Cauro, isto é, n'aquelle ponto do Céo, são as bellezas poeticas que se notam
d'onde sopra o vento Cauro, aliás n'este canto, diz Biagioli; mas os verda
Poente mestre, entre o Occidente, e o deiros conhecedores da lingua não po
Septentriáo, no qual ponto a Orsa maior derão deixar de admirar o maravilhoso
acha -se exactamente duas horas antes esforço , que Dante empregou em des
do dia. Em uma palavra, ha dez horas crever com tão bellos traços, com tão
que entrámos no Inferno, porque as galhardas formas, com tanta elegancia ,
noites agora são eguaes ao dia, são de naturalidade , e precisão aquillo, que diffi
doze horas ; nós entrámos hontem ao cilmente , se não talvez impossivel, pode
findar o dia, e faltam só duas horas riam outros exprimir em prosa com pa
para voltarmos ao dia, e o despenhadei lavras tão claras, tão escolhidas, e apro
ro, que devemos descer ainda é algum priadas !
INTRODUCÇÃO AO CANTO XII

De guarda ao precipicio, por onde se desce ao segundo plano da cidade de


Dite, sexta caverna, septimo circulo penal, onde são punidos os violentos, está o Mi
notauro, monstro que tinha a cabeça de touro, e os outros membros de homem, e
se alimentava de carne humana; como tal era de razão que pelo Poeta fosse posto
de guarda aos violentos. Vencido o Minotauro, descem os dous Poetas por uma
rocha, que se despedaçou por occasião do terremoto , que houve na morte de
Christo : apenas se avizinham do fundo, avistam uma fossa ampla, e circular de san
gue fervente, a qual constituem o primeiro gyro do circulo, e n'ella estão immersos
os violentos contra o proximo, aquelles que pelo uso da força o damnificaram , ou na
pessoa , ou nos bens .
Em torno da fossa gyram a milhares os Centauros, homens de peito para cima,
cavallos de peito para baixo, e são armados de arcos, e frechas, que vibram nos pecca
dores, si sáem do sangue fervente mais do que lhes é permittido; porque uns são con
demnados a estar immersos até os olhos, outro até á guela, e outros menos. Os
Centauros, logo que vêem os dous Poetas descer a encosta, ameaçam de asseteal
os, e Virgilio usa com elles modos mais brandos do que usou com Caronte, com
Cerbero, e com Pluto. Por onde se deve notar que d'esta vez Virgilio com suas pa
lavras não defende somente a Dante , mas a si proprio, persuadindo aos Centauros
que elles dous vão ao fundo do Inferno por necessidade, e não por deleite : Dante
por necessidade de emendar- se de seus erros, e elle por necessidade de obedecer a
Beatriz, que o incumbiu de guial-o.
Apaziguados os Centauros com estes bons modos, Virgilio pede a Chiron, seu
chefe, que lhes dê um d'elles, para lhes ensinar onde devem passar a fossa de san
gue, visto como quando elle desceu de outra vez ao Inferno a transpoz pelo ar, e
não teve precisão de averiguar onde era essa passagem : pede mais que o Centauro,
que lhe for concedido, transporte Dante na garupa alem da fossa, e que finalmente
os defenda dos outros Centauros, que rondam em torno d'ella, de modo que não
sejam estorvados na sua marcha. Chiron concede - lhes Nesso, o qual dá a conhecer
a Dante alguns violentos antigos, e modernos, e entre estes o filho que matou seu
pae Obbizzo d'Éste. Ouvindo isto, Dante volta -se para Virgilio, a fim de lhe pergun
tar si deveria dar credito ao Centauro, e Virgilio lhe diz que agora o seu mestre é
Nesso. Do que se deduz que o tal parricidio não era admittido por todos, mas con
testado por alguns até o tempo do Poeta, e que o Poeta o crê, ou quer crel - o .
Esta é a sexta caverna do Inferno a começar do Limbo : tem o diametro de 70
milhas, a circumferencia de 220 milhas : o poço tem 35 milhas de diametro, 110 de
17
258 O INFERNO

circumferencia. O circulo d'esta caverna é dividido em tres gyros de egual largura,


mas de desegual circumferencia : o primeiro é uma fossa de sangue fervente, em
que gemem os violentos contra o proximo; tem 5 milhas de largura, e 5 sextas par
tes de milha : a sua circumferencia é a da caverna, com 220 milhas.
O segundo gyro é uma selva circular de arvores exoticas, em que são transfor
mados os suicidas violentos contra si proprios : com os suicidas estão tambem os
delapidadores violentos contra os seus bens : estes violentos conservam a fórma hu
mana , e são perseguidos, e mordidos por cadellas furiosas. Esta selva tem de largu
ra 5 milhas, e 5 sextas partes de milha : a sua circumferencia gyra 183 milhas, e
uma terça parte de milha .
O terceiro gyro é uma zona de areia ardente, na qual estão em diverso modo
os violentos contra Deus, contra a natureza, e contra a arte : tem de largura 5 mi
lhas, e 5 sextas partes de milha : a sua circumferencia gyra 146 milhas, e duas ter
ças partes de milha . Os dous Poetas gyram á esquerda uma septima parte da fossa,
ou 31 milhas, e 3 septimas partes de milha . Atrayessam directamente a selva, de
pois gyram á esquerda uma septima parte da circumferencia da areia ardente, isto é,
20 milhas, e 20 das vigesimas primeiras partes de milha: depois atravessam dire.
ctamente a areia, e, chegados ao poço, descem nas costas de Geryão á ultima ca
verna .
CANTO XII

Desce Dante por um logar escabroso com Virgilio ao septimo circulo, onde são punidos os violentos contra o
proximo. Encontram ahi de guarda o Minotauro, que se exalta em furor ao vel-os ; Virgilio impõe-lhe si
lencio ; proseguem na descida : Antes de chegar ao fundo, bispam um rio de sangue, em que são suppli
ciados os violentos contra o proximo: estes, si tentam sahir do sangue, são asseteados por Centauros.
Tres d'estes oppoem -se a que os dous Poetas desçam : Virgilio por bons modos obtem que lhes sirvam
de guia : Dante é informado da condição d'este rio, e das almas que dentro são atormentadas.

O logar, aonde vimos para descer o precipicio, (1) era aspero, e,


por causa do monstro, que o guardava, não seria encarado sem terror
por quem fosse mais intrepido.
Qual aquella ruina, (2) que, ou por terremoto, ou por depressão
do solo, rompeu áquem de Trento o lado esquerdo do Adige ; e que de
cima do monte, d'onde se moveu, até á planicie accumulou tanto pe
dregulho, que difficilmente daria transito a quem quizesse descer :
Tal era o declive d'aquelle pavoroso alcantil, na orla do qual es
tava estirada a infamia de Creta, (3) concebida no seio de uma vacca
artificial, e que, quando nos viu, se mordeu de raiva, (4) como aquelle,
que a ira devora por dentro.
O meu Sabio lhe gritou : «Acaso acreditas tu, que esteja aqui o
duque de Athenas, (5) que te tirou a vida ?
«Vae-te bruto, que este homem, que eu conduzo, não vem indus
triado por tua irmā ; mas vem testemunhar os tormentos de vós ou
tros . » ( 6)
A similhança do touro que, desprendendo-se dos laços apenas
recebe o golpe mortal, não sabe andar, mas salta, e pinotêa por todos
os lados : (7)
Assim vi eu o monstro estrebuxar de colera ; e o previdente Vir
gilio me bradou : « Emquanto elle está em furia, aproveita o ensejo, e
desce a toda pressa » . (8)
260 O INFERNO

Começámos pois a descer atravez d'aquelle acervo de calháos ,


que, pelo novo peso de meu corpo, não raro se moviam sob os meus
pés . (9)
Eu ía pensativo , e Virgilio me disse : « Talvez estejas a pensar n'esta
ruina , defendida pela ira bestial do Minotauro, que acabo de vencer.
« Quero agora que saibas que da outra feita, ( 10) quando desci a
este baixo Inferno, esta rocha não se tinha desmoronado .
«Mas, si me não engano, pouco antes de baixar aqui A quelle, que
arrancou á Dite a gran presa do circulo superior, ( 11 ) este profundo, e
hediondo valle tremeu de tal modo, que cheguei a pensar, que o uni
verso sentira aquelle amor, em virtude do qual ha quem acredite, que
o mundo , por mais de uma vez , tenha voltado ao antigo cahos : foi
então que esta velha rocha se espedaçou aqui , e n'outros logares .
« Mas abaixa os olhos para o fundo do valle, pois já se approxima
o rio de sangue, ( 12) dentro do qual arde todo aquelle, que usa de
violencia contra outrem . »
Ao ver tanta miseria, exclamei: ó cubiça, ó ira insensata, (13) que
n'esta curta vida nos arrastas a tantos excessos , e na outra nos pre
paras tão doloroso banho !
Vi então uma ampla fossa, em forma de arco, que, segundo me
havia dito o meu Guia, (14) abraça toda a circumferencia do circulo :
Entre a base do rochedo, e esta fossa corriam Centauros armados
de frechas, (15) como costumavam no mundo andar na caça .
Logo que nos viram descer o penhasco, (16) pararam todos : e tres,
depois de escolher arcos, e pequenas frechas, saíram da fileira dos
outros, e se dirigiram para nós.
E um gritou de longe : « A que martyrio vindes condemnados vós
dous, que desceis a encosta ? dizei-o de lá, senão disparo a frecha .»
« A resposta daremos a Chiron , que ahi está comvosco, disse o
meu Mestre : a tua vontade impaciente foi-te sempre funesta» . (17)
Depois, tocando-me Virgilio ligeiramente, acrescentou : «Aquelle é
Nesso , que morreu por amor da bella Dejanira, (18) e se vingou a si
proprio do seu matador .
«E aquelle do meio, que tem a cabeça inclinada para o peito, é
o grão Chiron , educador de Achilles : ( 19) aquell'outro é Pholo , que tão
dominado foi da ira.
« Em torno da fossa vão aos milhares, vibrando settas em toda
aquella alma, que, mais do que lhe permitte a sentença , (20) sáe do
sangue fervente . )
Approximámo-nos d'aquellas feras ligeiras : (21) Chiron tomou uma
frecha, com cujo entalho arredou as barbas para o lado dos queixos . (22)
Quando descobriu a enorme bôcca , disse aos outros : “ Não adver
CANTO XII 261

tís, que aquelle, que está de traz, move com os pés as pedras em que
toca ? Não costumam fazer assim os pés dos mortos » .
E o meu Guia , que já lhe tinha chegado perto do peito, onde as
duas naturezas se confundem , (23) respondeu : « Não te enganas : este que
me segue é certamente vivo , e convem que eu lhe mostre o reino es
curo, por necessidade, e não por deleite.
«Certa Senhora, que desceu do Paraiso, onde se cantam louvores
a Deus, (24) incumbiu- me d'este novo encargo : elle não é ladrão , nem
eu alguma alma scelerada .
« Mas por aquella virtude divina, sob cujo auxilio movo os passos
por este tão aspero caminho , dá-me um dos teus , que , guiando-nos
com segurança , nos ensine o váo da fossa ardente, e leve nas suas
costas este meu companheiro, que não é espirito, que va pelos ares. »
Chiron , voltando-se para o lado direito , disse a Nesso : « Torna
atraz, a fim de guial-os como pedem ; e si outra esquadra de Centau
ros os quizer impedir, fal- a retirar ». (25)
Seguimos com o conductor fiel, costeando o longo do rio sangui
neo , (26) onde os peccadores, que ardiam, soltavam altos gritos .
Vi gente immersa até os olhos no sangue effervescente, e o grão
Centauro disse : « Estes são os tyrannos, que tingiram as mãos de
sangue, e extorquiram os bens alheios .
« Aqui se lastimam dos damnos crueis , que fizeram sem piedade :
aqui é punido Alexandre, e Dionysio fero
fero,, (27) que fez passar a Sicilia
por dolorosos annos .
« E aquella fronte coberta de cabello negro é Azzolino, (28) e aquell'ou
tro , que é louco , é Obizzo de Este , (29) que é bem verdade ter sido
morto por seu enteado» .
Então me voltei para Virgilio, (30) para saber si devia crer em
Nesso, e Virgilio respondeu : « Agora aqui seja elle teu primeiro mes
tre, e eu o segundo ».
: Tendo nós andado um pouco mais avante, o Centauro parou, para
observar uma parte d'aquelles peccadores, que pareciam saír até ao
pescoço do sangue fervente. (31)
Mostrou-nos uma sombra, que estava só de um lado, (32) dizendo :
« Este na presença de Deus traspassou o coração, que ainda hoje se
venera lá sobre o Tamisa ») .
Vi depois outros peccadores, que tinham fóra do rio de sangue,
não somente a cabeça , mas tambem todo o peito, e muitos d'elles eu
reconheci , porque eram toscanos .
Assim aquelle sangue foi pouco a pouco baixando o nivel , de modo
que já cobria só os pés dos peccadores, e foi n'essa occasião, que
transpozemos a fossa .
262 O INFERNO

«Acabas de ver, me disse o Centauro, que d'esta parte o sangue


tem ido pouco a pouco diminuindo ; agora quero que creias , que da
outra se torna sempre mais profundo, até que se concentre no ponto,
onde convem que gemam os tyrannos. (33)
«D’este lado a divina Justiça pune aquelle Attila, que foi flagello
da terra : (34) pune tambem Pyrrho, (35) e Sexto, e espreme eterna
mente as lagrimas, que as convulsões do martyrio fazem saltar dos
olhos a Riniero de Cornato , e a Riniero dos Pazzis, famosos assas
sinos, e ladrões de estrada . ) (36)
Depois, o Centauro nos deixou , e repassou a fossa de sangue .
COMMENTARIOS AO CANTO XII

( 1 ) Era lo loco, ove a scender la riva. bre o Adige o grande monte entre Tren
O logar, onde chegaram os Poetas, so to, e Verona » . Por conseguinte é fóra de
bre ser despenhado, e alpestre, a pre duvida, que é esta a ruina a que allude
sença do horrido Minotauro, que ali aqui Allighieri. Na minha recente via
jazia, o tornava tão medonho, que ne jem a Italia fui de proposito examinar
nhuma pessoa, por mais animosa, deixa com os meus olhos os effeitos do phe
ria de afastar os olhos espantados, ao nomeno espantoso. Vê-se claramente
vel-o. Dante, que o testemunhou, não que o desmoronamento do monte feriu
sem assombro descreve-o com cores o rio Adige do lado esquerdo, e o obri
tão vivas, que parecia ter ainda pre gou a abrir um novo leito semicircular,
sente o horripilante aspecto do sitio, e em torno ao despenhadeiro, separado
do seu guarda : tão impressionada lhe do monte, por cujas raizes corria antes.
ficou a phantasia ! O condão de vestir A ruina n'aquelle ponto é tão ingreme,
suas imagens de matizes tão expressi tão alcantilada , que a quem está no valle
vos, e com tão pronunciado caracter de é impossivel subir, como a quem está
verdade, é um dos singulares privilegios em cima será muito difficil e arriscado
do nosso Poeta. descer. Observando-se pois a ruina, co
(2 ) Qual è quella ruina ... Ruina aqui nhece -se a exactissima, e bellissima si
é tomada por precipicio. Assim é que o milhança entre ella, e o precipicio, ás
precipicio de Lizzano, na montanha de bordas do qual chegaram os dous Poe
Pistoia, é tambem chamado Ruina. É tas ; porquanto, antes do desmorona
muito provavel que o desabamento do mento da rocha infernal, por occasião
monte, a que se refere Dante, se verifi do terremoto, havido na morte de Chris
casse no seculo ix (883 ) , como Tartarol to (diz Virgilio ao seu Discipulo) era
ti affirma ter descoberto nos annaes ful ella perpendicular; mas hoje , por effei
denses ( Raccolta delle più antiche iscri to da tremenda catastrophe, jaz espeda
sioni di Rivoret e della valle Lagarima çada, e só com muita difficuldade se pó
pag. 74 e 75 ). Mas o que mais importa é de descer por sobre seus fragmentos.
dizer-nos Benvenuto de Imola, que É isto precisamente o que acontece com
d'esta maravilhosa ruina faz menção a ruina de que se tracta, ruina que, se- .
Alberto Magno, no livro dos Meteoros, , gundo já disse, visitei, tendo a honra de
dizendo « que os 'montes desabam, ou que me fosse Cicerone n'aquella visita o
porque se lhes corroem as faldas, ou muito illustrado , e benevolo sr. marquez
porque lhes fallecem bases, ou porque de N., pessoa respeitabilissima da cidade
se desmoronam por terremotos ; e que de Trento, como já registrei no prolo
por causas taes se desfez em ruinas so go .
264 O INFERNO

( 3 ) L'infamia di Creta era distesa. Aqui do touro o amor infando, e a furto


Pasiphe sotoposta, e o Minotauro
Querendo dizer, que na extremidade da Mistiça geração, biforme prole ;
rocha estava estendido o Minotauro, la Vergonhoso padrão de amor nefando !
bestia che fu concetta nella falsa vacca . (B. Feio, trad. ).
Tão conhecida é a fabula dos torpes
amores de Pasyphæ com o touro, de que Lê - se tambem no oitavo livro das
resultou o Minotauro, que escuso repe Metamorphoses a arcana historia, e d'ella
til - a. Mas, segundo a verdadeira histo se recebe mais segura, e clara luz, para
ria , abonada pelo grave commentador penetrar-se aqui a mente do nosso Poe
Optimo, o Minotauro não é um monstro ta florentino .
fabuloso, mas foi homem , que depois (4 ) E quando vide noi, sè stesso mor .
da morte do pae se entregou a vida tão se. Mordeu -se a si mesmo, como aquelle,
bestial e tyrannica, que os poetas o fi cuja ira o devora por dentro, rasga, e
guraram meio homem, e meio bruto, consome ( Inf., vil, 9).
por causa do seu viver anti-racional, No texto lê - se : morde - se a si mes
como tambem por causa do seu pro mo, em vez de morde - se a si mesma ;
ceder tyrannico, o descreveram ali porque, em se lendo infamia de Creta,
mentando-se de carne humana, sym se subentende immediatamente o Mino
bolo dos tyrannos, que fazem derra tauro .

mar
o sangue, e rasgar as carnes
( 5 ) Tu credi che qui sia 'l duca
dos homens. É d'aqui que Dante o in d'Atene. Thesêo, por herança princi
troduz como preposto dos tyrannos, pe de Athenas, é aqui chamado duque,
que são punidos n'este circulo. Notam conforme a linguagem da meia edade,
tambem , que Dante attribue o nome de havendo então até 1204, entre os vas
Minotauro a um verdadeiro demonio , e sallos do Imperio Latino, tambem um
que por verdadeiros demonios se devem duque de Athenas. Filha da mesma Pasy
entender egualmente os Centauros, e phe, e de Minos, Rei de Creta, era Aria
todos os outros monstros, cujos nomes dne, a qual, ennamorada de Theseo,
significativos das qualidades, e funcções tirado á sorte entre os sette mancebos
que exercem, foram derivados da my athenienses, que cada anno eram devo
thologia ( Inf., m , 109). Alem d'isto, de rados pelo Minotauro, industriou - o do
vem - se considerar esses monstros como modo por que devia matar aquelle mon
outros tantos ministros da alta Provi stro, e escapar do labyrintho. Assim se
dencia, que no Inferno regula com justiça torna mais clara a historia , a que Dante
todas as cousas ( Inf., xix, 12 ; XXIII, 56 ). portanto allude ; mas não nos devemos
O mesmo Allighieri diz que a ira bestial , entreter em examinar separadamente a
tirando ao homem o uso da razão, o força, e precisão das palavras postas na
transforma em animal feroz com simi bocca de seu Mestre. Aquelle partiti,
lhança de homem (Conv., II, 8) , e os bestia ( vae-te d'aqui bruto) é de per si
faz arrancar a vida, e os bens do pro um golpe mortal no Minotauro, e certa
ximo (v. 105) . O referido Minotauro pois mente bastante para fazel- o arder em
foi causa de ser o nome de Creta ( Inf., furias.
XIV, 95) ainda hoje repetido como syno (6 ) Ma vassi per veder le vostre pene.
nymo de infamia. Virgilio, ao narrar Eis o proposito de Dante ao conceber,
aquelles lavores, que Dedalo gravou na e executar a sua viajem pelo Inferno !
porta do templo de Apollo em Cuma, Teremos ainda outras occasiões de pôr
acrescenta : Hic crudelis amor tauri, em relevo o fim pelo qual o divino
suppostaque furto Pasiphaæ, mixtum Poeta foi sublimado ao privilegio de ver
que genus prolesque biformis , Minotau as penas applicadas no reino escuro , e
rus inest, veneris monumenta nefandæ poderemos cada vez mais comprehen
( Eneid ., vi , 24). der o intuito principal e ultimo d'essa
COMMENTARIOS AO CANTO XII 265

mysteriosa viajem , e do poema , que a emprega para aproveitar o tempo, que


descreve ; intuito christāmente moral . deviam gastar em descer a rocha . Nem
( 7) Qual è quel toro che si slaccia in um só ápice de tempo costuma perder
quella. Quem tiver já visto um boi fugir o sabio Allighieri, que assim quer, por
furioso do açougue, depois de ter rece factos, e por palavras, nos amestrar a
bido o golpe mortal, conhecerá logo a tirar todo o proveito do precioso the
belleza , e propriedade d'esta compara souro, qual é o tempo. Começa agora
ção ! Boccaccio, em tres logares de suas Virgilio a instruil-o sobre a causa do
obras, aproveita -se d'esta mesma ener estranho phenomeno, dizendo - lhe : « Ago .
gica similhança, que Dante por sua vez ra quero que saibas, que quando eu,
tinha tirado do seu Virgilio ,renovando -a, n'outra occasião, desci a este profundo
e melhorando - a no primor da execução . Inferno por instigação d'aquella cruel
Quales mugitus,fugit quum saucius aram Ericto, de que já te falei, esta rocha
Taurus et incertam excussit service se não se tinha desmoronado ainda . Mas,
curim : (Eneid ., 11, 224 ). si bem me recordo, pouco antes de
descer aos Infernos o teu Redemptor,
Qual muge a rez ao fugir da ara , que arrancou a Dite a gran prêsa do
Da cerviz sacudindo o golpe incerto.
(Od. M., trad .)
Limbo, circulo superior a todos os ou
tros, o profundo valle asqueroso d'este
(8 ) E quegli accorto gridò : Corri al abysmo tremeu tão fortemente, que eu
varco . Como si dissesse : « E Virgilio cheguei a pensar que o universo experi
attento em não perder tempo e logar mentasse aquelle amor, de que fala Em
( Inf., xxvi , 75 ), bradou -me : Corre lá ao pedocles, em virtude do qual amor
logar onde se passa : la dove si varca acreditam alguns, que o mundo tem
(Purg ., XXIX, 43 ), isto é : « Cumpre que mais de uma vez voltado ao primitivo
tomes depressa a passagem por onde é cáos. Porquanto diz Empedocles, que as
possivel descer a rocha, emquanto o infinitas parcellas, que constituem o
monstro (Minotauro ) estrebuxa ebrio de Universo , umas amam -se, e se attrahem
raiva; porque n'esse estado de cego fu como o iman o ferro ; outras ondeiam
ror, que o entorpece , não te póde em se, e se repellem como a electricidade o
baraçar, nem offender ». Allegoricamen lacre : que estas parcellas, para ordem
te quer Dante ensinar-nos que a ira do mundo, se acham misturadas, con
louca (ira folle, v. 49) annulla de todo o fundidas, e por isso em estado violento,
homem , por mais forte que seja, e o em continuo desejo de se reunirem ,
torna ludibrio de todos . como estavam no principio do mundo ,
( 9) Cosi prendemmo via giù per lo scar no cáos, no qual as parcellas do Uni
co. Como si dissesse : « Assim , emquan verso viviam todos contentes porque
to o Minotauro rebolava em furia, des todas eram amigas : que, de quando em
cemos pela rocha abaixo até o fundo, quando, cresce tanto esse desejo de se
onde jaziam os fragmentos das pedras reunirem , que fazem grande esforço
desmoronadas de cima, que muitas ve para se desligarem das inimigas, e que
zes se moviam sob meus pés; porque eu d'este esforço violento resulta o terre
tinha corpo, e Virgilio não » . Por esse moto, e que por causa d'este profundo
mover dos fragmentos das pedras sob movimento subterraneo tem o mundo
os pés de Dante conheceram logo de muitas vezes voltado ao antigo cáos, e
longe os demonios que elle era vivo. outras tantas tem sido reorganisado por
( 10) Or vo' che sappi, che l'altra fiata . Deus ». Ao ler esta chimerica theoria, oc
Mas, antes de vermos como o cautelo corre - me aquelle pensamento de Cicero
so Mestre esclarece as duvidas do seu quando diz, que não houve ainda para
Discipulo, não deixemos passar desper doxo, que não fosse sustentado por algum
cebido tambem aqui o modo, que elle philosopho !
266 O INFERNO

( 11 ) Levò a Dite del cerchio superno. cio, imagem da ira celeste; porque os
A gran preza, que o Redemptor arrancou damnos desapiedados, que fazem ao pro
a Dite, isto é, a Lucifer, foram as almas ximo provém particularmente da ira,
dos Sanctos Padres, que no Limbo es que é a effervescencia do sangue em tor
peravam a sua vinda, para leval-as para no do coração, produzida pelo impeto da
o Céo. Diz ainda Virgilio que
fortissi vingança ( Arist. Rhet., IV, 1 ) . E pois com
mo terremoto, que abalou toda a ma soberana arte, e sapiencia, que Dante
china infernal, despedaçou a rocha aqui, phantaziou, que os tyrannos em especial,
e na sexta fossa de Malebolge, onde são homens de sangue, e de furores indo
punidos os hypocritas ; visto como os mitos, hão de padecer a sua punição
violentos, e os hypocritas, mais que n’um lago de sangue fervente, em pe
todos os condemnados, foram feridos renne, e cruel memoria do sangue, que
por aquelle terremoto ; porque foram fizeram brutalmente derramar. Afigu
essas duas classes de scelerados, que ra - se - nos, que, por um modo arcano, a
cooperaram para a morte do Redemptor. infallivel Justiça eterna lhes faz soar
Foi o hypocrita Caiphaz quem aconse continuamente aos ouvidos este grito
Thou aos Phariseos, que convinha que um terrivel da rainha dos Scythas a Cyro,
homem morresse pelo povo ; sendo que quando, mettendo -lhe a cabeça cortada
nenhuma pena foi mais injuriosa a Deus, n'um vaso de sangue, bradou - lhe : « Tu
do que a pena de cruz imposta ao seu tiveste sêde de sangue, pois eu te sacio
Unigenito ( Par., VII, 43 ) . A minima parte de sangue !» Sangue sitisti, ed io di
do sacro Poema é sempre bem ponde sangue t'empio ( Purg., XII, 57).
rada nos pensamentos do Artista fioren ( 13 ) O cieca cupidigia, o ira folle ! A
tino, che sovra gli altri com ' aquila cubiça é cega, porque torna cegos de
vola. entendimento aquelles, que se deixam es
Releva em conclusão, não esquecer cravisar d'ella : ( Inf., vii, 40 ), não vendo
que a cerebrina opinião de Empedocles que a sêde das riquezas em nenhum tem
de que o mundo tem por muitas vezes po se sacia ( Conv ., IV, 12 ). A ira má
voltado ao cáos Più volte il mondo in depois é louca, porque converte o ho
caos converso , é reprovada por Aristo mem em furia ; e, tirando -lhe o Uso
teles, e Virgilio, que era aristotelico, da razão, o reduz a condição tão baixa,
tambem a repelle, como se deduz deste que não parece mais outra cousa que
seu dizer : è chi creda (ha quem creia ). bruto ( Conv., III, 7). Eis porque os de
( 12 ) Ma ficca gli occhi a valle; chè s'ap monios que são ministros da alta Justiça,
proccia. Como si dissesse : « Mas agora no circulo dos violentos tomam a fórma
fixa os olhos no fundo da alta voragem , de Centauros ; querendo sobretudo o
pois que que se approxima o rio de san Poeta indicar - nos com este nome a trans
gue ( o rio Flegetonte, assim chamado mutação, que se opera no homem escra
por causa da effervescencia da agua visado á cubiça, e á ira. A mythologia
rubra ( Inf., xiv, 34), no qual rio estão não lhe serve, senão para melhor repre
a ferver aquelles reprobos, que, por sentar-nos as virtudes, e os vicios nos
violencia contra o proximo, o damnifica seus aspectos, e effeitos, e para avivar de
ram tanto na pessoa, como nos bens ( Inf., fórma sensivel as idéas, a que a ver
XII, 34). É este pois o primeiro gyro dade serve de apoio, e decoro.
do septimo circulo, onde se encontra Não será sem ſructo , nem fóra de
um rio de sangue fervente, dentro proposito considerar como Dante tenha
do qual são punidos os violentos con aqui, e ali, n'uma ou n'outra creatura,
tra o proximo. O nosso Poeta, impres indicado todos os signaes, e effeitos pro
sionado do horrivel aspecto d'aquel prios da ira. Por exemplo : os olhos de
la rubra effervescencia , apressa -se em braza de Caronte : ( Inf., III, 109); os
dar-nos a razão de tão pavoroso suppli membros convulsos de Cerbero, e o tre
COMMENTARIOS AO CANTO XII 267
mor de Malacoda ( Inf., vil, 28, xxi, 37); feridos monstros, não podiam ser mais
focinho tumido de Plutão, e as abstrusas apropriados, nem descriptos de modo
palavras d'elle, e de Nemrod ( Inf., vi , mais galante. E bem é que reproduza
4; xxxi, 68) ; o morder -se a si mesmo de mos o que acerca de tal scena diz Biagioli.
Filippe de Argenti, e Phlegias ( Inf., VII, « Analysemos, diz elle, acto por acto : os
12 ; VIII, 52 ), tudo isto são claras e na Centauros, ao ver descer os dous Poe
turaes demonstrações de ira. Palpitatio tas, param todos, e tres escolhem as
cordis, tremor corporis inflatio faciei, frechas do arco: depois, separando -se
exasperatio oculorum , et clamor irratio do grupo, movem os passos para os
nabilis sunt signa et effectus iræ ( São dous viajantes, que descem a encosta .»
Thomaz 2, 9, 48, 12 ). Estudada d'es Mas devemos tambem confrontar o
te modo a Divina Comedia dará ma modo, por que Nesso lhes grita, com
teria a um completo tractado da na aquelle de que usou o Anjo, que está de
tureza, e dos effeitos das virtudes, e dos guarda na entrada do Purgatorio: Ditel
vicios ; não se podendo jamais duvidar costinci: che volete voi ? ove è la scorta ?
que o genero proprio da philosophia, Guardate che'l venir su non vi nôi. « Dize
que n'elle domina seja a E ca, ou as de lá : que quereis vós ? Onde está o
sumpto moral (Epist. a Can Grande, xv ) . Anjo, que costuma servir de guia ás
( 14) Secondo c 'havea detto la mia scor almas, que vem aqui ? Vêde bem não
ta. Virgilio com effeito havia dito a vos causeis damno, nem tristeza » ( Purg .,
Dante, que o septimo circulo era divi ix, 85 ) . Bem meditado o sacro Poema,
dido em tres gyros ( Inf., xi, 30), e este, conhecer-se-ha em todas as suas partes
onde agora são chegados os dous mys a mais estreita correspondencia ; poden
ticos viajantes, é o primeiro, que tam do-se perfeitamente attingir a doutrina
bem gyra entre as pedras d'aquelle vivificadora de tão admiravel urdidura,
mesmo circulo . assim como descortinar os segredos da
( 15) Correan Centauri armati di saet arte com que o seu auctor o conduz ao
te. Alguns pretendem que os Centauros fim preordenado.»
tenham sido aquelles homens ferozes, ( 17) Mal fu la voglia lua sempre sì tos
que na Thessalia foram os primeiros a ta. Como si dissesse : « Em damno teu
domar cavallos, e se tornar famosos ca foste sempre assim tão voluntarioso em
valgadores, tanto que, correndo alcan tuas vontades, e tu o sabes » . Com este
çaram, e venceram os bois impellidos resoluto falar a Nesso, Virgilio não só
pela raiva, e fugitivos do rebanho do mostra conhecer a condição, e officio
rei da Thessalia ( Boccaccio, Genealogia d'aquelles espiritos perversos, como lhes
dos Deuses, 1 , 9 ). Dante, embora entre faz presentir a virtude celeste, sob cujo
um pouco pela fabula, poetisando que auspicio move os passos por aquella tao
os maldictos Centauros foram formados selvajem estrada ( v. 92).
nas nuvens pelo ajunctamento de Ixion ( 18) Che morì per la bella Deianira.
com uma Nuvem, em figura de Juno Querendo dizer : Aquelle é Nesso que,
de quem elle estava enamorado; todavia por pretender roubar a bella Dejanira a
collige-se bem, que elle tem por ver Hercules, foi por este ferido com frechas
dade, que os Centauros foram homens, tintas no sangue da hydra, e por isso
como os descreve Boccaccio, bellicosos, morreu ; mas depois elle mesmo se vin
altivos, e inclinados a toda a sorte de gou de Hercules; porque, antes de expi
malvadez . rar, mandou a sua tunica ensanguentada
( 16) Vedendoci calar ... Han’este ter a Dejanira, dizendo-lhe, que tinha ella a
ceto uma pintura vivissima, naturalissi virtude de impedir que Hercules se dei
ma, da scena, que se passou entre os xasse dominar do amor das outras mu
dous Poetas , e os Centauros : os actos, lheres. A incauta Dijanira, sabendo que o
as attitudes, os gritos, os gestos dos re seu Hercules se tinha captivado do amor
268 O INFERNO

de Iole, mandou-lhe, para libertal-o , É de notar que os Centauros aqui


aquelle presente funesto ; resultando vibram setas de tirar sangue n'aquelles
que o pobre Hercules, apenas cingiu a que foram homens de sangue' e de ira ,
tunica, atirou -se furioso por entre as e que abriramferidas dolorosas nos seus
chammas da pyra ; vendo assim realisada similhantes ( Inf., XI, 34), dando - lhes
em si a vingança de Nesso. Capit in por fim a morte . O serem pois assetea
cius heros Induiturque humeris Lernæ dos no Inferno os sanguinarios é a pena
se virus Echidnaæ , etc....· flammis Her que mais apropriadamente lhes convem.
culeos abiit late diffusa per artus. (Ovid. O sangue foi a sua culpa no mu do , o
Met., ix , 158, 161 ) . sangue deve ser o seu tormento no In
( 19) É il gran Chirone, il quale nu ferno. Viveram de rapinas violentas, e
dri Achille. Centarus Chiron propter quod têem por seus guardas raptores violen
nutrierat Esculapium et Achillem inter tos . Notar deve -se ainda a seguinte par
astra dinumeratus esta (Isid ., Orig ., III, ticularidade : o sangue em que são ator
70). A saber : Aquelle é o grande Chi mentados é effervescente, de forma que
ron nutridor, isto é, educador de Achil padecem dous supplicios atrozes, o da
les, do qual fez um heroe bestial , cuja escaldadura, e o do fedor horrivel, que
ira foi Homero obrigado a cantar; por as exhalações sanguineas trazem con
isso que todas as suas façanhas foram sigo (Bennassutti ).
partos da ira. Quelſ altro . Aquell'outro ( 21 ) .. a quelle fiere snelle. Dante
é o Centauro Pholo , o furioso (furens, chama feras os Centauros, não só pela
Georg ., II , 54) como se mostrou , com parte equina, que ha n'elles, como
batendo até á morte com os Lapitas ... porque de homens se tornaram feras
Hospes et Alcidæ magni Pholus ( Phars., pelo seu viver bestial.
VI, 383). Lucano ahi recorda estes tres (22 ) Fece la barba indietro alle mas
Centauros um apoz outro , dos quaes celle. Com o entalho da frecha, isto é,
sómente julgou Allighieri necessario fa com a extremidade opposta á ponta . E
zer aqui menção, talvez por serem mais porque arregaçou o Centauro as barbas
dignos de presidir o septimo circulo, para traz dos queixos ? Para falar com
visto que Nesso foi dos vinlentos contra maior desembaraço, como fazem todos
o proximo, como Chiron usou de vio que têem barba espessa , e longa.
lencia contra si mesmo, procurando a (23 ) Ove le due nature son consorti.
morte , ao passo que podia ser immor Na linha do peito do Centauro as duas
tal, e Pholo pelo contrario pereceu por naturezas equina, e humana , ajuntam-se;
querer fazer violencia contra Deus, não perdendo - se a equina na humana , e vice
só sendo irascivel, mas desprezador, e versa , e por isso se tornam consortes.
blasphemador dos Deuses. Ove le due nature son consorti.
( 20) .. sua colpa sortille. Aos con (24) Tal si parti da cantare alleluia.
demnados é imposta diversa sorte de Como si dissesse : « Aquella Senhora
castigo, segundo a sua propria culpa (Beatriz ) que desceu do Paraiso, onde
( Ins., 111, 48 ). O Svellersi é assás signi com os sanctos, e com os anjos canta
ficativo, para demonstrar-nos o esforço louvores a Deus, commetteu - me este
supremo, que aquellas almas fazem para novo encargo de conduzir Dante a este
arrancar - se ao lago do sangue, onde valle de dores : digo novo, porque n'ou
estão como enfossadas, ou, mais pro tra occasião, quando aqui desci só, trou
priamente, enraizadas (radicati), em vir xe outro encargo. Isto posto, nem eu,
tude da sentença da Justiça punidoura , nem elle, somos dous ladrões, que fosse
que lhes não permitte saír dos limites mos condemnados a esta fossa de san
da ordem prescripta ( oltre della pres gue fervente, nem por conseguinte es
critta misura ), isto é, pôr a cabeça fóra tamos sujeitos á tua jurisdicção. Final
do lago . mente, não emprehenderamos esta via
COMMENTARIOS AO CANTO XII 269

jem por mero deleite, mas por necessi grandes elogios ao Magno Alexandre,
dade : eu por necessidade de obedecer a considerando-o digno de ser conservado
Beatriz ; o meu discipulo por necessida na memoria de todos os corações pelos
de de purificar-se de seus vicios pela reaes beneficios que derramou com mãos
meditação das penas, que se padecem largas (Conv , iv, 10), e ao mesmo tem
n'este Inferno » . Este é sem duvida o po considerando - o um d'aquelles privile
principalissimo fim da visão ou mystica giados dominadores, que melhor se
viajem, dantesca. Nem o fim do Poe approximaram á palma da Monarchia
ma, que é a narração da viajem , pode universal : Alexander rex Macedoniæ
ria ser de natureza diversa do fim da maxime omnium ad palmam Monarchiæ
visão, posto que se deva distinguir. Já propinquans, etc. (Mon., 11, 9).
tenho dito muita vez , que o que Dante Il fero Dionisio. Está entendido que
diz d'elle individualmente é applicado ao fala aqui do tyranno Dionysio, que por
homem em geral, que , afastando -se da espaço de quarenta e dous annos flagel
loucura, dos vicios, e da morte da alma lou a Sicilia. Dionysius Siracusarum
( Purg., xxx , 138) , se resolve a voltar ao tyrannus duo quadraginta annorum do
caminho da virtude . minationem peregit (Val. Max., 1 ix, c .
( 25) Danne un de ' tuoi ... D'aqui se 14) . No quinto livro das Tusculluanas
conhece bem que Chiron era o chefe fala tambem Cicero das crueldades d'es
dos Centauros, e não sómente dos tres, te tyranno, indubitavelmente o alludido
que primeiro se separaram do grupo, por Dante; pois que o outro Dionysio,
mas de todos, como o prova a ordem im que o succedeu , foi depois obrigado
perativa, que adiante dá a Nesso. pela pobreza a tornar-se, de tyranno
( 26) ...bollor vermiglio. Dante chama em mestre de meninos, e não teve máo
vermelha a effervescencia da agua ru fim ; Propter inopiam liberos puerulos
bra ( Inf., XIV, 134) , ou, para melhor Corinthi docuit... magister ludi factus
dizer, do sangue (v. 125); e na varieda ex tyranno, etc. ( Val. Max., I VI, C. 11 ).
de das figuras, que emprega para re (28) Azzolino. Este perfido tyranno, da
presentar-nos um tão mysterioso rio, familia dos condes de Onara, e cha
revela sempre a sua poetica virtude, mado tambem Ezzelino, ou Eccelino ,
bem como a arte divina, de que elle é, nasceu em 1194; tyrannisou ferozmen
sem contestação, mestre soberano. te a Marca Treviseana, e parte da Lom
(27) Quivi è Alessandro, e Dionisio bardia, de 1230 até 1260. Era de estatu
fero. Este Alexandre a quem allude ra mediocre, côr negra, todo cabelludo,
aqui Dante, é o de Pheres, do qual fala e tinha um pello longo sobre o nariz,
largamente Diodoro de Sicilia ( 1 , 15, e que se erricava horrendamente quando
16) , accusando-o de ter envenenado o se enfurecia , e então ai d'aquelle, que
seu irmão Polydoro Pherêo, principe dos se lhe approximasse !
Thessalos, e lhe occupasse o principa A Historia da Italia refere, que o
do por ii annos da mais tyrannica ad nosso Sancto Antonio, achando-se mis
ministração. Entre outras muitas cruel sionando em Padua, em occasião em
dades, basta lembrar que esse monstro que o tyranno Azzolino, ou Ezzelino,
mandava esfolar os homens vivos, vestil mandava practicar suas costumadas de
os de pelles de feras, e depois os fazia predações e crueldades nas vizinhanças
devorar pelos caes. Ha todavia muitos d'aquella cidade, se possuiu de tão sancta
commentadores, que pretendem que o indignação, que não hesitou em ir a Ve
Alexandre de quem aqui se fala é o de rona, onde residia o tyranno, e alli na
Macedonia, só porque talvez Lucano presença de toda a sua côrte, composta
deu a este o epitheto de ladrão feliz de sicarios, tão energicas exprobrações
felice predone. Não advertiram sem du lhe fez dos crimes horrendos, que fazia
vida, que Allighieri, pelo contrario, rende perpetrar, que o tyranno, ferido na alma ,
270 O INFERNO

e no coração pelas setas da eloquencia tencia do parricidio; mas, como havia


do heroico Sancto portuguez, caiu - lhe divergencias no publico, se fingia per
aos pés, com assombro de seus sequa plexo, para em tudo ser exacto.
zes, a pedir-lhe em pranto que orasse (31 ) Lo bulicame che sempre si scema.
por elle a Deus, e que lhe promettia Fonte perto de Viterbo, que ferve conti
mudar completamente de vida . Assim o nuamente. Assim entende Boccaccio, e
fez, retirando -se para Milão, etc. Refere quasi todos commentadores . Nem Alli
mais a historia, que quando Sancto An ghieri nos permitte pensar outra cousa,
tonio se retirou, o tyranno lhe mandou chamando com o nome vulgar de buli
levar uma bolsa cheia de moedas de came o lago de sangue fervente ( Inf., XIV,
ouro, e que o Sancto, recusando a offer 79 ) .
ta, mandou -lhe dizer, « que era melhor (32 ) Mostrocci un'ombra dall' un
que elle distribuisse aquelle dinheiro com canto sola. Esta sombra que estava de
as desgraçadas familias, cujos chefes, e um lado só, era Guido de Monforte, que
fortunas elle tinha trucidado, e roubado » . n'uma egreja de Viterbo, na occasião
Lembro aqui esse facto heroico da em que o sacerdote levantava a sagra.
vida do nosso Sancto thaumaturgo, por da hostia, traspassou com um estoque
que nunca o vi reproduzido nas lendas o coração de Henrique, filho de Ricar
portuguezas. do Conde de Cornovaglia, para vingar
(29) Obi770 da Esti. A Ezzelino, gibel no filho a morte, que Ricardo deu a
lino cruel, uniu-se Obizzo, não menos Simão, pae de Guido, que havia comba
cruel. Foi feito pelo Papa Marquez da tido contra Henrique III, irmão de Ri
Marca de Ancona, e occupou Ferrara, cardo. A Henrique foi erigido, no prin
expulsando os Vinciguerras. Corria voz cipio da ponte sobre o Tamisa, uma es
entre o povo, que elle tinha sido morto tatua , onde, em um calix de ouro, mos
pelo proprio filho Azzo VIII , em 1293, tra-se o dito coração, que ainda se ve
depois de uma dominação tyrannica por nera, segundo o uso.
espaço de 28 annos . Dante chama- o en Podemos comprehender como a phra
teado (figliastro ), por parecer incrivel se in grembo a Dio seja expressiva, para
que um filho se tornasse réo de um tão significar não só o templo, onde está
horrivel parricidio ! Azzo VIII, aquelle encerrado Deus sacramentado, mas a
mesmo que fez trucidar Jacopo del Cas mesma hora do sacrificio solemne , « Pa
sero (Purg ., v. 64) , apossou-se do reino rece -nos ver Henrique, diz elegantemen
paterno, que não administrou melhor. te Tomaseo, trespassado entre os braços
Mas pelos annos 1308, segundo Ricobal do mesmo Deus, e, na hostia levantada,
do, chronista ferrarese, o desnaturado ver Christo ! »
filho reduzia - se a morrer no seu castello Mas porque a sombra estava só de um
de Éste ; receiando ser assassinado pe lado ? Porque o violento de que ora se
los seus filhos, como elle havia assassi tracta (Guido de Monforte) está aqui
nado o pae ! Allighieri devia saber me n'esta fossa por um delicto só, com a
lhor que ninguem a historia d'aquelles differença dos outros violentos, que ti
dous, entre os muitos tyrannos italianos, nham commettido milhares de delictos ;
visto como dominaram desde 1265 até mas o delicto de Guido tem circumstan
1308, tendo ambos grande parte nas cias particulares, diversas d'aquellas, que
contestações entre a Egreja, e o Impe revestem os outros delictos.
rio . Voltando ainda as palavras in grem .
(30) Allor mivolsial Poeta ... Voltou bo a Dio, e si venera, e outras similhan
se Dante para Virgilio, a fim de certificar tes, parece que ellas não assentam bem
se, si Nesso lhe dizia a verdade na his na bocca de Nesso; mas, attendendo rzós
toria que lhe estava contando. No foro á verdade do facto , devemos tambem
intimo Dante estava convencido da exis reflectir no modo por que Dante o con
COMMENTARIOS AO CANTO XII 271

cebeu, e quiz fazel- o mysteriosamente dia -se Attila com Totila, attribuindo - se
representar por um dos ministros da a Attila as acções de Totila. N'este erro
rigida Justiça, que, como soberana de vulgar caíram , não só a maxima parte
tudo, se serve de todos os instrumentos, dos copiadores de Dante, mas até o
que lhe apraz fazer executores de seus mesmo Boccaccio .
inescrutaveis disignios . ( 35 ) E Pirro. Entre os devastadores
(33 ) Ove la tirannia convien che ge a infallivel Justiça faz punir Pyrrho, Rei
ma. Aquelle ponto onde os tyrannos são dos Epirotas, grande inimigo dos Ro
punidos é o de maior tormento ; por manos, devastador do paiz dos Lacede
que ali o sangue fervente attinge a sua monios, e dos Egéos, e expoliador dos
maior altura. Augmentando - se na su proprios sepulchros dos Reis ( Diod. Sic.,
perficie da fossa, diminue no fundo, e o Hist . 11, 3 ).
fundo, indo gradualmente se estreitando, Juntamente com Pyrrho é punido
o tormento torna-se mais horrivel, por Sexto Pompeo, filho de Pompeo Ma
causa da pressão. gno ; por isso que Sexto parece mais
( 34) Quell Attila che fu flagello in devastador, que ladrão, e foi grandissi
terra . Como si dissesse : aquelle Attila , mo Corsario, como demonstra I ucano .
que vós outros lá no mundo denominaes (Phars., VI, 113 ). Aquelles commen
flagello de Deus, para punir os peccados. tadores, que puxam o pensamento para
«Este Totila por sua iniquissima cruel outro Pyrrho, e outro Sexto, que não
dade é cognominado Flagellum Dei os dous mencionados , mostram que
( Villani, Hist., 11 , 3 ). Ora aquelle mes n'elles o amor da novidade sobrepuja
mo, que Villani denomina Totila, e a ao amor da verdade .
quem attribue, entre outros gravissimos (36 ) Le lacrime, che col bollor disser
damnos, a destruição de Florença, é ra A Renier da Corneto, a Rinier Pazzo.
trocado por Dante com Attila ( Inf., XIII, Riniero de Corneto, e Riniero Pazzo, os
149), que por isso é aqui especialmente quaes fizeram tantas violencias aos vian
posto como primeiro no numero dos dantes, que seus nomes ficaram em per
devastadores. Mas o historiador Villani petua infamia . Riniero dos Pazzis de
deu pelo contrario a Totila, Rei dos Valdarno, segundo o testemunho aucto
Godos, e dos Vandalos, aquelle sobre risado de Optimo, foi roubar os prela
nome (Flagellum Dei ), que se applicou dos da Egreja de Roma, por ordem de
a Attila, Rei dos Hunos, si é que n'esta Frederico II, em 1228. Por este facto,
parte a celebre Chronica de Villani não elle e seus descendentes foram conde
soffreu algumas correcções posteriores. mnados a excommunhão perpetua, e con
O certo é que da devastação de Florença tra elles foram estabelecidas leis muni
Dante não faz Totila auctor, mas sim cipaes em Florença, privando-os para
Attila, e que a este attribue a causa dos sempre de todos os empregos. E de Ri
males com que os Hunos, não menos que niero de Corneto o mesmo commenta
os Godos, e os Vandalos, affligiram a dor diz, que no tempo de Dante foi
terra em punição dos peccados dos ho elle um famosissimo ladrão de estrada ,
mens. Como quer que seja, não deve e muita gente afogou, e matou nos ala
mos por esta confusão de nomes, e de gadiços da Maremma. A estes ladrões a
cousas tornar culpa ao nosso Poeta, que, divina Justiça com a effervescencia do
por mais circumspecta, e atilada que sangue , dentro da qual os castiga, es
fosse a sua critica, nem por isso póde preme-lhes eternamente dos olhos as
libertar-se de muitos erros do seu secu lagrimas, arrancadas pela dor. Nas la
lo ; tanto mais, quanto foi observador grimas distilla a dor ( Inf., XXIII, 97 ) : as
restricto das tradições nacionaes , como lagrimas são expressão de dor (Purg ..
havia sido o Mantuano. Demais, obser XII, 57). Com razão observa Biagioli :
va Bennassutti, na edade media confun « Como estes modos de dizer são bellos,
272 O INFERNO

novos, e differentes ! Lá convem que a Inferno. Estudar estas bellezas, estes


tyrannia gema : lá é a divina Justiça que primores do gosto, deve ser o cuidado
punge: lá espreme eternamente as la de todos os que desejam conhecer um
grimas arrancadas pela dor do supplicio pouco a fundo o secreto magisterio a
do sangue fervendo » . Verdadeiramente que Dante se ateve na composição do
são admiraveis estes traços, com que o seu Poema. Por este estudo, alem de
divino Poeta representa um mesmo tantas novas bellezas, que hão de pul
conceito , uma mesma idéa ! Mas os de lular vivissimas aos nossos olhos, pode
vemos ainda confrontar com outros si remos penetrar melhor nos conceitos
milhantes, que se encontram a cada d'aquelle grande intellecto, que bastou
momento n’este canto, como em todos para reunir todos os fios esparsos da
os outros d'este primeiro Cantico do variada e finissima urdidura .
INTRODUCÇÃO AO CANTO XIII

O segundo gyro do septimo circulo infernal é uma pavorosa selva, cercada de


uma fossa de sangue effervescente, e com a sua circumferencia interna abrange um
horroroso areal inflammado, que forma o terceiro gyro. N'esta selva são punidos os
violentos contra si mesmos, que são de duas especies: suicidas, e perdularios. Os
suicidas são transformados em arvores estranhas, sobre as quaes nidificam Harpias
asquerosas, que se nutrem de suas folhas; lacerando-as tão cruelmente, que arran
cam as miseras almas os mais dolorosos lamentos. Os perdularios são continua
mente perseguidos de cadellas esfaimadas, que lhes rasgam as carnes aos boccados.
Faz-nos o Poeta conhecer dous suicidas, e dous perdularios : o primeiro suicida
é Pedro das Vinhas ( Pier delle Vigne ), natural de Capua, homem illustrado, e secre
tario intimo de Frederico II. D'este suicida mostra o Poeta ter muita compaixão,
não por causa do seu tormento, que é merecido, mas por causa da injustiça com
que foi accusado de traidor ao seu augusto amo, a quem aliás föra fidelissimo, e
sem embargo, prestando ouvido docil ás suggestões da inveja, mandou queimar -lhe
os olhos, e mettel- o em prisão, onde, por lhe faltar a constancia de resistir a tanto
opprobrio, e miseria, se suicidou. O outro suicida é um Florentino, cujo nome não
declina, ou porque sua ignobil vida o tornasse indigno de menção clara, ou porque
fosse assás conhecido, ou finalmente por outras razões, que não vem de molde aqui
explicar. Fosse quem fosse, este suicida manifesta a Dante, que Florença será sem
pre flagellada de grandes calamidades porque trocou por S. João Baptista o seu
antigo protector Marte, deus da guerra. Alguns censuram o Poeta pelo absurdo de
attribuir as desgraças publicas de Florença a uma superstição pagā. Mas, é que elles
não comprehendem o sentido allegorico d'aquellas palavras, ou não attendem que
são ellas ditas por um condemnado, ou não se lembram de que o mesmo Poeta
assignalou n'outra occasião com toda a franqueza, que as tres causas principaes das
discordias intestinas de Florença eram a soberba, a inveja, e a avareza .

Superbia, Invidia ed Avarizia sono


Le tre faville, ch ' hanno i cori accesi.

Tomadas aquellas palavras no sentido litteral, é, com effeito, historico, que Flo
rença, passando do paganismo ao christianismo, aboliu immediatamente, como era
natural, o culto idolatrico, que até então prestava ao deus Marte, e em logar d'este
adoptou S. João Baptista por patrono da cidade . Mas allegoricamente, Dante toma
aqui Marte, não pelo deus da guerra, mas pela arte da guerra, em que os Floren
tinos eram outr'ora distinctos; assim como toma o Baptista, não pelo Sancto pro
18
274 O INFERNO

tector da cidade, mas pela sua effigie esculpida nos florinsde ouro ; querendo o Poeta
por bôcca d'aquelle suicida exprobrar aos seus concidadãos a vileza de terem arre.
fecido o ardor militar pela desmesurada ambição de accumular dinheiro.
Esta interpretação é tanto mais acceitavel, quanto, no dizer de Pogiali, arreda
de Dante o absurdo, que alguns lhe attribuem , de querer fazer acreditar, que o de
monio Marte, divindade de Florença pagā, podesse ser mais valioso protector de
Florença christā, do que o Sancto Precursor Baptista. Accorde com esta glosa é
outra, que se suppõe de Marsilio Ficino, que diz : Dum Florentini dilexerunt Mar
tem , id est fortitudinem , et virtutem armorum , habuerunt plurimas victorias, et bene
succedebat res, quoniam modo quæstum faciunt cum pecuniis, et vacant avaritiæ et
florenis, id est lucro et congregrationi Florenorum .
Quanto aos dous perdularios, que o Poeta encontra, o primeiro é um certo Lano
de Siena; o segundo é um Thiago Paduano, ambos prodigos de quinta essencia, dos
quaes falaremos opportunamente. Dante não mette os pagãos n'este gyro infernal,
porque os pagãos em geral não conheciam toda a gravidade moral do suicidio, nem
da dissipação dos proprios bens. Por isso Dido (a calumniada Dido ! ) , que amou
illicitamente Eneas, e, por elle abandonada , se suicidou, é punida no circulo dos
luxuriosos, e eis explicada a duvida do grande Torquato Tasso, a quem parecia
que a Rainha de Carthago estava fóra do devido logar.
Parecerá duro a muitos, que os suicidas sejam punidos mais severamente, que
os homicidas, e que os dissipadores dos proprios bens sejam punidos com mais ri
gor, que os roubadores dos bens alheios, sendo maior peccado matar outrem, do
que matar a si mesmo, espoliar outrem dos seus bens, do que dilapidar os proprios.
Mas ha uma consideração a fazer: os peccadores condemnados a um circulo infer
nal não padecem ali somente a pena d'aquelle crime, pelo qual foram sentencia
dos por Minos; mas padecem a pena de todos os outros peccados punidos nos cir
culos superiores ; por isso os suicidas n’este gyro não penam somente pelo suicidio,
mas por algum outro peccado, que possam ter commettido, excepto o da fraude.
Falando em geral, é maior a perversão de coração no suicida do que a do ho
micida; maior a perversão de coração no dissipador dos proprios bens, do que no
roubador dos bens de outrem ; por este motivo o Poeta philosopho moralista colloca
em seu Inferno os suicidas mais abaixo do que os homicidas. Accrescente -se que
o suicidio se antolha menos grave, que o homicidio, si o considerarmos como um
acto opposto á justiça, e á caridade ; mas, si o considerarmos como acto violento
opposto á razão humana, o suicidio apresenta -se de subito crime mais grave, do que
o homicidio ; porque não se pode conceber acção tão atroz, e injuriosa á razão
humana, do que a destruição do proprio ser. Alem de que, o suicidio envolve
um desprezo directo de Deus, ao passo que o homicidio, como desafogo de
raiva, ou de outra paixão brutal, envolve offensa, mas não desprezo; sendo menor
delicto offender a Deus, do que desprezal-o. Assim é que os philosophos moralistas
gentios, que conheciam a gravidade do suicidio , argumentavam : « A vida é um dom
de Deus; quem d'ella se despoja, repelle esse dom, e faz injuria á divindade ». Os
moralistas christãos, com S. Thomaz de Aquino, dizem : « suicidio é culpa gravis
sima, 1.", porque é contra o precioso instincto natural da propria conservação; 2.",
porque o homem não se pertence a si, mas á sociedade, a quem defrauda privando-a
do seu concurso, suicidando-se ; 3.°, sobretudo, porque o homem pertence a Deus,
senhor supremo da vida, e da morte, e tirar alguem a vida a si mesmo, é desprezar
o dominio de Deus, é tornar-se réo do crime de lesa Magestade Divina ». Não é di
gno do genero humano o homem, que, para evitar um mal transitorio, diz Gerson,
condemna-se ao mal eterno: no primeiro caso mostra-se cobarde, e no segundo
abominavel, preferindo a companhia dos demonios á dos seres da sua especie. O
INTRODUCÇÃO AO CANTO XII 275

homem que se mata, havia dito Cicero, incorre na infamia da sentinella, que aban
dona o seu posto .
J. J. Rousseau diz : « Si vos sentirdes tentado ao suicidio, saí immediatamente
de vossa casa ; entrae na casa de um pobre, e dae -lhe uma esmola ; e , si depois
d'esse acto de caridade, persistirdes no vosso atroz designio, então suicidae-vos, que
sereis um miseravel de mais, que a historia da humanidade registrará com desprezo,
e horror » .
Com effeito a fé, a razão, e a consciencia proclamam de concerto, que a nossa
vida é um deposito de Deus, que devemos diligentemente guardar para lh'o resti
tuir quando nol-o reclamar.
Outra allucinação deploravel é verem alguns no suicidio um acto de fortaleza,
quando pelo contrario é um triste documento de fraqueza, de que resulta infamia,
e não gloria ; porquanto a gloria, como define Marco Tullio, é a sombra da virtude :
ora, não podendo haver sombra sem luz, não pode tambem haver gloria sem virtu
de ; logo não pode havel-a no suicidio, que é a negação absoluta da virtude.
Em summa, o motivo, que mais actua no animo do homem, que recorre ao sui
cidio, é a descrença em Deus; a descrença na immortalidade da alma, e no Inferno,
e no Paraiso. Na sua obcecação mental, o suicida imagina que, sorvendo um
copo de veneno, ou fazendo os miolos voar pelos ares, está resolvido o problema
de seus males moraes, e physicos, e depois ... ? In peccato vestro moriemini. Mor
rereis no vosso peccado, disse Christo aos phariseos. Que peccado é este? É o endu
recimento do coração, é a impenitencia final; peccado, que não será perdoado nem
n'este mundo, nem no outro, diz Jesus Christo : Non remittetur ei neque in hoc sæ
culo, neque in futuro.
Na theoria physiologica de Dante, que logo veremos desenvolvida, ha lampejos não
equivocos d'este pensamento evangelico, visto como nos diz o Poeta : « Que o ho
mem, rompendo todo o consorcio com a virtude, para entregar-se ás concupiscen
cias viciosas, vae de gráo em gráo separando -se do uso da razão, até reduzir-se a
bruto em figura humana. Depois chega a furor tão bestial, que não só aliena o uso
da razão, como se despoja do seu proprio corpo, orgão da potencia sensitiva, trans
formando -se, qual uma planta silvestre, em potencia vegetativa ( Conv., III, 2 ).»
D'aqui nasce que os suicidas, que de seu moto proprio apagam lentamente em
si a vida intellectiva, e sensitiva (a razão e a sensibilidade), quebrando todos os élos,
que o prendem á existencia organica, sem lhes restar intacta, senão a potencia ve
getativa, ou a vida das plantas, são engenhosamente condemnados pelo Poeta a
transformarem -se no Inferno em arvores silvestres ; figurando que não poderão
no dia de juizo se reunir, como as outras almas, aos seus corpos naturaes, visto que
não é justo, que recuperem aquillo, que livremente repudiaram : Chè non è giusto
aver ciò ch ' un uom si togli.
N’este notavel canto o Poeta estabelece a pena de duas especies de violentos,
isto é, de suicidas, e perdularios. Essa pena é a mais porporcionada, e conveniente
á culpa commettida. Com effeito, nada mais justo, que os estranguladores volun
tarios de seus proprios corpos, deixem, não só de recuperal-os, mas que sejam dia
de juizo dependurados, cada um na arvore em que foi transformado, padecendo
assim, não só a pena do tormento, como a do opprobrio. Nada mais justo tambem,
que aquelles, que desbarataram violentamente seus proprios bens, e d'elles ficaram
de todo desnudados, appareçam no Inferno nus, perseguidos, e devorados por ca
dellas sedentas, do mesmo modo que no mundo devoraram sua fortuna instigados
de appetites sedentos. E porque a violencia contra os proprios bens se associa
muitas vezes com a violencia contra a propria vida, assim é conveniente, que estas
duas especies de violentos sejam punidos no mesmo circuito infernal. E assim como
276 O INFERNO

os violentos contra a propria vida peccaram mais gravemente , que os violentos con
tra os proprios bens, assim é justo, que aquelles recebam d'estes tormentos conti
nuos, quebrando -lhes, com as incessantes correrias precipitadas por dentro da selva,
as folhas das arvores, em que estão transformados. Finalmente, assim como os vio
lentos contra os proprios bens os dissiparam aos pedaços por toda a parte, assim é
justo que sejam no Inferno lacerados aos boccados pelas cadellas furiosas, e que
por toda a parte da selva arrastem os fragmentos ensanguentados de suas carnes.
Quanto ao conceito do Poeta, concernente ao modo estranho, por que no dia do
juizo será alterado o dogma da resurreição, e da união das almas com os respe
ctivos corpos em relação aos suicidas, deve o leitor comprehender : 1.", que não é
Dante, que o diz, mas sim um condemnado ignorante dos artigos da nossa fé ca
tholica ; 2.º, que é bem conhecida a orthodoxia do Poeta, para suppol-o capaz de
um erro intencional em ponto tão grave; 3.", que elle não mira a estabelecer aqui
um dogma contrario, mas somente phantasiar uma pena; que seria apropriadissima
a peccado tão horroroso, qual o suicidio ; 4.°, que dá a cousa como pura ficção
poetica, e pelo effeito scenico que poeticamente produz ; 5.", que a recuperação do
corpo, que é a pena do mesmo corpo, se realisa pela invenção dantesca ; 6.", que
o Poeta quer demonstrar assim que a resurreição dos corpos, para os condemna
dos, não é uma resurreição para a vida, mas para a morte, segundo um pensamento
de Sancto Agostinho, que o nosso padre Pereira Caldas parece ter paraphraseado
n'estes dous bellos versos:

« Não surgireis de gloria revestidos


Na assembléa dos justos .»

No commentario, que acompanha a cada verso do texto , que exigia illustração,


não me estendi com menos largueza nos pontos, em que julguei indispensavel sair
ao encontro a opiniões erroneas, e vulgares. La verità nulla menzogna frodi. A
verdade, que, no dizer do nosso Poeta , zomba de todas as fraudes da mentira, é
o horizonte, que deve guiar todo aquelle, que se propõe penetrar nos pensamen
tos de um auctor, e de um auctor como Dante, cujos maravilhosos traços de pu
jança poetica excitam-nos a meditar no assumpto d’este canto. Veremos quanta
vida, quanto affecto predomina, sobretudo, na tocante exposição do infeliz secre
tario de Frederico II , e quanta verdade em todas as circumstancias ! A eloquencia
não poderá produzir mais esplendidos exemplos. Surprehende a variedade, e oppor
tunidade dos incidentes, que surgem como centelhas, que não só completam a
descripção da triste selva dos suicidas, como nos representam ao vivo a diversa
imagen de seus habitadores. As comparações são tão expressivas, e naturaes que,
ao passo que esclarecem os conceitos do Poeta, os reproduzem inteiros, e palpa
veis. Ahi o verosimil reveste as galas de verdade evidentissima: tão poderosa é a
palavra imitadora da natureza , já no tocante á indole, e movimento das paixões, e
exigencias da historia, já quanto á acção, e situação das cousas vistas, e ouvidas.
Em tão estupendo quadro a razão, e a phantazia offerecem -nos por guia, e con
forto no viver moral e civil, os mais altos ensinos, como si o Poeta não tivesse
outro fim , senão o convidar -nos a tirar todo o proveito da sua proficua doutrina .
CANTO XIII

Passa o Poeta ao segundo gyro, onde são punidos os suicidas, e os delapidadores. Os primeiros transformados
em arvores nodosas, sobre as quaes nidificam as Harpias. Os segundos perseguidos, e dilacerados por ca
dellas furiosas. Encontra Pedro delle Vigne , de quem ouve a causa por que se suicidou, e as leis da divina
Justiça a respeito dos suicidas. Vê depois Lano, Sanese , Thiago de Sancto André Paduano ; e fina m! ente
ouve de um suicida florentino a origem das desgraças da sua terra.

Não tinha Nesso ainda repassado a fossa de sangue fervente, ( 1)


quando nos mettemos por um cerrado bosque, em que não havia
vestigio algum de vereda.
As folhas das suas arvores não eram verdes, mas escuras, ( 2) OS
ramos não eram lisos, mas nodosos , e tortos, não tinham outros fru
ctos, que espinhos venenosos.
Aquellas feras silvestres, que em odio aos logares cultivados, es
tanceiam entre a margem do Cecina, e os limites de Corneto, (3) não
formam os seus covis de estrepes tão asperos, e densos.
Sobre as arvores d'aquelle bosque nidificam as horridas Harpias,
que expelliram os Troianos, das ilhas Strofades, como triste prognos
tico de futuros desastres . (4)
Essas Harpias têem as azas largas , o pescoço, e o rosto de forma
humana, os pés artilhados de unhas, o ventre enorme, coberto de
pennas , e soltam sobre aquellas arvores estranhas, lamentosos gras
nos . (5)
O bom Mestre começou a dizer -me: « Antes que penetres mais no
bosque, importa que saibas , que estás no segundo gyro d'este septimo
circulo, e por elle caminharás, até que chegues ao horrivel areal in
flammado .
« Por isto olha, e repara bem , que has de ver cousas inauditas ,
que darão testemunho do caso narrado na minha Eneida. (6)
278 O INFERNO

De toda a parte eu ouvia saír ganidos, sem que visse pessoa al


guma, que os podesse soltar : por este motivo parei confuso , e ame
drontado.
Eu creio, que Virgilio creu, que eu cresse, (7) que aquellas vozes
saíssem de gente, que se occultou de nós entre o silvedo.
Pelo que me disse o Mestre : « Si cortares um raminho de qualquer
d'estas arvores, que estás vendo , conhecerás que te illudes sobre a
origem dos lamentos, que te espantam . »
Então, estendendo um pouco o braço, colhi um raminho de uma
grande arvore, (8) e o tronco gritou : «Porque assim me rompes ?»
Depois que o sangue, que escorreu da ferida se tornou quasi ne
gro, o tronco recomeçou a gritar : « Por que me dilaceras ? (9) não tens
tu algum sentimento de piedade ?
«Nós, que agora nos achamos convertidos em vergonteas, fomos
homens ; e por certo que a tua mão seria mais compassiva, si houve
ramos sido almas de serpentes ! »
Da mesma sorte que um tição verde, ardendo de um lado , do
outro estilla, chiando por causa do vapor, que sáe de dentro impel
lido pelo fogo : (10)
Assim do ramo d’arvore, por mim cortado, saíam palavras, e
sangue ; por isso o deixei caír na terra, ficando eu confuso, como o
homem, que tem medo. (11)
O meu Mestre lhe respondeu por mim, dizendo : «Ó alma offen
dida , si este tivesse podido crer o prodigio, que antes viu narrado
na minha Eneida, certamente não teria estendido a mão ás tuas fo
lhas. (12)
«Mas o phenomeno a elle incrivel, me fez indųzil -o a practicar um
acto, de que eu mesmo me arrependo.
« Mas dize- lhe , quem foste, como te chamaste na terra, a fim de
que elle, na impossibilidade de reparar a tua dôr, possa refrescar
a tua fama lá no mundo, para onde lhe é permittido voltar ? »
E o tronco respondeu a Virgilio : «Tão seductoras são as tuas
palavras, ( 13) que não posso deixar de te obedecer ; e pois te rogo, que,
si não é penoso a ti, e a elle, me seja licito entreter-vos por alguns
momentos .
«Eu sou aquelle, que possuiu ambas as chaves do coração de Fre
derico, (14) abrindo-o, e fechando - o tão suavemente, que logrei excluir
do seu segredo quasi todos os homens : tão fiel fui ao glorioso officio
de secretario, que perdi o somno , e os pulsos . ( 15)
« A meretriz, morte commum, e vicio das côrtes, que não desvia
nunca os olhos lascivos do palacio de Cesar, inflammou contra mim
todos os animos, ( 16) e estes , por sua vez inflammaram Augusto por
CANTO XIII 279

modo tal , que todas as honras alegres se me converteram em tristes


luctos .
« O meu animo, pelo depravado gosto de desafogar a sua indigna
ção, crendo com a morte pôr-lhe termo definitivo, de justo me fez in
justo contra mim proprio. ( 17)
« Pelas novas raizes d'esta arvore, (18) juro-vos que jamais faltei á
fé, que devia ao meu Senhor Frederico, que era digno de honra. ( 19)
« E si algum de vós voltar ao mundo, restabeleça lá a minha me
moria , que jaz ainda sob o golpe, que lhe descarregou a inveja.»
Virgilio esteve um pouco attento, esperando que o condemnado
continuasse : e quando viu que emmudecêra, me disse : « Cumpre não
perder tempo : agora fala tu , e lhe perguntes o mais que te convier. »
E eu lhe respondi : « Continúa tu mesmo a interrogal-o sobre algu
ma cousa , que julgares me possa interessar ; porque lhe não poderei
falar ; tanta é a piedade, que o coração me punge ! » (20)
Então Virgilio recomeçou, dizendo: «O espirito encarcerado n’esta
arvore, si queres, que o homem , voltando ao mundo, satisfaça livre
mente o que pedes , praze-te dizer-nos ainda de que modo a alma se
liga a estes troncos nodosos ; e dize-nos, tambem , si sabes, se alguma
d'ellas não se liberta nunca de taes prisões ?» (21)
Após esta pergunta o tronco assoprou fortemente, ( 22) e o seu as
sopro se traduziu n'este som : «Responder-vos-hei, mas em termos
breves .
« Quando a alma deshumana sáe do corpo, de que voluntariamente
se despoja, Minos manda que desça ao septimo circulo. (23)
« Cáe n'esta selva, não em logar escolhido, mas aonde o acaso a
quer lançar ; e ahi germina como grão de cevada.
« Começa por um pimpolho, e acaba por uma arvore silvestre : as
Harpias, alimentando-se das suas folhas, causam á alma dôr cruel,
que se desafoga em sentidos lamentos.
« No dia do juizo universal, nós nos desprenderemos d'estes tron
COS, procuraremos, como as outras almas, reassumir os nossos cor
pos ; mas não é justo, que o homem tenha aquillo, que uma vez repu
diou .
«Aqui arrastaremos os nossos corpos ; e por esta selva, serão
dependurados , cada um na arvore, que encerra a sua alma funes
ta , » (24)
Estavamos ainda attentos ás palavras do tronco, 25; crendo que
outras cousas nos quizesse dizer, quando fomos surprehendidos por
um rumor, similhante aquelle , que desperta o caçador ao ouvir, pelo
estrepito das folhas, e ganir dos cães, que o porco vem accossado na
direcção do sitio da espera . (26 )
280 O INFERNO

Eis que da nossa esquerda irrompem dous espiritos nús, e dilace


rados , correndo com tanta força, e impeto, que rompiam a bastidão
da selva. (27 )
O de diante gritava : « Corre, ó morte, corre em meu soccorro !» (28)
E o de traz , a quem parecia correr menos do que o primeiro, gri
tava : « O Lano, tão rapidas não foram tuas gambias na peleja de
Toppo !»
E talvez porque na carreira o folego lhe faltasse, atirou-se dentro
de uma moita, formando com ella um só grupo. ( 29)
Pela rectaguarda de ambos, a selva estava apinhada de cadellas
negras, sedentas , que os perseguiam (30) tão veiozes, como galgos des
atrelados da cadeia .
Aferraram os dentes n'aquelle, que se escondêra na moita ; o di
laceraram com toda gana em mil pedaços : depois levaram comsigo
aquelles fragmentos tristes.
Virgilio então me tomou pela mão, 131 ) e me conduziu á moita, que
em vão chorava com a dôr das feridas, que as cadellas lhe abriram
nos ramos. (32)
Lamentando -se, dizia : « O Thiago de Sancto André (33) de que te
serviu fazeres de mim o teu anteparo ? Que culpa tenho eu das pro
digalidades da tua vida ? »
Quando o Mestre parou sobre a moita plangente , perguntou :
« Quem no mundo foste tu , que pelas feridas dos teus ramos assopras
com sangue tão dolorosos lamentos ? » (34)
E ella nos respondeu : « O almas, que viestes ver o estrago cruel,
que separou de mim os meus galhos , ajuntae-os, e os collocae dentro
d'esta triste moita . (35)
« Eu fui da cidade, que trocou pelo Baptista o seu primeiro pa :
trono ; por isso este, offendido de tal affronta, fara que sobre ella pese
sempre o flagello da guerra . (36)
« E si , na ponte velha, por onde passa o Arno, não restasse ainda
algum vestigio da sua estatua , debalde teriam trabalhado aquelles ci
dadãos, que reedificaram Florença sobre as cinzas em que a deixou
Attila ; eu fui aquelle, que de minha casa fiz o meu patibulo.» (37)
COMMENTARIOS AO CANTO XIII

( 1 ) Non era ancor di là Nesso arri outro qualquer meio violento se suici
vato. Como si dissesse : « Não tinha Nesso
acabado de repassar o váo do rio de
sangue ( Inf., XII, 138), quando entramos
1 dam .
( 3 ) Tra Cecina e Corneto ... A saber:
Não formam seus ninhos de estrepes
por um bosque, em que nenhum vesti mais espinhosos, nem de vergonteas
gio havia de vereda » (Conv., IV, 7 ) ; tão mais espessas aquellas feras selvagens,
selvagem era aquella selva ! que habitam entre as margens do rio
(2 ) Non frondi verdi, ma di color fos Cecina da Toscana, e o antigo castello
co. Querendo dizer : « Não eram verdes de Corneto .
as folhas de suas arvores, mas de côr (4) Con tristo annunzio di futuro dan
escura; seus ramos não eram lisos, no. Allude aqui Allighieri áquelle passo
como o junco ( Purg ., 1, 95 ) mas nodo da Eneida ( liv . iu ), que Barreto Feyo
sos, e entrelaçados por serem asperos, verteu assim :
e espessos ; não eram doces os seus po
< A Halia demandaes , e, supplicando
mos, mas venenosos estrepes » ( Purg ., Dos ventos o favor, ireis á Italia ,
XIV, 95). É esta uma pintura, a que não E dado vos será entrar o porto :
faltam as tintas, que prenunciavam a Mas antes que a cidade promettida
escola de Tintoreto, é de Ticiano ! De muralhas cerqueis , horrenda fome,
E a atroz injuria da cruel matança
Allegoricamente quer o Poeta signifi Que feito nos haveis, háo de obrigar -vos
car por este bosque cerrado a desespe Com os dentes roer as proprias mesas , »
ração do peccador, o qual não tem ou
tro caminho, que o da perdição, como Esta funesta predicção foi feita a
acontece ao pegureiro que , enredado Eneas por Celeno, uma das tres Har
n’uma densa selva , atira-se desensoffri pias, habitadoras d'aquellas ilhas do mar
do e cego por ella dentro, precipitan Jonio, e que eram chamadas enganado
do-se de abysmo em abysmo até per ras (pelote on rigiranti), que tiveram
der-se de todo (Butti ). por isso o nome Strofadi, hoje Stri
Quer ainda significar que os homens vali.
em estado de desesperação tornam - se ( 5 ) Fanno lamenti in su gli alberi
peiores que as feras; porque estas não strani. Arvores estranhas, isto é, diver
só não perdem o amor á propria exis sas de toda outra arvore , por serem
tencia, como armam -se de toda a sua aquellas arvores silvestres como um
ferocidade natural para defender a vida, pimpolho das almas ferozes, que se des
emquanto os homens, despindo a arma pojaram do proprio corpo, suicidando -se
dura da resignação philosophico -chris ( v. 97 a 100 ). Não advertiu n'isto Bia
tá, fazem voar os miolos, ou por gioli quando opinou, que o qualificati
282 O INFERNO

vo strani deve ser dado a lamenti, e no circulo, onde são punidos os suicidas,
não a alberi; não reflectindo que fanno e os dissipadores dos proprios bens ?
( fazem ) tem aqui significação de cagio Para responder a esta pergunta não
nano ( causam ), visto que as Harpias, preciso mais do que lembrar, que as
alimentando-se das folhas das arvores almas dos suicidas, e dos dissipadores,
estranhas, cousam dôr acerba ás almas foram convertidas em arvores silvestres,
encerradas n’ellas, as quaes almas ex e qual fosse a razão d'esse estranho
primem essa dôr por meio de lamentos. phenomeno, veremos opportunamente .
Fanno dolore ed al dolor finestra. Abrir Entretanto, devendo essas arvores ser
a janella á dôr é uma bonita expressão dilaceradas em suas folhas em tormen .
metaphorica, que vale o mesmo que di to cruel das almas n'elles encarceradas,
zer : abriu os olhos ao pranto , como não podia o Poeta escolher ministros
desafogo á dôr. mais proprios para executarem essa

Creio que não será sem interesse pena , imposta pela divina Justiça, do
confrontar esta descripção das Harpias que demonios em figura de Harpias, que
com aquella , que primeiro fez Virgilio, derivam o seu nome da palavra rapa
e com aquella, que depois fez Ariosto ; cidade. É sempre invariavel em Dante
porque só assim se poderá melhor apre a intenção de apropriar aos demonios
ciar a superior mestria do pincel de aquelles nomes extrahidos da mytholo
Dante, o qual, ainda mesmo quando gia, ou das crenças que reinavam nos
quer ser simples imitador, torna- se in tempos dos falsos, e mentirosos Deuses
imitavel . Eis as palavras de Mantuano : ( Inf ., 1, 72 ) ; escolhendo os nomes que
« ... Teem estas aves
melhor correspondessem ao ministerio
Semblante de mulher, fetido fluxo horrivel, exercido por esses demonios,
Lhes sae do ventre ; as unhas têem aduncas, e á qualidade da pena, a que a culpa
E os rostos sempre pallidos de fome . » condemna os miseros, que não a sou
(.Eneid ., III , 2 , 15. ) eram evitar.
Por isso mais de uma vez temos
Estas ultimas palavras alembram de advertido, que os demonios, e anjos ne
prompto aquella voracidade com que gros, que figuram no 1.º Cantico da
as Harpias, dilacerando as folhas das Divina Comedia, são os ministros da
arvores estranhas, causam dôr acerba alta Providencia , e infallivel Justiça ( Inf.,
ás almas dos suicidas. Alem d'isto o nosso XXIII, 56 ), e que os nomes, que lhes são
gentil Poeta toscano desenha mais de attribuidos, derivados da Escriptura Sa
licadamente aquella fædissima ventris grada, ou das tradições do paganismo,
proluvies virgiliana , descrevendo o pen não devem ser considerados, senão sob
nute il gran ventre ( o grande ventre aspecto do ministerio, que exercitam,
guarnecido de pennas), e com o epithe em relação á diversa condição das almas
to de brutte (hediondas) dado ás Harpias, condemnadas. Sem esta advertencia ,
bastou para fazer comprehender tudo nos acharemos tão embaraçados, e con
mais. ſusos entre o sacro, e o profano, entre
Sinto que a brevidade me não per a verdade , e o erro, que mal poderemos
mitta reproduzir aqui por inteiro a des penetrar na mente do soberano Poeta,
cripção, que d'estas Harpias nos faz ao qual a historia, e fabula, a theo
Ariosto, na qual reuniu as melhores logia, e a philosophia deviam ministrar
bellezas de seus dous mestres Virgilio, os meios de demonstrar, e diffundir
e Dante; accrescentando algumas fugiti verdades uteis á humanidade . Em sum
vas particularidades. Quem quizer, póde ma, no seu engenhoso systema penal
ler essa descripção no Orlando Fur. , brilha a mais perfeita congruencia entre
XXIII, 120. a culpa, e a pena, como entre os réos ,
Mas porque Dante collocou as Harpias e os executores.
COMMENTARIOS AO CANTO XIII 283

(6) Cose che daran fede al mio ser te. « Então, como me havia dito o meu
mone ... Como si dissesse : « Antes que Mestre , estendi a mão, e colhi um ra
penetres mais n'esta selva, quero que minho de uma grande arvore, e o tron
saibas, que estás no segundo gyro do co gritou : « Porque me cortas ? » Verda
septimo circulo infernal, 'onde, como deiramente Allighieri não tinha feito ,
já te disse, são punidos os violentos senão colher un raminho, sem empre
contra si mesmos (os suicidas) , e os gar a menor violencia. Mas a dôr, e a
dissipadores de seus proprios bens, e offensa á alma, transformada em tron
n'este gyro estarás, até que chegues co, a obrigou a proromper n'aquellas
a um horrivel areal, que forma o ter exaggeradas palavras, aliás proprias de
ceiro gyro. Por isto, cumpre ( traduzem quem se queixa de algum mal , que se
alguns) que prestes toda a attenção, lhe faz, por pequeno que seja.
porque has de ver cousas tão incriveis, ( 9) Da che fatto fu poi di sangue bru
que não acreditarias, si eu te as dis no . Querendo dizer : « Quando saíu o
sesse. Cose che torrien fede al mio sangue da ferida feita por mim na arvore
sermone» . Aqui sermone tem a significa tornou - se negro , e o tronco entrou a
ção de rima, verso , ou narração, no sen gritar: « Porque me dilaceras? »
tido mais lato . A Crusca lê, de confor E este um caso identico ao da Enei
midade com muitos codices, torrien ou da de que se falou ha pouco. Si se con
torrian, nem de outro modo se deve fronta o de Dante com o de Virgilio,
ler, como adiante se verá. Aquelles po se conhecerá que Dante lhe fica mui
rém, que preferem como eu a lição Cose superior. Eis as palavras, que Virgilio
che daran fede al mio sermone declaram põe na bocca de Eneas ao narrar o
que Virgilio quiz advertir a Dante que, facto, que lhe aconteceu na Thracia ,
dentro em pouco, elle veria cousas, que no momento de cortar lenha n'um ou
tornariam crivel o facto por elle narrado teiro para fazer um sacrificio aos deu
na Eneida ( liv. III, 22 ), que se verá logo. ses :

( 7) ľ credo ch ' ei credette ch'io cre « Subi: e procurando com esforços


desse. Este jogo de palavras , que a Desarreigar da terra um verde arbusto ,
Venturi pareceu pouco digno de imita Para c'o os ramos seus cobrir frondentes
Os altares, prodigio vejo horrendo,
ção, foi por modo diverso, diz Biagioli, E que, dito, mal pode acreditar- se !
julgado por Boccaccio, Petrarca, e Arios Pois o primeiro , que do chão arranco,
to, os quaes deram-lhe tanto apreço , Das quebradas raizes se distillam
que com pouca variante o empregaram, Gottas de negro sangue, e a terra tingem ,
especialmente Ariosto , como n'este D'outro a quebrar flexivel ramo,
exemplo : lo credea e credo e creder Por sondar do prodigio a causa ignola ;
credo il vero: Eu cria, e creio, e crer E atro sangue d'esse outro sae de novo .
creio a verdade . O caso foi que Virgilio ,
Callar devo ? ou dizel - o ? um lastimoso
vendo Dante apavorado , creu que elle Gemido lá do fundo sảe do monte,
cresse, que aquellas vozes lamentosas, E esta voz vem ferir os meus ouvidos:
que saíam do meio das arvores, eram Porque a mim misero, Eneas, dilaceras ?
de gente viva : da gente d'anime ( Purg., Perdoa a um já sepulto ! as mãos piedosas
Contaminar não queiras ! Não estranho
III, 58), e por isso, para remover - lhe a A ti me gerou Troia : de insensivel
duvida, disse-lhe : « Si cortares um ra Planta este sangue não dimana. Ah foge
minho de uma d'estas arvores , verás com Estas terras crueis, e praia avara !
toda a certeza que esses lamentos , que Que Polydoro eu sou ....
( B. Feio, trad .
te amedrontam , não partem , como tu
crês, de pessoas que, ao verem -nos ( 10) Come d'un stizzo verde, ch ' arso
chegar, esconderam -se envergonhadas sia Dall'un de'capi, che dall'altro geme,
do seu ignobil supplicio ». E cigola per vento che va via. Esta com
(8) Allor porsi la mano un poco avan paração é immensa de belleza, e unica
284 O INFE
RNO

em seu genero ! Devia -se procurar na ( 11 ) ... ond' io lasciai la cima Cadere,
natureza uma cousa, que se assimilhas e stetti come l'uom che teme. Dante, es
se a este tição, que , ferido, se ensan pantado de tão estranha novidade , dei
guenta, e fala. Ora essa cousa Dante a xou cair da mão o raminho colhido, e
tinha sob os olhos, e era o tição. Tudo ficou confuso como homem, que teme.
estava em vel-a, e o vel -a não cabia Quanto não é mais bello, e natural este
senão a Dante, como só a Dante cabia medo de Dante, do que a impavidez de
exprimil-a com palavras adequadas. Um Eneas em continuar a arrancar as ver
tição verde é cheio no amago de ar gonteas ! É tão pouco naturalque Eneas,
frio, e humido. Metta -se no fogo de um vendo ensanguentar-se a primeira ver
lado, e fique fóra do fogo do outro lado, gontea, continuasse a quebrar a segun
que tem a ferida do ferro, que o cortou . da, e a terceira ; como é muito natural
A chamma que arde do outro lado, que Dante não conservasse na mão a
impelle o ar frio, e humido a saír do primeira folha colhida, depois do phe
outro lado pelo unico vehiculo, que en nomeno , que o pôz a tremer de me
contra, e este vehiculo são as veias do do .
páo pelas quaes o ar corre até achar Afigura -se -nos ainda vel-o n'aquella
saída pelo talho do lado contrario ao improvisa agitação de espanto !
fogo, onde se reune todo o humor, e Biagioli observa que d'este galantissi
onde sopra aquelle ar, que por ali se mo simile do tição verde serviu -se
desprende chiando. Nas palavras pois, Ariosto em dous logares do seu Poema;
que têem o zeos ( Sti770, arso sia ), e e quem quizer ler suas bellas estrophes
na palavra, que faz o c doce (cigola ) (Orl. Fur ., Vi, 27, 32 ) conhecerá como
ouve - se como um gemido do páo, e o os grandes genios se entendem entre si,
ferver de seu humor: nas que têem o e que insigne exemplo de imitação ahi
( vento che va via ) ouve -se o sibilo do se nos depara.
ar, que síe impellido pelos calores con Tasso tambem imitou o caso referido
trarios, isto é, pelas chammas, que ar por Virgilio (Gerus., XIII, 41 ); mas imi
dem do outro lado. De forma que n'este tou menos felizmente que Ariosto,
tição ha gemidos, e gritos ; ha humor, e assás menos habilmente que o nosso
que gotteja, ha ferida, e até a causa, que Alighieri, o qual, mais por honrar a seu
produz esta especie de sangue, e de pa Mestre, do que por imital - o, serviu -se
lavras, que são o tormento , que o páo da sua imagem ; mas revestindo-a da
sente pelo fogo de um dos lados. Esta mais graciosa novidade , e artistica sin
admiravel, e inimitavel comparação da geleza .
ria materia para um tractadosinho de ( 12 ) S'egli avesse potuto creder prima
physica ! ( Bennassutti ). ..pur colla mia rima. Como si dissesse :
Em summa, n'este simile dantesco ha « Si este, que está commigo, tivesse acre
dous actos distinctos : a ponta do tição , ditado antes, pela leitura dos meus ver
que arde no fogo, geme distilla gotta sos, na exactidão do facto de Polydoro
por gotta o proprio humor (Purg. , XX, por mim narrado no terceiro livro da
7 ), e a outra, que está fóra do fogo, ex Eneida , não se admiraria de saber ago
halando o ar impellido pelo calor, esta ra , que estas arvores silvestre são almas
la chiando : o primeiro acto demonstra humanas d'aquelles, que livremente se
nos o sangue, o segundo as palavras, despojaram de seus corpos, e por isso
que saíam do tronco ferido (scheggiato não lhe teria motivado tão grande dôr,
tronco ). As comparações de Dante têem cortando o teu raminho, mas eu , que o
o particular privilegio de realçar, e no. sabia, lhe recommendei que colhesse uma
bilitar os objectos, a que se referem , por pequena folha, para te causar a menor
mais' vulgares, e humildes que ellas se dôr possivel; porque eu devo fazer - lhe
jam ! conhecer todas as penas do Inferno, e
COMMENTARIOS AO CANTO XIII 285

elle não podia conhecer a sua, sem fa Ballata : Volgendo gli occhi al mio nuovo
zer esta experiencia .» colore, lá onde diz : Del mio cor don
( 13) El tronco : Si col dolce dir na , luna, e l'altra chiave Avete in ma
m'adeschi. E a arvore , em que estava no , etc.
transformada aquella alma offendida res Este espirito, que ora fala , governou
pondeu a Virgilio : « Com tão doces pa o coração de Frederico II, ultimo Impe
lavras me lisonjeas, lusinghi ( Inf., XXXII, rador dos Romanos ( ultimo em relação
96 ), que não me posso calar, tacere, ao tempo em que Dante escrevia o
não havendo nada mais caro aos con Convito, iv, 3) . É sem duvida Pedro das
demnados do que terem noticias do Vinhas, que exerceu junto a elle o offi
nosso mundo , e que n’elle se lhes resti 'cio de chanceller, ou dictador, que hoje
tua a fama, si renda fama ( Inf., XXXI, se chamaria secretario de estado. E
125) , e não vos seja penoso , como não sabemos pelo historiador Giovanni Vil .
é a mim, ainda mesmo no meio de tan lani « que algum tempo depois de 1236,
to tormento , ouvir.me por um pouco » . aquelle Imperador fez cegar o sabio
Isto confirma quam vivo, e poderoso é mestre Pedro das Vinhas, o bom Di
n'esta alma o desejo que no mundo dos ctador, attribuindo-lhe o crime de trai
vivos lhe seja restabelecida a memoria ção ; mas isso foi parto da inveja, que
damnificada pelos ardis da inveja ( v.78). a sua alta posição desafiou nos ou
Em todas as palavras com que Pedro tros cortezãos. Por isso o infeliz por
das Vinhas (Pier delle Vigne) começa à doloroso desgosto deixou-se morrer na
falar, como nas outras com que adorna prisão, e ha quem diga que elle a si
a sua justificação a Virgilio, ha tanta proprio tirou a vida, batendo com a ca
variedade de affectos, tanta efficacia, e beça na parede do carcere » . No registo
conveniencia, que quanto mais se me dos privilegios do Hospital Novo de
dita n'ellas, mais perfeição se lhes reco Pisa (registo chamado do Papa Alexan
nhece. «As palavras lisongeiras são dre , e pertencente ao archivo d'aquella
aquellas, que se dirigem ao affecto in cidade ) lê- se : « Arguido de ter faltado á
telligivel ou racional de outrem , com a fé a seu amo Frederico II , Pedro das
intenção de excital-o a satisfazer o nosso Vinhas (que se achava com o Imperador
desejo (Conv., 11, 8 ). em Samminiato ), depois de o mandarem
( 14 ) I’son colui, che tenni ambole chia cegar, fizeram - n'o conduzir a Pisa , a
vi. As chaves indicam o poder que al fim de ser apedrejado. O misero preve
guem tem sobre uma cousa , sobre uma niu esse martyrio, precipitando-se do ca
cidade , uma fortaleza, etc. São especial vallo em que ía montado, e esmigalhan
mente o symbolo, não só do poder es do desesperadamente o craneo. D'onde
piritual, que ao Pontifice Romano é resultou que morreu na egreja de San
dado de fechar, e abrir o Céo ( Inf., XXVII, cto André em Brottotaia » . Os cortezãos
104 ); mas tambem a insignia do sum malvados, diz Bevenuto de Imola, ti
mo poder da Egreja (Par., XXVII, 49 ). nham -n'o accusado juncto a Frederico
Por aqui se pode comprehender , que a de que , não só se tinha feito mais rico
significação das palavras tenere le chiavi do que o Imperador, como de que to
d'un cuor importa ter pleno dominio das as felizes resoluções , e emprezas
n'elle, fechando - o, e abrindo-o a seu d'este eram por elle attribuidas ao seu
talante , quer no sentido sim, quer no proprio engenho, não hesitando até
sentido não, quer inclinando-o ao amor, de revelar os segredos de estado ao
quer ao odio, tanto as pessoas, como Pontifice Romano. Movido por esta
ás cousas. E este modo de exprimir o suspeita, mais do que por outra cousa,
poder de alguem sobre o coração d'outro aquelle Imperador, em uma carta, qua
foi por muitas vezes , e variamente lificando de traidor o calumniado Pedro
adoptado por Petrarca, sobretudo no das Vinhas, declara o motivo ou pre
286 O INFERNO

texto por que lhe infligiu tão barbara dominados da paixão ruim , diffamam a
pena ». reputação, que lhes faz sombra» (Conv.,
Como quer que seja, Dante diz que o 14). Ora foi isto exactamente o que fi
sabio dictador soube voltar suavemente zeram os cortezãos contra o tão privi
as chaves do coração de Frederico II , legiado, e poderoso secretario, conse
governando - o tão dextramente, que guindo que o credulo Imperador, alem
afastou quasi todo o homem de parti de despojal- o de todas as honras, o con
cipar do seu segredo, do qual só elle demnasse a tão barbara pena ; de modo
era depositario. que essas honras, que antes o tornavam
(15) Fede portai al glorioso ufizio, alegre ( lieto ), se converteram em tris
Tanto ch'io ne perdei le vene, e i polsi. tes luctos, isto é, em prantos, e miserias
« Fui fiel ao glorioso officio de secre Mas o que sobresae em todo este qua
tario, de que tanto me honrei, e tão dro é a maneira por que o Poeta nos
fiel, que pelos graves, e incessantes cui representa a obra assidua, e concorde
dados, que consagrei ao desempenho de com que os cortezãos machinaram a
todas as incumbencias do meu augusto perdição d'aquelle, que os avantajava
senhor perdi com vigilias as forças, e em poder, valimento, honra, e fama.
a saude» . Por aqui mais ou menos se jul Pedro das Vinhas era homem de peque.
ga da medida, e do vigor dos pulsos, e no sangue (de baixa estirpe ), mas de
dos espiritos vitaes, que junctamente com grande engenho, e conhecimentos, como
o sangue se espalham pelas arterias. Isto provam seus escriptos, sobretudo suas
conforma - se com a doutrina de Aristote cartas.
les (De Spiritu, c. 3 ), o constante mes Advirta- se que quando o Poeta diz
tre do nosso Poeta . E por isso me parece que a inveja é morte, e vicio commum
dever seguir, como mais segura, a lição das côrtes, não quer dizer que seja só
perdei il sonno e i polsi de preferencia vicio especial das cortes, mas que é vi
á mais vulgar perdei le vene, e i polsi ; cio commum a todos os homens, qual
visto que por esta dir -se -hia que o in quer que seja a situação em que se
feliz secretario encontrou a morte nos acham .
zelosos, e fieis cuidados, que emprega ( 17) Ingiusto fece me contra me gius
va no cumprimento do seu officio, to. Como si dissesse : « Eu era innocen
quando pelo contrario a tudo se sujei te quanto ás culpas, que me imputaram ,
tou voluntario, mal tendo sabido resis e julgando, no meu desespero, achar
tir á calumnia, e á injusta pena de ter conforto na morte, dupliquei minha des
faltado á fé a quem aliás a tinha consa graça, suicidando-me, vindo a parar
grado, e mantido illesa. Le vene, e i pol n'este abysmo de tormentos. Digo que
si. D'estas mesmas expressões usou me tornei injusto contra mim, porque
Dante (observa Bianchi) no primeiro destrui uma cousa, que não era minha,
canto : Ch'ella (a loba ) mi fa tremar le a vida, que é propriedade do Creador.
vene, e i polsi. Algumas edições trazem D'aqui se vê quam grave delicto com
lo sonno , e i polsi, isto é, primeiro o mettem os suicidas, dispondo de uma
somno pelos graves cuidados, e veladas vida, que não é sua.
noites no serviço do Principe, e depois ( 18) Per le nuove radici d'esto legno.
os pulsos, isto é , a vida. Ambas as lições Isto é, pelas novas raizes d'esta arvore
são admissiveis, porque abundam no em que estou encerrado, juro que sejam
mesmo sentido.
ellas dilaceradas segunda vez (v. 33,
( 16 ) La meretrice, che mai dall ' ospi 35 ), si eu não falo verdade ! Juro-yos
zio Di Cesare non tolse gli occhi putti. que jamais fui infiel a Frederico, meu
A meretriz aqui é a inveja . « Os invejo soberano, que foi tão digno de honra ,
sos, vendo alguem em posição excellente, como a fama o apregoa : Che fu si de.
tomam isso como desdouro proprio, e gno d'onore como la fa grida.
COMMENTARIOS AO CANTO XIII 287

Dante, por uma subtileza inimitavel condemnado a pena tão barbara, e igno
do seu engenho, suppõe que toda a fo bil, todavia não lhe falta com a justiça ;
lha, que se arranca de uma d'estas ar ensinando -nos assim o nosso Mestre a
vores, caindo em terra, immediatamen não escurecermos as boas qualidades,
te germina , cresce, e se torna tambem que porventura tenham aquelles,. que
uma arvore, reduplicando assim o tor nos offendem , e que por este acto ma
mento do suicida com a reduplicação da gnanimo os castigamos honestamente.
arvore, em que está convertido . Por isso Qualquer que seja o juizo, que a his
será usar para com elle de grande com toria possa fazer dos homens que aprou
paixão, como veremos logo, reunir - lhe ve a Dante recommendar ao desprezo,
as folhas ao tronco, impedindo d'est'arte , ou ao favor da posteridade, não invali
quanto é possivel, a reproducção de no dará de certo a narração persuasiva ur
vas arvores, e de novas dores ; porque dida por elle, cuja delicadissima sensibili
reunida assim a folha ao tronco , ainda dade, magoada por infortunios proprios,
que germine, todavia germinará na mes o levava a participar dos alheios, como si
ma raiz da arvore mãe, e diminuirá a elle mesmo os padecesse, representan
prolificação, e a extensão da dôr. Ora, do-os de modo a interessar profunda
como vimos, tendo Dante deixado cair mente a nossa alma. Esta narração do
na terra a folha, que cortára , immedia lorosa, que elle põe na bôcca de Pedro
tamente ella penetrou no solo, e não das Vinhas é um dos mais estupendos
era mais possivel reunil- a á arvore, que esforços da eloquencia, a qual, irrom
encarcerava Pedro das Vinhas. pendo do coração ulcerado do infeliz,
Quando o condemnado diz, que jura vae impulsionar, mover, e conquistar a
pelas novas raizes d’esia arvore, quer ternura do mais obdurado coração !
dizer, que jura pela sua vida. Chama ( 20 ) ... Se l'uom ti faccia . Bellissimo,
novas raizes, porque elle se havia sui e naturalissimo ! Lá estavam dous, Dan
cidado, ha 50 annos atraz. te, e Virgilio : mas só Dante era homem,
( 19) Al mio signor, che fu d'onor sì porque tinha corpo, e alma ; Virgilio era
degno (Frederico II ) . Não cause surpre sombra. Respondendo assim a Pedro
za ver aqui commemorado com elogio das Vinhas, dizia - lhe claramente , que
o Imperador Frederico II, que pelo nos Dante satisfaria seu desejo , porque só
so Allighieri foi mettido no iv circulo do elle era vivo, sem indicar-lhe o nome ,
Inferno, como incredulo, e de vida epicu nem determinar a pessoa ; deixando
rista ( Inf., x 119) . Agora não é Dante assim o condemnado na incerteza de
que julga Frederico digno de honra, é o qual dos dous havia de voltar ao mun
seu fiel, e bom secretario. Cumpre pois do .
destinguir bem aquelle, quefala d'aquel ( 21 ) Di dirne come l'anima si lega In
le, que narra, e que introduz ora este, questi nocchi ; e dinne, se tu puoi S'alcu
ora aquelle, a falar comsigo como acon na mai da tai membra si spiega. Faz
tece aqui. Dante póde algumas vezes aqui Virgilio duas perguntas : faz a pri
deixar-se possuir de paixão ; mas não meira, para tornar mais crivel a Dante
costuma faltar á verdade historica, quer o facto passado entre Eneas, e Polydo
se tracte do caracter das pessoas, quer ro ( Eneid ., III, 20 ) : faz a segunda, para
das tradições mais acreditadas. Quanto prevenir outra duvida, que pode occorrer
a Frederico, si como christão foi pessi a Dante quando encontrar no Purgato
mo, como Principe foi grande protector rio, outro suicida ( que será Catão), a
das lettras, insigne administrador, e dis fim de que o não considere como uma
tincto militar. É pois sob esta relação alma, que se haja desligado da arvore
que o nosso Poeta o faz aqui apregoar d'esta selva ; e para que finalmente elle
como digno de honra pelo seu bom se saiba, que as almas que dentro em pou
cretario, qual não obstante por elle co verá perseguidas das cadellas não
288 O INFERNO

são de suicidas, mas de perdularios lou to d'aquella, pela qual se sente, e esta
COS . potencia vegetativa por si pode ter alma ,
( 22 ) Allor soffiò lo tronco forte, e poi. como vemos em todas as plantas. A po
Então, ouvidas as duas perguntas, a tencia sensitiva não pode existir sem
alma de Pedro das Vinhas, encerrada aquella : não se encontra alguma cousa ,
n'aquelle tronco, suspirando com a su que sinta, que não viva. E esta poten
bita idéa da propria culpa, e da horrivel cia sensitiva é o fundamento da intelle
pena, a que foi condemnada, primeiro ctiva, isto é, da razão ; e por isso nas
soprou fortemente excitada pela viva cousas mortaes animadas não se acha a
dor, e depois o sopro, tão impetuoso potencia racional sem a sensitiva, como
como de vento (Purg ., II , 100), tradu vemos em todo o animal bruto (Conv.,
ziu-se n'estas palavras, etc. A alma do III, 2 ) .
benevolo, e gentil secretario na sua res Ora, visto que as cousas se devem
posta já não distingue Virgilio de Dante , denominar pela sua parte mais nobre,
aos quaes ambos mostra -se grato , e es viver no homem é usar da razão. Logo,
quecido da referida offensa, isto é, da si viver é o ser do homem , e si o sepa
fractura que lhe fez Dante ao cortar -lhe rar -se do uso da razão é separar-se do
o raminho da arvore. proprio ser, é evidente que quando isto
(23 ) Minos la manda alla settima foce . se dá, o homem é um ser morto (IV, 7).
O septimo circulo é este ; sendo o pri É por isso que o homem , si se afasta
meiro o Limbo ; o segundo, onde é pu da virtude, para dar -se ao vicio, sepa
nida a luxuria ; o terceiro, onde é puni rando - se do uso da razão, vem a redu
da a gula ; o quarto, onde é punida a zir -se a bruto em figura de homem .
avareza ; o quinto, onde é punida a ira Então de gráo em grao entra em furor
na lagôa Estyge ; o sexto, onde é puni tão brutal, que não só se despoja do
da a incredulidade, e a heresia entre uso da razão, como até do proprio cor
Dite, e este septimo circulo na sexta ca po , orgão da potencia sensitiva ; e
verna . despojando - se do orgão da potencia
( 24) Ciascuno al prun dell'ombra sua sensitiva, despoja -se da vida animal, e
molesta . A promptidão d'esta resposta , tende a transmutar-se na vida vegetati
tão breve como foi promettida pelo es va, qual a das plantas. D'aqui vem os sui
pirito encarcerado (Brevemente sarà ris cidas, que de proprio arbitrio se despoja
posto a voi (v. 23) mostra com quanta ad ram da vida intellectiva, e sensitiva, isto é,
miravel perfeição o nosso Poeta attendeu da razão, e da sensibilidade, e não dei
á brevidade do dizer, que parece se im xaram em si intacta outra cousa; que a
poz a si mesmo, principalmente admira vida das plantas ou a potencia vegetati
vel em um assumpto tão estranho, e la va foram condemnadas pelo Poeta a re
crimoso . Mas a admiração sobe de ponto nascer, transformando - se em arvores sil.
quando se reconhece que tal supplicio vestres ; e por tão estupenda theoria
applicado aos suicidas corresponde aos philosophica comprehende -se melhor
mais severos ensinos da sciencia, que, como a pena serve a determinar a
embora de envolta com a ficção, encerra qualidade, e o gráo da culpa respectiva,
a mais terrivel verdade. Vejamos: « A e os effeitos inherentes. Admiravel in
alma tem tres potencias : a de viver, a venção, prodigiosa fecundidade de en
de sentir, e a de raciocinar ; as quaes congenho , e não menos prodigiosa razão
travam - se entre si por modo, que uma de congruencia com o dogma catholico !
é fundamento da outra, e aquella, que Assim é pois que o nosso Poeta theo
é fundamento póde por si ser separada . logo, para não se afastar dos principios
Mas a outra, que se funda n'esta, não da nossa crença, figura que as almas
pode ser d'ella separada. A potencia ve dos suicidas procurarão no juizo final re
getativa, pela qual se vive, é fundamen unir-se, como as outras almas, aos seus
COMMENTARIOS AO CANTO XIII 289
corpos ; mas, porque se tornaram indi todo o seu patrimonio, ficando reduzi
gnas d'elles, estrangulando -os com violen do á miseria. Foi do numero d'aquelles
cia premeditada, figura tambem que ellas Senanezes, que em 1280 ajudaram os Flo
os não reassumirão , como as outras, rentinos contra os Aretinos. Regressan
mas serão dependuradas cada uma na do a Siena, depois de terminada a
arvore , em que se transformou; verifi acção, caíram n'uma cilada dos Areti
cando - se , em todo o caso, por esse mo nos junto a Pieva de Toppo, onde mui
do estranho a sua união eterna ! Que tos ficaram mortos . Lano , comquanto
horrivel perspectiva não offerecerão as podesse escapar a salvamento, todavia,
arvores d'aquella selva tendo pendentes não se achando com forças para resistir
tão hediondos fructos ! aos effeitos da miseria, lançou-se de
(25 ) Noi eravamo ancora al tronco at proposito no meio das fileiras inimigas
tesi. « Estavamos ainda attentos a ouvir em procura da morte, que de facto en
Pedro das Vinhas, que havia suspendido controu ! É por isto que Dante o figura
o seu falar. E porque essa suspensão ? no Inferno, gritando á morte, que se
Porque tinha já ouvido, primeiro que apresse em soccorrel -o contra as perse
os dous Poetas, a bulha dos cães, са guições das cadellas negras, como já o
lou-se com temor do mal, que lhe po havia soccorrido no mundo contra os
deria acontecer: os dous Poetas, por rigores da miseria. Alem d'isto, os con
conseguinte, que não tinham percebido demnados no Inferno, em meio dos ri
o imminente rumor, continuavam a ou gorosos tormentos , invocam uma segun
vir o tronco, esperando que elle respon da morte, ou total extinccão d'alma.
desse á segunda pergunta directamente , Desiderabunt mori, et mors fugiet ab
visto que até ali lhes tinha respondido eis (Apoc.).
indirectamente . Veremos logo quem é o outro que
(26) Sente il porco e la caccia alla menos veloz na carreira, lhe lançava em
sua posta. Porco selvatico, de que se fa rosto, por escarneo, o fugir agora com
ziam na edade media, e se fazem ainda tanta rapidez, quando no dia da bata
hoje grandes caçadas em muitos bosques lha se mostrara tão tardo no passo , que
da Italia meridional. Caccia são cães, foi alcançado, e morto pelos Aretinos.
que vão no encalço das feras. É bello ver os dous dilatarem-se mu
( 27 ) Ed ecco duo dalla sinistra costa. tuamente, sem que sejam forçados por
Dante, da resposta ha poco dada por perguntas.
Pedro das Vinhas, sabe logo que estes ( 29 ) Di sè e d’un cespuglio fece un
dous condemnados não são suicidas, groppo. Por desanimo ou cansaço lan
mas violentos contra os proprios bens çou-se dentro de uma cespide, ou moita ,
(perdularios). Sem aquella resposta, elle e n'ella envolveu-se por modo que de
poderia crer que fossem duas almas dous ficaram fazendo um só todo. Com
desprendidas das arvores. Aquelles, que isto causou grande tormento á moita,
desbaratam a propria fazenda em jogos porque, para formar com ella um só
(biscazziari, Inf., XXII, 44) padecem os grupo, foi necessario romper-lhe os ra
tormentos descriptos aqui, e atormentam mos. Mas todo esse tormento é nada,
por sua vez os suicidas, desfolhando, e em comparação do que lhe hão de cau
fracturando as arvores em que estão sar as feridas abertas pelos dentes das
transformados. cadellas d'aqui a pouco.
( 28) Quel dinanzi: Ora accorri, accor ( 30) Di nere cagne bramose e cor
ri, morte. Aquelle que corsia adiante, renti. Estas negras cadellas esfaimadas,
invocando o auxilio da morte, era La e velozes são demonios em figura de
no. Foi este , diz Boccaccio, um joven cadellas, destinadas pela divina Justiça
Sienez, isto é, da cidade de Siena riquis ao supplicio dos suicidas, e dos perdu
simo, que em pouco tempo consumiu larios. São cadellas , e não cães, porque
19
290 O INFERNO

as cadellas são mais rabidas, e ferozes : ( 32 ) Per le rotture sanguinenti inva


são negras, para causarem maior terror ; no. Eis obtido o primeiro fim pelo qual
são innumeraveis, e velozes, para não Virgilio conduziu Dante á moita, isto é,
permittir a nenhum dos condemnados certifical -o com uma segunda prova de
occultar-se nos esconderijos da selva, e que os suicidas se convertem em arvo
escapar ao tormento : são esfaimadas, res : a prova consistia no prantear, e no
porque a fome as torna mais sedentas verter sangue pelas fracturas dos ramos.
de sangue ( Bennassutti) . (33 ) O lacopo, dicea, da Sant ' An
Temos ainda outras significações alle drea. Eis obtido o terceiro fim , que foi
goricas: A nudez em que se apresentam saber o nome do perdulario que na moita
os dous condemnados symbolisa o esta - se tinha abrigado. Este perdulario é
do de miseria a que os reduziram no Thiago de Padua, membro da nobre fa
mundo os loucos desperdicios da sua milia denominada da capella de Sancto
fortuna : a perseguição incessante das André . Alguns dos seus concidadãos,
cadellas esfaimadas symbolisa o impeto dignos de fe, contaram a Benvennuto
violento das paixões furiosas, que os de Imola, que uma vez, indo Thiago a
arrastava a dissipar sem peso, nem me Veneza pelo rio Brenta acompanhado
dida seus proprios bens ; assim como na barca por musicos, e charameleiros,
symbolisa o remorso, que os aguilhoa e querendo mostrar, que era capaz de
tão cruelmente, que os impelle a fugir alguma cousa , saccou da algibeira algu
da vista de todos os homens, ainda que mas moedas de ouro, e lançou uma a
seja por uma morte ignominiosa. uma no canal ! Aconteceu tambem n'ou
Na Divina Comedia tudo é calcula tra occasião que, convidando elle al
do, e distribuido com a mais sabia ra guns amigos para jantar comsigo em
zão, e assim devia ser, para manifestar sua bella quinta, fez primeiro tocar a fo
nos por uma exacta descripção das go na casa da sua residencia, e depois
cousas que se passam n'aquelles mun saiu a encontrar os seus convidados,
dos eternos, onde a Justiça omnipotente para annunciar -lhes a sua inaudita festa
reparte penas, e premios com inflexivel com que os ia receber ! Imagine -se a
egualdade. surpreza, e horror dos convivas ao en
( 31 ) Presemi allor la mia Scorta per contrarem quasi em cinzas o formoso
mano, E menommi al cespuglio, che pian edificio ! Quem não dirá, em vista de
gea. Virgilio conduziu Dante á sarça , tão loucas prodigalidades extravagantes,
que pranteava, por tres fins : 1.º, para com quanta razão Dante condemnou ao
dar a Dante uma nova prova, adduzida supplicio de perpetua dilaceração em
por um condemnado, de que os suici suas pessoas aquelles, que, como Thiago
das, se transmudam em arvores nodo de Sancto André, dilaceram no mundo
sas : 2.º, porque Dante precisava ter os seus proprios bens !
ainda outra noticia das arvores dos sui (34) Soffi col sangue doloroso sermo.
cidas ; noticia, que os dous Poetas es Soprar com sangue dolorosas palavras.
peravam receber de Pedro das Vinhas Soprar aqui é verbo de grande proprie
quando ainda estavam attentos a ouvil-o dade, e naturalidade na linguagem de
e que será dada aqui por outra moita, um tronco. A cada passo temos que
como veremos : 3.º, porque convinha admirar a habitual precisão scientifica
saber o nome d'aquelle (e provavel do nosso Poeta no exprimir os seus con
mente do perdulario ) que se occultou ceitos, ainda quando parece guiado só
na sua moita. E porque tomou Virgilio mente pela vivacidade da sua phanta
Dante pela mão ? Porque o conduzia a sia,
um espectaculo, que lhe causava terror, (35) Raccoglietele al piè del tristo
e a que não assistiria, senão levado pelo cesto. Eis obtido o segundo fim , isto é,
Mestre. o complemento do discurso , que Pedro
COMMENTARIOS AO CANTO XIII 291

das Vinhas havia interrompido. Já ficou ( Ibid ., iv, 1 , 42, 60) . « Marte é uma es
dito n'outro logar, que os ramos corta trella dos sette planetas, e era pelos pa
dos das arvores dos suicidas, se não são gãos chamado Deus das batalhas, como
immediatamente reunidos ao tronco, tambem ainda o chamam assim muitas
germinam, e se reproduzem em suas nações. Pelo que , não é maravilha que
plantas ; o que lhes aggrava o tormento. os Florentinos estejam sempre em bri
É por isto que a pobre moita, lastiman ga, e discordia, visto como este planeta
do-se de haver Thiago de Sancto An reina ainda sobre elles ( Brunet. Lat .
dré desgalhado com tanta violencia os Thes., 1, 37) ; demonstrando-se d'aquella
seus ramos, pede em lagrimas aos dous guisa que as grandes, contínuas vicis
Poetas, que os ajuntem , e os reponham situdes são devidas á influencia d'essa
ao pé do tronco , a fim de não se repro constellação (Vill., Hist., III, 1. Conv.,
duzirem em outras tantas arvores . II, 11 ) .
( 36 ) l' fui della città che nel Batista Quando pois Totila, Rei dos Vanda
Cangiò il primo padrone; ond' ei per los, e dos Godos, logrou tomar Floren
questo Sempre con l'arte sua la farà ça por meio de engano, e traição, orde
trista . Eu fui, quiz elle dizer, da cidade nou, em seguida ao exterminio dos ha
de Florença, que, si durante o paganis bitantes, e saque dos seus haveres, que
mo honrava com sacrificios, e com voti fosse destruida pelas chammas, de modo
vo culto (Par., viii, 5 ) a Marte, depois que não ficasse pedra sobre pedra, e as
resolveu honrar o Baptista , que sempre sim se fez no dia 28 de junho de 45o . En
sancto soffreu o deserto, e o martyrio tão o idolo do Deus Marte caíu no
(Par., XXXII, 22 ) . E por attenção ao seu Arno ... e n'elle esteve submergido
novo Padroeiro, Florença foi chamada por todo o tempo em que a cidade ja
o rebanho de S. João ( l'ovil di San zeu em ruinas. E era crença entre o
Giovanni, Par ., XVI, 25 ) . Para maior es povo, que ella não poderia ser jamais
clarecimento d'esta, e das cousas subse reedificada, sem que primeiro se desco
quentes, releva lembrar que os Roma brisse, e se arrancasse do Arno a ima
nos, fundando Florença com os Fieso gem de marmore, consagrada a Marte
lanos, ordenaram que se fizesse um pelos primitivos edificadores pagãos. O
templo maravilhoso em honra do deus certo é que em 800, tempo em que os
Marte; effectivamente no reinado de descendentes dos Florentinos, ajudados
Augusto o edificaram no logar, que no pela forças dos Romanos, e pelas tropas
tempo antigo se chamava Camarti, isto do imperador Carlos Magno, começa
é, casa de Marte ;e fizeram figurar sua ram a reconstruir a sua cidade, procu
effigie em marmore na posição de ca raram aquella imagem , e achando-a nas
valleiro armado, e a collocaram , monta aguas do Arno, pozeram -n'a sobre um
da em ginete, n'uma columna marmo pilar na margem do dito rio, onde come
rea no meio do templo ( Vill., Hist., ça hoje a Ponte Velha . Mas grande sim
III, 1 ) . plicidade é crer, que uma tal pedra bru
No pontificado de S. Silvestre, os ta podesse ter influencia nos destinos de
Florentinos, já christãos, retiraram do Florença ! E exactamente no pé do pilar,
bello, e nobre templo o seu idolo Marte, sobre que estava collocada a imagem de
dedicando o templo á honra de Deus, e Marte, foi Buondelmonte derrubado do
do bemaventurado S. João Baptista . cavallo, em que vinha, e logo assassina
Não quizeram despedaçar aquelle anti do : homicidio , de que tantas desgraças
go idolo, por ter sido erecto sob o pla resultaram a Florença, pelas sanguino
neta Marte, crendo que, si o quebras lentas represalias, que se seguiram (Vill. ,
sem, a cidade soffreria grandes, e peri Hist., v, 38).
gosas vicissitudes. Por isso collocaram Precedidas estas noticias, voltemos
n'o sobre uma torre juncto ao rio Arno ao texto, a que nos está chamando o
292 O INFERNO

Poeta. Accrescenta pois a destruida moi tila, e não Attila, foi o destruidor de
ta que Marte, pelo facto de ter Floren Florença, conforme a verdade historica ;
ça mudado de Padroeiro, a affligira por isso que Attila não passou o Apeni
sempre com grandes vicissitudes, que no .

são os effeitos da sua arte ( Conv., 11, 14), b) Alguns manuscriptos allegados
isto é, a guerra. Dante parece aqui par pelos academicos da Crusca (Florença
ticipar das crenças do vulgo, em relação 1695 ) trazem, entre outras variantes,
á estatua de Marte, tão venerada outr' Sul cener che di Totila rimase.
ora pelos Florentinos, como fôra o Pal c) O proprio Dante (De vulgari elo
ladio pelos Troianos : mas não nos dei quio , lib ., II, c. 6) diz expressamente :
xa duvidosos de que elle considerava Ejecta maxima parte florum de sinu tuo ,
essas crenças como verdadeiras fabulas, Florentia, nequicquam Trinacriam To.
abraçando aliás conceito muito diverso tila ( sic) serus adivit.
acerca das divindades pagās, e dos in d) G. Villani, copiando Recordano
fluxos dos planetas, dizendo : Malispini, corrigiu Attila em Totila ( Lib.,
II, C. 1 , 2, 3 ) . Importa notar que G. Vil
Questo principio malo intesò torse
Già tutto il mondo quasi, si che Giove,
lani foi intimo amigo, e socio de Alli
Mercurio, e Marte a nominar iras corse. ghieri, como assevera seu sobrinho Fi
lippe Villani n'estas palavras : Audivi pa
A saber : Este principio da influencia truo meo Joanne Villani referente, qui
dos astros, mal entendido, arrastou Dante fuit amicus et socius, Poetam ali
quasi todo o mundo antigo (afóra a na quando dixisse, etc. Tudo pois leva a crer
ção hebraica) á idolatria ; dando o nome que G. Villanni corrigiu Malispini de
de Jove a um planeta, o de Mercurio a accordo com Dante.
outro, e o de Marte a outro (acredi Demais, já tive occasião de observar,
tando que depois da morte d'aquelles que na edade media se confundia Attila
heroes pagãos suas almas voltaram aos com Totila, attribuindo ao primeiro os
ditos planetas, de onde haviam descido) feitos do segundo ; erro vulgar, em que
( Par., iv, 63 ; viii, 97. XV, 26 ). resvalaram , não só maximo numero dos
Dante portanto, pondo na bocca do copiadores de Dante, como o proprio
condemnado essas tradições absurdas, Boccaccio, e uma lapida de Popi no
seguramente quiz fazel- o conhecer como Casentino. A pericia historica, e a criti
tendo no mundo sido homem do vulgo, ca de Dante se distinguem em expurgar
privado da luz da discrição, para distin a verdade do erro commum, salvo n’al
guir entre o bem , e o mal, e accolher com gum ou n'outro caso, como no do Papa
criterio as falsas opiniões diffundidas por Anastacio II , em que a auctoridade de
este ou aquelle mentiroso mentitore Graciano o deslumbrou.
(Conv., I, 11 ) . Voltando a maiores considerações
( 37 ) Sül cener che di Totila rimase. sobre o texto, direi que o nosso Poeta,
Sobre as cinzas remanescentes da de avezado como é a occultar sua doutrina
vastação de Totila. Nas edições com sob o veo de versos estranhos ( Inf., Ix,
muns lê-se : Sovra 'l cener che d ' Attila 63 ) envolve aqui n'esse veo mysterioso
rimase . Mas Dante não escreveu assim . doutrina mui diversa da que geralmente
Bartholomeu Sorio demonstrou isso deduzem os commentadores do presen
com toda a evidencia nos seus opuscu te passo da Divina Comedia. Só o gran
los. Eis os argumentos em que se ba de J. B. Giuliani ministrou -me a chave
seou : do enigma. Allighieri sob o veo da ido
a) Optimo , que escrevia em 1323, latria pagā , com relação ao Deus Marte,
dous annos depois da morte do Poeta , não teve outro fim , senão exprobrar a
interpretou o texto assim : Sul cener che Florença o ter ella feito novo idolo da
di Totila rimase ; sustentando que To liga sigillada pelo Baptista (la lega sug.
COMMENTARIOS AO CANTO XIII 293

gettata del Battista : Inf., xxx, 74). Refi quanto, si aquelle infeliz se tivesse dado
ro -me ao florim de curo (iv, 89), que a morte, enforcando-se ao tecto de sua
havia desviado as ovelhas, e os cordei casa, a sua pena teria sido a de trans
ros ( che avea disviato le pecore e gli formar - se em arvore silvestre, como os
agni, Par., ix, 131 ). É este culto ao outros suicidas, e não em um abrolho :
Deus do ouro, é esta desenfreada ava v. 100, e 122. Não se pode sequer di
reza, que o Poeta quiz estigmatisar nos zer que elle haja sido um perdulario
seus concidadãos, os quaes, esquecidos (biscazzidri); porque n'este caso seria,
dos fortes estudos, e honradas emprezas como os dissipadores dos proprios bens,
de guerra, mostravam já não experi constrangido a fugir pela triste selva
mentar os influxos da forte estrella nú , e dilacerado pelos dentes das esfai
( della forte stella : Par., XVII, 77 ); por madas cadellas, delle bramose cagne, v.
que todo o seu afan , e mira consistiam 116. E são porventura os dissipadores
na acquisição de subitas ganancias. Al dos proprios bens os que usam de mãos
tivos outr'ora, hoje se têem tornado to violentas ? Não usam tambem de mãos
dos vilissimos (Purg., ' XI, 13 ), salvos violentas aquelles miseraveis, que idola
aquelles poucos justos, em quem res trando o dinheiro aferrolhado, prohi
tam algum vestigio do antigo valor del bem-se a si mesmos o seu gozo, e se
antico valore, Inf., xix, 73 : xv, 68 : XVI, consomem , e morrem de incessantes
73 ). Uma quasi egual interpretação alle desassocegos, e furiosos desejos ? Deshu
gorica encontro em Bevenuto de Imola manos, que apertam em ambas as mãos
(que Rossetti ageita ao seu modo) : o pão, que, subtrahindo-o a si proprios,
Auctor Dante vult latenter dicere quod o negam aos outros! Por isso é que
Florentia , post quam dimisit Martem, id são punidos, como si se tivessem suici
est fortitudinem et virtutem armorum dado ; mas caindo que seja no Inferno
et cæpit solum colere Baptistam , ita quod a sua alma, e germinando na dolorosa
dedit se in totum avaritiæ , erat infortu selva, em vez de se converterem em
natam in rebus bellicis. Nisi esset ad huc planta, permanecem triste abrolho, em
aliquid de virtute et probitate antiqua in testemunho da sua vida ignobil, se
aliquibus bonis civibus, sæpe Florentia guida de uma morte peior. Os desgra
esset jam eversam . (Benev., de Com ., etc. çados sonegadores (nasconditori) do
etc. ) . proprio thesouro, transformados assim
O mais estranhavel é, que aquelle mi em acervo de vergonteas, prestarão re
sero florentino, por cuja bôcca o Poeta fugio inutil ás almas núas dos perdula
faz exprobrar a Florença a sua nova rios perseguidos pelas cadellas, antes
idolatria do ouro, fosse aquelle mesmo , receberão damno, e ultrage como agora
que do ouro se havia tornado tão idola causou a alma de Thiago de Sancto
tra , que morreu por cega, e estulta ado André á lastimosa moita .
ração d'esse idolo, convertendo em pro Em summa, u Poeta faz perceber que
prio damno, e martyrio os seus thesou o suicida anonymo, que diz ter feito da
ros accumulados. Eis- aqui porque elle sua propria casa seu patibulo, não mor
diz : I feigibetto delle mie case. Da mi reu enforcado no tecto da casa ; mor
nha casa fiz o meu patibulo. E todavia reu porém de consumpção lenta encerra
devemos entender gibetto ou giubetto, do em casa, de olhos fixos no seu the
não na propria significação de forca, souro, que venerava como seu Deus,
ou de ira ; mas na significação meta sem distrahir d'elle, a despeito dos ri.
phorica de martyrio ou tormento . Em gores da fome, um ceitil, que applicasse
um velho texto allegado pella Crusca a á propria alimentação . Alma tão vil,
palavra gibetto ou gibetto é tomada no como a d'esse Florentino, tenho conhe
sentido de martyrio da consciencia. cido mais de uma nos nossos tempos !
Nem de outro modo pode ser ; por E não me veda a modestia o decla
294 O INFERNO

rar, que no modo por que interpreto familia Agli, que, tendo sido um perdu
aqui o Poeta, quanto ao genero de lario de quinta essencia, e dando como
morte d'este suicida, me separo de todos juiz uma sentença por dinheiro, o re
os commentadores , mas não me sepa morso o arrastou ao suicidio na propria
ro do mesmo Poeta, nem do seu gran casa . O proprio Boccaccio limita-se a
de interprete Giulliani. dizer o seguinte : « Creio que Dante
Pelo que respeita a individualidade occultou o nome d'este suicida por uma
do misero Florentino, e seu verdadeiro d'estas razões, ou porque ainda vivessem
nome, os expositores fluctuam nas mais parentes seus a quem , por serem hones
encontradas conjecturas. Querem uns tos, e bons, quiz poupar o dissabor de
que fosse um certo Rocco (Roque ) da tanta infamia, ou porque n'aquelle tem
familia Mozzi; mas d'este nada se sabe, po, como por uma maldição de Deus,
senão o que geralmente se attribue, abundando Florença em suicidios atro
isto é, que dissipando todos os seus ha zes, o Poeta deixou ao leitor a liberda
veres, foi compellido pela pobreza a en de de applicar o caso a qual mais lhe
forcar -se na sua propria casa . Outros aprouvesse » . Butti segue esta ultima ex
opinam que fosse um certo Lotto da plicação.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XIV

Chegados os dous Poetas á extremidade da selva, ou do segundo gyro, e por


consequencia ao principio do terceiro, não entram, mas continuam a seguir pela
orla da selva á esquerda, até que chegam ao Phlegetonte, que irrompe da selva ; e ,
acompanhando o seu curso, atravessam o terceiro gyro, que termina no poço, e
ahi, onde Phlegetonte se precipita no terceiro gyro, passam ; porque com as suas ex
halações humidas dissipa no ar as chammas, que chovem de fogo eterno. Emquanto
os dous Poetas por sobre a extremidade da selva vão ao Phlegetonte, Dante examina
o terceiro gyro, e vê os peccadores que ahi estanceiam, e a pena que padecem.
O terceiro gyro do septimo circulo é um areal inflammado por incessante chuva
de fogo: ahi são punidos os violentos contra Deus (os blasphemos) , os violentos
contra a natureza ( os pederastas), e os violentos contra a arte ( os usurarios). Os
violentos contra Deus jazem no areal ardente de rosto para cima sob o açoite da
chuva de fogo, sem poderem levantar- se, nem mover - se : entre estes Dante distin
gue Capanéo soberbo, um dos sete Reis, que ousaram sitiar Thebas, a despeito da
vontade do summo Jove, e estes são os mais criminosos, e por isso mais duramente
castigados. Os violentos contra a natureza correm sem parar nunca, e estes são os
menos criminosos, e por isso menos atormentados. Os violentos contra a arte es
tão assentados no meio do areal todos encolhidos, para evitar o mais possivel a
acção do fogo.
Alguns commentadores não approvam que Dante considere a usura culpa mais
grave, que a pederastia ; mas é porque não reflectiram , que a sodomia é sem duvida
mais infame; mas a usura é mil vezes mais damnosa, e mais contraria á justiça , e á
caridade. Não pode escapar á nossa attenção, que entre os violentos contra Deus,
o Poeta nos mostre um pagão, e nenhum christão ; emquanto nos outros circu
los temos visto pagãos, e christãos, e christãos sem.pagãos. Isto não pode deixar
de ter uma razão particular. Talvez Dante quizesse significar com esta excepção,
que a violencia directa contra Deus não é peccado de christãos ; porque, para in
sultar a Deus, provocal-o, odial-o, e blasphemal-o, não basta ser impio, é preciso
sobretudo ser ignorante ; porquanto a violencia directa contra Deus é tão monstruo
sa, que é necessaria uma ignorancia bestial para commettel-a. Ora esta ignorancia não
se pode racionalmente suppor em christãos, que de Deus, e de seus divinos attri
butos devem ter uma idéa sem comparação mais perfeita, do que tinham os pagãos,
no conceito dos quaes Deus não passava de um monarcha poderoso, algumas ve
zes soberbo, vingativo, e injusto. Está entendido que não falo dos philosophos pa
gãos, mas do povo rude ; e si Capanéo era Rei, não era por isso philosopho ; era um
brutamonte orgulhoso, soberbo, e furibundo.
296 O INFERNO

Este canto é rico de imagens, e de ficções allegoricas. Virgilio diz a Dante, que
no meio do mar Mediterraneo ha uma ilha, que se chama Creta , sob cujo Rei (Sa
turno ) , o mundo foi casto, e bom : que n'essa ilha demora um monte , chamado
Ida, que, outr'ora abundante de regatos crystalinos, e de viçosos arvoredos, se acha
agora deserto, e inhabitavel: que Rhéa, mulher de Saturno, o escolheu para berço
fiel, onde fosse occultamente creado seu filho Jove, e que, quando este chorava,
fazia soar gritos, e instrumentos ruidosos, a fim de que seu pae lhe não ouvisse os
vagidos, e o devorasse. Accrescenta Virgilio que dentro d'aquelle monte está
de pé uma estatua grande de um velho, que tem as costas para Dannieta, e os olhos
para Roma, como seu espelho : descreve esta estatua, dizendo que a cabeça é
de ouro, o peito, e os braços de prata, e d'ahi até ao fim do tronco é de cobre , e
do fim do tronco para baixo é todo de ferro : que o pé direito é de argilla, e no
qual parece que se apoia mais do que no esquerdo: que cada uma das partes da
estatua, excepto a cabeça de ouro, é rota por uma fenda, d'onde esguicham lagri
mas, e que estas lagrimas, accumulan do-se , formam um rio de tal pujança, que fura
a caverna do monte, desce ao Inferno, e forma por sua vez o Acheronte, a Estyge,
e o Phlegetonte, e que depois vae ao fundo do septimo circulo até o centro da terras
e ahi forma o Cocyto.
Ha quem note que Dante, havendo sido instruido por Virgilic no sexto circulo
a respeito das condições dos tres circulos, que restavam, fizesse ainda aqui duas
perguntas, cujas respostas tinham sido já prevenidas. Não ha razão neste reparo ;
visto como as perguntas de Dante n’este circulo não têem relação com as cousas
em que fôra instruido por seu Mestre : não lhe pergunta que especie de peccadores
sejam punidos n’este gyro, nem porque sejam punidos n'este, e não n’aquelle ; per
gunta - lhe somente quem seja um peccador, que elle vê mais soberbo , e arrogante ,
que os outros no meio das chammas; pergunta -lhe ainda onde se acham o Phlege
tonte, e o Lethes, ácerca de cujas particularidades não tinha recebido instrucção
alguma. Dante mede seus passos, e palavras com a mesma exactidão com que mede
seus versos. Bem estudado, e meditado, é impossivel notar -se -lhe uma incoherencia
moralmente falando . Outros têem notado que os usurarios estam fóra de logar, c,
que Dante os devia metter no circulo dos avaros. Responderei que a usura vem da
avareza, mas não é a avareza. A usura distingue-se da avareza, como o effeito da
sua causa. A avareza é uma paixão má, e a usura é um acto d'esta paixão. Póde o
homem ser avaro, e não ser usurario ; mas não pode ser usurario sem ser avaro .
Dante pois procedeu judiciosamente, pondo-os no logar, que lhes competia. Nin
guem mais habilmente do que elle qualifica o crime, e determina a pena .
CANTO XIV

O terceiro gyro do setimo circulo, aonde agora chegam os dous Poetas, é uma planicie de areia, sobre a qual
chovem de continuo largas chammas de fogo : Ahi são punidos os violentos contra Deus, contra a natureza ,
e contra a arte : Entre os primeiros distinguem o soberbo Capaneo : Proseguindo, encontram um rio de
agua sanguinea , e fervente . D'este, e de outros rios infernaes, explica Virgilio a mysteriosa origem .

Commovido ( 1) pelo patrio amor, reuni os ramos dispersos , e os


restitui aquelle espirito, que, de muito lastimar-se, enrouqueceu .
Chegámos depois á extremidade da selva, onde o segundo gyro
confina com o terceiro, e onde se vê (2) o horrivel magisterio da di
vina Justiça .
Para fazer conhecer bem as cousas espantosas , que ahi se passam ,
direi que fomos ter a uma planicie esteril, sem sombra de arvoredos
no seu leito . (3)
A selva dolorosa cerca esta planicie, como a triste fossa de san- .
gue cerca a selva dolorosa, e ahi , precisamente entre os limites de
ambas, firmámos nossos pés.
O solo d'essa planicie era formado de uma areia arida e espessa ,
similhante aquella , que Catão (4) calcou nos páramos d’Africa.
Oh vingança de Deus, quanto terror não deves incutir em todos
aquelles , que lerem o horrendo supplicio, que os meus olhos presen
cearam !
Vi muitas fileiras de almas nuas, que se lastimavam de modo, que
faziam grande compaixão, e parecia (5) que eram condemnadas a cas
tigo diverso .
Porquanto algumas jaziam por terra, de rosto para cima, outras
assentavam-se encolhidas em si mesmas, como vermes, e outras an
davam em contínuo moto.
298 O INFERNO

As que gyravam sem parar nunca eram mais numerosas : (6) as


que jaziam resupinadas eram menos numerosas ; mas estas se lamen
tavam mais desabridamente, que as outras .
Largas laminas de fogo choviam lentamente sobre (7) a planicie
arenosa, como frocos de neve nos Alpes, quando não venta . (8)
Quaes as (9) chammas, que nos torridos desertos da India , Alexan
dre viu cair compactas sobre o seu exercito , de forma que, para pre
venir o damno, ordenou a seus esquadrões, que calcassem o solo com
os pés, porque assim o fogo se extinguia mais facilinente, antes que
incendiasse o terreno : taes as labaredas do fogo eterno caíam sobre
aquelle areal, que se inflammava, como isca sob ( 10) o fuzil, para du
plicar o martyrio dos condemnados.
Moviam incessantemente as miseras ( 11 ) mãos, afastando de todos
os lados a chamma nova .
«Mestre, comecei por perguntar : tu que vences ( 12) todas as diffi
culdades d'este abysmo, excepto os ferozes demonios, que nos saíram
ao encontro , quando entravamos na sua cidade , não me dirás quem
é aquelle grande, que se mostra indifferente ás chammas, com tanta
arrogancia , e soberba, que não parece que a chuva de fogo (13) o ama
dureça ?»
E aquelle mesmo personagem , ouvindo que eu procurava saber
do meu Guia quem elle fosse, (14) gritou : « Qual fui vivo, tal sou
morto !
« Ainda que Jupiter estafasse o seu ( 15) ferreiro, do qual , na sua co
lera , tomou o raio agudo com que fui fulminado no meu ultimo dia ; ( 16 )
e ainda que estafasse, um após outro, todos os brontes de ( 17) Mongi
bello , bradando : « Bom Vulcano, ajuda-me, ajuda-me» , como fez na
batalha de Phlegra, e me mandasse traspassar de todas as suas fre
chas , ainda assim não lograria tirar de mim vingança ( 18) alegre.»
Então o meu Guia falou com tanta ( 19) vehemencia, como nunca
lhe tinha ouvido, dizendo : « Ó Capanéo, esta tua indomavel ( 20) so
berba, é o teu maior supplicio ! Nenhum castigo , que não a tua pro
pria raiva , poderia ser tormento adequado ao teu bestial furor ! »
Depois, voltando -se para mim , disse : « Aquelle foi um dos sete (21)
reis, que sitiaram Thebas : foi desprezador de Deus, e parece que
ainda o é, pois mostra tel -o em pouco apreço . Mas seus desprezos,
como já lhe disse, são os devidos ornamentos de seu peito.
« Agora segue - me, e vê lá não ponhas os pés na areia inflammada ;
conserva - os cuidadosamente adstrictos (22) á selva .))
Assim, caminhando em silencio, chegamos a um ponto, d'onde
irrompe da selva um rio, cujas sanguineas aguas ainda me fazem ar
repiar .
CANTO XIV 299

Qual do Bulicame (23) sáe um regato, que em alguma distancia as


meretrizes dividem entre si : ' tal aquelle rio se deslisava atravez da
superficie arenosa.
O alveo, (24) e as margens de ambos os lados eram de pedra ; por
isso pensei que era por ali que convinha andar.
Disse-me Virgilio: « Entre todas as cousas , que te tenho mostrado,
desde que transpozemos a porta, cuja entrada a ninguem (25) é defesa,
ainda os teus olhos não viram cousa tão notavel como o presente rio ,
o qual em suas aguas (26) apaga todas as chammas. Então roguei-lhe,
que me explicasse a causa d'esse phenomeno tão importante, que me
desafiava ( 27) o desejo de conhecer.
« No meio (28) do mar, disse elle, jaz uma ilha desolada, que se
chama Creta , (29) sob cujo rei (30) os homens foram outr'ora innocentes .
« Existe lá um monte (31) de nome Ida, que foi um tempo banhado
de fontes, e coberto de arvoredos ; mas agora se acha deserto como
cousa inutil .
« Rhéa (32) escolheu -o para berço fiel de seu filho, (33) e, para melhor
occultal-o, mandava tanger instrumentos ruidosos, que lhe abafassem
os vagidos .
«Dentro d'esse monte está de pé um grande velho, (34) que tem as
costas voltadas para Damietta, e os olhos para Roma , como seu es
pelho .
« A cabeça é formada de ouro fino; os braços e o peito de puro
argento : depois é formado de cobre até onde termina o busto . (35)
Dºahi para baixo é todo de ferro escolhido , salvo (36) o pé direito,
que é de argilla, e n'elle se apoia (37) mais do que no esquerdo .
« Cada uma das (38) suas partes, afóra a cabeça, é rota por uma
fenda, que goteja lagrimas, que reunidas (39) perfuram aquelle monte .
« A torrente d'essas lagrimas precipita-se (40) n’este valle, formando
o Acheronte, a Estyge, e o Phlegetonte : (41 ) depois desce por este es
treito canal até onde não se desce mais, (42) e la forma o Cocito : e
qual seja aquelle rio, tu o verás ; por isso não t'o explico agora . )
E eu lhe disse : « Si o presente rio deriva do nosso mundo, como
affirmas : porque nos apparece (43) somente n’esta extremidade da
selva ? >>
« Tu sabes, respondeu , (44) que esta caverna infernal é redonda , e
si bem que tenhas descido muito por ella, baixando sempre á esquerda ;
todavia não tens ainda completado o gyro de todo o circulo ; por este
motivo , si a cousa nos apparece como nova , não ha que maravilhar. »
« Mestre, perguntei-lhe ainda : onde estam o Phlegetonte e o Lethes,
pois que do Lethes nada dizes, emquanto que dizes que o Phlegetonte
se fórma d’estas lagrimas ; porém não dizes onde está ?»
300 O INFERNO

«Certamente, replicou o Mestre : as tuas perguntas me aprazem ; (45)


porque são sempre fundadas em razão ; mas a effervescencia , e a côr
d'esta agua , deviam dissolver uma das tuas duvidas.
« Verás o Lethes, mas fóra d'esta caverna infernal ; (46) vel-o-has lá,
onde as almas vam lavar-se, depois de purificadas as culpas pelo
arrependimento. »
Depois acrescentou : « Agora é tempo de afastar-nos d'este bosque ;
segue-me : as margens do Phlegetonte dam passagem, porque não es
tam inflammadas, e as laminas de fogo se extinguem nas suas humi
das exhalações .»
COMMENTARIOS AO CANTO XIV

É assás manifesto que este canto é no põe na bocca do mesmo Catão estas
uma continuação do precedente, no fim palavras:
do qual vimos que, rogado Dante por Vadimus in campos steriles exustaque mundi,
aquelle suicida, que fizera da propria Qua nimius Titan et raræ in fontibus undæ ...
casa o seu patibulo, recolheu os ramos Ingrediar, primusque gradus in pulvere ponam .
da mouta, espalhados pelas cadellas ( Phars., 1. ix , 382.)
negras, na occasião em que dilaceraram
Thiago de Sancto André, e os restituiu ( 5 ) E parea posta lor diversa legge.
ao coitado Florentino, dizendo : Da diversa posição em que se achavam as
( 1 ) Poichè la carità del natio loco Mi almas peccadoras no areal ardente de
strinse, raunai le frondesparte, E rende' duziu Dante, que ellas pareciam sujeitas
le a colui ch'era già fioco.Tinha enrou a pena diversa. Mas como pode isso ser,
quecido por causa dos improperios voci si o logar do supplicio é commum , e
ferados contra Thiago de Sancto André; commum é o castigo ? Não escapou á
e das respostas dadas aos dous Poetas. perspicacia do Poeta a razão da engenho
Quando se fala chorando, para desafo sa desegualdade da pena . Diz elle que
gar uma grande dor, é facil perder-se a umas almas jaziam resupinadas na terra;
VOZ .
outras estavam assentadas encolhidas
(2) Si vede di giustizia orribil'arte. no meio do areal, e outras andavam in
Isto é, vê -se a maneira horrivel por cessantemente á roda. Está visto, que as
que a divina Justiça atormenta n’esta primeiras ( as dos blasphemos), estando
caverna os blasphemos, os sodomitas, de costas na areia, de rosto voltado para
e os usurarios . cima , e por conseguinte expostas ás
(3) Che dal suo letto ogni pianta ri contínuas rajadas de fogo, o seu tor
muove. É tão arida a planicie, que re mento era duplo, e mais horrivel ; visto
move, afasta , e repelle toda a germina que tinham fogo por cima, e por baixo;
ção de arvores, vergonteas, hervas, etc. por isto os seus gemidos, e lamen
Esta passagem da selva para a campina tos eram mais fortes, do que os das
esteril é de um effeito magnifico ! outras. As que estavam acocoradas no
(4) Che fu da ' piedi di Caton - soppres meio das chammas (as dos usurarios) pa
sa. A areia calcada pelos pés de Catão deciam menos que estas ; mas padeciam
foi a da Libya ardente, quando por mais do que as que andavam á roda
aquella região conduzia elle as reliquias (as dos sodomitas ). Diz Butti, que es
do exercito de Pompeo Magno, para tas diversas penas são apropriadas ás cul
unir-se a Juba, Rei dos Numidas. Luca pas de cada um ; porquanto os blasphe
302 O INFERNO

mos, tendo chegado ao maximo grao de commentador da Nidobeatina attesta


violencia contra Deus, devem ser puni- ler-se este facto na vida de Alexandre
dos pela acção terrivel do elemento de Magno, escripta, não se sabe por quem.
maior violencia, que se conhece - o fo- Por Quinto Curcio certamente não,
go ; os usurarios, assim como em vida são como tambem affirma Landino, nem
devorados pela sede de ouro , devem tão pouco por Justino, nem por Plutar
depois da morte ser devorados pelas co. É verdade que Alexandre na carta
chammas do Inferno ; da mesma sorte a Aristoteles (si é que a escreveu) faz
é justo, que os sodomitas ardam no In- menção da chuva de fogo ; mas ahise
ferno, porque n'este mundo arderam no diz que Alexandre mandou
fogo da lascivia. apagar as chammas on
Por esta gradação se vê que a violen- dos : jussit autem
cia contra Deus é maior peccado , que o ponere inibus (LoL
da violencia contra a arte, e a natureza , Mas Biagine
como o da violencia contra a arte é contra Loan
maior, que o da violencia contra a na- na , e
tureza . N'este canto só se fala dos vio « Ashammas,
lentos contra Deus : dos outros violen ma la ceae
tos tractar - se -ha nos dous cantos se le alios:
guintes. as sitter
(6 ) Quella che giva intorno era pie
molta. Quer dizer que as almas dos so
domitas, que andavam em roda, eraes
mais numerosas , que as dos blasphemo .
E porque mais numerosas ? Porqu
sendo mais commum o infame pecuado in
contra a natureza , é maior o numiere warto
dos que o commettem . Deploravel razat
Abominavel vicio !
(7 ) Sovra tutto 'l sabbion d'un cader
lento . Está entendido, que caia lenta
mente porque não era impellida pelo
vento. Assim o fogo penetrava com foss .
mais facilidade na areia, como acontece nha mot tay
quando a chuva cae tranquilla, que de- a sua interpos sho
pressa é embebida pelo terreno. de um dos mais
( 8 ) Come di neve in alpe senza vento . em sciencias physicas
É claro : si sobre os Alpes reinasse o As chammas caíam de dia, e cando
vento quando cae a neve, esta se divi- no terreno , quanto mais tempo perma
diria em miudos frocos; produzindo neciam compactas , mais incendiavam a
n'ella o mesmo effeito, que lhe produ- superficie, de forma que mal podiam os
ziria na planicie uma maior columna soldados firmar os pés sem queimar-se.
de ar, e um ar mais espesso . A neve, Determinou pois Ales que, du
portanto , por uma razão physica , deve rante a noite, o sok fossin escava
cair em frocos mais largos-sobre os Al- do pelas patas da si stia. Assim
pes, do que sobre a planicie ; mais sem as chammas, que no dia seguinte caíam ,
vento , que com o vento . Tal caia aquarie encontrando o corienos fo , eram logo
fogo (Bennassutti ). absorvidas, sei que tivessem tempo de
(9 ) Quali Alessandro in quelle parte intiammar a supeticia Bennassutti ).
calde D’India vide sovra lo suo suide ( 10) Onde l'arena s'accendea , com '
Fiamme cadere infino a terra salde. O esca . Sotto il focile, a doppiar lo dolore.
COMMENTARIOS AO . CANTO XIV 303

A areia infernal era molle, e por isso mada da fructa que, chegando a estado
devia incendiar - se menos na superficie, de perfeita maturescencia, amollece,
mas como a chuva de fogo era inces torna - se branda. A metaphora não póde
sante, a areia não tinha tempo de absor ser mais bella, e mais adequada.
ver as chammas ; por conseguinte ha Bianchi, seguindo a lição de codices,
via incendio tanto na superficie, como aliás preciosos, em vez de maturi, crê
no interior, e esta é a razão pela qual que se deve ler marturi (de marturiar
diz o Poeta que, ao cair o fogo, a areia por martoriar, atormentar) ; allegando
se inflammava, como isca sob o fuzil; que não se fala aqui de almas abranda
duplicando assim o tormento sobre os das, maturate, pela chuva de fogo ; mas
peccatores, que eram collocados entre de almas, que se defendem como podem,
doux fotofogo pela cabeça , e afastando de si a chamma nova (l'ar
10 polos sura fresca) . Ora Capanéo distingue- se
faz supporo de todas estas, porque permanece arro
to do , desde os tempos gante, soberbo, sem fazer nenhum
to Fres s versos : d'aquelles movimentos naturaes a quem
12:35
sente uma dor, como si o fogo o não
queimasse, ou atormentasse.
astru São boas, sem duvida estas razões de
202 Bianchi, mas, no meu humilde entender,
não são mais fortes, do que aquellas,
Crusa mai eni Le resca que favorececem a lição commum de
31, or quisici maturi. E sem apresentar outras, direi
arsas sómente que as palavras, que precedem ,
tas aras gravas mncessantemente as que seguem , coadunam-se melhor
as strando sempre wa
con o verbo maturi, intencionalmente
cramina siru fre . Es i empregado pelo Poeta .
como fazenios a (14) Gridò : Qual i ' fui vivo, tal son
noscas impertinentes. morto. Querendo dizer : « Tanto despre
Taza tanza antiga, que consisoa zei Deus emquanto fui vivo, como o
erjovimentos randos. O Poeta tha desprézo depois de morto !» É esta ver
d'essa anacortarasão, para dinar dadeiramente a linguagem de todos os
bm ciano , iment contigo das condemnados, como já vimos, no canto
erase III ; elles blasphemam contra Deus, e
cosisie Maestro: tu che contra seus proprios paes. Mas especial
iniDuit te cose fror che i Dimon du mente é a linguagem dos que foram
Wat Corestas palavras quer Dante blasphemadores na vida.
significar, que a sciencia humana, per ( 15 ) Se Giove stanchi il suo fabbro, da
sonificada em Virgilio, vence todas as cui. Aquelle, que fabrica os raios de
difficuldades; mas não pode vencer ob Jove é, segundo a mythologia, Vulcano.
stinados incredulos, cuja dureza de cora ( 16 ) Onde l' ultimo di ' percosso fui.
-ção só se abranda, e subjuga com os Este condemnado morreu blaspheman
argumentos da sciencia theologica, e da do quando Jove o fulminou com um raio.
fé. (A prova é que, para vencer os de ( 17 ) Mongibello, ou o Etna, dentro
monios, que impediam a entrada na ci do qual fingem os Poetas ser a officina
dade de Dite, foi preciso descer um an de Vulcano.
jo do céo) (Fraticellijs ( 18 ) Non ne potrebbe aver vendetta
( 13 ) Sì che la pioggia non par che oll gra. Isto é, por maior numero de
marturi. Istoé , não parece que a che de que elle me fizesse traspas
de fogo lhe abrande a dureza . Maturi não teria a satisfação de ver - me
(amadurecer) é aqui uma translação to humilhado .
304 O INFERN
O

( 19) Tanto, ch ' io non l'avea sì forte ( 22 ) Ma sempre al bosco li ritieni


udito. Esta vehemencia desusada, com stretti. Do gyro da selva, onde os dous
que Virgilio falou, prova quam enorme Poetas estão agora, e onde estarão por
é o peccado da blasphemia, havido por algum tempo, viram, e falaram a Capa
gravissimo até pelos gentios ! (Bennas néo. É por isso que Virgilio recom
sutti). menda a Dante grande cautela em
(20 ) La tua superbia, se'tu più punito. conservar os pés adstrictos á selva. En
Quanto mais te ensuberbeceres, mais tre a selva, e o areial ardente não havia
duramente serás castigado. É isto ainda nenhuma divisão ; e portanto, não ha
uma prova de que um dos maiores tor vendo grande cuidado, poderia falsear
mentos no Inferno é levar comsigo o o passo, e queimar -se. N'este interesse,
peccador aquelles mesmos vicios, que o e cuidado com que Virgilio recommen
tyrannisaram na vida ! da a Dante, que siga atraz d'elle, para
É estupendamente horrivel este re não se desviar da trilha, e cair na areia
trato de Capanéo ! Com que engenhoso inflammada , ha, segundo Butti, um bello
artificio o divino Poeta não escolhe as ensino moral, a saber : « a razão, per
côres, e não reune as tintas mais apro sonificada em Virgilio, admoesta o senti
priadas ao caracter do sujeito ! Nos do personificado em Dante, que siga atraz
actos, e nas palavras de Farinata vimol-o d'ella ; querendo significar que, quando
anteriormente descrever o caracter do o sentido segue os dictames da recta ra
homem magnanimo; agora vemol- o no zão, não pode errar. Quando aconselha
olhar torvo, nos ademanes, nos actos, que conserve os pés adstrictos á selva,
e nas palavras, descrever o caracter do para não queimar-se, entende ensinar
soberbo Capanéo, cuja indomita cerviz he , que o meio efficaz de não cair nos vi
o ardor do fogo infernal não poude do cios punidos no areial ardente é cingir
brar ! (Biagioli). se bem á selva, isto é , entregar-se á
( 21 ) Quel fu l'un de ' sette regi. Ca solidão do bosque, symbolo da peniten
panéo foi um general do exercito grego cia » .
contra Thebas, e o primeiro, que deu a (23 ) Quale del Bulicame esce il ruscello,
escalada nos muros, no qual lance Che parton poi tra lor le peccatrici. Bu
morreu . Aquella expedição foi feita de licane era um pequeno lago de agua
conchavo com outros Reis : Adrasto, Po thermal nas vizinhanças de Viterbo.
lynice, Tydeo, Ippomedonte, Anphiaráo, D'este lago saía um regato, que se re
e Parthenopeo. Estacio, poeta napolitano partia por varios conductos pelas casas
do primeiro seculo, cantou essa guerra das meretrizes, que d'ella faziam uso.
em 12 livros da sua Thebaida. Capanéo A esta, que é a interpretação commum
é o unico blasphemo, que Dante nomeia dos expositores, oppõe -se Venturi, di
n'este gyro Nomeia somente um, e este zendo : « Mas eu, que vi o Bulicame, não
pagão, para indicar, que os blasphemos sei como isso se possa verificar, ficando
são poucos, e estes pagãos ; foi por isso o lago a duas leguas de Viterbo ». Si
que elle ha pouco disse, que o numero Venturi, antes de formular esta duvida,
de blasphemos era menor que o dos tivesse lido a historia de Viterbo por
usurarios ; mas eram os mais horrivel Feliciano Bussi, veria que elle diz o se
mente atormentados. Com effeito, nos guinte : « Sendo antigamente os banhos
primeiros tempos christãos, a blasphe de Bulicame muito frequentados, as
mia não era peccado vulgar, conforme meretrizes formavam alli, em alguma
se deduz d'este texto de Sancto Agosti distancia, seus abominaveis prostibulos,
nho : Raro inveniuntur qui lingua blas com o fim de tirar ganho illicito dos
phement. Ah, si o sancto Bispo vivesse servos dos personagens, que affluiam ao
hoje, veria que o numero dos Capanéos uso d'aquellas aguas mineraes, e das di
da blasphemia é quasi infinito ! versas pessoas, que na estação propria
COMMENTARIOS AO CANTO XIV 305

visitavam o logar ». Mas o facto de ser a chammas, padeceriam uma pena addicio
agua do Bulicame dividida pelas casas nal, que lhes não fôra imposta pela di
das meretrizes, como diz o Poeta, indi vina Justiça ; o que repugna com a recti
cam que d'ella se serviam para cura dão das leis d'essa mesma Justiça , que
rem-se de enfermidades adquiridas no não pune nem de mais, nem de menos.
trafico venereo, e o uso não podia ser (27 ) Perchè 'l pregai, che mi largisse
de outro modo, senão por meio de ba il pasto. « Roguei-lhe, que me franqueas
nhos. Sem esse fim não se explica ra se o cibo, para o qual me havia desafia
soavelmente a razão d'essa distribuição do o appetite . Isto é, roguei -lhe, que
pelas casas ; pois não se pode suppor me explicasse a causa de ser aquelle rio
que quizessem a agua para beber, que tão admiravel, segundo o que me acaba
de certo seria menos efficaz, do que be va de dizer » .
bel-a na propria fonte . Alem de que , ( 28) In mezzo 'l mar siede un paese
n'este passo ha uma allegoria. Como o guasto ... che s'appella Creta .Allude ao
presente rio infernal, de que se fala, que escreveu na Eneida ( liv. III, 104) :
servia para uso dos peccadores conde Greta Jovis magni medio jacet insula
mnados, o Poeta tira a similhança do ponto. Paese guasto deserto, desolado,
regato, que sáe do Bulicame, de cuja onde foram destruidas a maior parte das
agua se servem as peccadoras no mun cem cidades, que outr'ora contava aquella
do. Dante não diz nada inutil. ilha como o mesmo Virgilio refere: cen
(24) Lo fondo suo ed ambo le pendici tum urbes habitant.
Fatt' eran pietra, e i margini da lato. «No quadro estupendo , que se segue,
Por effeito natural da agua effervescen no qual a intenção de Dante é mostrar,
te, impregnada de sulphur, e de outras que os vicios do genero humano são
materias mineraes, com o andar do tem o supplicio, que o atormenta ; que o
po petrifica -se a terra, que se acha com proprio delicto é o Inferno do peccador ;
ella em contacto. Assim vemos no rio que as lagrimas da humanidade são o
Anio, em Tivoli , e n'outros. meio immediato, com que a divina Jus
(25) Lo cui sogliare a nessuno è ne tiça pune os réos ; n'este quadro, quero
gato. Dante toma aqui a soleira pela dizer, vejam os doutos os maravilhosos
porta ; porque a soleira propriamente vôos de engenho, as imagens sublimes,
não se fecha; mas sim a porta. O Poeta as novas formas do dizer, a philosophia
quer dizer, que a porta do Inferno não profunda, com que o altivo espirito do
é fechada a ninguem, que por sua obsti divino Poeta Florentino arranca a admi
nação no peccado quizer n'ella entrar, ração aos mais sabios, e lança o terror
mesmo porque só se fechará no fim do nos mais scelerados ! » ( Biagioli ) .
mundo . (29) Creta (hoje Candia ), ilha mui
(26) Che sopra sè tutte fiammelle am conhecida na parte oriental do Mediter
morta . É esta uma grande singularidade raneo. Era como o centro do mundo co
d'este rio : tem a virtude de apagar as nhecido pelos antigos.
chammas, que sobre elle chovem ; por ( 30) Sotto 'l cui rege fu già 'l mondo
isso póde alguem passar pelas suas mar casto. Note-se, que Virgilio, poeta pagão,
gens, e diques, sem ser offendido do é quem fala, e por isso deve falar se
fogo. E porque attribue Dante esta pro gundo as idéas mythologicas, que no
priedade a tal rio ? A razão é porque fundo encerram reminiscencias confusas
este rio deve dar passagem a todos os das verdades biblicas. O rei de Creta é
peccadores, que são obrigados a trans Saturno, sob cujo reinado passou a pri
pol-o, para descerem á caverna, que lhes meira edade, chamada edade de ouro ,
é destinada para seu tormento. Si esses por causa da innocencia, em que viveu
peccadores, passando por este circulo, o mundo. Esta innocencia é significada
não encontrassem transito immune de pelo adjectivo casto, a especie pelo ge
20
306 O INFERNO

nero. Era aquella edade do Saturnia mens politicos, e a unica, que é capaz
regna, de que fala Virgilio, e todos os de conservar na justiça, e na felicidade
Poetas antigos . a familia humana : na prata, é figurado
( 31 ) Una montagna v’è, che già fu o governo regio; no cobre o aristocrati
lieta D ' acque, e di fronde, che si chiama co ; e no ferro o tyrannico , e no barro o
Ida. O monte, de alegre, e fertil que foi, democratico. Allighieri colloca este co
é hoje deserto, e despojado de tudo. losso em Creta ; porque foi em Creta o
( 32 ) Rea. Mulher de Saturno. Vê-se , reino mais antigo, que fez a felicidade
que tambem , segundo a mythologia, essa dos homens. Tem as costas voltadas
edade de innocencia durou pouco tem para Damietta, cidade do Egypto, porque
po ; porque o rei Saturno, de humano e no Egypto, e no Oriente floresceram os
sabio, tornou - se cruel até com seus fi antigos imperios dos Egypcios, dos As
lhos, de modo que Rhéa foi obrigada a syricos, e dos Persas : olha para Roma,
occultal- os, para que não fossem devo . como seu espelho, porque para Roma,
rados por elle. Esta historia, pondo de e para o Occidente se transferiu, ' e
lado as extravagancias mythologicas, é mantem ainda de direito o imperio do
a historia biblica. Saturno é Adam, que mundo, a Monarchia universal ( a séde
viveu poucas horas em plena felicidade do imperio Latino é sempre a Italia, e
com Eva , sua mulher. Saturno , devoran Roma, segundo Dante ) . De todos os
do os filhos, representa Adam , devoran metaes d'aquelle colosso, excepto o
do seus filhos com o peccado. Rhea, ouro, correm lagrimas, que descem
procurando salvar seus filhos da vora ao fundo da terra, e formam os rios in
cidade de Saturno, symbolisa a idea de fernaes, para demonstrar, que de todos
uma mulher, predestinada desde o prin os regimens politicos ( menos da Mo
cipio do mundo a esmagar a cabeça da narchia Imperial) derivam males, e mi.
serpente, auctora do peccado. serias, que arrancam muitas lagrimas á
(33 ) Del suo figliuolo, e, per celarlo humanidade n'esta, e na outra vida
meglio. Rhea colloca seu filho Jove N'este velho colossal outros figuram
dentro da gruta do Tempo, porque o Tempo : tem as costas voltadas para
todo o menino, que nasce, é posto logo o passado, symbolisando - o em Damietta
á mercê do tempo, e como cousa pro ou no Oriente : olha para o futuro, sym
pria do tempo. Rhea faz soar gritos , e bolisado em Roma ou no Occidente .
tambores, para abafar-lhe os vagidos; Nos metaes, de que se compõe a esta
porque entre os filhos de Adam havia tua, são figuradas as varias edades do
de haver, quem, salvo do peccado, havia mundo : a edade de ouro, a edade de
de remir o mundo do peccado : esse prata, etc. Cada uma das suas partes,
era Christo, verdadeiro Jove, verdadeiro afóra o ouro, goteja lagrimas, porque
Deus, que havia de encarnar no seio toda a edade, excepto a do ouro, foi
purissimo de uma virgem , que.o daria á contaminada de vicios (Fraticelli ).
luz na gruta de Belem ao som das mu ( 35 ) Poi è di rame infino alla forcata.
sicas angelicas ( Bennassutti) . Até o ponto onde termina o busto, e
(34) Dentro dal monte sta dritto un começam as coxas .
gran veglio. Este grande velho é a ti (36 ) Salvo che 'l destro piede è terra
gura do Imperio, da Monarchia, e a ima cotta. E porque o pé direito é de barro ?
gem do colosso visto em sonho por Na . Para significar a incerteza, e caducida-
bucodonosor. No ouro, na prata, no co de do tempo. Todo o peso do tempo,
bre, no ferro, e no barro são symboli e de tudo o que elle encerra repousa
sadas as varias formas de governo. No n'uma base fragilima, qual um mon
ouro, o melhor de todos os metaes, é ticulo de pó argamassado !
figurada a Monarchia Imperial, a melhor ( 37 ) E sta in su quel, più che 'n su l ?
fórma ( segundo Dante ) de todos regi altro, eretto. Este modo de falar indica
COMMENTARIOS AO CANTO XIV
307

que o tempo caminha sempre ; porque mam ellas o Acheronte, que quer dizer
quando alguem caminha, no passo que sem alegria ; o que significa, que o pri
dá, emquanto um pé se firma, o outro meiro cffeito do peccado é tirar toda a
se levanta. Isto é, litteralmente falando; alegria ao peccador, que ainda não está
mas allegoricamente quer dizer, que o petrificado na impenitencia : formam
pé direito, e o esquerdo symbolisam os em seguida a lagoa Estyge, que quer
acontecimentos prosperos, ou adversos, dizer tristeza, para significar tambem o
que o tempo va encerrando. O barro remorso , que se apodera do peccador
pois está no pé direito , e no pé esquer depois do delicto : formam o Phlegeton.
do ; porque nenhuma cousa é tão cadu te, que quer dizer ardente, para signifi
ca quanto a prosperidade (Bennassutti). car os supplicios e angustias, que devo
( 38 ) Ciascuna parte , fuor che l'oro, è ram o peccador: formam finalmente o
rotta . Este pensamento é immenso ! Cocyto, que quer dizer pranto, para si
Quer o Poeta significar, que só a eda gnificar, que o lamento, a dor, e a tris
de de ouro, ou da innocencia (sotto 'l teza succedem aos tres sobreditos etſei
cui refugià il mondo casto ) não teve tos. D'onde conclue o Poeta, que o de
dores, e por isso durante ella não houve licto é tanto n'este mundo, como no
prantos. Mas as outras edades posterio outro, o verdadeiro Inferno malvado.
res accarretaram alguma rotura maior (42 ) Infin là ove piú non si dismonta.
ou menor, conforme a transição da pra Este logar é o centro da terra . Quem a
ta para o cobre, e do cobre para o fer elle chega , não desce mais ; e ou ha de
ro, e por este motivo todas estas edades subir pelo mesmo hemispherio, por on
tiveram prantos, porque tiveram dores de desceu, ou ha de subir pelo outro
sempre crescentes. Eis o tempo, e os hemispherio opposto, como farão os
fructos do tempo! Miserias, infortunios, dous Poetas.
dores, e lagrimas ! É o omnia vanitas et (43 ) Perchè ci appar pur a questo vi
afflictio spiritus de Salomão e o vallis vagno ? Dante labora em dous erros
lacrimarum da Salve Rainha . ácerca do rio, que tem sob os olhos :
(39 ) Le quali accolte foran quella grot um é, que o dito rio , derivando do nosso
ta. É necessario suppor que as lagrimas mundo, devia elle tel -o visto antes, e
d'este mundo sejam infinitas para quº, não aqui ; erro, que nascia da persuasão
accumuladas, rompam um monte, e for de ter na sua longa viagem gyrado to
mem tantos rios ! A hyperbole porém da a circumferencia do valle do Inferno:
não é tão grande quanto parece. o outro erro é, que Virgilio nomeando
( 40 ) Lor. corso in questa valle si di lhe o Phlegetonte, não comprehendeu
roccia. As lagrimas d'este mundo des que fosse o rio , que tem presente, mas
cem
ao Inferno ; porque do Inferno, algum outro. A estas duas perguntas
d'onde nos veiu o peccado, vieram tam responderá Virgilio.
bem as lagrimas, e como cousas do In ( 44) Ed egli a me : Tu sai, che il luogo
ferno, ao Inferno devem voltar. O mun è tondo etc. A primeira pergunta de
do não foi creado para a miseria, mas Dante é esta : « Porque não temos en
para a felicidade. Mas .. « Invidia diabo contrado antes de agora este rio ? Res
li peccatum intravit in mundum, et per posta : Porque, diz- lhe Virgilio, não
peccatum mors (Bennassutti). tens feito todo o gyro em torno do In
ferno, bem que tenhas sempre anda
(41 ) Fanno Acheronte, Stige e Flege
tonta . Com mostrar que estas lagrimas do á esquerda. Si primeiro tivesses com
descem ao Inferno quer o Poeta nos pletado o gyro de todo o circulo, terias
ensinar, que no fundo do abysmo cho encontrado o rio antes » .
ram os peccadores impenitentes com o (45 ) In tutte tue question certo mipia .
peso de suas culpas, e que estas lagri ci. Querendo dizer : « Sempre sabio em
mas serão o seu eterno supplicio. For. tuas perguntas, deixas de o ser n'esta
308 O INFERNO

porque deverias conhecer, por sua ety. o rio ; e por isso com justa razão mere
mologia, que rio é este » . Phlegetonte é ceu de Virgilio uma exprobração, que
1
palavra grega, participio presente activo,
que quer dizer ardente ; e pois tendo
no caso contrario não teria merecido
(Bennassutti ) .
Dante sob os olhos um rio de agua ru (46) Letè vedrai, ma fuor di questa
bra, e ardente devia logo saber, que fossa . Como si dissesse : « Vel-o-has lá
este era exactamente o Phlegetonte. no Purgatorio, onde se purificam as
O seu proprio nome o estava dizendo. almas , depois que lhes é perdoada a
Logo, ou Dante com isso confessa não culpa, de que se arrependeram na vi
saber o grego, ou é exprobrado por Vir da » . Assim responde Virgilio á segunda
gilio, porque, sabendo - o, não prestou pergunta de Dante, e responde optima
attenção, e por isso fez uma pergunta, mente ; porque o Lethes, significando es
que podia ter dispensado. Fico por esta quecimento, não podia estar no Inferno,
segunda hypothese ; visto como creio onde a lembrança dos peccados commet.
que Dante sabia, e exactamente porque tidos constitue um dos maiores suppli
o sabia, devia pela etymologia conhecer cios dos condemnados.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XV

Penetrando muito os dous Poetas no terceiro gyro, encontram por fim uma
multidão de violentos contra a natureza. Um d'estes é Brunetto Latini, havido por
grande philosopho, consummado rhetorico , a quem Florença deve o seu primeiro
desenvolvimento intellectual. Nasceu em 1220 , e morreu em 1294. Foi mestre de
Dante. Depois da derrota dos Guelphos em Mantaperti, emigrou para a França,
estabelecendo -se em Paris, onde escreveu em francez o seu Thesoureto, dividido, se
gundo Poggiali, em tres livros, em que derramou muitas noticias confusas sobre
chronologia, historia, physica, astronomia, ou antes astrologia, assim como diffu
sas prelecções sobre rhetorica. Escreveu tambem o seu Thesoureto, em que se
occupa dos costumes dos homens, e da variabilidade da fortuna. O Patafio, si é obra
sua, accrescenta Poggiali, é um livro cheio de abominaveis obscenidades, entre as
quaes figura a apologia dos pederastas.
Muitos accusam Dante de ingrato por ter mettido seu mestre no Inferno, e, o
que é mais, entre os violentos contra a natureza. É injusta esta accusação. Tanto não
foi Dante que lá o metteu, que ficou surprehendido de encontral-o, e de encontral-o
na fossa onde são punidos os pederastas, de modo que , ainda que elle não soubesse
que o vicio dominante de seu Mestre era aquelle, ficaria sabendo, pelo facto de
vêl-o n'aquella fossa. Que o seu vicio pois era notorio, attestam-no todos os chro
nistas do tempo, sobretudo Villani que, de par com os elogios que tece ao seu
saber, diz que foi homem mundano, isto é, de costumes soltos e deshonestos. O mais
singular é notar Tomaseo, que o mesmo Brunetto traçou no seu Thesoureto estas
palavras : Ma tra questipeccati son piu condemnati que ' che son soddomiti ( xxı). Isto
confirma o oraculo da Escriptura quando diz que o peccador prepara a fossa, em
que os seus vicios o hão de precipitar no Inferno, Incidit in foveam , quam fecit.
Em qualidade de discipulo Dante prestou a seu mestre todas as homenagens de
respeito, e gratidão, como o manifestam as tocantes palavras, que lhe dirige no In
ferno.
Cumpre não esquecer, observa Bianchi, que Dante era o Poeta da verdade, e da
rectidão, e que em presença d'estas duas altas considerações elle não conhecia ami
zade nem respeitos humanos. Como discipulo, Dante fez o que muitas vezes faz o
juiz recto, que, sem embargos de amar o delinquente, não deixa de o condemnar,
em vista da evidencia dos autos. Mas Dante como theologo moralista, como guerrea .
dor implacavel dos vicios, não podia deixar, sem ser contradictorio, de collocar
Brunetto no logar, que seus vicios requeriam , como invariavelmente procedeu com
outros seus concidadãos, sem exceptuar seus proprios parentes.
Ha quem diga ainda que Dante infligiu tão dura pena a Brunetto, porque este
310 O INFERNO

cra Guelpho ; supposição infundada, e desr.entida pelos factos. Quantos Gibellinos


famosos não foram por elle mettidos no seu Inferno, e quantos Guelphos postos
no Paraiso !
Brunetto , após um dialogo discretamente longo com Dante, em que lhe prediz
o odio, e perseguição, que elle havia de soffrer de seus compatriotas, deixa-lhe en
trever na obscuridade de seus prognosticos o exilio, e confiscação de seus bens.
Ditas estas, e outras cousas, separa -se de seu discipulo com desprazer, declarando
lhe que parte, porque vê approximar-se outra multidão de pederastas, com os quaes
lhe não é permittido estar. Do canto seguinte veremos que os pederastas d'esta se
gunda turma são homens de armas, ao passo que os da primeira são clerigos, e
grandes litteratos . Com isto quer o Poeta dar-nos a entender, que a pederastia é
mais gravemente punida nos clerigos, e nos litteratos, do que nos mundanos, ma
xime nos militares; e isso pela forte razão de que os clerigos, em virtude do voto
explicito ou implicito de castidade , e da elevação de seu caracter sagrado, e os lit
teratos, em virtude de suas luzes, são obrigados, mais que as outras classes, a de
testar o nefando vicio pelo maior conhecimento, que devem ter da sua torpeza, e
gravidade. Nada mais philosophico do que estas distincções.
Sobre o verdadeiro sentido em que o Poeta aqui toma a palavra cherci (clerigos)
tem havido entre os interpretes grande divergencia. Vellutello, e Roza Morando
pretendem que Dante tome cherci na significação de clerc francez, que tem , entre
outras accepções, a de litterato. Assim tambem entende Biaggioli. Venturi, pelo con
trario crê com Volpi, que o Poeta toma por clerigos homens da Egreja ; pois que
faz clara distincção entre cherci, e litterati grandi. Lombarưi porém diz que se equi
vocam uns, e outros, e que o seu parecer é que por clerigos entende Dante scolari
( escolares ) , significação, que n'aquelles tempos correspondia ao clericus do latim ,
como se pode ver no Glossario de Dufresne. É certamente pia intenção, observa
Poggiali, que alguns modernos commentadores, por honra do clero, se tenham es
forçado em dar outra significação á palavra cherci; mas, havendo o proprio Dante
por bocca de Virgilio (Cant., VII, 46, e seg. ) dado a definição de ecclesiasticos á pa
lavra cherci, não temos que sophismal -a ; não nos restando, senão, ou deplorar essa
cruel apostrophe contra os ecclesiasticos, ou , como é mais provavel, explical-a
pela devassidão do clero nos tempos do Poeta . Fraticelli diz que cherci aqui não
significa ecclesiasticos ; porque assim como os antigos chamavam laici (leigos) os
homens ignorantes, da mesma sorte chamavam cherci (clerigos) os homens doutos.
Assim é que o historiador Villani chama savio cherico (sabio clerigo ) a Pedro das
Vinhas, o infeliz secretario de Frederico II. Bianchi opina que o texto dantesco se
deve interpretar no sentido, que parte foram clerigos, e parte litteratos famosos.
Finalmente o erudito padre Bennassutti declara, que não crê ser injusta, nem
calumniosa esta apostrophe de Dante ; que ao contrario está persuadido de que
n'aquelles tempos de ignorancia, de guerras civis, de costumes safaros, e de abo
minações de todo o genero, o clero, na sua generalidade, participava em larga escala
dos vicios dominantes, entre os quaes campeava desenfreado o vicio da pederastia.
Para oppor barreiras á torrente de tantas torpezas, e devassidões suscitou a divina
Providencia os Franciscos de Assis, e os Domingos de Gusmão a formar nos claus
tros poderosos nucleos de resistencia moral. Effectivamente, as duas Ordens Reli
giosas, fundadas por estes apostolos da piedade, da pobreza, e da castidade, muito,
e muito contribuiram para o melhoramento dos costumes, não só no clero, como
nas outras classes sociaes, como o proprio Dante reconhece nos elogios que tece
aos dous referidos fundadores, e reformadores. Portanto Alighieri não calumniou
os clerigos, que metteu no seu Inferno, inclusive um Bispo, conclue Bennassutti, aụ.
ctoridade insuspeita .
INTRODUCÇÃO AO CANTO XV 311

De todas as feras moraes, que gyravam livremente pela medonha selva d'este
mundo, no decurso da longa noite do peccado, até o despontar do Sol da divina Jus
tiça, nenhuma foi mais homicida que a pederastia. Quantos, e tão profundos foram
os estragos, que ella fez no seio da humanidade aviltada, nol- os patenteia a his
toria sagrada no horrivel exterminio das cidades de Pentapolis, abrasadas pelo fo
go do céo, assim como nas duras exprobrações, que dirige S. Paulo aos gentios por
haverem abandonado o uso natural do sexo feminino pelo masculino. E não menos
positiva é a historia profana, como se pode ver em Cornelio Nepote, que nos diz
ser tido esse vicio torpissimo em tão grande honra, entre os Gregos, que os seus
· mancebos eram tanto mais admirados, e invejados, quanto mais se assignalavam
n'essa infame aptidão ! Ora, sendo a Grecia mãe, e mestra da civilisação de todas
as nações da Europa, e de muitas da Asia, e Africa, imagine - se que espantosa pro
pagação não teve esse contagio degradante da natureza humana ! E tão propagado,
como era, dizia Hipocrates : « Que tão brutal era esse vicio, que, apesar da sua uni
versalidade, e da notoriedade dos damnos, que causava á saude dos homens, nunca
tinha elle (Hippocrates) podido formular um aphorismo, que fosse efficazmente appli
cavel a tão estranho genero de molestia ! » E que mais fulminante aphorismo do que
este pungentissimo epigramma ! Não menos fulminante, e epigrammatico é S. Chry
sostomo quando diz : « Que de todos os peccados commettidos por dous o mais vil,
e infame é o da pederastia ; mas que era difficil decidir qual dos dous seria mais
vil, e infame em tão nefanda porfia ! » Dito agudissimo só proprio do Bôcca de Ouro.
CANTO XV

Depois de terem os dous Poetas caminhado muito sobre o dique do Phlegetonte , surgiu -lhes ao encontro uma
multidão de almas dos violentos contra a Natureza , que eram aquellas que corriam pelo areal ardente .
Entre estas almas estava a de Brunetto Latini , mestre de Dante, a quem fala, e lhe prediz o seu exilio.

Caminhâmos agora sobre as margens petrificadas do Phlegetonte ;


e o fumo, que evapora do rio, se condensa em cima de modo, que
salva das chammas cadentes a agua , e os diques. ( 1 )
Qual aquella doca feita pelos Flamengos, entre Guzzante, e Bur
ges, (2) pelo temor que as ondas do mar ultrapassem suas barreiras ;
e qual aquell'outra feita pelos Paduanos ao longo do Brenta, para
resguardar as suas cidades, e os seus castellos, antes que o calor re
solva em aguas as neves do Chiarentana : (13) tal o modo por que eram
feitos os diques do Phlegetonte, embora o seu artifice, quem quer que
fosse, os não fizesse tão altos, e tão grossos. (4)
Já nos haviamos afastado tanto da selva , que, si eu me tivesse
voltado para traz, não teria visto o logar, onde ella fosse.
Eis senão quando encontramos uma multidão de almas, que vinha
costeando o dique, e cada uma d'ellas me olhava, como costuma uma
pessoa olhar para outra, em noite de lua nova : (5) aguçavam a vista
sobre nós, qual um velho alfaiate sobre o fundo d'agulha. (6)
Assim encarado com tanto afinco por aquella caterva, fui reconhe
cido por um, que, pegando-me na orla do vestido, gritou : « Que ma
ravilha ! » (7)
E eu, apenas o vi estender para mim o braço, fixei os olhos no
seu requeimado aspecto, e por maior estrago que no rosto lhe fizera
o fogo, as suas feições não escaparam á minha reminiscencia.
!

314 ( ) INFER
NO
1
E por isso, inclinando a minha face para a sua , (8) respondi : « Pois
vós tambem aqui, senhor Brunetto ! » 19)
E elle a mim : « O meu filho, não leves a mal , si Brunetto Latini
volta para traz um pouco ( 10) em tua companhia, e deixa seguir a sua
comitiva.
E eu lhe disse : « Quanto cabe em mim, vol o rogo ; e si quizerdes
que me assente, para melhor falar -me, fal-o -hei, si aprouver a este ,
que vae commigo .»
Respondeu -me: « Ah filho, si alguem d'esta caterva pára um in
stante, jaz depois em castigo por espaço de cem annos, (11) sem poder
mover -se , para afastar as chammas, que o lambem .
« Segue pois, adiante ; eu te verei pelas costas, e quando for tempo,
irei me reunir aos meus companheiros, que lá vam chorando seus
eternos damnos. )
Eu , com receio das chammas, não ousava descer o dique, para
approximar-me d'elle, pelo amor que lhe tinha ; mas conservava a
fronte inclinada, como o homem , que marcha reverente .
Começou a perguntar- me : « Que fortuna ou destino te conduz a
este abysmo antes do ultimo dia ? E quem é este , que te vae mos
trando o caminho ? » (12)
Eu lhe respondi : « Lá na vida serena do mundo (13) perdi-me n'uma
selva escura, antes de attingir a minha plena edade ; e somente hon
tem de manhã lhe dei as costas : mas apenas saí, fui impellido a tor
nar de novo para ella ; então appareceu em meu soccorro este, que
me leva á minha casa . » ( 14)
E elle me disse : « Si seguires o influxo da tua estrella, (15) chegarás
certamente a glorioso porto, si não me enganei nas observações, que
fiz na vida bella . ( 16)
« E si a morte me não houvesse arrebatado tão depressa, muito
poderia ter contribuido para o desenvolvimento dos altos dons de que
o Céo benigno te enriqueceu . ( 17)
« Mas aquelle ingrato povo maligno, que antigamente desceu de
Fiesola , ( 18) e que ainda conserva a rudeza do monte, e do rochedo,
ha de mover-te guerra cruel pelo teu recto proceder, (19) e é de razão
que assim seja ; porque não é possivel que o doce figo fructifique en
tre sorveiras acerbas. (20)
« Cegos, é o titulo, que lhes dá no mundo antiga tradição : (21) é
gente avara, invejosa , e soberba : (22) de seus sáfaros costumes con
serva- te isento . (23)
«Tão esplendido futuro te reserva a tua fortuna, que todas as
facções politicas terão fome de ti : mas a herva estará sempre longe
do bode . ( 24)

.
CANTO XV 315

Façam as feras fiesolanas forragem de si proprias : ( 25) si porém


no seu estrume surge ainda alguma planta gentil , que reviva o germen
sancto d'aquelles romanos, que permaneceram , quando destruida
Fiesola, foi fabricada Florença , que se tornou depois ninho de tanta
malicia, não toquem n'essa planta, deixem -n'a viver sú . »
Eu lhe respondi : « Si no Céo fossem ouvidas todas as minhas pre
ces , ainda hoje vos permanecerieis no gremio da familia humana .
« Porque tenho gravada na lembrança, e agora muito me compunge,
a vossa cara , e boa imagem paterna , quando no mundo não raras
vezes me ensinastes, que é pelo amor ao estudo, e cultura do engenho,
que o homem se eternisa ; e é bem justo, que durante a minha vida,
conheçam todos por minhas palavras, e escriptos, quanto eu vos seja
grato . ( 26)
« Os vossos presagios acerca do meu futuro, eu os registro na
mente, e os reservo com outros , que antes de vós me foram feitos,
para me serem explicados por certa Senhora , si eu chegar aonde ella
está . (27)
« Quero sómente, que saibais desde já que estou prompto, e dis
posto a encarar sobranceiro tudo o que a Fortuna decretar a meu res
peito, com tanto que a minha consciencia me não argua de acções
indignas. (28)
«Taes predições já não são novas aos meus ouvidos : (29) mova
porém a Fortuna a sua roda, (30) como lhe aprouver, e o villão a sua
enxada, (31) que eu farei o meu dever. »
Então o meu Mestre , voltando-se para o lado direito, olhou-me
complacente , (32) e depois disse : « Bem escuta quem toma nota. » (33)
Nem os tristes presagios , que eu ouvíra, nem a amavel interrupção
de Virgilio, foram parte para que eu deixasse de continuar a discor
rer com o senhor Brunetto , nem de perguntar-lhe quem eram os mais
famosos, e distinctos dos seus companheiros de tormentos ?
Ao que, respondeu : « De algum é bom que saibas : quanto aos ou
tros, é melhor calar ; porque a querer falar de todos o tempo seria
curto, e de pessoas vulgares, antes ignorar, que saber.
« Mas em summa te direi , que todos foram clerigos, (34) e litteratos
grandes, e de grande nomeada, todos os quaes foram polluidos do
mesmo peccado nefando.
« Com aquella turba infeliz vae Prisciano, (35) e tambem Francisco
Accorso ; (36) e si me tivesses pouco antes manifestado desejo de co
nhecer estes pederastas, poderias ter visto aquelle, que pelo servo dos
servos de Deus, (37) foi transferido do episcopado de Florença para o
de Bacchiglione , onde , morrendo, deixou estendidos os nervos, de que
tão máo uso fez. (38)
316 O INFERNO

«De outros te daria ainda noticia ; mas é força , que o nosso col
loquio acabe ; porque lá vejo surgir do areal um novo turbilhão de
poeira .
«Approxima-se gente , com a qual não devo estar : recommendo-te
o meu Thesoureto, (39) em cujas paginas vivo ainda na memoria dos ho
mens : (40) não te peço mais nada . »
Dizendo isto, voltou tão veloz, para alcançar os seus companhei
ros, que me pareceu um d'aquelles , que na campina de Verona dis
putam o pallio, (41 ) e se me antolhou como aquelle , que vence, e não
como aquelle, que é vencido.
COMMENTARIOS AO CANTO XV

Continúa o Poeta 0 canto prece gos para impedir a irrupção das ondas
dente . do mar .
( 1 ) Ora cen porta l'un de ' duri mar (4) Qual che sifosse, lo maestro felli.
gini, E ilfummo del ruscel di sopraadug Em outras palavras : Os diques do Phle
gia Si, che dal fuoco salva l'acqua e gli getonte são similhantes, mas não eguaes
argini. Querendo dizer : « O fumo que aos dos flamengos no mar, e aos dos pa
exhala do rio, condensando - se em cima, duanos no Brenta. Dante, falando do ar
cobre - nos, defende- nos a cabeça; de fór chitecto, que fez os diques do Phlegeton
ma que duas cousas nos preservam do te, emprega a expressão « quem quer que
fogo : a agua, e os diques. E porque? elle tenha sidon porque , ainda que o In
Porque a agua, ou a humida exhalação, ferno tenha sido fabricado por Deus,
dissipa as chammas no ar ; e os diques, não é certo, que tenha feito cada uma
porque as chammas os não attinjem, nem das suas partes com as suas proprias
a areia ardente os póde inflammar, por mãos ; podendo ter ordenado a execução
isso que são duros, e altos, e por conse d'essa obra a algum Anjo. Lê-se muitas
quencia nos preservam tambem os pés». vezes nas Escripturas que « Deus dis
se, que Deus fez", e no emtanto foi
(2) Quale i Fiamminghi tra Guzzante um Anjo que disse, e fez isto ou aquillo
e Bruggia. Guizante, e Bruges são duas em nome de Deus. Poderia ter mesmo
cidades de Flandres, distantes uma da ordenado ao diabo que fizesse os di
outra cinco leguas. São bem conhecidas ques do Phlegetonte , visto como fôra elle
as suas docas . o soberbo architecto do peccado, que
(3 ) Chiarentana, chamada Canzana e ali é punido.
Carenzana, é um monte no Trentino ( 5) Guardar l'un l'altro sotto nuova
entre Valvignola, e Valfronte, que se es luna. Esta comparação é tão natural,
tende ao longo da margem esquerda do quanto cheia de belleza. Effectivamente
rio Brenta, que atravessa o territorio de nas noites de novilunio, quando a luz é
Padua, e vae desaguar no Adriatico. As escassa, as pessoas que se avistam a
densas neves, que alastram o monte, certa distancia, para se conhecerem bem ,
dissolvendo -se na primavera pelo calor encaram-se fixamente, aguçando o mais
do sol, avolumam alem da medida as possivel a pupilla do olho.
aguas do Brenta, causando estragos nas (6) Come vecchio sartor fa nella cruna.
povoações, e lavouras, que lhe ficam á Ha nada mais natural, e expressivo, do
margem, e por isso os paduanos, para que esta pintura do velho alfaiate enga
evitar os damnos, levantam diques á in tilhando os olhos no fundo da agulha,
vasão da agua, como fazem os flamen para introduzir a linha no buraco ? Mas
318 O INFERNO

porque essas almas enxergavam tão la região de mortos um homem vivo;


pouco os dous Poetas ? A razão é por mas que Dante se admire de lá encon
que ellas estavam no meio de uma trar Brunetto entre os pederastas, só se
grande luz proveniente das chammas explica por uma ironia finissima do
cadentes, e os dous Poetas, ao contrario, Poeta !
estavam , em relação a ellas, como em ( 10 ) ...non ti dispiaccia, Se Brunetto
uma sombra, isto é, entre o fumo Latini un poco teco Ritorna indietro ...
que exhalava do rio ( E il fummo del Como si dissesse : « O meu filho, tendo
ruscel di sopra aduggia ). Ora, é natural , eu sido o teu primeiro mestre , de quem
que quem está em um logar de grande recebeste o ser de Poeta, e de litterato ,
luz, e olha para outro de pouca luz, dis e bem que hoje tu, por singular privile
tinga mal os objectos, como é natural gio, viajas vivo, e glorioso por este In
que estenda bem o nervo optico, para ferno, onde morto, e coberto de oppro
poder discriminal- o . O nosso Poeta é brio ando padecendo ; todavia não te
inimitavel na propriedade dos similes, e enojes de ver -me voltar para traz, a fim
das comparações. de acompanhar -te por alguns momen
( 7) Per lo lembo, e gridò: Qual ma tas. » Vê -se que os condemnados vinham
raviglia ? Como si dissesse : « Que cousa costeando pelo lado direito o dique em
extraordinaria encontrar- te aqui ? » Logo direcção opposta aos dous Poetas, os
os diques eram baixos, senão o con quaes tinham á esquerda o Phlegetonte.
demnado não poderia agarrar a fimbria ( 11 ) S'arresta punto, giace poi cent'
da veste de Dante . anni. Isto é, passa da pena imposta aos
( 8 ) E chinando la mia alla sua faccia. pederastas á pena infligida aos blasphe
É gesto natural, que fazemos para uma madores de Deus. Este castigo de cem
pessoa, que está em logar mais baixo annos é apropriado á natureza da culpa.
do que nós. Os peccadores, que são pela divina Jus
Ha quem leia : « E chinando la mano tiça condemnados a andar em moto con
alla sua faccia ; allegando que é mais na tínuo, sem pausa, nem respiro, parando
tural inclinar a mão do que a face, visto um instante, infringem a sentença divi
como o Poeta havia antes inclinado a na, e por isso lhes é infligida uma nova
face , quando disse : Fixei os olhos no punição, qual a de jazerem immoveis
requeimado rosto ( Ficcai gli occhi per de rosto para cima, como o Capaneo;
lo cotto aspetto ); o que não podia fazer, punição, que é o maximo gráo ; porque
sem inclinar a face. Dante não diz duas aquelles, que a padecem ficam privados
vezes a mesma cousa , etc. Confesso de toda a especie de allivio, visto como
com a devida venia, que não acho natu nem se podem assentar, nem afastar com
ralidade, e propriedade na expressão as mãos a chamma nova (l ' arsura
« inclinar a mão para a face de alguem .; fresca ) (Bennassutti).
até porque esta expressão em portuguez ( 12) E chi è questi che mostra 'l
não soa bem , pois que indica ameaça. cammino ? Brunetto conheceu logo, que
Demais, propriamente falando, Dante o companheiro de Dante era um morto,
inclinou a cabeça. Diz face, tomando a e conheceu, que era seu guia , por vel-o
parte pelo todo; assim como asseverar ir adiante ; mas não conhecia quem fosse;
que elle, fixando os olhos no rosto do porque Virgilio continuava seu cami
condemnado, tinha já inclinado a face, nho, sem voltar -se para traz .
não me parece procedente; porque se ( 13 ) Lassù di sopra in la vita serena .
póde fixar os olhos, sem inclinar a face. Como si dissesse : « Na vida serena do
( 9) Siete voi qui, ser Brunetto ? Que mundo, achei-me enredado n'uma selva
Brunetto se maravilhasse de ver Dante escura, isto é, n'um labyrinto de erros, e
no Inferno, tinha para isso razão, por de vicios, antes que a minha edade at
que era facto extraordinario ver n'aquel tingisse a sua plenitude, ao seu termo
COMMENTARIOS AO CANTO XV 319

medio (35 annos ). Mais claro : Aos meus me enganei nas minhas observações,
25 annos ( logo que falleceu Beatriz, 1290) não tanto a respeito da constellação sob
transviei-me do recto caminho, abando que nasceste, como sobre os progressos,
nando o estudo da sciencia sagrada pelo que fazias na minha escola, e finalmente
da sciencia profana, e somente hontem sobre a tua indole, mais inclinada ao
de manhã voltei as costas aquella selva estudo, que ás diversões» . Brunetto aqui
de erros, e de vicios, em que me debati fala, segundo as nescias opinióes astro
por espaço de dez annos, e apenas sai, logicas então professadas. A constella
nova procella de vicios compelliu-me a ção de Germini, sob a qual Dante nasceu,
tornar para ella, quando appareceu -me é o signo, diz o Anonymo Romano, da
este, que me reduziu (como quem reduz escriptura, e da sciencia.
uma creança a voltar para casa de seu ( 16) E s ' io non fossi sì per tempo
pae ) a tornar para minha casa, isto é, a morto . Brunetto morreu em 1294, quan
voltar á verdade, á religião, e á virtude do Dante orçava por seus vinte e nove
por este logar pavoroso , isto é, pela annos .
meditação das penas do Inferno, que Diz que morreu cedo, não porque
outro meio não havia de salvar -me, etc. » fosse prematura a sua morte, mas por
( 14) Questi m'apparve tornan ' io in que lhe não deu tempo, para testemu
quella. Allude aqui ao apparecimento de nhar os fructos do engenho do seu dis
Virgilio, na occasião em que elle ( Dante) cipulo, ou talvez pela razão commum
voltava do monte da virtude, que as de que aos velhos parece sempre, que
tres feras lhe impediram de subir, para morrem antes de tempo (Bianchi).
a selva dos vicios. ( 17) Dato t'avrei all'opera conforto.
Note-se que Dante não declara a Bru « Teria dado impulso á tua obra » . A
netto o nome de Virgilio. E porque ? qual obra ? A obra dos estudos geraes
Naturalmente porque Virgilio mostrava de Dante. Errará pois aquelle, que por
importar- se pouco com Brunetto, ao esta obra entender a Divina Comedia,
qual nem sequer voltou os olhos. Diver de que Brunetto não podia então cogi
sos explicam essa indifferença : 1.", por tar, nem talvez o proprio Dante. Obra
que Virgilio, poeta casto, não podia de tal magnitude é fructo da concepção
deixar de ter em desprezo os sodomitas, amadurecida de annos adiantados.
e
os sodomitas sobretudo que foram ( 18) Che discese de Fiesole ab antico.
mestres, nos quaes a pureza de costu Fiesola, antiga cidade etrusca, edificada
mes é requisito indispensavel; 2.", por sobre um monte a 3 milhas de Flo
que Brunetto, si foi bom grammatico, rença. D'essa cidade tira a sua origem o
foi máo Poeta, e Virgilio não fazia ca povo florentino , o qual conserva no ca
bedal de poetas mediocres ; 3.", porque racter a rudeza do monte, e a dureza do
a theoria de Brunetto sobre a Fortuna rochedo. É bellissimo de expressão este
estava em contradição com a sua, ensi verso !
nada a Dante no canto vil, e onde foi ( 19) Ti si farà,per tuo ben far, nimi
este tractado de nescio por crer em frio co. « Por teu bom proceder esse povo
leiras (fanfaluche) (Bennassutti). ingrato se tornará teu inimigo ». É sabido
( 15 ) ... Se tu segui tua stella ... Que ( como já vimos no canto vi, e fim do x) ,
rendo dizer : « Si seguires as boas incli que enquanto Dante se achava em
nações, que ao nascer recebeste do be Roma, como embaixador , tractando da
nigno influxo da tua constellação de paz, em bem dos Florentinos Brancos,
Gemini, não deixarás de chegar ao glo e Negros, teve contra si , e outros um
rioso porto, isto é, não deixarás de con decreto de banimento, e confisco : é
quistar fama, e gloria pelo teu não com egualmente sabido que foram inuteis
mum engenho, si na bella vida do mundo todas as tentativas de repatriação, ma
( bella em relação a do Inferno ) não xime depois da derrota que soffreram
320 O INFERNO

os Brancos foragidos em Lastra ; per deram pelos estragos, depois que as fi


dendo o Poeta toda a esperança de apa zeram levantar diante da porta da egreja
ziguar seus concidadãos. É sabido final de S. João Baptista!
mente que Dante acceitou o cargo de (22 ) Gente avara , invidiosa, e super
prior em Florença, por mero desejo de ba. É isto uma repetição d'aquelle ver
pacificação, e são notorias as diligencias, so 74 do canto vi, em que Ciacco disse
que empregou para que a cidade não que a soberba, a inveja, e a avareza eram
cahisse em mãos de Carlos de Valois ; as tres faiscas, que tinham inflammado
diligencias todas infructiferas. os corações dos Florentinos.
( 20 ) Ed è ragion ; chè tra li lazzi ( 23) Da ' lor costumi fa che tu ti forbi.
sorbi Si disconvien fruttare il dolce fico. « Conserva-te puro dos costumes d'el
Continúa Brunetto a estigmatisar os les. » E Dante, fiel a esta admoestação
Florentinos com asperas, e bellas me de Brunetto, diz na epistola a Can Gran
taphoras. Antes os qualificára de gente de della Scala, que elle era Florentino
villā, e intractavel á feição de monte, e de nação, mas não de costumes. Floren
rochedo ; agora os qualifica de plantas, tinus natione, non moribus.
mas plantas vis (sorbi) que produzem ( 24) Che l ' una parte e l'altra avranno
fructos acerbos (langi); plantas, que fa fame Di te: ma lungifia dal becco l'erba:
zem verdadeiro contraste com a genti Como si dissesse : « Os Brancos, e os
leza , e doçura do figo. Negros, os Gibellinos, e os Guelphos te.
Sorbo , sorveira , arvore de fructos rão desejo de ter-te, cada um de seu la
acerbos : symbolisa aqui a nobreza nova, do ; mas a sua ambição será frustrada;
que tyrannisava Florença ; como figo porque elles não vcltarão jamais ao ca
symbolisa a nobreza antiga, de que minho do bem , como tu não seguirás
Dante descendia . jamais o caminho do mal ; portanto
(21 ) Vecchia fama nel mondo li chia has de repudiar uns, e outros » .
ma orbi. Como si dissesse : Antiga fama Com effeito Dante separou- se com
lhes dá o epitheto de cegos, isto é, de pletamente de Brancos, e de Negros
nescios ; porque, deixando-se illudir das desde as mallogradas tentativas de voltar
lisongeiras, e perfidas promessas de To á patria, em 21 de julho de 1304. Poude
tila, abriram - lhe as portas da cidade, a convencer-se, que os seus Brancos ou
qual, depois de saqueada, foi por elle Gibellinos eram tão bandalhos como os
reduzida a cinzas ! » outros.
Dá-se tambem , como origem da de Becco aqui não é bico, mas besta, ou
nominação de cegos, o seguinte facto : bode, como o entende Optimo. O bode
Havendo os Florentinos, a pedido dos é animal damnoso, erricado e fetido.
Pisões, guardado Pisa, emquanto estes Primeiro havia chamado os Florenti
se occupavam da conquista da ilha de nos homens asperos, e duros como o
Maiorica, ao voltarem victoriosos, em monte, e o rochedo, d'onde desceram :
signal de reconhecimento, disseram aos depois chamou-os plantas silvestres
Florentinos, que das presas, que elles ti ( sorbi); depois cegos (orbi); finalmente
nham feito na guerra, escolhessem as chama- os bestas (bestie); e por isso na
que mais lhes agradassem, por exemplo : continuação da metaphora Dante devia
ou duas bellissimas portas de bronze chamar-se herva ( erba ), mas uma herva ,
(que hoje adornam a cathedral de Pisa), que não devia ser tocada por essas bes
ou duas columnas de porfido, que , por tas fiesolanas. Magnifico !
terem sido deterioradas pelo fogo, as (25 ) Faccian le bestie Fiesolane stra
tinham envernizado com tinta vermelha, me. Querendo dizer : « Que as bestas
para lhes encobrir os defeitos: franquea fiesolanas se entredevorem, e escou
da assim a escolha, os Florentinos prefe ceiem ; mas, si na podridão de seus cos
riram cegamente as ditas columnas, e só tumes (nel lor letame) surgir algum cida

!
COMMENTARIOS 49 CANTO XV 321

dão (la pianta ),que se mostre verdadeiro Lucia, Dante não podia deixar de collo
descendente d'aquelles Romanos ( In cui cal.o onde seus vicios o lançaram » .
riviva la sementa santa Di quei Roman ), (27) E serbolo a chiosar con altro tes
que persistiram em viver lá, depois que to A donna, che 'l saprà, s'a lei arrivo.
foi edificada Florença (Fu fatto il nido Querendo dizer : « Ajunctarei os pro
di malizia tanta ), não toquem n'esse ci gnosticos, que me acabaes de fazer, a
dadão, deixem -n'o viver em paz » . outros (altro testo ), que já me fez Fari
Nel lor letame. Aqui é Florença cha nata, a fim de que me sejam explicados
mada estrume; e não podia deixar de ser poo Beatriz ( a Donna ), si a ella eu puder
assim , desde que os Florentinos são ani chegar nas alturas do monte do Purga
maes ( bestie); vindo a ser por conse torios
quencia a sua cidade uma vasta cavalla (28 ) Pur che mia coscienza non mi
riça, ou ao menos um espaço cheio de garra Esta é a verdade . Consultar a
estrume, argamassado das materias fe . consciencia em todos os actos da vida
caes das bestas fiesolanas. Sangrenta é dever de todos ; mas é necessario,
diatribe ! que todos tenham a consciencia tão
In cui riviva la sementa santa . Por seu recta, como Dante tinha a sua. Biagioli,
enthusiasmo para com o antigo imperio explicando o sentido d'este verso, diz :
romano . Dante considera sancto tudo « A pureza da consciencia é o mais forte
o que provém dos Romanos. A idéa escudo, com que se rebatem , e fal
porém de sancto ou sacro applicada ao seiam os golpes da desgraça. Dante quiz
romano imperio não é só de Dante, é retratar aqui a invencivel coragem
commum a todos que , chamando san com que o sabio reage contra a adver
cto ou sacro o imperio romano, que sidade, oppondo um peito de ferro aos
rem significar , que o imperador eleito dardos da fortuna » ,
recebia do Papa uma particular consa (29) Non è nuova agli orecchi miei
gração . tal’arra. Arra propriamente quer dizer
Planta, em que revivesse o germen penhor, ou parte do pagamento , que se
dos antigos Romanos. Está visto, que dá antes, como segurança do contracto
isto é uma referencia a Dante, o qual estabelecido: aqui porém se transfere
gloriava -se de ser de origem romana, para significar predição, ou penhor das
antiga, e o ramo, de que se destacou cousas, que hão succeder no futuro .
sua familia, é o ramo dos Frangipanis, Quando Dante diz a Brunetto, que taes
que permaneceram sempre em Roma , prognosticos sinistros sobre o seu por
ao passo que o seu se transplantou em vir já não são novos aos seus ouvidos,
Florenca . allude a outros similhantes, que já lhe
(26) Convien che nella mia lingua si tinham feito Ciacco (canto iv), e Fari
scerna . « Emquanto eu viver, importa nata (canto x) .
que se conheça nos meus escriptos a (30) Però giri fortuna la sua rota .
gratidão, que devo aos vossos ensina Quanto á Fortuna, já ficou explanado o
mentos. »
modo de pensar do Poeta no canto vii.
Ao ler estes tercetos, observa optima (31 ) ... e il villan la sua marra. É um
mente Biagioli, dizendo : « Estes versos, proverbio florentino, que quer dizer :
repassados de sentimento, e de amor, « Faça o homem o que deve, e póde, e
filhos de gratidão eterna, respondem de depois aconteça o que Deus quizer» .
per si aos criticos, que taxam Dante (32) ...e riguardommi. Olhou -me com
de ingrato, por ter mettido seu mestre satisfação, e approvação. E porque ? Pelo
no Inferno. Como discipulo, prestou -lhe modo resoluto por que Dante acabára de
o devido tributo de reconhecimento por mostrar- se de animo firme a affrontar os
seus paternaes cuidados sobre a sua vae -vens da fortuna, uma vez que a sua
educação litteraria ; mas como fiel de consciencia o não arguisse de faltas
21

1
322 FERNO

commettidas contra o seu dever de ci (37 ) Colui potei che dal Servo de' Ser
dadão vi, etc. Allude á André de Morzi, bispo
( 33 ) Poi disse : Bene ascolta chi la nota . de Florença, que pelo servo dos servos,
Estas palavras deVirgilio são uma confir o Papa, foi transferido de Florença, que
mação d'aquelle seu superanda onnisfor demora na margem do Arno, para Vicen.
tuna ferendo est, que tinha anteriormente ça , junto á qual corre o rio Bacchiglio
prescripto a Dante no canto x : La ne. Teve logar esta transferencia entre
mente tua conservi, etc. Agora se regosija 1294 e 1295 ; por isso equivoca - se Ben
de ver O
seu discipulo conservar na venuto quando diz que foi o Papa Ni
lembrança, e executar na practica as colau III que, a instancias do cavalleiro
sentenças dos grandes sabios. Thomaz de Mozi, que desejava afastar
( 34 ) In somma sappi, che tutti fur de seus olhos a miseria vergonhosa do
cherci. « Em summa, saibas que todos irmão, cujo vicio nefando lhe era co
foram clerigos, etc. » Sobre o sentido nhecido, o transferiu para a diocese de
d'este deploravel verso já no Argumen Vicença; tendo aliás Nicolau III falle.
to foi dito tudo com precisão, e lar cido em 1281. No archivo do cabido de
gueza . Florença acha- se um escripto do cone
( 35) Priscian sen va con quella turba go Salvini, que eu pude ler, por obse
grama. Prisciano de Cesarea da Capa quio d'aquelles conegos, em que procu
docia, grammatico excellentissimo, que ra provar que André de Morzi, não só
Horesceu no vi seculo, não se lê que não foi dado ao vicio, que Dante lhe
fosse manchado do vicio nefando ; por attribue, como pelo contrario foi um
isso alguns expositores querem que prelado exemplar; que a sua transferen
Dante aqui ponha o individuo pela es cia devia ter sido motivada por exigen
pecie, na supposição de que os mestres cia das facções ; que finalmente é incri
de grammatica possam abusar de seus vel a asserção de Benevenuto no tocan
discipulos (Venturi). te a ter o irmão pedido ao Papa a sua
Portirelli porém oppõe com razão transferencia, quando se sabe que, mor
embargos a este juizo de Venturi, dizen rendo o bispo logo depois d'ella , o mes
do : « É muito de crer que Dante tives mo irmão fez trasladar seu cadaver para
se mais completas noticias de Prisciano Florença, e o sepultou em decente mo .
do que Venturi ; pois que seria absurdo numento na egreja de S. Gregorio ; não
enorme pensar que o Poeta, para usar se podendo pensar que fizesse voltar
da figura de pôr o individuo pela espe morto a quem vivo fizera afastar por
cie, quizesse ás cegas manchar aquelle vergonha. Mas, si bem que seja louva
grammatico de vicio tão torpe, somente vel o zelo do dito conego Salvini em
para personificar n’elle todos os mestres querer lavar da feia nodoa o Bispo flo
de latim presentes, e futuros! Isto, alem rentino, devo não obstante confessar,
de desproposito, seria uma iniquidade, que os seus argumentos, se podem por
indigna do Poeta da rectidão . em duvida alguma circumstancia affir
( 36 ) E Francesco d'Accorso . Este mada pelos commentadores, não podem
Francisco de Accurcio foi grande juris de certo desmentir o facto attestado por
consulto, e ensinou leis em Bolonha, Dante, contemporaneo, e concidadão do
onde morreu em 1294. Foi filho do ce Bispo, contra o qual é inadmissivel, que
lebre Accurçio, commentador, e illumi sabio, e honesto, como era o Poeta, e
nador da Razão Civil, nascido na villo ao mesmo tempo pregoeiro incorrupti
ta de Bagnuolo, poucas milhas distante vel da verdade, quizesse lançar uma no
de Florença, e fallecido em 1229. Muitos doa de tal natureza, si o facto não ti
commentadores, confundindo nomes, e vesse a sancção da opinião publica ; e a
cousas, hão dado ao pae o torpe vicio fama publica em cousas d'estas difficil
do filho ( Bianchi ). mente é mentirosa ( Bianchi) .

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COMMENTARIOS CANTO XV 323

( 38 ) Ove lasciò li mal protesi nervi. ainda depois da morte vivem na fama
Isto é, onde morreu : mas note -se como de suas obras.
na fórma da expressão é satyricamente (41) ...e parve dicostoro. Correu velo
esculpido o nefando vicio do infeliz como aquelle, que na campina de Vero
prelado ! (Bianchi ). na se avantaja aos outros na carreira
( 39) Sieti raccomandato il mio Te do pallio de bandeira verde.
soro. Este Thesouro é o livro ou ency Esta carreira do pallio fazia -se na
clopedia, em que Brunetto reuniu tudo primeira dominga de Quaresma, e Dante,
o que se soube no seu tempo. Escripto que então já estava em Verona cêrca de
em francez. O seu original não foi nunca um anno, devia ter presenciado o espe
impresso. Existe a traducção feita por ctaculo. Não se deve confundir esta cor
Bono Giamboni. rida com a outta dos Barberi, que se
(40) Nel quale io vivo ... Os homens fazia fóra da porta Rofiolana.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XVI

Partindo Brunetto, os dous Poetas proseguem seu caminho , quando d'aquella


multidão de pederastas, que o mesmo Brunetto viu se approximar, partiram junctas
tres sombras correndo, e gritando a Dante , que parasse. Eram tres nobres floren
tinos : o conde Guidoguerra, Theggiaio Aldobrandi dos Adimaris, e Thiago Rustic
cucci : Virgilio recommenda a Dante, que os tracte com toda a cortezia ; porque , si
como homens particulares foram abominaveis por seus vicios, como homens publi
cos foram benemeritos da Patria . É preciso attender bem a esta distincção, para não
confundir a cortezia com a convivencia ; porque uma cousa é tractar com cortezia
os viciosos, e outra é privar com elles.
Chegados os dous Poetas ás bordas do abysmo, Virgilio pede a Dante um
cordão que trazia na cintura, e o lança no fundo, e a este signal vem a cima a
Fraude. Os commentadores, divagando em varias hypotheses a respeito do sen
tido allegorico d'este cordão, concordam em ser elle um cordão de S. Francis
co, que o Poeta trazia cingido aos lombos ; mas nenhum, excepto Butti, attingiu a
razão por que Virgilio o lançou no fundo do abysmo, onde ficou.
Dante na sua mocidade entrou na Ordem terceira de S. Francisco, em que se
alistavam, como ainda hoje, homens, e mulheres, sem abandonar a propria familia,
nem os empregos civis. Dante era ainda solteiro, e acredita-se que entrou com ani
mo de ser frade observante ; mas depois, fosse pelo que fosse, saíu sem professar.
N'este mesmo canto diz elle, que trazia á cintura uma corda, com a qual pensou
alguma vez prender a Onça de pelle graciosa ( Prender la lonza alla pelle dipinta ).
A Onça, como vimos no canto 1, é tambem o symbolo da luxuria. Não obstante porém
ter deixado o habito, trazia a corda. Allegoricamente esta corda era uma especie de
fraude, que se chama um verdadeiro acto de hypocrisia ; porquanto, o religioso to
mando o habito, prende -se duplamente, isto é, não só se prende ao habito, como
ás obrigações, que elle impõe, como a humildade, e mortificação da carne : por
isso S. Francisco quiz que os seus frades trouxessem o cordão á cintura, para se
recordarem que eram duas vezes ligados. Ora quem traz este cordão no espirito, e
no habito, é verdadeiro religioso ; mas quem traz o habito de má vontade, ou o
abandona como Dante, e sem embargo traz o cordão, é hypocrita ; porque se incul
ca de religioso sem o ser.
E porque Dante havia commertido o peccado da hypocrisia, Virgilio, isto é, a
razão, diz a Dante, isto é, á sensualidade, que se desligue de tal peccado, isto é,
da corda, deixando- a ali onde está, isto é, no Inferno ; admoestando-o ao mesmo
tempo, que faça d'elle penitencia quando o tempo, e o logar lh'o permittir. Dante,
desatando a corda, e a entregando enrolada a Virgilio, significa, que a vontade se
326 O INFERNO

submetteu á razão ; mas como a vontade arrastada pela sensualidade não vêbem claro,
e distinctamente, por isso finge Dante que lhe entrega a corda enrolada : assim
como que Virgilio, para lançal-a no fundo do abysmo, volta - se para o lado direito,
quer significar que o juizo da razão se inclina sempre para a rectidão, e que se atira
a corda no fundo, é porque a considera digna do Inferno, isto é, d'este oitavo cir
culo, onde se pune a fraude, de que a corda é symbolo ; e que finalmente si a arre
messa de alguma distancia da borda, é porque considera discretamente a corda
merecedora da pena, com que é punida a hypocrisia. Assim portanto desligado
Dante d'aquella corda, entra no circulo sem nenhuma nodoa, ou mancha de hypo
crisia .
Após esta serie de allegorias subtilissimas, perguntarei que cousa quereria si
gnificar o Poeta com chamar a fraude á superficie do abysmo por meio do cordão
dos Frades ? Parece que outra cousa não quiz significar, senão que os Frades não
fazem a penitencia, que professam , e ostentam fazer, e que pelo contrario fazem do
symbolo da penitencia um symbolo de impostura, de fraude, e de hypocrisia.
No Inferno de Dante não se encontra um Frade de nenhuma Ordem antes de
Malebolge ; mas os encontra em Malebolge, e no Cocito, isto é, entre os fraudo.
lentos, e traidores ; mas isto não quer dizer que elles não estejam tambem nos cir
culos superiores ; porque, como dissemos n'outra parte, em um circulo do Inferno
de Dante são ou podem ser punidos todos os peccados punidos nos circulos supe
riores.
Dante pois, si tracta assim tão severamente os Frades, não é por odio, que lhes
tenha, mas por aquelle principio de philosophia moral, que passa quasi por prover
bio : Optimi pessima corruptio. O verdadeiro Frade é certamente mais anjo que ho .
mem ; mas ai do Frade, que se extravia ! Não conhece mais freio na iniquidade ! Este
severo juizo de Dante, si é uma exprobração aos Frades máos, é um verdadeiro
elogio aos bons, e uma solemne apologia ao monachismo.
A doutrina de Dante é sempre catholica . Si condemna os abusos, salva as insti.
uições .
CANTO XVI

Caminhando sempre ao longo do Phlegetonte , chegam os dous Poetas qnasi á extremidade do terceiro gyro ,
onde são suppliciados os violentos contra Deus, contra a Natureza, e Arte : Encontram outros violentos
contra a Natureza : Param , para falar com tres d'estes, que saem a corier para elles : Depois avançam até
a orla , que divide o septimo do oitavo circulo , que é uma profunda voragem : Virgilio atira dentro do
abysmo um novello, para avisar a Geryão, que suba á superficie, para os tomar nas ancas : então apparece
essa horrenda figura .

Eu já estava em logar, onde se ouvia o ribombo d'agua do Phle


getonte, que se precipitava no oitavo circulo, similhante áquelle su
surro, que as abelhas fazem no cortiço , ( 1) quando tres sombras de uma
multidão, que passava (2 ) sob a chuva do aspero martyrio, dispararam
juntas a correr.
Dirigiam-se para nós, e cada uma gritava : «Ó tu, que pelo modo
de vestir pareces ser algum da nossa malvada terra, alto lá ! » (3)
Ai céos, que chagas novas, e velhas abertas pelo fogo, não vi eu
em todas as partes do corpo d'aquellas infelizes! Sangra-me ainda
o coração ao lembrar-me de tão horrido espectaculo !
Virgilio, ao ouvir os seus gritos, parou attento : depois, voltando -se
para mim , disse : « Agora espera : com essas pessoas é preciso usar de
toda a cortezia .
«E si o fogo, que a Justiça divina dardeja sobre a natureza d'este
logar, não te impedisse descer o dique, eu diria, que por convenien
cia deveras correr ao encontro d'ellas, antes que cheguem a ti . » (4)
Como vissem que nós as esperavamos quêdos, recomeçaram o
seu antigo lamento ; (5) e quando se nos approximaram, fizeram todas
tres uma roda em torno de nós . (6)
Quaes costumavam fazer os luctadores nus, e untados, (7) quando
antes de se bater, e ferir, olhavam -se mutuamente, espreitando em roda
328 O INFERNO

o momento mais vantajoso de aferrar o adversario : taes aquellas tres


sombras, girando em torno, levantava cada uma o rosto para mim, de
modo que o movimento do pescoço era sempre em direcção contraria
ao dos pés. » (8)
Uma d'ellas começou a dizer-me : « Si a misera condição d'este lo
gar arenoso , e si o nosso aspecto emmagrecido, e negro tornam des
preziveis nós, e nossas preces, mova- te ao menos a nossa fama a di
zer-nos quem és tu , que vas com pés ainda vivos, calcando illeso os
caminhos do Inferno ? »
« Este, cujas pegadas me vês ir seguindo, bem que esteja nú, e
escoriado, é certo que no mundo foi nobre, e grande, mais do que tu
crês : foi neto da boa Gualdrada, (9 famosa por sua belleza : chamou-se
Guidoguerra , e na sua vida se distinguiu por muitos actos de pru
dencia, e valor marcial .
« O outro, que atraz de mim vem pisando a areia, é Tegghiaio
Adolbrandi, ( 10) cuja memoria deveria ser estimada em Florença.
« Eu , que estou com elle padecendo o mesmo tormento, fui Thiago
Rusticucci ; (11) e te digo com certeza , que a minha soberba mulher,
mais do que ninguem me funestou . »
Si eu tivesse então podido me acobertar do fogo, teria me lançado
de cima do dique ao meio d'elles, para abraçal-os, e creio que Virgilio
não me levaria a mal este passo. ( 12)
Depois respondi : « Logo que este meu Senhor me disse taes pala
vras , (13)
que me fizeram conhecer, que pessoas dignas de honra vinham
ao nosso encontro, e que eu as devera tractar com cortezia, o vosso
misero estado n’este abysmo, em vez de desprezo, causou-me dor tão
grande, e profunda, que por muito tempo me compungirá o coração.
« Sou de Florença , vossa patria : em todas as occasiões sempre
falei, e ouvi falar com transporte d'animo dos vossos bons serviços,
e honrados nomes.
« Deixo as amarguras do Inferno, e vou em busca das doces
delicias do Paraiso, ( 14) que o meu Guia veridico me promette ; mas
antes de gostal-as, é necessario que eu desça ao fundo d'este baratro. »
Então a sombra exclamou : « Assim a tua alma seja por longo
tempo unida ao teu corpo, e a tua fama sobreviva duradoura á tua
morte ! (15)
« Mas dize-me, si a urbanidade, e galhardia (16) de outr'ora ainda
existem na nossa cidade, ou si foram totalmente banidas ? Pois que
Guilherme Borsiere, ( 17) que de pouco tempo aqui padece comnosco ,
assás nos martyrisa com a narração das desgraças de Florença . » (18)
Respondendo a esta pergunta, gritei assim de cabeça levantada :
« A gente adventicia, e as subitas ganancias indecentes (19) têem gerado
CANTO XVI 329

em teu seio, ó Florença, tanto orgulho , (20) tanto desregramento , que a


esta hora te arrancam lagrimas ! »
E aquellas tres sombras , ouvindo esta minha apostrophe , olha
ram-se mutuamente com tristeza, dando signaes de approvação . (21)
Todas tres replicaram, dizendo : « Si n'outras occasiões como esta,
te custa tão pouco responder aos outros, feliz de ti , que dizes tão fran
camente o teu parecer ! (22)
«Mas, si saíres são, e salvo d'esta região de trevas, e tornares a
ver as bellas estrellas do firmamento, quando te for grato dizer : « Eu
fui aos tres reinos do outro mundo », 123) não te esqueças lá de falar á
gente a nosso respeito . »
Dizendo isto, romperam a roda , que tinham feito em torno de nós,
e fugiram com tanta furia, que pareciam ter azas nas pernas.
Não se poderia dizer um Amen tão depressa, como desapparece
ram ellas aos nossos olhos : pelo que aprouve ao meu Mestre o saír
mos d'aquelle logar .
Eu o seguia , e poucos passos depois , a agua do Phlegetonte rumo
rejava tão perto de nós , (24) que, si tivessemos falado, difficilmente nos
entenderiamos.
Bem como aquelle rio que , derivando do Monviso , e seguindo
para o Oriente pelo lado esquerdo do Apennino, é o primeiro, que no
leito natural vae directamente ao Adriatico, (25) e que, em cima, antes
de se precipitar na planicie, se chama Aquacheta, e nas visinhanças
de Forli perde aquelle seu primeiro nome : assim como esse rio es
trondando lá sobre São Bento dos Alpes, (26) vem despenhar-se por
uma cascata n'um valle, que deveria abrigar mil pessoas : (27)
Similhantemente aquella agua sanguinea do Phlegetonte estrondava,
ao precipitar-se por uma rocha escarpada, cujo fragor era tão aspero,
e forte, que em poucas horas nos tornaria surdos.
Eu tinha uma corda , que me cingia os lombos, (28) e com ella pen
sei algumas vezes prender a Onça de pelle mosqueada.
Por ordem de meu Mestre a desatei da cintura : depois , enrolan
do- a em forma de novello, lh'a entreguei. (29)
Em continenti , voltou-se elle para o lado direito , e , a uma certa dis
tancia da borda do precipicio , arremessou a corda ao fundo da me
donha voragem . (30)
«Sem duvida , disse eu commigo, alguma novidade vae correspon
der a este signal , que o Mestre tão attentamente segue com os olhos. »
Ah, quam prudentes, e cautos não devem ser os homens juncto
d'aquelles sabios , que não só observam as obras exteriores , como
penetram com agudeza no íntimo dos pensamentos !
«Dentro em poucos minutos, me disse elle, (31 ) verás apparecer em
330 O INFERNO

cima o phenomeno, que eu espero ; e aquillo, que a tua imaginação


sonha, deve manifestar - se claro, e patente aos teus proprios olhos. )
O homem deve sempre abster-se, quanto lhe couber, de narrar
cousas, que embora verdadeiras, parecem falsas, porque quando o
facto, que se narra, é incrivel, expõe a quem o narra á vergonha de
passar por mentiroso sem culpa . ( 32)
Mas eu d'esta vez não devo emmudecer; porque te juro, o leitor,
pelos versos d'esta Comedia (assim alcancem elles estima, e louvor
entre os homens), sim eu te juro, que vi nadando em cima atravez
d'aquelle ar denso , e tenebroso , uma figura tão espantosa, (33) que
amedrontaria o mais impavido!
Ella vinha, como do fundo do mar vem o marinheiro, que algumas
vezes vae desatar a ancora, que se agarra ou a um rochedo , ou a ou
tra causa desconhecida, estendendo os braços na superficie d'agua, e
encolhendo em baixo as pernas.

1
COMMENTARIOS AO CANTO XVI

( 1 ) Già era in loco ove s'udia il rim Brunetto Latini parecia um, que cor
bombo Dell'acqua che cadea nell'altro ria ao Pallio, emquanto o soldado,
giro, Simile a quel che ľarnie fanno que veremos, parecia um passaro, um
rombo. Os dous Poetas atravessaram o relampago . Mas porque do correr mais
gyro da areia inflammada. Ao chegarem rapido resulta menor pena ? Porque as
á extremidade, começaram a ouvir o es chammas, pelo movimento do corpo,
trondo , que no fundo do oitavo circulo saltam mais depressa, e por isso ator
fazia a torrente do Phlegetonte n'uma mentam menos ; alem de que os pés se
cascata. Ora do septimo ao oitavo cir demoram menos no areial inflammado .
culo a rocha era talhada perpendicular Isto é sublime de invenção !
e profunda, e por isso não era possivel (3 ) Sostati tu che all' abito ne sembri
a descida a pé, nem mesmo com gran Essere alcun di nostra terra prava. Os
de esforço, como era a descida ao cir varios paizes da Italia tinham modo de
culo dos tyrannos . vestir peculiar, mas uniforme em certas
( 2 ) Quando tre ombre insieme si par fórmas geraes. O habito civil dos anti
tiro . Estas tres sombras eram de vio gos florentinos distinguia-se pelo lucco,
lentos contra a natureza, condemnados e pelo capuz. Lucco era uma tunica
pela divina Justiça, como já vimos, a inteiriça, que se afivelava entre o peito
andar em moto continuo . Foram ho e o pescoço . Dante costumava trazer na
mens de armas, e de grande fama. Im cabeça um barrete, de que pendiam
porta observar ainda uma vez, que os duas faxas, que se chamavam focar.
violentos contra a natureza têem uma Foi por estes distinctivos, que os espiritos
gradação de pena, segundo o maior ou mais ou menos conheceram que Dante
menor conhecimento, que possam ter era da perversa ( prava ) Florença , e per
da malicia do peccado, e esta maior ou isto lhe gritaram , que parasse .
menor pena consiste no correr mais ou (4) E se non fosse il fuoco che saetta
menos : quem corre mais tem menor La natura del luogo, i ' dicerei, Che me
pena ; quem corre menos tem maior, glio stesse a te, che a lor, la fretta .
de modo que o correr está na razão in Como si dissesse : « E si te não impedis
versa do peccado. Já vimos que a turma se o fogo, que pela natureza d'este logar
dos lettrados, onde estava Brunetto La infernal dardeja no fundo com tanta
tini, corria menos que esta, que é com violencia, eu diria que melhor te fôra
posta de militares. E por onde se co apressar-te a saír ao encontro d'elles
nhece, que a primeira corria menos do antes que elles viessem ao teu . « Por estas
que esta ? Conhece-se pelo facto de que palavras comprehende - se, que os tre
332 O INFERNO

que vinham-se approximando, eram per L'antico verso ... Que antigo verso é
sonagens importantes, e dignas de toda este ? São os lamentos, que elles inter
a cortezia . romperam , para dizer a Dante : pára
Porque julgava Virgilio que era con ( sestati).
veniente, que o seu discipulo antecipas (6 ) Fenno una ruota di sè tutti e trei.
se o encontro d'aquellas tres sombras ? E porque fizeram essa roda ? Para con
Julgava util por dous motivos : 1.", para tinuarem a correr girando, embora esti
fazer d'ellas menção no seu poema ; por vessem sempre no mesmo logar a dis
que , moralmente falando, lhe era con correr com Dante. Já Brunetto nos disse
veniente conhecer, e fazer conhecer que um só momento, que alguma d'el.
pesssoas tão viciosas, e ao mesmo tem las parasse jazeria cem annos immovel,
po o seu horrivel supplicio, a fim de sem poder sequer afastar, e defender
que ninguem os imitasse nas suas torpe se das chammas, que chovem incessan
zas, e não incorresse , como ellas, na ira temente .
de Deus : 2.",porque aquelles tres conde (7) Qual suolen i campion far nudi ed
mnados haviam deixado no mundo mui unti. Comparára aqui o Poeta a posição
tos admiradores das suas virtudes civi. das tres sombras com a dos luctadores
cas, e por isso convinha mostrar que antigos. Um dos tantos espectaculos ro
essas virtudes foram inferiores aos seus manos era a lucta . Os campióes apre.
vicios, sendo a prova os castigos, que sentavam - se nus, e untados, ou para te
estavam padecendo no Inferno. Desde rem mais força, ou para se desprende
pois que seus admiradores fossem adver. rem melhor um do outro . Mas antes de
tidos d'isto, haviam de detestar a me ferirem o combate, olhavam- se gyrando
moria d'elles ; o que lhes aggravaria em torno, para ver por onde um podia
os tormentos, pela conhecida razão, mais facilmente aferrar o seu adversa
de que os condemnados mostram - se rio .
desejosos de gosar no mundo de boa no Biagioli segue com outros a lição so
meada . leano ( costumavam), por causa da maior
Ha ainda outra razão inversa, que belleza do verso, e realce do conceito,
moveu Virgilio a dar aquella especie de que, pela apparente discordancia dos
conselho a Dante, que vem a ser o en : tempos, melhor se conforma com a ver
sinar-nos, diz Butti, que , ao vermos se dade, e com a mente do Poeta ; visto
approximar de nós pessoas importantes, como a sua visivel intenção foi escrever
devemos sair-lhes ao encontro, em si soleano, e não solgono, com o fim de
gnal de deferencia, salvo quando ha transportar o pensamento do leitor ao
impedimento, ou força de causa maior, tempo em que esses exercicios gymnas.
como no presente caso : porquanto Vir ticos se faziam , e accrescenta depois
gilio não diz a Dante positivamente que sieno, porque com o verbo no presente
vá ao encontro dos tres personagens ; se pintam melhor as cousas, pondo mais
diz tão somente, que lhe seria util saír ao vivo a scena sob os olhos .
a encontral-os, si não fosse a chuva de Campiões eram chamados aquelles,
fogo, que caía no logar onde elles esta que se batiam no campo. O Poeta aqui
vam . Ora por este fogo entende -se alle os toma no sentido de athletas, e pales
goricamente a chamma da concupiscen trinos, e não no sentido de gladiadores,
cia torpissima em que foram abrasados como pensam Venturi, e Lombardi.
em vida aquelles tres individuos, e que, Dante, que não perde occasião de hon
communical -os de perto, haveria perigo rar seu Mestre, servindo - se de suas

de Dante corromper-se com a conver idéas, naturalmente allude a este verso


sação d'elles pelo principio biblico : de Virgilio : Exercent patrias oleo laben
Cum perverso perverteris. te palæstras.
( 5) Ricominciar, come noi ristemmo ei, ( 8) Faceva a piè continuo viaggio. É

1
COMMENTARIOS AO CANTO XVI 333

claro que estas tres sombras, andando onde procural-os, nem em que logar se
em roda uma atraz da outra , e estando achavam , dizendo :
Dante parado em cima do dique, encara
do continuamente por cada uma d'ellas, Farinata e il Tegghiaio, che fur si degni.
deviam na reviravolta os pés fazer um lacopo Rustituci, Arrigo e il mosca...
movimento contrario ao do pescoço,
Dimmi ove sono e fa ch'io li conosca.
isto é, emquanto os pés andavam para
diante, o rosto olhava para traz . Por isso
diz bellamente o Poeta que a cabeça Então viu Farinata, Henrique, e Mos
fazia uma continua viajem em direcção ca ; agora vê Tegghiaio, e Rusticucci.
contraria aos pés. Faceva a 'piè continuo ( 12 ) E credo che 'l Dottor l'avria sof
viaggio. ferto. Diz que Virgilio lhe teria permitti
(9) Nepote fu della buona Gualdrada. do, segundo o conselho que lhe havia
Esta boa Gualdrada, tão famosa por sua dado de ser cortez para com elles, saín
belleza, quanto ainda mais por sua ho do - lhes ao encontro, antes que elles
nestidade, foi filha de M. Belliucion Berti viessem ao seu .
( Par ., xv, 112, xvi, 95) , da nobre familia ( 13 ) Tosto che questo mio Signor mi
florentina dos Ravignanis. Casou com o disse. Para augmentar a cortezia para
conde Guido o velho, descendente de fa com aquelles espiritos, disse - lhes, que
milia allemā, de que se originaram os antes mesmo que se approximassem
condes Guidos, senhores de Casentino. d'elle, sentiu a maior dor : porque co
De Guido e de Gualdrada nasceu entre nheceu logo pelas palavras de seu Mes .
outros, Marcolvado, e de Marcolvado tre, que eram pessoas grandes, e dignas.
Guidoguerra, e por isto vem a ser neto A costor si vuole esser cortese. Taes fo
de Gualdraba. Este foi excellentissimo ram as palavras de Virgilio.
na arte militar, e na batalha de Bene ( 14) Lascio lo fele, e vo pei dolci po
vento, entre Carlos, e Manfredo, foi con mi. Como si dissesse : « Deixo as amargu
siderado o campião principal da victoria ras do Inferno, e vou -me deliciar com
(Fraticelli ) . as altas doçuras do Paraiso, a mim pro
( 10) ... Tegghiaio Aldobrandi, flo mettidas pelo meu Guia, que me não
rentino da nobre familia dos Adimaris.
engana » . Allude claramente ao mystico
Foi um esforçado capitão, que muito fez monte , e aos seus beneficos effeitos,
para dissuadir os florentinos da proje que devem ser os doces fructos da sua
ctada empreza contra os Senezes ; mas viajem ao Inferno (Fraticelli ).
não sendo ouvido o seu prudente con ( 15 ) Se lungamente l' anima conduca .
selho, seguiu - se em Montaperti a com Querendo dizer : «Assim a tua vida seja
pleta derrota, de que resultou o exilio longa, e a tua fama perdure brilhante
dos guelphos . depois da tua morten . Modos deprecati .
( 11 ) Iacopo Rusticucci. Foi este um vos, como aquelles, que vimos notados
rico, e insigne cavalleiro florentino. Mas, no canto x, 94, e n'outros logares (Fra
cabendo - lhe em sorte uma mulher des ticelli ) .
arazoada, e orgulhosa, achou- se na con ( 16) Cortesia e valor... Cortezia é
tingencia de separar- se d'ella ; o que gentileza, ou urbanidade ; e valor é ga
deu causa a cair no vicio nefando, de lhardia .
que é aqui punido . Por isso diz elle, que
mais do que ninguem , foi a fera mulher In sul paese ch ' Adige e Po riga
a origem da sua desgraça. Solea valore, e cortesia trovarsi

Com a presença d'estes dous preen


cheu- se uma parte do desejo, que tinha « No paiz banhado pelo Adige , e pelo Pó
Costuma-se encontrar valor, e cortezia,
Dante de vel-os, conforme o exprimiu
no canto vi, se bem que então não sabia ( Purg ., xvi , 115.)
334 O INFERNO

( 17) Chè Guglielmo Borsiere... Foi te ? Pelas cousas que Dante disse com
um valoroso, e gentil cavalleiro. D'elle franqueza aos condemnados, isto é,
fala Boccaccio na Novella oitava, dia que os forasteiros vindos das aldeias, e
primeiro. campos vizinhos, como os Cerchis, por
( 18) Assai ne crucia colle sue parole. exemplo, adquirindo, por traficancias
« Atormenta -nos bastante com as tristes inauditas, rapida fortuna, chegaram a tal
cousas, que nos diz de Florença, na qual excesso de prepotencia que, destruindo
já não ha nem cortezia , nem valor » . Dante todos os habitos de moderação, e caval
já nos disse no canto x , que os con leirismo da nobreza antiga, tinham pro
demnados conhecem em certo modo as vocado dissensões intestinas crueis, que
cousas futuras, e ignoram as presentes ; despedaçaram o equilibrio racional da
por isso precisam que alguem de cá lh'as egualdade entre os cidadãos ; equilibrio
refira, como agora pedem ao mesmo tão necessario, mórmente n'um estado
Dante a confirmação das funestas histo . republicano, qual o de Florença, e que
rias, que Guilherme Borsiere lhes conta por isso esta desgraçada cidade se tor
a respeito de Florença. nou um ninho de facções oppostas , e
( 19) La gente nuova , e i subiti guada odientas, e raro dia deixava o sangue
gni. Como si dissesse : « A gente,que de de banhar suas ruas. Fiorenza, in te, si
fresco tem vindo habitar Florença, e as che tu già ten piagni. Todos esses ex
riquezas, que em brevissimo tempo tem cessos, ó Florença, te fazem verter la
accumulado, com usuras, e outros meios grimas n’este momento .
illicitos, etc. Gente nuova corresponde ao (22 ) Felice te, che sì parli a tua posta.
homo novus dos latinos (Fraticelli). Como si dissessem : « Feliz de ti, si todas
(20) Orgoglio e dismisura ... « Esses as vezes que responderes ás perguntas,
adventicios, que tomaram conta de Flo . que te fizerem , satisfizeres aos outros,
rença, altanados pelos improvisos lucros como agora satisfazes a nós, e que do
de suas deshonestas especulações, têem teu falar franco, e resoluto não te re
por seu orgulho, e intemperança, feito sulte damno algum ».
esquecer a antiga urbanidade, e galhar Prefiro a todas esta interpretação de
dia, que sempre distinguiram os foren Lombardi, porque é a que está de per
tinos». Entende por orgoglio a soberba , feito accordo com os factos da vida do
e a altivez nos corações inchados pelas Poeta, segundo a veridica asserção do
riquezas ; por dismisura, o descomedi seu biographo Leonardo Aretino, quan
mento nas palavras, e nos actos em do diz que a franqueza com que Dante
opposição ao preceito de Horacio : Est atacava, no falar, e no escrever, os des
modus in rebus, sunt certi denique fines mandos dos que governavam a republica,
Quos ultra citraque nequit consistere re The tinha acarretado o exilio .
ctum (Daniello) . Quando o Poeta diz que bradou de
(21 ) Guatar l'un l'altro, com ' al ver cabeça levantada ( faccia alzata ), não só
si guata. É este um verso, que de per si quiz significar a indignação com que
seria bastante para immortalisar um falou, mas tambem para significar por
homem, e é mais facil sentil-o, que ex esse gesto que, achando - se Florença no
primil-o ! E , como diz Biagioli, um pri mundo, e elle no Inferno, a tinha sobre
mor ! Aquelle silencio , aquella estupefac a cabeça, e por isso, apostrophando-a,
ção dos dous condemnados, ao ouvirem não podia deixar de olhar para cima, isto
o que Dante lhes referia em resposta , é, de cabeça levantada.
vale pelo mais eloquente discurso ! » (23 ) Quando ti gioverà dicere: I'o fui.
O Poeta havia dito no verso anterior Alludem ao verso 24 d'este mesmo can
que Florença chorava lagrimas de dor : to, como si dissessem : « Tu declaraste, ha
Fiorenza, in te, sì che tu già ten piagni. pouco , que vens visitar estes tristes lo
E porque chorava ella tão amargamen gares, e os logares bemaventurados em
COMMENTARIOS AO CANTO XVI 335

proveito de tua alma. Pois bem : resti em verso aquillo, que em prosa difficil
tuido que sejas ao mundo, ser-te -ha mente se conseguiria ! »
agradavel dizer : « Fui ao Inferno », então Falámos ha pouco, em S. Godenzo. É
pois recorda-te de nósv. É isto uma este o logar, onde exactamente no coro
imitação do Virgiliano Eneas, dizendo da Abbadia, foi por mnitos fiorentinos
aos seus companheiros: forsan et haec fugitivos, entre os quaes Dante, lavrado,
olim meminisse juvabit, e Seneca : Quod em junho de 1304, um acto de caução
fuit durum pati, meminisse dulce esse que existe ainda, em favor de Ugoli
(Daniello ). no de Felicione, para indemnisal- o de
Venturi diz tambem que d'este passo algum damno, que por ventura lhe acar
tirou Tasso aquillo, que disse de Godo retasse a guerra, que por suas terras in
fredo: tentavam fazer a Florença, com o fim
de repatriar -se. N'aquelle publico instru
Quanto mi giovarà narrare altrui mento , Dante Allighieri subscreveu com
Le novità vedule , e dire : io fui. um l, e questo fia suggel che ogni nomo
sganni.
( 24 ) Che 'l suon dell'acqua n'era sì ( 26) Che si divalli giù nel basso letto.
vicino. Os dous Poetas haviam chegado Não no baixo leito de S. Bento , que é
á extremidade do septimo circulo, onde ainda entre os montes, mas no de Forli ,
o Phlegetonte se precipitava no abysmo. onde tudo é planicie.
(25) Come quel fiume, c' ha proprio ( 27 ) Ove dovria per mille esser ricetto .
cammino. Querendo dizer: « Qual aquelle « Onde deveria ser asylo para mil pes
rio, que vae directamente ao mar, sem soas, ou porque, como de Boccaccio , re
pre dentro do proprio leito , sem entrar fere Landino, fosse alguma vez resolvi
em outro rio com o qual se confunda, do, mas não executado, pelos condes
etc. » Eis a topographia d'aquelle rio. senhores d'aquelle paizinho fabricar ahi
Monteveso está exactamente ao norte um castello, e reunir n'elle muitas das
de Falterona, na cadeia dos Apenninos. aldeias vizinhas, ou , como entende Da
Monteveso na costa oriental, e Faltero niello, porque, sendo aquella abbadia,
na na occidental. Ambos estes montes por sua vastidão, e riqueza, capaz de
estam sobre o da Toscana : de Monte manter muitissimos monges, era habita
veso nasce o Acquacheta ; de Falterona da de pouquissimos, por causa da ga
0 Arno, e assim ambos vam por direc nancia de quem a administrava » . O
ções inteiramente oppostas; este para Anonymo lê Dove dovea, isto é, que de
o Mediterraneo, aquelle para o Adriatico. via ser receptaculo, e habitação de mil
Acquacheta , nascendo do Monteveso, ao pessoas. Talvez queira dizer, que os
lado de S. Godenzo, prosegue poucas muitos bens, de que dispunham aquelles
milhas, mantendo- se no alto do monte : poucos monges, teriam sido sufficientes
chegado a S. Bento, que demora em um para alimentar, como em residencia, mil
amplo, e profundo valle quadrilongo , faz pessoas. Em todo o caso, parece que o
uma cascata : depois continúa por este Poeta vibra aqui um dardo satyrico á
valle de S. Bento, pela rocha S. Cascia avareza dos Monges d'aquella abbadia .
no, e Dovadola , e chega até Forli, onde ( 28) Io avea una corda intorno cinta.
cessam os terrenos montuosos, e come Que corda é esta ? Evidentemente cra
ça a baixa planicie, e onde esse rio per uma corda toda particular, que tinha
de o nome de Acquacheta, e toma o de uma virtude sancta ; porque o Poeta diz
Montone, e continuando pelo territorio n'este mesmo terceto que, cingindo -se
de Ravena, lança-se no mar. com aquella corda, tinha alguma vez pen
« Admira, diz Biagioli, ver n'esta bella sado em domar a onça de pelle sarapin
comparação o maravilhoso artificio do tada (la longa alla pelle dipinta ). Já
Poeta , descrevendo com tanta precisão ficou dito no primeiro canto que essa
336 O INFERNO

onça era o symbolo da luxuria . Ora , tal Mas não podia Virgilio lançar no fundo
corda não pode ser outra, senão o bem da voragem uma pedra, ou um páo? Não ;
dito cordão de S. Francisco. Butti diz, porque alli não havia nem pedra nem
como cousa indubitavel, que Allighie páo ; e não esqueça, que os dous poetas
ri, quando moço, se fez terceiro de se achavam ainda sobre os diques de
S. Francisco, e que saiu da Ordem pedra lisa , tendo em baixo a areia in
antes de professar. Pelli, escriptor de flammada.
1500, affirma que Dante vestiu em Ra (30 ) Ond ' ei si volse in vêr lo destro
vena o habito franciscano, que conser lato. Quando alguem quer atirar uma
vou até á morte, e que foi sepultado na cousa ao longe, a fim de que vá cair bem
catacumba dos frades. Certo é que o no fundo, pratica dous actos : 1.', volta
Poeta teve sempre grande predilecção a sobre o lado direito, para dar maior im
S. Francisco e á sua Ordem . pulso ao arrêmesso : 2.", segue com os
Que o cingulo bemdito tenha a virtu olhos attentos o objecto arremessado,
de de reprimir a incontinencia, e de si para ver, si chega ao logar desejado.
gnificar virtude de pureza, póde-se ver Dante não esquece circumstancia algu
n'estes factos: 1.", a Egreja na sua litur ma, que possa dar perfeição, e relevo
gia ordena aos sacerdotes, que, ao re aos seus quadros.
vestirem-se para dizer missa, recitem ( 31 ) Ei disse a me: Virgilio, pela
esta oração : Præcinge me, Domine, propriedade que têem os espiritos, de,
cingulo puritatis, et extingue in lumbis dados certos signaes externos, penetrar
meis humorem libidinis, ut maneat in no intimo dos pensamentos, leu na
me virtus continentiæ et castitatis: 2.", mente de Dante a conjectura que esta
Sancto Thomaz de Aquino, depois de ha va fazendo sobre o que podesse acon
ver saído victorioso dos assaltos de uma tecer, e por isso lhe disse : « Eu sei
formosa mulher impudica , viu appro precisamente quem deve acudir ao si
ximar-se um anjo, que lhe cingiu os gnal, por esta razão estou attento :
lombos, e que o tornou para sempre tu ainda o não sabes, e vás sonhando
invulneravel do instincto da concupis uma novidade in genere : Ora bem :
cencia . dentro de minutos verás que novidade
( 29 ) Poscia che l ' ebbi tulla da me seja essa » . Mas Dante anticipa tudo isso
sciolta ... Porsila a lui aggroppata , e com uma advertencia : Que os homens
ravvolta. « Depois que a desatei da minha devem ser muito cautos em pensar
cintura, lh'a entreguei enrolada em fór quando estão com pessoas, que lhes pe
ma de novello .» Porque entregou Dante netram no pensamento (Ahi quanto cau
a corda a Virgilio ? Porque este lh'a ti gli uomini esser denno, etc ) .
pediu ( Si come 'l duca m ' avea coman ( 32 ) Sempre a quel ver c'ha faccia di
dato), e a Virgilio, que era um Mestre, menzogna , etc. Feita esta sabia adver
não podia dizer não. E para que a pe tencia, Dante diz que é constrangido a
diu Virgilio ? Para atiral -a ao fundo do fazer uma excepção do caso que vae
abysmo, a fim de dar signal a Geryão, narrar ; caso, que, sendo verdadeiro, pa
que viesse acima, para tomar em suas rece falso ! Refere - se ao monstro Geryão.
ancas um forasteiro . Mas porque não pe que, não obstante o ter visto tal como
diu Virgilio, em vez da corda, o cinturão o narra , todavia ninguem o poderá crer ;
de Dante ? Porque o cinturão não fazia o porque a sua narração tem mais appa
mesmo effeito ; visto que, sendo o cintu rencia de invenção, do que de realida
rão uma faxa de coiro, não podia ser de. Mas o Poeta, para se fazer crer pelo
enrolado como um novello, nem con leitor, jura, pelo que lhe é mais caro,
stituir uma cousa compacta, que podes que lhe diz a verdade, isto é, jura-lhe
se ser arremessada ao longe , sem o risco pelos versos da sua Divina Comedia ! E
de ficar encalhada no pendor da rocha. porque os versos da Divina Comedia

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COMMENTARIOS AO CANTO XVI 337

constituem aquillo que lhe é mais caro? É bellissimo este encarecimento do


Porque a Divina Comedia é o seu monu Poeta a respeito do extraordinario da
mento de honra, e gloria ; é o thesouro figura de Geryão ! Não é menos bella, e
em summa dos seus mais castos, e mais exacta a comparação entre aquella fi
sagrados affectos; é o seu segundo Evan gura nadando pelo vacuo escuro do
gelho. abysmo, subindo de baixo para cima,
(33 ) Venir notando una figura in suso . com a do nautico, que sáe do fundo do
Chama-se figura uma cousa , que não se mar, estendendo os braços pela superfi
póde de subito descrever, mas que si cie da agua, e ao mesmo tempo contra
quer fazer de subito fazer comprehen hindo, e encolhendo as pernas, para
der ; porque é uma cousa tão extraor dar maior impulso ao nado !
dinaria , e tal, que não se poderia definir. Admiravel Dante !

??
1

.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XVII

Começa este Canto pela descripção da Fraude no vehemente estylo dantesco.


A fraude é uma hedionda serpente com rosto de homem justo. É serpente porque,
escondida entre as hervas, e as flores, sentimos-lhe a mordedura antes de vêl- a : é
traidora. Tem rosto de homem, porque é proprio do homem enganar ; e rosto de
homem justo ; porque o homem inclinado á fraude, ao dolo, e á traição é exacta
mente aquelle, que tem a face mais benigna, e palavras mais assucaradas. Ha muito
tempo, que tomára a resolução de não me fiar de tartufos d'esta laia ; mas apresen
tam-se-me com semblante tão meigo, com olhos tão humildes, com linguagem tão
modesta, que por fim me pilham no laço !
Geryão é o monstro em quem Dante personifica a Fraude. No dizer de Esiodo,
Geryão foi o mais forte de todos os homens. Os Poetas posteriores fizeram d'elle
um gigante com tres corpos, que tinha por guarda de seus rebanhos um cão de
duas cabeças, e um dragão de sete. Não se sabe com precisão onde habitasse; mas
crer-se commummente, que fosse um principe da Bética, ao meio dia da Hespanha, c
ahi possuidor de numeroso armento . Os tres corpos eram talvez os tres pequenos exer
citos, que elle oppoz a Hercules, quando veiu assaltal-o ; ou eram as tres provincias
occupadas por esse Geryão, ou tres irmãos com os quaes vivia em estreita alliança.
Ha tambem quem diga que estes tres corpos fossem as tres ilhas de Maiorca, Minorca,
e Ivica, de que se tinha feito senhor. Deixando porém de lado similhante questão,
concluirei, que a Fabula narra haver Hercules combatido com elle, matando- o jun
ctamente com o cão, e o dragão, e se apossando de seus bois, que levou comsigo,
para offerecel- os a Euristeo.
Dante fala de Geryão n'este canto, e no seguinte, fazendo d'elle um monstro de
sua invenção ; e porque Geryão foi um homem astutissimo, e habilissimo em ma
nhas, o põe na entrada de Malebolge, como imagem da fraude. É tambem nomea
do no Purgatorio (xxvii), quando o Poeta recusa entrar no fogo, que no septimo
gyro purifica a incontinencia, e Virgilio o adverte, dizendo -lhe que, si o tinha guiado
a salvamento nas ancas de Geryão, quanto mais agora , que se achavam no gremio
de Deus.
Voltando ao argumento , direi que, emquanto Virgilio persuade Geryão a trans
portal-os ao fundo de Malebolge, Dante, por conselho de seu Mestre, dirige alguns
passos á direita sobre a extremidade da rocha, que circumda o poço, a fim de ver
os usurarios, que não tinha em face, ao atravessar o areial ardente : não os conhece
pelo rosto, como não conheceu os avaros; porque os usurarios são peiores, que os
avaros ; e por isso a vida obscura, que os tornou sordidos no mundo, torna -os com
340 O INFERNO

pletamente desconhecidos no Inferno. Conhece - os porém Dante pelas armas no


bliarchicas, estampadas n'uma bolsa, que cada um d'elles trazia pendente do pes
coço ; por onde se vê, que todos estes usurarios eram nobres.
Agora perguntarci a razão por que Dante mettêra no Inferno usurarios nobres,
e não plebeus ? Será porque odiasse a nobreza ? Não certamente, pois que elle
mesmo era nobre, como mais de uma vez se compraz de insinual- o . Metteu no 117
ferno os usurarios nobres, e não plebeus pela mesma razão por que lá metteu um
Bispo, e não um simples Padresinho ; meiteu um Imperador, um Rei, e não um sa
pateiro ; e isto por aquillo, que elle se fez dizer a si por seu bisavô Cacciaguida, no
canto xvii do Paraiso :
« Este teu brado deve ser similhante ao vento , que açoita as mais altas eminen
cias ; e esta franqueza, com que verberas os vicios dos grandes constituira a tua
maior gloria; por isso no Céo, no Purgatorio, e no Inferno, são mostradas a ti as
almas conhecidas por fama, e celebridade. »
Os nobres pois são as altas eminencias entre os usurarios notaveis ; porque tão
relevante é n'elles a virtude da liberalidade, quam sordida a paixão da usura. E por
isso devemos crer, bom ou máo grado nosso, que Dante, não tanto por odio, quanto
por bello artistico, e scientifico, metteu no seu Inferno alguns Papas, Cardeaes,
Bispos, Imperadores, Reis, Duques, Condes, Marquezes, etc. Que mais interessante,
e bello não seria, que o preclarissimo poeta, e escriptor Manzoni no seu excellente
romance Promessi Sposi, em vez de immortalisar dous pobres villãosinhos, quaes
foram Renzo , e Lucia , houvesse transmittido á memoria dos vindouros duas cele
bridades viciosas das muitas que abun Jaran n'aquella época ? Digo isto, não por
censura , mas em louvor do illustrado milanez ; porque, si elle soube dar importan
cia a quem não a tinha, que realce não teria dado a quem a tivesse ? É grato dizer
que a virtude é tão preciosa no pequeno , como no grande ; mas quanto a mim é mais
preciosa no pequeno, que no grande; por isso que no mundo é menos apreciada a
virtude no pequeno, do que detestada a malicia no grande.
De volta de sua pequena digressão, encontrou Dante a Virgilio já montado nas
ancas de Geryão ; elle tambem monta , mas com difficuldade, e pavor. Geryão, fa
zendo largos gyros, e descendo lentamente, transporta os dous Poetas ao fundo de
Malebolge, e no descer dobra á esquerda ; por isso os depõe áquem da voragem do
Phlegetonte. Dobra pois á esquerda, ou porque lh'o tivesse ordenado Virgilio, ou
porque a fraude é uscira, e veseira em andar da direita para a esquerda , isto é,
do bem para o mal; ou finalmente porque sabe que o caminho para o Inferno é
sempre o da mão esquerda ; por cuja razão no juizo universal os condemnados fi
carão a lado esquerdo do Supremo Julgador.
Esta é a septima, e ultima caverna do Inferno : o seu diametro, na sua maxima
grandeza, tem 35 milhas, como o poço no circulo superior : a circumferencia 110
milhas, isto é, uma septima parte de toda a largura do Inferno, que é de 770 milhas.
E assim a sua summidade está na distancia do centro da terra, ou do principio do
Inferno 65 milhas, septima parte da altura total 245 milhas.
Concluirei advertindo, que Dante não poude descer ao fundo do Inferno, seni
valer- se da fraude, querendo assim avisar-nos, de que não chegaremos ao fim da
nossa vida sem termos que tractar com fraudulentos. Mas não esqueça que quando
Virgilio tractou com a fraude (Geryão ) Dante estava ausente , de modo que se ser
viu da fraude, sem tractar com ella, e n'isto devemos imital - o . Toda vez portanto
que formos obrigados a tractar com pessoa fraudulenta, deveremos procurar sem
pre um amigo fiel, e experimentado, que discuta, e conchave com ella o nosso ne
gocio. Será esse o meio unico de precavermɔs contra as alicantinas, e trapassas dos
fraudulentos .
CANTO XVII

Descripto Geryão, narra o Poeta como, emquanto seu Mestre se entretem com a hedionda fera, vae elle por
permissão sua ver alguns condemnados, que se assentam em cima da areial ardente: São usurarios ou vio
lentos contra a arte. Volta o Poeta: Monta as espaduas de Geryão, e n'elle desce com Virgilio ao fundo da
voragem , que é o oitavo circulo destinado aos fraudulentos.

« Eis a fera de aguçada cauda , ( 1 ) que atravessa os montes, e


rompe os muros , e as armas ! (2) Eis aquella , que ao mundo todo im
pesta 1) (3)
Prorompendo n'estas palavras, o meu Guia acenou -lhe que se
approximasse dos diques de marmore (4) por sobre os quaes passea
vamos .

E aquella torpe imagem de fraude veiu , e encostou á borda a ca


beça, e o busto, mas não a cauda .
O seu rosto, a julgar pela benigna apparencia, era o de um homem
justo ; ( 5) mas todo o resto do corpo era de serpente . (6)
Tinha as duas patas cobertas de um pêlo fino (9) até o sovaco ; o
costado, e ambos os flancos eram matizados de nós, e escudos . (8)
Nem Tartaros nem Turcos fabricaram (9) nunca estofos variegados
de tantas côres , nem brocados de tantos recamos foram jamais urdi
dos no tear do Aragne. ( 10)
Assim como algumas vezes os barquinhos, que demoram junto á
praia do mar, estam com a pôpa n'agua, e a prôa em terra : ( 11) e do
mesmo modo que la entre os Germanos gulosos (12) o castor se apresta
para dar caça aos peixes por engodo ; ( 13) assim estava a fera pessima
sobre a orla da rocha , que circumda o areal ardente .
Agitava no vacuo toda a sua cauda , torcendo em cima a venenosa
forca , ( 14) que á guisa de escorpião a ponta armava. (15)
342 O INFERN
O

« É necessario agora, disse o meu Guia, que o nosso caminho torça


um pouco ( 16) á direita, até onde se acha espojada aquella fera mal
dicta . »
Descemos, pois, do lado direito , e fizemos dez passos por sobre a
extremidade da orla, (17) para desviar o areal ardente , e a chuva de
fogo. E quando chegámos junto á fera, vi que alem se assentavam
pessoas na proximidade da voragem . ( 18)
Ahi me disse o Mestre : « Para conheceres bem o que se passa
n'este gyro , é bom que vás, e examines a qualidade da pena, que
n'elle se padece . (19)
« Releva que sejas conciso em tuas palavras : (20) emquanto tu vás,
e voltas, falarei com esta fera, a fim de dispol- a a prestar-nos os ro
bustos hombros, para passarmos ao oitavo circulo .»
Assim , pois, tive de andar outra vez sósinho (21 ) pelas raias do
septimo circulo, onde se assentava aquella gente infeliz .
Dos olhos irrompia -lhes a dôr ; com ambas as mãos defendiam -se
de todos os lados, já das chammas, já das emanações da areia ar
dente .
Não se defendem de outro modo os cães (22) - no calor da canicula ,
ora com o focinho, ora com os pés , quando são mordidos pelas pul
gas, ou pelas moscas, ou pelos mosquitos.
Depois fixei a vista no rosto de alguns dos flagellados pelo dolo
roso fogo, sem que a nenhum podesse conhecer ; (23) mas notei que do
pescoço de cada um d'elles pendia uma bolsa, (24) que tinha certa côr,,
e certo signal ; e parecia que se deleitavam em contemplal-a com os
olhos .
E em quanto divagava por entre elles, olhando em geral, vi uma
bolsa amarella com um campo azul, que tinha o aspecto e postura de
leão. ( 25)
Procedendo assim avante nas minhas observações, vi outra bolsa
mais vermelha que sangue, na qual estava pintado um ganso mais
alvo que leite. (26)
E'um sujeito , que tinha outra bolsa branca, e n’ella desenhada uma
porca azul, e gravida, (27) me disse : « Que fazes tu aqui n'esta ca
verna ? (28)
« Vae-te ; e pois que ainda és vivo, cumpre que saibas, que o meu
vizinho Vitaliano, (29) aqui se assentará ao meu lado esquerdo.
« Eu sou o unico paduano que me acho com estes florentinos, os
quaes quebram-me incessantemente os ouvidos, gritando : « Venha o
cavalleiro soberano, (30) que trará a sua famosa bolsa de tres bicos . »
Torceu depois a bôcca, e botou a lingua de fóra, como boi que se
lambe .
CANTO XVII 343

E porque temesse que a minha demora desagradasse aquelle, que


me admoestára que fosse breve , voltei, deixando as miseras almas. .
Já encontrei o meu Guia escarranchado nas ancas do fero animal, (31)
e me disse : « Ora bem , é necessario que te mostres forte, e resoluto.
«Por escadas taes havemos de descer agora. ( 32) Monta tu adiante,
que eu quero ir no meio , (33) para impedir que a cauda te possa offen
der . »
Qual aquelle que, vendo imminente o accesso da febre, tem já as
unhas roxas, e treme todo, só com a perspectiva da sombra ; (34) tal
fiquei eu ao ouvir as palavras de Virgilio ! Mas suas ameaças (35) pro
duziram-me o estimulo, com que na presença de um bom senhor o
servo torna -se forte .
Accommodei - me o melhor que pude nas espaduas da fera : eu quiz
dizer ao meu Guia : « Abraçai-me». (Mas a voz não me ajudou , como
eu acreditava .) ( 36) Elle , porém, que já me tinha salvado n'outro transe
perigoso , logo que montei, tomou -me nos braços, e me susteve .
E disse : « Geryão, move-te agora ; faze longos rodeios, e desce de
vagar : (37) pensa na carga que levas . » (38)
Á similhança de um barquinho, que sáe de um apertado porto ,
recuando pouco a pouco , Geryão vae-se afastando da margem petri
ficada ; e logo que se sentiu totalmente livre em seus movimentos ,
voltou a cauda para onde tinha o peito , e com ella teza se deslizou
como uma enguia (39) recolhendo com os pés o ar em si. (40)
Maior pavor não creio que houvesse em todo o mundo, quando
Phaetonte abandonou as redeas do carro do Sol, (41) de que resultou
incendiar-se o Céo , como ainda hoje se vê da via lactea ; ( 42) nem quando
o misero Icaro sentiu que, derretida a cera, despregavam -lhe as penas
das costas, gritando -lhe o pae: « Levas máo caminho » . (43) Pois agora
digo que muito maior foi o pavor que tive , quando vi que me achava
em pleno vacuo, não vendo de todos os lados outra cousa que a
fera . ( 44)
Ella vae nadando lentamente, lentamente ; e no seu ondular vae
pouco a pouco descendo ; mas eu não percebia o seu movimento, (45)
senão pelo ar, que me soprava no rosto , e nos pés .
Eu já ouvia ao lado direito um 'rumor horrivel no fundo da vora
gem , (46) e por isso estendi a cabeça, e os olhos para ver. (47)
Então , porque vi chammas, e ouvi prantos, se me augmentou o
temor de precipitar- me ; (48) por isso colei-me cada vez mais com Ge
ryão. E só então é que vi o descer, e o gyrar da fera, que antes não
via, (49) e não vi , senão pelos grandes males, que se approximavam .
Qual o falcão, que depois de fluctuar longo tempo nos ares , (50 ) sem
ver o chamariż, ou passaro, faz dizer ao falcoeiro : « Ai, tu baixas ! » ,
344 O INFERN
O

e fatigado desce caracolando ao logar, d'onde se tinha movido, e vae


despeitado, e desobediente, pousar longe do mestre : assim Geryão,
não menos pêrro , vae pouco a pouco descendo até que, ao chegar ao
pé da rocha, sacode das costas as nossas pessoas, e foge com a rapi
dez da corda vibrada pelo arco.

i
COMMENTARIOS AO CANTO XVII

( 1 ) Ecco la fiera con la coda aguzza. sonifica um vicio mais horrivel que
Com a cauda que terminava em aguça todos os outros, qual o da fraude.
da ponta. (4) Vicino al fin de ' passeggiati mar
(2 ) Che passa i monti, e rompe mu mi. Os Poetas estavam precisamente
ra ed armi. Assim como este monstro sobre o dique marmoreo, que circumda
é a imagem da fraude. (E quella s077a va o Phlegetonte, lá onde esse dique ter
imagine di froda ), assim nos diz agora minava, e prendia com a orla egualmen
o Poeta, que esta fera immunda atra te marmorea, que cingia o areal arden
vessa os montes, rompe os muros, e as te pela direita, e pela esquerda. Virgilio
armas ; querendo dizer, que ella penetra pois acenou ao monstro, que viesse á
por toda a parte, superando toda a re borda, não na extremidade do dique, por
sistencia de montes , de muros , e de ar que n'esse ponto era a grande cascata do
mas. Phlegetonte, que não permittia, que elles
De feito , com a fraude ou com a montassem na fera, sob pena de serem
traição conquistam-se reinos (passa i queimados com os salpicos da agua fer
monti), tomam-se de assalto cidades for vente ; mas sim n'outro logar vizinho.
tificadas ( rompe mura ), desbaratam - se ( 5 ) La faccia sua era faccia d'uom
exercitos (rompe l'armi). giusto. Alguns interpretes tomam este
(3 ) Ecco colei che tutto 'l mondo ap uom giusto no sentido d'aquelle verso
puzza. Sendo a fraude o symbolo do do primeiro canto : Qual che tu s'i o
vicio universal, inficiona todo o mundo. ombra o uom certo, explicando homem
No canto x havia dito, que a fraude justo por homem verdadeiro. Mas não é
morde toda a consciencia . ( La froda, assim. Dante dá á fraude não somente a
d'ogni coscienza é morsa ). face de homem, mas de homem de bem,
Porque põe Dante o monstro da frau de homem, que inspira confiança, de
de no oitavo circulo ? Porque, segundo homem amigo, e doce ; porque a fraude,
a distribuição feita no canto xl, estam e a traição insinuam- se sob as formas
exactamente n'este circulo todos os frau da amisade, e da benevolencia. Taes
dulentos, os quaes , quando descem do são os fraudulentos, e os verdadeiros
mundo a este golpho de tormentos, têem traidores. Bem inspirados são os pinto
por seu barqueiro o referido monstro, res quando desenham a serpente, que
como na entrada do Inferno tiveram tentou Eva, com a cabeça de mancebo
por barqueiros Caronte, e Flegias. Não de aspecto agradavel.
precisa declarar que este monstro é (6) E d'un serpente tutto l'altro fusto .
tambem um demonio, porém mais hor É bellissimo este dizer, que o resto do
rivel, que todos os outros ; porque per corpo era todo de serpente, e não de
346 O INFERNO

outro animal; porque de serpente é ( 1 ) Che parte sono in acqua e parte


propria a insidia , e a traição. Foi este o in terra . É de grande belleza esta com
ferrete da maldição eterna, que o Crea paração , não só quanto á cousa em si,
dor lhe imprimiu na hedionda face como quanto á verdade do facto . O bar..
quando lhe disse no Paraiso terrestre : queiro, quando não encontra na borda
Et tu insidiaberis calcaneo ejus. D'esta do rio, ou mar onde amarre o seu batel,
descripção do monstro Geryão parece procura pol- o parte fóra da agua, e par
que Ariosto tenha tirado a, que elle faz te dentro, a fim de que as ondas o não
da fraude n’estes lindos versos : levem . () simile não pode ser mais com
pleto, e perfeito, si se considera que a
Avea piacevol viso, abito onesto, fera pessima está na orla da rocha, que,
Un umil volger d ' occhi, un andar grare
Um parlar si benigno, e si modesto ,
sendo de pedra, e por isso forte, fecha,
Che parea Gabriel che dicesse « Aves : e sustem o areal ardente, o qual, sem
Era brutta e diformo in tutto il resto . aquclle muro , se precipitaria no fundo
do oitavo circulo .
Diz o Anonymo, que a descripção, que ( 12 ) E come là tra li Tedeschi lurchi.
Dante faz da fraude, foi habilmente to Allemães gulosos, beberrões, grandes
mada do Genesis, c . 3 . comedores. Dediti somno ciboque. Dados
( ) Duo branche area pilose infin l'as ao somno e ao ventre : Tacito . De mori
celle. Reune o Poeta n'este monstro bus Germanicis. Assim diz tambem Lu
a natureza de diversos animaes : na face cillo : Edite lucrones, comedones, vivite
a natureza de homem , nas patas a de ventres ( Venturi ) .
quadrupede, e no resto do corpo não ( 13 ) Lo bevero s ' assetta a far sua
se sabe bem , si natureza de peixe, ou de guerra . O castor, para enganar os pei
serpente. xes, e devoral-os ao longo do Danubio
( 8 ) ... Di nodi, e di rotelle. Nodi. conserva -se parte fóra da agua, e parte
Manchasinhas em forma de nós, ou de dentro da agua. Não esqueça que este
laços enredados. Rotelle. Circulosinhos. simile ainda se refere á posição da fera
Os nós significam as falsas palavras com sobre a orla de pedra, que fecha o areal
que os fraudulentos embrulham , e enga ardente. Sul’orlo, che, dipietra ,ils abbion
nam os outros . Rotelle ou escudos si serra . Faz aqui o Poeta uso da sinchisis,
gnificam as defezas artificiosas, com que do contrario diria : Su l'orlo di pietra ,
elles são acostumados a encobrir suas che il sabbion serra .
obras capciosas (Bianchi). ( 14) Torcendo in su la venenosa forc..
(9) Non fer mai in drappo Tartari nè Torcia em cima a venenosa ponta da
Turchi. Os Tartaros, e os Turcos sabem , cauda, que se dividia em duas, para de
mais que todos os outros povos, dar aos notar os dous modos principaes com que
seus tecidos a variedade das côres ; por os fraudulentos enganam ; rosto benigno
isso os seus brocados são hoje os de e palavras melifluas. A cauda era muito
maior estimação . mais longa, que todo o resto do corpo ;
( 10 ) Ne fur tai tele per Aragne im ou para melhor dizer, o dragão era
posle. Diz o Poeta que nem mesmo as todo cauda, excepto o pequeno espaço,
télas variegadas urdidas no tear de que vae do peito á cabeça . O agitar da
Aragne se podiam comparar com os re cauda é proprio do peixe, ou da ser
camos graciosos pelle, que vestia pente , quando estão presos pela cabeça.
aquelle monstro . Aragne, segundo a ( 15 ) Che a guisa di scorpion la punta
mythologia, foi tão celebre tecelā, que armava . O dragão armava a ponta com
ousou desafiar Pallas para ver qual me unir as duas lançasinhas da forca, for
lhor tecia , c, sendo superada por Pallas, mando assim uma só setta apontada,
nte
foi por esta convertida em lobo mari como faz o escorpião quando se
nho em castigo de sua soberba. pressão sobre o dorso ; em summa, as
COMMENTARIOS AO CANTO XVII 347

duas pontas unidas formam uma torquez mento d'estas tres especies de peccado
fechada res, isto é, blasphemos contra Deus, so
( 16 ) ... Orconvien che si torca La nostra domitas, e usurarios.
via un poco... Como si dissesse : « Assim ( 20 ) Li tuoi ragionamenti sien là corti.
como a mão direita é signal de amisade , « Sejam breves os teus dizeres ; porque
e por isso de lealdade, e sinceridade; com usurarios não se devem perder pa
assim quero conduzir -te á fraude pela lavras, nem usar de cortezia . Recom
mão direita, para ensinar-te a tractar mendei, que a tivesses com os sodomi
com lealdade, e sinceridade os proprios tas, não porque quizesse ter mais con
fraudulentos, com os quaes é necessario templação com elles, do que com os
usar da prudencia da serpente, mas ao usurarios ; mas porque aquelles sodomi
mesmo tempo da sinceridade da pomba, tas, sem embargo de seu vicio nefando,
como ensina o teu Redemptor ; porque tinham feito grande bem á patria, e á
não é licito enganar os enganadores, sociedade, ao passo que os usurarios
exceptuando alguns casos, como aquelle lhes fazem sempre grande mal ».
de que falei na minha Eneida, quando (21 ) Di quel settimo cerchio, tutto solo.
disse : vença- se por dolo ou por valor Como si dissesse : « Fui totalmente só, isto
não importa: Dolus an virtus quis in hoste é, sem Virgilio ; porque alli não tinha pre
requirat ? » cisão d'elle, visto como não me afastava
( 17) E dieci passi femmo in su lo tanto, que corresse o perigo de perder
stremo. O dragão estava pois sobre a me ; mesmo porque, conhecendo já que
orla, á direita dos dous poetas, a dez aquelles peccadores, que se assentavam
passos de distancia do dique, e da cas eram os usurarios, cujo supplicio é mo
cata do Phlegetonte . ver continuamente as miseras mãos,
i .. in su lo stremo. Esta extremidade para repellir as chammas, o meu desejo
é não só a orla de pedra , que contorna era só reconhecer alguns peccadores
o areal ardente, mas a ultima parte ex fallecidos de pouco tempo » .
terior d'essa orla ; por isso os dous Poe (22) Non altrimenti fan di state i
tas procuram retirar-se o mais depressa cani. É da maior propriedade esta simi
possivel da areia, e das chammas. lhança, 1.º, em razão do sujeito (cani),
( 18) Gente seder propinqua al luogo sendo os usurarios verdadeiros cães ;
scemo. Essa gente, que se assentava jun 2.", em razão das causas do tormento,
to ao vão (ao poço) eram os usurarios, externas ( mosche o da tafani), e internas
ou violentos contra a arte . Estavam pro (pulci), correspondentes ás duas causas
pinquos á fraude, porque na especie do superiores ( fiamme), e inferiores (caldo
peccado , que commettem , e de que alli suolo); 3.º, em razão dos actos, que pra
são punidos , avizinham -se muito da cticam para defender- se, ora movendo
fraude. Similes cum similibus facile con o focinho, ora os pés; 4.º, em razão da
gregantur. posição, porque os cães, perseguidos
( 19 ) Mi disse, or va, e vedi la lor pelos insectos, não correm, conservam
mena. Vae , e vê a condição do tormen se deitados, como fazem aqui os usura -
to, que n'esta cavidade infernal pade rios, que perseguidos pelas chammas, de
cem aquelles usurarios : querendo Vir fendem- se d'ellas parados (Bennassut
gilio dizer: « Em Capanéo conheceste ti ) .
personificados os violentos contra Deus, Esta similhança entre os cães, e os
em Brunetto Latini, e nos tres outros usurarios, alem de perfeitissima em to
florentinos Guidoguerra, Theggiaio , e das as suas partes, é notavel por sua
Rusticcucci conheceste os violentos naturalidade , verdade, e mechanismo dos
contra a natureza ; agora vaes conhecer versos (Biagioli ) .
os violentos contra a arte » . N'outra par ( 23) Non ne conobbi alcun ... Porque
te ficou manifesta a gradação do tor não conheceu algum d'elles ? Não co
348 O INFERNO

nheceu porque estivessem de rosto tão moso Giotto, seu amigo, na occasião em
deforme, que não podessem ser conhe que este pintava a celebre Capella
cidos, como crê Venturi; mas porque Scrovigni.
tinham o rosto baixo, ou para livral- o ( 28 ) ... Che faitu in questa fossa ? Este
das chammas, ou por vergonha da vil pro. modo de falar faz crer, que este Scro.
fissão, que exerceram . Mas a divina vigni conhecesse Dante no mundo, e
Justiça, para tornal-os conhecidos, fez provavelmente na visita a Giotto.
que cada um trouxesse ao pescoço (29 ) Sappi che 'l mio vicin Vitaliano.
brazão da sua linhagem : Che dal collo Este Vitalino del Dente tinha o seu pa
a ciascun pendea una tasca . É do mais lacio juncto ao de Scrovigni ; por isso
bello effeito este finissimo epigramma! chama - o seu visinho .
Estampando as armas de familia na ( 30 ) ... Vegna il cavalier sovrano. Este
bolsa quiz o Poeta significar, que a no cavalleiro Soberano é Giovanni Buja
breza dos usurarios está na bolsa do monte, de Florença, que tinha por bra
dinheiro . zão de armas tres bicos de passaro, ou
( 24) E quindi par che il loro occhio tres bodes, segundo Pedro de Dante,
si pasca. Eis- aqui a verdadeira razão em campo amarello : Ille a tribus hircis
porque o Poeta os não conheceu : ten fuit dominus Joannes Buiamonte de
do elles o rosto inclinado para a bolsa, Biccis de Florentia (com . de Pedro de
comtemplavam -n'a . É isto muito proprio Dante) . D'este parecer são tambem
dos usurarios. Satyra pungente ! (Ben Optimo, e Benvenuto ; e os tres bodes
nassutti). são vistos ainda como armas dos Buja
O usurario olha a bolsa com satisfa montes no antigo priorista das reformas
ção (occhio si pasca ). Isto denota a sua (certo tribunal de Florença ) (Bianchi).
insaciavel cobiça de dinheiro (Lombar É bello chamal- o cavalleiro soberano,
di ) . por ironia, como o mostra com torcer
A razão por que não tiram os olhos da bócca, e o pôr a lingua de fóra ; ges
da bolsa não é, como diz Lombardi, tos ridiculos , que faz o garoto, por des
porque ella lhes cause prazer ( pois que prezo, atraz de alguma pessoa , a quem
no meio de tão horrivel tormento não louva fingidamente .
era possivel havel - o) ; mas é porque a O Poeta ou faz practicar por Scrovi
presença da bolsa lhes recorda a origem gni este gesto plebeu, para aviltal- o,
funesta do seu eterno supplicio ; e essa apresentando - o como homem de baixa
contemplação lhes aggrava o tormento . educação, ou para tornar mais desprezi
Já vimos, que aos avaros, e aos prodi vel a sua sordida profissão de usurario.
gos faz recrescer a dor do castigo o Este modo de imitação é o fim , e o
lançarem - se mutuamente em rosto os officio do Poeta. Alguns deslouvam em
proprios vicios ( Biagioli ). Dante o descer a estes modos plebeus ;
(25 ) In una borsa gialla vidi azzurro. mas não se lembram que o Homero não
Aqui indica a nobre familia Gianfigliani, se dignou de representar as acções dos
de Florença , que tinha por brazão de porqueiros de Ulysses, e outras scenas
armas um leão azul em campo ama vis, e burlescas (Biagioli) .
rello. Biagioli devia acrescentar, que desde
1 ( 26) Mostrare un'oca bianca più che que Dante deu á sua obra o titulo de
burro. Este ganço branco era brazão da Comedia, em nada desmente a sua in .
illustre familia Ubbriachi, tambem de dole com introduzir opportunamente o
Florença. estylo comico .
(27) ...una scrofa azzurro e grossa . ( 31 ) Trovai lo Duca mio, ch ' era sa
Esta porca gravida era brazão da fami lilo. Porque montou Virgilio primeiro ?
lia Scrovigni, de Padua. Em casa de um Para animar Dante a fazer o mesmo,
d'estes Scrovignis visitou Dante o fa sem temor, nem repugnancia, por isso

1
COMMENTARIOS AO CANTO XVII 349

disse -lhe, que se mostrasse intrepido, e a Virgilio : « Segura -me! Segura-me!,,


resoluto. Or sie forte, e ardito. Mas a voz me faltou ; porque o excesso
( 32 ) Omai si scende per sì fatte scale. do medio me embargou a voz na gargan
Dizer Virgilio a Dante, que não havia ta . » É aquillo de Phedro: Vocem preclu
outro meio de descer ao fundo do In dit metus.
ferno, senão nas costas do dragão, cra ( 37 ) Le ruote larghe, e lo scender sia
cxcital- o com energia, como que decla poco. Virgilio queria que Geryão lhes
rando - lhe francamente : « Qu cessar a servisse de escada de caracol commoda,
viagem, ou montar nas espaduas da mas rapida ; por isso recomenda -lhe, que
fera» . faça largos rodeios, c desça de vagar.
( 33 ) Monta dinanzi, ch ' io voglio esser Zeugma; ellypse pela qual o mesmo
me770. Aqui mostra -se Virgilio bravo verbo ata duas proposições, como aquil
orador, e bom pae ao mesmo tempo . lo de Virgilio : hic illius arma. Hic currus
A cousa, que maior medo incutia em fuit ( Eneid ., 1, 16, e seguintes). E porque
Dante era a cauda do monstro, veneno faz Virgilio esta recommendação á fera ?
sa ponta como a do escorpião.
na Por causa de Dante ; porque si os ro
Para abrigal-o d'ella , collocou-se no deios fossem estreitos, e não largos,
meio . Bravissimo. É assim que o bom desceria de cabeça perpendicular.
pac, ou o bom Mestre deve proceder. (38) Pensa la nuova soma che tu hai.
( 34) Della quartana, c' ha già l’un Querendo dizer-lhe : vê bem : a carga
ghie smorte, E triema tutto pur guardan que levas é mais pesada que de costu
do il re77o. Com effeito, quem soffre a me; não é um corpo aereo, como as al .
quartā, quando se approxima o momen mas condemnadas , que costumas trans
to da remissão da febre, só a vista da portar ; é um corpo em carne e osso, e
sombra costuma causar susto, só pela cumpre, que não cáia sob seu peso » .
apprehensão do frio, que está para as ( 39) E quella tesa, come anguilla mos
saltal- o. Os primeiros symptomas da se. Este é o leme d'esta nova especie
febre se manifestam pelo roxear das de barca.
unhas. Por aqui se póde ver que Dante, ( 40) E con le branche l'aere a sè
como em tudo, era perito em medicina, raccolse. Estes são os remos da dita
e como frade pharmacista era inscripto barca, a que o ar serve de agua.
no indice de um convento da Romanha . (41 ) Quando Fetonte abbandonò li
É admiravel esta comparação, que faz freni. Phaetonte, filho do Sol, pediu ao
entre os calafrios, e medo do febricitan pae, para guiar seu carro ; mas os ca
te, e o terror em que se clle achou , ao vallos, tomando as redeas ao lombo,
ver - se montado nas costas do dragão ! correram tão desenfreadamente, que
( 35) Ma vergogna mi fer le sue mi Jove temeu um incendio no Céo, e por
nacce . Onde estam estas ameaças? Dante isso o precipitou no rio Pó.
as diz in genere, mas não in specie, e (42 ) Perchè il ciel, come pare ancor,
deixa que o leitor as subentenda. Virgi si cosse. Na opinião da fabula, seguida
lio havia dito : « Si não montas nas es até por Pythagoras, a via lactea, que
paduas do dragão, não descerás ao aliás não é senão uma reunião de im
fundo do Inferno, e sem esta condição mensos grupos de estrellas afastadissi
não subirás ao logar onde está Beatriz» . mas, é o vestigio da inflammação , que
Dante n'este passo demonstra principal ahi deixou o Sol, quando pelos cavallos
mente , como a obra da regeneração do mal dirigidos por Phaetonte foi desviado
peccador, não é empreza sem fadiga , do seu caminho .
mas é necessaria muita abnegação pro (+3 ) Nè quand ' Icaro misero le reni
pria (Bennassutti ). Sentà spennar per la scaldata cera, Gri
( 36) Si volli dir, ma la voce non venne. dando il padre a lui: Mala via tieni. É
Em transe de tanto aperto eu quiz dizer tão conhecida a fabula de Icaro, e tão
350 O INFERNO

multiplicado o numero dos Icaros ou do do fundo . Alem d'isto sente-o do lado


dos temerarios, que não julgo preciso direito : dalla man destra. E porque da
glosar a sua aventura. mão direita ? Para indicar, que tinha
(44 ) Ogni veduta , fuor che della fiera. feito um movimento rotatorio, pois que
A voragem por onde descia Dante era lá em cima, d'onde Dante se moveu
completamente escura ; por isso o nosso montado na fera, tinha o sorvedouro á
aereonauta tinha perdido de vista a ro mão esquerda. Logo, si elle agora o tem
cha circumvizinha, e não via mais que á direita, isso quer dizer que gyrou em
a fera, em que montava, como quem torno do sorvedouro .
em alto mar, em noite tenebrosa, não (47) Perchè con gli occhi in giù la
vê senão o navio. testa sporgo. Pois que o ouvido lhe
(45 ) Ruota e discende, ma non me dizia, que elle se avizinhava do fundo,
n' accorgo. São estes os dous movimen era natural, que procurasse ter d'isso
tos, que se fazem no descer por escada uma prova mais certa por meio dos
de caracol: volteia- se, e se desce . Ma olhos, tanto mais quanto lhe tardava
non me ne accorgo. Mas porque não muito chegar ao fim da sua viagem
percebia Dante o seu movimento ? Por aerea tão bordada de pavores, e peri
que estava na mais profunda cavidade. gos. Por isso diz que estendeu a cabeça,
Percebemos o movimento pela con e os olhos para o fundo.
frontação, que fazem os olhos entre (48 ) Allor fu' io più timido allo scos
nós, e os objectos. Assim , quando cio. Que quer dizer este « allo scoscio ?»
n'uma barca alguem vae navegando ao Não é certamente synonymo do ruido
longo da costa , percebe que ella anda ou sussurro do sorvedouro, como in
pelo movimento da costa, que parece tendem alguns commentadores; mas é
fugirem sentido contrario . Quando cousa diversa . Assim como accoscio (aco
pois não se pode instituir esta confron corar- se ), é collocar-se bem com a sella,
tação, não se pode tambem perceber a em que está escanchado, assim scoscio
descida pela escada de caracol, senão é desmontar ; porque desmontar é des
pelo golpe de ar, que nos fere : o mo apertar as coxas ; o que é opposto a res .
vimento rotatorio fere no rosto ; o per tringil.as bem na sella. Como é bello
pendicular fere nos pés. Com estas duas este contraste ! Dante desejava desmon
impressões atmosphericas, temos um tar da fera o mais breve possivel, não
segundo criterio, para julgar em falta só pelos perigos, que corria como por
da vista. Si faltasse este criterio, que se que desmontar era chegar ao termo da
tem pelo tacto, restaria outro, que se viagem aerea ; mas quando viu que, des
tem pelo ouvido, isto é, de ouvir mais montando, cairia no meio de chammas,
ou menos os sons, e de ouvil -os ora em e de prantos, então mostrou -se mais
uma direcção , ora em outra , e d'este timido de desmontar (allo scoscio) ; por
criterio falla Dante no verso seguinte . isso se acocorou , restringindo as coxas
São pois estes os tres criterios para na sella ( si raccosciò ), porque a nature
julgar do movimento : vista , tacto , ou za, entre dous males, escolhe o menor ;
vido. isto é, entre o cair nas chammas, e o
(46) l' sentia già dalla man destra il conservar - se a cavallo nas costas do
gorgo. Como sabia Dante, que se avizi dragão, era este ultimo o menor mal.
nhava da meta, si descia no meio das Aquellas chammas, e aquelles prantos o
trevas ? Sabia - o primeiro pelo ouvido, poeta via, e ouvia confundidos. No dis
e depois pela vista dos objectos lumino criminar os objectos vae elle sempre
sos. São estes exactamente os criterios natural, e gradualmente (Bennassutti).
por que conhece se approxima do fundo. (49) E vidi poi, chè nol vedea davanti,
E se o não conheceu antes, e o sente « E vi depois o que não via antes ». Ce
agora , é que elle se tem mais avizinha sari, nas suas bellezas de Dante (Bellezi
COMMENTARIOS AO . CANTO XVII 351

di Dante), quer que se leia assim : E muito gyrar não apparecia a presa de
udi' poi, che non l'udia davanti. Mas sejada, o caçador apresentava ao falcão
Cesari se engana, quando pensa, que os um chamariz, ou um passaro fingido e
outros é que se enganam ; porquanto, a este signal descia de novo á mão do
o Poeta, chegado a este ponto, via já caçador. Algumas vezes porém o caça
que descia, o que antes não tinha visto, dor, na esperança de que a todo o mo
e via que descia por causa dos grandes mento appareceria alguma presa, não
males , que ouvia, ou se approximavam de apresentava o chamariz ao falcão, e
diversos lados. Si se admittisse a lição este cansado de não ver passarinhos,
de Cesari, e de outros, que a sustentam , de que fizesse presa , e cansado tambem
se supprimiria o verdadeiro ver dos fo de não ver o seu senhor apresentar-lhe
gos, que Dante suppõe no verso ante o chamaris, descia redomoinhando , e,
rior ( vidi fuochi, e sentii pianti ); por em vez de ír assentar-se na mão do seu
que importaria dizer, que não viu aquillo, senhor, ia irado, e contrariado, pousar
que positivamente diz ter visto. Isto é em ponto distante, não só por falta da
contradicção. Alem de que, o avizinhar presa, como por seu senhor o não
se cada vez mais ao fundo suppõe na haver rechamado em tempo ; deixan
turalmente, não ouvir, mas ver os males, do -o fatigar- se inutilmente nos ares.
e vel -os sempre mais distinctos, quanto Tal, diz Dante , foi o caso de Geryão
mais se approximavam . É pois um con com elle, e com Virgilio, como si disses
trasenso ouvir o descer, e ouvir o gyrar . se : « Geryão estava acostumado a levar
Este falar não é Dantesco ; e seria não almas prescitas ao seu senhor do Infer
menor contrasenso considerar bello, e no, e eu, e Virgilio não lhe serviamos
natural o que não é, nem uma, nem de presa : Geryão estava cansado de
outra cousa . Emfim , si Dante não vê gyrar no vacuo do sorvedouro, levando
agora estes males, diga -nos Cesari quan nos ás costas sem nenhum proveito,
do os terá visto, pois que d'elles não como por vezes succede ao falcão : Ge
fala mais ?! Dante exprime em tres ryão desagradou ao seu senhor do In
modos diversos o descer, e o Eyrar, ferno, descendo ao abysmo sem presa,
adaptando -os aos tres pontos diversos como sem presa desceu o falcão com
da descida, os quaes tres pontos são o grande desagrado de seu senhor : Ge
principio, meio, e fim ; pertence ao prin ryão , ao avizinhar -se ao fundo, fez gy
cipio o terceto : Ella se va, etc.: perten ros rapidos em prejuizo meu , e contra
cem ao meio os dous tercetos seguintes: as ordens de Virgilio , que lhe havia dito,
l ' sentia già, etc.: Allor fi io più, etc.: que descesse lentamente por minha
pertence ao fim o ultimo terceto ? E causa, imitando assim ao falcão quando
vidi poi, etc. A exactidão de Dante é rapidamente desce caracolando pelos
sempre maravilhosa ! O ponto está em ares : Geryão, apenas chegou ao fundo,
medital - o uma , e muitas vezes. fugiu para outra parte, como faz o fal
( 50) Come 'l falcon, ch'è stato assai cão, que não torna ao logar do costume,
sull' ali. Era costume antigo passarinhar e vae pousar em outra parte ». (Bennas
com o falcão. caçador avezava - o a sutti ):
tel- o na mão , e soltal- o quando espera Quem não admirará a belleza, natu
va avizinhar- se a presa. O falcão subia ralidade, e exactidão d'este simile entre
aos ares, e circumvolava. Si depois de Geryão, e o falcão ?
INTRODUCÇÃO AO CANTO XVIII

Este canto abraça as duas primeiras fossas, porque ambas encerram seductores
de mulheres á deshonestidade : a primeira encerra somente homens ; a segunda
homens, e mulheres. Os peccadores, que estão na metade da primeira fossa são os
rufiões, que seduzem mulheres com dinheiro a fazer a vontade a outrem, os quaes
caminham de face para os dous Poetas : os que estão na segunda metade são
aquelles, que seduzem mulheres por sua conta, por meio de bellas palavras, e fin
gidas promessas, e estes caminham de costas para os dous Poetas. Os rufiões, pec
cadores da primeira metade, são indicados na pessoa de Venedico Caccianimico
Bolonhez, que seduziu sua irmă Ghisola a fazer a vontade do marquez Obizzo II
d'Éste, contemporaneo do Poeta ; porque estes rufiões são infames, a sua memoria
não dura longo tempo depois da sua morte ; e por este motivo pedia a razão que
Dante não encontrasse nenhum antigo, e por este só motivo não se fala de pagãos
n'esta primeira metade da primeira fossa, não porque não sejam ahi punidos ; mas
porque a sua fama não chegou aos tempos do Poeta .
Na segunda metade da fossa encontra Jasão, pagão, e tão antigo, quanto famo
so ; porque na seducção de mulheres por propria conta os homens grandes, pode
rosos, e celebres alcançam exito mais facil do que os outros. De christãos não fala ;
mas não é necessario, porque aquillo que é prohibido aos pagãos, muito mais o é aos
christãos .
O castigo das duas categorias de seductores consiste em serem açoitados nas
nadegas pelos demonios. Seduzir mulheres com promessas fingidas é fraude mani
festa; porque se faz ás claras. Mas fraudulentos sem duvida são estes rufiões; por
que roubam um bem inestimavel ás mulheres, por dinheiro, que por muito que
seja é zero em comparação da pudicicia , que vale mais que tudo ; e não é pequeno
engano, pequena fraude offerecer dinheiro a quem d'elle precisa, e o deseja, para
prostituir a sua honra, e condemnar a sua alma . Em summa, faz -se todo o damno
ao proximo por força, ou por fraude : -estes seductores fazem grande damno ás
mulheres seduzidas, e não o fazem certamente por força ; logo fazem -no por fraude.
O que fica exposto até aqui serve tambem a demonstrar a fraude dos peccado
res da segunda fossa, os quaes seduzem com lisonjas, e adulações : são homens, que
sedu zem mulheres, e mulheres, que seduzem homens : são christãos designados na
pessoa de Aleixo Interminelli de Luca ; e pagãos designados em Thais, famosa me
retriz, ou nome commum das meretrizes, no conceito dos poetas, e escriptores23lati
354 0 INFERN
O

nos. O castigo d'estas duas classes de peccadores é serem atolados n'um tremedal
de trampa humana, materia unica apropriada á vileza de tal profissão.
Aqui surge uma duvida. No circulo dos luxuriosos estão os adulteros, incestuo
sos, e toda a especie de lascivos, e por isto se pode crer, que ao menos alguns
d'estes tenham seduzido pessoas á deshonestidade ou com dinheiro, ou com falsas
promessas, ou com adulações; por esta razão ou aquelles ou estes estão fóra de
logar, ou ha no Inferno de Dante um circulo superfluo. Responde -se, que os luxu
riosos punidos no alto Inferno são de duas especies, uns como Francisca, Paulo, e
Dido; outros como Semiramis, Cleopatra, e Achilles: o amor dos primeiros foi atea
do, não por meio de alcovitices, lisonjas, e adulações, mas ou por irresistivel, e louca
sympathia, ou por fortuita combinação, ou por mal entendida gratidão, como se diz dos
dous cunhados. O amor dos outros, todos mais ou menos similhantes a Semiramis, foi
o amor de pessoas já corroidas do vicio da lascivia, para cuja seducção não é necessa
rio nem dinheiro, nem lisonjas, nem adulações ; e por isto não ha circulo superfluo
no Inferno de Dante, nem peccadores, que estejam fóra do logar, que lhes com
pete .
Estes dous ultimos cantos, ob Bianchi, estão em geral semeados de um sal
summamente burlesco , que aliás, alem de ser muito apropriado para ridicularisar a
sordida raça dos seductores perfidos, dos aduladores vis, e dos alcoviteiros infames,
serve tambem para recrear o espirito do leitor em compensação da tristonha gravi
dade dos cantos precedentes. Verdade é que os narizes delicados se franzem a cer
tas palavras que repugnam á boa educação ; mas primeiro que tudo se deve atten
der, que o Poeta não podia de modo diverso significar o desprezo , em que devem
ser tidos aquelles indignos por elle verberados, como tambem se deve attender, que
elle não escrevia o Inferno para favonear, ou deleitar os ouvidos de gentis senhoras,
mas sim para confundir, e envergonhar os mofinos ou desgraçados d'aquelles teni
pos de ferro, que podiam ser dignos de toda outra cousa, menos porém de manei
ras urbanas, e delicadas. Deve -se finalmente attender, que nada mais natural, e con
forme, do que tractar cousas sordidas com palavras sordidas, segundo ensina o
grande mestre Quintiliano, quando diz : Omnia verba suis locis optima, etiam sordi
da dicuntur proprie . « Todas as palavras são optimas nos seus devidos logares, ainda
mesmo quando exprimem cousas propriamente sordidas». Não approvo, conclue
Bianchi, que similhantes assumptos sejam escolhidos por quem ame o pudor, e a
decencia ; mas, uma vez escolhidos, não devem ser tractados de outra forma.
Biagioli, commentando a natureza da pena imposta aos seductores, alcoviteiros, e
aduladores, diz : « É provavel, que mais de um melindroso torça o nariz, e censure
Dante por ter empregado imagens, e palavras tão immundas. Mas deveria elle, cm
consideração aos narizes d'esses melindrosos, deixar de falar nos termos proprios de
individuos tão abominaveis ou falando d'elles, deveria collocal-os n’um jardim de
delicias entre flores, e hervas ridentes ? Deveria, em attenção a esses mesmos nari
zes melindrosos, violar as leis, que prescrevem a verdadeira imitação, e que obri
gam a retratar as cousas como ellas são ? Ora vão esses taes de olphato delicado
consultar Quintiliano, e Aristoleles, que d'elles aprenderão, que um dos maiores
meritos do Poeta é respeitar sempre as circumstancias de logar, de tempo, de pes
soas, e do fim que se propõe». Aristoteles diz, por exemplo : turpia turpiter tra
ctanda.
Já vimos no canto xili que Virgilio, sem embargo da sua linguagem invariavel
mente casta , foi obrigado a dar o nome ás cousas, descrevendo ao vivo como as
malignas Harpyas, depois de vasarem do ventre a materia fedorenta sobre os opi
mos manjares dos Troyanos, os arrebataram das mesas, deixando tudo com o im
mundo contacto infeccionado.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XVIII 355

Harpyæ et magnis quatiunt clangoribus alas,


Diripiuntque apes, contactuque mniafædant
Immundo ...
( Eneid ., liv. III . )

O nosso insigne Camões, fiel as leis da conveniencia, não foi menos despreza
dor dos narizes melindrosos, na seguinte bellissima descripção :

E foi que de doença crua e feia,


A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram
Quem haverá que sem ver o creia ?
Que tão disformemente alli lhe incharam
As gengivas na bócca, que crescia
A carne, e juntamente apodrecia.
Apodrecia co’hum fetido e bruto
Cheiro, que o ar visinho inficcionava :
Não tinhamos alli medico astuto ,
Cirurgião subtil menos se achava :
Mas qualquer n'este officio pouco instructo,
Pela carne já pôdre assi cortava,
Como se fóra morta ; e bem convinha
Pois que morto ficava quem a tinha .
( Camões, V., est . 81 , e82 .)

Entre os logares citados pelo Barão de Humboldt, como modelos de proprieda


de d'expressão, figuram estas duas estancias camoneanas.
O nosso Almeida Garrett diz :
«Nas cousas mais serias acho, descubro o lado em que o sal do epigramma en
caixa a geito .»
Um poeta brazileiro, pouco ou nada conhecido, mas nem por isso menos poeta,
maxime no estylo comico, diz :

De circumlocuções eu nada sci :


O caso conto, como o caso foi:
Na minha phrase , na constante lei,
O ladrão é ladrão, o þoi é boi.

DESCRIPÇÃO DO MALEBOLGE
O oitavo circulo chamava-se Malebolge, ou fossas más, porque é dividido em
dez cavidades, ou fossas, á que o Poeta chama bolge. No meio exacto d'este circulo
ha um poço grande, e profundo, que basta por agora indicar: por esta razão o es
paço comprehendido entre o poço, e a alta borda, que circumda o Malebolge, é uma
zona circular, e esta é dividida em dez fossas circulares, e concentricas, chama
das bolge, divididas por dez diques, que surgem do fundo, e o cercam todo paral
lelamente . Da alta borda , que contorna todo Malebolge, partem sete rochedos, ou
356 O INFERNO

muros de pedras, que atravessam todas as fossas, e as suas margens até o poço, o
qual corta, e recolhe em si todos estes rochedos que, se não fossem por elle trun
cados, se ajuntariam todos no seu centro. Estes rochedos são abertos de baixo, não
em toda a sua extensão, mas somente no meio de cada uma fossa, para dar passa
gem aos peccadores, que em algumas são condemnados a gyrar em torno ; mas
estas pontes ou arcos são rotos, e jazem por terra em um montão de fragmentos
na sexta fossa, onde são punidos os hypocritas, e se despedaçaram no terramoto
acontecido na morte de Christo ; porque os hypocritas, Farisêos, Scribas, e Pon
tifices foram aquelles exactamente que condemnaram á morte o Redemptor, sob
pretexto de que prégava contra a lei de Moysés: eis a razão por que esse terramoto
se fez mais terrivel aos hypocritas, do que aos outros fraudulentos.
Digamos agora duas palavras sobre o caminho dos dous Poetas por Malebolge.
Descidos nas espaduas de Geryão ao fundo de Malebolge, movem - se á esquerda
juncto á rocha pela qual desceram , e assim andam até que encontram um dos
ditos rochedos, que partem da rocha, e vam ao centro, ou ao poço : sobem a este
rochedo, e voltam ao centro, e por consequencia voltam sobre o seu lado direito, e
sobre este mesmo rochedo descem até á quinta fossa; e d'esse rochedo, precisa
mente do ponto mais alto da ponte, sob a qual passam os peccadores, elles os obser
vam. Tendo passado a quinta fossa, ouvindo dos demonios, que o rochedo jaz
despedaçado sobre a sexta fossa, não vão mais adiante, mas voltam á esquerda sobre
a costa, que divide a quinta da sexta fossa : depois, para fugirem ao furor dos de
nionios, Virgilio com Dante nos peitos se desliza resupinado pela dita costa, e assim
descem á sexta fossa, da qual sáem depois engatinhando para cima pelas ruinas
da ponte de outro rochedo, mas da parte de lá da ponte, para o centro ; por isto
podem sobre este rochedo proseguir o seu caminho até o poço.
N'estas dez fossas são punidas dez especies de fraudulentos, dos quaes se fará
menção no argumento ou synthese de cada um canto. Aqui porém é necessario
observar uma grande differença, que ha entre os condemnados de cima, e os con
demnados de Malebolge, e debaixo d'elle . Os condemnados de Malebolge em cima
fazem- se conhecer de boa vontade a Dante; chamam-no, rogando -lhe que os ouça,
e que leve noticias d'elles ao mundo; e o Poeta compadecendo -se, tracta - os com
urbanidade, chora com elles, salvas algumas excepções. Ao contrario no fundo
de Malebolge os condemnados occultam -se ao Poeta, e se affligem de serem co
nhecidos por elle : o Poeta de seu lado porta-se com severidade para com elles ;
reprehende- os, confundindo - os com exprobrações, e vituperios, salvas tambem algu
mas excepções.
A razão d'isso é porque os peccadores punidos lá em cima, quaes são os luxu
riosos, os gulosos, os suicidas, os pederastas, os atheus, os heresiarchas, não offen.
dem com seus vicios a sociedade, antes, a despeito de taes vicios, lhe podem fazer
algum bem ; e por isto taes homens são no mundo amados, e no Inferno inspiram
certa compaixão: e sabendo que a sua memoria não é desestimada entre os vivos,
sem nenhuma repugnancia se fazem conhecer por Dante. Pelo contrario os con
demnados de Malebolge são fraudulentos, enganadores ; aquelles que estão no
fundo são traidores. Ora os fraudulentos, e os traidores são odiados pelos homens;
porque fraude, e traição offendem , e irritam a todos ; e esses, que sabem serem
odiados, e que estão certos de não encontrar compaixão, e antes causar prazer
com os seus tormentos, se escondem de Dante . Demais : fraude, e traição são
dous vicios tão malignos, que parecem tornar o homem inapto para qualquer obra
boa, e louvavel ; e dos fraudulentos, e dos traidores se pode dizer geralmente
Bontà non é che lor memoria fregi; por isto Dante os aborrece. O mesmo se dá a
respeito dos avaros.
CANTO XVIII

O oitavo circulo, chamado Malebolge, é dividido em dez grandes fossas circulares, e concentricas, em cada
uma das quaes é punida uma especie de fraudulentos .Tracta -se n'este canto das duas primeiras fossas, n'uma
d'ellas são castigados a golpes de azorrague por máos dos demonios os rufióes ; n'outra estam meltidos
n'um esterco horrivel os aduladores, e as mulheres lisonjeiras.

Ha no Inferno um logar chamado Malebolge, todo de pedra côr


de ferrugem, como a alta borda que o circumda . (1 )
No centro exacto do campo maligno, (2) abre- se um poço (3) bas
tante largo , e profundo, (4) de cuja construcção falarei em seu logar.
Aquella zona , pois, que demora entre o poço, e a raiz da alta ri
banceira petrea, é dividida em dez fossas.
Qual o aspecto, que apresenta aos olhos aquella parte do terreno,
onde, para defeza das muralhas, ha varios fossos, que circumvallam
os castellos ; tal a perspectiva, que a rocha de Malebolge apresentava.
E da mesma sorte , que das portas dos castellos procedem pontes ,
que vam até a borda externa do fossado ; assim tambem do pé da
rocha de Malebolge partiam pontes de rochedos alinhados, que atra
vessavam os diques , e as fossas até o poço central , que trunca , e
recolhe essas mesmas pontes . (5)
Foi n'este logar, que nos achámos, quando fomos sacudidos das
ancas de Geryão ; (6) e Virgilio voltou á esquerda , e eu o segui.
Emquanto eu andava, vi ao lado direito novo espectaculo com
pungente : novos tormentos, e novos verdugos, 7) de que estava cheia
a primeira fossa.
Os peccadores, que eram flagellados no fundo d'esta fossa, esta
vam nús : (8) dividiam-se em duas fileiras: os que estavam áquem da
metade da superficie do pavimento vinham de face para nós ; os que
358 O INFERNO

estavam alem da metade seguiam comnosco na mesma direcção ; (9)


mas com os pés mais ligeiros, porque eram fustigados pelos demo
nios . (10)
Tal exactamente fizeram os romanos no jubileu de 1300, que, por
causa da multidão, que atravessava a ponte de Sanct'Angelo, dispo
zeram que todos aquelles, que se dirigiam para S. Pedro, seguissem
por um lado, e que todos aquelles, que voltassem , vindo para o monte
Janiculo , seguissem pelo outro , em direcção opposta. (11)
D'áquem , e d'alem da metade do duro pavimento da fossa, ( 12)
vi demonios cornudos ( 13) com azorragues em punho, açoitando cruel
mente os peccadores pelas costas. ( 14)
Ai, com que violencia os faziam correr aos primeiros golpes ! (15
E já nenhum esperava as segundas, nem as terceiras fustigações: tal
era a rapidez com que fugia !
Emquanto eu continuava observando aquelle horrivel quadro, dei
com os olhos n'um condemnado, que não me pareceu estranho, e eu
disse logo : « Não é esta a primeira vez que o vejo » . (16)
Por isso parei, para reconhecel-o, e Virgilio parou tambem , per
mittindo que eu voltasse atraz , a fim de melhor verificar a minha sus
peita .
E aquelle flagellado julgou se subtrahir ao meu conhecimento, (17)
abaixando o rosto ; mas pouco lhe valeu isso , pois eu lhe disse : «Tu,
que abaixas os olhos para não seres conhecido, si as tuas feições não
são postiças, és certamente Venedico Caccianimico de Bolonha: mas
que delicto te condemnou a salsas tão pungentes ?» ( 18)
E elle me respondeu: ( 19) «Bem constrangido digo : fui com effeito
aquelle, que induziu a bella Ghisola (20) a fazer a vontade ao mar
quez Obizzo II d'Éste, conforme o modo diverso por que se narra
essa torpe novella . ( 21) E não sou o unico Bolonhez, que choro aqui :
tão cheia d'elles está esta fossa, que não são tantos aquelles, que entre
o Savena, e o Reno (22) saibam dizer sipa (sim) ; e si quizeres um
testemunho, recorda-te da nossa innata avareza » . ( 23)
Quando assim falava , um demonio o verberou com o azorrague,
dizendo : « Vae-te, ó rufião, que não existem aqui mulheres, que ven
dam por dinheiro a sua honestidade.» ( 24)
Eu voltei para traz , e me reuni ao meu Guia : depois de alguns
passos , chegámos a um rochedo, que saía da grande borda, que cir
cumda, e fecha todo o oitavo circulo .
Subimos com toda a facilidade aquelle rochedo, e, voltando á di
reita, nos afastámos d'aquella rocha eterna , em direcção ao poço de
Malebolge. (25)
Ao chegarmos ao meio, onde o rochedo se abre, e faz um arco,
CANTO XVIII 359

para dar passagem aos flagellados, o meu Guia me disse : « Colloca-te


agora de modo, que vejas os peccadores da outra metade d'esta fossa,
os quaes ainda não viste de face, porque seguiam na mesma direcção
que nós »). ( 26)
Do alto da velha ponte viamos a fila , que vinha para nós do outro
lado, e que era similhantemente flagellada pelo azorrague .
Sem que eu lhe perguntasse, o meu bom Mestre me disse : «Vê lá
aquella grande sombra , que vem , e que não parece que a dor lhe faça
verter uma lagrima!
« Que aspecto regio ainda ostenta ! Aquelle é Jason, ( 27) que por
traças de valor, e prudencia conquistou aos Colchos o vellocino .
« Passou pela ilha de Lemnos, depois que mulheres audazes, e crueis
trucidaram todos os seus homens . (28 )
« Lá seduziu com palavras meigas, e promessas insidiosas a joven
Hypsipyle, que pouco antes tinha enganado todas as suas companhei
ras . (29)
« Ali , abandonou - a ao desamparo, deixando-lhe no seio o fructo de
sua perfidia : tal culpa a tal martyrio o condemna ; (30) e tambem Me
dea é vingada de seducção similhante.
« Junctamente com elle são punidos os que se tornam réos da
mesma infamia ; e isto te baste saber, no que concerne ao primeiro
valle, e aos peccadores que são n'elle dilacerados. » (31 ) ·
Já eramos chegados lá, onde a crista do rochedo se cruza com o
segundo dique , e d'elle faz apoio (32) para o segundo arco.
D'aqui ouvimos gente, que geme , e se lastima na segunda fossa,
soprando com a bôcca , e ferindo -se cruelmente .
As duas paredes da fossa eram encrustadas de um bolor, prove
niente da espessa exhalação , que vem de baixo, e assás repugnante
á vista , e ao olfacto. (33)
O fundo é tão negro, que para os olhos penetral-o, é necessario
subir a curva do arco, onde o rochedo é mais alcantilado. (34)
Subimol-o, e do ponto mais alto, vi lá em baixo gente atolada
- n'um esterco , que parecia escoado das cloacas humanas !
E emquanto eu procurava com os olhos conhecer alguem, distin
gui um , que tinha a cabeça tão rebocada de excremento , que não se
distinguia, si era leigo , ou clerigo . (35)
Aquelle gritou-me : « Porque te mostras tão curioso de olhar mais
para mim , do que para os outros ? » « Porque, lhe respondi , si bem me
recordo, outr'ora te conheci de cabellos enxutos, (36) e tu és Aleixo
Interminelli de Luca ; (37) por isto olho-te com mais affinco, do que para
todos os outros )) .
Batendo na cabeça (38) excrementada , disse : « Aqui n'este asqueroso
360 O INFERNO

enxurdeiro submergiram -me as lisonjas de que minha lingua nunca se


fartou . »
Depois d'isto, o meu Guia me disse : «Applica a tua vista mais
ao longe, de geito que attinjas com os olhos aquella immunda, e des
grenhada mulher, que se dilacera com as unhas excrementadas, ora se
assentando, ora se levantando . (39)
« É a meretriz Thais, ( 40) que quando seu amante lhe perguntou:
« Tenho eu grandes meritos aos teus olhos ?» respondeu : « Sim , mara
vilhosos ! »
E aqui se dêem os nossos olhos por saciados .

i
COMMENTARIOS AO CANTO XVIII

( 1 ) Luogo è in Inferno, detto Malebol a côr ferruginosa, a profundidade das


ge, Tutto di pietra di color ferrigno, fossas, representam a dureza do coração,
Come la cerchia che d'intorno il volge . e os tenebrosos artificios dos fraudu
Malebolge forma- se de duas palavras lentos, os quaes conheceram as profun
male , e bolge: fossas más, horriveis, etc. dezas de Satanaz : Qui profunditates
Sôa o mesmo que alforges. Aqui o Poe Satanæ cognoverunt. (Apocalypse ). In
ta emprega metaphoricamente no sen dieci valli: em vez de vallo no singular,
tido de valladas, que recebem como em significando bastião, como muitos opi
sacco os peccadores punidos pela Jus nam , se deve ler valli, plural de valle ,
tiça divina . significando cavidade, e synonymo de
... color ferrigno. Pedra negra , e fossa, ou bolgia. No mesmo verso 98,
vulcanica . A côr negra inspira maior Dante chama valle á primeira fossa, e
horror. no ultimo verso do canto xix dirá : Indi
Come la cerchia ... A pedra , que cir un altro vallon mi fu scoverto. A duvida ,
cunda a fossa, era da mesma côr. Por que se poderia oppor ao verso 13, onde
ella desceram os dous Poetas. se encontra quelli, que mal concorda
(2) Nel dritto mezzo del campo mali com o feminino valli, desapparece facil
gno. No centro do campo de Malebolge mente, referindo - o antes a fossi mais
maligno, porque está cheio de almas proximo, e synonymo explicativo de
fraudulentas, e malignas. valli supra mencionados. Butti lê : in
( 3 ) Vaneggia un pozzo ... Abre- se o
vão de um grande poço profundo; de . dieci parti (Bianchi ).
( 5 ) Monvien, che ricidean gli argini
modo que as fossas circulares de Male e i fossi Infino al poz70, che i tronca, e
bolge se estendem entre a azinhaga das raccogli. Querendo dizer : Assim par
raizes da rocha , e o mesmo poço. tiam rochedos alinhados, á guisa de mu
(4) Ed ha distinto in dieci valli il fon ros, que atravessavam os fossos, e os
do. Em summa, no centro do horrendo seus diques até ao poço, que os corta, e
campo abre-se um amplo poço, do qual recolhe todos, como o cubo de uma
vão-se alargando pouco a pouco para a roda corta, e recolhe todos os raios, que
periferia dez muros, ou diques circula . da circumferencia convergem para elle ;
res, e concentricos. Entre um, e outro sendo que esses rochedos alinhados, se
demora por isso uma grande fossa, que não fossem cortados pelo poço, se reu
tem um ambito perfeitamente redondo, e niriam todos no meio do mesmo poço ,
cada uma d'essas fossas é chamada bol que é o centro do Malebolge .
gia, ou cavidade, onde é punida uma Diz - se que o poço os corta, porque
certa especie de fraudulentos. A pedra, esses rochedos amurados acabam, ter
362 O INFERNO

minam, no poço ; assim se diz que o poço ( 11 ) Hanno a passar la gente modo
os recolhe porque d'elle não passam . tolto . Por ordem de Bonifacio VIII, fi
Dante não se esquece nunca ' das suas zeram-se duas divisões ao longo da
regras physicas. ponte, para facilitar a ida, e volta do
(6 ) In questo luogo, dalla schiena scos povo ; a saber : Aquelles que iam a
si. D'isto se conhece, como ficou dito S. Pedro receber a indulgencia, tinham
no canto precedente, que os dous Poe a frente para o castello de Sanct’An.
tas não desmontaram das costas de Ge gelo, e aquelles, que voltavam, tinham
ryão , como regularmente se usa ; mas a frente para o monte Janiculo . A este
sim foram sacudidos por elle sobre a Jubileu , que se considera o primeiro,
rocha. sem que o seja, reporta o Poeta a ori
(1) Nuovi tormenti e nuovi frustatori. gem do seu Poema, que de certo é pro
Que novos fustigadores são estes, si ducto da vasta concepção, que lhe inspi
ainda até aqui não vimos outros ? Res rou aquelle magnifico, e solemne espe
ponde -se , que todos os demonios até ctaculo da Religião Catholica.
aqui encontrados por Dante, eram mais ( 12 ) ... Su per lo sasso tetro. Isto é,
ou menos verdugos, que fustigavam, e por sobre o pavimento negro da fossa,
feriam os condemnados. Estes d'aqui são quo era formado pela pedra ferrugino
chamados novos, porque de modo, não sa, e por isso negro (tetro ).
usado por nenhum dos outros, açoitam ( 13 ) Vidi dimon cornuti con gran fer
os peccadores. ze. Esses demonios, com differença dos
( 8) Nel fondo erano ignudi peccatori. outros, tinham cornos. E que significam
Algumas edições trazem i peccatori (os estes cornos ? Significam os effeitos do
peccadores); mas é erro dos copistas, vicio punido n’esta fossa. Escuso expli
em que muitos commentadores não car claramente o pensamento do Poeta.
têem advertido . O sentido indetermina Deixo á perspicacia do leitor o compre
do é mais bello, e mais conforme a hender a allusão ...
mente do Poeta, que ainda não deter ( 14 ) Che li battean crudelmente di re
minou a especie de peccadores; por tro. Acoitar alguem pelas nadegas é
isso diz : Estavam peccadores, e não os grande ignominia. E porque se dava a
peccadores. E porque estavam nús esses estes peccadores castigo tão ignominio
peccadores ? Para que sentissem mais so ? Porque não pode haver profissão
dolorosamente os golpes do latego. mais vil , nem mais ignominiosa , do que
(9 ) Dal me770- in qua ci venian verso a de alcoviteiro, instrumento funesto da
'l volto. Afigure -se a primeira fossa perdição de muitas almas ! É o caso de
como dividida em duas partes por uma repetir o proverbio : Si não houvesse
linha circular : n’aquellas duas partes linhas, não haveria costureiras.
andavam os peccadores uns em direcção ( 15 ) Ahi come facén lor levar le berze.
contraria aos outros. Aquelles, que vi Dar ás gambias é fugir, dizemos nós. É
nham de face para os dous Poetas eram este exactamente o sentido em que
os seductores de mulheres por conta aqui fala o Poeta, dizendo, que ao pri
de outrem , isto é, os alcoviteiros : aquel meiro fustigo, ou azurragada os pecca
les, que lhes voltavam as costas, e se dores deitavam a correr velozmente.
guiam na mesma direcção que elles, mas Assim tambem o interpretam Landino,
com os passos mais apressados, eram os e Benvenuto . Este ultimo apenas substi
seductores por sua propria conta ( Fra tue berza ( perna ) por calcagno (calca
ticelli ) . nhar), que vem a dar no mesmo. Voltare
( 10) Di là con noi, ma con passi mag le calcagna, mostrare il calcagno, dar as
giori. Andavam com os passos mais ve trancas, fugir. São locuções proverbiaes.
lozes porque íam sendo azorragados ( 16 ) Già di veder costui non son digiu
pelos demonios. no . O) Poeta applica aos olhos o sentido
COMMENTARIOS AO CANTO XVIII 363

do gosto. Os olhos estam em jejum, Condussi a far la voglia del Marchese,


si não vêem, como o paladar está em Come che suoni la sconcia novella. Como
jejum se não saboreia alguma comida. si dissesse : « Eu sou verdadeiramente a
Querendo por fim dizer : « Não é a pri alma de Venedico Caccianimico Bolo
meira vez que vejo este condemnado » . nhez, que induzi a bella Ghisola, minha
São bellezas mimosissimas, que se en irmā, a fazer a vontade do Marquez
contram a cada passo n'este admiravel Obizzo II d'Este , de qualquer modo que
genio . se conte a triste novella ; porque ainda
( 17 ) E quel frustato celar si credette. que alguns querem sustentar que não
E porque tentou occultar- se ? Porque tive parte n'essa nefanda alcovitice (al
era alcoviteiro, e o alcoviteiro, laia de nefando ruffianismo), todavia é certo,
gente infame, procura sempre occultar que eu a tive, e por isto estou conde
se aos olhos de quem póde descobrir-lhe mnado a estas salsas pungentes» . Creio
as traças . ser este o genuino sentido do texto.
( 18) Ma che ti mena a sì pungenti sal Alguns têem querido sophismar a tor
se ? Como si dissesse : « Que delicto peza de Venedico Caccianimico, atte
commetteste, para seres condemnado a nuando -a por diversos modos ; mas
tão crueis castigos ?» Está-se vendo que Dante, que era seu contemporaneo, e
esta pergunta do Poeta é toda malicio conhecia o facto, não podia ter mettido
sa, pois elle bem sabia a razão por que seu auctor no Inferno, se profunda não
o pobre rufião fora conduzido a logar fosse a convicção da veracidade de tão
de tão asperos supplicios. Salse ( salsas) enorme infamia, que aliás não é só refe
eram um sitio inculto, fóra da porta de rida pelo Poeta. Obizzo II d'Éste não
São Mammolo de Bolonha, onde se açoi era propriamente Marquez ; mas era
tavam os alcoviteiros, se puniam outros como tal conhecido por antonomasia.
malfeitores, e se lançavam os corpos (21 ) ... la tua chiara favella.« A tua lin
dos excommungados. O Poeta falando guagem florentina, tão clara, e mais for
no Inferno a um Bolonhez valeu-se mosa , que todos os dialectos da Italia .»
d'esta similhança ( Fraticelli). Era antipoda do deforme dialecto bolo
É de notar, accrescenta Bianchi, que nhez, de que mais abaixo se falará.
hoje em muitos logares chamam -se por ( 22 ) A dicer sipa tra Savena e 'l Reno.
ironia salse ou salsa os açoites, e casti Os Bolonhezes, para dizerem sim ou seja ,
gos de qualquer especie. Ora não é im dizem sipa ; como os Veronezes, paia
provavel, que os Bolonhezes já n'aquel affirmarem uma cousa, dizem sipo. Ve
le tempo chamassem tambem por ironia nedico indica a população pelo seu dia
o logar, onde a salsa se administrava , lecto, depois de exprimir o encanto, que
isto é, onde esses castigos se infligiam . pouco antes sentiu em ouvir a bella lin
Salsa, como todos sabemos, é um môlho guagem florentina. O Reno circumda o
picante, que se deita sobre a comida, e territorio de Bolonha ao oeste , e ao
é sem duvida do ardor, que produz norte ; Savena ao sul ( Bennassutti) .
este môlho, que o Poeta tirou a analo ( 23 ) Recati a mente il nostro avaro
gia com o ardor que o açoite produz seno. Recordate da nossa avidez de di
na pelle dos padecentes. nheiro, mediante o qual vendemos hon
( 19) Mal volentier lo dico. Bem con ra , e consciencia .
strangido porque ? Porque não somente « Bianchi, diz Bennassutti, explica esta
se prestou a uma acção tão vergonhosa, severidade , com que Dante tracta os
como porque se vê agora obrigado a Bolonhezes, pelo facto de terem-se col
declarar- se auctor verdadeiro de um ligado com os Florentinos contra Henri
facto, que no mundo andava controver que, em 1311 ; mas, com perdão de
tido . Bianchi, respondo, que o cantico do In
( 20) l' fui colui, che la Ghisola bella ferno tinha sido já publicado muito antes
364 O INFERN
O

de 1311 ; por isso não tem razão de ser ( 29) Che primal'altre avea tutte ingan
a sua advertencia .» nate. Hypsipyle, tendo - se comprometti
( 24 ) Ruffian , qui non son femmine da do com as desapiedadas companheiras
conio. Como si dissesse : « Que tens tu matar seu proprio pae Thoante, Rei da.
que tractar com este, que não é nenhu ilha, o livrou ás occultas da matança uni
ma mulher, que venda a sua honestida versal, escondendo - o no templo de Bac
de por dinheiro ? Si no mundo falavas cho , d'onde fel - o fugir ; e para que se não
com alguem, não era, senão no sentido suspeitasse o engano, fez-lhe solemnes
de alcovitices; mas aqui já não tens exequias. Que bello exemplo de amor
mulheres, que seduzir, e não se cuida , filial !
senão de açoitar nas nadegas os corru ( 30) Tal colpa a tal martirio lui con
ptores d'ellas lá na vida passada ; e por danna. Está entendido, que a culpa de
tanto, safa -te . que se fala aqui é a do lenocinio, ou das
( 25 ) Da quelle cerchie eterne ci par lisonjas perfidas, empregadas na seduc .
timmo. Os dous Poetas partiram do ca ção de mulheres por propria conta, com
minho circular, que até então tinham differença dos primeiros, que empregam
seguido, para andar em linha recta, de esses meios por conta de outrem .
ponte em ponte, da circumferencia ao Jason padece aqui duplo castigo, porque
poço de Malebolge. duplo foi o seu crime, seduzindo, e en
( 26 ) Che venia verso noi dall'altra ganando duas mulheres.
banda. Isto é, do lado contrario aos pri ( 31 ) Sapere, e di color che in sè as
meiros peccadores vistos pelos dous sanna . Assanna, quer dizer : trincar com
Poetas, porque vinham de face para os dentes, dilacerar. É usado aqui me
elles, e eram, como atraz se disse, sedu taphoricamente no sentido de apertar
ctores de mulheres por conta de outrem . atormentando .
Estes ultimos, que os dous Poetas não ( 32 ) E fa di quello ad un altr' arco
poderam ver então, porque seguiam de spalle. Fare spalle é offerecer as espa
costas para elles, são, como tambem já duas. Aqui significa servir de apoio, para
ficou dito, seductores por sua propria passar ao outro arco, que atravessa o
conta . dique terceiro.
( 27) Quegli è lason, che per cuore e ( 33 ) Che con gli occhi, e col naso fa
per senno Li Colchi del monton privati cea zuffa. Quer dizer, que o mofo en
fene. É bem conhecida a celebre fabula crustado nas paredes da fossa, em con
do Vello de ouro conquistado aos Col sequencia da exhalação tramposa, que
chos por Jason, Principe grego ; assim sobe do fundo, fazia guerra aos olhos,
como a de suas proezas de namorado, e av nariz, isto é, causava nojo, incom
de envolta com as suas inconstancias, e modo; tão asqueroso, e fedorento era !
ingratidões indignas com as suas duas ( 34) Lo fondo è cupo sì, che non ci
credulas amantes Isifile, e Medea. basta. O fundo, onde se chafurdavam no
Privati fene, em vez de ne fe: fe pri esterco os condemnados, era tão escuro,
vati, isto é , privou os Colchos do seu que, para vel-os, era necessario approxi
Vellocino. mar-se muito, e a maxima approximação,
( 28) Poi che le ardite femmine spieta que se pode fazer, é subir ao mais alto
te. É tambem não menos conhecida a da ponte. Assim fizeram os dous Poe
fabula de terem as audaciosas mulheres tas.

da ilha de Lemnos, arrebatadas de ciu ( 35) Che non parea s'era laico o cher
me, commettido a crueldade de truci co. Porque o escremento cobria-lhe tão
darem todos os seus homens sob o fun compactamente a cabeça, que não se
damento de haverem , em uma guerra , podia saber, si tinha corôa, ou si tudo
faltado á fé conjugal com as mulheres eram cabellos.
dos inimigos vencidos. ( 36) Già t'ho veduto coi capelli asciut

1
COMMENTARIOS AO CANTO XVIII 365

ti. Quanto é bello e ao mesmo tempo presente da bella escrava feito por elle
satyrico este dito ! a Thais, este lhe diz que o presente
( 37) E sei Alessio Interminei da Lucca. muito tinha agradado a ella ; e depois
Este Aleixo Interminelli, de nobre fami de haver -lhe summamente agradecido
lia Luchese, foi um jocundo cavalleiro, esta noticia, retorquiu -lhe : « Magnas
mas grandissimo adulador. vero agere Thais mihi ? » (Dizes tu que
(38 ) Ed egli allor, battendosi la zucca. Thais me rende grandes graças pelo
Ha aqui outro dardo satyrico. Zucca pro presente ?) Gnato respondeu : Ingentes
priamente significa abobora. Dante, para ( grandissimas): Thraso: « Ain tu læta est? »
ridicularisar o condemnado , diz que elle ( Dizes que ella está contente com a
bate na abobora, isto é, na cabeça . Ainda offerta ?) : Gnato : « Non tam ipso quidem
hoje quando se quer dar uma idéa da dono, quam abs te datum est .» ( Não tanto
pouca entidade de uma pessoa, diz-se pela offerta em si, como por ser dada por
por escarneo :« Aquillo é uma cabeça de ti)». Ora isto que Thraso pergunta ao ru
abobora ». Outras vezes diz-se : « Cabeça fião, e que este lhe responde : imagina
de avella » . Dante , que foi dito por Thraso á propria
(39) Ed or s' accoscia, ed ora è in pie. Thais, e que esta mesma lhe respondeu,
de stante. Porque faz ella esses movi figurando em Thais aquillo, que costu
mentos encontrados ? Porque, vendo mam fazer todas as mulheres da sua
Virgilio encaral-a fixamente, e temendo laia » ,
ser por elle reconhecida, abaixava-se o Com effeito, é este o quadro exacto das
mais que podia, para esconder-se, e er mulheres venaes, que, adulando por va
guia-se ao mesmo tempo, por causa do rios modos os incautos, conseguem subju
peso, e fedor insupportavel da trampa, gal -os ao seu perfido mando , como ver
que lhe empastava todo o corpo . dadeiros escravos !
( 40) Taida è, la puttana, che rispose. Pela propriedade da pena imposta aos
« Esta Thais, segundo o costume de suas aduladores, nota - se, que no conceito de
eguaes, diz Poggiali, sabia aproveitar-se, Dante, a adulação é o vicio mais vil do
sem todavia amal-o, das prodigalidades, mundo ; e por isso é conveniente dar-lhe
e chibanças de Thraso, joven soldado, por materia da pena a materia mais vil,
perdido de amores por ella. Para que que se conhece, que é a trampa, princi
pois se reconheça esta pela Thais te palmente a trampa humana, e principal
renciana , reproduz Dante aqui uma parte mente ainda, si ella é accumulada, e
do dialogo relativo a ella, e tirado fermentada de anno em anno dentro
do principio da scena 1.", acto II, do das cloacas, em que se vasam todos os
Eunucho .» . ventres humanos ! Tão despreziveis são
Agora, para maior esclarecimento do os peccadores punidos n'esta fossa im
texto dantesco, aqui vae o original com munda, que nem sequer lhes dá a honra
a explicação de Biagioli : Thraso, discor de terem por guarda algum demonio ,
rendo com o rufião Gnato acerca do como em todas as outras fossas !
INTRODUCÇÃO AO CANTO XIX

Na terceira fossa é punida a simonia . Tão conhecida é a origem, e effeitos d'este


abominavel peccado, que não julgo necessario descrevel - o largamente. O seu sim
ples enunciado basta para excitar sentimentos de horror contra todo aquelle, que
se presta ao hediondo trafico das cousas sagradas, e espirituaes.
O peccado da simonia é só proprio de christãos ; por isto n'este canto não se cogita
de pagãos. Dante aqui argue asperamente d'este vicio sordido tres Papas : Nico
lau IlI dos Orsinis, que havia morrido , ha vinte annos, Bonifacio VIII, que regia a
Egreja universal em 1300, Clemente V, nascido na Gascunha, Francez de nação, e
eleito Papa cm 1305, acerca dos quaes falarei com franqueza, não approvando tudo
quanto fizeram como chefes temporaes, nem acreditando tudo quanto lhes attribue o
Poeta . Não deixo entretanto de louvar n'este o respeito que vota á dignidade , e aucto
ridade pontifical, mesmo no Inferno. Catholico sincero, e convicto, Dante não con
funde o individuo com o seu officio . O homem vestido do grande manto pode não
ser bom ; mas o Papa é sempre veneravel aos seus olhos.
Considerando assim o facto sob o aspecto geral, cumpre todavia dizer alguma
cousa em particular, começando por Bonifacio VIII, flagellado pelo Poeta nos tres
canticos do Poema! Bonifacio VIII foi indubitavelmente um grande Papa, direi até
que, humanamente falando, parece ter sido o homem destinado pela Providencia
para reger a Egreja n’aquelle periodo tempestuoso ! Luctou contra muitos e atrozes
inimigos. De todos defendeu -se com fortaleza de leão , combatendo - os com armas
corporaes e espirituaes. Arcou com os Gibellinos, com os Colonnas, poderosissima
familia romana, que então, por desventura de Bonifacio, tinha dous Cardeaes! Me
diu suas forças com aquelles mesmos Principes, que chamou em seu soccorro, e def
feza, os quaes, consultando mais suas ambições politicas, do que os enteresses da
Egreja, e do Papa , acabaram por voltar contra elle suas armas !
Mas os inimigos mais terriveis de Bonifacio foram os chamados zelantes, e os fra
dinhos (fraticelli), que haviam sido os predilectos do Papa Celestino V, que nada
lhes recusára entregando -lhes effectivamente o governo das cousas temporaes, e
espirituaes da Egreja. A estes pois desagradou grandemente a renuncia de Celestino,
e tractaram de levantar duvidas á sua validade, sob pretexto de ter sido enganado,
amedrontado, e violentado por Bonifacio , para lhe ceder o logar, allegando ser Bo
nifacio um intruso, um usurpador do pontificado, e não Papa legitimamente eleito.
A audacia emfim subiu tão de ponto que, de accordo com os Colonnas, pronuncia
ram em acto solemne a sua deposição !
Ora, si se reflecte que os insurgentes eram homens, que passavam por sanctos
na estima do vulgo, principalmente porque eram as pupillas dos olhos de Celestino,
368 O INFERNO

tido, e havido com todo o fundamento como varão de sanctidade, comprehender


se -ha facilmente que numeroso partido não deveriam elles formar contra Bonifacio !
N'esse meio tempo Celestino foge da prisão, em que o tinha meitido Bonifacio, para
subtrahil-o ás suggestões de seus partidarios, os quaes, si com effeito o houvessem as
mãos, o teriam persuadido sem duvida a reassumir o pontificado, e d'ahi que peri
goso scisma não surgiria, não só na Italia, senão tambem em todo o Orbe Catholico ?
Si pois Bonifacio fulminou sem piedade os zelantes de Celestino ; si rechassou com
vigor os Colonnas, que os auxiliavam poderosamente ; si conservou em custodia
Celestino pela razão referida; devemos declarar sem rebuço que, si não o louvâ
mos no seu rigor, não podemos deixar de o admirar na sua energia ! Si Bonifacio,
no combater tantos, e taes inimigos, houvesse empregado sempre a prudencia da
serpente, e a simplicidade da pomba; ou si alguma vez sacrificasse a simplicidade
da pomba á astucia da serpente , não é facil decidir ! Ninguem , de são criterio, po
derá pretender que todos os Papas sejam sanctos ; assim como ninguem poderá
crer que Bonifacio fosse máo como o descreve o Poeta, que aliás foi seu inimi
go, mas inimigo diverso dos outros. Não se uniu aquelles que empunhavam armas
contra elle; porque Dante não era faccioso, nem revolucionario, nem desconheceu
nunca a dignidade, e auctoridade papal de Bonifacio ; visto como sabia perfeita
mente que a renuncia de Celestino, embora elle a censurasse, válida era, como le
gitima a eleição de Bonifacio, a qual não irritou o Poeta, senão porque viu alteada
a summo gráo a influencia do chefe do partido, que lhe era adverso, e perseguidor.
E tanto não duvidava da legitimidade de sua auctoridade papal, que no canto 11 do
Purgatorio reconhece por bocca de Casella o valor da indulgencia applicavel pelas
almas dos defunctos, concedida por Bonifacio no famoso Jubileu de 1300.
Ora bem, do que precede resulta evidentemente que Dante não contestava a
auctoridade papal de Bonifacio VIII, nem por conseguinte a validade da sua eleição;
considerava somente que fora pouco regular pela pressão que exerceu sobre Celestino,
para lhe arrancar a renuncia. Infelizmente essa accusação assentava em fundamentos
de verdade. Não era Dante que o inventava, era a historia que lh’o dizia. Com effeito,
Ptolemeo, bispo de Luca, testemunha ocular de tudo o que se passou na occasião
da renuncia de Celestino, e superior a toda a suspeição de parcialidade, assim se
exprime nos seus Annales, pag. 218 : Eodem tempore Cælestinus cum tota Curia
vadit Neapolim , ibique Dominus Benedictus, cum aliquibus Cardinalibus Cælestino
persuadent ut officio cedat, quia propter suam simplicitatem , licet sanctus vir et vita
magni foret exempli, deceptus sæpius adversis confundebatur, Ecclesiæ in gratiisfa
ciendis, et circa regimen orbis. Ad tantam igitur instantiam eorum Cardinalium,
dictus Cælestinus Papatui cedit, et sua resignatio acceptatur. Tum ad electionem pro
cedunt, et Dominum Benedictum eligunt, vocatusque Bonifacius Octavus, et hoc totum
in Neapolim est factum et præsente Rege.
Em face d'este irrefragavel testemunho não é licito duvidar, nem sophismar que
Bonifacio exerceu com outros Cardeaes toda a pressão tantam igitur instantiam
sobre o animo de Celestino, assim como não é licito duvidar, nem sophismar que
este renunciou a tiara ; e não podendo istoser contestado nofôroexterno,tambem
o não poderia ser a validade da eleição de Bonifacio, feita, na forma canonica, pelo
sacro collegio. Os proprios Colonnas a reconheceram como válida,e só levantaram
a lebre da nullidade,depois que Bonifacio mandou fazer processo contra elles, por
occasião de haver Estevão Colonna depredado o thesouro do Papa.Então os dous
Cardeaes Colonnas Thiago,e Pedro publicaram contra Bonifacio um libello famoso,
quediffundiram por todas as partes domundo, affirmando não ser elle Papa,
mas Celestino.Bonifaciuscontra Colunnenses processum facit, occasione Stephanide
Colunna,qui thesaurum Papæfuerat deprædalus.Prædictiverò Cardinales,videlicet,
INTRODUCÇÃO AO CANTO XIX 369

Dominus Jacobus et Dominus Petrus de Colunna contra dictum Bonifacium famosum


libellum scripserunt, quem direxerunt per omnes partes mundi... asserentes ipsum
non esse Papam , sed solum Cælestinum , (idem , pag. 222 ).
Si Dante no seu Poema sacro, em que poz mão Céo, e Terra, como elle mesmo
diz, julgou licito dizer verdades duras, não é licito crer que tivesse jamais sacrificado
á paixão ruim o fructo custoso de suas vigilias de tantos annos, nem tão pouco des
honrado com injustiças atrozes a memoria da mulher de sua innocua predilecção, da
virtuosa Beatriz, cujo nome devia eternisar. Dante pois, qual moralista christão,
acreditou poder fulminar as culpas dos grandes do seu seculo, sem commetter pec
cado ; antes acreditou, que d'essa posição que assumira contra os poderosos, re
sultaria gloria ao seu Poema, como em um dos cantos do Paraiso faz saber por
estas palavras, que lhe dirigíra seu avô Cacciaguida :
Questo tuo grido farà come il vento,
Chè le più alte cime più percuote ;
E ciò non fa d'onor poco argomento.

« Este teu brado ( o teu Poema) deve ser similhante ao vento, que açoita as mais
altas summidades : assim pois deves bradar forte contra os grandes do mundo, e
isso não será para ti motivo de pequena gloria. »
Dou de barato que o Poeta fosse culpado; que a sua intenção fosse má ; mas
nem por isso é culpado o seu Poema, nem má a sua doutrina. Entre todas as vir
tudes christās, a mais preciosa é sem duvida a caridade, sem a qual seriam inuteis
a fé, e a esperança . De centenas de textos do Novo Testamento resulta , que quem
ama christāmente o proximo é observador de toda a lei divina. Ora a caridade não
nos permitte divulgar os vicios do nosso proximo, si são occultos, e muito menos
que o odiemos, antes manda que d'elle nos compadeçamos, e que procuremos por
todos os modos chamal-o a bom caminho. Não destoa porém d'estes ensinos o bra
dar contra esses vicios, si se tornam publicos, obstinados, e affrontosos, mormente,
si esses vicios negrejam na pessoa dos grandes do mundo, pelo maior damno, e es
candalo, que d'elles provém á sociedade. Por esta razão o Redemptor, Mestre, e
exemplo supremo da caridade , fulminou nas assembléas, e synagogas com a sua
palavra augusta os erros, e vicios dos Pontifices, dos Anciãos, dos Scribas, dos Pha
riseus, dos Saduceos, dos Reis, dos ricos, e dos nobres. Dante, fazendo de Christo o
seu modelo, imitou-o no seu Poema. Christo estigmatisando as devassidões dos
grandes, para com os pequenos teve sempre palavras de amor, e de perdão. No seu
Inferno não nos mostra senão altos personagens, os grandes viciosos, contra os
quaes fala sem rebuço, porque seus vicios eram patentes. Exactamente assim fez
Christo, Senhor nosso. Conhecidas a todos os Hebreus eram a soberba, a ambição,
a hypocrisia, a avareza, e outros vicios dos Pontifices, dos Scribas, e Phariseus, como
eram conhecidas as sensualidades, e tyrannias dos Herodes ; por conseguinte Christo
bradando contra vicios sabidos, e notorios não os revelou. Assim tambem , sendo
publicos os vicios, que Dante exprobrava aos grandes do seu tempo, bradando con
tra elles, não cria deshonral-os ; porque no juizo, e conceito da opinião publica
eram já deshonrados.
Para corrigir os pequenos, e fazel -os entrar no caminho do bom viver, ha muitos
meios, como as ameaças dos superiores, a punição legal, a admoestação fraterna, e
outros modos moraes coercitivos. Mas para corrigir os grandes, que meios ha ? As
leis são tambem feitas para elles ; mas quem os accusará de havel- as infringido ? E
si alguem os accusasse, que tribunal receberia a accusação ? E se a recebesse, que
juiz os condemnaria ? Os Baptistas, que reprehendem os Herodes, os Ambrosios,
24
370 O INFERNO

que reprehendem os Theodosios, os Chrysostomos, que reprehendem as Eudo


xias, são mui raros, e não raro tambem pagam com a vida, ou com o exilio a liber
dade de que usaram na reprovação, e exprobração dos vicios, e dos crimes. O unico
meio pois de os corregir, e refrear é bradar contra elles ; é entregal - os ao veredi
ctum da opinião publica, cujo tribunal severo não se deixa subornar.
A posição franca de Christo em presença dos grandes viciosos da Judéa animou
Dante a affrontar -se com os grandes viciosos do seu tempo, com a notavel singu
laridade, que o divino Redemptor, e Dante, flagellando com a palavra os magistra
dos supremos civis, e ecclesiasticos, respeitam, e fazem respeitar a sua auctoridade.
Christo, com relação aos Principes da Synagoga, ou aos summos Pontifices, diz :
Super cathedram Moysis sederunt Scribæ et Pharisæi. Omnia ergo quæcumque
dixerint vobis, servate et facite: secundum opera vero eorum nolite facere. Foi isto o
que fez Dante : si censurou com acrimonia os desvios de alguns Papas, como ho
mens, não deixou de respeital-os, e fazel -os respeitar como successores de S. Pedro,
como Mestres supremos da lei, como guias unicos, e infalliveis da salvação do povo
de Deus, dizendo :
Avete il Vecchio e il Nuovo Testamento,
E il Pastor della Chiesa che vi guida :
Questo vi besti a vostro salvamento.

Que mais se pode exigir da fé do Poeta ? Porque censurou fortemente alguns


Papas, como chefes temporaes da Egreja, deverá ser posto no catalogo dos here
ges, ou impios, como querem alguns commentadores, mais invejosos da gloria do
Poeta, do que zelosos da gloria da Egreja ? Que disse Dante, por exemplo, de Bo
nifacio VIII, que outros auctores catholicos o não dissessem ? Não será catholico
Jacopone de Todi? E quereis saber quem é este Jacopone ? É nada menos, que
o auctor do celebre, e tocante hymno Stabat Mater, tão apreciado por toda a chris
tandade ! E quereis saber ainda de outra cousa , muito mais importante ? A Egreja
no seu alto criterio, discriminando o censor de Bonifacio VIII do catholico fervo
roso, e adornado de virtudes heroicas, honrou - o com a aureola de Bemaventu
rado ! E si a Egreja absolveu Jacopone das asperas censuras aos actos temporaes
do Papa, porque não havia de absolver Dante ? Si na sua prudencia, e severidade
no julgar as acções dos homens virtuosos, não cingiu Dante da corôa dos Bemaven
turados, de que aliás nunca se tractou, não tem deixado de o considerar como filho
benemerito, como defensor estrenuo das altas prerogativas do augusto successor de
S. Pedro, e de todas as verdades catholicas. Em todo o curso d'este trabalho tenho
demonstrado, e continuarei a demonstrar incontrastavelmente, a exactidão d'estas
asserções, fundado nas proprias palavras do Poeta, e dos seus mais sisudos com
mentadores. O erudito, e virtuoso Padre Bennassutti, falando do Papa Bonifacio VIII,
exprime-se n'este termos : «Bonifacio VIII foi um grande Papa, de alto saber, e fir
meza ; mas teve a infelicidade 1.", de succeder a um Pontifice Sancto ; 2.°, de não
conseguir pacificar Florença ; 3.", de chamar á Italia, como medianeiro, Carlos de
Valois, o menos proprio de todos ; 4.", de ser Papa no momento da crise, que se
resolveu pelo exilio de Dante, não só não o favorecendo, mas pelo contrario carre
gando com todas as suspeitas de ter partido d'elle o infortunio do Poeta. Si a tudo
isto se ajuntar o desgraçado incidente da renuncia do Papa Celestino, promovida
em grande parte pelas instancias de Bonifacio , e em seguida o outro incidente da
sua ani
prisão de Celestino ; si se ajuntar ainda o caracter severo de Bonifacio ,
madversão aos Imperadores da Allemanha, etc.; por certo que ninguem deixará de,
mais ou menos, justificar as explosões de despeito de Dante, que aliás resalvou sem
pre a dignidade pontifical de Bonifacio ».
INTRODUCÇÃO AO CANTO XIX 371

Outros muitos juizos de commentadores, e historiadores catholicos poderia cu


aqui reproduzir com todas as suas variantes ; mas limito -me a dizer, que tudo
quanto se tem escripto sobre Bonifacio VIII, a obra de mais alta indagação é a do his
toriador benedictino Luiz Tosti, cuja erudição logrou alumiar muitos pontos ob
scuros, dirimir muitas difficuldades, e restabelecer muitos factos controvertidos da
vida do grande Pontifice. Si não conseguiu apresentar seu vulto magestoso com a
aureola de sancto, como homem, conseguiu, pelo menos, apresental- o desaggravado
do peso de tantas maculas, quc o odio de seus inimigos nacionaes, e estrangeiros
havia lançado sobre a sua memoria como Papa. Luiz Tosti descreve em largos
traços o papel preponderante, que Bonifacio exerceu sobre os destinos da Egreja,
e da Sé Apostolica.
Mas, em conclusão, direi que no juizo critico dos actos dos Papas da edade me
dia devem actuar profundamente as considerações, que suggere a indole aspera
d'aquella época memoravel, de cujas tendencias voluntariosas não podiam os Papas
deixar de participar, nem de contrabalançar pelo vigor da reacção os impetos da
acção aggressora . O homem é por lei physiologica a encarnação viva do seu tempo ;
é espelho em que reflectem menos os defeitos proprios, do que os das circumstan
cias, que moldam o seu caracter. Talis populus, qualis sacerdos. É oraculo, que não
mente, porque é divino .
Outro Papa mettido por Dante no seu Inferno, entre os simoniacos, é Nico
lao III, da nobilissima familia Orsini de Roma. Portinelli, falando d'este Papa, diz :
« Foi generoso, de consummada prudencia, de vida exemplar, grande amador , e
favorecedor das pessoas doutas ; justo na distribuição das dignidades, e das honras;
mas amou de tal modo seus parentes, que não escolheu meios para os enriquecer.
Entre outras cousas , tentou fazer Reis dous sobrinhos seus, um da Toscana, que
pozesse cobro aos francezes, que dominavam a Sicilia, e o reino de Napoles; e
outro da Lombardia, que refreasse os allemães, que occupavam uma parte dos
Alpes ».
Cesar Balbo, na Vida de Dante escreve : « Um dos Papas, que descaíram do alto
nivel de Gregorio VII, de Alexandre III, e de Innocencio III, foi Nicolao III, que
reinou durante a adolescencia de Dante Alighieri, desde 1277 a 1288. Era da casa
Orsini, uma das mais poderosas de Roma, e favoreceu os parentes com tal excesso,
que se poderia dizer o inventor d'aquelle vicio do nepotismo, que durou seculos, e
que foi sanctamente abolido em nossos dias, por um tal Papa ( Pio IX) que de certo
avultará grande aos olhos dos vindouros !
« No demais, Nicolao III , no seu breve reinado, deu provas de animo alto, e vir
tuoso; restaurando o poder papal na Romanha, por meio de negociações com o
Imperador Rodolpho ; e em Roma privou da dignidade de Senador a Carlos de
Anjou, que sob esse titulo tyrannisava na cidade eterna, como nas outras partes» .
De tudo isto collige - se, que o nepotismo de Nicolau foi o grande delicto, que
provocou as exprobrações de Dante contra elle ; porque o Poeta considerava essa
practica de excessiva parcialidade como cousa indigna do chefe supremo da Egreja,
em cujos actos não devem influir as razões do sangue, e da carne, mas as do amor,
da justiça, e da abnegação ; mormente, si na distribuição dos favores, são atropel
ladas as condições do decoro, devido ás cousas espirituaes, que não devem ser
dadas, senão aos mais dignos, e sempre no enteresse, não dos individuos, mas da
Egreja. Certo é porém que alguns historiadores dizem , que nem todos os protegi
dos immediatos do Papa eram seus parentes ; que havia tambem muitos estra
nhos, que por seu prestimo, e valor eram chamados a cooperar na defeza do poder
temporal da Sé .
Como quer que seja, o facto de pretender Nicolao elevar á categoria de Reis a
372 O INFERNO

dous sobrinhos seus coincide com a imputação de nepotismo, que se lhe faz.En
tretanto, si outros fossem os escolhidos, e a inauguração vingasse, seria talvez isso
de alta conveniencia politica ; porque , por um lado poria freio á influencia estran
geira, e, por outro lado seria esse o meio de extinguir mais depressa as discordias
municipaes internas, e externas. Quanto porém á supposta cumplicidade de Nico
lao III com Prócida, para fazer insurgir a Sicilia, e acabar pelas Vesperas Sicilia
nas, declaro, que rejeito, tal increpação, firmado até no testemunho de escriptores des
favoraveis ao Papado. De tanta atrocidade era incapaz Nicolao III, por maiores que
fossem suas ambições, e por menos escrupulosos, que fossem os meios de leval-as
ao cabo. Nem Dante vibrou tão alto o seu dardo satyrico ; porquanto, dizer elle que
o fogo das muitas riquezas tornou Nicolao III inimigo ardente de Carlos de Anjou,
e a sêde de opulentar seus parentes o fez traficar com as cousas sagradas, não é o
mesmo que dizer, que o Papa cooperasse para o sangrento morticinio das Ves
peras Sicilianas. Dante pode ser arguido de apaixonado, mas não de calumniador.
O terceiro Papa tambem mettido entre os simoniacos no Inferno é Clemente V.
Para tornar bem claro o motivo da condemnação, que o Poeta inflige a este Papa,
reproduzirei ainda aqui as auctorisadas asseverações de Cesar Balbo, que assim
prosegue : « É sabido, que, morto Benedicto XI, em 22 de julho de 1301 , reuniu
se o conclave, e taes cabalas, e intrigas se deram, que só se effectuou a eleição um
anno depois, 25 de julho de 1305. Foi uma das eleições mais escandalosas, que até
então tinha havido. Os Cardeaes dividiram -se em dous partidos, de um dos quaes
eram chefes um Orsini, e Francisco Caetano sobrinho de Bonifacio VIII, que, fieis
á memoria d'este, queriam um Papa italiano. Chefes do outro partido eram Nicolao
de Prato, e Napoleão Orsini, ambos partidarios da França. Convieram por fim , que
os primeiros propozessem tres Bispos, e os ultimos escolhessem entre os tres um .
A proposta foi naturalmente de tres Bispos francezes, creaturas de Bonifacio, e ini
migos até então de Filippe o Bello. Este, por via dos Cardeaes seus partidarios,
soube logo os nomes dos propostos ; e sem demora fez chamar um dos ditos pro
postos, de nome Bertrand de Sout, Arcebispo de Bordeos, a quem persuadiu, que
o podia nomear Papa, si elle, sob juramento, lhe promettesse que, uma vez eleito,
lhe faria as seguintes concessões : 1.", absolvel-o dos desacatos, que practicára con
tra Bonifacio VIII ; 2.", condemnar a memoria d'este ; 3.°, restituir ao sacro collegio
os dous Cardeaes Colonnas ; 4.°, fazer outros Cardeaes por elle propostos ; 5. , ce
der-lhe, por cinco annos, os dizimos do clero francez; e peior, que tudo isso, fez-lhe
uma sexta proposta, que manifestaria depois.
«Bertrand jurou tudo, e foi eleito Papa, sob o nome de Clemente V. Cingindo a
tiara , nunca poz os pés em Roma, nem na Italia, que elle abominava não só
por causa dos partidos, como porque todos elles lhe eram adversos, e não podia
julgar- se seguro, senão em França. Lá pois permaneceu, creando em seguida aCar
ca
deaes francezes, que elegessem Papas francezes: residindo lá por conseguinte
deira de S. Pedro, por espaço de 70 annos. Qual fosse a quebra da auctoridade, e
do prestigio, que com isso soffresse o Papado, não só como chefe do poder tempo
ral, mas como supremo gerarcha da Egreja, foi reconhecido por muitos no passado,
mas não talvez bastante nos tempos modernos. Aos contemporaneos de então de
vemos recorrer, para melhor conhecermos a indignação dos bons, e o triumpho
dos máos, occasionados por aquella desastrada, anti-natural, e perigosa trasladação
da Sé Apostolica para Avinhão, chamado por todos o captiveiro de Babylonia! Por
isso não foi a Roma, como mal interpretam alguns, mas sim a Avinhão, que Dante,
e Petrarca chamaram Babylonia. Essa infausta trasladação foi o acontecimento,
que por dous seculos fez desmedrar a grande obra de Gregorio VII, e seus imme
diatos successores ; trasladação fatal, que, avezando os povos a ver, e os Principes
INTRODUCÇÃO AO CANTO XIX 373

a desejar o Papa fóra de Roma, produziu depois o longo, e grande scisma do Occi
dente, que teve origem nas disputas, e divisões dos concilios de Pisa, e de Con
stança, como tambem essas divisões, e disputas foram origens das heresias dos secu
los xv, e xvi, sobretudo da pretendida reforma lutherana, que ainda hoje dura, e
separa tão preciosos membros do mystico corpo da Egreja de Deus.
« Por todas estas melancholicas razões, não só desculparemos Dante, mas até (si
nos é concedido estribarmo -nos no testemunho de historiadores da nossa Egreja ).
o louvaremos de ter-se pronunciado com tanta energia contra Clemente V, e seu
successor francez, primeiros motores de tantos damnos. E si reflectirmos, que os
vituperios, que lança sobre os dous predecessores d'aquelles Papas, não foram escri
ptos, senão depois d'aquellas desastrada trasladação, justo motivo da ira do Poeta,
ainda mais o louvaremós, sem approvarmos, todavia, que a estendesse a outros, em
bora em parte merecedores d'ella .
...« A culpa de Dante não foi o mal, que disse de Bonifacio VIII, de Clemente V
e de João XXII ; foi sim o bem, que deixou de dizer de Benedicto XI, seu egregio
contemporaneo, e principalmente de todos os predecessores de todos estes, como
seria de justiça. E por isso vemos, que mais que nunca os inimigos da Egreja jul
gam-se com bom direito de louvar-se na ira dantesca, que, censuravel, ou não, nas
expressões, prorompeu a tempo contra taes Papas, que tamanho damno causaram
á Sancta Sé ; sendo certo , que a ira do Poeta não era, senão explosão de grande
zêlo para com os direitos da mesma. Generalisal-a, ou estendel- a a outros Papas,
que, na sustentação d'esses direitos, não têem duvidado affrontar o martyrio, é in
justiça tal, ou tal má fé, que não merece resposta .»
Eis, em resumo, a valiosissima opinião de Cesar Balbo, insuspeito em todos os
sentidos ! Nenhum ecclesiastico ainda defendeu com maior vigor a independencia
temporal do Papa, nem justificou mais brilhantemente o catholicismo de Dante ! Só
n'um ponto sou obrigado a rectificar a opinião do sabio biographo, que é quando
elle diz, que Dante só fez mal em não dizer bem do beato Benedicto XI, quando é
certo, que de nenhum Papa fez elle elogio mais completo, do que de Benedicto XI,
ao ponto de muitos commentadores verem n'elle o Veltro allegorico !
Não é só n’este canto, que Alighieri fala de Clemente V. D'elle fala tambem no
canto xxi do Purgatorio, exprobrando-lhe a sua estreita alliança com Filippe o
Bello ; torna depois a falar no canto xvii do Paraiso, onde o nomeia traidor do
alto Henrique VII ; fala finalmente ainda no canto xxvir do mesmo Paraiso , a pri
meira vez quando S. Pedro, indicando os males da Egreja, diz :
Del sangue nostro Caorsini e Guaschi
S'apparechian di bere ...

Esta, permanente má vontade de Dante contra Clemente procedeu da parciali


dade d'este em favor da França, e de Filippe o Bello. Com effeito, si Clemente não
se tivesse prestado a subscrever, e executar as odiosas condições (1 ) impostas por
Filippe o Bello, acrescendo a do extermịnio dos Templarios, que occultou na
occasião, Dante não teria vibrado contra elle tão acerados epigrammas. O facto so
bretudo, que mais exacerbou a sua Nemesis foi a trasladação da cadeira de S. Pedro
para Avinhão ! Alguns notam de contradictorio o Poeta , por ter elogiado em tempo
anterior Clemente V. Não vejo n'isso contradicção alguma. Elogiou-o quando estava
( 1 ) Recentemente vam sendo publicados documentos historicos, extrahidos dos archivos do Vaticano, em
que diversos factos, referentes ao Papa Clemente V , lêem sido esclarecidos favoravelmente á sua memoria.
Mas isto não obsta a que eu reproduza os factos , como eram conhecidos na edade media , e ainda nos tempos
hodirenos ; pois Cesar Balbo é nosso contemporaneo, e notavel catholico apostolico romano .
374 O INFERN
O

de boa fé sobre a pureza de suas intenções ; censurou - o, quando os factos o con


venceram do contrario . Dante procedeu como todos nós procedemos, quando nos
achâmos desilludidos a respeito de individuos, que reputavamos bons, mas que o
não eram . Então o censural-os, depois do desengano, não é contradicção, é cohe
rencia.
Em summa, quaesquer que fossem os limites, que Dante traçasse á liberdade da
censura não podiam ser mais latos, de que os traçados por Sancto Agostinho, no
seu Tractado da Doutrina Christā, onde estabeleceu o seguinte principio : Si do dizer
a verdade póde nascer o escandalo, é melhor deixal-o nascer, do que deixar de
dizer a verdade (p . xxii, S 5.9) .
E quanto á regra , que me impuz, na explicação dos factos historicos allegados
por Dante na Divina Comedia, julguei não dever seguir outra, senão aquella que
fosse analoga ao modo por que o Poeta entendeu a historia do seu tempo, sem em
bargo das oppostas investigações posteriores, por maior influencia, que estas possam
ter no meu espirito. Eu sou simplesmente interprete de Dante, e não juiz das suas
opiniões. Em todo o caso, fiz por seguir á risca a norma, que Leão XIII prescre
veu aos Cardeaes, quando os encarregou da reorganisação dos archivos do Vati
cano , dizendo -lhes: « Cumpre, antes de tudo, que os escriptores se compenetrem
bem do espirito da lei primaria da historia, que consiste em nada dizer que seja
falso, e em nada occultar, que seja verdadeiro ; a fim de que não pareçam suspei
tos nem de parcialidade favoravel, nem de odio. Enitendum magnopere, omnia
ementita et falsa, adeundis rerum fontibus, refutentur; et illud in primis scribentium
observetur animo: primam esse historiæ legem ne quid falsi dicere audeat, deinde
ne quid veri non audeat; ne qua suspicio gratiæ sit in scribendo, ne qua simultatis.
(Epist. ad Card., p. 28). Estas palavras pintam ao vivo o homem superior, que
Deus collocou á frente do governo da sua Egreja n'estes tempos calamitosos ! Tão
profunda é convicção do Sancto Pontifice de que a verdade historica não pode
redundar, senão em honra, e gloria da Egreja, e que esta por conseguinte não tem
precisão de sophismas, e embustes.

1
CANTO XIX

Na terceira fossa, sobre cuja ponte se acham agora os dous Poetas, são punidos os simoniacos infincados de
cabeça para baixo dentro de buracos, ou pocinhos, tendo as pernas para cima, e as plantas dos pés envol
tas em chammas : Vendo Dante que um dos condemnados perneava mais fortemente, que os outros, deseja
falar- lhe : Virgilio o leva até o fundo do abysmo : Verifica ser Nicolao III, da familia Orsini : Exprobra-o
asperamente do seu peccado : Depois torna Virgilio com o Discipulo pela mesma encosta por onde tinha
descido .

Ó Simão Mago ! Ó miseros sequazes seus ! (1) Vós, que devorados


da cubiça de ouro , e prata, adulteraes as cousas de Deus, (2) que de
vem ser esposas de bondade, (3) agora , que vos encontro n’esta ter
ceira fossa , (4) é bem que ouçaes os sons severos da minha trombeta !
Eramos com effeito chegados á terceira fossa, e subido aquella
parte do rochedo, que exactamente lhe fica perpendicular. (5 )
Ó Summa Sapiencia, que admiravel não é o magisterio, (6) que
exerces no Céo, (7) na Terra , e no Inferno , e quam recta (8) a tua jus
tiça na distribuição do premio, e do castigo !
Eu vi a pedra livida crivada , tanto nas costas como no fundo, (9)
de buracos da mesma largura, e todos redondos.
Não me pareciam nem menos amplos , nem maiores , (10) do que
aquelles , que no meu bello S. João de Florença foram feitos em torno
do baptisterio, dentro dos quaes os sacerdotes immergiam as crean
ças ; um dos quaes buracos, não ha muitos annos, eu rompi para sal
var um menino , que se afogava. (11) E sirva isto de testemunho, que
desengane a todos, de que o não fiz em desprezo á religião. (12)
Saíam fóra da bocca de cada uma d'aquellas cavernas os pés,
e as pernas de um peccador, até á polpa, ficando dentro o resto do
corpo . (13)
376 O INFERNO

Ambas as plantas dos pés de todos ardiam em chammas ; por isso


as juntas se lhes agitavam com tanta violencia , que romperiam qual
quer liame de vergonteas retorcidas, e entrelaçadas .
Qual costuma a labareda correr ao longo dos objectos untados, (14)
assim corria ella desde os calcanhares até a ponta dos dedos.
Perguntei a Virgilio : « Mestre, quem é aquelle, que pena convul
sando-se mais fortemente, que os seus companheiros, e a quem uma
labareda mais ardente suga ? » ( 15 )
Respondeu : « Si queres que por aquella encosta de pendor mais
suave eu te leve lá em baixo, ( 16 ) d'elle saberás quem seja , e quaes os
seus peccados».
E eu lhes disse : «Tudo o que te apraz me convem ; ( 17) tu és meu
Senhor, sabes que não me separo do teu querer, e sabes até o que
não te digo ».
Então deixámos o rochedo, e fomos andando pela encosta, que
divide a terceira da quarta fossa : voltámos, e descemos á esquerda
até o fundo ( 18) esburacado , e estreito .
O meu bom Mestre, levando-me na ilharga , não me depoz, em
quanto não chegámos ao buraco, onde estava aquelle peccador, que
no pernear convulsivo dava signal de grande padecimento. (19 )
Eu prorompi : « 0 alma infeliz, quem quer que sejas, (20) que tens,,
como estaca , ( 21 ) a cabeça infincada para baixo, si pódes , fala » .
A minha posição era similhante á do frade, que se curva, para
ouvir de confissão o perfido assassino, que, já com a cabeça no bu
raco , o torna a chamar para, a pretexto de confessar -se ainda, diffe
rir a morte. (22)
E aquella alma , a quem eu interrogára , gritou : « És tu, que estás
ahi em pé, és tu, que estás ahi em pé, Bonifacio ? (23) O escripto me
enganou no numero dos annos ! ( 24) Pois tão depressa te saciaste
d'aquellas riquezas, (25) por amor das quaes não temeste ( 26) esposar
com fraude a bella Senhora, que tanto aviltaste ? » (27)
Ouvindo isto, eu fiquei como aquelles que, não entendendo uma
resposta, param confusos, e envergonhados, sem saber o que hão de
retorquir ! (28)
Então Virgilio me disse : « Responde -lhe já : «Não, não sou aquelle,
que julgas ; (29) não sou Bonifacio Papa » . E eu cumpri o que me foi
imposto .
O condemnado, conhecendo o seu engano, torceu os pés com maior
violencia : depois , suspirando, me disse com voz plangente : « Que pre
tendes tu de mim ? ( 30)
« Si tanto desejas saber eu quem sou , que para conseguil-o, desceste
pela escabrosa encosta ao fundo d’este abysmo, declaro , queno mundo
CANTO XIX 377

fui vestido do grande manto, (31 ) e fui verdadeiramente filho de Orsa,


e tão avido de enriquecer, e augmentar o poder dos Orsinis, que lá
embolsei dinheiro, (32) e aqui estou embolsado n’este forno ardente .
« Sob a minha cabeça jazem estendidos outros , que me precederam
no trafico simoniaco, e estam occultos, (33) e comprimidos na fenda
da grande rocha .
« Eu tambem caírei no fundo, quando vier aquelle , que eu julguei,
que fosses tu , no momento , em que te fiz aquella subita pergunta.
« Mas elle não estará aqui mais tempo, do que eu tenho estado de
cabeça para baixo, com as plantas dos pés em chammas ; (34) porque
depois d'elle virá, em breve praso, do Occidente , e cheio de peiores
vicios, (35) um pastor sem lei, tal como convem que cubra a nós
ambos .
« Será um novo Jason, de quem fala o livro dos Machabeos ; (36) e
assim como com elle foi flexivel (37) o seu Rei Antiocho, de cujo favor
abusou em damno da Synagoga, assim Clemente abusará do favor de
Filippe o Bello em damno da Egreja. »
Não sei se fui muito temerario (38) em lhe responder nos seguintes
termos : «Agora dize-me : Que thesouro exigiu Nosso Senhor de S. Pe.
dro, antes de lhe pôr nas mãos as chaves do reino dos Céos ? Certa
mente não exigiu outra cousa , senão : Que o seguisse.
« Nem S. Pedro, nem os outros Apostolos exigiram de Mathias ouro,
ou prata, quando por sorte o elegeram para o logar deixado pelo
perverso Judas .
« Estejas pois, ahi, de cabeça para baixo, que é o castigo que me
reces ; e guarda com segurança o dinheiro, (39) que extorquiste, com o
qual te fizeste affouto contra Carlos d'Anjou. (40)
« E si não fosse a reverencia , que tenho ás Summas Chaves, (41) que
na vida faustosa possuiste, eu usaria de palavras ainda mais acres ; (42)
porque a avareza de vós outros calcando os bons, e exaltando os
máos , contrista o mundo christão .
« De vós, ó Pastores, falou o Evangelista, (43) quando viu aquella,
que se assenta sobre as aguas, prostituir -se aos Reis da terra : aquella
que nasceu com sete cabeças, e d'ellas tirou toda a força com que se
governou , emquanto a virtude aprouve ao seu esposo. (44)
«Vós tendes fabricado um Deus de ouro , e de prata : e que outra
differença vae entre vós, e os idolatras, senão que elles adoram um
Deus de ouro, e vós adoraes cem ?
« Ah, Constantino, de quanto mal não foi origem, (45) não a tua
conversão, mas aquelle dote, que de ti recebeu o primeiro Padre
rico ! ) ( 46)
Emquanto eu entoava esta canção pungente, o condemnado, ou
378 O INFERNO

pela raiva , ou porque lhe mordesse a consciencia , sacudia fortemente


ambas as pernas .
Creio bem , que o meu Guia se comprazesse do modo por que falei;
visto como esteve sempre attento ao som das minhas veridicas pala
vras, manifestando no semblante a satisfação com que me escutava.
Em testemunho da sua complacencia, apertou-me com os braços,
e unindo-me ao seu peito, tornou a subir a encosta por onde descêra. ·
Ali , depoz suavemente o peso do meu corpo ; (471 peso a elle sua
ve, (48) pelo prazer com que me ouviu falar, e me depoz no rochedo
escarpado, horrido, estreito, inaccessivel quasi ás proprias cabras ; e
de lá vi a quarta fossa.
COMMENTARIOS AO CANTO XIX

( 1 ) O Simon mago, o miseri seguaci. chal-a, deshonral-a, etc. É esta a mente


Sabe -se dos actos dos Apostolos, que de Dante (Bennassutti).
Simão Mago, natural da Samaria , depois Na traducção latina da Divina Co
de baptisado pelo diacono Philippe, teve media, que o concilio de Salisburgo
a audacia de offerecer dinheiro a S. Pe mandou fazer, lê -se :
dro, para alcançar os dons do Espirito
O Simon mage, o miseri sequaces
Sancto. D’ahi a origem do vocabulo Qui res divinas, quæ bonitatis
simonia, que é a compra ou venda das Debent esse sponsæ et vos rapaces
cousas espirituaes por preço temporal, Per aurum et argentum adulteraiis.
ou por outra cousa , que tenha a razão
de preço . (4) Perocchè nella terza bolgia state .
( 2 ) Che le cose di Dio ... As cousas Diz o Poeta, que vae fazer soar a sua
de Deus aqui são os sacramentos, ou severa trombeta sobre a terceira fossa ;
outras pertencentes a Deus, ao seu culto, porque esta terceira fossa é aquella ,
aos seus ministros, como beneficios em que são punidos os simoniacos.
ecclesiasticos, etc. ( 5 ) Ch' appunto suvra mezzo 'l fosso
( 3 ) ... di bontate — Deon essere , spose. piomba. Querendo dizer : Subimos exa
As cousas de Deus, que devem ser con ctamente ao ponto mais alto do roche
junctas á bondade humana ( a virtude ), do, que domina perpendicularmente o
como aquellas, que vêem da bondade meio da fossa ; isto é, subimos á curva
divina, ou que devem ser consideradas do arco, que corresponde á metade da
como esposas do sagrado ministro de fossa .
Deus, não devem consequentemente (6) Osomma Sapienza, quanta è
ser adquiridas, senão por preço celeste larte, etc. Como o tormento dos si
( bontate ), e não por preço terreno (oro moniacos , que o Poeta vae descrever, é
ed argento); do contrario, a união entre inteiramente novo, extraordinario, e di
o sagrado ministro, e a Egreja não é verso de quantos fossem inventados no
verdadeiro consorcio, mas adulterio mundo, por isso louva de modo espe
( adulterate). Em termos mais claros : cial a sabedoria divina, por ter sabido
o legitimo Esposo da Egreja é Jesus com arte admiravel estabelecer punição
Christo, e quem o representa na terra , tão justa, e proporcionada ao vicio da
é o Papa. Ora, que faz o simonia simonia .
co ? Arranca esta Esposa do seu verda (7 ) ... in cielo ... Deus mostra-se in
deiro Esposo ; e sendo o simoniaco finitamente grande, e sabio em tudo :
um esposo falso , e infiel, o seu contacto no Céo, o subordinando as espheras uma
com a Esposa não pode deixar de man á outra com dependencia da menor á
380 O INFERNO

maior : na terra subordinando os bens sancto, e na vigilia do Pentecostes ; cos


inferiores aos superiores : no Inferno tume que, attrahindo grande multidão
invertendo os simoniacos, pondo -os de de gente, tornou necessario, que os pa
cabeça para baixo, visto como no mun dres, para mais facilmente administra
do inverteram a ordem com tanta sabe rem o baptismo por immersão, usado
doria preestabelecida. então, se collocassem nos ditos poci
( 8 ) E quanto giusto... Em todos os nhos, que os encobriam até a cintura.
tres reinos, a tua omnipotencia dispõe, ( 11 ) Rupp’io per un che dentro v'an
e regula tudo com indefectivel justiça. negava. «Aconteceu, diz ainda Landino
(9) Io vidi per le coste e per lo fondo. que, achando - se muitos meninos no
Aqui a fossa, as costas da fossa, e o templo de S. João, e saltitando elles,
fundo era todo destinado ao tormento, como costumam, um caíu dentro de
com a differença das outras duas fossas um dos pocinhos de cabeça para baixo,
anteriores, onde o tormento era só no de modo que se teria afogado, si Dante
fundo. Porque assim ? 1.º, pela maior não houvesse resolutamente rompido o
multidão de peccadores d'este genero : pocinho, salvando assim o menino».
2.º, pela menor capacidade d'esta ter ( 12 ) E questo sia suggel, ch'ogniuomo
ceira fossa, visto como as fossas se sganni. E porque os adversarios deDante
apertam á proporção , que os circulos attribuissem á impiedade esse acto heroi
se restringem ; pelo que era necessario co, que de per si está indicando a insub.
distribuir os peccadores pelo fundo, e sistencia do embuste ; por isso o Poeta
pelas encostas da ferruginosa pedra faz esta solemne declaração, authentica
( Bennassutti). da com o seu sêllo, a fim que desengane
Per le coste. D'aqui se deduz tambem , a todos .
que os diques das fossas não são per ( 13 ) Infino al grosso, e l'altro den
pendiculares, mas inclinados de modo, tro stava. Em cada buraco estava um
que dão, ainda que a custo, accesso ao simoniaco , infincado de cabeça para
fundo (Petricelli ). baixo, não tendo fóra senão o remanes
( 10) Non mi parèn meno ampi, nè cente do corpo da polpa até os pés.
maggiori. Porque são tão amplos estes Aquelles buracos communicavam com
buracos ? Para poderem conter uma outros tantos poços ardentes, dentro
pessoa, como aquelles pocinhos, que de dos quaes caía um simoniaco logo que
moram em torno da Pia baptismal da sobrevinha outro da sua mesma profis
bella egreja de S. Lourenço, de Flo são.
rença . Assás apropriadamente figura o Poe
« O Poeta, para exprimir- se com maior ta de cabeça para baixo, e escouceando
clareza , diz Landino, accrescenta que para os ares, aquelles, que na vida só
os buracos da pedra livida eram simi pozeram a mira nas cousas da terra,
lhantes aquelles quatro pocinhos, que transcurando as do Céo, contra o pre
existem em torno da fonte baptismal no ceito do Apostolo, que lhes bradava :
meio do templo de S. João, a fim de Quæ sursum sunt quærite, non quæ super
que dentro d'elles estejam os padres, terram .
que devem baptisar, ficando assim mais ( 14) Qual suole il fiammeggiar delle
proximos da agua. » No tempo de Lan cose unte. « Qual costuma correr a cham
dino, como se deprehende do seu modo ma pela superficie das cousas untadas ».
de falar, ainda existia na egreja de S. João Para o leitor conhecer bem a belleza , e
tal baptisterio, o qual, segundo o teste propriedade d'este simile, não tem
munho de Rica, foi demolido desde 1576, mais do que pegar de uma folha de
por ter cessado o antigo costume de papel untada de um lado, tocar-lhe fogo,
não baptisar as creanças ( fóra do caso e deixal- a na terra horisontalmente .
de necessidade ), senão no sabbado Verá que a chamma vae correndo atraz

1
COMMENTARIOS AO CANTO XIX 381

do alimento untoso, lambendo toda a pódes, dize o teu nome. N'este verso é
superficie do papel, e melhor verá, si claramente manifesta a conveniencia, a
do lado de baixo o papel estiver mo relação natural da pena com a culpa .
lhado. Qual é, em substancia, a culpa do simo
( 15 ) ... e cui più rossa fiammasuccia? niaco? É inverter, como já se disse, a
Póde-se translaticiamente dizer, que a ordem natural das cousas. Ora, devendo
chamma suga o humor do corpo, que as cousas do Céo estar acima das da
ella queima: primeiro chupa- o, e depois terra, o simoniaco põe ao contrario as
o dissolve . Não sendo possivel no In cousas da terra acima das do Céo, ven
ferno a dissolução dos corpos, porque dendo por dinheiro o que deve dar de
então o tormento não seria eterno, a graça. Gratis accepistis, gratis date, diz
chamma limita-se a sugar-lhe o humor, Christo S. N. Logo quem no mundo in
e que maior supplicio ? (Bianchi). verteu a ordem natural das cousas, é
( 16) Laggiú per quella ripa che più justo que no Inferno esteja, contra essa
giace. Isto é, que mais pende para o mesma ordem natural, de cabeça para
poço . Em toda a fossa, o dique, que é baixo, e os pés para cima, em continua
mais vizinho ao centro do circulo, deve agitação dolorosa. Foi, em vista d'esse
imaginar -se mais baixo, e mais inclina espectaculo, que o Poeta exclamou : Oh
do, que o seu opposto, visto como no summa sapiencia, que admiravel é a
centro de Malebolge vae descendo para justiça, com que no Céo, na Terra, e no
o poço, que é o centro. Inferno, distribues os premios, e os cas
( 17) Dal tuo volere, e sai quel che si tigos!
tace. Querendo dizer : Não me separo (21 ) ...come pal commessa .Como es
da tua vontade, e sabes que o meu de taca plantada. O Pocta, comparando o
sejo, e a minha esperança é encontrar simoniaco a uma estaca, ou acha de páo
um certo Papa (Bonifacio VIII ). Oh ! desfolhado, quiz significar, que os simo
malignidade dantesca ! niacos não são plantas vivas, e fructi
( 18) Laggiù nel fondo foracchiato ed feras ; mas troncos aridos, seccos, como
arto. E porque desceram ao fundo ? estacas. A comparação não pode ser
Porque lá era o buraco, em que penava mais bella ! O simoniaco é a triste e fiel
um simoniaco maior que todos os ou imagem da figueira esteril amaldiçoada
tros. O gráo maior da culpa é punido por Christo !
com maior intensidade de chamma, (22 ) ... come 'l frate che confessa ...
como temos visto, e com maior profun Como si dissesse : Eu estava com a ca
didade de fossa . beça, e com o ouvido inclinados para o
( 19) Di quei che si piangeva con la buraco, na mesma posição do frade que
zanca . Sim, deve-se ler piangeva, e não confessa o assassino condemnado á
pingeva, como alguns querem. Dante morte. Entre os crueis supplicios, usa
havia dito acima : Chi è colui, Maestro, dos na antiguidade, figurava o de infin
che si cruccia ? E colligiu, que era mais car o criminoso de cabeça para baixo
cruelmente atormentado que os outros, n'um buraco; depois lançava - se pouco
porque o via agitar os pés com a maior a pouco terra para suffocal- o. E o assas
violencia, assim como porque a cham sino assim infincado, costumava fazer
ma, que lambia-lhe as plantas dos pés vir de novo o frade confessor ; porque ,
era mais rubra, que as outras, e por isso emquanto se confessava, ou simulava
mais intensa. Piangeva pois é quasi confessar-se, os carnifices interrompiam
synonymo de cruccia, cruciar, atormen a acção de entupir o buraco, e d'esta
tar. arte retardava-se a morte ao desgra
( 20) O qual che se ' che 'l di su tien di çado.
sotto. Quem quer que sejas, que tens a (23 ) Ed ei gridò: Se' tu già costi ritto,
cabeça para baixo, á guisa de estaca, se Se' tu già costi ritto, Bonifazio ? O con
382 O INFERNO

demnado que fala aqui a Dante é o ( 20 ) Per lo qual non temesti torre a
Papa Nicolao III, que suppunha ser o inganno. Exprobra-lhe tambem o ter
mesmo Dante o Papa Bonifacio VIII, e usado de manejos , e enganos , para se
o satyrisa com esta pungente repetição : fazer Papa .
« És tu, que já estás aqui em pé, és tu , que (27 ) La bella Donna, e di poi farne
já estás aqui em pé, Bonifacio :» Aquelle strazio ? A bella Senhora é a Egreja
ritto ( em pé ) tem duplo fel, ou é uma universal, cujo primeiro Esposo é Chris
espada de dous gumes, segundo os dous to, e o segundo o Papa, seu Vigario na
sentidos, que se lhe podem dar. No terra . O Poeta diz aqui que Bonifacio
primeiro quererá o Poeta dizer por bôc VIII procedeu com a Egreja, como
ca de Nicolao: « És tu, Bonifacio , és aquelle esposo carnal, que, por mero
tu, que estás aqui em pé, como os ou interesse, casa com uma bella senhora,
tros homens, e como tens estado até a quem , não amando antes, muito me
hoje ? Pois bem : d'ora avante a cousa nos amará depois, e que por fim , aufe
correrá de outro modo ; em vez de con ridos os proveitos do consorcio, despre
tinuares em pé devastando a Egreja, za , e avilta com sevicias a consorte : e
has de ser agora infincado de cabeça dipoi farne strazio. Exaggeração de
para baixo n’este buraco, em que estou » . Dante .
E no segundo sentido, quererá Nicolao ( 28 ) Tal mi fec'io, quai son color che
dizer: « Tu em pé aqui, Bonifacio! em pé , stanno, Per non intender ciò ch'è lor ris
como ainda quem ostenta a soberba, posto, Quasi scornati, e risponder non
que sempre tiveste ? Pois bem : fica sa sanno . Dante não sabia ainda quem fos
bendo desde já que ella vae ser aqui se aquelle condemnado, que falava de
humilhada » . dentro do buraco; porque, si soubesse
(24) Di parecchi anni mi mentì lo que era um Papa, teria logo entendido
scritto. Este escripto é dantesco, e não que se tractava de Bonifacio VIII , e da
é senão aquella tal ou qual previdencia Egreja ; e por isso diz, que ouvindo tão
do futuro , de que o Poeta finge dotados inesperada resposta, ficou attonito, ou
os condemnados. Em virtude d'esta pre envergonhado como aquelles que, não
visão, Nicolao sabia , que Bonifacio VIII percebendo o que se lhes responde, não
devia vir para o Inferno em 1303. Ora , sabem o que dizer. Esta simulada igno
crendo- o chegado ahi em 1300, espan rancia envolve o fel mais satyrico ! Fi
ta-se, e diz, que o seu escripto, ou livro gurar -se alheio em um vituperio tão
da sua prophecia, o enganou em mais acerbo, lançado por um Papa a outro
de um anno. Com effeito, Bonifacio Papa, é subtileza de arte a mais fina,
morreu em 12 de outubro de 1303 , e no por meio da qual o malicioso Poeta
momento, em que estamos da epocha mostra - se ou quer mostrar- se innocente
ficticia do Poema, achamo-nos a 9 de da condemnação de Bonifacio, fazen
abril de 1300. Logo a previsão de Nico do-a proferir por bocca de juiz tão
lao sobre a morte de Bonifacio o enga competente, qual Nicolao III !
nou em tres annos, e quasi dois mezes. ( 29 ) ... Dilli tosto ... « Dize-lhe já, que
( 25 ) Se' tu sì tosto di quell'aver sazio. não és aquelle, que elle cuida . Ainda aqui
Exprobra-lhe o haver accumulado gran o malicioso Poeta lava as mãos, figu
des riquezas, e isto é verdade . Mas não rando -se obrigado por Virgilio a dar
é menos verdade, que Bonifacio accumu aquella resposta . É sempre a mesma
lava essas riquezas com o intuito princi finississima ironia .
pal de sustentar a cruzada que, pacifi ( 30) ... Dunque che a me richiedi? Por
cados os povos, e os Reis christãos, pre que razão Dante não lhe pergunta quem
tendia promover contra os sarracenos, é, e deixa que lh’o diga, sem perguntar
que ameaçavam a Europa. N'este passo lhe ? Não lhe pergunta , porque quer
Dante é injusto (Bennassutti). fazer-se innocente, quer fingir que a
COMMENTARIOS AO CANTO XIX 383

noticia lhe vem de surpreza, e ao mes calcar dentro moedas umas sobre as
mo tempo fingir -se irresponsavel das cou outras; por isso no Inferno estão calca
sas asperas, que se vão dizer em segui dos uns sobre os outros no buraco da
da, e das quaes é elle ouvinte passi pedra livida.
vo ! Sempre a mesma satyra finissima! ( 34) Ma più è 'l tempo già che i piè
(31 ) ...sappi ch ' io fuivestito delgran mi cossi. Querendo dizer : « Calculando
manto. Como si dissesse : « Saibas que só o tempo, desde o dia em que estou
fui vestido do grande manto, isto é, fui aqui infincado até hoje, sem ajunctar os
Papa, e fui verdadeiramente filho da annos, que me restam estar aqui até á
Ursa, isto é, Nicolao III dos Orsinis, vinda de Bonifacio, posso dizer que este
aliás conhecidos por filhos da Ursa, e tão não estará aqui no meu logar tantos
cobiçoso fui de enriquecer os ursinhos annos, quantos tenho passado com os
( orsatti ), isto é , os meus sobrinhos, que pés fóra do buraco envolvidos pelas
no mundo embolsei o dinheiro da Egreja, chammas ; visto como em menos d'esse
e agora aqui estou no Inferno n'este forno tempo virá outro Papa a tomar- lhe o
de fogo, como estás vendo » . Note-se a assento, e será Clemente V da Gascu
maldade em fazer Nicolao dizer, que nha » . Tudo isto está de accordo com a
era verdadeiramente filho da Ursa ( os verdade historica ; pois, segundo já fica
Orsinis tinham por brazão uma Ursa), dito n'outra parte , Nicolao III morreu a
em vez de dizer que era da familia Or 22 de agosto de 1280 : logo, segundo a
sini, e d'ahi passa a ferir com egual sa epocha, em que estamos (9 de abril de
tyra, chamando os sobrinhos do Papa 1300 ), Nicolao esteve n'aquelle buraco
Orsatti, ursinhos ou pequenos ursos ! cerca de vinte annos : Bonifacio morreu a
( 32 ) Che sù l'avere, e qui me misi in 12 de outubro de 1303, e Clemente em
borsa. Eis-aqui outra conveniencia da 1314, no qual dia tomou o logar de Bo
pena com a culpa. Já vimos, que , por nifacio. Logo finalmente Bonifacio ahi
que exactamente , os simoniacos in estará infincado cerca de onze annos, que
vertem a ordem das cousas pondo são muito menos, que os vinte que Nico
as cousas do Céo abaixo das cousas lao esteve . Cumpre notar, que entre
da terra, são castigados no Inferno Bonifacio VIII, e Clemente V reinou
de cabeça para baixo. Vemos agora esta Benedicto XI, a quem o Poeta consa
segunda conveniencia, ou conformidade grou a maior veneração, e este é o mo
do castigo com o peccado, isto é , que tivo por que de Bonifacio salta a Cle
assim como no mundo embolsam o di mente .

nheiro da Egreja, no Inferno são embol ( 35) Chè dopo lui verrà dipiù laid'opra.
sados n’um buraco de chammas terriveis, Isto é, depois de Bonifacio virá um Papa
e para que nada faltasse ao simile, até que o excederá nas torpezas do vicio si
as pernas do condemnado, agitando -se moniaco. Aqui reporte-se o leitor ao que
com a violencia da dor, fóra do buraco, ficou dito no Argumento.
symbolisam os dous cordões da bolsa ! (36) Nuovo Iason sarà , di cui se leg
( 33 ) Di sotto al capo mio son gli al ge. É sabido pelo livro dos Machabeos, II,
tri tratti. D'aqui se vê : 1.', que a tal que Jason, por grossa quantia de di
bolsa , ou forno em que estava Nicolao nheiro, alcançou de Antiocho, Rei da
era assas longa, e profunda; 2.º, que em Syria, que então dominava Jerusalem, a
baixo tinha a mesma largura, que em dignidade de Summo Sacerdote , que
cima, isto é, tão estreita, que apenas pertencia a seu irmão Onias.
podia conter infincados os corpos dos ( 37) ... e come a quel fu molle. Assim
simoniacos, e ainda assim bem recalca como Jason foi condescendente com
dos uns pelos outros ; 3.°, convenien Antiocho , do mesmo modo o será o Rei
cia da pena com a culpa. O simonia de França para com ClementeV ; queren
60 põe a mira em encher a bolsa; e do dizer, que assim como Jason abusou do
384 O INFERNO

favor de Antiocho em damno da syna pesadas ? Ora , Senhor Dante, isto é ar


goga, e dos hebreos, espoliando o tem tificio oratorio seu !
plo para enriquecer seu protector, assim (43 ) Di voi, Pastor, s ' accorse il
tambem Clemente abusará do favor Vangelista. Este passo é um dos mais
de Filippe o Bello em damno da Egreja , escuros de Dante ; é um d'aquelles que
e dos christãos. mais poderiam pôr em duvida seus sen
Clemente V, diz Bianchi, para ser timentos catholicos! Exige pois o ma
agradavel a Filippe o Bello, a quem de ximo cuidado em quem o estuda, e a
via a sua eleição, transferiu a séde Pon maxima attenção em quem o lê. Por
tifical para Avinhão, com grande damno não haverem procedido estas precau
da Egreja, e da Italia, e não impediu, ções na glosa de passo tão difficil, al
pelo menos quanto podia, o exterminio guns commentadores, incluso Venturi
dos Templarios, em 1307. (sempre inclinado a morder o Poeta)
(38) Io non so, s'io ' mi fuiqui troppo não têem hesitado em qualifical- o até
folle. Como si dissesse : « Não sei, si eu, de impio !
sendo leigo, fui demasiado temerario Entre as innumeras interpretações,
( folle) em dizer tão acerbas cousas a prefiro a de Fraticelli, um dos mais
um Papa, que, embora condemnado, é conscienciosos expositores de Dante, e
sempre Papa, digno de reverencia; tan que, demais, não é padre. Ouçamol -o :
to mais quanto as minhas exprobrações « De vós, ó pastores simoniacos, e ava
eram inuteis ». Parece que Dante pede ros, falou o Evangelista S. João quando
aqui perdão da sua animosidade ! viu prostituir- se aos Reis da terra aquella,
( 39) E guarda ben la mal tolta mo que impera sobre muitas nações; aquella
neta. Allude aos grandes thesouros, que que surge sobre sete montes, e que de
Nicolao accumulou . Esses thesouros de muitos dos seus dominios lhe adveio
Nicolao, e de outros Papas n'aquelles poder, auctoridade, emquanto a virtu
tempos eram destinados, em grande de approuve ao seu Regedor» .
parte, á empreza de reinvidicar a Terra « Aqui fala - se de Roma, da Curia
Sancta . papal, do poder mundano dos Papas, e
(40 ) Ch' esser ti fece contra Carlo ar não da Egreja universal, como opina a
dito. Nicolao III não se tornou inimigo maioria dos commentadores. O con
de Carlos de Anjou, senão em represalia ceito é tirado do Apocalypse , C. XVII,
ás suas aggressões, e demasias insolitas. como diz claramente Dante , o qual
Privou - o com justa razão da dignidade reproduz as mesmissimas palavras do
senatorial, de cuja posição muito tinha texto. Logo a interpretação deve ser
abusado, principalmente no ultimo con aquella, que lhe dá o proprio Evan
clave, sobre o qual quiz predominar, gelista, e todos os seus expositores :
como presidente , de modo escandaloso, toda que não for ella, será arbitraria,
a fim de que se elegesse um Papa fran e caprichosa. Começarei a notar, que
cez . OS relativos colei (v. 107) e quella
(41 ) La reverenza delle somme chiavi. (v. 109) não exprimem duas entidades
As chaves são o symbolo da auctoridade differentes, como pensam alguns, mas
Papal; por isso as armas da Sancta uma só. E si Dante toma a mulher, e a
Egreja são duas chaves encruzadas sob besta em que ella montava, por uma só
a Tiara. O Poeta dá -lhes a qualificação cousa, não é porque embrulhe o texto
de Summas, para differençar das chaves sagrado, como diz Venturi, mas é «por
dos Bispos, que dependem do Romano que S. João explica evidentemente
Pontifice, embora tenham tambem a que aquella mulher, e a besta não são
plenitude do sacerdocio. em substancia, senão uma só cousa ”
(42 ) l'userei parole ancor più gravi. ( Bossuet, explicação do Apocalypse).
Pois ainda queria usar de palavras mais Delucidado este ponto, vejamos a
COMMENTARIOS AO CANTO XIX 385

conformidade das palavras do Poeta todas esta interpretação de Fraticelli,


com as do Evangelista , « Aquella, que visto como Dante não symbolisa na
se assenta sobre as aguas : Meretrix
meretriz do Apocalypse a Egreja catho
magna, quæ sedet super aquas multas, lica ; pelo contrario applica as palavras
Vi -a prostituir-se aos Reis da terra : cum do Evangelista aos Pastores d'ella, que
qua fornicati sunt reges terræ . Aquella, se esquecem de seus deveres. Catholico
que nasceu com sete cabeças. E dos dez sincero, Dante crê firmemente, que essa
cornos tirou força. Vidi mulierem seden Egreja Sancta, imagem da Jerusalem
tem super bestiam, habentem capita se Celeste, é sem mancha, e sem ruga,
ptem, et cornua decem .» Vista a confor como virgem pura.
midade das palavras, vejamos a sua ver ( 44) Fin che virtute al suo marito pia
dadeira interpretação pelo proprio cque. Mas ( conclue Dante a sua apos
S. João Evangelista. Quem é a mulher ? trophe) até quando durarão estes ma
É a cidade grande, que reina sobre os les ? Durarão, diz elle, até que venha
Reis da terra. Mulier, quam vidisti, est um Papa, que seja aquelle verdadeiro
civitas magna , quæ habet regnum super Esposo, a quem a virtude, e não o ser
reges terræ (v. 18). Que significam as vilismo agrade . Então, esse verdadeiro
aguas sobre as quaes ella se assen Esposo romperá os laços adulteros com
ta ! Aquæ, quas vidisti, ubi meretrix a França , e volverá aos doces, e castos
sedet, populi sunt et gentes et linguæ amplexos da legitima Esposa , cuja sede
( v. 15 ) Que são as sete cabeças ? Septem natural é Roma , e não Avinhão.
capita, septem montes sunt, super quos (45) Ahi, Costantin, di quanto mal fu
mulier sedet (v. 9). E os dez cornos ? Et matre, etc. Aqui o Poeta não condemna
decem cornua, quæ vidisti, decem reges o dominio temporal da Sancta Sede, do
sunt (v 12 ) . minio que no tempo de Constantino Ma
« Aqui pois pelo Poeta é significada gno não existia, e quando existia Dante o
Roma, a qual nasceu, isto é, foi edifica reconheceu, com todos os bons christãos
da sobre sete montes, e a qual de mui Aqui não condemna tão pouco a doa
tos reinos, e povos, de quem recebia ção feita á Egreja , ou quem em nome
obediencia, e vassallagem , teve, e conti da Egreja o recebeu . Condemna tão
nuou sómente o abuso dos bens terrenos, ou
a ter, toda auctoridade, e em
quanto aquelle, que a regia, isto é, o das riquezas, de que Constantino foi o
Pontifice Romano, amou a virtude . Quer primeiro generoso distribuidor, ou, para
dizer que Roma teve essa auctoridade, melhor dizer, o primeiro indemnisador
esse poder somente por todo aquelle de tantas usurpações feitas á Egreja
tempo, que a Curia papal tomou por nor e aos christãos pelos Imperadores gen
ma a virtude, e que depois, amando mais a tios, seus predecessores. Que admira
prata, e o ouro, do que a mesma virtude, pois que quem uma ou outra vez pos
e prostituindo-se aos reis da terra, ella suiu riquezas d'ellas abusasse ? E que
de per si ( a Curia papal) decahiu na opi admira ainda que Dante, vivendo em
nião do mundo , e perdeu aquelle poder, e tempos, em que desgraçadamente alguns
auctoridade, que n'outras eras tinha me Papas não foram isentos d'esses abu
recidamente gosado. Si eu portanto, con- . sos, bradasse contra elles, exaggeran
clue Fraticelli, rejeito aquellas interpre do- os alem da justa medida ? (Bennas
tações, que n'esta meretriz do Apocalypse sutti) .
personificam a Egreja catholica, e nas sete (46 ) ... il primo ricco patre ! São
cabeças os sete Sacramentos, e os dez Silvestre Papa, que foi o primeiro legi
Mandamentos, creio proceder com todo timo possuidor de bens ecclesiasticos,
o criterio, interpretando fielmente o máo grado as leis pagās precedentes
sentido das palavras de Allighieri.» que não reconheciam o direito de pro
Repito, que abraço de preferencia a priedade na Egreja.
25
386 O INFERNO

Lombardi, explicando esta apostrophe feito isso, voltasse que o admittiria na


a Constantino, diz : « Entende Dante, con sua companhia. O certo é que o tal
forme a persuasão que dominava no seu Phariseo, recebendo este conselho , como
tempo, que pelo Imperador Constantino uma setta , desappareceu, e não voltou
Magno, Roma fóra doada ao Papa mais !
S. Silvestre, a quem por isso chama o (47 ) ... soavemente spose il carco . Por
primeiro padre rico ; e entende que tal que depoz o corpo de Dante suavemen
dote, ou doação, produzira no Papa, e te ? Porque, sendo a ponte escabrosa,
nos ecclesiasticos o amor das riquezas, Virgilio entendeu na sua prudencia que,
e conseguintemento outros muitos abu si o depozesse com precipitação, Dante
SOS » .
correria o perigo de não poder firmar
Fraticelli diz : « O Poeta alludindo á bem os pés, e de cair no fundo.
doação de Constantino , segundo se (48 ) Soave ... Diz o Poeta que o peso
acreditava no seu tempo, pensa que a de seu corpo era suave a Virgilio, para
riqueza tinha sido a causa da corrupção significar o contentamento que este
dos costumes dos clerigos, tendo J. C. experimentou ao ouvir a franqueza, com
dito : Vende quod habes et da pauperi que o seu discipulo falou no colloquio
bus, et sequere me» . com Nicolao III, e principalmente pela
D'este texto porém não se deduz, que necessidade, em que estava Dante de
Jesus Christo condemnasse as riquezas ser conduzido com toda a suavidade,
in genere, como entendem os socialistas. ou devagarinho, por um caminho, tão
O Redemptor condemnou o máo uso das impracticavel aos seus pés, que apenas
riquezas. Aquellas suas palavras foram as cabras o poderiam transpor. Mas
dirigidas a um Phariseo avaro, que que porque essa ponte era tão escabrosa , si
ria saber qual era o meio de ganhar o a primeira foi tão plana ? Pela sabida
reino do Céo. Então, o divino Mestre, razão, que as pontes se vão fazendo
conhecendo que o maior obstaculo, que mais difficeis de transpor, á proporção,
elle tinha para salvar-se era a idolatria da que os circulos se restringem , e se
riqueza, disse -lhe, que vendesse tudo vão approximando do centro, ou do
quanto tinha, e désse aos pobres, e que poço.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XX

N'esta quarta fossa padecem os adivinhos, impostores, falsos astrologos, que


abusam.da influencia das estrellas, para enganar os nescios. Em nossos dias causará
riso a pena gravissima, infligida pelo Poeta philosopho, e theologo, a estes embus
teiros, como tambem a fossa profunda, que lhes é destinada ; por isso que fica soto
posta á dos avaros, dos luxuriosos, dos homicidas, dos tyrannos, dos suicidas, dos
atheus, dos heresiarchas, e dos simoniacos. Hoje a adivinhação, no genuino sentido
da palavra, é synonymo de impostura, uma vez era synonymo de sabedoria arcana .
Agora não existem adivinhos, e si alguem ousasse exercitar similhante profissão,
estaria certo de que havia morrer de fome.
Outr'ora o mundo era cheio d'elles, e os tractava com todas as honras, respeito,
e admiração. A energia, com que se pronunciaram contra elles os Sanctos Padres,
os theologos, e outros inimigos da impostura, faz crer o grande mal, que essa raça
de embusteiros causava á sociedade ; mal, que não havia cessado de todo nos
tempos de Dante . Os homens foram , são, e serão sempre soffregos de conhecer o
futuro. D'esta innata aspiração humana, aliás insensata, valeram -se malignos syco
phantas, para explorar, com honra, e lucro, antes do christianismo, a impostura da
adivinhação. Todas as religiões, excepto a hcbraica, tinham seus adivinhos, seus
augures, seus auruspices, seus magicos, seus pythons, pythonisas, e sibyllas, que
inculcavam antever o futuro nas entranhas dos animaes, no vôo, ou no canto das
aves, nas respostas dos oraculos, nas sombras evocadas do Averno, etc. A Religião
proclamou solemnemente que só Deus conhece o futuro. Por toda a parte, pois,
por onde se diffundiu a luz do Evangelho, foram desapparecendo os referidos im
postores, entre os quaes mostraram -se mais obstinados os astrologos falsos, os
genethliacos, que pretendiam conhecer no curso, e na combinação das estrellas, a
sorte dos individuos, o destino das nações, e outros acontecimentos livres, ou inde
pendentes dos astros. A esta superstição deu sem duvida origem o antigo systema
philosophico da influencia dos astros ; systema seguido por Dante, e que em certo
sentido se pode dizer base do seu Paraiso . Assim é que elle collocou no planeta
Marte, onde, no seu conceito, residem as almas dos guerreiros mortos pela causa
de Deus, o seu trisavô Cacciaguida, que, tendo -se alistado sob a bandeira dos Cru
zados, colheu a palma do martyrio na Palestina. Dante, porém , não adoptou esse
systema nem por ignorancia, nem por malicia ; porque tal influencia dos astros,
segundo elle, era ordenada por Deus, e subordinada a Deus.
A bruxaria, que nos tempos do Poeta era mister dos homens, nos tempos antigos
era exercida pelas mulheres, como muitas vezes fazem d'isto menção Virgilio, Ho .
388 O INFERNO

racio, e Ovidio , assim como a historia. Parece incrivel que homens de tão alto
pensar dessem credito a embustes d'esta ordem ! O proprio Augusto teve a sua
maga! Creio que existe toda analogia entre os bruxos d'aquelles tempos, e os es
piritistas de hoje. Ainda bem que estes foram ultimamente condemnados pela
Egreja. Digo ultimamente, porque já haviam sido condemnados pela lei de Moyses,
e portanto não é licito aos christãos catholicos crer nos seus embustes. Verdade é,
que muita gente crê mais n'elles, do que nos dogmas da Egreja ! Deploravel avilta
mento da razão humana !
N’esta fossa estam pagãos, e christãos: pagãos, porque o vicio da impostura
magica lhes era conhecido pela luz da razão natural : christãos, porque, a despeito
dos ensinos do Evangelho, não raros persistiram em usar das practicas grosseiras
do paganismo. Existem porém na fossa maior numero de pagāos, que de christãos.
Os adivinhos são pelo Poeta julgados peiores, e punidos mais gravemente, que os
simoniacos; e com razão ; porquanto os simoniacos, por avareza, e fraude, usurpam
as cousas de Deus, ou as cousas que indirectamente pertencem a Deus, ao passo
que os adivinhos usurpam um attributo directo de Deus, qual o conhecimento do
futuro, e com essa sacrilega usurpação enganam os povos, e causam grandes males.
O supplicio dos adivinhos consiste em terem o rosto voltado para as costas, e
serem constrangidos a olhar, e andar para traz ; por isso as lagrimas, que a dôr lhes
arranca dos olhos, parte mais nobre do nosso corpo , correndo pelas espaduas, vam
passar pela parte mais ignobil, isto é, pelo rego das nadegas : aviltamento da espe
cie humana, que desafia a compaixão de Dante ! E Virgilio , crendo que elle chora
de commiseração dos adivinhos, reprehende - o de nescio . Por esta reprehensão
julgou o grande Torquato Tasso, que Virgilio era contradictorio comsigo mesmo ;
visto como havia permittido que Dante chorasse de compaixão por Francisca, e
Ciacco, e que o mesmo Virgilio, mudando de côr antes de entrar no Inferno, disse
a seu Discipulo que a sua pallidez não era produzida pelo temor, mas pela com
paixão dos tormentos dos condemnados. Com perdão do grande Torquato, digo
que Virgilio sente compaixão, e permitte a Dante sentil-a, por aquelles condemna
dos, que são dignos d'ella, como ficou dito na explicação de Malebolge. Os adivi
nhos não são dignos de compaixão, nem na terra nem no Inferno, e por isto Vir
gilio não se contradiz, quando reprehende Dante ; pois que o reprehendeu, porque
cuidava, que elle chorava de compaixão de taes reprobos ; nem Dante, que cerra o
coração a todo o sentimento de commiseração ao entrar em Malebolge, não se
contradiz, chorando na fossa dos adivinhos ; porquanto elle ahi chora, não por com
paixão d'elles, mas pelo aviltamento da imagem humana, feita á similhanca da ima.
gem de Deus, e pela degradação a que o peccado arrasta a natureza humana, fa
zendo que as lagrimas, doce desafogo da dôr, e da afflicção, em vez de banhar o
rosto, vam banhar a parte mais ignobil do corpo.
CANTO XX

Na quarta fossa os dous Poetas encontram os embusteiros, que professam a arte de adivinhar. Descreve-se o
seu castigo. Figura entre elles Manto Thebana, da qual vem a origem da cidade de Mantua, cuja fundação
Virgilio narra ao seu Discipulo.

De nova pena versejar me apraz agora, e dar materia ao vigesimo


canto d’esta primeira canção, que tracta dos prescitos. (1 )
Já me tinha posto a olhar com attenção para o fundo, que do alto
da ponte eu havia descoberto, e que se banhava de angustioso pranto .
Com effeito vi , que pelo valle redondo vinha muita gente taciturna,
silenciosa , e a passo tão lento, como n’este mundo se fazem procis
sões com ladainhas . (2)
Á medida, que se approximavam , eu devia abaixar mais os olhos, (3)
para os ver melhor : cada um parecia admiravelmente, torcido do
queixo até o principio do thorax . ( 4)
Por isso que tinham o rosto voltado para os rins, não podiam an
dar senão para traz ; porque lhes era tolhido o ver pela frente. (5)
Pode ser que alguem , por effeito de paralysia, já se tivesse assim
totalmente transtornado : mas eu não o vi nunca , nem creio que seja
possivel.
Si Deus te permitte, ó leitor, tirar proveito (6) da leitura d'estes
meus versos , pensa agora comtigo mesmo, si me seria possivel con
servar o rosto enxuto, quando vi de perto a nossa imagem em tal
desconcerto , (7) que as lagrimas não lhe banhavam as faces, mas des
ciam pelo rego das nadegas .
Eu certamente, apoiado em um dos estilhaços do grande rochedo,
rebentava em pranto desfeito, de fórma, que Virgilio me gritou : «És
tu tambem do numero dos nescios ? Aqui em Malebolge vive a com
paixão, quando é bem morta. (8) Quem mais scelerado do que aquelle,
390 O INFERNO

que se compadece dos reprobos, que a divina Justiça condemna a


justo castigo ?
« Levanta a cabeça, levanta, e vê aquelle obstinado, que a terra
enguliu sob os olhos dos Thebanos, (9) bradando todos : «Aonde te
precipitas, Anfiaráo ? Porque deixas a guerra ?»
« E elle não cessou de se precipitar no fundo do abysmo, até que
chegou a Minos, que a cada um afferra : (10)
« Vê, que elle tem as espaduas sob o rosto , onde devia ter o peito :
porque quiz ver muito ao longe, presumindo descortinaro futuro ; agora
olha para traz, e vae caminhando ás avessas.
« Vê Tiresia , o adivinho, que, ferindo com a sua vara magica duas
serpentes enroscadas, mudou o semblante : ( 11 ) de homem se tornou
mulher, transformando -se-lhe contra sua vontade todos os membros .
« Aquelie, que vem depois d'elle, e por isso lhe oppõe as costas ao
ventre, é Aronta , que nos montes de Luni, em cujas faldas habita o
Carrarese, que cultiva a terra , teve por morada entre brancos marmo
res uma espelunca, d'onde podia sem estorvo contemplar as estrellas,
e o mar. ( 12)
« Aquella mulher, que com as tranças soltas cobre os peitos, ( 13) que
tu não vês, e que do outro lado é toda cabelluda, (14) foi Manto, que
andou errante por muitos paizes, ( 16) até que parou na terra onde eu
nasci: (16) sobre isso me apraz, que me ouças tu por alguns instantes .
« Depois da morte de Tiresia, seu pae, Thebas, sua cidade , tornan
do-se escrava do tyranno Creonte, esta donzella saíu a correr por
largo tempo o mundo.
Lá na bella Italia, ao pé dos Alpes , jaz um lago , (17) que Bénaco
se chama, e que sobre o Tyrol divide a Germania da Italia . ( 18)
« O Penino, ( 19) entre Garda, e Valle Camonica, banha - se, creio eu ,
por mil, e mais fontes d'agua que superabunda n’aquelle lago .
« No centro da extensão do lago, ha um logar, (20) onde os Bispos
de Trento , de Brescia, e de Verona poderiam exercer jurisdicção, si
lá quizessem ir.
« No ponto , onde a borda do lago é mais baixa , está Pesqueira,
bello , e forte baluarte , capaz de resistir aos Brescianos, e Bergamas
COS .

« Ali, onde situada está a fortaleza , vem caír toda a agua, que do
Bénaco trasborda , e se torna rio , que por verdes compinas se desliza .
« Apenas a agua começa a correr, perde o nome de Benaco, e toma
o de Mincio , que o conserva até Governo, (21) onde entra no Pó .
« O Mincio não tem longo curso ; porque encontra uma terra bal
dia, por onde se espraia , tornando - se um verdadeiro pantano, que no
estio costuma alguma vez ser insalubre.
CANTO XX 391

« Por ali passando a virgem cruel, (22) viu no meio do pantano


terra inculta, e inhabitada .
« Lá, para fugir a todo o consorcio humano , parou com os seus
servos para exercer suas artes magicas : ali viveu , e ali deixou seu
corpo exanime.
« Após a sua morte, os homens dispersos pela redondeza, reuni
ram-se n’aquelle logar, que era inexpugnavel pelo pantano , que de
todos os lados o defendia .
« Sobre aquelles ossos mortos fabricaram uma cidade, a que, sem
consultarem a sorte, chamaram Mantua , (23) em honra d'aquella, que
primeira que outrem, escolheu o sitio .
« Outr'ora os seus cidadãos foram mais numerosos, antes que a
estulticia de Cassaladi se deixasse illudir por Pinamonte . ( 24)
« Á vista d'isto te advirto, que si alguma vez ouvires attribuir ori
gem diversa á minha cidade natal , (25; não permittas que nenhuma
mentira occulte a verdade . » ( 26)
E eu lhe disse : « Mestre, os teus discursos são tão claros , e me
inspiram tanta confiança, que todos os outros em sentido contrario
seriam para mim tão baldos de luz, como carvões apagados . (27)
«Mas, dize-me, si da gente, que vae passando, não conheces al
gum , que seja digno de nota ; porque é só esta a mira de todo o meu
designio ? »
Então me disse : « Aquelle, que estende a barba sobre as espaduas
negras , (28) foi Augur (29) no tempo em que a Grecia ficou tão exhausta
de homens, que apenas restaram lá os meninos de berço ; e foi elle
que em Aulidi , de accordo com Calcanta , indicou o momento propicio
de cortar o primeiro cabo , e dispersar a frota.
« De Euripilo teve o nome , conforme algures conta a minha alta
Tragedia : (30) bem o sabes tu , pois a tens toda de memoria.
« Aquell'outro , que nas ilhargas é tão despolpado, foi Miguel
Scotto, (31 ) que verdadeiramente nas fraudes levou as lampas . (32)
« Vê lá Guido Bonatti de Forli ; vê Asdente, (33) que agora desejaria
ter- se applicado somente ao coiro, e ao linhol ; mas tarde se arrepende.
« Vê as desventuradas mulheres, que deixaram a agulha, a lança
deira, e o fuso , para se fazerem feiticeiras, por meio de extractos de
hervas, e amuletos de cêra .
« Mas vem tu agora ; porque Caim , e os espinhos occupam já o
confim de ambos os hemispherios , e mergulham no mar sob Sevilha. (34)
« E já hontem foi lua cheia : bem te deves lembrar d'isto ; porque
todo o seu esplendor guiou algumas vezes os teus passos na selva
escura , e profunda, em que te encontrei. »
Assim me falava Virgilio , sem interrompermos a nossa marcha.
COMMENTARIOS AO CANTO XX

( 1 ) Di nuova pena mi convien far ver com muita erudição, mostrando que os
si, E dar materia al ventesimo canto antigos chamaram Cantico o monologio
Della prima Canzon, ch'è de ' sommersi. (monologo ), assim como se pode com
Venturi, que não perde ensejo de tas por comedia só de canticos.
quinhar o nosso Poeta, como por vezes (2 ) Che fanno le letane in questo
tenho observado, vasa tambem agora o mondo. Antigamente estas procissões
seu máo humor, a proposito da palavra chamavam -se letane, isto é, litanias,
canção ( canzon ), dizendo : « Aqui Dante (ladainhas); palavra grega, que significa
dá á sua obra o titulo de Canção, ali o preces .
de Comedia, alem o de Poema ; e que ( 3 ) Come 'l viso scese in lor più basso .
de nomes ainda lhe não dará ? » Estando Dante em logar elevado, e
« Dante ( responde a Venturi catego tendo os olhos fitos n'aquella gente , que
ricamente Rosa Morando ), dividindo a no sotoposto valle vinha um após outro,
sua obra em tres partes, e dando a cada é manifesto que lhe era necessario abai
uma o nome de Canção, ou de Cantico, xal-os cada vez mais, á medida que a
não quer por isto dar mais de um nome gente se approximava d'elle. É isto na
a sua Comedia, como não se dão muitos turalissimo.
nomes a uma Comedia, pelo facto de (4) Mirabilmente apparve esser tra
lhe chamarmos ora prologo , ora acto, volto. Isto é, de modo a causar admira
ora scena . Quanto pois ao nome de Poe ção, ou espanto .
ma é isto um nome generico, para falar (5 ) É indietro venir gli convenia.
á maneira dos logicos; e se podem cha Attenda aqui o leitor quam engenhosa
mar Poemas tanto a Iliada, e a Ulyssea mente figura o Poeta andarem aquelles
de Homero, como as Nubis, e o Plutão peccadores de rosto voltado para as
de Aristophanes. Nem por isso estas costas . Ha aqui toda a congruencia entre
duas comedias teriam mais, que um o castigo , e o delicto . Esses peccadores
nome, como não o teria, por exemplo, foram adivinhos ; pretenderam com a sua
Verona (patria do sr. Venturi ) si lhe curta vista penetrar no futuro ; é justo
dessemos o nome generico de cidade. A que olhem agora para traz; phenomeno
respeito de chamarem - se Canticos, ou que, recordando -lhes a causa , que o
Canções as tres partes da Divina Come produziu , duplicava -lhes o tormento pre
dia, leia - se Manzoni, na sua Defeza, sente ( Biagioli ).
(part. 1 , liv . 2, C. 20), que d'isso tracta (6) Se Dio ti lasci, lettor, prender
394 O INFERNO

frutto. Segundo o citado Biagioli, o sen néo, mas sim aqui ? A razão é porque
tido d'estes versos é o seguinte : 0 leitor, Anfiaráo, alem de violento contra Deus,
si eu rogo a Deus, que te permitta foi impostor, e fraudulento, e por isso é
colher fructo de tua lição, tu, em retri punido aqui, porque a fraude é mais
buição d'esta minha rogativa, pensa, si grave que o peccado da violencia . Não
é possivel que eu não chorasse em pre cesso de admirar estupefacto a mestria
sença de similhante espectaculo ! de Dante na qualificação, e punição dos
( 7 ) Quando la nostra imagine da pres peccados !
so . A figura humana estampada n'aquel ( 10 ) Fino a Minòs, che ciascheduno
les peccadores. aferra. Afferrar é aqui metaphorica
(8) Mi disse : Ancor se ' tu degli altri mente tomado por syndicar, julgar, etc.
sciocchi ? Qui vive la pietà quando è ben É esta a missão incumbida a Minos,
morta . Este dito corresponde aquell'ou como já vimos no canto v.
tra expressão, usada no canto xxxII : ( 11 ) Vedi Tiresia, che mutò sembiante.
E corteſia fu lui esser villano . (E foi Tiresia Thebano, outro celebre adivinho.
cortezia o ser villão. ) Em resumo isto Fabulam os antigos, que elle, no acto
quer dizer : « Aqui é compassivo quem de ferir com uma vara duas serpentes,
não tem compaixão alguma». Em outros macho, e femea, que se achavam enro
termos : « Não ter compaixão nenhuma ladas (castiçando ), de repente de ho
d'estes comdemnados, é um verdadeiro mem converteu - se em mulher, e não
acto de compaixão; porque compade reassumiu o seu sexo natural, senão
cer- se de réus punidos pela divina Jus depois de sete annos, ferindo de novo as
tiça é desapprovar o juizo de Deus, que duas serpentes, que elle encontrou no
é o maior crime, que o homem póde mesmo exercicio .
commetter» (Biagioli). ( 12 ) Aronta è quei ch ' al ventre gli
( 9) S'aperse, agli occhi de ' Teban, la s' atterga. Vindo um atraz do outro,
terra . Este foi um dos sete Reis, que po ás costas de Aronta olhavam para o
zeram em assedio a cidade de Thebas, ventre de Tiresia. Aronta, ou Aronte,
para restituir o throno a Polinice, e que famoso adivinho da Toscana, habitou os
foi engulido por uma voragem em pre montes de Luni sobre Carrara. Luni
sença dos Thebanos, os quaes, alegres era cidade situada ao lado da foz do
por esse desastre, gritavam de cima dos Magra; por isso aquella redondeza con
muros ironicamente : « Aonde te preci serva ainda o nome de Lunigiana.
pitas Anfiaráo ? Porque abandonas a ( 13 ) E quella che ricopre le mammelle.
guerra ? » Tendo ella a nuca voltada para o lado
Ladvocat, na sua Biographia, diz : do peito, os seus cabellos desciam a
« Este Anfiaráo foi um dos mais celebres cobrir as tetas. Por isso Virgilio diz a
adivinhos do paganismo: inventou, se Dante: quella che con le trecce sciolte ri
gundo Pausanias, a arte da adivinhação copre le mammelle, che tu não vedi.
por meio de sonho. Havia - se occultado ( 14) E ha di là ogni pilosa pelle. Isto
por temor de ser constrangido de ir é, da parte do peito, toda coberta de
com Adriaste á guerra de Thebas, tendo cabellos, por causa da contorsão, ou
previsto, diz-se, em sonhos, que n'ella inversão do rosto .
pereceria ». ( 15) Manto fu,checercò perterre molte.
Occorre aqui uma duvida, que cum Manto Thebana, filha de Tiresia, depois
pre esclarecer. Vimos n'outra parte, que da morte do pae, fugindo á tyrannia de
Capanéo soberbo foi mettido na caver Creonte, abandonou a patria ; e vagan
na dos violentos contra Deus, e porque do por muitos paizes, foi tambem dar
razão Anfiaráo, que foi seu companheiro comsigo a Italia, onde, concebendo do
no cerco de Thebas, em desobediencia Tibre, pariu Ocno, que fundou Mantua,
a Jove, não foi castigado lá com Capa dando -lhe o nome de sua mãe. Virgilio
COMMENTARIOS AO CANTO XX 395

d'ella faz menção no livro x da Eneida, causa d'ella manchar-se de sangue hu


dizendo : mano, e de inquietar as sombras dos
«Tambem da patria move as turmas Ocno,
mortos. Eis-aqui o que de Manto escre
Prole da vate Manto , e um turco rio ,
veu Estaccio na Thebaida :
Que o nome da mãe deu -te, e muros, Mantua.
Tunc innuba Mantho
(Vers. Od . M.)
Exceptum pateris prælibat sanguinem et omnes
( 16 ) Poscia si pose là dove nacqu' io. Ter circum acta pyras, Sacri de more parentis,
Seminesces fibras et adhuc spirantia reddit Viscera .
Virgilio propriamente nasceu em Andes,
pequeno paiz vizinho a Mantua, a crer Não passe sem observação, que Esta
mos no seu apaixonadissimo imitador cio dá tambem a Manto a qualificação
Silio Italico, liv. 8 : Mantua musarum de innuba , assim como Dante lhe dá a
domus, atque ad sidera cantu . Erecta An de virgem . Deve - se porém entender,
dino. O mesmo testemunho dá Donato que ella se tornou mãe de Ocno, de
na vida do Poeta : natus est in pago, qui pois de ter habitado o dito logar.
Andes dicitur. Maffrei descobriu o logar, (23 ) Mantova l' appellar senz'altra
onde precisamente nasceu Virgilio, e sorte. Porque os antigos tinham por
hoje se chama Bandè. O proprio Virgi . costume, edificada que fosse uma cida
lio diz : Mantua me genuit. de , darem -lhe o nome, que a sorte de
( 17) Suso in Italia bella giace un signasse, ou algum presagio indicasse ,
laco. Lá em cima na bella Italia . Achan como de Roma se lê em Tito Livio, e
do - se os dous Poetas no fundo do In de Athenas em Varrão (Vellutello ).
ferno, ficavam por conseguinte debaixo ( 24) Prima che la mattia di Casalodi
do nosso mundo ; por isso diz Virgilio . Da Pinamonte inganno ricevesse. Pina
Lá em cima (suso ). Este suso aqui vale monte Buonacossi, nobre de Mantua,
ouro ! Suso por sú . persuadiu ao Conde de Alberto Cassa
( 18) che serra Lamagna. Que di lodi, governador da cidade, a desterrar
videm a Italia da Allemanha . para os castellos vizinhos varios fidal
( 19 ) ... Pennino ( Alpi pennine, Alpes gos, affirmando ser esse o meio de tor
pene). « Pennino, Alpes penninos, Alpes nar o povo benevolo , e obediente. Com
de pena, que está entre Garda, e Valle este conselho Pinamonte, que almejava
camonica, que se banha, creio eu, por fazer -se senhor da cidade, destituindo
mil, e mais fontes, ou por mais de mil Cassalodi, não pretendia , senão afastar
fontes de agua, que depois descendo aquelles fidalgos, de cuja influencia re
vae estagnar no dito valle» ( Petrucelli ) . ceiava obstaculos aos seus intentos . Com
(20) Luogo è nel mezzo là ... O ponto effeito, afastados os ditos fidalgos foi- lhe
commum , onde os tres Bispos podem facil, mediante o favor popular, arrancar
exercer jurisdicção, estando cada um na o poder supremo das mãos de Cassalo
sua diocese, é aquelle, onde as aguas do di, fazendo passar a fio de espada os
rio Tignalga desembocam no lago de outros fidalgos, que ainda restavam na
Garda. Á esquerda d'este rio está a dio cidade . D'aqui nasceu que Mantua
cese de Trento, à direita a de Brescia , visse muito diminuidos seus habitantes.
e o lago todo pertence á diocese de ( 25) Originar la mia terra altrimenti.
Verona . « Dar á minha cidade origem diversa » .
(21 ) ...Governo ... Castello situado Certo é que alguns davam como fun
onde o Mincio entra no Pó. Agora é dador de Mantua, Tarco, Principe dos
chamado Governolo . Etruscos.
( 22 ) Quindi passando la vergine cru ( 26 ) La verità nulla menzogna frodi.
da . Dante aqui dá o epitheto de crua Querendo dizer : « Não consintas que
( cruel) a Manto, no mesmo sentido, que nenhuma mentira defraude a verdade,
no Canto ix chamou cruel a Ericto, por a escureça com falsas palavras».
396 O INFERNO

(27 ) Che gli altri mi sarian carboni que no individuo não havia carne nos
spenti. Isto é : « Os discursos, que eu flancos. Por isso entendem que a essa
podesse ouvir em sentido contrario aos circumstancia alludem as palavras che nè
teus, não teriam para mim efficacia algu. fianchi è cosi poco. Outros querem que
ma ; seriam tições apagados , Bellissima fosse natural da Escossia, pelo facto de
hyperbole ! chamar-se Miguel Scotto (Landino).
( 28 ) Porge la barba in sulle spalle bru As palavras che ne' fianchi è così poco
ne. Estende a barba sobre as espaduas ou se referem ao vestido apertado, ou á
negras, porque tinha o rosto voltado magreza natural d'esse Miguel Scotto
para as costas negras, qualificativo (Venturi).
apropriado a uma alma, que está no Estando nuas aquellas sombras, as
caliginoso Inferno. palavras do Poeta referem - se, não ao
( 29) Fu ...Augure...Dante mette no vestido, mas á propria pessoa de Miguel
Inferno (v. 31 , e seguintes) primeiro os Scotto ( Biagioli) .
falsos vaticinadores ; depois (v. 52, e se Este Miguel Scotto viveu no tempo
: guintes) os auctores de sortilegios ; final do Imperador Frederico II , a quem de.
mente agora os adivinhos, como Euri dicou un ivro, que escreveu sobre a
pilo, e Calcante, que estabeleceram o astrologia . Boccaccio fala tambem d'elle
momento, em que a frota grega, que se (Miguel) no Decameron, giorno viu , n.° 9.
achava reunida no porto de Aulide, de ( 32 ) Delle magiche frode seppe il giuo.
via cortar as cordas, e fazer- se á véla . co. Que verdadeiramente nas fraudes
(30) L'alta mia Tragedia in alcun magicas levou as lampas. Isto é, avan.
loco. Tragedia aqui é a Eneida . Dá -lhe tajou -se a todos os outros, que é este o
o titulo de tragedia, porque é escripta sentido do adverbio veramente , em .
em versos heroicos. Com effeito, Euri pregado pelo Poeta.
pilo é nomeado no livro 1, v. 114. Vê- se ( 33 ) Vedi Guido Bonatti, vedi Asdente.
por este ultimo verso, que Dante sabia Guido Bonatti, astrologo famoso, natu
a Eneida de cór. ral de Florença. Sendo porém banido
Assim , excita com o seu empenho a da cidade, asylou - se em Forli, onde foi
todo o estudioso a aprender de cór Vir bem recebido de Guido de Montefeltro,
gilio, porque é só assim que se lhe pode senhor d'aquella cidade. Escreveu uma
entrar no sangue, isto é, no espirito. E obra de astrologia. (Petrucelli ) .
nós, apoz esse exemplo , excitaremos a Asdente, sapateiro de Parma, que,
juventude christã a aprender de cór não obstante ser homem ignorante, en
todo o Dante. Será isso grande traba tregou-se á arte de adivinho, e adquiriu
lho, mas trabalho compensado por ine alguma celebridade. Diz-se que se cha
faveis prazeres, e immensas vantagens. mava Benvenuto, e era conhecido por
Balbo, no fim da Vida de Dante, faz Asdent, isto é, sem dentes ; mas essa al
uma justissima observação : observa que cunha lhe era dada por antiphrase , pois
as edades estudiosas de Dante fizeram que pelo contrario tinha dentes mui
grandes avanços na litteratura ; e as grandes (Dionisi).
edades menos estudiosas d'este Poeta ( 34) Ma vienne omai, chè gia tiene 'l
retrogradaram . Dante é a pedra de to confine D ' ambedue gli emisperi, e tocca
que do bom gosto . Estudae-o, e conhe l'onda Sotto Sibilia Caino e le spine. Como
cereis quanto perdeis, em não estudal- 0. » si Virgilio dissesse : « Mas agora cumpre
( 31 ) Quell'altro, che ne' fianchi è così que andemos : porque Caim, e os espi
poco. Querem alguns que este Miguel nhos ( isto é, a lua , na qual o vulgo crê
fosse natural de Hespanha, onde n'aquel que esteja Caim no meio de um acervo
les tempos os homens usavam de vesti de espinhos, em castigo do fratricidio)
dos tão exaggeradamente ligados ao chegou ao confim dos dous hemisphe
corpo, que pelo arrocho faziam parecer, rios, e mergulha nas ondas do mar ,
COMMENTARIOS AO CANTO XX 397

alem de Sevilha , e Portugal. Quero Ariete, a lua estava em Libra. O Ariete


dizer, que é tarde, que é uma hora do é a primeira constellação, e a Libra é
dia na Italia, e quasi 4 em Jerusalem, a septima das doze do Zodiaco. Logo
que temos quasi sob a nossa cabeça ; entre o sol , e a lua havia uma distancia
porque agora a lua é cheia , e quando a de seis signos do Zodiaco, ou a dis
lua cheia se põe, o sol nasce : mas não tancia de doze horas, estabelecendo,
é este o primeiro occaso da lua, é o como é de facto, duas horas para a pas
segundo, e tu sabes que a volta da lua sagem de um signo ao outro . É pois
ao meridiano é retardada cada dia evidente que , si a lua está ao horisonte
48 minutos, e 46 segundos; e por isto do poente, o sol, que o percorre em
não nos convem perder mais tempo doze horas, deve achar -se ao horisonte
aqui; porque n'esta mesma noite deve do nascente ; e assim com pôr da lua ,
mos sair do Inferno ». Dante indica o nascimento do sol . Mas
D ' ambedue gli emisperi... Dante a lua em relação ao sol retarda cada
já sabia que a terra era redonda; conhe dia o seu curso 48 minutos primeiros
cimentos de grande merito para aquella e 46 segundos. Logo si a lua , não obs
edade , aliás combatidos ainda em tem tante este retardamento , tocava o hori
pos posteriores. sonte, o sol, que o percorre tanto quan
Sotto Sibilia ... Diz sotto ( de baixo) to ella retarda, devia ter nascido pouco
para indicar alem da Sevilha, para o menos de uma hora.
occidente, onde exactamente é o Ocea Logo ou Dante sabia o retardamento,
no Atlantico, dentro do qual é pre que faz cada dia a lua em relação ao
ciso penetrar muito, para descobrir o sol, e em tal caso elle quer dizer que
horisonte, que divide a terra dos dous era uma hora da manhã, ou não o sabia ,
hemispherios , em attenção a um, que se e em tal caso quer dizer que então saia
acha em Jerusalem , onde Dante entende o sol. Conservemos a primeira d'estas
achar-se collocado, entrando no Infer hypotheses, fixando uma hora do nas
no . Pondo pois o meridiano em Jerusa cimento do sol, ou as 1 : 37 antemeridia
lem , é necessario percorrer 90 gráos nas do sabbado sancto (Bennassutti) .
ao poente , para descobrir o seu ho N. B. Dante, para contar as horas da
risonte. Ora, de Jerusalem a Sevilha te sua viagem, segue este methodo : No
mos só 42. Logo para chegar a go, e Inferno vale - se da lua; no Purgatorio
attingir assim o ponto preciso do hori do sol; e no Paraiso das espheras. Dei
sonte de Jerusalem é necessario andar xemos agora o Purgatorio, e o Parai
sob a Sicilia, proseguindo para o oc so, e falemos do Inferno, investigando
cidente por outros 48 gráos. Eis o sen a razão porque no Inferno se vale da
tido da palavra sotto Sibilia. lua para computo das horas ? A razão é
Caino e le spine. O vulgo observando porque no Inferno naturalmente a noite
na lua cheia uma figura confusa, crê é perpetua, como dirá no Purgatorio
que essa figura é Caim no meio de uma (canto 1 , n.º 43) .
selva de espinhos.
Chi v ' ha guidati ? o chi vi fu lucerna ,
Resumamos : Que quer dizer Dante Uscendo fuor della profonda nolle
com este pôr da lua cheia, expresso no Che sempre nera fa la valle inferna ?
presente, e no passado terceto ? Quer
determinar a hora, em que estavam Quem te guiou ? Ou quem te serviu de luz,
para saires da profunda noite, que torna
n'aquelle instante ; isto é, que então era sempre negro o valle do Inferno ?
de pouco nascido o sol de sabbado
sancto , 9 de abril, e que ao mesmo Ora o astro da noite é a lua. A my
tempo se punha a lua cheia da sexta thologia ensina que este astro se chama
feira antecedente. Tomemos este cal lua no ceo, Diana na terra, e Proserpina
culo, e provemol-o. O sol estava em no Inferno, onde é rainha.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXI

A quinta fossa está cheia de pez fervente, dentro do qual estam submergidas as
almas dos traficantes, que abusam dos publicos empregos, que occupam, vendendo
as graças e favores, ou obtidos á falsa fé, ou concedidos liberalmente pelos Princi
pes, ou Supremos Magistrados, juncto aos quaes gosam de valimento, e de cuja con
fiança se aproveitam com infidelidade torpe. Da primeira especie tracta particular
mente este canto . A fraude d'estes traficantes é mais grave , e damnosa do que a
dos adivinhos ; porque estes enganam aquelles que querem ser enganados, acredi
tando nesciamente nas suas imposturas, pelo principio biblico de que infinito é o
numero dos estultos. Os traficantes, porém , enganam os seus superiores, a quem
juraram fidelidade de desempenhar leal, e lisamente os empregos, que lhes são
confiados. Nota -se similhança entre estes traficantes, e os violentos contra o pro
ximo, que são punidos no primeiro gyro do septimo circulo. Os violentos, e os
traficantes adquirem fortuna injustamente ; mas os violentos adquirem por força,
ou rapina; os traficantes por fraude : os violentos são submersos n'uma fossa de
sangue fervente, e si botam a cabeça de fóra, são asseteados pelos Centauros : os
traficantes são por sua vez submersos n'um lago de pez fervente, e si botam a
cabeça de fóra, são arpeados pelos demonios. Em summa, como mais aggravante
é a fraude, que a violencia, assim mais cruel é o castigo dos traficantes, do que dos
ladrões : em todo o caso, os dous castigos são similhantes.
Demonstra-se n’este canto o gráo superlativo a que a fraude havia chegado em
Luca !
Chegam os dous Poetas á ponte, sem que fossem descobertos pelos diabos, que
estavam occultos em baixo. Prevendo Virgilio que era impossivel passar á sexta
fossa sem serem vistos por elles, deixa Dante no meio da ponte , escondido entre
as escarpas do rochedo, e vae falar com os demonios; depois chama Dante. Do
chefe d'estes demonios ouvem os dous Poetas, que a ponte do rochedo, sobre o
qual tinham vindo, estava quebrada sobre a sexta fossa, por occasião do terramoto
succedido na morte de Christo : por isso lhes aconselham a voltar pelo dique es
querdo, que divide a quinta da sexta fossa, dizendo -lhe que na vizinhança ha outro
rochedo, que atravessa inteiro todas as fossas, até o poço central. Em logar oppor
tuno veremos que isso era uma mentira propria de diabos.
Descem pois os dous Poetas á esquerda do rochedo, sem parar sobre a summi
dade do dique ; mas descem tambem d'esta summidade, e vam em baixo para o
pez fervente, onde a uma discreta altura do dito pez, ha um atalho pelo qual ca
minham os demonios armados de ganchos, ou garfos terriveis, com os quaes
baldeiam no fundo do pez os traficantes que tentam saír .
CANTO XXI

Na quinta fossa, dentro de um lago de pez ardente, estam os traficantes, ou os que traficaram com os em
pregos, e cousas publicas : Em torno da fossa andam os demonios armados de ganchos, para garfar o trafi
cante , que pozer a cabeça fora do pez : Testemunham os dous Poetas o martyrio cruel de um traficante de
Luca : Virgilio apazigúa os diabos, e consegue que estes o escoltem a elle, e Dante, sem perigo.

Assim proseguimos de ponte em ponte, falando de varias cousas,


que a minha Comedia não cura de narrar ; ( 1 ) e chegados que fossemos
ao ponto mais alto, parámos para ver a quinta fossa de Malebolge, e
outros prantos inuteis ; e a vi escura, mas escura de modo espantoso .
Qual no arsenal dos Venezianos (2) ferve na estação invernosa o
pez tenaz (3) para calafetar os seus navios avariados ; e porque não
podem navegar, em vez d'isso, qual fabríca o seu novo barco , e qual
repara com estopa o costado d'aquelle , que fez muitas viagens ; qual
rebate os pregos da prôa, e qual os da pôpa ; qual faz remos, e qual
cnrola as cordas ; qual arremenda a véla pequena , e qual a grande :
tal não por fogo, mas por arte divina, fervia no fundo da quinta fossa
um denso pez, que lhe enviscava ambas as bordas.
Eu via o pez, mas não via n'elle senão as bolhas , (4) que a sua
effervescencia levantava, ora inchando , ora abaixando. ( 5)
Emquanto eu olhava fixamente para o fundo, o meu Guia me
bradou : «Toma sentido, toma sentido ! » E do logar, onde eu estava ,
me puxou para juncto de si .
Então voltei-me como o homem impaciente de ver aquelle perigo,
a que convem fugir, e que , sein embargo de subito terror o intimidar,
não hesita em partir para ver quem o ameaça : e vi um diabo negro,
que vinha correndo atraz de nós por cima do rochedo . (6)
Ai, que horrivel não era o seu aspecto ! E quanto me não parecia
26
402 O INFERNO

feroz a sua attitude , com as azas abertas, caminhando ligeiro sobre


os pés !
No seu hombro, que era ponteagudo, e alto, trazia elle escan
clado um infeliz peccador, afferrando- lhe os artelhos com ambas as
mãos .
Parando sobre a nossa ponte, disse : « Ó Malebranche, (7) eis um
dos Anciãos de Sancta Zita ! (8) Mette - o debaixo do pez , que eu torno
áquella terra, que abunda de gente trapaceira : lá são todos verdadei
ros traficantes, excepto Bonturo : (9) por dinheiro se faz do não sim, e
do sim não » . (10)
Dizendo isto, arremessou ao fundo do pez aquelle peccador, e
voltou pelo duro rochedo, correndo tão veloz, como nenhum cão de
fila o foi jamais em perseguir o ladrão.
Aquelle peccador, afundando-se no pez, veiu acima tão curvado,
que os demonios, que estavam sob a ponte, gritaram por escarneo :
« Aqui não temos o Vulto Sancto ; (11) aqui se nada de modo diverso,
que no rio Serchio ; por isso, si não queres experimentar o pungir
dos nossos croques, não ponhas a cabeça fóra do pez » .
Depois de o terem mordido com mais de cem garfadas, disse
ram - lhe : «É coberto de pez, que aqui se baila : si podes, pois , empal
mar o alheio, empalma-o ás escondidas» .
Não é de outro modo, que os cozinheiros, para evitar que a carne
nade, fazem -n'a por seus ajudantes, mergulhar com garfos no fundo
da caldeira !
O meu Mestre me disse : « Para que os demonios te não vejam
aqui, é prudente que te escondas detraz de uma d'estas rochas, que
ao menos te encubra em parte, e por qualquer offensa, que elles me
façam , não temas nem por mim , nem por ti : porque eu conheço as
cousas : n'outra occasião já estive em conflicto com estes malignos». (12)
Depois passou alem da extremidade da ponte, e , ao chegar á sexta
borda, julgou necessario ostentar aspecto imperterrito, decisivo .
Com aquelle mesmo furor, e tempestade, com que os cães inves
tem o pobre, que de subito pede a esmola no logar, onde pára, os
demonios irromperam debaixo da ponte contra Virgilio, ameaçando-o
com seus croques .
Mas elle lhes bradou com força : « Nenhum de vós ouse tocar-me!
Antes que algum de vossos ganchos me afferre, venha um de vós , que
me ouça, e depois, si quizer, que me dilacere a seu gosto » .
Todos gritaram : « Vá Malacoda. Em continenti um veiu, e os
outros ficaram parados. Approximando-se de Virgilio , disse-lhe : « Quem
te dá auctoridade para abordar esta fossa ? »
Respondeu -lhe o meu Mestre: « Crês tu, Malacoda , ver-me aqui ,
CANTO XXI 403

são, e salvo das hostilidades de vós outros, si o poder divino me não


escudasse ? Não me embargues pois o passo ; porque o Céo quer que
eu mostre a outrem este caminho escabroso » .
Ouvindo isto, abateu-se-lhe o orgulho por modo tal, que deixou .
caír o gancho aos pés , e disse aos outros : « Agora, nada de feril- o » .
E o meu Guia então me disse : « Ó lá tu, que estás ahi bem es
condido entre os rochedos da ponte , agora podes vir com toda segu
rança ) .
Então me levantei, e corri depressa para juncto d'elle , e os diabos
se pozeram todos na frente, de modo que temi que não observassem
o pacto .
E assim vi eu outr'ora os infantes Lucheses que, por pacto saíam
do Castello Caprona, (13) tremer quando se viram no meio de tantos
inimigos .
Collei-me todo com a pessoa de Virgilio, e não tirava os olhos dos
gestos dos demonios , que não podiam ser mais ameaçadores !
E elles abaixando os arpéos , dizia um ao outro : « Queres que eu
o garroche pelas costas?» « Sim , responderam todos, arpôa-lhes os rins » .
Mas aquelle demonio, que ainda falava com o meu Guia , e que
tinha ordenado aos outros que nos não ofſendessem , voltou depressa ,
e gritou : « Suspende, suspende o golpe , Scarmiglione ! »
Depois nos disse : « Não podeis ir mais adiante por este rochedo ;
porque a sexta ponte jaz quebrada no fundo da fossa .
« E si , não obstante, vos apraz proseguir ainda, andae por esta
( 14)
grota , e não por cima do dique : ha proximo outro rochedo pelo
qual podeis ir até onde quizerdes . ( 15)
« Hontem , cinco horas mais tarde do que esta hora, completa
ram-se mil , duzentos , e sessenta , e seis annos, que caiu a ponte d'este
rochedo . (16)
« Eu mando por esta azinhaga estes meus sequazes a observar,
si algum condemnado sáe fóra do pez fervente : ide com elles , que de
certo vos não farão mal algum .»
Começou a dizer : « Vem tu adiante, Alichino, e tu, Cagnazzo, (17)
e Barbariccia guie a decuria : ( 18) venham tambem adiante Libicocco,
e Draghinazzo, Ciriato dentudo, (19) e Graffiacane, e Tarfarello, e Ru
bicante louco .
« Andae em torno do pez fervente a ver o que se passa : (20) estes
dous sejam salvos até o outro rochedo, que atravessa todas as fos
sas , » (21 )
E eu exclamei : « Ai, Mestre , que é aquillo que vejo ? Ah , si sabes
este caminho , sigamos sem esta escolta, que de minha parte a dispenso
de boa vontade.
404 O INFERNO

« Si és perspicaz, como costumas, não estás vendo, que elles ran


gem os dentes , e nos ameaçam dores com os olhos vesgos ? (22 )
E elle me respondeu : « Não quero que tenhas medo : deixa-os
ranger os dentes á sua vontade ; ( 23 ) porque elles fazem isto por causa
dos miseros , que ardem no pez ardente ) .
Os diabos voltaram pelo dique , que torce á esquerda ; mas antes
cada um apertou para o seu chefe a lingua com os dentes, (24) e Bar
bariccia rompeu a marcha com a trombeta do sesso .
COMMENTARIOS AO CANTO XXI

( 1 ) Cosi di ponte in ponte, altro par. no Inferno ! E que cousa mais horrivel,
lando, Che la mia Commedia cantar non do que um banho de pez, ou lacre a
cura . Não só se refere à ponte, que atra ferver !
vessa a quarta fossa, como á ponte, que ( 3 ) Bollia laggiuso una pegola spessa.
atravessa a quinta, e como finalmente a Fervia no fundo da fossa um denso pez .
todas as outras transpostas até ali (Bia A razão por que Dante mette estes pre
gioli) . varicadores no pez fervente, é para
( 2 ) Quale nell ' Arzanà de Viniziani. apropriar a pena ao delicto : porquanto,
Arzanà é aquella parte interior do porto assim como por dolo, e engano elles
que depois se chamou, e ainda hoje prendem os incautos nos seus laços,
tambem se chama, darsena (caldeira) . como com lacre ou visco, com que se
palavra derivada do arabe al sanat, o enganam os passarinhos, assim tambem
laboratorio, onde se fazem as obras (ar são viscados no Inferno dentro da cal
senal ) (Fraticelli). deira de pez tenaz , espesso .
Com esta bella comparação quer o (4) l’ vedea lei, ma non vedeva in
Poeta pôr sob os olhos do leitor a es essa . E por que não via quem estava
pantosa imagem d'aquelle pez fervente, debaixo do pez ? Porque os demonios,
com que são punidos os fraudulentos, como adiante se dirá, não consentiam
e descreve com cores tão vivas as par que algum dos padecentes apparecesse
ticularidades, que parece estarmos as na superficie do tanque.
sistindo ás operações diversas, e ouvin ( 5) E gonfiar tutta, e riseder compres
do o tumultuoso arruido que faz aquella sa. Indica as costumadas alternativas do
gente ! Quem examinar os cinco ulti licor fervente, que ora sobe, ora desce,
mos versos , verá uma eloquencia admi maxime do pez, que por sua densidão
ravel, uma acção, um movimento , um resiste á evaporação do ar, inchando, e
ardor tal como aquelle fervet opus dilatando-se em grandes bolhas. É uma
Virgiliano, de modo a não ter mais que pintura bellissima .
desejar ( Biagioli). (6) Che per veder non indugia 'l par
Fraudulentos aqui ( barattieri) são os tire. Como si dissesse : « Eu via o perigo,
que vendem por dinheiro, ou por cousas que devia evitar ; mas, como fascinado
equivalentes aquillo, que por seu officio pelo mesmo perigo, mostrava-me impa
são obrigados a fazer. São por isso tra ciente de vel -o, e depois de haver d'elle
ficantes do seu proprio emprego. E escapado, olhei, e vi um diabo negro,
quantos d'estes taes não avultam em etc.
nossos dias ! Elles porém que vejam (7) O Malebranche. Palavra com
bem o modo cruel por que são punidos posta de branche male, agadanhadores
O
406 O INFERN

máos, como Malebolge, maletolte, etc. na . Saíam do castello de Caprona em


Este nome de Malebranche o Poeta não virtude de uma convenção feita. Esses
o dá a todos os demonios, mas somente infantes eram Pisões, que, apertados
o dá aquelles, que guardam , e martyri pela sêde, entregaram o castello aos
sam os traficantes, que vendem os actos Lucheses colligados com os Florentinos
do seu emprego, os quaes padecem sob pacto solemne de lhes poupar a
n'esta quinta fossa. vida . Enquanto porém passavam em
( 8 ) Ecco un degli anzian di Santa direcção aos limites de Pisa, e vendo -se
Zita. Eram chamadas anciãos os mem cercados de innumeros inimigos, que
bros do supremo tribunal de Luca. De gritavam «Enforca, enforca» ( Inpica, in
nomina a cidade de Luca Sancta Zita , pica) , temeram que elles tivessem rom
porque aquella cidade era especialmen pido as condições do pacto. N'esta
te consagrada a esta Sancta. acção, que teve logar em agosto de 1290,
( 9) Ogni uom v'è barattier , fuor che achou - se Dante como um dos soldados
Bonturo. Bonturi da familia dos Datis . de cavallaria , que a republica de Flo
Exceptua - o do numero dos traficantes, rença enviára em auxilio dos Lucheses
por graciosa ironia ; sendo aliás o peior, ( Fraticelli) .
e o mais consummado de todos os pre ( 14) Andatevene su per questa grolla.
varicadores de Luca ! ( Fraticelli). Grotta vale propriamente espelunca,
( 10) Del no, per li denar, vi si fa ita porém aqui é usado no sentido de dique
N'aquella cidade, por dinheiro, faz-se despedaçado ( argine dirupato ).
do não sim , ou do sim não : falam se ( 15 ) Presso è un altro scoglio, che via
gundo o interesse, e não segundo a ver face. « Aqui perto ha outra ponte, que
dade. dá passagem . » Isto é uma mentira de
( 11 ) Gridar : Qui non ha luogo il Malacoda ; porque, alem de não ser pos
sancto volto . Os demonios, que esta sivel o diabo dizer a verdade, é certo
vam debaixo da ponte, vendo o pecca que não só aquella ponte, como todas
dor sair curvado de dentro do pez, gri as outras d'esta fossa estavam quebra
taram que ali não se adorava o Vulto das . Vel - o-hemos no canto xxIII.
Sancto. Vulto Sancto é uma imagem de (16) ler, più oltre cinqu ' ore che quest'
Christo esculpida em madeira, venereda otta, Mille dugento con sessanta sei Anni
com muita devoção na cidade de Luca compièr, che qui la via fu , rotta. Que
ha muitos seculos. Diz a tradição , que rendo dizer : Hontem, sexta feira, mais
essa imagem foi esculpida por Nicode tarde 5 horas do que a hora presen
mus, discipulo occulto do Salvador, e te ( a saber, pelas 3 horas depois do
que por milagre foi trasladada para meio dia, pois que a hora em que o
aquella cidade. Tive a ventura de tel- a diabo fala com Virgilio é ás 1o da ma
visto, e venerado n'uma das occasiões, nhã do sabbado ) completaram -se 1266
que visitei Luca. Está entendido, que annos, que esta ponte foi despedaçada.
essa referencia dos demonios ao Vulto Em summa, eram passados 1266 annos,
Sancto é um escarneo atroz contra elle , e um dia escasso ( scarso ) depois que
e tambem para escarnecerem o pecca morreu Jesus Christo, quando as pedras
dor, que saiu curvado do pez, em posi foram despedaçadas (petræ scissæ sunt),
ção de quem adora profundamente. e que os effeitos d'aquelle terremoto se
( 12 ) Securo già da tutti i vostri scher experiment aram tambem no Inferno.
mi. Virgilio allude aqui a todos os ob Jesus Christo viveu 33 annos, e 3 me
staculos, que a elle, e a Dante pozeram zes ; mas os antigos, e entre estes Dante
nos
circulos anteriores os demonios (Conv ., iv, c. 23 ) lhe attribuiram 34
Cerbero, Plutão, Minotauro, Centauros, annos de vida, porque contavam OS
etc. 9 mezes da sua ineffavel concepção.
(13 ). Ch'uscivanpatteggiati di Capro Logo, aos 1266 annos, e i dia ajuntan
COMMENTARIOS AO CANTO XXI 407

do - se os 34, teremos o primeiro dia !! demonio, escrevendo - se com S maius


11

do anno de 1301 , e assim a data da culo , e separando, com virgula, de Ci


visão do Poema não é, como se tem riato. Dante por isso mesmo no canto
crido, o anno de 1300, mas o 1.º dia seguinte indica ser isso mal feito , não
11
de 1301 , e digo primeiro dia, porque só porque Ciriato repete :
antigamente , não no 1.º de janeiro,
mas a 25 de Março, se começava a ... a cui di bocca uscia
contar o anno . Com effeito, a razão al d'ogni parte una sanna , come a porco ,
legorica do Poema, que indica a reno
vação do seculo, quer que seja um, e li assim como diz : Noi andavam com li
não o outro, o principio do seculo novo dieci dimoni; de modo que, posto San
11
e não o fim do passado ( Fraticelli). nuto qual outro demonio , seriam onze ,
( 17 ) Tratti avanti, Alichino, e Calca- e dez (Lombardi).
brina. Nomes de demonios, tirados pelo ( 20 , Cercate intorno le bollenti pane.
Poeta não se sabe d'onde . Talvez os Diz pane por syncope, em rasão da rima ,
tirasse de sobrenomes irrisorios de ho- em vez de panie, plural de pania, ma
mens; talvez de nomes, que se des- teria viscosa, similhante ao pez, como
sem a cães, e a outros animaes ; e talvez já ficou dito atraz.
compostos pelo mesmo Poeta de pala . ( 21 ) Costor sien salvi insino all'altro
vras, parte do dialecto commum italiano, scheggio. Recommendação fingida , co
e parte dos dialectos particulares, ou mo era fingido, e falso, que a seguinte
estrangeiros. Entre as explicações, que ponte atravessasse todas as fossas. Sopra
Landino se esforça por dar a estes no- le tane . Como n'estas fossas (bolgie)
mes, merece consideração aquella de se pune a louca bestialidade (la matta
Cirato « Chama -o, diz, Cirato dentudo bestialitá), por isso chama tane, covil
( sannuto ), porque ciro, não somente na de feras (covil di bestie) . Tambem aqui
lingua rustica dos nossos, mas na lingua mente Malacoda, porque todas aquellas
grega, significa porco .» É porém opi pontes estavam quebradas,
nião de Biagioli ter sido a mente de ( 22 ) E colle ciglia ne minaccian duoli ?
Dante descrever, e pintar n'estes de- Com aquelles signaes malignos feitos
monios, nos seus actos, e discursos , os entre si com os olhos mostravam os
esbirros da Italia, gente a mais vil , a diabos terem entendido o fim das pala
mais desprezada, deshonrada, e deshon vras enganosas de Malacoda (Frati
rante do bello paiz (del bel paese) : ac- celli ).
crescentando que é possivel ter o Poetë , ( 23 ) ... Non vo'che tu paventi.Virgilio ,
nas suas peregrinações, recebido qual para tranquillisar Dante amedrontado,
quer desattenção de algum bando d'es- responde - lhe : « Deixa que elles ranjam
tes diabos da Italia . os dentes á sua vontade; porque fazem
( 18 ) E Barbariccia guidi la decima ! com raiva dos infelizes, que são ator
De facto com Barbariccia se nomeiam mentados, e cozidos no pez.
aqui outros demonios até o numero de (24) Ma prima avea ciascun la lingua
dez. stretta Co' denti verso lor duca per cen
( 19) Ciriatto sannuto. Sannuto deri-' 11| no . Morder a lingua, de modo que se
vado de Sanna (explica o vocabulario i veja, é acto plebeu de quem quer escar
da Crusca ) dente grande, e mais pro- necer outrem sem ostentação. Os de
priamente aquelle dente curvo , uma monios com esse gesto queriam mofar
parte do qual sáe fóra dos labios de da simpleza com que Virgilio cria, e
alguns animaes, como do porco, do ele- procurava fazer crer a Dante, que elles
phante, e de outros. Em algumas edi- rangiam os dentes de furor não contra
ções põe -se Sannuto, não como epitheto elles, mas contra os desgraçados que
de Ciriato, mas como outro nome de estavam sendo cozidos na caldeira do
R NO
408 O INFE

pez, per cenne, isto é, por signal, que lhes homens ? O Poeta, accrescenta a este
havia feito Barbariccia de partir. proposito Biagioli, não deve, em consi
(24) Ed egli avea del cul fatto trom deração a narizes melindrados, trahir a
betta. Finge Dante que os demonios de arte, e as leis severas dos mestres, que
modo indecoroso, e proporcionado á exigem que os actos sejam descriptos
vileza d'elles, imitem as evoluções dos com palavras que por natureza lhes são
soldados ao som da trombeta do az de accommodadas. Deixemos pois que
copas de Barbariccia . quem quizer accuse Dante por ter dito
É provavel que ainda aqui n'este que o az de copas do demonio Barba
passo alguns leitores delicados torçam riccia serviu de trombeta aos seus sub or
nojosamente o focinho, ou tapem os dinados, sendo aliás certo que não usa
ouvidos, para não ouvirem o tal som de taes palavras immundas, senão ra
asqueroso ! Quereriam elles talvez que rissimas vezes, e por ser obrigado pelas
o Poeta ridicularisasse os costumes dos leis da verdadeira imitação. « Emfim
demonios no Inferno, usando do mes Turpia turpiter dicenda. As cousas tor
mo estylo, com que nos polidos salões pes devem ser ditas com palavras tor
se descrevem as acções honestas dos pes ( Seneca, o tragico).
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXII

Caminhando os dous Poetas acompanhados dos dez diabos, por uma vereda
ao longo do dique á esquerda, encontram na fossa grande numero de traficantes
suppliciados n'um grande lago de pez fervendo, sob a guarda dos demonios, arma
dos de ganchos de ferro, com os quaes os afferram cruelmente, si acontece pôrem
a cabeça fóra do pez. Os traficantes, que padecem n'esta fossa, são os que merca
dejam com fraude as graças e a justiça, não só nas cortes dos Principes, como
tambem nos logares publicos, que occupam. Um d'elles, por não advertir a tempo,
que os dez demonios se approximavam, conservou a cabeça fóra do pez, como bus .
cando allivio ao tormento, mas foi emcontinente puxado com o gancho pelos cabellos
enviscados ; mas no momento de ser pelos demonios pungido de tractos crueis, Bar
bariccia, chefe da decuria infernal, fez suspender o castigo, em consideração a
Virgilio. Interrogado pelo mesmo Virgilio, quem fôra elle no mundo, disse que era
Ciampolo Navarra, que enriqueceu por meio de traficancias, durante o tempo
em que esteve ao serviço de Thebaldo, Rei de Navarra, optimo Principe, genro de
S. Luiz, Rei de França, a quem acompanhára na cruzada a Africa, onde morreu, e
que, sendo encarregado de transportar-lhe a França os sagrados ossos, falleceu na
viagem, em Trapani : disse tambem, que perto d'elle era punido dentro do mesmo
pez ardente fr. Gomita Sardo, que commetteu traficancias contra Nino Visconti de
Pisa, seu augusto senhor, que o havia feito governador do Julgado, ou da provincia
de Gallura, na Sardenha ; assim como disse que era punido na mesma fossa Miguel
Zanche, governador da provincia de Logodoro, tambem na Sardenha, por delegação
de Enzo, filho natural de Frederico II , e que morreu em Bolonha dentro de uma
gaiola de ferro : accrescentou que o dito Miguel Zanche soube fazer tão dextramente
as suas traficancias que, morto Enzo, casou com a sua viuva, e continuou a devas
tar a referida provincia de Logodoro, até que depois foi assassinado em um ban
quete por Branca d'Oria, seu genro : disse finalmente a Virgilio, que fr. Gomita, e
Miguel Zanche, mesmo no Inferno, em horriveis tormentos, não cansavam a lingua
em discorrer sobre as traficancias, e fraudes, que se praticam na Sardenha .
Vê- se que Dante lança sobre a Sardenha o mesmo labéo de infamia , que no
canto precedente lançou sobre Luca , somente com a differença, que as traficancias
dos Lucheses são particulares, e as dos Sardos são publicas, isto é, os traficantes de
Luca defraudam os particulares, e os da Sardenha defraudam os Principes, e as
provincias .
Voltando ao traficante Ciampolo, direi que, estando elle nas garras dos demo
nios impacientes de o dilacerar com os ganchos, como vimos, faz- lhes uma proposta,
sob astucia tão refinada, que não só os engana, senão que tambem lança a discordia
410 O INFERNO

entre dous diabos, Calabrina e Alichino, que se travam tão azedamente com as unhas,
que ambos se precipitam engalfinhados dentro do pez ardente, e emquanto os com
panheiros procuram arrancal-os de fundo com os ganchos, os dous Poetas partem,
sem d'elles se despedirem ; por isso os demonios voam atraz em busca de os agarrar ;
mas os dous Poetas os illudem , atirando -se de costas pela borda direita do dique,
e assim descem á sexta fossa, na qual os demonios da quinta fosssa não podem
metter o pé ; mas estas ultimas cousas pertencem ao canto seguinte.
Observo que entre os traficantes Allighieri não inclue pagãos , mas somente
christãos. Não é porque a traficancia não fosse considerada um crime entre os
pagãos, mas porque os traficantes são infames, e por isso o mundo não consente
que sua fama perdure, e se transmitta á posteridade : Fama di loro il mondo esser
non lasci. E por esta razão os traficantes christãos, de que fala o Poeta, são todos
seus contemporaneos.
Observo ainda que, assim como Dante se poz de parte quando Virgilio tractou
com Geryão; assim aqui faz que Virgilio interrogue o traficante Ciampolo , sem
dizer uma palavra em todo o colloquio entre ambos, nem em toda a scena entre os
diabos, e Ciampolo ; querendo d'est'arte ensinar-nos o Poeta theologo, e moralista,
que devemos tractar com soberano desprezo os traficantes de todas as especies.
Observo finalmente que o mesmo Poeta, lançando o germen da discordia entre
os diabos, quiz não menos advertir -nos de que, si alguma vez nos acharmos, por
inevitavel necessidade , na companhia de homens máos, que nos ameacem de ruina
imminente, nos será licito, para baldar- lhes os planos, e urdiduras, lançar a discor
dia entre elles, e salvar-nos do perigo, emquanto se entredevoram .
Mas agora concluiremos esta synthese, por uma pergunta, que não parecerá
ociosa : Porque razão Dante põe os traficantes a ferver dentro de um tanque de
pez ? Respondo, que a natureza da traficancia com os actos do proprio officio, tem
toda conformidade com a natureza do pez. Com effeito, essa especie de trafican
tes abusam das cousas da Republica : empregos, justiça, favor, tudo vendem por
dinheiro ás escondidas, pretendendo exteriormente passar por justos, e immaculados.
Eis os pontos de conformidade : 1.", que o dinheiro se apega ás mãos d'esses trafi
cantes, como o pez, que é pegajoso ; 2.º, porque todas as suas fraudes são urdidas
ás occultas ; 3.º, porque são diabolicas pela astucia com que são feitas; 4.°, porque
são crueis nas extorsões. Ora, devendo haver toda a conformidade entre a culpa, e
o castigo, a divina Justiça determina, que esses traficantes sejam punidos: 1.", no
lago de pez ardente ; 2.º, que estejam immersos, isto é, occultos no fundo do pez,
como occultas foram suas fraudes ; 3.º, que tenham por seus guardas, diabos tão
fraudulentos, como elles foram, e que os esfolem com seus ganchos, cono elles
esfolaram no mundo com as unhas ambiciosas as victimas da sua traficancia.
CANTO XXII

Continúa o assumpto do canto antecedente . Os dous Poetas encontram na quinta fossa grande numero de
traficantes: Entre elles figura Ciampolo de Navarra, que foi ministro do rei Thebaldo, de cujas graças, e
valimento abusou: Astucia d'este Navarrez, para escapar aos maos intentos dos demonios: Descripçás
comica de uma briga entre dous d'estes , que, se batendo, cáem no lago de pez fervente .

Já vi esquadrões de cavallaria levantar acampamento , (1 ) travar


batalha, ( 2) passar revista, (3) e algumas vezes fugir em retirada : (4)
vi fazer excursões (5) em vossas terras , ó Aretinos, (6) e devastal -as ;
vi luctar nos torneios, e correr nas justas, 7) e tudo isso vi fazer ora
ao som de trombetas, ora ao tanger de sinos, (8) ora com o rufar de
tambores, ora com signaes de castellos, e com outros meios de origem
nacional, e adventicia ; 9) mas nunca vi (10) nem cavalleiros , nem peões,
nem navio, ao signal de terra , ou de estrellas, moverem-se ao som de
charamela tão estrambotica, qual aquella de Barbariccia .
Marchavamos pois , com os dez demonios : oh, que infame com
panhia ! Mas , na egreja com os sanctos ; na taberna com os beber
rões . ( 11 )
Toda a minha attenção, porém , estava voltada para o pez fervente,
a fim de melhor conhecer a condição da fossa , e dos infelizes que
dentro ardiam submersos .
Assim como os golphinhos , estando imminente uma borrasca, ar
queiam o dorso á flor d'agua, e com este signal advertem os mari
nheiros a pôr a bom recado os seus navios ; assim alguns d'aquelles
peccadores, de quando em quando, para suavisar o seu tormento ,
punham o dorso fóra do pez, e logo o escondiam, com a rapidez do
relampago. ( 12)
412 O INFERNO

E do mesmo modo que na beira d'agua d'um fosso, as rans estam


com o focinho de fóra, occultando os pés com o resto do corpo ; assim
tambem aquelles peccadores estavam em toda a extensão da fossa,
só com a cabeça fóra do pez ; mas apenas assomava Barbariccia ,
todos se recolhiam no fundo . ( 13 )
E vi , e o coração ainda se me horripila , estar um esperando
fóra do pez, como acontece que uma ran fica fóra do pantano, em
quanto as outras fogem .
E Grafican, (* ) que estava mais proximo d'elle, agarrou-o pelos
cabellos enviscados, e o fez subir a superficie do pez, de feitio tal, que
me parecia uma lontra . (15)
Eu já sabia os nomes de todos os demonios ; ( 16) porque os notei,
quando Malacoda os escolheu ; e depois , quando todos entre si se
chamavam pelo proprio nome, ainda mais o ratifiquei na memoria .
Aquelles maldictos gritaram unisonos : « Ó Rubicante, vè lá se lhe
enterras o arpéo nas costas com tal força, que o esfoles ! »
E eu disse a Virgilio : « Mestre meu , si pódes, faze por conhecer
quem é esse desgraçado, que caiu nas garras de seus adversarios ? »
Então o meu Guia abeirou -se d'elle , e perguntando -lhe quem fosse,
respondeu : « Fui natural do reino de Navarra : ( 7) minha mãe deu-me
por servo a um gentil homem ; pois me havia gerado por obra de
um ribaldo , que deu cabo de si , e de seus bens.
« Depois passei a ser famulo do bom Rei Thebaldo : n’este ca
pratiquei traficancias, que agora estou expiando n'este lago betumi.
noso . )
E o demonio Ciriato , a quem dos dous lados da bôcca saíam dous
dentes como porco , fez-lhe sentir como um d'elles lacerava, morden
do-o ferozmente .
O rato tinha caído nas unhas de gatas crueis ! (18) Mas Barbariccia ,
apertando-o nos braços, disse aos companheiros : « Suspendei vossos
golpes, emquanto eu o retenho » .
E voltando- se para o meu Guia , accrescentou : « Si desejas saber
d'elle alguma cousa mais, pergunta-lhe, antes que os outros demonios
o es farelem .)
Então Virgilio interroga de novo o Navarrez : « Agora dize-me algo
dos outros condemnados : conheces algum que seja italiano ? » E elle
respondeu : « Pouco tempo faz que me separei de um , que foi lá d'aquėl
las vizinhanças . ( 19) Assim estivesse eu ainda com elle coberto do pez,
que não temeria nem as unhas , nem os arpéos d'estes demonios. »
N'este comenos gritou Libicoco : ( 20) « Irra, que temos soffrido de
mais ! » E, agarrando-o pelo braço com o gancho, o arrastou com tal
violencia, que lhe sacou um naco de carne !
CANTO XXII 413

Tambem Draghinazzo quiz afferrar- lhe as pernas com o arpéo,


mas Barbariccia , voltando- se por todos os lados, lançou aos compa
nheiros um olhar de ameaça .
Aquietando- se os demonios um pouco, Virgilio perguntou sem de
mora ao Navarrez, que ainda olhava para a sua ferida : « Quem foi
aquelle de quem dizes que te separaste em má hora para vires nadar
no pez ?» Respondeu : « Foi frei Gomita, (21) aquelle de Gallura, (22)
vaso de todas as fraudes, que teve em suas mãos os inimigos de seu
senhor, e os tractou de modo que todos o louvam . Recebeu o dinheiro ,
que lhe offereceram , e os poz em plena liberdade, (23) como elle diz ; e
tambem n'outros empregos foi, não mediocre, mas soberano trafi
cante .
« Com elle conversa Dom Miguel Zanche (24) de Logodoro, e as lin
guas de ambos não se cansam de falar das traficancias, que se com
mettem na Sardenha . ))
Dizendo isto exclamou : « Ai! Vède aquelle demonio que range os
dentes ! Mais teria eu que dizer ; temo, porém , que elle se prepare
para me garfar ».
E o grande capitão Barbariccia, voltando-se para Farfarello, que
engatilhava os olhos para arpear o misero Navarrez, disse-lhe : «Vae-te
d'aqui , passaro malvado » . (25)
Depois , o espavorido Navarrez recomeçou , dizendo a Virgilio : «Si
desejaes ver, ou ouvir Toscanos, ou Lombardos, os farei vir : mas é
necessario que os demonios estejam um pouco afastados, de modo que
os meus companheiros não possam temer suas vindictas . E eu , assen
tando-me n'este mesmo logar, por um , que sou , farei vir sete , ( 26) com
um assobio, como costumamos fazer, quando algum bota a cabeça
fóra do pez ). (27)
Ao ouvir tal proposta, Cagnazzo levantou o nariz, e sacudindo a
cabeça, disse aos companheiros : « Ouvistes vós a malicia, que elle está
ideando para lançar-se em baixo ? »
Mas o Navarrez, que era riquissimo em fraudes, respondeu : « Cer
tamente, muito malicioso sou eu, (28) quando procuro aos meus com
panheiros maior tristeza» .
Alichino não se manteve forte na negativa , e a despeito da oppo
sição dos outros, disse ao Navarrez : « Si pensas em lançar-te no pez,
saibas que não seguirei atraz de ti a galope, mas, batendo as azas ,
alcançar-te-hei antes que mergulhes. (29) Deixa pois a summidade d'este
alto dique, e a borda externa nos seja escudo, para fazer a prova , si
tu só vales mais do que nós » . (30)
Ó tu, que lês, ouvirás um novo jogo. (31) Cada um dos demonios
encaminhou-se para descer á opposta falda d'aquelle dique ; (32) e o
414 O INFERNO

primeiro, que seguiu foi aquelle , que se tinha mostrado mais reni
tente .
O Navarrez aproveitou bem o seu tempo ; firmou os pés em terra ,
e, n'um ápice, executou o salto, livrando-se por tal guisa dos máos
designios dos demonios . ( 33)
Cada um dos demonios ficou fulminado de despeito , e vergonha
com a logração ; porém mais que todos Alichino , que foi a causa do
soffrido engano ; e por isso logo abalou gritando : « Estás preso !» (34 )
Mas pouco lhe valeu ; porque as suas azas não lhe deram a mesma
velocidade, que o temor havia dado ao Navarrez, o qual afundou -se no
pez, e Alichino confuso , e indignado, voltou voando com o papo para
cima.
Não é de outro modo que o pato mergulha subitamente n'agua,
quando se lhe approxima o falcão, que descontente , e cansado revoa
aos ares .
Calabrina, ardendo em furia com a burla, seguiu atraz voando ,
satisfeito de haver escapado o Navarrez, e de ter motivo de brigar
com Alichino .
E apenas o traficante desappareceu, Calabrina voltou as unhas
contra Alichino, e com elle se agadanhou sobre o lago do pez fer
vente .

Mas Alichino foi um verdadeiro gavião adestrado no afferrar com


as garras Calabrina, e por fim ambos caíram dentro do inflammado
betume .
O calor obrigou-os a desengalfinhar-se ; mas era impossivel ergue
rem - se, tão envisca das tinham as azas !
Barbariccia afflicto, com os outros da sua decuria, por causa d'esta
scena , mandou que quatro d'elles voassem atravez da outra costa da
fossa, armados de ganchos ; e com presteza desceram de ambos os
lados ao logar conveniente , d'onde estenderam os ganchos, e puxaram
á superficie do pez os dous companheiros breados, já cozidos. E nós
os deixamos assim calafetados. (35)
COMMENTARIOS AO CANTO XXII

O signal de partir, feito por Barbaric ( 3 ) e far lor mostra. Revista de mos
cia aos seus companheiros, offereceu tra. Outra operação militar, em que as
campo ao Poeta para dar principio gran tropas se movem ao som de tambores,
dioso, e sublime ao presente canto, onde, e outros instrumentos.
pela enumeração de varios signaes, (4) E talvolta partir. Movimento, que
faz mover esquadrões, ou navios, des se chama retirada, ao qual tambem se
criptos em versos tão bellos, tão cheios dá signal com tambores.
de harmonia, que suspendem engenho ( 5 ) Corridor vidi. Soldados, que fazem
samente o animo do leitor, até que correrias pelo campo inimigo, devastan
chega a penetrar, e conhecer o ponto do, depredando, etc.; mas a correria
onde vae bater a sua intenção. Muitas com o fim de devastar, e depredar de
bellezas estão derramadas n'este canto , ve - se antes entender sob o seguinte vo
não bellezas d'aquellas, que costumam cabulo : gualdane. Gualdane, diz Butti,
agradar ao maior numero , mas sómente a são cavalgadas, on pelotões de soldados,
poucos, que as procuram na natureza, que algumas vezes sáem pelo terreno dos
d'onde o Poeta as desentranhou, re inimigos a roubar, incendiar, e fazer
vestindo - as de côres tão simples, e for presioneiros. Assim tambem glozam
mosas, quaes convem ao seu objecto Landino, Vellutello, e Daniello. Por
( Biagioli). corredores (corridori) mais propriamen
( 1 ) l' vidi già cavalier mover campo. te devemos entender pequenas partidas
Enumera aqui varias acções, que os de soldados volantes, que talam o terri
homens costumam practicar por signaes, torio inimigo em todas as direcções.
e instrumentos reguladores ; mas acaba N'este sentido usa Petrarcha , nos Ho
por dizer, que nunca viu instrumento mens Illustres: Sifacerono continuamente
tão estranho, e tão estrambotico como a assalti el piccole bataglie da ' corritori
charamela com que Barbariccia deu si degli osti.
gnal de partir á sua decuria : o leitor (6 ) O Aretini. Dante apostropha aqui
comprehendeu que charamela , ou trom os Aretinos, porque a cidade de Arezzo
beta é essa ... foi n'aquelles tempos assás molestada de
( 2 ) E cominciare stormo. Stormo aqui correrias, e devastações militares. Lan
quer dizer combate, como se vê n'aquelle dino diz até que ella foi quasi destruida
passo de Villani : Avendo perduta Creusa ( quasi desolata ).
sua moglie allo stormo de'Greci. Ha (7) Ferir torneamenti. É quando um
vendo perdido sua mulher Creusa no esquadrão bate -se com outro á espada,
combate dos Gregos . representando uma especie de batalha.
416 RNO
INFE

Giostra, é quando um homem bate - se ( 16) E trassel su, che mi parve una
com outro corpo a corpo, e representa lontra. Este trazel-o acima puxado pelo
uma batalha singular. O primeiro acto gancho faz com effeito arripiar as carnes !
chama -se torneio ; o segundo justa .Eram Todavia é bellissimo quanto á poesia, e
os espectaculos dos povos republicanos ao effeito scenico . Lontra é um animal
da edade media. Como toda a cidade amphibio, e preto, pouco menor que o
era rival uma da outra, e muitas vezes cão. Vive nos lagos, e nos seus contor
vinham as mãos, era natural que seus nos. Em Mantua ha muitas, e dizem que
divertimentos consistissem n'estes exer boas, para se comer.
cicios. ( 16 ) Io sapea già di tutti quanti il nome.
(8) ... campane. As communas, que, Eis a razão por que o Poeta sabia , que
em vez de trombetas, e tambores, usa o garfador era Graffiacan . Para conhecer
vam de um sino posto em cima de uma uma pessoa são necessarias duas cou
torresinha de madeira, conduzida por sas : ter na mente a sua physionomia
um carro de bois, ou de asinos. bem distincta, e saber-lhe o nome. Ora
(9) ...cenni di castella . Tambem os Dante sabia estas duas cousas, quanto
castellos tinham os seus modos de avi aos diabos ; porque, quando Malacoda
sar os soldados do presidio, que eram os escolheu, e os consignou a Barbaric
fumaças de dia , e fogos de noite . cia, lhes notou bem as feições : depois,
( 10) Nè già cin si diversa ... Refe quando os mesmos diabos entre si se
re-se ainda á estranha , e ridicula chara chamavam pelo nome reciprocamente,
mella com que Barbariccia rompeu a de novo lhe notou os nomes, e as physio
marcha . nomias.
( 11 ) ...ma nella chiesa. Proverbio, ( 17) l' fui del Regno di Navarra nato.
que significa, que o homem acha sem Este condemnado chamou - se Ciampolo
pre a companhia apropriada ao logar ou Giampolo, e foi filho de um ribaldo
para onde vae : por isso no Inferno não destruidor de si, e de seus bens ( Dis.
pode deixar de encontrar diabos por truggitor di sè, e di sue cose), o qual
companheiros. desbaratando todo o seu patrimonio,
( 12) ... pur col muso fuori. Esta com deixou-o na miseria ; por isso foi posto
paração, e a antecedente são de eviden pela mãe ao serviço de um barão addi .
cia, e belleza incomparaveis! (Bianchi) . cto á côrte de Thebaldo II, Rei de Na
( 13 ) Uno aspettar ...« Vi um permane varra .

cer fóra do pez ao approximarem- se os A industria de Ciampolo foi tal, que


diabos, como acontece algumas vezes, em pouco tempo se tornou familiar do
que se vê uma rā permanecer fóra do Rei ; ao qual se fez tão acceito, que
tanque , emquanto por alguma causa as o encarregava dos mais importantes
outras mergulham» . Dante é incontrasta negocios ; mas não sabendo refrear sua
velmente um observador sem egual da cobiça, commetteu as maiores trafican
natureza ! Em algumas das suas pere cias, vendendo por dinheiro os cargos ,
grinações observou porventura n'este e empregos da competencia de seu au
ou n’aquelle lago da Italia que uma rā gusto senhor ( Fraticelli ) .
ficava fóra da agua , quando as outras Não soube refrear sua cobiça , porque ,
por qualquer motivo mergulhavam . como dizTerencio, onines sumus deterio
Quem faria caso d'isto, senão Dante ? E res licentia. ( Landino). Ribaldo, que os
com que habilidade fina estabeleceu antigos chamavam Rubaldo, como rubel
este engraçado simile , que estamos lo em vez de ribello. A quem dirigia
admirando ? mal alguma fazenda costumava -se ou
( 14 ) Graffiacan ... Como sabia Dante, tr'ora applicar este proverbio : oh ch'è
que este diabo era Graffiacan ? Elle o roba di rubello ! Porque as cousas con
dirá no terceto seguinte . fiscadas aos rebeldes vendiam -se a fic
COMMENTARIOS AO CANTO XXII 417

collo, isto é, queimavam - se, isto é, ven no . Recebeu d'elles dinheiro, e pol - os
diam -se mal ( Biaggioli). Distruggitor di em plena liberdade .
sè, etc. Os vicios não sómente destroem ( 24 ) Usa con esso donno Michel Zan
a fazenda, mas tambem a pessoa do de che. Donno, senhor, do latim barbaro
lapidador, e a proposito da glutoneria é domnus, syncope de dominus. Miguel
muito conhecido aquelle dicto de Cice Zanche, governador do Julgado de Lo
ro : plures occidit gula quam gladius. A godoro. Alasia ou Adelasia , filha de
gula mata mais gente que a espada. Mariano III de Logodoro, a qual em
( 18 ) Tra male gatte era venuto il sor primeiras nupcias havia esposado Bal
co. Bellissima comparação do rato caído bo II de Gallura, enviuvando depois de
nas unhas das gatas ! Estes modos pro alguns annos, casou com Enzo, filho
verbiaes, diz Biagioli, usados nas mais natural do Imperador Frederico II , que
nobres escripturas das tres mais bellas lhe deu em dote o julgado de Logodo
linguas, grega, latina, e italiana, colloca ro, que era a provincia mais extensa da
dos a tempo e logar, de plebeus se tor Sardenha. Morreu essa senhora em 1245,
nam nobres, e esparzem nos escriptos e não obstante haver em seu testamen
um tão gracioso lume, que a sua natu to instituido seu herdeiro o Papa Gre
ral obscuridade desapparece. gorio IX, Enzo, que pelo Imperador seu
( 19) Poco è da un che fu di là vicino. pae tinha sido nomeado rei da Sarde
Entende -se da Sardenha, ilha vizinha da nha, occupou os julgados de Logodoro,
Italia , da qual foi natural fr. Gomita e de Gallura, e os conservou até que
que, como em seguida manifestará, era em 1249, passando a guerrear na Italia,
aquelle de quem Ciampolo pouco antes ficou prisioneiro dos Bolonheses. Então
se tinha separado. Miguel Zanche, seu ministro, começou
(20) E Libicocco ... Tão furiosa é a a governar em seu nome; e esposando
gana de offender n'aquelles demonios, Bianca Lanza, mãe de Enzo, e da qual
que a menor demora lhes parece um já era amante, colorou melhor seus
seculo ; e por isso, a despeito da prohi designios ambiciosos, e até o fim gover
bição de Barbariccia, atiram -se de novo nou o paiz iniquamente por sua pro
sobre o desgraçado Ciampolo ! pria conta . Veja - se o canto xxx, Ill, V.
( 21 ) ... Fu frate Gomita. Este Gomida, 134, e seguintes ( Fraticelli ).
natural da Sardenha, foi frade, mas não Pedro de Dante diz que Miguel Zan
sabemos de que Ordem : conseguiu ga che , morto o Rei Enzo, casou com a
nhar as boas graças de Nino dos Vis viuva d'elle, da qual teve uma filha, que
contis de Pisa (Purg., canto viii, v. 46, esposou a Branca d'Oria de Genova,
e seguintes) governador ou presidente que depois o matou n'um banquete .
do Julgado de Gallura na Sardenha, de Não discorda Boccaccio de Pedro de
cuja confiança abusou , traficando com Dante na narração d'este facto, senão
os cargos, e officios publicos, mediante em pretender que Miguel Zanche se
toda a sorte de fraudes. Colhendo á casasse pelo contrario com uma filha do
mão alguns inimigos de seu senhor, deu Marquez Obizzo d'Esti .
lhes escapula : mas Nino, informado de (25 ) Fatti 'n costà, malvagio uccello .
sua infidelidade, mandou -o enforcar. Barbariccia chama Farfarello malvado
( Fraticelli ) . passaro , porque tem azas, como todos
( 22 ) ...Gallura ... Era um dos quatro os demonios. .

julgados, em que (n'aquelle tempo ) divi ( 26 ) Per un ch'io son , ne farò venir
dia-se a ilha da Sardenha : Gallura, Lo sette. Em vez de um , que eu sou , farei
godoro, Cagliari, e Arborca. 23 Vasel que venhanı sete. Sete, numero deter
d'ogni froda : receptaculo de todas as minado pelo indeterminado.
fraudes. ( 27 ) Di fare allor che fuori alcun si
( 23 ) Denar si tolse, e lasciolli di pia mette . Isto é, quando algum condemna
27
NO
418 O INFER

do põe a cabeça fóra do pez, e vê que olhos ao dique, para esconder-se detraz
não ha em torno demonios, que os es d'elle ; e primeiro que todos voltou os
preitem, assobiando avisa os companhei olhos Calcabrina, que fora o mais con
ros, que podem subir á superficie do trario , ou renitente em approvar a pro
tanque, a fim de receberem algum alli posta de Ciampolo ; mas voltou os olhos
vio no seu tormento . com outro fim , como se verá em seguida.
(28 ) ... Malizioso son io troppo.Modo (33 ) Salto, e dal proposto lor si sciol
ironico de falar, como si dissesse : « Na se. Isto é, saltou , e livrou - se da proposta,
verdade, muito malicioso sou eu, que que tinha feito aos diabos de fazer vir,
para satisfazer o vosso desejo, vos pro por meio do assobio , os Toscanos ou
porciono occasião de poderdes atormen Lombardos, que estavam dentro do pez .
tar muitos dos meus companheiros ! Em outras palavras : não esperou que
( 29 ) Se tu ti cali,... Querendo dizer: os diabos se escondessem detraz do
« Si tu desces ao fundo do pez, eu não dique, mas apenas volveram os olhos,
só tenho pés, como tu tens, mas tenho Ciampolo fez o salto , que já estava
tambem azas ; e por isto, si tu tentares preparado, emquanto ouvia o bom Ali
fugir, não te seguirei simplesmente ga chino .
lopando com os pés : batendo porém as ( 34) Tu se’giunto. Como ficou dito
azas, voarei por sobre o tanque do pez, no texto, esta bravata não lhe aprovei
e te asseguro que hei de alcançar-te, tou ; porque o medo de Ciampolo teve
antes que n'elle mergulhes». azas mais velozes do que as de Alichino,
(30) Lascisi 'l colle, e sia la ripa scu o qual no momento de afferral- o, o tra
do ... Isto é, si deixas o alto do dique, ficante submergiu - se no tanque do pez.
onde estamos, e vás para o outro lado, Com razão diz Biagioli, que na de
de modo que o mesmo dique nos es scripção de toda esta scena burlesca o
conda aos condemnados , veremos si tu Poeta desenvolveu o mais bello artifi
só vales mais do que nós. cio , que se pode encontrar na poesia !
Em summa, para tornar mais intelli Accrescenta, que Dante imaginou este
givel este enredo, reproduzirei estas pa incidente da briga dos demonios, não
lavras de Bianchi : « O traficante Ciam só para deleitar-nos, e demonstrar a
polo , vendo -se nas unhas dos demonios, natureza dos traficantes, e indole dos
promette -lhes que , si elles si affastassem mesmos demonios, como para significar
um pouco d'ali, elle, sem mover -se do o modo mais natural, e simples porque
seu logar, faria saír fóra do tanque do desembaraçou-se d'elles, aproveitando
pez uma grande quantidade de trafican se da rixa travada entre si, para não
tes, a fim de que sobre elles podessem ser victima de suas vindictas, que não
satisfazer o prazer da sua vingança. Ca poderia evitar de outra maneira, sem o
gnazzo , e parece tambem que os outros auxilio divino.
demonios, adivinhando o fim malicioso ( 35 ) E noi lasciammo lor così 'impa
da proposta, não queriam retirar- se da cciati. É um magnifico remate o deixar
summidade do dique ; mas Alichino, enredados no tormento dos homens
contra a opinião dos companheiros, fraudulentos os mesmos demonios frau
acceita a proposta de Ciampolo, fazen dulentos ! O ver estes vencidos ou lo
do-lhe a ameaça , que já vimos. grados por aquelles, e isso quando os
(31 ) O tu , che leggi, udirai nuovo lu ditos demonios queriam fazer pirraças
do. Como si dissesse: « O leitor, vás malignas aos dous Poetas ! A Providen
ouvir uma nova astucia, ou tramoia cia não deixa nunca de ajudar a quem
nunca ouvida ! » n'ella confia ! Faz, que aquelles mesmos,
( 32 ) Ciascun dall'altra costa gli occhi que querem opprimir o justo, dilaceran
volse. Cada um diabo voltou os olhos do - se entre si , deixem escapar ás suas
do outro lado, isto é, do pez voltou os mãos a victima, que tentavam immolar.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXIII

Tomados de medo os dous Poetas de serem perseguidos pelos demonios, des


cem da borda esquerda á summidade da encosta ; chegados ali, olharam para traz,
e vendo que os demonios effectivamente vinham voando para agarral-os, Virgilio
com Dante sobre o peito lança- se resupinado ao fundo da borda direita da encosta,
e chegam assim ao pavimento da sexta fossa, onde são punidos os hypocritas,
aquelles que enganam fingindo religião, aquelles que se ostentam fieis, piedosos,
devorados de zêlo christão, e são aliás incredulos, impios, que sob a mascara da
religião, não procuram outra cousa, senão saciar suas paixões avaras, ambiciosas,
vingativas, e invejosas. Tão impia, e malefica é a hypocrisia, quanto sancta, e bene
fica é a Religião. Os hypocritas crucificaram Christo Senhor Nosso , e continuamente
crucificam o christianismo. É facil conhecer como a fraude dos hypocritas seja
peior que a fraude dos traficantes.
O supplicio dos hypocritas consiste em andarem no Inferno vestidos de capas
pesadissimas, que por fára são de ouro, ou têem a côr de ouro, e por dentro são de
chumbo vilissimo. Como n’este mundo andaram cobertos de pelle de innocente
cordeiro, sendo lobos rapaces, assim no Inferno parecem vestidos de ouro pre
cioso, quando em realidade andam cobertos do mais vil de todos os metaes, cujo
peso os estafa, e vence .
Entre estes hypocritas, manifestam -se a Dante dous frades Gaudentes, ou Go
dentes de Bolonha, Catalano dos Malvotis, e Loderingo dos Andolos, a historia
dos quaes é preciso conhecer, para melhor penetrar no sentido dos tercetos d'este
canto, que a elles se referem : A Communa de Florença, desorientada no meio de
tanta desordem , desejando restituir a paz á sua cidade, e considerando que ella
dividida em dous grandes partidos, Guelphos, e Gibellinos, difficilmente poderia
encontrar em seu seio um homem, que dirigisse com toda a imparcialidade as redeas
do poder publico, pensou em nomear dous, um Guelpho, e um Gibellino, revestidos
de auctoridade egual, como eram os dous consules da Republica Romana , um
tirado da nobreza, outro do povo . Mas, para que esses dous governadores fossem
completamente exemptos de paixões partidarias, assentou que devia escolher dous
cidadãos, que não fossem florentinos.
N'este intuito, a Communa de Florença convidou, em 1266, a virem tomar
conta do poder supremo da cidade, os dous referidos frades, que eram reputados
sanctos ; sendo Calatano notorio Guelpho, e Loderingo notorio Gibellino ; mas por
420 O INFERNO

desgraça eram dous refinados hypocritas (diz o Poeta ) . Aconteceu que, entrando
no exercicio da auctoridade suprema , o Guelpho Calatano ganhou sem demora o
animo do Gibellino Loderingo, e desde logo ambos perseguiram implacavelmente
os Gibellinos, demolindo até os fundamentos as suas casas, sobretudo as dos
Ubertis, em uma rua, que se chamava Gardingo.
Estes dous frades, contra a regra geral, não têem vergonha de se descobrir a
Dante , com o que o Poeta nos quer dizer que estes frades são corroidos do vicio
da fraude. Na mesma fossa são punidos Caiphaz, e Annaz, e os outros do Synedrio,
que condemnaram Christo á morte : como foram monstros de hypocrisia, são cas
tigados com pena extraordinaria : jazem crucificados no meio do caminho, e sobre
cujos corpos passam, pisando os pesados hypocritas – pesados pelas capas de
chumbo que carregam .
D'estes dous frades finalmente, ouve Virgilio que está quebrado tambem o outro
rochedo, ou todos os outros rochedos sobre a sexta fossa, por isto conheceu a
mentira do demonio Malacoda, que lhe havia dito, que somente a ponte d'aquelle
rochedo era quebrada no arco sexto. Por sobre estes montões de fragmentos,
trepam, engatinhando, os dous Poetas , e vam sair sobre est'outro rochedo, isto é,
alem da ponte quebrada ; podendo assim pelo dito rochedo seguir seu caminho
até o poço .
Ninguem se admire de que Virgilio se ache enganado pelo demonio Malacoda, e
que tenha necessidade de perguntar a frei Calatano o caminho, que conduz ao
centro, depois de ter dito a Dante mais de uma vez que sabia esse caminho ; porque
quando Virgilio foi ao centro do Inferno evocar um espirito por artes da Maga
Erictto, não tinha acontecido ainda o terremoto por occasião da morte de Christo,
e por conseguinte não estavam ainda rotos os arcos dos rochedos sobre as fossas
de Malebolge.
Não se fala de pagãos n'esta fossa dos hypocritas : era certamente peccado
entre elles o fingir religião, e sob esta mascara enganar ; mas seria cousa insulsa,
para nós christãos, ver nas penas infernaes impostores de uma religião falsa ; e por
isso o Poeta destramente d'elles não tracta. Entre os hypocritas elle não nos mostra,
senão frades; porque a hypocrisia, si é peccado nos christãos leigos, é peccado
muito mais grave nos frades, que professam a quinta essencia, digamos assim, da
Religião.
Os dous frades de que ora nos occupâmos pertenceram a uma Ordem Cavallei
resca, instituida no tempo de Urbano IV para combater contra os infieis, e violado
res da justiça. A sua denominação propria, foi de Frades de Sancta Maria ; mas,
ou porque viviam elles cada um em sua casa, com a propria mulher, em esplendido
ocio , ou porque gosavam de muitos privilegios, e exempções, foram sobrenomea
dos Gaudentes ou Godentes, alegres. A que decadencia moral, e politica não baixou
a Republica Florentina, que, não sabendo, ou não podendo já governar -se, passou
pela humilhação de virem estrangeiros governal-a, e que estrangeiros ? dous frades
devassos, hypocritas até á medulla dos ossos !
Não é só o patriotismo indignado do Poeta, que lhe arranca do peito estes vitu
perios sangrentos contra os dous desgraçados frades : é tambem, e sobretudo , a sua
moral severa, que flagella na pessoa d'elles o vicio da hypocrisia, que tanto damno
causou em todos os tempos no mundo ! Quanto fosse derramado, e dominante o
vicio da hypocrisia antes do christianismo, poucos o sabem . Todas as nações, ex
cepto os Hebreos, eram idolatras. Os Hebreos eram poucos, não passavam de cerca
de tres milhões de almas . Não obstante eram corruptos, e grande hypocrisia rei
nava entre elles, maxime no seu sacerdocio, nas suas corporações religiosas, nos
seus Reis, e grandes das côrtes. Para se conhecer qual fosse a influencia funestissima,
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXIII 421

que a hypocrisia exercia entre os Judeus, não é preciso mais do que recordar as
exprobrações acerbas, que a dulcissima bocca do Redemptor vibrava contra a raça
de viboras dos hypocritas ! Esta chaga, a despeito dos progressos do christianismo,
não tem desapparecido do seu seio, e nas sociedades corrompidas a hypocrisia se
torna endemica ; porque a hypocrisia, que Dante denominava improbidade moral,
a mais offensiva a Deus, e prejudicial aos homens, se desenvolve, cresce, e avulta,
á proporção que a doutrina sancta de Christo desmedra nos corações.
CANTO XXIII
Afastando -se com destreza os dous Poetas da companhia dos demonios, emquanto estes se occupavam de
arrancar do fundo do pez os dous companheiros, proseguem sós o seu caminho até que, receiando serem
perseguidos por elles, descem de costas pelo declivio da rocha a sexta fossa, onde encontram os hypocri
tas vestidos de pesadas capas de chumbo exteriormente douradas: Falam os Poetas com dous frades Gau
dentes Catalano, e Loderingo : Véem crucificado na estrada Caiphaz : Ouvem de um dos frades o modo por
que podem sair da fossa. Continuam sua viagem.

Nós dous, já livres da fera companhia dos demonios, proseguia


mos calados, sós , ( 1) um atraz do outro, (2) como os frades menores
andam pelo caminho .
A presente rixa de Calcabrina, e de Alichino despertou-me a lem
brança da fabula , em que Esopo (3) falou da rā, e do rato : porque as
palavras mo e issa (4) não se assimilham mais, do que se assimilham
aquella fabula, e esta rixa, si se confrontam com attenção o principio,
e o fim (5) de ambas .
E como de um pensamento nasce outro, (6) assim d'aquelle meu
pensamento nasceu outro depois, que duplicou o terror, que eu havia
tido antes .
Eu discorria assim : « Aquelles diabos foram escarnecidos por nossa
causa, com tanto damno, e ludibrio, que os devem ter posto em fel :
ora, si á sua natural malvadez se ajuncta a ira , o furor, virão atraz
com instinctos mais crueis para comnosco, do que os do cão contra a
lebre, que elle afferra com os dentes) . (7)
Eu já sentia se me irriçarem de medo os cabellos por todo corpo,
e tinha os olhos attentos para a retaguarda , quando disse a Virgilio :
«Mestre : Si com toda a pressa não escondes a mim , e a ti, temo que
sejamos fisgados pelos Malebranches: a esta hora já correm seguindo
a nossa pista ; tenho -os tão presentes á imaginação, que já lhes ouço
o tropel » .
424 O INFERNO

« Si eu fôra um espelho, (8) respondeu , não receberia melhor as


tuas feições externas, do que a tua imagem interna se reflecte na
minha mente .
« N'esta occasião os teus pensamentos estavam accordes com os
meus: (9) o mesmo terror, que os teus te inspiravam , tambem os meus
me inspiravam, de modo que entre nós ambos ha um só parecer, e
um só expediente a seguir.
« Si a borda direita d'esta encosta é tão inclinada, que possamos
descer á sexta fossa , escaparemos sem duvida á perseguição, que se
nos afigura . »
Apenas acabava de me annunciar esta sua resolução, eis que vi os
demonios virem , não muito longe, com as azas tezas para nos empol
gar .
Em continenti o meu Guia me tomou nos braços, (10) qual mãe
desvelada, que , advertida pelo rumor das chammas de um incendio
vizinho , toma seu filho, e foge, sem se demorar ao menos emquanto
veste uma camiza , cuidando mais da salvação d'elle, do que do pro
prio pudor .
E, tendo-me assim nos braços, abandonou-se da summidade da
rocha, e foi-se escorregando resupinado pelo declivio da encosta , que
fecha um dos lados da sexta fossa .
A agua não corre jamais com tanta velocidade pelo tubo, para
mover a roda da azenha, ( 11 ) quando ella mais se approxima das
palas , (12) quanta foi a rapidez com que o meu Mestre se deslizou por
aquelle precipicio, levando -me sobre o peito , mais como seu filho, de
que como seu companheiro .
Mal tocou com os pés no fundo do abysmo, chegaram os demo
nios á summidade da rocha, d'onde haviamos descido . Mas ahi já não
havia que receiar d'elles , porque a alta Providencia, que os constituiu
ministros da quinta fossa, tolheu-lhes toda a faculdade de ultrapas
sal -a. ( 13)
No fundo d'esta fossa vimos gente colorida , (14) que gyrava cho
rando a passos lentos, e parecia no semblante cansada, e vencida . (15)
Carregavam capas com capuzes tão baixos, que lhes cobriam o
rosto , e eram talhadas pelo molde d'aquellas de que usam os monges
em Colonia . ( 16)
Eram douradas por fora de modo que illudiam ; ( 17) mas por den
tro eram todas de chumbo , e tão pesadas que , em comparação d'ellas,
palhas as que Frederico II punha sobre os hombros dos cri
minosos. ( 18)
Oh manto eternamente fatigante !
Voltámos ainda d'esta vez á esquerda , andando com aquelles des
CANTO XXIII 425

graçados, e sempre attentos ao seu triste pranto. Mas pelo peso das
capas marchavam tão devagar que, a cada instante tinhamos novos
companheiros . (19)
Mas porque levavam os rostos cobertos , eu disse ao meu Guia :
« Faze por discriminar algum, que se dê a conhecer por acções , ou
por nome, lançando, mesmo de caminho, a vista em torno » . (20)
E um d'elles , que ouviu a fala toscana, gritou atraz de nós : « Sus
pendei os vossos passos , ó vós , que correis tão rapidos por esta re
gião escura ! (21) Talvez que alcances de mim o que desejas » . (22) Então
Virgilio voltou-se, e me disse : « Espera (23) aquelle, e depois vae lenta
mente , segundo seu andar» .
Parei, e vi dous, que mostravam no rosto grande desejo (24) de
achegar-se a mim . Mas a pressão das capas, e a estreiteza do cami
nho lhes difficultavam o passo .
Quando se approximaram de nós , olharam -me de soslaio, (25) sem
dizer palavra. (26) Depois, volvendo-se um para o outro, diziam entre
si : « Este, pelo respirar, parece vivo, (27) e, si são mortos, com que
privilegio andam por aqui sem a plumbea capa ? »
Em seguida me disseram : « O toscano ! Tu, que vieste ao colle
gio (28) dos tristes hypocritas , si não te despraz, declara-nos quem és ? »
E eu a elles : « Nasci, e criei-me na grande cidade, (29) que jaz nas
margens do bello rio Arno , (30) e estou aqui com o corpo , que sem
pre tive . Mas quem sois vós , de cujas faces distilla tanta dor, quanta
estou vendo? (31 ) E qual é a vossa pena , que tanto phosphorea?» (32 )
E um me respondeu : « Estas capas sobdouradas são de chumbo (33) ,
e tão grossas, que o seu peso faz assim ranger as suas balanças. Nós
dous fomos frades Gaudentes, (34) e Bolonheses : eu fui chamado Ca
talano, e este Loderingo : (35 ) tua terra constituiu -nos lá em auctoridade
suprema, segundo seu costume de escolher homens estrangeiros, para
conservar a sua paz, e nós correspondemos aos seus votos, conforme
ainda hoje apparece pelas ruinas em torno de Gardingo . »
Eu prorompi : « О frades ! os vossos castigos ... (36)mas não acabei
a phrase, porque surgiu-me aos olhos um , que estava crucificado em
terra com tres estacas . (37)
Quando me viu estorceu-se todo, assoprando na barba (38) com sus
piros. E o frade Catalano, advertindo que eu o olhava com attenção,
disse-me : « Aquelle crucificado, que estás vendo, aconselhou aos phari
scos que era necessario fazer morrer um homem para salvar o
povo . (39)
« Como vês, está nu , e atravessado no caminho ; e qualquer de nós ,
que passa , é necessario que lhe faça sentir primeiro quanto pesa cada
um .
NO
426 O INFER

« E assim estendido n'outro ponto da fossa está Annaz, seu sogro ,


e outros do Synedrio, que foi a origem funesta dos males eternos dos
Judeos » .
Vi então Virgilio maravilhado (40) do tormento, que padecia aquelle,
que estava tão vilmente estendido em cruz no exilio eterno .
Depois fez elle esta pergunta ao frade: « Si te é possivel, informa
nos, si ao lado direito da fossa (41) ha alguma abertura , por onde nós
dous possamos saír, sem precisarmos que aquelles anjos negros (42)
nos venham tirar d'este abysmo ?»
O frade respondeu de prompto : « Mais proximo do que não espe
ras , ha um rochedo, (43) que parte da grande circumferencia do circulo
oitavo, e atravessa todas as horriveis fossas até o poço central, salvo,
si está roto, e o não cobre alguma ponte . N'esse caso , podereis subir
por aquelle montão de ruinas, que é baixo na borda , e alto no fundo,
e por isso facil de galgar.
Virgilio esteve com a cabeça inclinada um pouco, (44) e depois me
disse : « Contava falsamente a cousa aquelle, que lá na quinta fossa ar
peia os peccadores ! »
E o frade accrescentou : « Eu ouvi já dizer em Bolonha (45) que o
Diabo é um poço de vicios, entre os quaes o ser enganador, e pae
da mentira » .
Após isto, o meu Guia, mostrando no rosto alguma turbação de
colera, partiu a largos passos, para recuperar o tempo perdido ; por
esta razão me separei dos dous frades carregados das suas pesadas
capas, seguindo as pegadas dos caros pés do meu Mestre.

H
COMMENTARIOS AO CANTO XXIII

( 1 ) Taciti, soli, senza compagnia. significa agora . São pois duas palavras
Taciti, silenciosos; e porque silencio lombardas synonymas .
sos ? Porque iam pensando no aconteci ( 5) Principio e fine ... Quer dizer,
do, e ao mesmo tempo meditando no que : assim como a rā, machinando con
modo de se salvarem dos diabos, Quem tra o rato, cairam ambos nas garras do
teme , e pensa, não fala. Soli, sós, sem milhafre ; assim tambem Calabrina, ma
nenhuma guia, porque Virgilio, em tal chinando contra Alichino, caíram ambos
circumstancia, não sabia nada ; era como dentro do pez. O simile não pode ser
se não fosse guia. inais perfeito .
... senza compagnia ; porque os dia (6 ) E come l' un pensier dell'altro
bos, que .Barbariccia lhes havia dado scoppia. Por associação de idéas um pen
por companheiros, os tinha deixado por samento desperta outro, que tem relação,
causa da briga dos dous diabos. e affinidade com o primeiro, como da
(2) ...ľ un dinanzi e l'altro dopo. causa , que se pensa, facilmente se passa
Um ía atraz do outro, como vão os a pensar no effeito . Dante allude ao te .
Franciscanos, não pela cidade, mas pela mor que tinha tido sempre d'aquelles
vereda nos campos, quando sáem ás diabos : a similhança dos casos lhe fa
esmolas. zia temer que o resultado fosse o mes
(3) Volto era in su la favola d'Isopo. mo, isto é, que elle, e Virgilio tivessem
Dante caminhando, e reflectindo no a sorte da rā, e do rato .
caso dos dous diabos caídos ambos (1 ) Che cane a quella levre ch ' egli
dentro do tanque de pez, confrontava - o acceffa. O galgo sentindo no nariz o
com outro narrado em uma fabula de faro da lebre, reforça a carreira com
Esopo. A fabula é esta : Querendo uma toda a avidez de aboccal-a. Acceffare,
rā afogar um rato, se lhe offereceu para afocinhar, proprio dos brutos. Prender
transportal- o nas costas ao outro lado com o focinho. Toma aqui focinho pela
de um ſosso ; mas emquanto cogitava no bocca, e pela bocca os dentes.
modo de executar o seu perfido desi (8) ... S ' io fossid'impiombato vetro.
gnio, veiu um milhafre, que aferrou (Azougar os espelhos). Como si disses
ambos, e os devorou . No tempo de se : « Si eu fosse um espelho, que é
Dante attribuia-se esta fabula a Eso . feito de chumbo envidraçado, não retra
po ; mas o seu auctor é incerto (Frati taria em mim tão perfeitamente a tua
celli) . imagem externa (o semblante) , como
(4) Chè più non si pareggia mo e issa. retrato, e esculpo ( impetro ), a tua
Mo, do latim modo, significa agora ; issa, imagem interna . ( o teu pensamento).
elipse tambem do latim hac ipsa hora, Em summa, eu vejo a tua alma melhor
RNO
428 O INF
E

do que o teu corpo ; conheço os teus ( 15 ) ... e nel sembiante stanca e vinta.
pensamentos melhor do que a figura do Cansada pelo grave peso, e vencida
teu corpo » . Tal é com effeito a pro pela angustia do animo. Vinta quer dizer
priedade dos espiritos ( Bennassutti ). tambem abatida. Nas lyricas disse o
(9 ) Pur mo venieno i tuoi pensier tra ' Poeta : Chi é esta donna che giace sì
miei. Querendo dizer : « Tal é a confor vinta ? Quem é esta mulher, que jaz tão
midade entre os nossos pensamentos, abatida ? Dante allude aqui aquelle
no tocante ao terror de nós ambos, que passo do Evangelho, em que Jesus
procuro já tomar a providencia, que de Christo, estygmatisando os hypocritas,
sejas, isto é , de escaparmos á persegui diz que elles quando jejuam apresen
ção dos diabos. tam as suas faces abatidas por mera
( 10) Lo Duca mio di subito mi prese. hypocrisia : Exterminant facies suas ut
Com esta bellissima comparação do que appareant hominibus jejunantes ( Math.,
se passa nos incendios, em que não ha 6, 16 ) . O que no mundo fazem de pro
tempo a perder na escolha de meios de posito , no Inferno fazem - no por cas
salvação do perigo, mas sim dos mais tigo .
promptos, embora arriscados, Dante ( 16) Che per li monaci in Cologna
justifica a Virgilio da deliberação, que fassi. Isto é bellissimo como pena, e
tomou de descer por uma tal encosta, como culpa : como culpa allude o Poeta
por onde, n'outras circumstancias, não te aos habitos penitenciaes, e aos grandes
riam descido, sem primeiro examinar, si cilicios, que os hypocritas affectam usar
não haveria outra de mais facil descenso . na vida : como pena, porque pelas mes
( 11 ) Non corse mai si tosto acqua per mas cousas por onde se pecca, por ellas
doccia . Como si n'outros termos disses se é atormentado : Per quæ peccavit quis
se : « A agua, que impelle a roda do per hæc et torquetur. O peccado dos hy
moinho a mover - se , é menos veloz do pocritas estende-se tambem aos vestidos,
que foi em sua evasão o meu querido pois ostentam apparecer aos olhos do
Mestre, deslisando- se commigo sobre o mundo como homens de grande religião ;
peito, menos como amigo, que como fi por isso d'eļles foi dito que dilatant fi
lho » . lacteria , e os vestidos hão de formar
( 12 ) A volger ruota di mulin terragno. parte da sua pena. In Cologna fassi.
Moinho fabricado de terra , differente Os monges de Colonia ou de Clugni
d'aquelles, que se construem nos navios, usavam habitos grandes, e vermelhos
sobre os rios, onde pela correnteza não é mais que os outros .
necessario doca, para conduzir a agua ( 17) Di fuor dorate son, sì ch'egli ab
do alto para baixo, a embater nas palas, baglia. É uma imitação do nome, que
ou azas das rodas ( Fraticelli ) . Jesus Christo deu aos hypocritas, cha
( 13 ) Del fondo giù, ch ' ei giunsero mando-os « Sepulchros esbranquiçados »:
sul colle. A saber : «Mal tocaram nossos Sepulchra dealbata. Ainda esta é uma
pés no solo do profundo abysmo, che pena correspondente á culpa. Como os
garam os demonios na cuspide da rocha hypocritas no exterior parecem pessoas
sobre as nossas cabeças; mas eu não tinha aureas ou esmaltadas de virtudes varias,
nenhum cuidado ; porque a Divina Pro e no interior são vilissimas pelos seus
videncia, que alli os constituira ministros vicios : assim a Divina Justiça lhes dá
da quinta fossa, ordena- lhes que não ul como castigo no Inferno o trazerem pe
trapassem . sadas capas com um verniz de ouro por
( 14) Laggiù trovammo una gente di fóra, e por dentro forradas de vilissimo
pinta. São estes os hypocritas, que o chumbo.
Poeta figura pintados, para significar que ( 18 ) Ma dentro tutte piombo, e gravi
elles, sob a bella côr de virtude, occul tanto, Che Federico le mettea di paglia.
tam seus hediondos vicios. As capas, que os hypocritas arrastavam
COMMENTARIOS AO CANTO XXIII 429

no Inferno eram tão pesadas, que aquel aqui tem grande força, porque faz ver
las, que o Imperador Frederico fazia a demasiada lentidão com que caminha
lançar aos hombros dos criminosos de vam aquelles hypocritas ; pois seguindo
lesa magestade, em comparação com na
mesma direcção dos dous Poetas,
estas, eram tão leves como a palha. Não vinham tão atrazados, que Virgilio julgou
esqueça que Frederico mandava vestir necessario dizer a Dante, que esperasse
de chumbo os criminosos, e mettel-os que o condemnado se approximasse
dentro de um vaso de fogo, cujas cham d'elle .
mas faziam derreter as capas de chumbo ( 24 ) Ristetti, e vidi duo mostrar gran
nas costas dos desgraçados ! fretta. Gran fretta (grande pressa) por
( 19 ) Di compagnia ad ogni muover gran sollecitudine ( grande desejo ) . A
d'anca. Como si dissesse : caminhando proposito d'este modo de dizer lem
nós mais do que elles, a cada passo ti bra Daniello aquelle verso de Petrar
nhamos um hypocrita novo atraz de nós ca : Ma spesso nella fronte il core si le
ou ao nosso lado . gge. Mas não raro na fronte se lê o co
( 20) E gli occhi sì andando intorno ração.
muovi. Como podia mover -se em torno, ( 25 ) .. assai con l'occhio bieco.Porque
si Virgilio tinha só ao lado direito os olharam de travez ? Porque, tendo a ca
hypocritas ? A razão é que Virgilio, ca beça baixa pelo peso do capuz de chum
minhando mais depressa, que os hypo bo, eram obrigados a olhar de soslaio ,
critas, olhando-os para reconhecel-os visto que não podiam encarar directa
devia para cada um fazer com a testa mente . Isto é natural .
um semicirculo . Por isto este intorno ( 26) ...senza far parola. É não me .
não quer dizer mover-se de todas os nos natural que, desejando elles conhe
lados, mas de um lado onde os olhos cer o forasteiro
(Dante), primeiro o
gyravam em torno por um semicirculo. olhassem em silencio.
( 21 ) Voi, che correte sì per l'aura (27 ) Costui par vivo all'atto della
fosca. A quem vae lentamente parece que gola. Como si dissessem : « Este ( Dante )
corre aquelle, que não caminha tão len pelo aspirar, e respirar, segundo os
to como elle, tanto mais se avantaja nos movimentos da guela, parece vivo » . É
passos em certa distancia . bello este dizer ! Com effeito , o aspi
( 22 ) Forse ch ' avrai da me quel che rar, e respirar é só proprio de um vivo,
tu chiedi. Por que razão o condemnado e não de uma sombra ; por isso os dous
fala primeiro aos dous Poetas ( Tenete i condemnados maravilhavam -se entre si
piedi voi, che correte ), e depois a um de similhante phenomeno. Mas, si se
só ( Forse ch ' avrai, etc. ) ? Fala primeiro maravilham que um vivo desça ao In .
a ambos, porque conheceu que eram ferno, muito mais se maravilham de que,
companheiros, e que um não podia pa si Dante, e Virgilio são mortos, se apre
rar sem o outro : fala depois a um só, sentem entre os hypocritas sem tra
isto é, a Dante, porque só Dante mani zerem aos hombros as capas de chumbo
festou o desejo de conhecer algum com que os hypocritas são supplicia
d'elles; e por isso lhe diz : Talvez sa dos .
berás de mim aquillo que desejas saber. No Purgatorio, canto ii, verso 67, diz :
Aquelle condemnado pensou justamen L'anime che si fur di me accorte,
te que Dante quizesse colher alguma Per lo spirar, che io era ancor vivo.
noticia da bôcca de algum d'elles ; por
que é natural que nós, quando quere Pela minha respiração comprehen
mos conhecer alguma pessoa, não te deram as almas, que eu era vivo, e em
mos outro fim senão conversar com ella , pallideceram de assombro.
e d'ella saber alguma cousa . Note -se, que sendo o respirar puro
( 23 ) Aspetta. Espera. Este aspetta effeito, e signal de vida, Dante é por
RNO
430 O INFE

isso excluido das sombras dos mortos, la ? Diz sfavilla, alludindo ás capas scin
quando outras propriedades vitaes, que tillantes de ouro. Julgo que reproduzi
servem para receber a pena ou mani fielmente a idéa empregando o verbo
festal-a, como o ver, o ouvir, o mover phosphorear.
se, o contorcer- se, o chorar, o suspirar, ( 33 ) ... Le cappe rance. Querendo
e finalmente o assobiar, são todos tam dizer : « As cappas, que tu vês douradas
bem communs ás sombras. Em substan (rance) são pelo contrario de chumbo
cia, o Poeta engenhosamente figura as macisso, tão grosso, e pesado , que nos
almas vivas para o tormento , e mortas opprimem como os pesos opprimem as
para a vida. É isto uma bella imagem conchas da balança, e como estas ran
tirada de S. Agostinho, quando diz, fa gem sob os pesos, assim nós gememos
lando dos espiritos condemnados: acci sob tal vestido » .
pientes ex ignibus pænam , non dantes Aquellas capas pareciam de ouro á
ignibus vitam . (De civitate Dei, liv. 21 , primeira vista, e como uma insignia de
c . 12 ) ( Lombardi). honra, mas por dentro eram chumbo, e
(28 ) ... collegio. Allude ao Synedrio um verdadeiro supplicio : allegoricamen
dos Hebreus no tempo de Jesus Chris te symbolisam as acções, e as palavras
to ; ou tribunal composto de hypocritas. dos hypocritas, que na apparencia pare
( 29 ) ... l' fui nato e cresciuto. Dante cem dictadas pela virtude, quando na
poderia dizer francamente. Eu sou realidade nascem da corrupção do espi
Dante florentino, a fim de que a respos rito (Fraticelli ).
ta fosse plena ; mas contentou - se de ( 34) Fratri Godenti .. Sobre quem
responder em parte , para não declarar fossem esses frades Gaudentes ou ale
o seu nome ; o que só fará no Purgato. gres já ficou dito assás no Argumento.
rio ( Torrelli). ( 35 ) ...e fummo tali, Ch'ancor si pare
(30) Sovra 'l bel fiume d ' Arno alla intorno dal Gardingo. Como se disses
gran villa . Isto é, Florença, a maior sem : « O nosso governo foi tão parcial,
das villas, que existem nas margens do e tão máo, que ainda hoje o attestam as
Arno. Chama villa ( cidade ) ao modo ruinas, que jazem em torno de Gardin
provençal, de cujo dialecto Dante tira go " . Isto quer dizer, que as casas dos
um ou outro vocabulo. Este vocabulo Ubertis ( Gibellinos, familia nobillissima
toda a França adoptou, pois chama ville florentina) situadas na rua Gardingo,
a cidade ( Bennassutti). foram incendiadas no tempo do gover
( 31 ) Ma voi chi siete, a cui tanto dis no d'esses frades, tudo por instigações
tilla, Quant' io veggio, dolor giù per le dos Guelphos.
guance. Distillar por escorrer, dolor, a ( 36 ) ... O frati, i vostri mali . é uma
cousa significada pelo signal, a dor pelas reticencia que deve ser assim subinten
lagrimas, que são o signal da dôr. dida : « Ó frades, os vossos castigos ...
Estes dous versos são divinos, divina a são merecidos» . Não concordo com a
expressão, tanto dolor distilla giù per interpretação, que dá Venturi a esta re
le guance , pondo a causa pelo effeito, a ticencia , é é a seguinte : « Ó frades,os
dôr pelas lagrimas que escorrem pelas males que praticastes acarretaram as
faces... Este mimoso dizer agradou ruinas da minha patria »; nem tão pou.
tanto a Petrarca, que porduas vezesoimi co acceito est'outra de Landino : « 0
tou quasi litteralmente. Na Ballata V dis frades, os vossos males ainda me cau
se : Convien che'l duol per gli occhi si dis sam dôr » . A opinião mais segura, e
tille. Dal cuor, no soneto 203 : L'una que abraço é a de Fraticelli, e de Bian
piaga arde e versa foco e fiemma. La chi, os quaes ambos glosam assim : « O
grime l'altra che 'l dolor distilla (Bia frati, i vostri mali ... é una reticenza.
gioli) . Suppliscasi sono ben meritati. Os vos.
( 32 ) E che pena è in voi che si sfavil sos castigos são bem merecidos .
COMMENTARIOS AO CANTO XXIII 431

(37 ) Un, crocifisso in terra con tre lhado ? Porque, como pagão, não tinha
pali. Dante colloca entre os hypocritas conhecimento dos factos occorridos em
Caiphaz, Annaz, e todos os membros Jerusalem por occasião da morte de
do Synedrio Judaico , que sob a masca Christo ; ou porque , vendo Annaz en
ra de zêlo da divina lei desafogaram a forcado, lembrou-se de ter elle proferi
sua negra inveja contra Jesus Christo, do uma sentença quasi similhante no
condemnando -o á morte de cruz ; e por 2.° livro da Eneida : Unum pro cunctis
isso o Poeta lhes dá a mesma morte , a dabitur caput. ( Venturi ) . Mas, diz Lom
que elles injustamente sentenciaram o bardi, póde bem ser que o espanto de
divino Innocente . Como porém os pre Virgilio fosse occasionado por esse novo
gos não podiam encontrar consistencia genero de supplicio, e de aviltamento,
no solo, o Poeta figura Caiphaz cruci não visto por elle quando desceu a pri
ficado com estacas infincadas nas mãos . meira vez ao Inferno, que foi antes da
(38) Soffiando nella barba co ' sospiri. morte do Redemptor, não de Caiphaz,
Isto é assoprando com tanto estrepito, e foi na morte de Christo que se deu o
e força, que agitou os cabellos da hir terremoto , que lascou de cima a baixo
suta barba, e porque lhe faltava o auxi a rocha do Inferno. Biagioli acosta - se a
lio das mãos para ajunctal-os, cobriram esta opinião de Lombardi, adduzindo a
confusamente os labios. Dante deveria proposito a seguinte sentença : Quod
ter comprehendido que esse assoprar crebro videt, non miratur, etiam si cur
estrepitoso, e convulsivo do hypocrita fiat, nescit. Quod ante non vidit, id, si
provinha de ter elle conhecido, que evenerit, ostentum , censet.
Dante, estando ainda em corpo e alma , (41 ) S' alla man destra giace alcuna
era muito pesado, e que o pisar por foce. Isto é, á mão direita, porque si
cima d'elle ser-lhe-hia de grande tor tomassem á esquerda, voltariam para
mento. Não consente Biagioli n’esta traz. Entenda -se, á mão direita dos hy .
interpretação de Lombardi, não só por pocritas, que era a encosta da fossa de
que Dante não podia pesar mais do que alem d'elles, que dividia a sexta da se
aquellas almas cobertas de tão largas ptima fossa . Alcuna foce : foce, saida
capas de chumbo, como porque ames abertura, etc.
quinha o conceito do Poeta : opina por (42 ) Senza costringer degli angeli
tanto que aquellas contorsões, e sopros neri. Sem precisarmos que alguns dos
fortes do condemnado procederam da demonios venham servir -nos de guia ,
furiosa indignação de achar -se em tão para saírmos d'este abysmo. Angeli neri.
vil supplicio presenciado por um vivo, A escriptura assim chama os demonios.
que, conhecendo ser a causa a sua hy . No Inferno, canto xxvii, Dante denomi
pocrisia, iria no mundo tornal-a patente na os negros cherubins: negri cherubini.
em vergonhoso opprobrio do judaismo. (43 ) S'appressa un sasso ... Mas, vi
( 39 ) Che fu per li Giudei mala se zinho do que pódes figurar ou imaginar,
menta. Aquelle concilio ou Synedrio, assoma uma grande penha, que nasce
que condemnou Jesus Christo á morte, do grande circulo, e atravessa todos os
trouxe aos Hebreus, não a salvação, sombrios valles ou fossas; mas n'esta
como Caiphaz, mas a maldição, e o ex fossa está quebrada a referida penha, e
terminio, que começou logo pelo total portanto não dá passagem . Passareis
desbarato de Jerusalem por Vespasiano, porém por sobre as ruinas, que jazem
e Tito, e cujos effeitos ainda hoje expi na encosta, e obstruem o fundo. Veja -se
rimentam na sua dispersão pelo mundo o canto xvIII, v. 14, 18, gran cerchia
sob o ferrete da humilhação, e despre ( grande circulo ) onde Gyrião depoz os
zo dos outros povos. dous Poetas ( v. 19).
(40) Allor vid'io maravigliar Virgi (44 ) Lo Duca stette un poco a testa
lio. E por que ficou Virgilio maravi china . Como si dissesse : Virgilio esteve
NO
432 0 INFER

com a cabeça um pouco inclinada, e porque era Bolonhez ; 2.º, porque em


depois disse : « Malacoda, que gafa os Bolonha era a grande universidade de
traficantes lá na quinta fossa, mentiu Theologia Escolastica ; 3.°, porque, qual
quando me assegurou , que eu não podia hypocrita, deve esse frade ter emprega
andar mais adiante por sobre o outro do muitos embustes nas suas predicas,
dique ou rocha, porque estava quebra como tantos outros falsificadores da

da n’esta fossa e accrescentou que á es verdade (Bennassutti) . Biagioli tambem


querda havia outro dique , que vae in suspeita que n'esta referencia a Bolonha
teiro por cima de todas as fossas até o vae involto algum dardo satyrico, e
centro, e que por este podiamos seguir n'isso confirmam os versos 58, e seguin
para onde quizessemos: mentiu -me pois tes do canto viii .
o diabo Malacoda dizendo : Ao lamentar-se Virgilio de ter sido
enganado pelo diabo Malacoda, respon
E se l ' andare avanti pur vi piace, de o frade, que elle não devia esperar
Andatevene su per questa grolla : outra cousa , pois, segundo se ensinava
Presso è un altro scoglio, che via face. na Theologia Escolastica de Bolonha ,
(Inf., xxi , 109.) o Diabo é mentiroso, e pae de falsida
des. Tambem no Evangelho de S. João,
(45 ) E 'l frate : ľudi' già dire a c . 8 , se lê : Diabolus mendax est, et pate:
Bologna. E porque fala em Bolonha ! 1.', ejus, id est, mendacii ( Bianchi).
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXIV

Na fossa septima Dante colloca os ladrões, não todos os ladrões, mas os ladrões
insignes, grandes, cobertos de honras ; em uma palavra , os ladrões fraudulentos,
que roubam com tal mestria, e sagacidade, que os seus furtos são imputados a ou
trem . D’este jaez foi Vanni Fucci, bastardo de Fucci de Lazzeri, nobre por familia .
Esse Vanni Fucci de Pistoia, como elle mesmo diz, roubou a sachristia de Santiago
de Pistoia, que se chamava a sacristia ou thesouro das bellas alfaias, e o seu furto
foi attribuido a um certo Rampino de Rannuncio, que esteve quasi a ser enforcado.
Si pois é verdade que Vanni Fucci tentasse, mas não podesse lograr os proventos
do seu furto, isso não prova que Dante commettesse erro, nem que de proposito
tenha querido infamar um homem verdadeiramente scelerado, que por sua propria
bocca declara ter vivido no mundo mais como fera, do que como homem . Os
outros ladrões florentinos, que Dante colloca n'esta fossa, foram todos ricos, e no
bres, e occuparam altos cargos ; por isso, si roubaram, como effectivamente rouba
ram, não lhes faltou meio de fazer cair a culpa sobre seus subalternos : taes devem
ser os furtos, a que o Poeta chama fraudulentos, do contrario os chamaria assim
inutilmente, porque todo o furto é fraudulento. Estes ladrões fraudulentos são no
Inferno entregues a serpentes, que os mordem, e flagellam de modo cruel ; e são
entregues a serpentes, porque no mundo imitam a astucia das serpentes na maneira
de fazer mal ao proximo : lá estão com as mãos ligadas, porque no mundo as con
servam soltas para afferrar tudo o que encontram. Si no Inferno denunciam aos
dous Poetas uns aos outros, é porque no mundo, uma vez colhidos pela justiça pu
blica, tambem se denunciam mutuamente .
Si a alguem parecer duro, que estes ladrões sejam mais criminosos, que os simo
niacos, e que os hypocritas, reflicta no principio fundamental da moral de Dante, que
considera a malicia da fraude superior a toda a malicia, excepto á da traição, que
é a mais maligna das fraudes: reflicta ainda, que a fraude consiste precisamente no
engano, que o homem faz ao homem , abstrahindo dos meios, que emprega para
enganar. Os meios, que o simoniaco e o hypocrita empregam para enganar são cer
tamente pessimos ; mas o engano, que o ladrão fraudulento faz ao homem, excede
muito em fraude ao engano, que lhe fazem o simoniaco, e o hypocrita ; porque o
simoniaco, e o hypocrita, fingindo ser o que não são, enganam menos a nós,
do que nos enganamos a nós mesmos, e nos enganâmos a nós mesmos,
por ignorancia culpavel da regra infallivel de Christo, que nos manda julgar
os homens por suas obras, e não pelas falsas apparencias de modestia, e de piedade.
Mas o ladrão nos engana elle só, e por modo, que não nos podemos precaver, nem
defender. É pois maior a sua fraude, e por isso maior, segundo Dante, a sua culpa.
28
434 O INFERNO

Não esqueça que de envolta com os ladrões fraudulentos são punidos aqui os la
drões communs ; mas d'estes Dante não faz mensão, porque os despreza, e o seu
brado, como o açoite do vento, só fere as altas summidades.
N'este canto, em que brilham muitas bellezas, começa Dante o processo das
suas metamorphoses, que vae, principalmente, desenvolver de modo assombroso
no canto seguinte . O leitor ha de observar, que o Poeta não finge imitar Ovidio ,
senão para mostrar, que as metamorphoses Ovidianas ficam a 1000 milhas das me
tamorphoses Dan as, quer se considerem pela sublimidade da invenção, quer
pela mestria do processo, quer finalmente pela rapidez do desenlace.

A
CANTO XXIV

Descreve Dante o seu desfallecimento , em vista da turbação de Virgilio, e o prompto remedio , que este lhe
applicou. Com grande difficuldade, e fadiga , saindo os dous Poetas fóra da fossa, continuam a caminhar
pelo rochedo, e chegam sobre a fossa septima, na qual encontram enlaçados por horriveis serpentes os
ladrões, que, mordidos por ellas, se incendeiam , e pouco a pouco resurgem de suas cinzas. Fala- se n'este
canto especialmente dos ladrões sacrilegos, entre os quaes Dante reconhece o pistoense Vani Fucci, que
no desafogo da raiva lhe prediz o desbarate dos Brancos.

N'aquella parte do anno novo, (1) em que o Sol tempera os seus


raios sob a constellação do Aquario, (2) e que as longas noites do in
verno, encurtando-se, vão já egualando á metade de um dia inteiro; (3)
quando a densa geada imita sobre a terra a imagem da neve, (4)
sua candida irmã, mas que se dissolve mais depressa do que ella ; (5)
o camponez, a quem a falta provisão (6) para o seu armento , levanta -se,
sáe, (7) olha, e vê todo o campo branqueado , (8) com cujo aspecto muito
se amofina : volta á cabana, (9) e por todos os lados se move, lasti
mando- se, sem saber o mesquinho o que ha de fazer em taes apuros :
depois torna a saír, ( 10) è, vendo que o mundo n'um instante mudou
de face, recobra esperança, trava do cajado, e conduz o rebanho ao
pastio.
Tal temor me inspirou o meu Mestre , (11) quando o vi de fronte
turbada pela ira ; como com egual presteza á do camponez me achei
de todo recobrado do susto .
Pois que, apenas chegámos á ponte quebrada, que frei Catalano
nos indicára, o meu Guia voltou-se para mim com aquelle mesmo as
pecto benigno, ( 12) que lhe eu vi a primeira vez, que me appareceu ao
sopé do monte.
E qual aquelle que, emquanto elabora uma cousa com as mãos ,
com os olhos da mente fixa, ( 13) e sonda outra , como quem pa
436 O INFERNO

rece prevenir uma difficuldade; assim Virgilio , levando -me ao alto de


uma grande rocha, ( 14) prenotava outra menor, que me indicou , dizen
do : « Quando chegares aquella, trepa , mas primeiro examina, si é tão
firme, que te possa sustentar » .
Não era caminho aquelle por onde podesse andar quem fosse ves
tido de capa de chumbo ; ( 15) porque nós dous, Virgilio leve, e eu em
purrado por elle , podiamos apenas subir de vagar de pedra em pe
dra . ( 16)
Mas porque Malebolge pende todo para a bócca do poço baixissi
mo , ( 17 )
a estructura de cada uma fossa é tal, que a costa mais vizinha
ao centro é sempre baixa,, e inclinada do que a outra opposta . ( : 8)
mais baixa
Nós finalmente , máo grado tão difficil transito, (19) chegámos á sum
midade do dique, de que se destaca a ultima pedra da arruinada
ponte.
Quando vinguei a eminencia do dique, a respiração estava tão ex
hausta , (20) que eu não podia ir alem, de forma que onde primeiro puz
o pé, abi me assentei.
O meu Mestre, vendo-me assentado, disse : « D'ora avante importa
que sacudas a preguiça ; porque não é em leitos de pennas sob côlchas
macias, que se adquire fama. ( 21 )
« Quem consome a vida sem grangear celebridade, deixa de si no
mundo o mesmo vestigio, que o fumo deixa no ar, e a espuma na
aguil .
« Eia pois, levanta -te; supera o cansaço com a força do animo, o
qual vence toda a batalha, si não se entrega ao torpor do corpo .
« Convem que subas ainda uma escada mais longa, (22) do que este
dique: não basta que tenhas visto os peccadores, e os seus tormentos
inuteis : si me comprehendes bem , sirva-te de estimulo o que te
digo . » (23)
Então me levantei, mostrando -me mais vigoroso, do que antes me
sentia , e disse ao Mestre: « Vae, que estou forte, e de animo resolu
to , )) (24)
Proseguimos por sobre aquelle rochedo , que era escabroso, es
treito, e muito mais empinado do que o anterior.
Eu caminhava falando para não parecer fraco, ( 25) e eis senão
quando saíu da fossa seguinte uma voz de som inarticulado. (26)
Não entendi o que ella disse , bem que já me achasse no meio
do arco da ponte, que atravessa a fossa septima : quem quer porém
que falava, parecia movido pela ira .
Eu olhava para o fundo da fossa ; mas os olhos não podiam che
gar vivos (27) lá em baixo, por causa da falta de claridade ; (28) pelo
que disse a Virgilio : « Mestre, procura chegar ao outro dique, a fim
CANTO XXIV 437

de que possamos desmontar d'esta ponte, que é muito alta ; porque


d'aqui, assim como ouço vozes, e não entendo uma só palavra, assim
tambem vejo confusamente muitas figuras, e não distingo nenhuma » .
« Outra cousa te não digo , respondeu elle , senão pôr em obra
o que tu pedes: porque um pedido, quando é honesto, se deve em si
lencio satisfazer com prompta execução. »
Nós descemos a ponte pela sua extremidade, onde se ajunta com o
oitavo dique ; e então me foi patente o fundo da fossa ; (29) porque o
dique é mais baixo do que a ponte .
E vi lá dentro um terrivel tropel de serpentes amontoadas, (30) e de
tão diversas naturezas, que ainda me altera o sangue a lembrança
d'ellas !
Cesse a Lybia de gabar- se dos seus areaes ardentes : (31) porque si

ella produz escorpiões, aspides, cerastes, faréas, e anfesibenes, jamais


apresentou em toda a Ethyopia, nem em todas as margens do mar
Roxo, serpentes tão pestiferas, nem de tão má qualidade, quaes, e
quantas vi na fossa septima !
Pelo meio d'esse cruel , e horrendo enxame de serpentes corriam
pessoas nuas, e espavoridas, sem esperança de esconderijo, ou de eli
tropia, (32) que as tornassem invisiveis.
Essas pessoas tinham as mãos atadas para traz com serpentes, (33)
que lhes enterravam a cauda nos rins, e na cabeça , (34) enroscando-se
lhes no rosto . '
E eis que uma d'ellas se lançou a um peccador, que estava do
nosso lado , e lhe traspassou a nuca .
Não se escreveu nunca nem um 0, nem um I, com mais rapi
dez, (35) do que elle se incendiou, se consumiu, e caíu em terra desfeito
em cinzas. ( 36)
E depois de ter caído em terra aniquilado , as cinzas se reuniram
por si mesmas, e elle se tornou subitamente o homem que era . (37)
Assim fabulam os grandes sabios, que a Phenix morre, e renas
ce , (38) quando se avizinha aos seus quinhentos annos: em toda a sua
vida não se nutre nem de herva , nem de grãos, (39) mas somente de
lagrimas de incenso , e de amomo ; e o nardo, e a myrrha são o seu
ultimo leito.
E qual aquelle , que cáe, e não sabe como, (40) ou por força do de
monio, que em terra o atira, (41) ou por força do mal caduco, e, quan
do se levanta, olha em roda (42) todo attonito pela agonia, que soffreu,
e olhando suspira: (43) tal cra o estado d'aquelle peccador, depois que
se levantou !
Oh quam severa é a justiça de Deus, que desfecha golpes taes por
justa vingança !
RNO
438 O INFE

Perguntando-lhe depois o meu Guia quem era elle, respondeu : « Ha


pouco tempo cai da Toscana n’esta horrivel fossa) ,
« A minha vida foi mais de bruto, do que de homem, ( 44) como bas
tardo, que fui. Eu sou Vani Fucci, (45) conhecido por Fera, e Pistoia
foi o meu digno covil . »
E eu pedi ao meu Guia: « Dize-lhe que não fuja, e lhe pergunta
que culpa o lançou aqui ? Eu o tinha por homem sanguinario, e ri
Xoso ) , (46)
E o peccador, que me ouviu , e me entendeu , não dissimulou o
que eu havia dito : levantou para mim tristemente o rosto envergo
nhado : (47) depois disse : «Me é mais doloroso , que me tenhas surpre
hendido n’esta miseria, do que o golpe mortal com que a mão do car
rasco me privou da vida .
«Não posso negar o que perguntas: estou aqui mettido entre ladrões,
porque fui ladrão das bellas alfaias da sacristia da egreja de S. Thia
go : (48) esse furto foi falsamente attribuido a outro ; mas , para que
não te alegres de me veres aqui em tal desgraça , si te for permittido
saír d'estes logares tenebrosos, abre os ouvidos a esta prophecia que
te vou fazer : (49) « Pistoia expulsará primeiro a facção dos Negros ; Flo .
rença organisará depois novas hostes, (50) e novos meios de governo , e
moverá guerra a Pistoia dominada pelos Negros.
« Marte attrahira do Valle de Magra um vapor circumdado de turbi
dos nevoeiros, (51 ) e este vapor fulmine o se baterá com uma tempestade
furiosa, que ha de encontrar sobre o campo Piceno ; mas o vapor pre
valecerá á tempestade, e de improviso dissipará os nevoeiros de
modo , que nenhum Branco deixará de ser ferido.
E te digo isto para que te dôa . »
COMMENTARIOS AO CANTO XXIV

É esplendido o modo por que o Poeta tepidos. Veremos no Paraiso, XXVII, 142,
abre este canto , e de grande formosura que Dante conhecia mui bem a antici
esta nova comparação, tirada da pro pação erronea dos 7 dias em 1300 ; ra
pria naturezal Parece este um d'aquel zão pela qual quando elle no mesmo
les rasgos de imaginação, em que pro Paraiso (XXII, 115) diz ter nascido no
cura mostrar todo o poder do seu genio sol em Gemini, se deve entender, que
sem rival, superior a todos ! O seu in falava, não segundo o erro do Calen
tuito, traçando esta magestosa pintura, dario de então, mas segundo a realida
tão bella, tão viva, e animada, em que de por elle conhecida .
nos parece estar vendo a vasta campina ( 3 ) E già le notti al mezzo di sen
coberta de geada , e o pobre pastorzi vanno . E já as noites muito abreviadas
nho momentaneamente atemorisado se avizinham ao meio dia (ás 12 horas) ;
pela sorte de seu rebanho, foi fazer co isto é, eguaes aos dias, o que acontece
nhecer por tão frisante parallello o seu no equinoccio, a que vae de encontro o
grande susto , bem que de pouca dura sol .
ção, ao ver Virgilio turbado, e afflicto . (4) Quando la brina in sulla terra as
( 1 ) In quella parte del giovinetto an sempra. Quando a geada espessa, bran
no. O anno solar começa com o pri queando sobre a terra , se assimilha á
meiro de janeiro. D'ahi o dizer figura imagem da neve, sua irmā . Em outras
damente que o anno é joven. palavras : Quando o sol está em Aqua
(2 ) Che'l Sole i crin sotto l' Aquario rio, maxime para o fim , a geada, que
tempra. Segundo o calendario dos tem cáe, é tal, e tanta, que a assimilha a
pos de Dante, que era o calendario de neve ( sua sorella bianca); mas é de du
feituoso de Julio Cesar, o Sol entrava ‘ração assás menor, que a neve, porque
em cada um dos doze signos no dia 14 bastam poucas horas de sol para desfa
de cada mez, quando deveria entrar no zel-a.
dia 21 , si então já tivesse tido logar a (5 ) Ma poco dura alla sua penna tem
correcção gregoriana, que veiu depois. pra. Depois que o Poeta nos apresen
No dia 14 pois de janeiro o sol entrava tou a geada no acto de copiar a neve
em Aquario (ou quando está na con (ricopiare la neve) quiz continuar a
stellação do Zodiaco, que se chama personificação em toda a sua proprie
Aquario). N'este tempo, elle modera os dade, dando-lhe tambem o instrumento
seus rayos (icrin ) em Aquario. Modo com que se imita, se desenha, isto é, a
poetico, que indica que os rayos adqui penna, cujo aparo, estragando-se, ou
rem um pouco mais de força do que no gastando -se depressa, não pode durar
mez anterior, isto é, se tornam mais longo tempo , para desenhar, ou imitar
440 O INFERNO

a neve. É sabido que os antigos de meira vez ao pé da ponte , d'onde havia


senhavam com a penna. Isto diz Bian descido pela opposição das tres feras».
chi . Virgilio, enganado a primeira vez pelos
(6 ) Lo villanello, a cui la roba manca . diabos, não se convence da saída , que
O pastorinho, que não tem feno de re lhe indicára o frade hypocrita, sem vel-a
serva para alimentar os seus reba com seus proprios olhos, e foi só então
nhos. que se tranquillisou : exactamente suc
( 7) Si leva e guarda, e vede la cam cedeu ao pastorinho, que não se tran
pagna. Levanta -se, olha, e observa que quillisou, senão depois de ir, e voltar a
tempo faz, e si ha geada. explorar o tempo, e reconhecer que
( 8 ) Biancheggiar tutta, ond ' ei si bat tudo estava mudado para melhor. N'um ,
te l'anca. Bate na anca, por desespera e n'outro caso o remedio (l'empiastro)
ção; porque vê a campina toda nevada, foi prompto .
não já porque elle creia ser neve a ( 12 ) Le braccia aperse, dopo alcun
geada, mas porque sabe que os seus consiglio. Tractava - se de fazer Dante
rebanhos não podem comer a herva, si trepar engatinhando por um acervo de
antes não desapparece a geada , do con ruinas, que tinha pouquissima inclina
trario morrerão comendo a herva neva ção, e que era quasi perpendicular. Por
da . Por isso elle, que não tem n'aquella isso Virgilio, como faz todo o homem
manhã com que apascentar seus reba sabio, e prudente, olha, examina pri
nhos, batte l'anca, por não saber si o sol meiro o lado melhor da subida (ri
d'aquelle dia terá tanta força, que des guardando prima ben la ruina), depois
trua a dita geada. Batter l'anca, quer pensa , e escolhe o modo mais opportu
dizer : amofinar - se, affligir -se, etc. no de subir (dopo alcun consiglio eletto
(9) Ritorna a casa , e qua e là si lą. seco); finalmente abre os braços, e to
gna . Torna para casa com pouca espe ma com doçura o seu discipulo, e o faz
rança de bom tempo, e se lastima de guindar ( Le braccia aperse, e diedemi
não ter forragem para os seus animaes di piglio ).
( pecore ). ( 13 ) E come quei che adopera ed is
( 10 ) Poi riede, e la speranza ringa tima, etc. E como aquelle, que obra
vagna. Torna de novo a explorar o com as mãos, e pondera com a mente
tempo, e d'esta vez o vê mudado para o que faz, de tal modo que parece pre
melhor; então se reanima, ou recobra ver os meios opportunos ao bom resul
a perdida esperança. Ringavagna, mette tado .
no cesto ; metaphora,, que quer dizer ( 14) D'un ronchione, avvisava un'altra
mette de novo no coração. Em outra scheggia. Ronchion, grosso pedaço de
parte disse : imborsa, embolsa. pedra. Scheggia pedaço de pedra, sa
( 11 ) Così mi fece sbigottir lo Mastro. liente resalto.
Assim o fez atemorisar a turbação do ( 15 ) Non era via da vestito di cappa.
mestre, querendo dizer: « Assim como o Querendo dizer : A subida era tão diffi.
pastorinho amedrontado, vendo o tem cil , que não poderia ser feita por aquel
po mudar em poucas horas, e a campi les condemnados vestidos de capas pe
na já livre da geada, toma o cajado, e sadas, isto é, os hypocritas , a quem o
conduz seus rebanhos ao pastio, exul gravame das capas tolhia toda agilida
tando de contente, por achar-se fóra de .
do embaraço : assim Virgilio, vendo que ( 16 ) Potevam su montar di chiappa in
a ruina da ponte nos permittia trans chiappa. Dizem alguns que chiappa si
pol- a, embora com difficuldade, tran gnifica cousa facil a apanhar ; mas aqui
quillisou o espirito, voltando-se para significa pedra, que se pode agarrar.
mim com aquelle meigo semblante, que Dizem outros que significa pedaço, acer
conservava quando me encontrou a pri vo de pedras, etc. Chiappa, diz Benve.
COMMENTARIOS AO CANTO XXIV 441

nuto de Imola, est pars tegulæ culmeæ , dido em 1o fossas circulares, e concen
qua teguntur tecta domorum (Fraticelli) . tricas sobrepujadas por pontes, forma um
( 17) Più che dall'altro, era la costa plano inclinado para o mesmo poço .
corta. Isto quer dizer, que a borda á D'esta inclinação se segue que a borda
direita dos hypocritas, que dividia estes de cada fossa para a grande circumfe
da fossa septima dos ladrões, era mais rencia é mais longa de cima para o
curta, que a borda á esquerda, e isso fundo, e menos ingreme; e a borda da
por causa da structura de Malebolge. mesma fossa para o poço é mais curta
( 18) Ma perchè Malebolge in ver la de cima para fundo, é mais ingreme.
porta. Já ficou dito no canto xviii, que Eis-aqui um desenho do plano inclina
todo o espaço circular, occupado pela do, e das tres fossas, pelo qual se
grande circumferencia do poço, e divi póde conhecer o conceito do Poeta.

Barattieri
( Ladrões) Ipocriti
Bor

des e
qua
d

Bor
ce

que a

(Hipocritas)
ge
d
8.

quae
Bor

sur
qu a

in

qu a

Bo
ge
d

des e
rd
e
Bor

e
sur

rd
qua
Bo

ce

( 19) Noi pur venimmo alfine in su la sem deixar de sua passagem na terra
punta. Querendo dizer : Nós, não ob vestigio algum.
stante tão grande difficuldade, prosegui Esta excitação era necessaria, porque
mos por sobre a summidade do dique , Dante tinha que affrontar na sua via
d'onde ou do qual a ultima pedra da gem outras gravissimas difficuldades.
destruida ponte se destaca salientemen Entretanto, aquellas affrontadas até
te . agora, si bem se reflecte, são taes, e
(20) La lena m'era del polmon si tantas, que jamais penitente algum
munta. Quando nos fatigâmos dema affrontou similhantes. O itinerario do
siado em exercicios corporaes, os nos Inferno é a penitencia das penitencias :
sos pulmões perdem mais halito de que Dante, que até agora tem soffrido com
recebem, e d'aqui a necessidade de as: animo forte, e tanto soffrerá por amor
pirar mais successivamente no momento da sua salvação eterna, pode servir de
em que nos achâmos mais cansados. excellente modelo aos peccadores, que
(21 ) ... seggendo in piuma, In fama se querem verdadeiramente converter.
non si vien, nè sotto coltre. Em resumo, Toda a Divina Comedia não tem outro
isto quer dizer : Não é em leitos de ro fim essencial, senão o religioso, e catho
sas, nem sob colchas macias, madra lico.
ceando no leito, que se adquire fama. (22) Più lunga scala convien che si
Virgilio congratula -se com Dante pela saglia. Querendo dizer : Para chegar
fadiga vencida com animo forte, e o ao Paraiso, que é o termo da tua via
excita a dar-se a emprezas difficeis, ex gem, é necessario que subas uma esca
pungindo de si toda a ignavia ; porque da mais longa, que esta , isto é, o monte
aquelle, que a esta se abandona, morre, do Purgatorio (Fraticelli) .
442 O INFERNO

( 23 ) Se tu m ' intendi, or fa sì che ti do d'esta fossa estava nem mais nem


vaglia. « Agora procede de modo, que menos distante que do dorso das ou
esta minha advertencia te aproveite, e tras fossas ao seu respectivo fundo.
te sirva de estimulo, e conforto .» Dante Todavia aqui não pode ver até o fundo,
entende perfeitamente, que as admoes como tinha visto em alguma outra
tações de Virgilio alludiam á viagem do fossa desassombrada de exhalações . E
Purgatorio, e ao encontro de Beatriz, porque ? Porque a presente fossa, tão
com a qual lhe havia promettido subir profunda quanto as outras, era não ob
ao Paraiso. stante mais estreita que as outras pri
( 24) ... Va, ch' i ' son forte ed ardito. meiras, e porque era mais estreita, era
Estimulado pelas palavras de Virgilio, por isso mesmo muito mais escura .
que lhe fazem antever os gozos eter Imaginemos ou figuremos dous poços
nos, Dante lhe diz : « Avancemos, que de fundo egual, mas um seja largo bas
quanto a mim , me acho de coração tante, e outro bastante estreito . N'aquel
forte, e animo resoluto » . le mais largo os olhos penetram até o
( 25 ) Parlando andava per non parer fundo, e no mais estreito não; porque
fievole. Toda vez que Dante anda por n'este a luz se esquiva mais do que no
caminho difficil, segue em silencio, por outro .

que não se fala, quando toda a attenção ( 29) E poi mi fu la bolgia manifesta.
se faz de mister, para desviar os preci E porque lhe foi patenteado o fundo
picios . D'esta vez porém elle faz uma da fossa ? « Porque o dique é mais baixo
excepção a esta exigencia da natureza, que a ponte , e nós, sem pararmos sobre
e fala andando por caminho difficil; mas a borda da septima fossa, descemos, e
diz, que falava por não parecer fraco ; nos approximâmos ao fundo». Vê-se
tanto poderam sobre seu animo as pala que Dante tinha razão, e tanto o reco
vras de Virgilio ! nheceu Virgilio, que do modo mais be
( 26 ) Onde una voce uscio dall 'altro nevolo o attendeu ; dizendo -lhe, que o
fosso. Um condemnado da septima fossa, seu pedido era honesto, isto é, justo,
que ouviu lá em baixo dous passageiros visto como, sendo o fim da sua viagem
que falavam em cima, dirigindo- lhes ao Inferno adquirir conhecimento das
algumas palavras inintelligiveis, não só penas dos condemnados, era necessario
porque eram mal articuladas pela dor, descer ao fundo da caverna, onde elles
como porque os sons, que vem de padecem .
baixo ouvem - se menos, do que os que ( 30 ) E vidivi entro terribile stipa.
partem do alto . Este accidente, que o Como si dissesse : Vi dentro da fossa
Poeta faz aqui resaltar, é arte de grande uma terrivel multidão de serpentes , que
mestre . estavam amontoadas, enroscadas umas
( 27 ) Ľera volto in giù ; ma gli occhi com as outras, e eram de tão horrida
vivi. Estes olhos vivos são aqui uma natureza, que, ao recordar-me d'ellas, o
gemma preciosissima, que ninguem , se sangue se me altera de espanto .
não Dante, a póde fabricar ! Os olhos ( 31 ) Più non si vanti Libia con sua
são vivos até onde elles podem alcançar rena. Não se gabe mais a Libya do
com a vista os objectos ; d'aquelle ponto seu solo arenoso, e ardente. A Libya , no
por diante são mortos. Bellissimo, e tempo dos romanos, era aquella parte
delicadissimo chiste de phrase ! Natural da Africa, que demora ao poente do
mente podia elle dizer : Eu tinha os Egypto. Era toda povoada de serpentes
olhos fixos no fundo da fossa ; mas nada das mais diversas especies, por serem
via, por causa da escuridão . muito conhecidas, deixo de descrevel-as.
( 28) Non potean ire al fondo per l'os Virgilio, e Lucano tractaram d'ellas.
curo. Cumpre dar a razão d'esta obscu Terrivel, e espantosa scena abre-se
ridade . Dante, do dorso do arco ao fun agora aos olhos do leitor ! Quem não
COMMENTARIOS AO CANTO XXIV 443

tiver o coração cingido de triplicada cou costuma-se prender os ladrões com as


raça de ferro, não deixará de vel -o pun mãos para diante, mettidas em algemas;
gido mais de uma vez em face de tal mas em tempo se usava atar -lhes as
espetaculo ! N'esta fossa são punidos os mãos por traz das costas, como agora
ladrões. Obrigados a correr continua - faz Dante, e é o modo mais infamante,
mente por entre agrupamentos de hor e mais seguro. Mas Dante a este suppli
riveis serpentes, são envolvidos por ellas, cio ajunta sabiamente aquillo, que os
e por ellas tão ferozmente mordidos , juizes ou leis terrestres não podem fa
incendeiam -se, reduzem - se a cinzas, re zer, isto é, não se limita a apertar as
nascem transformam -se de mil modos, mãos dos ladrões, ligadas pelas costas,
o homem em serpente, a serpente em com as roscas das serpentes ; faz que
homem, (como veremos no canto se estas mesmas serpentes lhe enterrem
guinte ) , e todas essas cousas são pinta nos rins as caudas e as cabeças, grupan- ,
das com cores tão fortes, que quando do todo o remanescente do corpo no
o leitor pensa, que a imaginação do lado dianteiro dos infelizes. Com este
Poeta desfallece exhausta, realça -se com terrivel tormento Dante vae ferir a ori
maior impeto, e pujança tal, que per gem do mal, isto é, o coração fazendo
manece attonito diante de tão rica, e o traspassar com as pontas das caudas
terrivel fecundidade ( Biagioli ). das serpentes. O castigo é crudelissimo,
( 32) Senza sperar pertugio o elitro porém é convenientissimo, e justissimo ;
pia. Pertugio, buraco, ou outro qual porque, nascendo do coração a cubiça ,
quer esconderijo, onde se occultem ; eli e todas as más cogitações, segundo diz
tropia, pedra preciosa, que tem a virtu o Evangelho ; e sendo as mãos os in
de contra o veneno. Allude aqui o Poe strumentos de que os ladrões se servem
ta á opinião fabulosa de que tal pedra para roubar, está visto que, conforme
tem a virtude de tornar invisivel quem as regras invariaveis da Divina Justiça ,
a traz comsigo ( Venturi). o coração, e as mãos dos ladrões de
(33 ) Con serpi le man dietro avean viam ser mais flagellados pelas serpen
legate : Quelle ficcavan per le ren la tes do que os outros membros do corpo .
coda E 'l capo, ed eran dinanzi aggrop Os ladrões pois mais culpados, alem do
pate. Tinham as mãos atadas para traz tormento commum a todos os outros,
pelas serpentes, e estas agrupando-se padecem muitas outras penas de diversa
lhes na frente, encravam - lhes nos rins especie, que o Poeta descreverá.
as caudas, e as cabeças. A invenção de ( 34) Là dove il collo alle spalle s ' an
tão horrivel martyrio é de per si a prova noda. Isto é, nas carotidas, arterias do
mais exuberante da portentosa phanta pescoço, que, sendo feridas, produz mor
sia do nosso Poeta ! Imaginou tal sup te instantanea .
plicio para os ladrões, com o fim de ( 3.5) Nè O si tosto mai, nè l si scris
demonstrar a astucia , e malicia com que se. Querendo dizer « Sendo o 0, e o I.
elles procuram esconder - se nos logares as mais simplices lettras do alphabeto ,
escusos, e os grandes males, que cau ainda assim jamais ninguem as traçou
sam pelo emprego da sua rapacidade . tão rapidamente quanto" , etc. Vulgares,
O supplicio é o mais apropriado á cul mas sempre novas, e sempre admira
pa. Em vida, os ladrões vivem sempre veis estas comparações em Dante !
a correr, dominados dos continuos ter ( 36) Convenne, che cascando divenisse .
rores de caírem nas garras da policia, Este portentoso effeito exprime a inau
não encontrando nunca esconderijo , dita propriedade malefica da serpente, e
onde se possam julgar seguros. No ao mesmo tempo o bem merecido cas
mundo são ligados com cordas, e ca tigo dos ladrões, que se valem muitas
deias, e no Inferno são tambem ligadas vezes dos incendios nas casas, e nos
cruelmente com serpentes. Hoje em dia, campos, para terem occasião de roubar.
444 O INFERNO

Este incendio, que produz uma trans fasce ), um verso que tem a morte entre
formação do ladrão de um em outro ser, o nardo, e a myrrha, e que tem tambem
é tambem castigo, que quadra ao crime a vida d'esta nova menina (fasce). Dante,
porque é costume dos ladrões disfarça com graciosa bizarria poetica, denomi
rem - se em varios aspectos para não se na ultime fasce o ninho mortuario d'este
rem reconhecidos ; por isso se lhes paga rejuvenescido volatil ( Poggiali) .
na mesma moeda, isto é, com egual (40) E qual è quei che cade, e non sa
pena. Tambem os medicos conhecem a como. Quem cáe de repente ferido por
combustão humana instantanea , pela um mal desconhecido, não sabe como
qual uma pessoa, ao ser ferida de rayo, ou caiu .
de outra cousa, se converte em cinzas. (41 ) Per forza di demon, ch' a terra
Caso rarissimo, porém acontecido mais il tira. A força, que o lança por terra
de uma vez . ou é movida pelo demonio, como acon
( 37) E in quel medesmo ritorno di tece nos possessos, ou por oppilação,
butto. Outra transformação do ladrão, que tolhe a circulação do sangue , como
pena adequada ás suas varias transfor n'aquelles, que padecem de mal caduco,
mações na vida . isto é, epilepsia.
( 38) Che la Fenice muore e poi ri (42 ) ...intorno si mira. É o primei
nasce . Esta fabula da Phenix é imitada ro acto, que fazem os epilepticos quan
por Dante das Metamorphoses de Ovi do, tornando a si, se levantam. Olham
dio. Tractando- se de transformações em torno, e se admiram de verem - se
Ovidio não podia ser esquecido. Mas as rodeados de tanta novidade, isto é, de
presentes tranformações Dantescas, co tantos assistentes, de tantas preparações
mo já disse, deixam atraz 1 : 000 milhas as medicinaes, etc., sem que saibam a razão.
transformações Ovidianas. Os grandes (43 ) ... e guardando sospira. É o
sabios, a quem Dante allude no verso outro acto, que fazem os epilepticos,
anterior (Così per li gran savi si confes quando se levantam : ainda pallidos, e
sa ) não podem ser outros, senão Pom afadigados, suspiram espreguiçando-se,
ponio, Plinio Tacito, Solino, Claudiano , como aquelle, que se resente de um
e outros, que falaram da Phenix, da qual somno profundo.
Metastasio cantou : Che si vivia ciascum (44) Vita bestial mi piacque, e non
lo dice dove sia nessun lo sa . « Que ella umana. Porque vida bestial, e não hu
existe todos dizem. Onde esteja nin mana ? Porque viver do furto é só pro
guem sabe » . prio das bestas, que não plantam, nem
( 39 ) Erba nè biada in sua vita non trabalham . O homem, ao contrario, vive
pasce. Este é o terceto imitado de Ovi da industria , e da arte, fructos do enge.
· dio, xv, 9, das Metamorphoses, onde nho e isto é vida humana.
Dante , entrando em liça com Ovidio, (45 ) Si come a mul ch'i' fui:son Van
o venceu . Ovidio havia dito : ni Fucci. Mulo, por bastardo de um
Una est, quæ reparet, seque ipsa reseminet, ales certo Fuccio de Lazzeri, nobre Pis.
Assyrii phænica vocant: nec fruge, nec herbis, toense, como explicam Landino e outros.
Sed turis lacrymis et succo vivit amomi , etc. Vellutello, porém, não sei com que
fundamento, contesta, e diz, que elle
Ovidio, bem que seja aqui tão gracio se denomina mulo somente pela ob
so, e elegante, foi todavia superado por stinação indomavel na practica das
Dante, que soube dizer quanto disse más acções. Son Vanni Fucci Bestia.
Ovidio com muito menos palavras, e Parece que Bestia (bruto ) fosse um
com maior delicadeza de phrases. appellido ignominioso com que era elle
Quanto custa a Ovidio fazer morrer, e conhecido. Mas, si não foi Bestia no
renascer a Phenix, Dante dil- o em um só nome, foi ferocissima besta nos actos,
verso ( E nardo, e mirra son l ultime diz Lombardi. E Pistoia mi fu degna
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXIV 445

tana. Tana, cidade natal. Pois que Van . di. (Bianchi ). Accrescenta Fraticelli, que
ni Fucci se dá a si o nome de bestia , do referido documento consta , que
devia chamar tana o logar onde nasceu ; Vanni Fucci della Monna, e Vanni de
porque tana é o logar onde nascem as Mironne foram enforcados e arrastados
bestas. Quem não vê, que o Poeta, cha pela cauda de cavallos.
mando tana a Pistoia, lhe arremessa (49) Ma perchè di tal vista tu non
um dardo satyrico ? godi. “ Mas para que não fiques muito
(46) Ch'io 'l vidi uom già di sangue contente, e ufano de me teres encon
e di corrucci. Querendo dizer : « Eu o trado, e visto dentro d'esta fossa, onde
conhecia, não por ladão, mas por ho são punidos os ladrões, mordidos por
mem sanguinario, e rixoso, e como tal serpentes crueis, abre os ouvidos a esta
devia ser punido n'outro logar. Malicio prophecia amarga para ti » . Deve notar- se
so Dante ! Mostrando ou fingindo igno que Vanni Fucci se mostra inimigo de
rar o sacrilego attentado de Fucci, Dante, como Dante de Fucci, porque
aproveita o ensejo para revelar outros este era do partido dos Negros, e
vicios, que o infamavam ! ( Bianchi). aquelle do partido dos Brancos.
(47) E di trista vergogna si dipinse. ( 50) Pistoia in pria di Neri si dima
Cobriu o rosto de triste vergonha, não gra, Poi Firenze rinnova genti e mo
d'aquella vergonha, que resulta do re di. Já no canto vi, cm nota ficou dito
morso do crime (vergonha, que não quanto basta para dar idéa das duas
pode ter o condemnado, incapaz de funestas facções de Brancos, e Negros.
arrependimento), mas vergonha de ter Agora direi somente o que respeita á
sido encontrado como réo convicto, em interpretação dos factos prognosticados
meio de horriveis tormentos, por um por Fucci . Esses factos referem - se
inimigo seu, e da sua Pistoia, qual era todos a maio de 1300 por diante , de
Allighieri, e que radioso de alegria iria modo que são posteriores ao dia, em
na terra contar, que o víra em tão mi que nos achâmos, 9 de abril de 1300.
seravel estado . Os factos pois predictos pelo condemna
(48) Ladro alla sagrestia de ' belli ar do pistoiense são, em resumo, os seguin
redi ; E falsamente già fu apposto altrui. tes : Em maio de 1300, os Brancos de
De um documento contemporanco , pu Pistoia , auxiliados pelos Brancos de
blicado pelo professor Ciampi, sabe -se Florença, expulsaram os Negros ( Pis
que Vanni Fucci della Dolce, Vanni toia in pria di Neri si dimagra ). Estes
della Monna, e Vanni Mironne, pistoien Negros, expulsos de Pistoia, abrigaram
ses, se combinaram para roubar o the se entre os Negros de Florença . D'esta
souro de San Thiago ; que tentaram com juncção resultou, que os Negros em
effeito o grande furto, mas que não Florença se tornaram mais poderosos
conseguiram plenamente , porque fu que os Brancos ; pelo que em novembro
giram em consequencia de algum ru seguinte expulsaram estes, e mudaram
mor, que ouviram; que a justiça pu o regimen governamental de Florença
blica fez prender diversos individuos, ( Poi Firenze rinnnova genti e modi).
como suspeitos do delicto, e entre Mas estes mesmos Negros Pistoienses, e
outros um Rampino de Rannuccio, que Florentinos, reunidos em Florença , não
esteve quasi a ser enforcado ; e que fi. se contentaram de expellir os Brancos
nalmente preso Vanni Fucci, confessou d'esta cidade, mas resolveram expellir
a verdade do facto , e os seus cumplices . os Brancos de Pistoia, para vingar a
Tudo isso aconteceu em 1293. A sa expulsão de maio antecedente . Assen
cristia da Egreja de San Thiago de Pistoia, tado o plano, os Negros, pelos fins de
onde se guardavam as preciosas alfaias 1300, uniram - se com os Lucheses, e
era chamada o Thesouro, por isso diz eleito capitão do seu exercito o Mar
Dante aqui : alla sagrestia de'belli arre quez Moroello Malaspina de Val de
O
ERN
446 O INF

Magra ( Tragge Marte vapor di val di facção militar. Marte, deus da guerra,
Magra, ch'è di torbidi nuvoli involuto ) suscita um capitão do partido Negro
collocaram -se a ceste entre Serravalle, (Moroello ), nome que se coaduna mui
e Montecatini, sobre o campo Pisceno, to com o negro vapor produzido pelas
e aqui Moroello, avisado que os Brancos tempestades. Este capitão tem em tor:
de Pistoia se moviam para cortar - lhes o no de si um exercito de Negros, parte
passo, caiu impetuosamente sobre elles, Pistoienses, e parte Florentinos, e estes
e lhes deu uma terrivel batalha (E con são o envolucro dos turbidos nevoeiros.
tempesta impetuosa ed agra Sopra A batalha, que depois se trava, para
campo Picen fia combattuto) no qual re conservar a allegoria, se chama tempes.
contro Moroello desbaratou em breve tade, Moroello desbarata os Brancos, c
hora os Brancos (Ond ' ei repente spez eis o vapor negro, que desfaz a neve
gerà la nebbia) ; e assim os Brancos de branca .
Pistoia , parte pereceram no campo Note -se, que este Moroello é diverso
traspassados pelas espadas dos Negros, do outro, que é o quarto, a quem Dante
e os Brancos da cidade foram expulsos. quiz dedicar o seu Purgatorio, e de
Não ficou n'isto : tambem os Brancos, quem foi amigo, hospede, e embaixador.
que se achavam em Florença foram Tragge Marte vapor. Allude talvez
banidos ( entre os exilados figurava litteralmente o Poeta a um phenomeno,
Dante ), incendiadas as suas casas , entre que appareceu no Céo do lado do poen
as quaes a do mesmo Dante ( Si ch'ogni te, e de que fala Villani (Chr. 8. c. 44 ).
Bianco ne sarà feruto: E detto l'ho per Val di Magra, valle assim chamado do
chè doler ten debbia ). rio Magra, que faz o seu curso por esse
( 51 ) Tragge Marte vapor di val di valle , que divide a Toscana do Geno
Magra. É bellissima a allegoria d'esta vesado .
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXV

Estando sempre Dante no mesmo logar, isto é, no fundo da fossa septima, ahi
reconhece cinco espiritos florentinos, pertencentes a cinco nobres, e ricas familias :
são elles Cianfa dos Donatis, Agniolo dos Brunelleschis, Buoso dos Abatis, Puccio
Sciancati, e Francisco Guercio dos Cavalcantis : foram summos magistrados da re
publica, e por fraude commetteram grandes furtos, com tal astucia practicados, que
porventura foram attribuidos a outros. Dante os vê transformarem - se de homens em
serpentes, de serpentes em homens; e nos descreve duas transformações solemnes
com todas as minudencias. Pela primeira Cianfa já serpente liga -se a Agniolo ho
mem, de cuja união resulta um composto monstruoso , que não é nem serpente,
nem homem . Pela segunda transformação vemos Francisco Guercio dos Cavalcantis
em forma de serpente morder, e converter em serpente Buoso dos Abatis, e este
reassumir a figura de homem : Buoso, apenas transformado em serpente, foge pelo
pavimento da fossa sibilando, talvez de raiva; e Guercio Cavalcanti lhe cospe por
detraz, e depois lhe volta as novas espadoas.
A imaginação do Poeta devia cansar em tão maravilhosas descripções ; mas, å
similhança de Anteo, que da terra batido recebe nova força, a imaginação dantesca ,
sempre inexhaurivel, cobra novo vigor, e quando cremos que , fatigada do gyro
afanoso, e longo, ella se inclina para terra, eil - a que remonta a tão grande altura,
que mal pode acompanhal-a o pensamento! Seguindo o immortal Poeta em todos
os seus torneios, admirâmos a cada passo o vigor de estylo, a pureza de lingua, a
energia dos traços, a novidade das locuções, e desde principio até ao fim no ta - se
um dizer tão conciso, e tão claro, como não seria possivel encontrar em prosa !
Por vezes temos dito que na qualificação das culpas, e na applicação das penas
que lhes são devidas, Dante procede sempre com a mais rigorosa conveniencia .
Vimos já no canto antecedente, que elle figura os ladrões condemnados a serem
mordidos pelas serpentes, porque na vida mordem a fortuna alheia com dentes ser
pentinos. Os ladrões no Inferno fogem das serpentes, porque no mundo os ladrões
fogem sempre dos esbirros da policia : os ladrões no Inferno são presos pelas roscas
das serpentes, e por ellas feridos, porque na vida são presos, e feridos pela justiça
publica . Os ladrões são roubados dos seus corpos no Inferno (pela transformação
do corpo em serpente), porque no mundo não só roubam a fazenda alheia , como
os corpos de seus donos, assassinando-os : os ladrões são maltratados no Inferno
pelos outros ladrões, porque no mundo os ladrões contendem sempre entre si, ou
pela rivalidade da profissão, ou por causa da divisão do roubo, em que cada um
procura fazer-se de leão : os ladrões finalmente vivem no Inferno em continuos
448 Ο INFERNO

terrores, porque em vida vivem em continuos sobresaltos de serem surprehendidos,


ou pelas pessoas roubadas, ou pelas auctoridades.
Quanto á razão porque n'este canto Dante transforma em serpentes os ladrões
fraudulentos, é porque estes no mundo procuram transformar -se, ou mascarar-se de
todas as maneiras para não serem conhecidos, e os transforma em serpentes, e não
em raposas ou em outros animaes, porque nos meios, que empregam para furtar,
desenvolvem tanta astucia, que só se podem comparar com exactidão, e proprieda
de á serpente, que, segundo o oraculo do Espirito Sancto, é o mais astuto de to
dos os animaes (Genesis 3 ) .
Os mais celebres criticos consideram este vigesimo quinto canto um dos mais
solemnes monumentos da prodigiosa força creadora da phantasia de Dante Allighie .
ri ! Elle não metamorphoseia somente as fórmas do corpo, como fez Ovidio ; meta
morphorseia a substancia do homem em substancia da serpente e a substan
cia da serpente em substancia do homem : isto é, muda primeiro a forma, de
pois a qualidade da materia, que de certo não é a mesma na serpente que
no homem . As metamorphoses de Ovidio são obra de uma força externa que
na apparencia faz de um ser outro ser ; mas as metamorphoses de Dante são
obra dos mesmos seres transmutaveis, que encerram em si prerogativas tacs,
que um ser póde adaptar a sua substancia á alma , e á substancia de outro ser em
presença , de modo que as materias ou substancias de ambos, por um segredo inau
dito se mostram promptas, e dispostas a passar de uma para a outra , trocando-se
mutuamente . O mesmo acontece no seu systema de magnetisação. Dante não ma
gnetisa somente; tira o que pode da sciencia, o resto é obra da sua phantasia.
Nenhuma relação tem com o mesmerismo o magnetismo dantesco, que é todo na
tural, e os seus effeitos estam só na ordem natural, e Allighieri teve o grande merito
de conhecel - o no seu tempo. O mesmerismo é uma invenção de charlatães da peior
especie, como já observei n'outro logar.
Em summa, não posso resistir ao impulso de transcrever por inteiro o juizo do
sabio critico Ginguené sobre as transformações, que se notam : Falando d'estas
assombrosas transformações, diz o sabio critico Ginguené « Este quadro, que tem
quasi cem versos no original, é tão rico de comparações, de imagens, de harmonia
imitativa, que perderia muito em ser synthetisado, ou mesmo traduzido. É cheio de
vigor, de inspiração, de novidade. É talvez um d'aquelles em que se pode mais
admirar o talento poetico de Dante, essa arte de pintar com palavras, de represen
tar objectos phantasticos, seres ou factos extra -naturaes, e de absoluta impossibili
dade, com tanta variedade, naturalidade, e energia, que parece a quem os lê, os
estar yendo, e que, os tendo lido uma vez, crê toda a sua vida tel-os visto ! »
CANTO XXV

Continuando a observar os ladrões, encerrados na fossa septima, ve Dante o Centauro Caco, todo coberto de
serpentes, correndo atraz do blasphemador Vani Fucci: vê em seguida alguns illustres Florentinos, que
foram ladrões da fazenda publica : descreve maravilhosas reciprocas transformações de homens em ser.
pentes, e de serpentes em homens.

O ladrão Vani Fucci, ao finalisar os seus sinistros agouros sobre


o meu futuro politico, metteu o dedo pollegar entre o indice, e o me
dio, e, levantando ambas as mãos ao alto, gritou : « Toma figas, ó
Deus, ( ') que é propriamente a ti , que eu as endereço ! »
Desde aquelle momento comecei a olhar as serpentes com menos
horror, senão com toda a complacencia, pela promptidão com que
castigaram o impio : uma d'ellas se lhe enrolou ao pescoço, apertan
do -o de modo, que parecia lhe dizer : «Não quero que fales mais ».
Outra , enlaçando-lhe os braços, ligou -os por diante com tão retorci
das roscas, (2) que lhe tolheu todo o movimento. (3)
Ah Pistoia , Pistoia, porque não resolves (4) te reduzir a cinzas,
pois que em obras más superas os teus perversos antepassados ?
Por todos os tenebrosos circulos do Inferno, que percorri , não
encontrei espirito tão soberbo contra Deus , como este teu concidadão,
nem mesmo aquelle Capanéo, que se precipitou dos muros de The
bas ! (5)
Vani Fucci fugiu , sem dizer palavra, porque não podia : vi então
um Centauro (6) vir gritando furioso : « Onde está, onde está o acer
bo blasphemador !»
Não creio que a nossa Maremma (7) tenha tantas serpentes, quan
tas o Centauro tinha da anca até onde começa a nossa forma huma
na . (8)

Sobre as espaduas, e por detraz da nuca, jazia-lhe com azas aber


tas um dragão, que abraza tudo, que lhe impede o caminho . (9)
29
450 O INFERNO

O meu Mestre disse : « Aquelle é Caco, ( 10) que sob a rocha do


monte Aventino fez muitas vezes um lago de sangue . Não é punido
com os Centauros, seus irmãos, no circulo dos violentos, ( ! ) porque
roubou com fraude as vaccas do grande armento , que pascia vizi
nho (12) á sua gruta : por esse facto cessaram suas obras iniquas,
caíndo sob a clava de Hercules , que lhe vibrou cem golpes , mas não
sentiu senão o decimo »). (13)
Emquanto Virgilio assim me falava, o Centauro passou alem de
nós, e eis que tres espiritos chegaram sobre o dique, onde estava
mos : ( 14 ) nem eu , nem Virgilio os vimos, senão quando nos gritaram :
« Quem sois vós : »
Este incidente cortou o fio da nossa conversa , e toda a nossa
attenção se voltou para elles.
Eu não conhecia nenhum d'estes tres espiritos ; mas aconteceu,
como costuma acontecer por algum caso, que um d'elles chamasse pelo
nome o outro , dizendo : « Onde estará Cianfa ?» ( 15) Então, para que o
meu Guia estivesse attento, com o dedo sobre os labios lhe fiz signal
de silencio . ( 16)
Agora , leitor , si achares arduo de crer o que vou contar, não me
admirarei ; porque eu mesmo que o vi com os meus olhos, apenas
creio no testemunho d'elles : (17) tão espantoso é o caso !
Emquanto ' eu estava fixamente observando os espiritos , eis que
uma serpente de seis pés se lança (18) a um (19) pela frente, e se atraca
totalmente com elle .
Aperta-lhe o ventre com os pés do meio , e com os dous dianteiros
prende-lhe os braços, e depois lhe morde ambas as faces.
Estende-lhe os dous pés trazeiros sobre as coxas, e lhe mette a
cauda entre ambas, retezando-a ao longo dos rins .
A hera não ligou jamais tão estreitamente seus filamentos á arvore,
como aquella horrivel serpente ligou os seus membros aos membros
d'aquelle homem ! (20)
Depois a serpente, e o homem se encorporaram , como si tivessem
sido formados de cera quente , (21 ) e por modo tal confundiram a mes
“ma côr, que nem a serpente parecia mais serpente , nem o homem
parecia mais homem !
É assim que o calor do fogo produz n'um papel , que arde , uma
cor escura, que não é todavia preta , e a côr branca pouco a pouco so
extingue. (22 )
Os outros dous espiritos viam este phenomeno , e cada um d'elles
gritava : « Ó Agnello, como te transformas! Vê lá agora que não és
nem um , nem dois !) (23)
Já as duas cabeças , a da serpente , e a do homem , não formavani
CANTO XXV 451

mais que uma , ( 21 quando as duas figuras de ambos appareceram


confundidas n'uma só face .
Dos dous braços do homem , e dos dous pés trazeiros da serpen
te se fizeram só dous braços do novo monstro : (25) as coxas com as
pernas, o ventre, e o peito se tornaram membros, que não foram ja
mais vistos. ( 26 )
Todo o aspecto primitivo da serpente, e do homem estava can
cellado n’aquella transmudada figura, (27) cuja imagem estranha pa
recia duas, e nenhuma, e tal , como a descrevo, andava a passo
lento . (28)
Assim como o lagarto, si atravessa o caminho, (29) passando de
uma a outra sarça nos dias caniculares , (30) parece fulgurar; (31) assim
parecia fulgurar uma serpentesinha inflammada, (32) livida, e negra,
como grão de pimenta , que vinha collimando o ventre (33) de um dos
outros dous espiritos .
E n'aquella parte que primeiro recebe o nosso alimento, feriu um
d'elles, que caíu logo estendido a seus pés . (34 )
O ferido fitou -lhe os olhos, mas nada disse ; antes , conservando - se
a pé firme, bocejava, como si o somno ou a febre o assaltasse . (35)
O homem encarava a serpente , e a serpente encarava o homem :
ambos fumavam fortemente, o homem pela ferida, a serpente pela
bocca , e o fumo, encontrando-se , confundia - se. (36)
Emmudeça agora Lucano 137" lá onde fala do misero Sabello , e de
Nasidio, e se prepare a ouvir o que agora se vae por mim tornar ma
nifesto.
Emmudeça tambem Ovidio a respeito de Cadmo, e de Aretusa; (38)
porque si em seus versos metamorphoseou aquelle em serpente, e
esta em fonte, não o invejo ; por isso que nunca transmudou duas na
turezas diversas, uma em presença da outra , por modo tal que ambas
as formas trocassem subitamente entre si suas substancias . ( 39)
Os successivos modos de transformação das duas naturezas opera
ram-se na ordem seguinte: a serpente dividiu a cauda em duas partes,
que se deviam tornar pés de homem , e o homem ferido encolheu os
pés .
Suas pernas, c suas coxas collaram-se tão estreitamente, que
em pouco tempo se converteram n'um só membro, sem que appare
cesse vestigio algum de junctura.
A cauda bifurcada da serpente tomava a figura, que as pernas, e
as coxas do homem perdiam, e a sua pelle se tornava macia , como a
do homem , e a pelle do homem aspera como a da serpente .
Vi os dous braços do homem contrahirem-se-lhe no corpo pelo
sovaco, até se tornarem curtos como os pés da serpente ; assim como
O
452 O INFERN

vi os dous pés da serpente, que eram curtos, alongarem-se á medi


da , que os braços do homem se encurtavam .
Depois os torcidos pés trazeiros da serpente transformaram -se no
membro que, a natureza occulta, e o misero condemnado, em vez
de um , tinha dous . (40)
Emquanto o fumo dá a côr da serpente ao homem , e a côr do
homem á serpente, produzindo na serpente cabello humano, e suppri
mindo -o no homem, a serpente homem levantou -se nos pés, e o
homem serpente caíu estendido em terra, (41 ) sen por isso cessar de
fixar um no outro os impios olhos , (42) sob cujo influxo mudava cada
um a face primitiva.
Aquelle, que se poz em pé, retirou o rosto serpentino para as
fontes, encurtando-o segundo a fórma humana, e do superfluo da
materia de que era composto, e que retirou para as fontes, se fizeram
as orelhas, e estas saíram das faces, que por isso ficaram á guisa de
faces humanas .
Aquella parte da materia, que não retirou para as fontes, serviu
para formar o nariz humano do rosto, e com a mesma sobejidão da
materia engrossou os labios quanto era necessario , para transformar
os labios de serpente em labios de homem .
Aquelle, que jazia estendido na terra, transformando -se em ser
pente, alonga para diante o rosto, e recolhe para dentro da cabeça
as orelhas, como o caracol faz com os cornos.
A lingua , que d'antes tinha unida, e expedita (13) para falar, divi
de - se em duas , ao passo que a lingua bifurcada do outro, já serpente,
se reune ; e aqui, completando-se a transformação, o fumo cessa. (44)
O homem , que se tinha tornado em serpente, (45) foge pelo valle
silvando ; e a serpente , que se tinha tornado em homem , (46)vae atraz
falando, e cuspindo .
D'esta guisa vi a canalha asquerosa da fossa septima, (47) verda
deiro lastro de navio, mudar -se, e transmudar-se (48) de homens em
serpentes , e de serpentes em homens : e aqui , si a minha penna se des
viou do estylo costumado, me sirva de desculpa a novidade da ma
teria . (49)
E bem que os meus olhos estivessem algum tanto confusos, e o
meu animo estupefacto, todavia, aquelles espiritos não lograram fugir
tão ás occultas , que eu não podesse conhecer claramente Puccio Scian
cato, que era o unico dos companheiros, que vieram antes, que não se
transformára: o outro era aquelle , por causa de quem tu, Gaville,
ainda choras . ( 50)
COMMENTARIOS AO CANTO XXV

( 1 ) Al fine delle sue parole il ladro do blasphemador, redobrava as roscas,


Le mani alzò con ambeduo le fiche, para ainda mais comprimil-o. Ribadire
Gridando: Togli, Dio, chè a te le squa significa rebitar, voltar a ponta do pre
dro. Al fine. O condemnado Vanni Fucci, go, para prender com mais efficacia
depois de haver exhaurido a sua ira o objecto, de modo que se não possa
contra Dante, passou a desafogal-a con soltar, ou desligar .
tra Deus, fazendo - lhe figas, fiche; acto ( 3 ) Che non potea con esse dare un
vituperoso, que se practica em desprezo crollo. As ligaduras com que a serpente
de alguem, e que consiste em pôr o dedo atou os braços do ladrão correspon
pollegar entre o indice, e o medio. Parece dem aos grilhões de ferro, e ás cadeias,
que antigamente era muito usado, pois com que na edade media se prendiam
que sobre a fortaleza de Carmignano os ladrões.
ainda se viam, no seculo xiii, duas mãos (4) ...chè non stanzi.É bello este zelo
que faziam figas a Florença. Os Floren de Dante contra os blasphemadores de
tinos fizeram demolir esse emblema do Deus, em defeza de cuja honra não se
vituperio em 1228 ( Villani). dedigna de olhar com menos repugnan
Togli, Dio, chè a te le squadro. Como cia , e asco as horriveis serpentes, nem
si dissesse : « A ti, ó Deus, faço estas de desejar ver incendiada Pisa , só porque
figas» . Squadrare. Allude bellamente á föra berço do blasphemo ladrão Vani
figura, que faz a mão quando cruza os Fucci ! ( Bennassutti ).
dedos para dar figas. Essa blasphemia Cria-se nos tempos de Dante, que os
era digna do ladrão sacrilego das alfaias satellites de Catilina, morto este, e des
sagradas, que, por despeito, e raiva de baratado o seu exercito, se estabelece
ver-se reconhecido, rompeu em tal ex ram no territorio de Pistoia; e por isso
cesso de impiedade. O uso de dar figas o Poeta n'esta sua apostrophe a Pistoia ,
chegou até nós. Eu te dou figas, é locu diz-lhe, que ella excedia em obras más
ção que se ouve a cada passo entre o aos seus proprios scelerados avoengos.
povo, o qual entende esconjurar o dia Com effeito, refere Sallustio, que os sol
bo, dizendo : « Eu te dou figas, Pés de dados de Catilina se refugiaram no agro
Pato» . Pistoiense : Reliquos Catilina per mon
(2 ) Ribadendo sè stessa sì dinanzi. A tes asperos magnis itineribus in agrum
serpente retorcia-se sobre si mesma. Pistoriensem abducit.
Quer dizer, que ella, laçando o pescoço ( 5 ) Non quel che cadde a Tebe giù de
454 O INFERNO

muri. Como si dissesse : «Nem mesmo ( 13 ) Gliene diè cento, e non senti le
aquelle Capanéo, que se precipitou dos diece.Vibrou - lhetalvez cem golpes, e não
muros de Thebas quando, blaspheman sentiu senão o decimo . Isto é, morreu aos
do contra Jove, foi por elle fulminado. primeiros golpes, mas Hercules, no fu
(canto xiv, v. 46, e seg.). ror da vingança, continuou a feril-o,
(6) Ed io vidi un Centauro ... Este embora já estivesse morto.
Centauro é Caco, de que adiante se fa ( 14) E tre spiriti venner sotto noi.
lará. Os tres espiritos, que chegaram sob o
(7) Maremma non credio che tante dique, onde estavam os dous Poetas, são
n'abbia . Maremma é um tracto de terra Agnolo, Brunelleschi, Buoso dos Abatis,
selvoso, e palustre na Toscana junto ao e Puccio Sciancato dos Galigais, os
mar, onde antigamente, mais do que quaes, achando - se collocados nos pri
hoje, encontravam-se muitas serpentes. meiros empregos da republica Florenti
(8) Infin dove comincia nostra labbia. na, dissiparam-lhe as rendas em seu
Até onde começa a nossa fórma huma proveito, e enriqueceram em damno pu
na. Outros entendem em sentido pro blico .
prio, isto é, labbia (labios) por faccia ( 15) Cianfa dove fia rimaso ? Foi
( por faces). este Cianfa da familia florentina dos
(9) E quello affoca qualunque s'intop Donatis ; mas Pedro Dante diz que dos
pa. Aquelle dragão, que queima todo o Abatis. Com a interrogação : «Onde
individuo, que lhe sáe ao encontro , é o está Cianfa ?» quer o Poeta significar
Centauro . que Cianfa tinha desapparecido da vis
( 10) ... Quegli è Caco. Caco foi um ta dos outros tres, transformando - se na
feroz ladrão, que tinha sua caverna em serpente de seis pés, que em breve dirá
o monte Aventino, uma das sete collinas se enlaçou , e se identificou com Bru
sobre as quaes depois foi edificada Ro nelleschi.
ma . Os mythologicos não dizem que ( 16 ) Mi posi 'l dito su dal mento al
elle fosse Centauro ; mas Dante assim o naso. Tal é o signal, que se costuma
finge sob a auctoridade de Virgilio, que fazer para impor silencio . Estende- se o
no livro vil da Eneida o diz meio ho dedo do queixo ao nariz, como se que
mem , e meio cavallo . rendo tapar a bôcca .
( 11 ) Non va co ' suoi fratei per un ( 17 ) Chè io, ch'l vidi, appena ilmi
cammino. Isto é : Não vae em compa consento . Como si dissesse : « Apenas
nhia dos outros Centauros, que estão creio a mim mesmo, apenas convenho
no circulo dos violentos (canto XII, v. 55, commigo mesmo, que o facto, que eu
e seg.) , porque no roubar elle usou de vi seja verdadeiro » . Tão extraordinario
fraude, e os outros não. era, que inclinava o Poeta a crer fallazes
( 12 ) Del grande armento , ch ' egli os proprios olhos.
ebbe a vicino. Este armento, que pas. ( 18) E un serpente con sei piè si lan
tava na vizinhança era aquelle, que cia. Eis que uma serpente com seis pés .
Hercules havia tomado a Geryão, Rei da Esta serpente de seis pés é o transfor
Hespanha, e que, passando pela Italia, mado Cianfa .
o conduzira ao monte Aventino , onde se ( 19 ) Dinanzi all'uno ... Este a quem
nutria . Caco roubou quatro touros, e a serpente se lança, e afferra é Agnolo
quatro vaccas, e, para occultar o furto, Brunelleschi. Verdadeira imitação do
os arrastava pela cauda á sua caverna, modo por que os esbirros da policia
Mas, Hercules andando em procura prendem um ladrão !
d'elles , lhes ouviu o mugido, que logo É um quadro de riquissima phantasia,
reconheceu. Descoberto assim o furto em que se figuram tormentos condi
matou o ladrão a golpes de clava, se gnos de ladrões.
gundo Ovidio . ( 20) Per l'altrui membracriticchiù
COMMENTARIOS AO CANTO XXV 455

le sue. Este homem , e esta serpente , fundido, torna - se um complexo de mem


assim ligados estreitamente, formam um bros nunca jamais vistos.
grupo de immenso terror ! ( 27 ) ...l' imagineperversa , etc. Ima
( 21 ) Poi s' appiccar, come di calda gem perversa , isto é , monstruosa .
cera . Este simile da cera quente é de ( 28 ) Parea, e tal sen gia con lento
grande propriedade. passo. E porque caminhava com lento
( 22) Per lo papiro suso un color bruno. passo ? Porque naturalmente não podia
Não é menos engenhosa esta similhança correr, e a razão por que não podia
com o phenomeno , que apresenta o pa correr é que , tendo este monstro em
pyro, quando se lhe applica fogo. Toma si duas naturezas, dous instincios, como
se aqui o papyro pelo papel. A chamma duas especies de membros, emquanto
arde, e onde arde a chamma, a côr do um instincto queria que elle caminhasse
papel é negra ; mas adiante da chamma como homem , outro instincto queria
vae correndo pelo papel uma tal quen que elle caminhasse como serpente ; e
tura, que é de côr nem branca , nem emquanto um membro queria mover-se
negra. Em summa, é uma cor, que não como serpente, o outro membro pelo
se pode dizer branca, porque partici contrario queria mover-se como ho
pa de negro, nem se pode dizer negra , mem . D'esta lucta intima resultava con
porque participa de branco. Tal era a traste no movimento , e por isso o mo
côr dos dous condemnados confundidos : vimento , e o passo deviam ser necessa
não havia mais côr de homem, mas riamente lentos . Nada mais natural, nem
tão pouco havia cor de serpente . É uma mais philosophico.
terceira côr, que não é nem uma, nem (29) Come 'l ramarro sotto la gran
outra. Immortal Dante ! fersa. Esta é a terceira transformação.
(23 ) Nè l'un nè l'altro già parca Com a primeira, por effeito da morde
quel ch'era. Isto é, nem homem , nem dura pestifera, um ladrão se desfaz em
serpente visiveis, e distinctos um do cinzas, e das cinzas renasce homem .
outro : mas sim um composto, um mix Com a segunda, uma serpente, e um
to de ambos; em summa, uma cousa ladrão se confundem em um só sujeito
confusa, um incognito indistincto . monstruoso . Com a terceira, que é a
(24) Già eran li duo capi un divenuti. presente, uma serpe transforma -se em
Descreveu até aqui a mudança das fór um ladrão, e um ladrão em serpente . O
mas primitivas de cada um , vae agora pensamento d'estes varios generos de
dizer que monstro saiu de tal mistura . transformações, que com os seus tres
Começa pois pela cabeça : de duas ca casos comprehendem todos os outros
beças fez -se uma, e de duas faces fez tres casos possiveis, é muito bem en
uma, na qual por isso viam -se duas fi tendido; porque, ao passo que com
guras confusas, sem que se podesse essas trasformações os ladrões são ator
affirmar qual d'ellas fosse a do homem , mentados de tantos modos, se allude
ou a da serpente ; só se podia dizer que tambem a outras tantas transformações
ambas se tinham perdido uma na outra ! da sua vida, as quaes foram um meio
(25 ) Fêrsi le braccia duo di quattro fraudulento de industria para se saírem
liste. A saber : dos dous braços do ho bem dos seus facinorosos intentos (Be
mem , e dos dous pés trazeiros da ser nassutti).
pente, fizeram -se dous braços do novo (30 ) De' di canicular, cangiando sie
monstro ; os quaes não eram mais nem pe. Quando o sol está na constellação
braços humanos, nem braços serpenti da canicula, ou no coração do estio, as
nos . serpentes têem mais vivacidade, como
( 26 ) Le cosce colle gambe, il ventre animaes, que amam os climas ardentes;
e il casso. O resto, que aqui se nomeia como ao contrario se tornam entorpe
do homem , e da serpente unido, e con cidas no inverno .
NO
456 O INFER

( 31 ) Folgore pare, se la via attraver . inchou por modo, que estourou elle, e
sa. N'este atravessar o caminho o la a couraça .
garto é assim veloz por medo dos pas (38) Taccia di Cadmo e d ' Aretus.
sageiros. Ovidio. Com effeito, Ovidio, no 4° livro
( 32) ...un serpentello acceso. Isto é, das Metamorphoses, refere a transfor
respirando fogo das fauces. Esta serpen mação de Cadmo ( filho de Agenor, rei
tesinha é um ladrão, que havia sido da Phenicia, e fundador de Thebas) em
antes transformado em serpe . serpente. E no livro 5.', refere a trans
Quando porém se diz que uma ser formação de Aretusa ( filha de Nereo,
pente é accesa, não se entende que res e de Doris, e nimpha de Diana) em fonte.
pira verdadeiras chammas, mas só que (39) Chè duo nature mai a fronte a
com a sua mordedura causa no mordi fronte Non trasmutò, sì ch ' ambedue le
do um grande calor, como de fogo. Taes forme A cambiar lor materie fosser
eram as serpentes, que morderam os pronte. Porque não transformou nunca
Hebreus no deserto. duas naturezas diversas em presença
( 33) E quella parte, d'onde prima è uma da outra, de maneira que suas fór
preso , etc. Isto é, o embigo, que é aquel mas fossem promptas a trocar imme.
la parte do corpo por onde se trans diatamente a sua materia ; mas trans
mitte o sangue á placenta, e por esta mudou simplesmente um ser de uma
ao feto no seio maternal. fórma em outra . Nas outras transforma
( 34) Lo trafitto il mirò, ma nulla dis ções, uma fórma, por exemplo, a alma
se. O primeiro effeito das mordeduras vivente do homem , toma a materia ou
de certas serpentes venenosas, e pesti substancia de animal, ou de planta ;
feras é a fascinação, e adormecimento mas aqui a fórma da serpente toma o
na pessoa mordida. corpo do homem, e no mesmo acto a
( 35) Pur come sonno o febbre l'assa fórma do homem toma por sua vez o
lisse. Os bocejos, e preguiçamentos são corpo da serpente, e n'isto é que con
os pródromos da febre, ou do somno siste a superioridade prodigiosa de Dante
que se avizinha. sobre Ovidio.
( 36 ) Egli il serpente, e quei lui ri (40) E il misero del suo n'avea duo
guardava. Prosegue a effectuação activa, porti. Quer dizer, que o homem, em
e reciproca dos meios para produzir logar de um membro , fez irromper
uma mutua transformação: 1.º, olhando dous para formar as pernas serpentinas
fixamente um para o outro; 2.º, fuman trazeiras. Veja-se n'esta metamorphose
do ao encontro um do outro de modo a perpetua correspondencia das normas
que o fumo de um entre no fumo do como acima disse o Poeta : a serpente
outro, confundindo -se. N'este fumo en. faz membro viril das pernas reunidas, e
cerrava - se a substancia de ambos, e por o homem faz as pernas serpentinas do
meio d'esse fumo as duas substancias seu penis bipartido; e assim no mais
trocavam -se. Era uma especie de ma ( Bianchi ) .
gnetisação levada a quinta essencia, ou (41 ) L'un si levò, e l'altro cadde
a summo gráo ? giuso. Um levantou - se, e outro caíu por
(37) Taccia Lucano omai, là dove terra. Quem se levantou nos pés ? Foi
locca . Allude aqui Dante ao facto nar aquelle, que antes era serpente , e agora
rado por Lucano, em o livro ix da é homem , em tudo, menos a cabeça.
Pharsalia, de ter Sabello, soldado do Quem caiu em terra ? Foi aquelle, que
exercito de Catão, sido mordido na era homem, e agora é serpente em tudo,
Libya por uma serpente, caindo quasi menos tambem na cabeça. Porque um
instantaneamente morto , e desfeito em se levantou, e o outro caiu ? Levantou
cinzas. Narra tambem que Nasidio, ou se o ex - serpente, porque agora tinha os
tro soldado, sendo picado por aspide , pés, e as pernas de homem , o qual tem
COMMENTARIOS AO CANTO XXV 457

a propriedade de estar em pé, e esta é tural, e Dante teve o grande merito de


a sua natural posição ; caiu o ex -homem conhecel- o no seu tempo. O mesmeris.
porque agora tinha os pés, e as pernas mo é uma invenção de charlatães de
de serpente, a qual tem a propriedade áo genero .
de estar estendida de barriga para a (45 ) L'anima, ch'era fiera divenuta .
terra, sua natural posição (Bennassut Agora, que a transformação está com
ti ) . pleta , pela qual o homem se tornou ser
(42 ) Non torcendo però le lucerne em pente , a serpente se tornou homem ,
pie. Os olhos eram ferozes, porque eram devem estes dous novos sujeitos obrar,
olhos de condemnados. Portanto o con segundo a nova natureza, que hão ad
tínuo olhar reciproco, e o simultaneo quirido : a serpente como serpente, é o .
fumar, servem para magnetisar ambos, homem como homem ; por isso a ser
e isto por effeito natural, e para trans pente foge pelo pavimento da fossa si
formar - lhes a natureza, e isto effeito bilando , e o homem cospe, e fala, que
sobrenatural fingido pelo Poeta . Segun são dous actos humanos ; mas elle cospe
do Rossetti, lucerne empie, sãometapho pelas costas mostrando desprezo, e in
ricamente tomadas pela ferida de um , e dignação do outro, porque o homem
pella bocca do outro, por ambas as tem em desprezo, e odio a serpente. .
quaes saía o fumo; as quaes lucerne (46) Poscia gli volse le novelle spalle.
(olhos) não cessaram, ainda depois que As espaduas humanas, que havia ha
um se levantou , e outro caiu, de per pouco tomado do outro, deixando- lhe
manecer em frente uma da outra, e de os seus membros serpentinos. Buoso, da
encontrarem -se as duas exhalações, sob nobre familia dos Abatis.
cuja actividade, como já ficou dito, ope (47 ) ... settima zavorra. Fossa septi
rava-se a mutua transformação das duas ma, ou septimo fundo pela similhança ,
naturezas, e faces primitiva. Tudo isto que tem o fundo d'esta fossa com o
é sublime de invenção. fundo do navio, onde se colloca o lastro.
(43 ) E la lingua, ch' aveva unita e (48 ) Mutare e trasmutare ... Mudar,
presta. A ultima cousa a transformar -se e transmudar, isto é, de homem em ser
n'um, e n'outro foi a lingua. A lingua pente, e de serpente em homem, como
do ex-homem, que antes tinha duas o caso de Buoso : de homem e serpente
qualidades, a de ser unida, e a de ser ao mesmo tempo em um terceiro ser
apta para falar, bifurca-se, e torna - se todo diverso de um , e de outro, como
impotente para articular palavras; e a o caso de Agnolo Brunelleschi : final
lingua da ex-serpente, que era bifurcada, mente de homem em cinza, como o
o incapaz de falar, reune as duas caso de Vanni Fucci.
pontas, e assim adquire a propriedade (49) La novità, se fior la lingua abor .
da linguagem humana. ra . Querendo dizer : E aqui se me des
(44) ... e il fumo resta . O fumo cura, culpe a novidade do assumpto, que, si
e cura tambem o olhar reciproco, que seria difficil exprimil-o em prosa , muito
foram os dous meios, com os quaes mais o é em verso , e por isso não será
operou-se a mutua transformação. Sei para estranhar que a lingua tenha aber .
que isto não é só magnetisação; mas rado algum tanto do costumado estylo.
sei tambem que Dante tira que póde Aborra, por aberra, do antigo aborrare
da sciencia , e o resto é creação de sua por aberrar ( Bennassutti).
assombrosa phantasia. Enganar -se -hia Outra variante : E aqui me sirva de
redondamente quem cresse que ha n'este desculpa a novidade do thema, si a pen
admiravel processo dantesco uma inicia na, longe de traçar flores, e elegancias,
ção do mesmerismo, que é cousa bem escreva cousas monstruosas, e horriveis
diversa do magnetismo . Este é natural , ( Fraticelli ) .
e os seus effeitos estão só na ordem na ( 50) L'altro era quel che tu , Gaville,
NO
458 ( ) INFER

piagni. Este ultimo, que o Poeta aqui sassinado. Seus parentes, para vingar
nos faz conhecer por circumlocução, era lhe a morte , levaram a fio de espada
Francisco Guercio Cavalcanti, que , ten muitos d'aquelles habitantes, que por
do por suas rebaldarias excitado contra longo tempo tiveram de derramar la
si os homens de Gaville, pequeno paiz grimas pelos tristes effeitos de tão cruel
de Val d'Arno superior, foi por elles as vingança.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVI

Na oitava fossa Dante colloca os fraudulentos politicos, Reis , e Ministros de


Reis, que fazem profissão de fraude nos factos, e nas palavras, e que, quanto melhor
sabem enganar, tanto melhor são mais bem reputados. Colloca-os abaixo dos simo
niacos, dos hypocritas, e dos ladrões ; porque , não em uma só cousa, mas em todas,
procuram enganar ; damnificando por conseguinte mais, que os hypocritas, simo
niacos, e ladrões ; visto que estes fazem mal occultamente, e aquelles o fazem sob
nossos olhos, pela fraude subtil com que usam de uma linguagem tão capciosa que,
em vez de manifestar, encobre os seus perversos designios ; razão por que maior
deve ser o seu castigo, pelo abuso que fazem de um dos mais preciosos dons, de
que o Creador dotou o homem : a palavra , orgão natural, e não artificioso do pen
samento . É por isto que Dante, que nos mostra sempre os condemnados padecendo
no Inferno de modo que sejam vistos, aqui nol- os mostra envolvidos em chammas,
que os occultam, como quem occulta um furto, e isso para significar allegoricamente ,
que elles, assim como n'este mundo fazem todo o estudo em esconder com malicia,
e fraude os seus pensamentos, em damno do proximo, assim tambem no Inferno
são escondidos em chammas, por cujo orgão falam ; pois não podem falar com a
propria lingua, em castigo de a terem tido sempre muda para dizer a verdade com
toda a lisura , e natural singeleza. Entre os pagãos, Dante faz sobresaír Ulysses, e
Diomedes, como os dous mais astutos, e fraudulentos dos antigos , e como os mais
afamados por aquella prudencia , antipoda da sinceridade, e simplicidade evange
lica : entre os christãos nomeia o Conde de Montefeltro, do qual tracta no canto
seguinte. Dante estabelece, que Ulysses naufragára, e perecêra no mar, depois da
guerra de Troia , ao passo que Homero diz que elle voltára a Itaca, sua capital, e ahi
fallecêra : por esta asserção de Homero, o grande Torquato Tasso censura respei
tosamente Dante de ter alterado a fabula, ou a historia. Mas Plinio, e Solino, e a
opinião universal, sustentam invariavelmente , que Ulysses morreu navegando no
alto Oceano (1 ) ; e talvez Homero alterou a historia , porque em Ulysses elle perso
nificou a prudencia humana ; e depois de ter na pessoa d'elle dado tantos ensinos
aos homens, maximamente aos Reis, quiz tambem ensinar a estes na pessoa de

( 1 ) Até Horacio dá como certo o naufragio de Ulysses, dizendo :


Von huc Sidoni torserunt naulir ,
Laboriosa nec colors Ulyssi.
Nem os pilotos Sidonios voltaram para aqui nas vergas,
Vem de Ulysses a frota sossobrada .»
460 O INFERNO

Ulysses, como devem extirpar os abusos, que por sua essencia se introduzem nas
côrtes ; de modo que o Ulysses de Homero é como o Esopo dos fabuladores; e
por isso não se deve reprehender Dante de ter alterado a fabula, como não se
reprehendem aquelles fabuladores, que contam cousas, que não se encontram nas
fabulas dos antigos, e que antes lhes são contrarias.
« Ha quem diga, observa Poggiali, que depois da guerra de Troia, Ulysses com
summa coragem emprehendeu com alguns companheiros, audazes como elle, uma
navegação, até então julgada inexequivel, no Oceano, alem do Estreito Gaditano
( hoje Estreito de Gibraltar ), e que, depois de ter fundado Lisboa ( Olyssipo), se
guiu á esquerda do dito Estreito, cortando um bom tracto do mar Atlantico em
torno d'Africa, onde finalmente pereceu por uma tempestade. Parecendo commoda
a Dante esta opinião da navegação, e morte de Ulysses, opinião que tem por au
ctores Plinio, e Solino, a suppóe como certa, e , de conformidade com ella, faz
Ulysses falar n'este canto . »
Da narração, porém, que Ulysses faz em seguida , se vê claramente, que Dante
não abraçou em tudo a opinião de Plinio, e de Solino ; e com effeito, propondo o
heroe grego a seus companheiros, dirigir a sua viagem após o curso do Sol, para
descobrir o mundo inhabitado (il mondo senza gente, V. 117 ), parece evidente que
aquelle capitão não tivesse no pensamento navegar em torno d'Africa, cuja costa
occidental jaz toda ao sul do Estreito de Gibraltar : alem d'isto é de notar, que
a viagem seguiu exactamente na proposta direcção para o Poente, dobrando porém
ao Sul ( v. 124 a 127 ), quero dizer, ao Sudoeste ; e que Ulysses, depois de cinco
mezes de navegação, chegára á linha equinoxional, ou a tinha ultrapassado ( v. 127
a 129 ), quando descobriu uma montanha altissima, e ahi pereceu em naufragio com
os seus companheiros.
5
Outros esgrimem sobre a significação allegorica que Dante dá a essa montanha
altissima, d'onde surgiu o furacão, que produziu o tragico fim de Ulysses, e de
seus companheiros, dizendo que muitos antigos geographos, de accordo com as
conjecturas de Platão, e de outros sabios gregos, não desconheceram uma terra
muito ao occidente do velho mundo, chamada Atlantide, por ser no mar Atlantico,
e que é possivel, que Dante suppozesse ser aquelle alto monte parte d'esta terra.
O illustrado critico Ginguené expõe acerca d'este grave assumpto as seguintes con
ecturas : « Os commentadores querem que Dante, seguindo uma tradição differente
da de Homero, e de que se acha alguns vestigios em Plinio, e Solino, designa aqui
o monte , no alto do qual figura, que era o Paraiso terrestre, onde deve elle subir
na terceira parte do seu Poema ; nada porém no texto indica essa intenção. É ne
cessario talvez ir mais longe que os commentadores. Ora, não será possivel, que
Dante tivesse tido algum conhecimento ou alguma idea da grande catastrophe da
ilha Atlantide, que parece ter sido collocada no Oceano, que tem este nome ; que
esse monte, d'onde se levantou o furacão destruidor, fosse o vulcão de Teneriffe,
que, depois de longo tempo extincto, domine sobre as Canarias, antigas reliquias
da grande ilha, e que emfim o Poeta florentino tivesse querido registrar essa opi
nião no seu Poema ? Entrego aos estudiosos de Dante esta conjectura, que não é
aqui o logar de a profundar, mas que se conformaria talvez com o que os antigos
disseram das Ilhas Afortunadas, onde collocaram a mansão dos bemaventurados, e
com o que a respeito d'isto têem escripto alguns modernos. Não se poderá crer
tambem , e porventura com mais verosimilhança que, sem embargo de não ter sido
ainda descoberta a America, já corriam vagas conjecturas da existencia de um
outro mundo alem dos mares, e que Dante, attento em recolher no seu Poema
todos os conhecimentos adquiridos no seu tempo, não desprezasse esse rumor, tão
importante por seu objecto, por mais confuso que fosse ? »
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVI 461

Estas conjecturas do sabio Ginguené seriam , quando menos, plausiveis, si o


conceito de Dante aqui se devesse entender no sentido litteral, e não no allegorico,
e si ao mesmo tempo não estivessem em desaccordo com a narração do Poeta, o
qual, figurando o naufragio de Ulysses ao chegar ao Equador, e demorando as Ilhas
Afortunadas mais de 19 gráos áquem da linha equatorial, não podia o monte,
d'onde irrompeu o terrivel furacão, ser o vulcão de Teneriffe. Isto parece-nos sem
replica.
O mais formidavel escolho, em que têem naufragado todas as tentativas da ma
xima parte dos commentadores de Dante, é não terem acabado de comprehender,
que por expressas, e positivas declarações do Poeta, a Divina Comedia encerra
muitos sentidos plures sensus, como deixei demonstrado n'outro logar.
É assim que tantos commentadores, aliás illustrados, e bons catholicos, não
têem reflectido que este escurissimo episodio da viagem de Ulysses, encobre uma
das mais bellas, e profundas allegorias, que o genio creador do Poeta theologo pro
duziu ! Procurarei desenvolvel - a o mais resumidamente possivel.
Pondo de lado o falso presupposto de que Dante concebeu a idéa d'este epi
sodio, sob a influencia de tradições historicas gentilicas, pois que a idea dantesca é
inteiramente biblica, assim como sublimissima a significação allegorica que dá a
viagem de Ulysses, tomarei por norte o fim principal da Divina Comedia , que é á
conversão do peccador, por meio da penitencia, ao estado de graça, ou de innocen
cia primitiva, e por esse caminho chegar á plena glorificação, que é o mesmo que
dizer, que a humanidade em Dante começa do peccado, do peccado volta á inno
cencia pela penitencia, e pela penitencia acaba pela fruição da gloria eterna.
Fixados estes principios, estabelece Dante em boa theologia, que quasi toda a
descendencia de Adam não quiz saber do caminho recto traçado por Deus a Adam ,
e por Adam seguido, para readquirir a felicidade eterna do Paraiso. Propozeram- se ,
pois, procural-a por dous falsos caminhos, uns para o Oriente, outros para o Oc
cidente. Dos primeiros fala o Genesis : Egressusque Cain a facie Domini, habitavit
profugus in terra ad Orientem plagam Eden ( IV, 16) . Acreditava o fratricida, que
seguindo por essa estrada em busca do Paraiso perdido por seu pae, não seria
traspassado pela espada de fogo (flammeum gladium et versatilem ), de que Adam
lhe deveria ter falado ao narrar-lhe, como é natural, a historia do Paraiso terrestre,
e da sua expulsão pelo flammeum gladium et versatilem, que Tertulliano, e Sancto
Thomaz interpretam por inflammado equador (per infocato equatore). É inutil
dizer, que Caim, e sua grande descendencia , si acharam illudidos nas suas loucas
esperanças. Não era esse caminho para voltar ao Paraiso. Ora, entre estes illudi
dos mortaes colloca-se Dante, personificando em si a humanidade, e é por isso que
elle se mette na selva a leste do Calvario .
Dos segundos, que foram todos habitadores occidentaes do Calvario, dispersos
pela Europa, e Africa, que andaram tambem a buscar a perdida felicidade, por
estrada egualmente não boa, por não ser aquella ensinada por Adam , a Escriptura
não fala de modo explicito ; mas Dante, suppondo como certo, por alguma indi
cação biblica, que logo veremos, ter tambem acontecido esta segunda tentativa,
d'ella fala n'este canto xxvi, imaginando uma viagem de Ulysses, e de seus com
panheiros, que nenhum historiador refere. Figura-os, como já ficou dito, gyrando
por todas as plagas mediterraneas da Europa, e da Africa, para representar assim
n'elles todos os povos do Occidente . Fal -os ultrapassar as columnas de Hercules
em ousada navegação em torno do monte do Paraiso terrestre. Após cinco mezes,
eil -os chegados perto da linha equatorial. Por ser desmedidamente elevada a altura
do monte, avistam-no de longe, estando elles ainda ao norte do equador, e logo
rompem em gritos de alegria, como se effectivamente houvessem chegado ao logar
462 O INFERNO

da humana felicidade. Elles, porém, não haviam de lá chegar ; porque não podiam
sequer passar o Equador, aquelle flammeum gladium et versatilem . N'aquelle
mesmo ponto, d'onde lobrigam a summidade do monte, foram accommettidos de
um terrivel furacão, que os fez engulir pelas ondas com todas as suas esperanças.
Tambem estes tinham errado o caminho para chegar ao Paraiso terrestre, c
com elles ( giacchè gli Ulissi sono figura di tutti i popoli occidentali) o tinham er.
rado egualmente os habitadores da Europa, e Africa. Eu disse ha pouco que a
Escriptura não fala explicitamente d'estes segundos, que pelo errado caminho do
Occidente andaram em demanda de um logar de felicidade ; mas agora digo que,
si não fala explicitamente, não é menos certo que fala implicitamente. Com effeito,
crè-se commummente, que aquelles, que em tempo immemorial ( ab immemorabili)
seguiram a povoar a America, fossem sem duvida aquelles povos Cananéos, que,
expellidos pela ira de Deus no momento da entrada do povo sancto na Terra da
Promissão, ultrapassaram , ao menos uma parte d'elles, o Estreito de Gibraltar, em
busca de logares de repouso , até que por fim chegassem ao continente americano.
Ora, não tendo voltado nunca, nem havendo mais noticias d'elles, acreditou -se
universalmente, que tivessem sido submersos pelas ondas. Das excursões longin
quas d'esses povos malvados, aturdidos com as maravilhas de Deus em favor do
seu povo, a quem queria metter de posse da Terra Sancta, e do Calvario ainda
mais Sancto, temos claros testemunhos no livro do Exodo ( xv, 15, e segg.), onde
se rendem graças a Deus por essa expulsão de Cananéos, até então somente pro
phetisada. Consoantes com as palavras do Exodo, são as de David, que mais cla
ramente fala da dispersão dos filhos de Moab : Manus tua gentes disperdidit, et plan
tasti cos : afflixisti populos, et expulisti eos. (Psalmo, 43, 3 ). No Psalmo, 77, 54, en .
que narra os beneficios de Deus feitos ao seu povo, diz : Egecit a facie eorum
gentes, et sorte dirisit eis terram in funiculo distributionis. E no Psalmo 79, 9 : Vineam
de Ægypto transtulisti: Ejecisti gentes et plantasti eam . Não menos consoantes
são as de Isaias: Ducam cæcos in viam quam nesciunt, et in semitis quas ignorave
runt ambulare eos faciam : ponam tenebras eorum in lucem et prava in recta (XCII,
16) .
Dissemos, que esses povos, ou ao menos parte d'elles, andaram até America ;
porque as tradições, os usos, os monumentos, e a lingua os accusam de origem
Cananéa, segundo as investigações scientificas de muitos eruditos modernos. A
expulsão d'esses incircumcisos, succedeu cerca de 1450 annos annos antes de Jesus
Christo, e uns trezentos annos depois d'ella imagina Dante a viagem do seu Ulysses,
e companhia . O intervallo d'estes tres seculos é mui sabiamente pensado ; porque
o Poeta deixou assim tempo aos povos Cananéos de se estabelecerem, e estenderem
pelas costas mediterraneas, e d'estas depois uma parte d'elles aventurou-se a peri
gosa, e funesta navegação. Diz funesta, porque suppõe que tal expedição naufragou,
e porque surpõe não haver no outro hemispherin terra habitavel por ninguem : il
mondo senza gente. A idea de que viajando ao longe para o Occidente, se encontra
ria por fim um logar de perfeita felicidade, era tão diffundida nos tempos posterio
res entre os mais cultos povos da Europa , quaes os Romanos nos dias de Augusto,
que Horacio em uma das suas Odes mais celebres convidava os mesmos Romanos
a abandonar a Europa tumultuosa, e infeliz, a se dirigirem em cardumes pelo
grande Oceano ás Ilhas Afortunadas, ultimo logar então conhecido, de cuja região
faz uma pintura tão linda , e seductora , que o leitor é tentado a ver n'ella uma
verdadeira descripção do Paraiso terrestre de Adam ! con
Em contraposição a estes dous grandes desvios do verdadeiro caminho,
mettidos pela humanidade, a Biblia offerece-nos o importante espectaculo d'aquelles,
que, não se deixando enganar pelos que seguiram os dous errados caminhos, 10

1
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVI 463

maram o verdadeiro, seguido por Adam, isto é, o da penitencia, e é este exacta


mente o caminho de Dante. Esta rapida synthese geographica de todos os caminhos
batidos pela humanidade em demanda de um estado feliz, seguindo uns para o
Oriente, e outros para o Occidente, parecerá talvez um delirio poetico de Dante .
Mas não é assim. Dante não delira , nem escreve as cousas, senão de muito pen
sado, e com profunda reflexão, mirando sempre algum fim moral da humanidade.
A Biblia é a musa da sua inspiração, como a regeneração espiritual do peccador é
o seu supremo desideratum . Nada é tão familiar nos livros da Escriptura, como o
apresentar-nos ella todos os esforços humanos na investigação dos meios de alcan
çar a felicidade sob a imagem ou emblema de varias estradas. A idéa, por exem
plo , de levantar a torre de Babel, com ser o maior dos delirios , e dos attentados
da humanidade, era, no errado juizo dos seus auctores, uma aspiração para o beni .
O ser feliz é o sonho dourado do homem ; a sua desgraça é o erro na escolha dos
meios .
Repito , pois, que n'este episodio da viagem de Ulysses, ha uma allegoria da
maior importancia moral , e a mais conforme com o espirito da Divina Comedia, e
tanto é certo, que ha aqui uma allegoria, que no Paraiso, canto xxvi, o Poeta a
ella volta , confirmando que a temeridade de Olysses em desprezar o non plus ultra
de Hercules, é o symbolo da temeridade com que o homem despreza as divinas
prohibições do seu Creador ; assim como o naufragio desastroso de Ulysses pagão
é o symbolo da condemnação eterna dos Ulysses christãos.
Dante parte do principio de que o Calvario é o ponto central, para onde deve
voltar -se a humanidade, tanto do Oriente , como do Occidente, si quizer achar a
salvação, segundo aquelle oraculo de Isaias : Ab Oriente adducam semen tuum , et
ab Occidente congregabo te ( xliii, 5). E n'outro logar : Adducam eos in montem san
ctum meum (LVI, 7 ) . A razão d'esta convergencia para o Calvario é muito clara . A
nossa Redempção operou -se no Calvario, e a unica verdadeira estrada para voltar
ao Paraiso perdido, é sob o monte Calvario, como imaginou Dante com a mais
bella , e engenhosa das suas phantasias poeticas. A sua mente é, e n'isto está de
accordo com o sentir da Egreja, que a humanidade antes de Jesus Christo não teve
por objectivo directo, senão o Calvario ; mas a humanidade depois de Jesus Christo,
alem do Calvario, que é commum a ambas, tem outra direcção, que é Roma , séde,
c centro da catholicidade, e de todos que se salvam , como pensa, e escreve o
mesmo Dante no canto 1, e no i do Purgatorio, e n'outros cantos. Ora bem :
estes dous pontos catholicos, Calvario, e Roma, sobre que Dante baseia a sua Di.
vina Comedia, não são, segundo a bella expressão de Montebruno, senão o sangue
de Jesus Christo inoculado nas veias catholicas, pelo grande coração da Egreja, o
Pontifice Romano .
Agora direi, que Dante n'este episodio da viagem , e naufragio de Ulysses, não
se inspirou, como querem os commentadores, dos dizeres vagos dos gregos sabios,
nem dos geographos antigos; inspirou -se pelo contrario, da doutrina dos theolo
gos catholicos, reproduzida por Pedro Lombardo, quando assignala a opinião
commum dos Theologos, sobre o logar onde existiu o Paraiso terrestre, dizendo :
Esse Paradisum terrestrem , spatio vel maris, vel terræ a regionibus quas incolunt ho
mines secretum , et in alto situm , usque ad lunarem circulum pertingentem ; unde nec
aquæ diluvii pervenerunt (Sent., liv. II, dist. 17 ) . Dante, pois, seguindo este pensa
mento, figurou no meio do hemispherio terrestre debaixo de nós um monte altis
simo, cercado de immenso mar, na summidade do qual monte, alem de ter collo
cado, conforme a opinião citada, o Paraiso terrestre, colloca tambem nas suas
faldas o Purgatorio. É este o.monte altissimo que Ulysses viu , e ao qual monte
Dante ha de subir, no Cantico 11. Dants, pois, quiz significar allegoricamente, que
464 O INFERNO

assim como Ulysses, e seus companheiros, por terem seguido errado caminho, em
busca do Paraiso perdido, foram submersos nas aguas do Oceano por um furacão
terrivel ao chegar ao Equador, que, segundo já vimos, significa espada de fogo
flammeum gladium et versatilem , assim tambem todos os peccadores, que pretende.
rem entrar no Paraiso, por outro caminho, que não o da penitencia , e da purificação,
isto é, sem passar pelo Purgatorio, ham de perecer por outro furacão ainda mais
terrivel, isto é, a espada de fogo, a cujos golpes se abysmarão no tempestuoso mar,
no Inferno. Está entendido, que Dante fala em these geral, não querendo dizer, que
os peccadores, quaesquer que sejam suas penitencias n'este mundo, não lograrão
satisfazer a Justiça Divina, sem passarem pelo Purgatorio. Ao Purgatorio vam as
almas, que, embora convertidas á vida da graça pelo arrependimento, não tiverem
tempo de se purificar das manchas da culpa pela penitencia ; por isso diz S. Ber
nardo que desçamos vivos ao Inferno, e não mortos : Descendamus in infernum ,
viventes, et non morientes. Vivos pela graça do arrependimento, e não mortos pela
impenitencia , e obstinação no peccado .
Fechando a explicação synthetica da parte allegorica , reatarei o fio da synthese
explicativa da parte litteral do presente canto.
A mais de um critico tem parecido pouco patriotico, ou immoral, o quarto ter
ceto, que , sem duvida, é um dos mais difficeis da Divina Comedia !

E se già fosse, non saria per tempo :


Così foss' ei, da che pure esser dee !
Chè più mi graverà com ' più m ' attempo.

« E si esse mal te acontecesse já, não seria extemporaneo ; porque ha muito que
o mereces; e visto que é inevitavel, desejaria que viesse já, pois que na minha ve.
Thice me seria mais doloroso supportal-o .»

N'este terceto o Poeta allude á ruina da ponte de Carraja, e ao incendio de mil


setecentas casas, e deseja a acceleração de taes infortunios á patria . Mas, si so
examina bem o desejo do Poeta, conhecer-se -ha que, em vez de immoral, é vir
tuoso . Primeiramente, desejar acceleração de um mal inevitavel, e passageiro, não
é desejar acceleração ; porque, quanto mais depressa vem o mal, mais depressa
passa , e desde que o mal é inevitavel, é melhor que aconteça hoje, do que amanhan.
A expectação do mal certo, irrevogavel, é muito mais afflictiva do que soffrer o
proprio mal. Aquelle que está certissimo de que ha de soffrer uma operação cirur
gica dolorosa, para curar uma grave molestia, deseja soffrel- a antes hoje, do que
áuanhan.
Temos um exemplo sobre todos os exemplos. O Divino Mestre, sabendo que
Judas o havia de trahir infallivelmente, disse-lhe na noite da Ceia : « O que meditas
fazer, faze- o depressa . » Quod facis,fac citiùs (S. João Evang.) .
É claro, pois, que Dante não desejou mal algum a Florença com desejar que se
llie accelerassen aquelles dous infortunios. Elle somente lhe diz : «Mas annunciano
como resultad ,
do-te que d'esta tua desordem politica, e moral, sentirás em breve,
gravissimos damnos (damnos que te desejam ardentemente, não só os teus inimi
gos, como as terras do teu dominio ), não faço mais do que fazer-te uma prophecia
mais verdadeira , e mais certa, do que os sonhos, que se sonham por volta da ma
nhan. E pois, sendo fatal ou inevitavel, que esses males chovam sobre a minha
me causarão
patria , desejo que se realisem quanto antes ; porque, si se demoram ,
maiordôr, si sobrevierem na minha velhice, porque n'esta estação da vida, as des
venturas se tornam mais dolorosas, e insupportaveis ».

|
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVI 465

O grandeinterprete Landino, commentando este mesmo terceto, diz : «Mostra -se


Dante desejoso de que estes males aconteçam depressa, não para ruina de sua
patria, que lhe era carissima, porém , sim, para punição dos múos cidadãos, que
iniquamente a administravam ; e por isso deseja que taes infortunios sobrevenham
quanto antes. »
Vellutello, commentador não menos acreditado, diz : « Dante exprime-se d'este
modo, porque, quanto mais a velhice se adianta, mais se accende n'elle o amor da
patria ; por conseguinte, mais angustioso lhe será em tal cdade presenciar o quadro
de miseria de sua patria » . Venturi, que se mostra sempre propenso a morder
Dante, abunda todavia , quasi no mesmo sentido dos dous interpretes citados.
Portanto, o desejo de Dante não era nem anti-patriotico nem immoral, era pelo
contrario um desejo nascido do amor da patria, era um desejo virtuoso.

00
CANTO XXVI

Descem os dous Poetas a oitava fossa , que resplandece de innumeraveis chammas, dentro das quaes ardem
os conselheiros ſranduientos. Uma chamma bifurcada encerra dous peccadores: Diomedes, e Ulysses. Vir.
gilio pede que Ulysses lhe narre a sua ultima viagem .

Exulta , ó Florença, pois és tão grande, que a tua fama por mar,
e por terra bate as azas, e até no Inferno o teu nome se expande ! ( 1)
Encontrei entre os ladrões cinco cidadãos (2) teus de tal jaez, que
me envergonham a mim, e a ti não fazem muita honra .
Mas, si os sonhos da antemanhan são verdadeiros, (3) dentro em
pouco, sentirás parte d'aquelle mal, (4) que Prato, tua cidade, e outras
estranhas, te desejam.
E si esse mal te acontecesse já, não seria extemporaneo, pois ha
muito que o mereces, (5) e visto que é inevitavel, eu desejaria que
viesse já, porque na minha velhice me seria mais duro supportal-o !
Nós nos partimos do fundo da encosta da septima fossa, e o meu
Guia tornou a subir, levando-me comsigo, por aquellas mesmas esca
das, que as pedras salientes do dique nos tinham proporcionado, para
descer . (6)
E proseguindo o solitario caminho, (1) atravez d'aquellas pontes, e
escarpados rochedos, os pés não se moviam, sem o auxilio das mãos.
Senti então grande dor, 18) que ainda se me renova , ao recordar
me das cousas que vi na oitava fossa; e refreio o meu engenho, mais
que de costume, a fim de que não corra sem a guia da virtude : Si
uma boa estrella , (9) ou uma melhor influencia me outorgou esse dom ,
não seja eu mesmo, que me prive de seus bons effeitos . ( 10)
Quantas lumieiras o villão, que repousa na collina , vê na hora em
467 O INFERNÔ

que a mosca se reveza com o mosquito , ( 11) scintillar no valle, (12) onde
talvez tenha a sua vindima, e a sua segadura , ( 13) n'aquella estação em
que o astro, que allumia o mundo , por mais tempo nos offerece a sua
face : ( 14) tantas eram as chammas de que resplandecia a oitava fossa,
conforme se me afigurou ao chegar ao ponto, d'onde lhe podia ver o
fundo
E qual viu o propheta Elyseo, que por meio dos ursos se vingou
dos insolentes rapazes, ( 15) partir o carro de Elias, ( 16) arrebatando pelos
cavallos de fogo, sem que o podesse seguir com os olhos de modo,
que distinguisse outra cousa, senão uma ligeira flamma, que se eleva
va á guiza de pequena nuvem : tal pela garganta da fossa movia-se cada
uma chamma , envolvendo um peccador, sem mostrar o seu furto. (17)
Eu estava sobre a ponte a contemplar esse espectaculo em tal
posição que, si me não houvesse agarrado bem a uma rocha, preci
pitar-me-hia em baixo , sem que ninguem me empurrasse .
E o meu Guia , que me viu tão attento , disse : « Dentro d'aquellas
chammas estão espiritos, ( 18) cada um dos quaes é envolvido pela
chamma que o abraza ».
« Mestre meu , respondi , o que me acabas de dizer me dá maior
certeza ; mas eu já tinha imaginado que assim fosse, e estava para
perguntar-te quem está naquella chamma , que sobe tão bifurcada em
cima , que parece surgir da pyra, em que foi mettido Eteocles com seu
irmão ?» ( 19)
Respondeu-me : « Ardem lá dentro Ulysses, e Diomedes, ( 20) pade
cendo o mesmo castigo , porque foram consocios na mesma ira » . (21)
E dentro da chamma se lastimam de ter empregado a insidia do
Cavallo, que abriu a porta por onde saíu o germen gentil dos Roma
nos . (22)
« Lastimam -se não menos do artificio, por causa do qual Deidamia,
ainda depois de morta , queixa- se de Achilles ; (23) assim como recebem
a merecida paga de terem arrebatado o Palladium » . (24)
Eu disse : « Si elles podem fallar dentro da chamma, eu te rogo,
Mestre meu , rogo -te com mil instancias, que não me recuses a graça
de esperar até que a chamma bifurcada chegue aqui : vês que pelo
desejo de falar-lhe estou inclinado para ella ») .
E elle me respondeu : « A tua rogativa é digna de muito louvor, e
por isto eu a acceito ; mas é necessario que te conserves em silencio,
deixa que só eu fale, pois já comprehendi o que queres f guntar.
Esses personagens, porque foram gregos, talvez que se esquivem de
te responder. (25)
« O vós , que ambos estaes dentro de uma chamma, si enquanto
vivi , pude merecer vos muito ou pouco, quando no mundo cantei em

!
CANTO XXVI 469
altos versos vossas heroicas façanhas, não vos movaes, e um de vós
diga onde se perdeu , e terminou seus dias.»
A ponta mais alta da antiga chamma (26) começou a tremular mur
murando, como aquella , que o vento agita; (27) depois movendo para
todos os lados a extremidade superior, como si fosse a propria lin
gua , que falasse, fez saír a voz dizendo : (28)
«Quando consegui subtrahir-me aos encantos de Circe, (29) que me
havia retido juncto a si mais de um anno, perto de Gaeta, antes que
Eneas lhe desse este nome, nem as doçuras dos beijos de um filho,
nem a piedade devida a um velho pae , nem o amor conjugal, que tão
grato devia ser a Penelope, poderam vencer em meu coração o desejo
ardente de adquirir experiencia do mundo , e dos vicios , e das virtu
des dos homens . ( 30)
« Atirei-me pois ao alto mar (31 ) aberto, com uma só náo, e com
aquelles poucos companheiros, que nunca me abandonaram . ( 32)
« Vi uma , e outra plaga até Marrocos : (33) vi a ilha de Sarde
nha, (34) e as outras que aquelle mar banha em torno .
« Eu , e os meus socios de aventura já nos achavamos velhos , e
alquebrados, quando abicámos áquella foz estreita, (35) onde Hercules
plantou os seus marcos, (36) alem dos quaes não ousasse o homem
passar. (37) Deixei á direita Sevilha, (38) e á esquerda tinha já deixado
Ceuta . (39)
« Em tal conjunctura disse eu: «Ó irmãos! vós, que através de mi
« lhares de perigos , (40) tendes chegado aos confins do Occidente , não
«negueis a este pouco tempo de vida, (41) que vos resta , o conhecimento
« d'aquelle mundo inhabitado, seguindo em sua procura o roteiro do
( sol) . (42)
« Considerae à dignidade de vossa origem ; (43) não fostes creados
para viver como brutos, (44) mas para cultivar a virtude e a scien
cia . »
« Com esta breve allocução (45) excitei nos meus companheiros (46)
tão inflammado enthusiasmo de passar alem do estreito, que difficil
mente os poderia conter .
« E voltada a pôpa da náo (47) para o Oriente , dos nossos remos
fizemos azas ( 48) ao nosso louco arrojo, ganhando sempre espaço para
o lado antarctico (49).
« Já a noite via brilhar todas as estrellas do outro polo, e via o
nosso tão baixo, que não se elevava sobre a superficie do mar ( 50 ).
« Cinco plenilunios (51 ) eram volvidos, depois (52) que entraramos no
vasto Oceano, (53) quando assomou-se -nos uma montanha, que pela
distancia parecia escura , (54) e se nos afigurava tão alta, que outra
egual não tinhamos jamais visto .
470 O INFERNO

« Todos exultámos ; (55) mas logo em pranto se converteu nossa


alegria ; porque da nova terra descoberta levantou-se um furacão, que
percutiu a proa da náo . (56 )
« Tres vezes fel- a vogar á mercê de todos os vortices : á quarta ,
fazendo-a empinar a pôpa , e afundar a prôa, como aprouve a outrem ,
fomos por fim engulidos pelo mar . » ( 57)

1
COMMENTARIOS AO CANTO XXVI

( 1 ) Godi, Fiorenza, poi che se si verdade, assim o pensam os Poetasc


grande, Che per mare e per terra bat Ovidio : sub aurora ... tempore quo cer
ti l'ali, E per lo Inferno il tuo nome si
spande. Abre o Poeta o presente canto
com uma apostrophe de ferocissima
EL ni somnia vera solent. Horacio : Quiri
nus, post mediam noctem visus, quum
somnia vera . E Passavanti : «Aquelles
ironia em versos de magestade nova, e sonhos, que se sonham ao romper
estylo eloquente , e pomposo . d'alva, segundo se diz, são os mais ver
De grande sabor poetico é este bater dadeiros sonhos» . Poeticamente falan
de azas por mar, e por terra, para de do, pode-se tambem de taes sonhos
monstrar a celebridade de Florença, tirar argumento . Não se entenda porém
famosa pelas sangrentas discordias, e que Dante admitte a superstição com
iniquidades de seus cidadãos ! É não me mum de que os sonhos da manhā pre
nos grande a idea que encerram as pa sagiam a verdade, nem que elle queira
lavras « E até pelo Inferno o teu nome se com isso dar peso á sua prova ; mas
derrama, querendo significar que, en antes mostra vontade, que o sonho se
contrando - se os Florentinos em todos realise .
os circulos do Inferno, é isso prova evi (4) Tu sentirai di qua da picciol tem
dente de que Florença é a cidade dos po. Como si dissesse : dentro em pouco,
crimes por excellencia (Biagioli). tu, em consequencia da tua actual des
( 2 ) Tra li ladron trovai cinque cotali. ordem, e desmandos, experimentarás o
Estes cinco cidadãos ( já mencionados damno, que te desejam ardentemente,
no
canto antecedente ) são Cianfa, não digo os teus inimigos, mas a mes
Agnelo Brunelleschi, Buoso Donati, Puc ma cidade de Prato, e com ellas as
cio Sciancato, e Francisco Guercio Ca terras do teu dominio » . Allude á des
valcanti. Accrescenta o Poeta que estes truição da ponte de Carraia, ao incen
cidadãos florentinos são tão scelerados dio de 1 : 700 casas, ás discordias dos
que o envergonham a elle, porque são Brancos, e Negros, cousas todas acon
seus compatriotas, e que não dão muita tecidas em 1304.
honra a Florença, porque, alem de te ( 5 ) E se già fosse, non saria per
rem nascido no seu seio , foram por tempo. Querendo dizer : « E si a calami
ella considerados, e amados, não obstan dade futura, que te annuncio, caisse
te serem tão perversos . agora sobre ti, não seria uma surpreza ,
( 3 ) Ma se presso al mattin del ver si pois que ha longo tempo tu o mereces
sogna. Mas, si os sonhos, que se sonham por tuas iniquidades. Assim , si tal des
sob a aurora , annunciam a verdade, etc. graça é inevitavel, permitta o Céo que
Que os sonhos da antemanhan dizem a ella succeda já ; por isso que, si tardar,
472 O INFERNO

me será mais dolorosa, quanto mais atormentados na oitava fossa os ho


adiantada for a minha velhice, porque mens, que abusaram do seu alto enge
menos força terei para resistir ao golpe nho, dando conselhos fraudulentos, ani
de tão grande infortunio , visto como, mando -os ; e ao mesmo tempo procura
embora perseguido cruelmente por ti, excitar-nos a não imital-os, servindo.
nunca me esquecerei de que sou since . nos de freio a virtude.
ro patriota. Venha pois quanto antes ( 9) Si che se stella buona, o miglior
esse inevitavel castigo , até porque, si cosa. Aqui corrige Dante o conselho,
vier tarde, não punirá os verdadeiros que ouviu do seu mestre Brunetto La
criminosos, mas sim os innocentes que tini, quando lhe disse : « Si tu seguires as
hão de vir depois d'elles» . Eis o verda influencias da tua estrella, has de che
deiro sentido da invectiva do Poeta a gar a glorioso porto .» Se tu segui tua
Florença. Exprime unicamente o desejo stella, Non puoi fallire a glorioso porlo .
que ella seja punida ad correctionem . Dante corrige pois esta expressão, at
( 6) Chè il buior n ' avea fatto scender tribuindo o seu engenho á cousa me
pria. Veja -se o canto xxiv, v . 37. Vi lhor, do que as propriedades, e influxos
mos lá, que os dous Poetas desceram de estrellas, isto é, á Providencia divina.
da septima ponte , e seguiram sobre o ( 10) M’ha dato il ben, ch ' io stesso
dique ; mas lá se disse que desmonta nol m'invidi. Querendo dizer : A boa
ram do muro, chamando muro , por sua inclinação para o justo, e para o hones
escabrosidade, o lanço da ponte sobre to ; a agudeza, e sublimidade de enge
o dique. Aqui insiste Dante na mesma ‘nho que me foi dada por benevolo in
idéa de muro, e por isso chama borni fluxo da Providencia, são predicados ,
(dentes, pedras de espera ; as que de es que não devo tirar a mim mesmo, ou
paço em espaço, saem fóra na extremi de que não devo abusar. Io stesso m’in
dade de uma parede, para se prender, e vidi vale a ma stesso nol tolga : expres
continuar depois a mesma parede ). É são metonymica, em que o invejar,
n'este sentido que eu traduzi borni por causa do tirar a outrem, põe-se pelo
pedras salientes, que são exactamente mesmo tirar (Lombardi). Invejar pro
aquellas pedras, que na fabricação se priamente significa olhar de esguelha,
deixam sair da ultima muralha, para li depois passa a odiar, a tractar mal:
garem á fabrica da continuação da portanto Dante diz que não deve elle
mesma muralha. Por este motivo, os tractar mal o engenho, o talento, que
dous Poetas tornaram a subir do dique Deus lhe deu, abusando d'elle (Bennas
baixo á extremidade da ponte, por onde sutti ).
antes desceram ; sendo obrigados a tre ( 1 ) Come la mosca cede alla zanza
par engatinhando pelas pedras salien ra . A mosca esvoaça durante o dia ; em
tes, ou pontas de pedras que saíam vindo a noite, cede o logar ao importu.
para fóra . no mosquito; de modo que a mosca ex
( 7 ) E proseguendo la solinga via, prime o dia, o mosquito a noite. Dos
Isto é, proseguindo da septima á oitava mais vis insectos Dante tira argumento
ponte . Já temos observado outras vezes, de effeito, e de singular belleza .
que as pontes se tornam mais escabro ( 12 ) Vede lucciole giù per la vallea.
sas, e ingremes, na razão que mais se Porque os vaga -lumes scintillam disper
approximam ao poço do centro . Por sos pelo valle ? Porque os vaga -lumes
isto esta subida é mais difficultosa, que amam os logares humidos de preferen.
as anteriores . cia aos seccos; e porque os valles são
( 8 ) Allor mi dolsi, e ora mi ridoglio. mais humidos do que os cimos dos
O Poeta antecipa aqui a declaração dos montes, o villão da eminencia do oitei- .
sentimentos de dôr, que experimentou ro vê os perilampos no fundo do valle
ao ver as terriveis penas com que eram em grande numero . Aquise vê observa.
COMMENTARIOS AO CANTO XXVI 473

da exactamente a correspondencia en é chamado furto, porque estava envol


tre a similhança, e o assimilhado; por vido e escondido dentro da chamma .
quanto Dante olhava do alto da ponte Isto é bello, como é bello o simile an .
para o fundo da fossa, como o villão terior da nuvemzinha com a chamma.
do alto da collina olhava para o fundo ( 18 ) ...Dentro da ' fuochi son gli
do valle . spirti. E quem são esses espiritos ? São
( 13 ) Forse colà dove vendemmia , ed dous homens de esplendido engenho ,
ara . Parecerá este verso uma crescença e por terem sido taes, estão tambem
inutil ; mas não é ; porque poderia ser agora resplandecendo na pena , que pa
um valle arido , e em tal caso não seria decem . A chamma os esconde , porque
visitado pelas lumieiras. Para indicar elles esconderam as más intenções dos
pois o que o valle é pingue, e herboso, pessimos conselhos, que deram : reves
como costumam ser os valles, o Poeta tindo sagazmente as suas perversas sug
chama-o valle de vindimas, e valle de gestões da roupagem de fingidas razões
messes. Mas aqui ha outro graciosissi d'estado, e acabaram por illudir os cre
mo, e naturalissimo pensamento , que dulos incautos. Mas a chamma agora
não apparece á primeira vista. O pensa os queima pela regra divina, que o per
mento é que o villão tem tanto amor verso cae dentro da mesma cova, qui
ao seu campo, que vendo os vaga - lumes abriu . Incidit in foveam quam fecit.
scintillar pelo valle, os seus olhos, sem ( 19) Chi è in quel fuoco, che vien sì
advertil-o, fixam -se mais sobre os cam diviso. Como si perguntasse: « Quem é
pos, onde vindima, e ara, do que sobre que está envolvido n'aquella chamma,
aquelles, onde elle não tem nada que que vem para nós, dividida na sua sum
ver, e por isso não lhe attrahem nem o midade em duas pontas, de modo que
seu coração, nem os seus olhos. parece surgir da pyra, em que foram
( 14 ) Nel tempo che colui che 'l mondo mettidos Eteocles, e seu irmão Polyni
schiara. Isto é, no tempo em que o sol ces ? » Os cadaveres d'estes dous irmãos,
se demora mais no nosso hemispherio, que se tinham reciprocamente assassi
do que no hemispherio dos nossos an nado, tendo sido postos na mesma pyra,
tipodas, e nos dias mais longos d'essa a chamma bipartiu - se, para significar que
estação, que é no solsticio do verão : ainda depois de mortos o odio os divi
que vem a ser 21 de junho . As noites dia ! ( Fraticelli ).
então são muito mais curtas. (20) Ulysse e Diomede ... Famosos
( 15) E qual colui che si vengiò con capitães gregos, que em damno de
gli orsi. Aquelle que, inspirado por Troia, não só usaram das armas, mas
Deus, se vingou, fazendo sair da selva tambem de artificios, e fraudes.
dous ursos, para devorarem os meninos ( 21 ) Alla vendetta corron com’all'ira.
insolentes, que o escarneciam , foi o Assim como correram junctos á guerra
propheta Eliseo . (all'ira) para desafogarem o seu furor
( 16) Vide il carro d'Elia al diparti contra os Troianos, assim tambem pade
re. Elias, mestre de Eliseo, foi arreba cem junctos a mesma pena .
tado ao Céo por um carro de fogo. ( 22) L'aguato del caval, che fe la
Eliseo seguia -o com os olhos pelo ar ; porta Ond' uscì de ' Romani il gentil
mas, como é natural, elle não podia ver seme. Allude á fraude do cavallo de
de baixo, senão a chamma, que condu Troia, todo cheio de armas, e de gre
zia seu mestre, e não seu mestre, e essa gos armados mediante cujo estratage
chamma se lhe antolhava em forma de ma a cidade foi tomada, e incendiada,
uma nuvemzinha . e isso deu occasião ( fè la porta ) a
( 17 ) Tal si movea ciascuna per la Eneas, e seus companheiros saírem da
gola. Tal era aquella chamma , dentro Asia, e virem para a Italia lançar os
da qual se occultava um peccador, que fundamentos do Romano Imperio .
474 O INFERNO

(23 ) Deidamia ancor si duol d'Achil . accorreram ao cerco de Troia, e por


le. Thetis, mãe de Achilles, sabia por va isso lhe consagrou o poema da Odyssea.
ticinios, que seu filho , si fosse a Troia, Não admira pois que Dante o envolva
pereceria. Escondeu - o em Scyros na dentro de uma chamma de maior por
côrte do rei Lycomedes. Alli , vestido porção de que a de Diomedes, que aliás
de mulher, se enamorou de Deidamia , tambem era grande. O Poeta dá -lhe a
filha do rei. Entretanto , Ulysses, e o qualificação de chamma antiga, porque
Diomedes o procuravam , porque sem Ulysses floresceu 1220 antes de J. C.,
Achilles não se podia vencer Troia.Vie pouco mais ou menos.
ram finalmente á corte de Scyros, e apre (27 ) Cominciò a crollarsi mormo
sentando, entre outros objectos mulheris rando. A voz de quem fala recebe o seu
uma espada, Achilles travou d'ella, des primeiro impulso do ar do pulmão, o
prezando o resto, e d'est'arte o desco qual á similhança de um folle, alarga-se,
briram , e abandonou Deidamia já em e restringe-se murmurando. Omovimen
estado enteressante, como hoje se diz. to pois dos pulmões de Ulyssses, e o so
Talvez glosasse mais do que devia aven pro do seu ar faziam naturalmente mo
turas tão sabidas. ver, e murmurar a chamma, que o en
(24) E del Palladio pena vi si porta. volvia . Isto, que é uma cousa commum ,
No templo de Troia havia uma estatua não deixa de ser engenhoso .
de Pallas chamada Palladio. Uma pre ( 28 ) Indi la cima qua e là menando.
dição affirmava, que Troia duraria em Isto agora é bellissimo. O ar dos pul
quanto durasse aquella estatua; razão, mões passa ás fauces, á lingua, e aos
pela qual similhante estatua era olhada labios, e aqui, mediante varios movi
como a protecção viva da cidade. Foi ella mentos, esse articula palavras. Ulysses,
pois roubada por Diomedes, que a levou dentro da sua chamma, faz tudo isso, e
comsigo. tudo isso vibra a ponta da chamma, a
( 25 ) ... ch ' e ' sarebbero schivi. Os qual por esta razão, assim como corres
Gregos, nos tempos da sua preponde ponde á lingua pelo sitio, assim corres
rancia foram não só os mais insignes ponde a ella nos seus movimentos ; mo
em armas, e lettras, como tambem dis tivo por que diz o Poeta : Indi la cima
tinctos nas artes. Todos estes predicados qua e là menando Come fosse la lingua,
illustres naturalmente os tornavam alti che parlasse.
vos, a ponto de tractarem de barbaros (29 ) Mi diparti' da Circe ...Circe,fa
todos aquelles, que não fossem Gregos. mosa maga , que sabia por meio de suas
Virgilio mesmo, si não tivesse tido meri encantadas bebidas, converter os ho
tos pessoaes para com elles, immortali mens em feras, como fez a muitos
sando - os na sua Eneida, recearia de que companheiros de Ulysses. Este mesmo
o não escutassem com attenção. « Logo, não soube subtrahir- se aos seus encan
diria Virgilio a Dante, elles se esquiva tamentos, porque foi por ella demorado
rão de falar- te não é por motivo de lin mais de um anno no promontorio Cir
gua, e de nacionalidade; porque n'este cello, juncto a Gaeta , antes que Eneas
caso tambem estou eu, mas por falta ahi fosse sepultar Gaeta, sua nutrice.
-de meritos pessoaes teus para com elles; ( 30) Nè dolcezza di figlio, nè la pietà
deixa portanto que eu só lhes fale .» Del vecchio padre, nè il debito amore,Lo
( 26 ) Lo maggior corno della fiamma qual dovea Penelope far lieta . Os tres
antica. A ponta mais elevada da antiga mais doces, e poderosos affectos da na
chamma começou a mover-se murmu tureza humana, são o amor aos filhos,
rando, como a chamma, que o vento aos paes, á esposa. Ulysses superou
agita. No conceito de Homero, Ulysses todos estes sentimentos, vencido pela
foi em materia de prudencia, e de as prepotencia de um quarto affecto : a
tucias o maior de todos os Gregos , que necessidade de conhecer o mundo. Dir
COMMENTARIOS AO CANTO XXVI 475

se -hia que Dante preconisava antecipa stretla. Ao estreito que hoje se chama
damente Colombo em Ulysses ; porque Gibraltar.
Colombo sacrificou todos estes sanctos ( 36 ) Ov.' Ercole segnò li suoi riguar
affectos á sua grande missão de desco di. Onde Hercules, segundo a fabula,
brir o mundo Americano. Veja- se Ros assentou duas columnas, ou dous mon
sely de Lorgues, vida de Colombo. A tes, Abila na Africa, e Calpe na Europa,
coincidencia é curiosa . como signaes, que deviam avisar os na
( 31 ) Ma misi me per ľalto mare vegantes de não ultrapassarem, mas
aperto. Aventurar- se ao alto mar aberto voltarem para traz. Creio que Dante
antes da invenção da bussola ou da d'este voltar dos navegantes ( da questo
agulha magnetica, não era cousa usada rivolgersi dei naviganti) tenha dado a
pelos navegantes, por ser de grande estes limites o nome de riguardi; tanto
perigo. Até á bossula as navegações fa mais quanto a palavra riguardo significa
ziam-se terra a terra. Si se fazia alguma vigilancia, cautela. Tambem na Roma
pequena excursão, afastando - se da vis nha, segundo Bennassutti, os limites
ta do continente , escolhia -se o dia, e chamam -se riguardi. Fraticelli accres.
noite clara, para ter o sol, e as estrellas centa : Na Romanha chamam - se riguar
por guia. Ai dos maritimos, si lhes fal di os limites, que dividem os campos, e
tassem esses pharoes ! É portanto nota as estacas, e pilares, que defendem os
vel essa audacia de Ulysses . Está en caminhos. Em summa, esses marcos
tendido que Dante aqui fala do Mediter plantados por Hercules, são as chama
raneo, ao qual atirou -se a frota de Ulys das Columnas de Hercules.
ses, partindo de Circello . (37) Acciocchè l'uom più oltre non si
(32 ) Sol con un legno, e con quella metta. Por isso dizia - se que n'aquellas
compagna Picciola, dalla qual non fui columnas estavam escriptas estas pala
deserto. « Atirei-me só com aquelles vras: Non plus ultra, que foram verda
poucos companheiros, que antes tinham deiramente respeitadas até os tempos
sido transformados em feras por Circe, modernos com uma especie de religio
a qual depois, constrangida por mim so temor .

(Ulysses), os transformou de novo em ( 38 ) Dalla man destra mi lasciai Si


homens, como antes eram . » bilia . Sevilha , cidade principal da Hes
(33) L'un lito e l'altro vidi insin la panha meridional, ao noroeste do es
Spagna. A praia meridional du Europa, treito .
e a praia septemtrional da Africa, entre ( 39) Dall'altra già m'avea lasciata
as quaes se estende o Mediterraneo : as Setta . Setta por Ceuta, cidade da Africa
extremas orlas occidentaes d'estes dous sobre o estreito, e mais oriental de Se
litoraes são a Hespanha pela Europa, e vilha cerca de um gráo de latitude ; por
Marrocos pela Africa. isso Ulysses diz, que antes de Sevilha
( 34) ... e l'isola de' Sardi. Nomeia tinha deixado Ceuta, tendo primeiro
esta ilha por ser a maior, que encontrou descoberto esta, a 56 milhas alem para
no seu itinerario. Não nomeia a Sicilia, o occidente . Dante admiravel em todas
porque esta está fóra da presente via as sciencias, é admiravel tambem pela
gem , que é de Gaeta para o norte. A exactidão dos conhecimentos geogra
ilha da Sicilia tinha sido já visitada por phicos, de que dá bellissimo specimen
Ulysses na sua primeira viagem, nave n'este Canto, como no outro deu de
gando de Troia para Gaeta . Alem d'isto, sciencias naturaes .
a Sicilia era uma ilha grega em costu (40) O frati, disri, che per cento milia.
mes, lingua, e leis, e Ulysses queria vi Ulysses chama irmãos aos companhei
sitar povos, que lhe fossem novos e des ros, embora fosse seu senhor, e seu
conhecidos. chefe, para affeiçoal-os cada vez mais a
( 35 ) Quando venimmo a quella foce si . É esta a arte de todo o bom orador
O
476 O INFERN

que concilia a benevolencia de seus ou ção, que põe na bocca de Ulysses, não
vintes, mostrando que os ama , louvando parece imitar seu Mestre Virgilio na
as suas acções magnanimas, e, virtuosas, allocução de Eneas, senão para mos
como faz com estas palavras: Che per trar, que antes é elle seu rival e emulo,
cento miglia (mila ) perigli siete giunti do que imitador ; visto como, si o não
all occidente. Os cem mil perigos são vence em tudo mais, vence - o de certo
narrados na Odyssea. Os outros perigos, na nobreza dos sentimentos ( Biagioli ).
que Ulysses propõe aos companheiros, (42 ) Non vogliate negar l'esperienza,
para superal-os, servirão de comple direiro al Sol, del mondo senza gente.
mento ao poema Homerico (Bennas Como si dissesse : « Tendes visto, tendes
sutti ) . tomado conhecimento , e practicas do
( 41 ) A questa tanto picciola vigilia mundo habitado do oriente até aqui,
De ' vostri sensi, ch ' è del rimanente. não recuseis agora á vida brevissima,
Este modo de dizer é tirado do latim : que vos resta, a gloria de conhecerdes
Aliquid reliqui, quidquid reliqui nihil um mundo inhabitado, todo coberto de
reliqui, e outras similhantes locuções, mar, seguindo o curso do sol, isto é,
onde o genitivo reliqui ( del rimanente ) continuando para o occidente: assim
está pelo nominativo reliquum (rima podereis dizer ter visto tudo, conhecido
nente ); portanto o modo Dantesco : tudo, inclusive a parte do mundo não
che e del rimanente sôa che é rimanente , habitada por homem algum , ou o gran
e ainda mais breve: che rimane, isto é, de oceano, que ninguem ainda viu,
que resta . Aqui com toda a proprieda nem sabe se existe, e que novidades
de a vida é chamada vigilia, ou vigilan contenha em si ». Ulysses fala segundo
cia dos nossos sentidos ; porque em a crença do seu tempo, que ou admittia
quanto vivemos, os nossos sentidos ve que alem das columnas de Hercules
lam attentos; depois da morte, não tudo era oceano, ou si havia terra,
velam mais, dormem . D'onde se vê que essa era inhabitada, não podendo comº
a brevidade da vida é um forte estimu prehender que algum do hemispherio
lo á virtude , visto como passado o pou fosse jamais penetrado. Tambem San.
co tempo, que resta , já não ha mais cto Agostinho havia dito : Nimisabsur
tempo de adquirirmos meritos. A vida de dum est ut dicatur aliquos homines ex
Ulysses, e a de seus companheiros era hac in illam partem , Oceani immensi
breve, porque a vida é de sua natu tate trajecta navigasse ac pervenire po
reza breve , e é breve, porque já passou tuisse (De civit. Dei, xvi).
a sua maior parte , segundo diz o mes (43 ) Considerate la vostra semenza.
mo Ulysses n’estas palavras: «Io e i com « Considerae de quem sois filhos ; con
pagni eravam vecchi e tardi» . Eu , e os siderae que sois filhos da Grecia, filhos
meus companheiros nos achavamos ve de heroes, heroes vós mesmos, e ha
lhos, e cansados. pouco vencedores de um povo famoso."
Ulysses rompe no mesmo tom, e fór A nobreza da patria, os feitos gloriosos
ma por que Eneas falou aos seus com dos antepassados, e os proprios feitos,
panheiros : são na bocca de um orador valentissi
mos argumentos, para excitar brios, e
O socii, (neque enim ignari sumus ante malorum )
O passi graviora; dabit deus his quoquefinem . valor para affrontar os grandes perigos.
(44) Fatti non foste a viver come bru
ó socios (pois ha muito que os trabalhos ti Ma per seguir virtute, e conoscenza.
A nos outros não são desconhecidos) Eis o fim temporal do homem . O ho
ó vós, que haveis soffrido outros mais graves,
A estes tambem Deus porá seu termo. mem foi creado para satisfazer n'este
(Eneid. liv. 1 , v. 198, e seg. ) mundo a duas supremas exigencias so
ciaes : uma do coração, por meio da
Mas o nosso Dante, por esta allocu virtude , e outra do entendimento, por
COMMENTARIOS AO CANTO XXVI 477

meio da sciencia : tudo isto demonstra o meio dia como para o occidente ,
a differença essencial entre o seu des quanto a mesma Jerusalem está aquem
tino, e o destino do bruto. É este o do equador para o oriente.
sentido das palavra de Ulysses. É um Tambem Colombo tomou á esquerda
gentio, que fala, e por isso não podia ( a mancina) não tanto porém quanto
dizer mais ; e o que disse é bastante. Ulysses ( Bennassutti).
(45 ) Con questa orazion picciola ... ( 50 ) Che non surgeva fuor del marin
Pequena oração á similhança das or suolo. No verso anterior diz que de
dens do dia , ou das proclamações mi noite via já todas as estrellas do outro
litares, que devem ser brevissimas. Esta polo ( tutte le stelle già del ' altro polo ),
oração porém de Ulysses encerra na isto é, do antarctico, e por consequencia
sua concisão todos os argumentos ne via aquellas do nosso polo, isto é, do
cessarios para persuadir os companhei arctico , tão baixas, que não se elevavam
ros a proseguirem na difficil empreza acima da superficie do mar. Quer dizer
de transpor o oceano. com isto que eram chegados algum
(46) Li miei compagni fec ' io sì acuti. tanto alem do equador ( Fraticelli) .
Os instrumentos agudos traspassam fa (51 ) Cinque volte racceso, e lante cas
cilmente; os embotados, difficilmente. so. Navegamos cinco mezes . Em cada
Tomae, por exemplo, um prego pontea mez se accende, e se restringe a face
gudo, e outro obtuso, fazei a expe lunar .
riencia. Bellissima metaphora esta de ( 52 ) ...disotto dalla luna . Porque
que Dante se serve, para mostrar que debaixo da lua ? Porque aquelle, que se
os companheiros de Ulysses tornavam illumina da lua , não é já todo o globo
se agudos, em vez- da promptos, dese lunar, mas o disco, que olha para nós,
josos, enthusiastas, ardentes. isto é, o disco de baixo : o outro per
(47 ) E, volta nostra poppa nel matti manece nas trevas .

10. A nossa popa voltou para o oriente ( 53 ) Poi ch ' entrati eravam nell'alto
(mattino ) e depois a proa, que é a parte passo. Depois que saímos das columnas
dianteira do navio , voltou para o occi de Hercules (passo perigoso ), para en
dente (verso sera ). tregarmo -nos as furias do oceano Atlan
(48) De ' remifacemmoale al folle volo tido, chamado mar tenebroso, até os
Os remos são para os navios o que as tempos de Colombo, a respeito de cujo
azas são para o passaro, e o mar é para mar fabulavam-se cousas espantosas.
o navio o que o ar é para o passaro . ( 54) Quando n'apparve una monta
Folle volo, louco de enthusiasmo, de gna bruna. É a montanha do Purgato
ardor. Ulysses podia aqui dizer louco rio, que aprouve a Dante collocal- a an
(o que não teria dito no discurso a seus tipoda de Jerusalem. Esta montanha é
companheiros), porque falava a um es escura pela distancia , que diz no outro
trangeiro, e falava depois do exito infe verso . Os montes hervosos, vistos de
liz da sua temeraria navegação. Dante perto, são verdes, mostrando ter a côr
não sáe nunca das conveniencias da das hervas, que os cobrem ; mas á pro
arte , seja ella qual for. porção que se vão vendo em maior dis
(49) Sempre acquistando del lato tancia , apparecem pelo contrario azula
mancino. Isto é, tendo na sua navega dos, predominando n'elles não a côr
ção duas direcções, uma para o occi natural, que têem, mas a côr da atmos
dente, outra para o meio dia , percorren phera celeste através da qual passam
do assim a diagonal da hypothenusa, a os nossos olhos. Na extrema distancia
qual diagonal os teria levado por linha depois diminuem tambem a côr celeste,
recta aos antipodas de Jerusalem, si e tomam a escura . Tal era o caso pre
houvessem passado alem do equador, sente . Como é bella esta variante das
e o tivessem atravessado tanto, ou para côres !
NO
478 O INFER

É sem duvida superior ao dizer Vir suso. Toda esta descripção é imitada
giliano: do naufragio da náo d'Oronte.

Quarto terra die primum se atollere landem ... ast illam ter fluctus ibidem
Visa , aperire procul montes, ac volvere fumum . Torquet agens circum , et rapidus vorat æquore
vortex
.E o mar com ella ( não)
É visivel, que quando Dante e Virgi Alli mesmo tres circulos fazendo
lio se encontram na mesma idéa , aquillo Em redemoinho rapido a devora.
que Virgilio diz em muitas palavras, (Eneid ., liv . 1 , 116, e seg. )
Dante o exprime em uma só pincelada
( Biagioli). ( 57 ) ... com ' altrui piacque. Como
(55) Noi ci allegrammo, e tosto tor aprouve a Deus. Mas Ulysses occulta o
nò in pianto. Era mui natural essa ale nome de Deus, ou porque assim exige
gria , que a vista de terra n'este mesmo a sua condição de condemnado, ou por
hemispherio produziu mais tarde n’alma que o verdadeiro Deus lhe fosse desco
de Colombo, e de seus companhei nhecido . Em todo o caso elle allude a
ros um poder superior, ainda que se lhe dê
(56 ) Alla quarta levar la poppa in o nome de Fado, de Destino, etc.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVII

O dialogo entre Dante, e o conde de Guido de Montefeltro constitue todo o


assumpto d'este canto. Guido de Montefeltro foi homem de grande valor, astucia, e
celebridade no seu tempo. Vulto, proeminente no partido Gibellino, prestou - lhe
immensos serviços. Em 1276, capitaneando os Gibellinos de Florença, e de Forli contra
Bolonha, levou - a de vencida. Em 1276 desbaratou os Guelphos saídos de Florença ,
e de Forlì . Em 1281 com as suas bravas milicias soccorreu Forli. Durou o assedio
cerca de um anno, em maio de 1282 surprehendeu os sitiantes, e após um terrivel
combate, em que ficaram mortos mais de 2 : 000 Papalinos, e Francezes, Forlì foi
libertada. Em 1285 tomou aos Lucheses Guelphos o castello de Caprona. Chamado
a reger Pisa, restaurou as suas forças, conquistando a Florença a sua maior fortaleza
Pontadeva . Feita a paz entre Pisa, e Florença com a condição que fosse expulso o
Conde Guido. foi este constrangido a humilhar -se a Bonifacio VIII, o qual , christā
mente, esquecendo os muitos, e graves damnos, que d'elle havia recebido, o acolheu,
e o restituiu a Forlì.Finalmente em 1297, fez-se franciscano, seguindo o uso d'aquel
les tempos de não passar do mundo á eternidade sem penitencia. Por isto é o Conde
louvado por Dante no Convito ; e como agora o mette no seu Inferno ? Porque o
Dante do Convito não é o Dante da Divina Comedia : lá era o philosopho, aqui é o
theologo .
Rebellados os Colonnas contra Bonifacio, e perdendo em breve tempo todos os
seus castellos, encerravam -se na fortaleza de Penestrino, ( 1 ) a que Bonifacio poz asse
dio; mas a fortaleza era inexpugnavel. Mandou Bonifacio por homens peritos na
arte da guerra examinar qual seria o melhor meio de subjugal-a; e, segundo alguns
historiadores, mandou tambem ao frade Guido de Montefeltro que fizesse suas ob
servações: todos julgaram impossivel a escalada . AMigindo - se Bonifacio com as de-
longas do assedio, e os colonnas recciando de seu lado, alem de outras eventuali
dades, a fome, que cedo ou tarde os forçaria a render -se á discrição, começou -se a
tractar.de uma capitulação. Os Colonnas punham por condição conservar- se em pé a
fortaleza; mas Bonifacio persistia na idea de arrazal- a. Em tal conjunctura, foi o frade
Guido, segundo diz Dante, consultado por Bonifacio, e que este lhe declarára, que
de qualquer estratagema que lhe suggerisse, por mais atroz que fosse, o absolveria
de antemão, em virtude de cuja promessa o frade lhe aconselhára, que acceitasse a
condição proposta pelos Colonnas, dizendo : « Prometter largo, e cortar estreito, vos
farão triumphar na vossa excelsa cadeira » . Importava tanto como dizer : « Acceitae,
( 1 ) Hoje Palestrina.
480 O INFERNO

Padre Sancto, a condição de conservar a fortaleza; mas depois fazei- a destruir até
os seus fundamentos» .
Não saberei dizer em que fonte verdadeiramente beberia o Poeta a noticia d'este
indigno trama, que o frade Guido de Montefeltro urdiu, e aconselhou ao Papa Bo
nifacio. Por mais chronicas do tempo, que eu tenha folheado, não pude ainda des
cobrir o auctor de tão estranha invenção. Apenas encontrei nos Annaes da Italia,
( Annali d'Italia de 1285 ) de Muratori, auctor não suspeito de parcialidade para com
os Romanos Pontifices, estas unicas palavras relativas a Guido de Montefeltro:
D ' uomo tale
tale par che facesse capitale papa Bonifacio per le sue occorrenze. Dizer
simplesmente, que Bonifacio nas suas urgencias fazia cabedal de Guido, pode fazer
suppor que o Papa (attento o papel importante, que n'aquelles tempos Guido re
presentára ), mantivesse com elle algumas relações , mórmente depois das provas
publicas da sua conversão; mas não poude fazer acreditar, que o houvesse consulta
do sobre a rendição da fortaleza de Palestrina, e d'elle recebido o fraudulento conse
lho, que se lhe attribue, e muito menos ainda, que o Papa lhe promettesse absol
vel- o de ante mão de peccado, que ainda não tinha commettido. É este um embuste
tão grosseiro, quanto inverosimil. Ora, si Dante o narra miudamente ao seu mundo
contemporaneo, não se pode admittir que o tenha de proposito inventado ( cousa
indigna de tão alto genio, e de tão severa indole ); mas antes tudo leva a crer que
elle o tenha ouvido dos proprios Colonnas, inimigos implacaveis de Bonifacio, contra
o qual inventaram as mais incriveis calumnias, hoje reconhecidas como taes pela
critica imparcial, e por conseguinte mui capazes de terem tambem engendrado esta,
que por si mesma está denunciando ser obra do odio, e da vingança. Dante , porém ,
que quando se tractava de Bonifacio VIII, via tudo no escuro, é muito provavel que
no desatino da sua animosidade, admittisse sem mais exame o triste facto de que
se tracta , e procurasse dar- lhe voga, tomando - o por novo thema de glosas desairo
sas, e pungentes contra o Papa.
Quem quizer inteirar -se das verdadeiras origens d'essa detestavel briga dos
Colonnas com o Papa Bonifacio VIII, na phrase do mesmo Muratori, póde ler Ro
bibacker na sua Historia Ecclesiastica, livro 77, titulo 19. Ahi são cabalmente re
futadas todas as enormes calumnias urdidas contra este Papa, como aquella, sobre
todas indigna, e repugnante, que se lê em Francisco Butti, e com assombro meu re
produzida por Tomas @ o, espirito culto , e de reconhecida honestidade litteraria !
Entretanto , resumirei os motivos da detestavel briga, ou antes as circumstancias,
que se deram no correr da expugnação da fortaleza de Panestrino, onde os Colonnas,
recusando obedecer á auctoridade temporal, e espiritual do Papa, se fortificaram
obstinadamente.
Constituidos elles em rebellião tão formal, e desabrida, poderia o Papa redu
zil - os á obediencia por outros meios, que não pelo emprego da força ? Que a guerra
contra Palestrina era plenamente justificada, e que, segundo a condição das cousas
era até necessaria, basta referir um facto , adduzido por Wiseman, que mostra com
toda a evidencia de que lado estava o bom direito n’aquella assanhada lucta. Eis o
facto : 0 Senado de Roma, desejoso de impedir a guerra civil, interpoz- se como
medianeiro. Os Colonnas obrigaram - se a pedir perdão. Bonifacio consentiu em dal-o
de boa vontade, com a condição de lhe entregarem as chaves de todas as suas
praças fortes. Nos tempos feudaes, esta condição era geralmente imposta quando
se concedia o perdão a subditos rebeldes. Mas os Colonnas, em vez de cumprirem
esta promessa, receberam na sua propria cidade Francisco Crescenci, Nicolao Pazzi,
e alguns mensageiros do Rei de Aragão.
Foi então somente, que o Papa publicou uma cruzada contra os mesmos Colon
nas, como inimigos scismaticos da Sancta Sé. A guerra , como se vê, foi manifesta
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVII 481

mente provocada pelos Colonnas, e a culpa não pode recair sobre Bonifacio. Não
obstante, a maneira por que ella terminou foi largo assumpto de accusações contra
elle ! Pretende-se que, durante o assedio, Bonifacio promettêra pleno, e inteiro
perdão aos Collonnas, inclusive a clausula de conservarem a posse de sua fortaleza ;
mas que ao mesmo tempo o pavilhão papal devia tremular sobre Palestrina, e
outras fortalezas. Accrescenta-se que esta promessa foi feita em presença dos ma
gistrados de Roma, e que tendo d'este modo obtido a posse de Palestrina, Bonifa
cio violou sua palavra, e mandou arrazar a praça forte. Foi exactamente sobre este
presupposto que Dante baseou a narração do facto, que elle revestiu de côres poe
ticas n’este canto, convertendo em verdade certa o que não passava de asserções
vagas dos inimigos do Papa . A prova d'isto é, que, no concilio de Vienna, por mo
tivos, que logo veremos, sendo intentado um processo á memoria de Bonifacio VIII,
a causa foi defendida pelo sobrinho Cardeal Caetano, e outros. Ora, uma das accu
sações principaes dos Colonnas versava sobre essa pretendida violação da fé dada .
A resposta do Cardeal Caetano foi clara, e por todas as formas satisfactoria. Foi
ella publicada por Petrini, que extrahiu das memorias encerradas nos archivos se
cretos do Vaticano. Eis os pontos principaes :
a 1.° Estando o Papa Bonifacio em Rieti, os dous Cardeaes Colonnas lá foram .
Apresentaram -se-lhe em consistorio publico, vestidos de preto, e corda ao pescoço,
e, prostrando -se-lhes aos pés, pediram -lhe perdão, exclamando um d'elles : « Pac, eu
pequei contra o Céo, e contra vós ! Eu não sou mais digno de ser chamado vosso
filho !» E o outro accrescentou : « Vós vos affligis por causa de nossas culpas !»
2.° Antes que os Colonnas saíssem da cidade, já esta estava em poder do capitão
general do Papa . Será crivel, pergunta o Cardeal Caetano, que o Papa se quizesse
contentar de hastear a sua bandeira sobre os muros da cidade no tempo em
que a mesma cidade já estava em suas mãos ? »
3.0 Não se pode apresentar uma só carta ou Bulla de Bonifacio em sustentação
das allegações dos Colonnas.
4.0 Não appareceram em Roma enviados, que se tornassem fiadores da execu .
ção d'esse pretendido tractado; porque aquelles, que os Colonnas nos apresentam
como taes, eram conduzidos por elles mesmos, a fim de intercederem por elles !
5.0 Muitas testemunhas ainda vivas, entre outras o Principe de Taranto, podiam
attestar, que se não fez nunca convenção alguma, porém sim que os dous Car
deaes Colonnas haviam implorado mercê, e perdão das graves culpas, que tinham
commettido.
Tal é pois a historia veridica de tal acontecimento, que deu margem a tantas, e
tão incriveis calumnias contra Bonifacio VIII ! Disse eu , ha pouco, que Dante não
inventou o facto, serviu -se d'elle tão somente, por motivos, que adiante veremos
O povo, vendo a rendição da fortaleza de Penestrino, que elle considerava inexpu
gnavel, e sabendo tambem que Guido Montefeltro tinha alcançado o perdão, e a
graça do Papa, attribuia aos conselhos fraudulentos d'aquelle os triumphos d'este .
Para salvar a consciencia do frade Guido dizia o povo que o Papa o absolvia ante
cipadamente dos conselhos fraudulentos, que lhe dava em favor da Sancta Sé ; por
que a Egreja costumava dar assim a absolvição aos cruzados antes que elles par.
tiam para a guerra Sancta. É falso que a Egreja desse aos cruzados absolvição de
culpas, que houvessem de commetter; dava - a somente aos que arrependidos se con
fessavam de culpas passadas. É verdade porém que muitos entre os cruzados se con
sideravam absolvidos dos peccados, que podessem commetter durante a guerra con ..
tra os infieis. Esse erro reinava ainda no tempo do Poeta, e assim poude o povo
crer que o Papa absolvesse dos peccados futuros o Frei Guido, comtanto que o
auxiliasse com os seus conselhos na guerra contra os Gibellinos, geralmente consi
31
482 ( INFERNO

derados máos christãos e até incredulos. Dante portanto aproveitou -se d'aquella
opinião, e voz popular com dous fins, um politico, e malicioso, qual o de infamar
Bonifacio VIII, outro moral, e bom , qual o de corrigir aquelle erro popular, fazendo
até provar pelo diabo, por meio de um syllogismo invencivel, que o Papa não
póde absolver de peccados, que ainda não foram commettidos. Si pondo de parte
o Poema, attendemos ao Poeta, é claro que Dante desapprovou a defecção politica
do valoroso Conde Guido de Montefeltro, não porque deixasse de ser Gibellino
( e a prova é que no Inferno em que o metteu, já havia mettido muitos Gibellinos)
mas outras fraudes da sua vida. Este canto pois, mais que qualquer outro, demon
stra a necessidade de distinguir bem o Poema do Poeta.
Aquelles, que vêem na Divina Comedia muita doutrina duvidosa sob o véo de
versos estranhos, dirão ser erronea, e impia aquella , que o Poeta põe na bocca de
Bonifacio nos seguintes versos :

... Tuo cor non sospetti:


Finor t'assolvo, e tu m ' insegna fare
Si come Penestrino in terra getti.
Lo ciel poss' io serrare e disserrare,
Come tu sai ; però son duo le chiavi,
Che il mio antecessor non ebbe care.

« ...Não tema o teu coração :


« Desde agora te absolvo de qualquer estratagema que me ensinares, para lançar
por terra a fortaleza de Penestrino. Como tu sabes, eu posso fechar, e abrir o Céo:
porque possuo as duas chaves, que o meu antecessor renunciou » .
Mas devem reflectir, objecta alguem , que Poeta com estas palavras faz dizer
Bonifacio VIII, e propriamente como Papa, que elle póde absolver de peccados
ainda não commettidos, doutrina falsa indubitavelmente .
Aqui temos a solução da objecção n'estes outros versos : postos na bócca do
frade Guido :
Nè sommo ufficio, nè ordini sacri
Guardò in sè, nè in me quel capestro
Che solea far li suoi cinti più magri :

« Não respeitou em si nem a suprema dignidade,


nem as ordens sacras, nem em mim aquelle cordão,
que costumava fazer magros os que o cingem .»
Com este terceto o Poeta nos diz abertamente que o Papa commetteu um pec
cado, e não um erro, quando deu a entender ao frade- Guido poder absolvel -o do
peccado futuro, sabendo aliás que o não podia fazer.
Ora que o Papa, como outro qualquer homem, póde peccar, é verdade de fe
catholica, assim como é verdade de fé catholica que não pode errar nas definições
ex cathedra. Por conseguinte a doutrina expendida n’este canto é catholica, e este
mesmo canto, mais que nenhum outro demonstra a necessidade de fazer distincção
entre as malicias do Poeta, e as excellencias do seu Poema.
CANTO XXVII

Concluia Ulysses a sua narração, quando uma voz saida de uma chamma roga a Virgilio , que se demore ainda
um pouco, a fim de lhe dar noticias da Romanha : Virgilio diz a Dante que lhe responda : Satisfeita a per
gunta do espirito, Dante pergunta -lhe por sua vez quem foi elle no mundo: É o conde de Montefeltro , que
The conta como por causa de um fraudulento , e mão conselho, que deu a Bonifacio VIII, foi condemnado.

A chamma aprumou- se queda , sem mais falar, e já se separava


de nós, (1) por permissão do doce Poeta, (2) quando outra, que vinha
após, nos fez voltar os olhos (3) para o seu vertice por um murmurio
confuso que d'elle saía .
Á similhança do boi Siciliano (4) que, soltando o primeiro grito
d'aquelle (e isso por justo castigo) , que o tinha fabricado com a sua
lima, bramia pela voz do afflicto por modo tal que, embora fosse todo
de bronze, parecia traspassado de dôr ; assim as palavras angustio
sas do espirito, por não terem, desde o principio, achado no fogo (5)
vehiculo por onde saíssem , convertiam-se na sua propria linguagem .
Mas depois que irromperam pela parte superior da chamma, dan
do -lhe aquella mesma vibração, que elles, haviam recebido em sua
passagem pela bôcca , 6 ouvimos dizer: « O tu, a quem me dirijo, e
que mal acabas de falar Lombardo, 9 dizendo : « Agora vae-te, que
não te estimulo mais a falar » ; bem que eu talvez chegue um pouco
tarde , não te enojes de perder commigo alguns instantes : vês que
isso me não despraz, embora eu esteja ardendo .
« Si n'esta região de trevas (8) caíste agora de pouco d'aquella
doce terra da Italia, (9) d'onde acarretei todas as minhas iniquidades,
dize-me , si os habitantes da Romanha estão em paz, ou em guerra ? ( 10)
Quanto a mim, fui de Montefeltro lá entre Urbino, (11) e a nascente
do Tibre.
484 O INFERNO

Eu estava ainda inclinado a ouvil- o attento, ( +2) quando o meu Guia


me tocou de lado , ( 13 ) dizendo : « Responde lhe tu ; este é italiano » . (14)
E eu, que tinha já prompta a resposta , ( 15 ) comecei logo : « O) alma,
que lá te escondes na chamma, a tua Romanha não está, como
nunca esteve, sem guerra fomentada no coração de seus tyrannos ; ( 16)
mas hontem , quando parti, não deixei nenhuma guerra declarada. ( 17)
« Ravena está como tem estado ha muitos annos : a aguia de Po
lenta choca de modo, que cobre tambem Cervia com as suas azas (18).
« A terra , que sustentou o longo assedio, ( 19) e que encerra montões
sanguinolentos de despojos dos Francezes, (20) acha -se agora sob as
garras do leão verde. (21)
« E o Mastim velho , e o novo , senhores de Verruchio, ( 22) que es
ganaram Mantagna cruelmente, (23) reinam lá onde dos dentes costu
mam fazer de verruma. ( 24)
« O leão do ninho branco , ( 25) que do estio ao inverno muda de
partido, governa as cidades de Lamona, e de Santerno. (26)
« E aquella, cujo flanco o Savio banha, (27) como entre a planicie,
co monte vive, da mesma sorte vive entre a tyrannia, e a liberda
de . ( 28)
« Agora , que satisfiz tua pergunta, dize-me quem és ; não sendo tu
para commigo menos cortêz, do que fui para comtigo ; e em recom
pensa te desejo , que a tua fama dure na terra . » (29)
Depois que a chamma a seu modo murmurou um pouco, d’aqui,
c d'alli moveu a aguda ponta , e em seguida assim falou: (30)
« Si eu cresse responder (31 ) a uma pessoa, que houvesse de tornar
ao outro mundo, não se moveria de certo esta chamma. ( 32) Como
porém não houve quem jamais d'este abysmo eterno lá voltasse, si o
que ouço a tal respeito é verdade, ( 33) sem temor, que lá me infames, te
respondo. (34)
« Fui primeiro homem de guerra , ( 35 ) e depois frade Franciscano,
crendo com a virtude do cordão expiar meus peccados commetti
dos ; +36) c certamente não seria sem fructo a minha crença , si o gran
de Padre (37) (sobre quem recaía todo o mal ) não me houvesse indu
zido a reincidir nas minhas primeiras culpas: (38i quero pois que de mim
saibas o porque me tornei reincidente. (39)
« Enquanto gozei da vida, que recebi de minha mãe, ( 90) as minhas
obras não foram de leão, mas de raposa : ( 41 ) conheci todas as astu:
cias, e dissimulações politicas, e com tal artificio as empreguei, que o
éco da minha fama repercutiu em toda a terra.
« Quando attingi áquella parte da minha edade , em que todo o
homem , como prudente nauta, deve amainar as velas, e enrolar as
cordas , o que antes me aprazia (12) depois me enfastiava, (43) e arre
CANTO XXVII 485

pendido confessei ( 44) as minhas culpas : Ai misero de mim , (45) que no


Paraiso hoje eu estaria !
« O principe dos novos Fariseos (16) estava em guerra com os Co
lonneses do Latrão , (47) e não com os Sarracenos, e os Judeus : (+8)
« Porque nenhum de seus inimigos era d'aquelles que, renegando
a fé christă , (49) se fosse unir aos Sarracenos para reconquistar Acri (50)
aos Cruzados , nem que por avidez de lucro andasse a commerciar em
terras do Soldão . ( 51 )
« Não respeitou em si a suprema dignidade , nem as ordens sacras (52) ,
como não respeitou em mim aquelle cordão, (53) que costumava mace
rar (54) os que o cingem .
« Como Constantino chamou o Papa Silvestre, ( 55) escondido no
Sorate, para lhe curar a febre assim me chamou elle como medico
para curar a sua febre soberba: pedindo-me conselho, (56) não lhe dei
resposta , porque suas palavras me pareceram ebrias . (57)
« E depois disse : «Não tema o teu coração ; (58) de antemão te ab
« solvo do estratagema , (59) que me ensinares para derrocar Penestrino.
« Posso, como tu sabes, (60) fechar, e abrir o Céo ; (61 ) pois duas são
was chaves que nas minhas mãos renunciou o meu antecessor. » (62)
« Então estes graves argumentos me levaram a crer que fosse
peior partido calar, que responder, e por isto lhe disse (63); Padre
Sancto, desde que me lavas do peccado em que vou cair, (61) escuta :
« Prometter largo, e cortar estreito , (65) te farão triumphar na tua ex
celsa cadeira» . (66)
«Apenas falleci, veiu S. Francisco reclamar a minha alma , (67) po
rém um dos negros cherubins (68) lhe disse : « Não me faças a injustiça
de leval- a para o Céo . » (69)
« Elle deve vir para o gremio dos meus servos ; (70) porque desde
que deu aquelle fraudulento conselho, eu o tenho tido sempre agarra .
do pelos cabellos : visto como não se pode absolver a quem não está
arrependido : arrepender-se do peccado, e querer o peccado, são dous
actos, que implicam reciprocamente. » (71)
« Oh miserrimo de mim ! Que dolorosa angustia não foi a minha ,
quando aquelle demonio me aferrou, dizendo por escarneo : « Pensa
vas tu talvez que eu não soubesse a arte de fazer syllogismos ! » (72)
« Conduziu -me então á presença de Minos, o qual , cingindo oito
vezes com a cauda o duro costado , disse , depois de mordel-a (13) com
grande raiva : « Este é dos condemnados á chamma , que furta, e es
conde os peccadores que atormenta» . Eis-aqui porque estou perdido
n'esta fossa, como vês, e andando assim vestido de fogo peno horri
velmente . »
Quando finalisou a narração do seu peccado , a chamma partiu
O
486 O INFERN

dolorosa, torcendo, e movendo a ponta aguda, segundo o impulso que


lhe dava a alma chorando.
Eu , e o meu Guia passámos alem sobre aquelle rochedo até á
outra ponte , que cobre a nona fossa, onde se paga o devido premio
áquelles, que aggravam a sua consciencia de grande peso, lançando
o brandão da discordia entre amigos, e parentes.
COMMENTARIOS AO CANTO XXVII

( 1 ) Già era dritta in su la fiamma e perfeitos, e sãos, costumâmos sempre


queta Per non dir più, e già da noi sen olhar- lhe para os olhos ; porque nos
già. Como si dissesse : Emquanto o es olhos a palavra se retrata muito mais
pirito falava dentro da chamma , esta que nos labios. Si porém esse individuo
movia-se ; porém, depois que o espi não tem olhos, ou por tel- os perdido,
rito cessou de falar, a chamma tornou ou porque não vê por outro qualquer
se direita e quieta, porque não era motivo, que o impida, então costuma
já movida pelo sopro da palavra do mos olhar-lhe para a bocca. Das pes
espirito, que procurava saír pela ponta soas, porém, com quem os dous Poetas
da chamma, como a nossa palavra pro falavam não podiam elles ver nem olhos
cura sair pela lingua, e pelos labios. nem bôcca, porque a chamma os occul
Tambem a nossa lingua, e os nossos tava. Viam pois uma cousa, que fazia o
labios, não se movem quando não arti officio da lingua, e era a extremidade
culam palavras. ou summidade da chamma por onde
(2) Con la licenzia del dolce poeta. saiam palavras, mas palavras confusas,
Porque Virgilio da licença a Ulysses por ser a chamma um meio ou um con
para retirar-se ? É necessario notar que ductor pouco idoneo da palavra forma
todos estes espiritos encerrados dentro da, e pronunciada dentro d'ella. Para a
das chammas não podem ver as pessoas extremidade, ou ponta da chamma na
com quem falam . Na falta de vista, soc turalmente volvem os olhos dos dous
correm-se do ouvido ; por isso Virgilio, Poetas .
para fazer conhecer Ulysses, que não (4 ) Come 'l bue Cicilian, che mugghiò
tinha mais precisão de suas informa prima. Dante surprehende sempre o lei
ções, lh'o manifesta pelo meio que até tor com a novidade, e propriedade das
um cego póde comprehender, e este comparações, produzindo com as mais
meio foi a palavra de licença para reti singelas, e naturaes imagens o effeito, que
rar-se. Si pelo contrario Virgilio tivesse outros em vão se esforçariam por pro
partido sem nada dizer a Ulysses, este duzir ! Tendo elle ha pouco falado de
não poderia ter sabido, que era tempo um som confuso, que saía da summida
de calar-se , visto como ignoraria a par de da chamma ; som, que por fim de
tida de Virgilio ; precisava portanto ser contas era a palavra do espirito, que
licenciado por palavras. estava dentro, agora, por um simile en
( 3 ) Ne fece volger gli occhi alla sua genhoso, se propõe explicar a origem,
cima. Isto é um gesto natural . Quando o progresso, e a inteira perfeição d'essa
falamos com um individuo de olhos palavra , qual devia formar -se, e saír de
488 O INFERNO

seres assim feitos. Expliquemos o caso . mulo mais a falar: Issa ten va ' più non
Phalaris, famoso tyranno d’Agrigento, t'adi770): Virgilio empregava palavras
na Sicilia, ordenou a um ferreiro, por lombardas, porque seus paes eram da
nome Perillo, a fabricação de um boi Lombardia .
de cobre, feito de modo, que podesse (8) Se tu pur mo in questo mondo cie
conter no ventre um condemnado á co. Pur mo : ha pouco. Mondo cieco, isto
morte, e que pelas fauces podesse trans é, o Inferno, que Jesus Christo chamou
mittir fóra os gritos do misero padecen trevas exteriores. Cabe muito bem na
te, quando ardesse pelo fogo posto de bôcca de um condemnado o denomi
baixo da tal machina infernal. Aconte nar o Inferno de mundo cego; porque
ceu que Perillo ( por justo castigo do si bem que esteja no meio da luz do
Céo) fosse o primeiro a ser abrazado fogo, todavia não vê .
dentro do seu artefacto . (9 ) Caduto se ' di quella dolce terra.
Che mugghiò por mugghiava. Como A lembrança da patria perdida, e per
a voz do paciente, fechado dentro do dida para sempre, em comparação do
boi, se convertia em um mugido bovi seu doloroso estado presente, faz o con
no, devendo passar por poros ou ca demnado chamar doce á terra, isto é,
naes de proposito construidos, a fim de italiana. Onde mia colpa tutta reco: onde
que a voz humana se conformasse á commetti todas as culpas, que trouxe
voz do boi ; por isso o boi, bem que de para este abysmo. Os peccadores, mor.
cobre, parecia um verdadeiro touro, que rendo, levam comsigo todas as suas cul
soltava grandes gritos de horriveis do . pas, para padecerem todos os tormen.
res . tos de que ellas são merecedoras.
( 5 ) Così, per non aver via, nè forame. ( 10 ) Dimmi se i Romaguoli han pace,
Assim, por não haver na chamma ( per o guerra. O condemnado pergunta uma
non aver nel fuoco ) nem caminho, nem cousa presente, que elle ignora. Já vi.
buraco na sua extremidade (ne via, nè mos n'um dos cantos anteriores, que os
forame dal principio) as palavras do condemnados vêem as cousas longin
lorosas do condemnado (le parole gra quas, mas não as presentes. No canto
me) convertiam - se na linguagem pro xxv, Dante deu provas de seus conheci
pria da chamma (in suo linguaggio ), isto mentos em sciencias naturaes ; no canto
é, n'aquelle murmurar, que a chamma XXVI, em sciencias geographicas e nau
faz agitada pelo vento. D'aqui se en ticas; e n'este em sciencias tambem
tende que era a lingua do condemna geographicas, e politicas .
do, que communicava á chamma aquelle ( 11 ) Ch' i ' fui de ' monti la intra Ur.
movimento ( Fraticelli) . — Cosi le parole bino. « É maravilhoso (diz Biagioli ) o
grame, epitheto transferido da pessoa nosso Poeta em todas as seguintes cir
á acção. cumscripções locaes, não tanto pela
(6) Ma poscia ch ' ebber colto lor viag justeza, quanto pela excellencia das ex
gio Su per la punta, dandole quel gui770 pressões, e por aquelles traços poeticos,
Che dato avea la lingua in lor passag com que sabe dar lustre, e esplendor
gio. Mas depois que saíram (viaggio ) ás cousas mais escuras » .
pela ponta, dando -lhe aquella mesma O condemnado diz que foi natural de
vibração, que haviam recebido da lin Montefeltro, pequena cidade entre Ur
gua no passar pela bocca (in lor passag bino, e o pico dos montes, d'onde nasce
gio ) . o Tibre. Assim , depois de ter indicado
(7 ) ... che parlavi mo lombardo. Tu primeiro que era Romanholo, determi
que pouco antes falavas lombardo ( as na em seguida o logar das Romanhas,
palavras issa e adizzo são lombardas das onde nasceu . Era este Guido de Mon
quaes Virgilio usou quando disse a tefeltro, louvado por Dante no Convito,
Ulysses : Vae-te, que agora não te esti e por Boccaccio.
COMMENTARIOS AO CANTO XXVII 489
( 12) lo era ingiuso ancora attento e sempre o furor da vingança, e de conti
chino. Como si dissesse : « Eu estava ain nua guerra ». (Biagioli).
da inclinado a ouvil- o com attenção, ( 17 ) Ma palese nessuna or ven lasciai.
mas sem falar ; porque a pergunta de « Hontem quando comecei esta viagem
Guido era dirigida a Virgilio, a quem ao Inferno, não me constava lá no mun
attribuia a qualidade de grande pecca do que houvesse guerra declarada entre
dor, que vinha ao Inferno receber o de os tyrannos Romanholos » . Notam os his
vido castigo » . São bellissimos estes in toriadores do tempo que o anno de 1300
cidentes, e estas scenas, que costumam correu para a Italia cheio de paz, e de
acontecer, quando se fala com cegos. abundancia. Parece que Deus, mediante
É um prazer indisivel ver, que Dante o famoso Jubileu d'aquelle anno, quiz
regista todas ellas, pintando - as na sua favorecer com tão singular munificen
maior simplicidade . cia a Peninsula italica, e despertal -a por
( 13 ) ...mi tentò di costa. « Tocou - me esse grande beneficio ao cumprimento
de lado, exactamente para não fazer dos preceitos divinos , tão desprezados,
saber, que eramos dous, e para que e violados por tantas discordias civis
Guido cresse falar com aquelle, que an internas , e externas ! Com effeito, era
tes tinha conversado com Ulysses». Ha cousa rara ver n'aquelles dias tempes
n'isto tanta naturalidade , que arrebata ! tuosos tão grande serenidade , ao menos
( 14) ...Parla tu, questi è Latino.Sem apparentemente ; porque a faisca da
duvida Virgilio diria estas palavras ao discordia ardia occulta no coração dos
ouvido de Dante. Outro rasgo bellissi tyrannos .
mo de naturalidade, e de verdade ! ( 18) L'aquila de Polenta la si cova .
Questi è Latino, isto é, italiano, que Si che Cervia ricopre co' suoi vanni.
rendo dizer: « Com este, que não é gre Polenta . Castello juncto de Berttinoro,
go, como os outros dous, pódes falar d'onde vieram os condes Guidos, que
sem receio de seres desdenhado, como tinham por armas nobliarchicas uma
fariam aquelles, que por seu alto orgu aguia meio branca em campo azul, e
lho se dedignam de perder palavras com meio vermelha em campo de ouro . Este
pessoas não notaveis por saber, e outros Guido que agora reina é Guido o Novo
predicados ; saber, e predicados, que te (Guido Novello). É uma bella metha
hão de distinguir um dia no teu mundo; phora dizer, que a aguia choca Ravena, e
mas por agora nada tens feito, que te com as azas cobre Cervia (cidade mari
torne celebre » . tima sujeita a Ravenna), e tudo isso
( 15 ) Ed io ch ' avea già pronta la ris.. para significar, que Guido o Novo man
posta. E por que tinha Dante já prom da sobre Ravenna e Cervia . Ravenna ,
pta a resposta ? Porque vinha exacta como capital, está sobre o corpo da
mente dos paizes de que o condemna - aguia, Cervia , como cidade secundaria ,
do pedia noticias, e sabia tim tim por está sob as azas ! São innumeraveis as
tim tim o que n'elles se passava , em continuas bellezas poeticas de Allighie
relação as cousas, e as pessoas. ri !
( 16) Senza guerra ne ' cuor de ' suoi ( 19) La terra che fe già la lunga pro
tiranni. Tyrannos, que por ambição ou va. Esta terra é Forli, onde fôra senhor
por sêde de vingança estão sempre (podestà) este mesmo Guido de Mon
usando e machinando guerra. « De gran tefeltro, com quem agora fala Dante.
de, e incomparavel força é o sentido Fè la lunga prova, isto é, sustentou o
d'estas palavras, com as quaes o eximio assedio d'aquelles soldados, que Marti
Poeta quiz significar que, comquanto nho IV enviou, para subjugal-a.
não houvesse guerra aberta entre os (20) E di Franceschi sanguinoso muc
tyrannos d'aquella provincia, todavia no chio. O maior numero dos soldados de
coração d'elles não deixava de ferver Martinho IV eram francezes, como fran .
490 ( ) INFERNO

cez era elle mesmo : todos esses solda isso muda muitas vezes de partido ( Che
dos foram mortos, quando, entrando muta parte dalla state al verno ), encos
por uma porta, os Forlienses, dirigidos tando- se sempre ao mais forte; circum
por Montefeltro, cortaram -lhes o passo stancia que não escapou ao Poeta, para
com impeto, e valor, ficando na praça significar o grande desprezo em que
um montão de cadaveres (mucchio). tinha esse triste personagem ! (Biagioli).
(21 ) Sotto le branche verdi si ritrova . Lioncel não é aqui diminutivo de leão,
A saber : sob o dominio da familia dos como indica o vocabulario da Crusca,
Ordelaffi, que tinha por armas um Leão porém figuradamente é tomado por
verde, do meio para cima, em campo brazão de Mainardo ( como já ficou dito)
de ouro, e do meio par baixo, com tres tyranno de Imola, e de Faenza (Monti).
listas verdes , e tres de ouro . Tudo isto (26 ) Le città di Lamone e di Santer.
é dito por sinecdoche , em vez de dizer no . Faenza, cidade na margem do rio
sob o leão verde, brazão dos Ordelaffis, Lamona, Imola, cidade na margem do
senhores então de Forli . Santerno .
(22 ) E’l Mastin vecchio, e 'l nuovo da ( 27 ) E quella a cui il Savio bagna il
Verrucchio. O mastim velho era Mala fianco. Aquella, em cujo flanco corre o
testa pae, e o mastim novo era o filho rio Savio é Cesena : isto é, corre entre
Malatestino (marido da infeliz Francis Bettinoro ao occidente, e Cesena ao
ca de Polenta ), senhores de Rimini: oriente .
são chamados mastins (cães de fila ), que ( 28) Così com'ella siè tra 'l piano e 'l
tyrannisavam , e dilaceravam com furor monte, Tra tirannia si vive e stato franco.
canino os seus subditos. Da Verrucchio. Cesena demora parte na planicie, e parte
É este um castello, que os Riminenses na collina. Á similhança do seu estado
deram ao primeiro Malatesta; por isso, material, é o seu estado politico, parte
bem que a origem dos Malatestas fosse livre, parte tyrannico. Era essa a ano
da Penna de Billi, foram todavia deno malia, que se dava então . Os caudilhos
minados de Verrucchio, que quer dizer : populares, usurpando o supremo domi
Verruma. nio, não aboliam inteiramente o regi.
( 23 ) Che fecer di Montagna il mal men republicano. O simile entre o esta
governo. Montagna era cavalleiro Gibel do material, e politico de Cesena é lin
lino da familia Percilati, Riminense, que dissimo !
os Malatestas conservaram em prisão, e (29) Ora chi se ' ti prego che ne conte:
por fim mataram cruelmente. Non esser duro più ch ' altri sia stalo,
(24) ...fan de ' denti succhio. Tendo Se 'l nome tuo nel mondo tegna fronte.
o Poeta os qualificado mastini, dá-lhes Como si Dante dissesse : «Agora que sa
os dentes dos cães, que são agudos, e tisfiz a tua pergunta a respeito do esta
fortes, a ponto de traspassarem, e tri do dos negocios publicos na Romanha,
turarem OS ossos mais duros. Assim dize -me quem foste no mundo, não
como a verruma penetra na madeira, e sendo tu mais duro, ou mais inflexivel
lhe arranca as entranhas torcendo, assim para commigo do que o outro, isto é,
os dous mastins de Rimini esfolavam , e Ulysses, que ha pouco ouviste quando
arrancavam a vida do seu povo ! elle falava com Virgilio , ao qual decla
( 25 ) Conduce il lioncel dal nido bian rou quem era sem difficuldade; e a fran
co. Mainardo Pagani, chamado o demo queza da tua resposta será prenuncio
nio, que tinha por armas um leãosinho de que o teu nome continuará na terra
azul em campo branco . Note-se que o sobranceiro ao esquecimento ».
Poeta o chama lioncel, e não leone, para Guido tinha já antes declarado a sua
demonstrar, que o tyranno de quem elle patria, mas sempre com palavras vagas,
fala, bem que tenha a ferocidade do leão, e generalidades : tinha dito que era da
não tem comtudo as suas forças, e por Romanha di quella terra Latino onde mi.z
COMMENTARIOS AO CANTO XXVII 491

colpa , tulla reco ). Depois especificára de Dante precedentemente rogára para lhe
que logar da Romanha era natural ( intra declararem seus nomes ; e ainda ha quem
Urbino. E'l giogo di che Tever si dis entenda que o altri se refere a Ulysses,
serra ). Mas Dante com tudo isso fingia que ouvira de Virgilio a linguagem lom
não saber quem elle fosse. Sabia porém barda, e que facilmente declarou a este
que, sendo peccador de culpa vergo quem era. Mas porque essa differença
nhosa ( a fraudulencia) se obstinava em de proceder entre Ulysses, e Guido ?
occultar o seu nome , e por isso não Porque Ulysses tinha vivido muitos se
quiz dizer, se não vagamente o logar culos antes, e Guido sabia que falava
do seu nascimento. D'aqui a ardente com um contemporaneo, embora o não
rogativa que lhe faz Dante de declarar conhecesse, como adiante se verá .
com precisão quem foi elle no mundo, Quanto á interpretação que dei ao
como se chamou, etc. terceiro verso ( Se 'l nome tuo nel mon
Devo declarar, que na interpretação do tegna fronte) é um pouco livre ; mas
do presente terceto ousei me separar encerra o verdadeiro sentido do Poeta,
da intelligencia, que lhe deram alguns até porque mais de uma vez tem elle
dos commentadores, que consultei , e usado d'esta formula seductora para
que mesmo se acham entre si divergen conseguir, que os condemnados lhe de
tes, como se verá dos seguintes exemplos. clarem seus nomes, sob a condição de,
Butti traduz o segundo verso do ter quando voltar ao mundo, renovar-lhes a
ceto assim : Non esser duro più ch'altri memoria. Tenga fronte tenha a cabeça
sia stato. Não sejas mais duro para com levantada, em signal de contrastar os
migo, do que fui para comtigo (Non effeitos do esquecimento. Dante anima
esser più duro a me, ch ' io sia stato Guido a responder-lhe com a grande
a te ). E traduz o terceiro assim : Se il fama, que deixou de si no mundo, e
nome tuo nel mondo tegna fronte, isto é, com desejo que continue essa fama.
que tenha fama (abbia fama). Lo incoraggia a parlare con la grande
Venturi traduz o terceiro verso assim : fama lasciata di sè nel mondo e col de
Se ' il nome tuo nel mondo tegna fronte: siderio che continui (Bennassutti).
Assim permaneça o teu nome longa Pois bem : reproduzirci ainda o ter
mente no mundo. (Così il tuo nome ri ceto, para traduzil- o com outra varian
manga lungamente in riputazione). E te no sentido em que o tomam alguns
porque saltou pelo segundo verso ? Se conimentadores, a fim de que o leitor
ria esse o meio de illudir a difficuldade ? escolha a que mais lhe agradar : Ora
O segundo verso é o que realmente of chi se ’ ti prego che ne conte : Non esser
ferece maior difficuldade. duro più ch ' altri sia stato, Se 'l nome
Fraticelli interpreta : Non esser duro tuo nel mondo tegna fronte. Como si
più ch' altri sia stato: Não sejas mais dissesse : Agora, que respondi plena
duro do que tem sido algum outro dos mente á tua pergunta sobre as cousas
espiritos por mim já rogados (più che sia da Romanha, rogo-te que me digas
slato alcun altro degli spiriti da me già quem és; não sendo para commigo mais
pregati). duro, ou mais descortez, do que não
Bianchi repete a intelligencia dada fui para comtigo; e em recompensa te
por Fraticelli, dizendo : mais duro do desejo, que permaneça no mundo o teu
que os espiritos precedentemente inter nome , a tua memoria, que eu mesmo
rogados : degli spiriti precedentemente refrescarei ( che io stessor infrescherò ).
interrogati. ( 30) Poscia ch 'l fuoco alquanto ebbe
Vê-se pois que Butti discorda de Fra rugghiato. Isto quer dizer, que a pala
ticelli, e de Bianchi, e eu concordo com vra saída da bócca de Guido, antes de
Butti, de todos tres ; porque estes dous saír da chamma, murmura dentro com
referem o altri a outros espiritos , que aquelle som , que fazem as chammas, e
492 O INFERNO

depois, saindo pela aguda ponta, agi cisco, alcançaria o meu pleno desi
ta-a coma vibração, que lhe dá a lingua. deratum , que era purificar -me dos pec
É assás gracioso este modo de indi cados commettidos, mediante a peni .
car as cousas por algum dos accidentes, tencia, e d'est'arte me salvaria, como
pelos quaes as mais triviaes tomam um verdadeiro convertido.
certo ar de novidade, que surprehende . ( 37) Se non fosse il gran Prete, a cui
Para produzir este effeito é preciso não mal prenda.Grande Padre, o Papa, chefe
só possuir grande criterio, como tambem dos padres, o grande padre por antono
grande perspicacia (Biagioli ). masia . É este um modo pouco digno de
(31 ) S'io credessi, che mia risposta qualificar o Soberano Pontifice. Mas não
fosse. Guido não sabe (porque a cham esqueça que é um condemnado quem
ma o impede de ver) que Dante é vivo, fala, e se refere a Bonifacio VIII,a quem
e muito menos sabe, que seja a pessoa Dante não perde occasião de ferir.
com quem fala, antes crê que fala com ( 38 ) Che mi rimise nelle prime colpe.
aquella (Virgilio) que elle ouviu falar Como si dissesse : « Fazendo -me reincidir
com Ulysses. Crê , em summa, falar com n'aquelles estratagemas fraudulentos,
um condemnado recemchegado ao In que eu era veseiro em tramar contra o
ferno, e que não mais voltará ao mun meus inimigos, quando era soldado ».
do : ( che mai tornasse al mondo) n'esta ( 39) E come, e quare voglio che
persuasão é que elle lhe declara o nome: m'intenda. « E quero que saibas de
tanto pode nos fraudulentos a vergonha mim de que modo, e por que razão me
do seu peccado ! fez recair n'esta culpa ».
( 32 ) Questa fiamma staria senza più Todos estes versos, que comprehen.
scosse. « Esta chamma não se moveria dem a resposta do condemnado Guido,
certamente , isto é, não falaria mais » . A foram traduzidos por Voltaire, mas de
razão é clara : quando fala o espirito, maneira a demonstrar a sua ignorancia
que está dentro da chamma, este se do idioma italiano. É verdade que, no
agita ; e vice-versa . dizer de Biagioli, não havia somente
( 33) Non torné vivo alcun , s'i'odo ignorancia da lingua italiana em Voltai.
il vero. Com effeito no Inferno não ha re, havia sobretudo a louca vaidade de
redempção. In Inferno nulla est redem querer saber tudo.
ptio. Tal é a fé catholica. (40) Mentre ch ' io forma fui d'ossa
( 34) Senza tema d'infamia ti rispon e di polpe, Che la madre midiè...Quer
do. Segundo a opinião de Dante, já por o Poeta significar que os paes não dão
vezes expressa , os condemnados, priva senão o corpo, e que a alma é immediata
dos de todo o bem eterno , mostram - se mente infundida por Deus, apenas o corpo
no Inferno desejosos d'aquelle bem se acha formado de carne, e de ossos.
temporal, que resulta da boa fama entre Diz Biagioli, que madre aqui se entende
os vivos. É por isto que Guido, decla a natureza .
rando seu nome a Dante , não teme que
Quando o corpo animei que , por destino,
elle o infame no mundo, para onde não Me dera minha Mãe, todo o meu porte
ha de jamais voltar. Nunca foi de leão mas sim vulpino.
( 35 ) l' fuiuom d'arme, e poi fu’cor Manhas mil soube e usei, de toda a sorte;
digliero. Já ficou dito que o Conde de Contadas pela fama foram ellas
Té no mundo aos confins , com brado forte.
Montefeltro, depois de ter sido um gran Mas aos annos chegado em que as procellas
de guerreiro, fez - se frade franciscan Fugindo cumpre aos miseros humanos
( cordigliero por causa do cordão que Os cabos enrolar, colher as velas,
trazem na cintura ) . O que antes me prouvera ardis , enganos
( 36) E certo il creder mio veniva in Me desaprouve , e houveram -me valido
A confissão, a dor, e os desenganos !
tero. Como si dissesse : « Eu cria que,
cingindo- me com o cordão de S. Fran ( Traduzidos pelo sr. conselheiro A. J. Viale.)
COMMENTARIOS AO CANTO XXVII 493

(41 ) ...l'opere mie Non furon leoni mado o Papa, grande Padre ; agora cha
ne, ma di volpe. Como si dissesse : « Não ma - o principe dos novos Pharisêos, ou
empreguei tanto a força, como a astu dos padres, maxime prelados. É um in
cia, e a fraude» . Talvez o Poeta alludis sulto mais acerbo que o primeiro, não
se (diz Venturi) áquelle dito de Cicero : só pela pessoa com quem compara o
Vis leonis videtur, fraus quasi vulpeculæ Papa (com o principe dos Pharisêos),
( De officiis ). Obras leoninas são as da como pela corporação inteira do clero
generosidade, e do valor : as obras vul . não menos ferida que o Papa. Mas um
pinas são as da crueldade, e da astucia . condemnado não podia exprimir - se em
(42 ) Quando mi vidi giunto in quella linguagem differente : fala como conde
parte Di mia età , dove ciascun dovreb mnado.
be Calar le vele e raccoglier le sarte. (47 ) Avendo guerra presso a Latera
Como si dissesse : « Quando cheguei á no . Sustentando guerra com os Colon
velhice , idade em que o homem não nas, senhores feudatarios papaes de Pa
deve pensar mais no mundo, mas na lestrino , que demora distante 24 milhas
eternidade, á similhança do nauta , que, de Roma, e Cardeaes ao mesmo tempo,
ao chegar ao porto, colhe as vélas, e que tinham residencia junto de S. João
enrola as cordas do navio. No Convito, de Latrão, os quaes, primeiros fautores,
tractado iv, c. 28, Dante fala d'este depois inimigos do Papa Bonifacio, em
mesmo Guido de Montefeltro, e louvan vez de lhe pedirem perdão dos insultos
do a sua passagem para a religião, re que lhe fizeram , e em vez de compare
pete este simile aqui usado : « A simi cerem na sua presença como eram con
Jhança de um bom marinheiro que, ao vidados, retiraram -se para Palestrina, on
approximar -se do porto, cala as velas, de se fortificaram para resistir ás armas
e recolhe as cordas, assim devemos nós papaes. Quanto veneno n’estas phrases :
na velhice calar as vélas das nossas “ guerrear em Roma seus vizinhos de
mundanas paixões, e voltar a Deus com casa, e descuidar-se entretanto de guer
a mente , e o coração .. rear no oriente os inimigos do nome
(43 ) Ciò che pria mi piaceva allor christão !» Mas é veneno injusto ; porque
m ' increbbe. É isto exactamente o que Bonifacio pensava tambem no oriente,
acontece, quando o peccador abandona a cujos christãos não podia acudir, sem
com firmeza o peccado, de modo que só desembaraçar- se das difficuldades in
o lembrar-se d'elle, é motivo para en ternas, creadas por homens, que se
cher-se de tedio, e asco. diziam christãos !
(44) E pentuto e confuso mi rendei. (49 ) E non con Saracin, nè con Giu .
Os que, por suggestões malignas, não dei. Como si dissesse : « Com estes a
admittem, e até detestam a confissão, guerra seria sancta, ao passo que com
deveriam ao menos aprendel- a de Dante os Cardeaes era impia ». Mas eu pergun
aqui, e n'outros logares , maxime no tarei : « Si aquelles Cardeaes se portavam
canto ix do Purgatorio. com o Papa, como se portariam os sar
(45 ) Ahi miser, lasso ! e giovato sa racenos, e os judeus, não eram mais re
rebbe. N'este verso temos tudo o que prehensiveis do que estes ? »
pertence ao sacramento da penitencia : (49) Chè ciascun suo nemico era Cris.
1.", a contrição ; 2.º, a confissão ; 3. , a tiano. Querendo dizer, que os Colon
satisfação da penitencia ; 4.', as vanta nas, e os seus adherentes eram todos
gens da confissão; que tudo se resume christãos. E para aggravar a culpa de
n'esta formula theologica : Cordis con Bonifacio, por fazer - lhes guerra, nota
tritio : oris confessio, et operis satisfas que fazia guerra a seus proprios filhos !
ctio . Mas de quem era a culpa ? Do pae ou
(46) Lo Principe de ' nuovi Farisei. dos filhos ? Si os filhos obrigam o pae a
Este condemnado havia primeiro cha fazer -lhes guerra, a culpa é d'elles.
494 O INFERNO

( 50 ) E nessuno era stato a vincer Acri. terceiro logar exaggerava a injustiça do


Acri era a ultima fortaleza, que restava Papa pelas qualidades de seus auxilia
aos christãos na Palestina. Caiu tambem res, que eram todos christãos renegados,
esta em poder do Soldão, por indolen que ajudaram o Soldão com armas, e
cia dos Principes do occidente, por cul dinheiros, para expugnar a fortaleza de
pa de suas disputas do imperio, e por Acri, onde negociavam livremente! Ago
culpa finalmente de suas resistencias ás ra porém exaggera a injustiça do Papa,
admoestações papaes. Bonifacio, por tirando argumento da sua propria di
meio de seus legados a todas as côrtes gnidade, e caracter sagrado, que devia
soberanas, trabalhou muito por pacifi respeitar.
cal - as, recolhendo ao mesmo tempo ( 53 ) Guardò in sè, nè in me quel ca
thesouros, a fim de que, em occasião pestro. N’este verso exaggera a injustiça
opportuna, podesse mover guerra deci em não attender a sanctidade da ordem
siva ao Soldão, e salvar ao menos religiosa, nem do cordão sagrado de
aquelle ultimo baluarte da christandade que o frade Guido se achava revestido
no oriente, e impedir assim a invasão nè in me quel capestro, ou cingulo de
Sarracena no occidente . A grande des terceiro de S. Francisco .
graça foi não ter sido elle ouvido ! Nes. ( 54) Che solea far li suoi cinti più ma
sunno era stato a vincer Acri. Quer cri. Satyra ferocissima contra os frades
dizer o condemnado, que os inimigos Franciscanos, como si dissesse : « Houve
de Bonifacio não pertenciam aquelles um tempo em que os homens se faziam
perfidos christãos, que ajudaram os sar frades para fazerem penitencia, e com
racenos a debellar Acri; o que importa effeito a faziam ; porque os gordos se
dizer, que os renegados vencedores de tornavam magros. Agora pelo contra
Acri eram os amigos de Bonifacio , e que rio os magros se tornam gordos : logo
este por conseguinte applaudiu a quéda fazem -se frades, para passarem vida re .
da fortaleza christā ! Dardo venenosissi galada ! » Dante estigmatisa muitas vezes
mo contra o grande Papa ! a relaxação das ordens religiosas, e cla
( 51 ) Nè mercatante in terra di Sol ma para que ellas voltem as severas re
dano. Querendo dizer : « Ninguem se diri gras de seus fundadores.
ge ás terras do inimigo para negociar , ( 55 ) Ma come Costantin chiese Sil
mas sim as terras amigas.» Os inimigos vestro. É bem conhecido nas historias
de Bonifacio não foram negociar nas o facto de ter o Imperador Constantino
terras do Soldão; logo não eram seus mandado chamar do monte Soracte, on
amigos. Os adherentes de Bonifacio lá de se achava escondido o Papa S. Sil
foram : logo com esse só facto declara vestre, para cural - o de uma lepra, que
ram -se seus amigos: eis quaes são os o consumia . A comparação é de per si
amigos, e os inimigos de Bonifacio ! Seus uma satyra pungentissima contra Boni
amigos são os renegados; seus inimigos facio VIII, como si o Poeta dissesse :
são os bons fieis ! « Outr'ora os Imperadores pagãos con
( 52 ) Nè sommo uficio, nè ordini sacri. sultavam os Papas acerca da sua salvação
Prosegue em exaggerar a injustiça d'esta temporal, e eterna: agora pelo contrario
guerra aos Colonnas; primeiro pelas consultam os politicos sobre o melhor
circumstancias do logar, dizendo que meio de curar - se da lepra da soberba,
o Papa fazia a guerra em Roma, em que os domina, de vingar -se de seus
vez de fazel -a no oriente ; segundo proprios filhos espirituaes !» Quanto re
pelas circumstancias das pessoas, a neno n’este parallelo entre as duas curas
quem guerreava , isto é; a seus filhos, de natureza tão diversa ! A primeira
a christãos fieis, enquanto poupava os cura remove o mal, e produz a saude,
inimigos do nome christão, quaes eram a segunda é o extremo opposto !
os sarracenos, e os judeus ! Ainda em ( 56 ) Domandommi consiglio, ed io ta
COMMENTARIOS AO CANTO XXVII 495

celli. Guido apresenta -se como um ho care . O seu antecessor foi o Papa S. Ce
mem de consciencia delicada, e tão lestino : Eis a seducção com desdouro de
contrario a perversas suggestões, que um sancto, attribuindo á cobardia um
recusa fazel -as, não obstante a altis acto de summo heroismo, isto é, a resi
sima auctoridade d'aquelle, que lh’as gnação do pontificado por Celestino !
pede . (63) Là ' ve 'l tacer mi fu avviso il peg
( 57 ) ... le sue parole parver ebbre. gio. Como si dissesse : « Porque me havia
Suas palavras pareceram -me ebrias, isto conservado em silencio , como quem
é, ameaçadoras, furiosas de colera, de não estava resolvido a ceder ás solicita
que estava ebrio . ções de Bonifacio, este enfureceu - se
( 58 ) E poi mi disse : Tuo cuor non contra mim . Mas, depois dos graves ar
sospetti. Diz que Bonifacio, após alguns gumentos de que se serviu, me decidia
instantes de indignação, reflectiu , e co falar, por não incorrer de modo mais
nheceu que a violencia, e o temor não serio nas iras papaes. Logo não foi tan
eram meios efficazes para arrancar de to por convicção, quanto por temor
Guido o que elle desejava, e que era que Guido se determinou a falar. Mas
necessario trilhar outra estrada, isto é, a este temor não era tal que o salvasse
da seducção melliflua com manifesto abu do peccado , nem tal a sua ignorancia ,
so : 1.º, da lei de Deus ; 2.º, dos sanctos que não conhecesse, que o Papa lhe
sacramentos ; 3.", das penas canonicas ; promettia aquillo , que não podia fazer :
4.°, dos sanctos, que é o nono, e ultimo logo nem o temor, nem a ignorancia
argumento com que exaggera e aggrava de Guido o podiam eximir do Inferno.
a culpa d'elle Bonifacio. Tuo cuor non (64 ) E dissi: Padre, da che tu mi lavi
sospetti. Bonifacio sabe que fala a um Di quel peccato, ove mo cader deggio.
homem timorato, que se preoccupa dos Quem absolve de um peccado, antes
seus peccados, e por isso procura tran que seja elle commettido, é como se
quillisal-o, dizendo -lhe antes de tudo, pretendesse lavar uma nodoa, antes que
que não é peccado suggerir-lhe um modo ella existisse . Seria absurda, e ridicula
qualquer de debellar os Colonnas, seus uma e outra cousa . Não obstante isto,
inimigos, entrincheirados na fortaleza de Guido, por temor reverencial ao Papa,
Penestrino ( hoje Palestrina ) ; accrescen mostra, e affecta contentar -se, e Boni
tando que se despisse de toda idéa facio que pague as custas da credulida
de peccado : Eis a má interpretação da de de Guido no inexoravel tribunal do
lei divina, declarando innocente uma Poeta !
cousa , que ella considera peccaminosa ! (65 ) Lungu promessa con l'attender
( 59) Finor t ' assolvo ... Como si dis corto . Infelizmente esta perfida sugges:
sesse : « Posto que seja peccado (que o tão de Guido é hoje maxima entre os
não é ) eu te absolvo d'elle ». Eis a reduc modernos potentados, que promettem
ção com abuso dos sacramentos ! largo, e cortam estreito. Haja vista o
(60) Come tu sai... Allude á excom que tem feito o governo usurpador dos
munhão, que Nicolau IV lançou sobre dominios da Sancta Sé, que prometteu
Guido, e que lhe foi levantada por Boni amplas garantias, que não tem cum
facio : Eis a seducção com abuso das pe prido, antes como tem redobrado em
nas canonicas ! vexações de toda a especie !
(61) Lo ciel poss ' io serrare e disse (66) Ti fara trionfar nell ' alto seg.
rare. Querendo dizer : Posso lançar a gio. Quer significar que, mediante esta
excommunhão a quem eu quizer, e le . politica, se vence sem incommodos,
vantal- a quando quizer. A excommu sem dispendios de thesouros, e sem ar
nhão exclue o excommungado do seio riscar a vida de soldados. Basta dictar
da Egreja, e por conseguinte do Céo . uma Bulla do alto throno pontificio,
(62) Che il mio antecessor non ebbe para conseguir tudo .
496 O INFERNO

(67) Francesco venne poi, com ' io da morte do corpo, assistem espiritos
fu ' morto. É bello, gentil, e religioso o bemaventurados, e espiritos condemna
pensamento de virem os paes das Or dos, que tiveram alguma relação com
dens religiosas buscar as almas de seus aquella alma, emquanto esteve unida ao
filhos, quando estes morrem . corpo. Ha aqui uma objecção : Será ve
(68) .. ma un de ' neri Cherubini. rosimil, que S. Francisco ignorasse
Um demonio, que antes da rebellião no aquillo, que o demonio sabia, isto é.
Céo pertencia á segunda ordem da pri que Guido era condemnado ? Respon.
meira hierarchia , chamada dos cheru de - se : 1.', que Dante é Poeta, a quem é
bins. Porque vem tomar a alma de licito muitas vezes adoptar aquelles ar
Guido um demonio cherubim ? Pelas bitrios, que melhor jogo fazem ao as
seguintes razões: os cherubins, quaes sumpto. O assumpto pedia que houves.
são descriptos pelo propheta Ezequiel, se um Sancto, e um demonio na occasião
são um complexo de muitas figuras de da morte de Guido, e que o demo
homem , de boi, de leão, e de guia (1, 10 nio vencesse ao Sancto , para entriste
X, 12) . Aquelles, que foram precipitados cer mais o Sancto, e alegrar mais o de
no Inferno devem ter conservado esta monio ; 2.º, o facto de ter vindo S.
quadrupla figura. Ora a politica perfida Francisco procurar a alma de Guido,
de Guido torna exactamente quem a se não prova, que elle ignorasse a con
gue um homem de varias figuras, ou, demnação d'este. Podia sabel-o, e não
como se diria vulgarmente, um duplo obstante vir procurar a alma de Guido,
demonio, e n'esta imagem seria tam não para leval- a comsigo, mas para le
bem quadruplo. Por isto no caso presen val-a ao tribunal de Deus, a quem só
te, o cherubini negro era o mais apropria competia julgal-a, e com isso S. Fran
do, que qualquer outro anjo negro; por cisco dava prova de sua profunda reve.
que é o verdadeiro anjo tutelar d'esta rencia á auctoridade divina, ao inverso
especie de fraudulentos. Assombroso do demonio, que tinha a audacia de se
Dante ! fazer juiz, e parte , em menoscabo do
(69 ) Gli disse : Nol portar; non mi far verdadeiro juiz.
torto. O demonio oppõe - se a S. Fran ( 70 ) Dal quale in qua stato gli sono
cisco. Dante imagina ( e é opinião que a'crini. É justa, e bellissima esta idea
se não deve desdenhar) que, si a alma catholica de que o demonio esteja sem .
é boa , seja levada ao tribunal por um pre ao lado de quem perde a graça de
anjo bom ; si é má, por um anjo máo. Deus, não só para impedir- lhe a recon
São Francisco pretendia que a alma de ciliação, como para accelerar-lhe a
fr. Guido lhe pertencesse o diabo en morte, e agarrar-lhe a alma, apenas
tendia que pelo contrario pertencia a saia do corpo. Em sentido contrario
elle. Travou - se um conflicto de juris procedem os anjos bons; que são guar
dicção, que acabou com a victoria do das fieis do homem justo, pois diz a es.
demonio, que era sempre quem falava, criptura sancta : Quoniam angelis suis
cmquanto que S. Francisco se conser mandavit de te, ut custodiant je in omni
vou sempre em silencio, bem conven bus viis tuis. In manibus portabunt le,
cido de que aquello seu supposto bom ne forte offendas ad lapidem pedem
filho era um reprobo. tuum . Entretanto, os anjos máos não se
N'este bellissimo incidente ha uma limitam a vigiar de longe os peccado
phantasia, que poderá parecer algum res, que perdem a graça de Deus; agar
tanto caprichosa ou extravagante ; mas ram -nos pelos cabellos, e os conser
na substancia é baseada em verdade, vam presos até a morte . Pintoresca ima
que se deprehende de mais de um logar gem !
da Escriptura Sagrada, isto é, que ao ( 71 ) Chè assolver non si può chi non
processo, que faz Deus da alma depois si pente. Quanta acrimonia satvrica não
COMMENTARIOS AO CANTO XXVII 497

está dentro d'este terceto ! Ver um de o sophisma nos induz ao peccado, de


monio dar uma lição de theologia a um pois com a verdadeira logica zomba de
Papa, que não sabe confessar um pe nós ! Guido podia, e devia ver a contra
nitente, que sabia não ser bem absolvi dição, que encerrava a absolvição de
do, e absolvel -o n'um momento em que Bonifacio, o qual absolvendo a quem
de nada lhe serve, e na presença de um não tinha ainda peccado, mas que devia
Sancto, a quem o demonio tem assimo peccar, absolvia a quem não se arrepen
prazer de traspassar de duplicada dor; dia, nem se podia arrepender ; visto
dor de um filho perdido, dor de um como a absolvição suppõe arrependi
Papa , que, em vez de conduzir seus fi mento, e vontade contraria ao peccado.
lhos ao Céo, os entregava ao diabo Pois bem : então o demonio folgava em
para ir para o Inferno! E emquanto empregar estes sophismas, porque ser
se exhibem tantos actos de arrogancia do viam para a condemnação da alma;
lado d'este demonio, da parte de S. Fran e agora já não com sophismas, mas
cisco guarda- se o maior silencio, e um com a logica, escarnece esta alma da
tal silencio é mais eloquente que todo sua affectada simplicidade, como se não
o discurso; porque a nossa imaginação soubesse, que depois dos sophismas de
infere d'este silencio tudo o que tem ha Bonifacio viria a logica do demonio.
vido de dor, i confusão, e direi até de ( 73 ) E , poichè per gran rabbia la si
affronta, a um Sancto assim enganado ! morse. E porque Minos mordeu com
(72) Tu non pensavi ch ' io loico fossi! grande raiva a cauda ? Porque , receben
Ei-lo que a tudo isso ajuncta o escarneo, do o penitente (Guido) não recebeu
como é proprio da indole diabolica, que egualmente com elle no Inferno o con
por todos os modos nos procura ator fessor (Bonifacio ), que era mais crimi
mentar, até com a mofa ! Primeiro com noso, que elle !

32
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXVIII

Na fossa nona são punidos os peccadores, que por meio da fraude provocam
divisões, discordias, e guerras nos estados, nas familias, etc., e são de quatro espe
cies : os primeiros são aquelles, que causam divisões religiosas, como Mahomet, Ali
Califa, e fr. Dolcino : os segundos aquelles, que retalham o seio da patria com dis
cordias civis, que aconselham , como Curião entre os pagãos, e Mosca entre os chris
tãos; os terceiros aquelles, que fomentam inimisades entre particulares , como Pedro
Cattani de Medicina : os da quarta especie finalmente são aquelles, que introduzem
malquerenças entre pessoas ligadas por laços de sangue, como Bertrando de Bor
nio, etc.
É punido Mahomet como cabeça de todos, que produziram divisões na Egreja
christā, sendo que nenhum scisma separou da sua communhão tantos povos, nem
tem durado tanto ; é punido Ali Califa, seu genro, não por ter dividido a sua seita,
que mereceria aliás ser de todo extirpada, mas por tel - a simplesmente dividido, e
na doutrina de Dante todo scisma, ou divisão é condemnavel até no erro, não só
porque multiplica os seus germens, como porque não ha scisma ou divisão em que
se não empregue a fraude.
Curião é punido como cabeça d'aquelles, que assopram a guerra civil no seio da
patria; porque foi Curião, que entre os gentios iniciou o mais triste exemplo de dis
cordia entre cidadãos, instigando Julio Cesar a passar o Rubicon, e voltar suas
armas contra a integridade da republica romana; e Curião, porque era pagão, não
estava isento de obedecer ás leis supremas da harmonia social. Não é menos mere
cedor de punição eterna Mosca, embora inferior a Curião; porque as discordias civis,
que fomentou foram egualmente funestas, ainda que mais circumscriptas; todavia
Mosca é punido na mesma fossa, que Curio ; porque, si é inferior a Curio na ordem
dos tempos, e do papel que este representou , tinha mais do que elle, que era gen
tio, obrigação de respeitar, como christão, as supremas leis da harmonia social.
Esta circumstancia pois o equipara ao primeiro na penalidade. Como exemplo
d'aquelles que semeiam discordias entre pessoas, Dante mette na mesma fossa
Pedro Cattani da Medicina, bolonhez que plantou a inimisade cruentissima entre
Malatesta de Rimini, e Guido Polenta : como typo d'aquelles que lançam o brandão
da discordia entre pessoas ligadas por laços intimos de parentesco, o Poeta nomeia
Bertrando de Bornio, visconde de Castello Altaforte na Gascunha, d'onde tira o seu
titulo a nobre familia Hauteforte, ainda existente cm França: viveu pelos fins do
seculo XII , foi egregio trovador, e poeta provençal. É louvado por Dante no seu livro
De Vulgari Eloquentia. Foi distincto guerreiro, mas turbulento, furibundo, inquieto,
500 O INFERNO

e fez grande fortuna pela triste industria de semear escandalos, e discordias. Corte
jou na sua mocidade a marqueza de Saxonia, filha de Henrique II, e mãe de Otto IV.
Segundo alguns chronistas, fez -se por fim monge de Cister.
Dante mette Bertrando no seu Inferno por ter induzido João Sem terra, filho
mais novo de Henrique II, Rei de Inglaterra, a rebellar- se contra o pae, de quem era
amado ternamente. João Sem terra é chamado Rei João, porque em edade de onze
annos foi coroado Rei da Irlanda, conquistada pelo pae . Henrique, o Rei joven, auxi
liado pelo irmão Godofredo, rebellou - se contra o pae tres vezes, e rebelde morreu.
Ricardo colligando- se com Filippe, Rei de França, prendeu o pae, o qual, vencido, e
abandonado dos seus, foi tambem abandonado do Rei João, que em 1189 se uniu
com o rebelde Ricardo, o que sabido pelo Rei infeliz, produziu -lhe dor tão profunda
que lhe causou a morte .
O illustrado critico Ginguenè entende , que o Rei João não deve ser accusado de
rebellião, e por isso propõe que se leia joven em vez de João, estranhando que nin
guem na Italia tenha visto no verso de Dante, ou uma grave falta do Poeta, ou uma
alteração importante no texto. A esta injusta estranheza responde categoricamente
Biagioli, dizendo : « l .", que a asserção do Poeta deveria ser bastante para demons
trar a legitimidade ou veracidade do facto, sabendo- se quanto elle é exacto nas
minimas cousas; 2.º, que o Poeta era tão exactamente informado d'aquelles acon
tecimentos, quanto nós somos dos que se passam em nossos dias; 3.", que, si elle
chamou Virgilio no canto primeiro rebelde á lei de Deus por não havel - o conhecido,
podia com mais razão chamar o Rei João rebelde ao pae, que o foi verdadeiramente;
4.", que o não terem os Italianos por tantos seculos tido a menor duvida a esse
respeito, é argumento em favor da authenticidade do mesmo facto; 5.', que a sub
stituição proposta pelo critico francez repugna a todo o ouvido italiano, porque
apresenta um acervo confuso de palavras, que não é nem verso, nem prosa; e que,
em summa, para provocar maior aversão contra o execrado Bertrando, Dante judi
ciosamente o apresenta sob o peso de seu maior delicto, qual o de ter tornado re
belde ao infeliz pae aquelle filho, que elle amava mais que todos os outros, e que
mais que todos os outros gozava de seus beneficios.»
Antes de Biagioli havia discordado da opinião de Ginguenè o não menos illus
trado Palame Carpani, que em uma erudita dissertação, inserta na Bibliotheca Ita
liana, de Milão, põe em relevo a veracidade da asserção de Dante; e anteriormente
a todos, havia o grave historiador João Villani chamado João o primogenito de
Henrique II, e dil- o de modo tão absoluto, que não se pode admittir que haja erro
dos copistas. Como pretender pois que Dante, contemporaneo de Villani, podesse
alterar um facto, que figurava inconcusso nas chronicas do tempo, e na voz da tra.
dição oral ! Não tem portanto razão o illustrado Ginguenè.
Dante, como Poeta theologo, e moralista, sabia que o christianismo , considerado
sob o aspecto social, não é senão amor, caridade, e perdão, de cujos attributos o
mais precioso fructo é a união. D'ahi as declarações divinas de que quem
ama sinceramente o proximo, cumpre a lei sancta : d'ahi recusar Jesus Christo a
offerenda, ou sacrificio d'aquelle que está em odio com seu irmão : e a ultima ora
ção que antes de morrer dirigiu a seu Eterno Pae foi rogar -lhe que conservasse
sempre entre os seus discipulos a mais perfeita união, como symbolo d'aquella que
existia entre elle, e seu mesmo Eterno Pae. Dante pois, que via nas divisões, e dis
cordias sanguinolentas a origem funesta de todas as desgraças da sua patria, náo
podia deixar de metter no seu Inferno todos os provocadores de escandalos, de he
resias, de scismas, e guerras no seio da sociedade .
CANTO XXVIII

Da ponte da nona fossa os dous Poetas observam no fundo os semeadores de escandalos, de scismas , e de he.
resias, que têem por castigo o serem horrivelmente retalhados pelo fio da espada de um demonio, que lhes
renova os golpes quando as feridas fecham : O primeiro, a quem falam , é Mahomet : depois falam com
outros .

Quem poderia nunca descrever, ainda mesmo com palavras soltas


das prisões do metro, e muitas vezes repetidas, (1) o espectaculo de
sangue, e de hediondas chagas , que eu vi então ?
Pela propria indole defectiva da linguagem humana, (2) e pela de.
bilidade do entendimento, fallecem meios capazes de comprehender ,
e exprimir com precisão cousas tão horriveis e extravagantes ! (3)
Ainda que se reunisse toda a gente, que sobre a fortunada terra (4)
de Apulia pereceu pelo ferro dos Troianos, ou toda aquella, que foi
morta no correr da longa guerra , (5) em que se fizeram tão altos es
polios de anneis, como escreve Livio, que não erra : 6 ainda que se
reunisse essa gente com aquella, que sentiu golpes (7) mortaes por con
trastar a Roberto Guiscardo : (8) ainda que se reunisse com aquell'outra,
cuja ossada ainda se encontra em Ceprano, (9) lá onde cada Apuliense
foi um traidor : ainda que se lhe reunisse toda a falange que foi des
truida na batalha de Tagliacozzo, (10) na qual o velho Alardo venceu sem
armas: ainda que finalmente todos os mortos n'essas guerras se re.
unissem, e mostrassem as suas feridas, este um membro do corpo
traspassado, aquelle outro mutilado ; ainda assim todo esse especta
culo de horror não seria comparavel ao aspecto repugnante, que
apresentavam os peccadores retalhados , e ensanguentados da nona
fossa ! (11)
Um tonel , que perde a aduela do fundo, (12) não se abre tão ras
gadamente como um homem, que eu vi aberto desde o queixo até o
502 O INFERNO

sesso. Caíam - lhe por entre as coxas os intestinos , apparecendo asque


rosamente a fressura, e o triste sacco , ( 13) onde a comida em excremento
se transforma.
Emquanto n'elle concentrava toda a minha attenção , olhou-me, e
abrindo com as mãos o peito, (14) disse : « Vê agora como estou aberto!
Vê como Mahomet está estropiado ( 15) ! Aquelle, que ali vae chorando
adiante de mim retalhado no rosto até o alto do topete, é Ali (16) Ca
lifa, meu genro, que depois de minha morte dividiu a minha seita,
e todos os outros, que vês aqui, foram em vida semeadores de escan.
dalos, e de scismas, (17) e por isso merecem que estejam assim fendi
dos .
« Aqui atraz de nós ha um demonio, que nos retalha cruelmente,
e, quando terminâmos o gyro do caminho doloroso, de novo aguça o
fio da sua espada em cada um d'esta miseravel turba; porque as
nossas feridas se fecham antes de tornarmos a passar por juncto
d'elle (18 )
«Mas quem és tu, que ahi estás de observação sobre esse roche
do , (19) com o fim talvez de adiar o mais possivel o castigo imposto
ás tuas culpas ?» (20)
O meu bom Mestre respondeu -lhe por mim dizendo : « Nem a
morte o attingiu ainda, nem delicto algum o leva a tormento ; (21)
mas eu, que estou morto , fui incumbido de conduzil-o a todos os cir
(22)
culos d'este Inferno, a fim de dar -lhe pleno conhecimento de tudo,
e isto é tão verdade, como é verdade que te estou falando » . (23)
Foram mais de cem os condemnados que, ouvindo isto, pararam
na fossa , para me olhar (24) tão maravilhados, que por instantes es
queceram os rigores do martyrio.
« Ora pois , tu, que talvez tornarás em breve (25) a ver a luz do sol,
dize a fr. Dolcino que, si não quizer vir bem depressa fazer -me aqui
companhia, ( 26) tracte de prover-se de muitos viveres, antes que a neve
o ponha em cerco, e o force a entregar ao Navarrez a victoria, que
sem a pressão da fome não lhe seria facil alcançar .»
Mahomet me disse estas palavras , quando já tinha o pé suspenso
para partir, depois o calcou na terra , e desappareceu . (27)
O outro, que tinha a goela furada, o nariz cortado, e uma só
orelha, (28) estando parado a olhar-me cheio de assombro com os ou
tros espiritos, abriu diante d'elles a bôcca ensanguentada , dizendo :
«O tu, a quem nenhuma culpa condemna (29) a este Inferno, e a quem
eu vi na bella terra italiana, (30) si uma falsa similhança me não illude,
lembra-te do Pedro de Medicina , (31) si porventura tornares a ver a
deliciosa planicie, (32) que se estende de Vercelli a Marcabo .
« Ej faze saber aos dous melhores cidadãos de Fano, senhores
CANTO XXVIII 503 ,

Guido, e Angiolello, (33) que, si a nossa previsão aqui não é vă, elles
serão lançados fóra do seu barco, submergidos perto da Catholica
por traição de um tyranno.
«Jamais de Chypre até Majorca Neptuno viu practicar tão negro
attentado, nem por piratas, nem por mercantes gregos !
« Aquelle traidor, que vê por um só olho, (34) e governa a terra ,
que um tal , que se acha aqui commigo, nunca desejaria ter visto , con
vidal -os-ha a conferir com elle: depois procederá de modo que o vento
de Focara (35) não haverá mister de seus votos , e preces.»
E eu lhe disse : « Si queres que leve de ti noticia ao mundo, de
monstra-me com clareza quem seja esse tal, que se amargura de ter
visto Rimini ) .
Então pôz elle a mão na mandibula de um seu companheiro, e lhe
abriu a bôcca, gritando : « Eis o tal, mas não fala: exilado de Roma,
dissipou todas as hesitações de Julio Cesar, affirmando que, para o
homem preparado, o differir é sempre fatal (36 ). »
Oh quanto me parecia espavorido, com a sua lingua cortada, (37)
esse Curião, que tão ousado foi em falar ! (38)
E um, que tinha ambas as mãos amputadas , alçando os côtos
para o ar sombrio, de forma que o sangue , que d'elles escorria , tor
nava-lhe a face hedionda , (39) bradou : « Lembra-te não menos de
Mosca (40) que (misero de mim !) tambem disse : « Uma cousa feita ,
«deve ter seu fim » : (41) esta palavra foi origem da desgraça da gente
toscana . » (42). E eu accrescentei: « Foi egualmente origem da extincção
da tua raça » . Com esta minha declaração o condemnado, accumu
lando dor sobre dor, desappareceu como pessoa triste, e louca . (43)
Mas eu me demorei a contemplar aquelle horrendo espectaculo,
e vi uma cousa tão incrivel , que receiaria contar, (44) sem outra prova,
que o meu testemunho, si não me animasse a consciencia , ( 45) esta
fiel companheira que, sob o escudo da propria pureza , fortifica o ho
mem sincero (46).
Vi certamente, e ainda me parece estar vendo, ( 47) um corpo sem
cabeça andar, (48) como andavam os outros da triste turba ; e sustinha
pelos cabellos a cabeça cortada, (49) pendente da mão, á guisa de lan
terna , (50) e aquella olhava para nós, e dizia: «Ai de mim !» (51 )
De si fazia lanterna a si mesmo, (52) e eram dous em um, e um
em dous : (53) como isto seja possivel só o sabe Aquelle, que governa
tudo ! (54)
Quando chegou ao pé da ponte, (55) levantou alto o braço, que le
vava a cabeça, (56) a fim de nos fazer ouvir suas palavras, (57) que
foram estas : «Tu que ainda vivo andas visitando os mortos , (58) con
sidera si alguma outra pena é tão horrivel como esta minha ! (59)
504 O INFERNO

« E para que possas dizer no mundo quem eu fui, saibas que sou
Bertran de Bornio, (60) aquelle que deu pessimos conselhos ao joven
Rei João; (61) fazendo do pae, e do filho dous inimigos reciprocos :
Achitophel não estimulou com aguilhões mais acerados Absalam con
tra David ! (62)
« Por ter separado aquelles, que a natureza tinha unido, (63)tenho
a minha cabeça separada (infeliz que sou !) do seu principio, que está
encerrado n’este tronco. Assim executa -se em mim a pena de Ta.
hão ! » (64)
COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII

( 1 ) Chi poria mai pur con parole hensões, uma espiritual, a do intellecto,
sciolte Dicer del sangue e delle piaghe que deve formar uma imagem perfeita
appieno, Ch'i' ora vidi, per narrar più da cousa , a outra material, qual a da
volte ? Duas cousas concorrem para linguagem humana, que, recebendo a
representar bem algum facto: 1.', refe idéa da mente, deve encarnal- a em pa
ril-o muitas vezes, reparando qualquer lavras. Ora estas duas comprehensões
lacuna ou na enumeração das cir serão sempre tão limitadas, e tão frac
cumstancias, ou na perspicuidade da ex cionadas, que não poderão ter nunca a
pressão; 2.", referil - o com palavras sol precisa vastidão, nem a precisa capaci
tas das prisões do metro, e da rima, que dade.
muitas vezes excluem aquelles termos Dante, versado, como era, na lição
que seriam mais adaptados. Estas con dos Sanctos Padres, provavelmente, ao
dições o nosso Poeta preencheu perfei escrever este terceto, tinha sob os olhos
tamente n'esta synthese ( Torricelli). da mente aquella admiravel formula ,
...pur con parole sciolte. Ainda em de que Sancto Agostinho se serviu quan.
prosa, a qual, sendo solta, e livre das do, ao contemplar os gosos ineffaveis
leis do verso, pode ter mais facilidade da cidade eterna, e ao mesmo tempo a
para exprimir as cousas. impossibilidade de comprehendel-os, e
...per narrar più volte. Por mais nar muito menos descrevel-os, exclama
rações, que fizesse, não conseguiria va :

descrevel-as plenamente, ficando sem · Quid mihi est in cælo ? Quasi diceret:
pre muito áquem do que devia dizer. Excedit vires meæs, excedit facultatem
(2) Ogni lingua... Toda a lingua, eloquentiæ meæ , transcendit capacita
que é orgão da palavra, por mais expe tem intelligentiæ meæ illud decus, illa
dita, por mais eloquente que seja, seria gloria, illa celsitudo, etc.
insufficiente . (4) ... in su la fortunata terra. Se
( 3 ) Per lo nostro sermone, e per la gundo a torrente dos commentadores
mente. Por duas razões : 1.°, pela nature da Divina Comedia, estas palavras de
za assás limitada da linguagem humana vem ser interpretadas por terra infeliz,
(nostro sermone ); 2.", pela natureza do sujeita a diversas fortunas. Confesso
nosso intellecto, tambem assás limitado, que não me conformo com esta in
tendo ambos pouca capacidade (poco terpretação ; porque , no meu humilde
senso ) para comprehender, isto é, des. pensar, fortunata terra aqui é tomada
crever plenamente tantas, e tão gran no sentido de fadada , destinada, etc.
des cousas. Porquanto, para descrever Nem outro podia ser o sentido de
uma cousa, se requerem duas compre Dante , porque foi o de Virgilio , o qual
506 O INFERNO

põe na bocca de Eneas, ao pisar terra terminam o verbo giace in sua fortuna
da Italia, esta exclamação : ta terra, sobre a qual terra é de saber
que quando Eneas veiu á Italia, confor.
Salve, fatis mihi debita tellus : me os oraculos dos deuses, foi porque
Vosque, ait, o fidi Trojæ, salvete, Penates. a Italia era fadada a ser possuida pelos
Hic domus, hæc patria est genitor mihi talia,
namquc Troianos, e por isso diz Dante na sua
Nunc repeto, Anchises fatorunt arcana reliquil, etc. afortunada terra, isto é, a Italia, a qual
foi feliz aos Troianos, como diz Virgilio,
... Eu te saudo,
Terra , que pelos fados me és devida! porque Italia foi feliz nas batalhas, que
Bemvindos sejaes, ó vos de Troia, trouxeram como consequencia o domi
Fidos Penates ! Esta a nossa casa , nio do novo imperio formado pelos Ro
A nossa patria é esta ! Dos destinos manos sobre todo o mundo.» Che giace
(Agora me recordo ) estes arcanos, in su fortunata terra, cioè, fatta á Troia
Morrendo, me deixou meu pae Anchises ,
ni, e intendi d'Italia, la quale fu fortu
( Eneid ., liv. VII , v , 122. ) nata à Troiani, come dice Virgilio, o
vero per che Italia fu avventurata nelle
É pois evidente que fortunata aqui é bataglie a soggiogare co' Romani tutto
a expressão dos oraculos de que se in il mondo .
spirou Anchises nas suas predicções a Não será isto assás positivo ? Prosiga
Eneas. Quando porém eu digo que mos : Bennassutti, que felizmente con
Dante tomou a palavra fortunata no servou fidelidade ao primitivo texto
mesmo sentido que Virgilio, refiro -me dantesco, seguido por Francisco Butti,
ao sentido litteral ; quero finalmente di é ainda em parte mais explicito, no to
zer que ambos os Poetas tomaram a so cante ao erro de substituir os Troianos
bredita palavra na significação de feliz; pelos Romanos, como se vê d'estas suas
porque fortunatus quer dizer feliz . Vir palavras : « Os soldados de Turno foram
gilio pois toma fortunata terra no sen vencidos por Eneas ( diz Pedro de Dan
tido de feliz, não só por ter sido ella fa te ) n'aquella parte da Apulia , que se
dada pelos deuses a Eneas, como por chama Laurencia in ea parte Apulix ,
que a conquista, que d'ella fez abriu quæ dicitur Laurentia. Com effeito,
uma era de felicidades futuras com a Virgilio , no livro vir 'da Eneida, al
fundação do novo Imperio Romano. lude aos estragos que os Troianos fize
Dante porém toma as sobreditas pala ram nos miseros Laurenținos: Heu
vras , não só no sentido auspicioso, mas quantæ miseris cædes Laurentibus in
no sentido christão, considerando feliz stant ! Á vista do que , conclue Bennas
a terra de Apulia, por tel -a Eneas con sutii, não convem alterar a lição, que traz
quistado por vontade da Providencia, Troianos em vez de Romanos; porque
como claramente se exprimiu no canto 11, essa alteração, que Bianchi e outros fi
(v. 20 e segg). zeram , seria erro crasso admittil-a ; por
Em confirmação d'estes meus asser que se faria Dante dizer um ridiculo
tos, offereço a incontestavel auctorida absurdo, qual Per ļi Romani e per li
de de Francisco Butti, quasi contempo Romani, visto como dos Romanos fala
raneo de Dante, e um dos primeiros elle inmediatamente no verso seguinte
commentadores da Divina Comedia, que ao em que fala dos Troianos». Pena é .
se serviu do proprio texto original do que Bennassutti, discorrendo tão bella
Poeta. Explicando pois as palavras in su mente, descahisse na sua argumentação
la fortunata terra Di Puglia, diz : « O quando diz, que Dante fala dos Roma
exercito de Turno era auxiliado de nos no verso immediato : Vejamos o que
grande contingente dos habitantes de Dante diz, segundo o veridico texto se
Apulia, segundo Virgilio no livro vi da guido por Butti :
Eneida, e as palavras per li Troiani de ( 5) Se s'adunasse ancor tutta la gente,
COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII 507

Che già in su la fortunata terra Di sentido em que Virgilio e Dante toma


Puglia, fu del suo sangue dolente Per ram . E tambem o nosso Camões : « Por
li Troiani, e per la lunga guerra . « Si onde vem a effeito o fim fadado» , « A
se reunisse ainda toda a gente, que fadada ruina de Troia » ; isto é, deter
sobre a fortunada terra de Apulia pere minada pelo Fado. O fadado corpo de
ceu pelo ferro dos Troianos, ou toda a Achilles, que só na planta do pé podia
gente, morta no correr da longa guerra, ser ferido, isto é, em que havia o effeito
etc. » Onde estão aqui pois os Romanos maravilhoso, e sobrenatural. Em sum
dos quaes disse Bennassutti que Dante ma, no mesmo sentido em que Virgilio
falára no verso immediato ? Deploro que exclamou : Fortunati ambo ! Si quid
o grave Bennassutti, sempre tão con mea carmina possunt, etc. Felizes ambos,
sciencioso, commettesse este engano, etc. E Cicero : O fortunatam ... me con
que logo demonstrarei mais cabalmen sule Romam . Ó Roma feliz de ter-me
te. Peior engano porém commettêra se por seu Consul ! Admitto porém com
culos antes Venturi, o qual , commen Bianchi, e todos os outros commentado
tando este passo, depois de confessar res, que no futuro a terra de Apulia
que os Troianos fizeram grandes estra fosse desgraçada (disgraziata ', onde a
gos ( fecero grandi stragi), muda de fortuna jogou muitas vezes o seu jogo ;
bordo, e diz : «Mas aqui é necessario sendo frequentemente theatro de san
alargar muito os confins da Apulia, pa guinosos combates. É sabido que a bai
ra comprehender o paiz, onde comba xa Italia, ou aquella parte da baixa Ita
teram os Troianos sob o commando de lia , chamada Apulia , foi sempre invadi
Eneas : alguma edição traz não Troia da de povos novos, Gregos, Romanos ,
nos, mas Romani; ainda assim , seguin Sarracenos Normandos etc., e sujeita
do -se a lição do nosso texto, póde-se sempre a varios senhores , que a consti
dar o mesmo sentido; não sendo novo, tuiram em reino, emquanto o resto da
que por Troianos se possam entender Italia era constituido em republicas .
os Romanos, seus descendentes. Enten ... e per lunga guerra. É a se

dendo-se d'este modo, concilia -se facil gunda das tres guerras punicas, durou
mente a historia, e a geographia ». Bem mais de quinze annos entre os Roma
ignorante da historia, e da geographia nos, e os Carthaginezes, commandados
se mostra aqui o sr. Venturi ! E o mais por Annibal, que em Cannas desbaratou
notavel é, que Lombardi, taxando de completamente o exercito do consul
violenta sophisticaria (violenta stirac Terencio Varrão, e do seu collega Paulo
chiatura ) esta glosa de Venturi, resvala Emilio, matando -lhes quarenta mil ho
em erro historico egualmente deplora mens de infanteria, e vinte sete mil de
vel, negando que na Apulia os Troianos cavallaria , de que fazia o grosso a flor
jamais combateram , nem fizeram estra da nobreza romana. Annibal, como tro
gos alguns ! Eis suas proprias palavras : pheo da victoria, mandou por seu irmão
Nella Puglia non fecero i Troiani mai Magon a Carthago cinco mil seis centos
guerra, nè strage veruna. e trinta anneis, tirados dos dedos dos
Vê- se que, si Dante não falasse nem nobres cavalleiros romanos que ficaram
em Livio, nem em anneis, só com es mortos no campo ! Tantus acervus fuit
forço do raciocinio, ou da imaginação ( são palavras de Tito Livio ) ut metien
poder-se -hia comprehender, que essa tius, dimidium super tres modios exples
longa guerra, foi a que, por tantos an se sint quidam auctores. Fama tenuit,
nos, batalharam romanos, e carthagi quæ propio:* vero est, haud plus fuisse
nezes . modio .
Voltando emfim ao fortunata terra, (6 ) Come Livio scrive, che non erra.
persisto em sustentar, que se deve en Diz que não erra ; porque Tito Livio foi
tender no sentido de feliz, ou fadada ; historiador , e não poeta, e escreveu a
508 O INFERNO

pura verdade das historias romanas ; longa guerra travada entre Romanos, e
sendo 0 mais veridico historiador Carthaginezes, e sendo os Carthagine.
d'aquelles tempos, diz Butti, e por sua zes os que levaram a melhoria nos es
grandissima eloquencia, sciencia, e vir tragos feitos aos Romanos, não podia
tude foi conselheiro dos Romanos no Dante referir - se directamente aos Ro.
reinado de Augusto. Entretanto é certo manos, como evidentemente se depre
ante os olhos o famoso verso de Virgi hende dos versos :
lio, quando exclama :
Per li Troiani, e per la lunga guerra
Heu quantæ miseris cædes Laurentibus Che dell' anella fe si alle spoglie,
instant ? Não tinha tambem diante dos Come Livio scrive, che non erra .
olhos o commentario de Pedro de Dan
te ha pouco citado por Bennassutti ? «Si se reunisses toda a gente morta pelos Troianos
na fortunada terra de Apulia , ou si se reunisse toda
Não sabia, que Laurentia pertencia a a gente, que pereceu no correr da longa guerra em
Napoles, e que estava dentro das raias que sefizeram tão altos despojos de anneis, segundo
da provincia de Apulia ? Quer ver o lei escreve Livio, que não erra ..
tor como o grande mestre Butti põe as
cousas em pratos limpos? Puglia (diz Si muitos nos tempos antigos, e mui
Butti) é una provincia che n'è capo Na tissimos nos tempos modernos têem
poli ; cibe, nel qual luogo i Pugliesi fu considerado Tito Livio historiador pou.
rono morti, e però dice Dante : fu del suo co veridico, passando a ser maniaco des
sangue dolente; questo dice per che qui mesurado em elogiar tudo o que era
lo sparse Per li Troiani ; cioé che i romano, Dante não figura entre estes
Troiani ne furono cagione che sconfis injustos avaliadores; reputa pelo con
sono Turno, lo qual avea seco in aiuto trario Tito Livio historiador que não
tutto lo sforzo di Pugha, etc. « A Apulia erra. Com effeito , os descobrimentos
é uma provincia, que tem por capital feitos em Roma nos ultimos tempos dão
Napoles : é aquelle logar onde os Apu razão a Dante, e é verdadeiramente hon
lienses foram mortos, e por isso diz roso para o seu criterio o ter- se separa
Dante : fu del suo sangue dolente; isto do das turbas desfavoraveis ao merito
diz porque aqui (na Apulia ) foi derra de tão eximio escriptor.
mado o seu sangue pelos Troianos, isto ( 7 ) Con quella che sentìo di colpi do
é, os Troianos foram os auctores do glie. Querendo dizer : si se reunisse
completo desbarato de Turno, o qual toda a gente, que foi morta na fortuna
tinha comsigo, ou em seu auxilio todo da terra de Apulia pelos Troianos, e
o esforço da Apulia ». pelos Romanos na antiguidade, com
É lastima, que commentadores tão aquella outra gente morta em tantas
illustrados, não só não comprehendes guerras nos tempos modernos (em re
sem o verdadeiro conceito de Dante, lação a
como lhe adulterassem o texto, a fim
de melhor ageital-o ás suas phantasias!
| cardo.
**8) Percontrast:re a Roberto Guis.
Irmão de Ricardo Duque da Nor
Si tivessem devidamente reflectido, co mandia : venceu os Sarracenos, e os
nheceriam que Dante n'este passo tinha Apulienses em 1071. Expulsou de Apu
Virgilio por pharol, e que tão grandes lia , em 1081 , o Imperador Grego Alei
Poetas não podiam n'aquella circum xo . Em 1084 tomou Roma , onde Hen .
stancia falar em Romanos ; porque não rique IV conservava em assedio Grego
existiam Romanos. Mesmo no verso rio VIII.
immediato ao em que Dante fala dos ( 9) E l'altra, il cui ossame ancor
Troianos, não podia elle no seu cres s'accoglie. Allude a batalha, que em
cendo admiravel referir- se á matan ça 1265 Carlos de Anjou deu ao Rei Man .
feita pelos Romanos na longa guerra fredo junto a Ceprano, que demora nos
( per la lunga guerra ): porque sendo essa confins da campina de Roma, onde os
COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII 509

ossos dos que morreram eram vistos es verdadeira idéa da cousa . Cumpre , que
palhados sobre a terra trinta e cinco o leitor sensato , ao ler esta , e outras si
annos depois. N'essa batalha os Apulien milhantes expressões de que se serve o
ses desertaram das fileiras de Manfre Poeta , não esqueça que muitas palavras,
do, e por causa d'essa defecção Carlos que hoje são tidas por asquerosas, e ob
venceu, e se apoderou do reino. scenas podiam nos tempos de Dante não
( 10) ... là da Tagliacozzo . A gente produzir as mesmas impressões repu
de Tagliacozzo. Tagliacozzo, castello gnantes á decencia , e á honestidade .
do Abruzzo, confinante com os estados Quantos vocabulos, ou locuções usaram
da Egreja. O Poeta refere -se á batalha decentemente os nossos classicos portu
que Carlos de Anjou deu a Corradino, guezes, que hoje se não podem usar,
sobrinho de Manfredo, vindo da Ger nem nas conversações, nem nos escri
mania para reconquistar o reino. Carlos ptos, sem risco de offender o decoro
havia já perdido dous terços de suas das pessoas, e as leis da decencia ? In
tropas; mas Alardo, velho francez, lhe numeras poderia eu apresentar ! Demais,
aconselhou, que caisse com o resto da Dante não tinha direito de inventar pa
força sobre o inimigo debandado em lavras, para denominar cousas, já conhe.
•busca dos despojos, e d'est'arte venceu cidas por seus nomes proprios desde
mais com a prudencia, do que com a que o mundo é mundo !
espada, em Tagliacozzo. de (1268 ). Pedro ( 14) Guardommi, e con le man s'aper
de Dante refere, que n'essa batalha o se il petto. Como assim ? Não tinha já
Conde de Caserta, e Thomaz, Conde o peito aberto, como tinha o ventre ? E
d'Accerra, maridos das irmās de Man se tinha o peito já aberto, como o abriu
fredo, o abandonaram , bandeando -se para mostrar a Dante ? Não ; e isso por
a Carlos, e que Manfredo, egualmente effeito natural . Abrindo - se um corpo
abandonado de outros mais fieis, sendo desde o queixo até o baixo ventre, suc
aconselhado a fugir, respondeu : « Pre cede que o ventre não se fecha como o
firo morrer a viver captivo ». Foi morto , peito, não só porque o ventre é todo
e sepultado junto á ponte de S. Germa composto de partes molles, que tendem
no . a cair para baixo, como porque, apenas
( 11 ) Il modo della nona bolgia s0770. aberto, as tripas sáem, emquanto o
Os scismaticos, e escandalosos são na peito, cingido pelas costellas, aberto que
nona fossa retalhados de mil maneiras seja, fecha - se pela elasticidade das mes .
estranhas ; justissimo castigo imposto mas costellas. Quando o salchicheiro
aos que retalharam a sociedade huma abre um porco de cima a baixo, o peito
na em mil scismas, e divisões funestas. fecha -se, mas não o ventre. Até em ana .
-

( 12) Già veggia, per mezzul perdere, tomia Dante mostra-se sabedor insigne !
o lulla. Como si dissesse : « Um tonel , ( 15) Vedi come storpiato è Maometto !
que perdesse a taboa do meio do seu Desgraçadamente não ha quem não sai
fundo, ou as outras duas lateraes, não ba , quem foi Mahomet, o execrando
se abriria mais rasgadamente, do que falso propheta ! A sua impia seita era
um condemnado, que eu vi aberto ou seguida nos tempos de Dante pelos
fendido desde queixo até o sesso » . Sarracenos, e pelos Arabes espalhados
Imagem dantesca , e apropriadissima para por todas as partes da Asia, da Africa,
retratar a enorme abertura ou fenda e tambem na Europa, isto é, na Hespa
d'aquelle espirito (Biagioli ). nha meridional, d'onde ameaçayam in .
( 13 ) La corata pareva, e 'l tristo sac vadir todo o sul da Europa. Póde - se
co. O triste sacco é o immundo ventre, dizer que a metade do mundo, então
que converte em excremento tudo o conhecido, foi conquistado por Maho
que se come, e bebe. A pintura é hor met, e é exactamente por isso que Dan
renda, e asquerosa ; mas outra não daria a te, para conformar a culpa com o casti
510 O INFERNO

go, figura o feroz impostor aberto de fresco. Este porém deve ser o castigo
meio a meio no Inferno . devido aos que rasgam o seio da socie
( 16 ) Dinanzi a me sen va piangendo dade christā com scismas, que renovam
Al . Ali, genro, e discipulo de Mahomet, com insistencia, sempre que reconhecem
discrepou d'este em varios pontos da que o correr do tempo os vae oblite
sua doutrina, e fez por sua conta refor rando .
mas no Alcorão : a sua seita é seguida ( 19 ) Ma tu chi se ' che in sullo sco
especialmente na Persia. Porque Maho glio muse . Quando alguem olha fixa
met está aberto desde o queixo até o mente um objecto, que lhe interessa,
baixo ventre, emquando Ali só está mas que está distante; estende o mais
aberto do queixo até á summidade da que póde o rosto para diante. A meta
cabeça ? A razão é porque Mahomet foi phora aqui é tirada do acto, que os ani
o chefe, o mestre, o principal auctor das mais fazem , quando , ou por falta de
discordias, e heresias; dividiu profunda pasto, ou por cansaço , ou por outra
mente a sociedade christā, e por isso qualquer causa, se conservam estupida
cra de toda a justiça, que seu corpo fos mente com o nariz levantado , em ar de
se tambem dividido de cima a baixo . qucm escuta ou espreita.
Ali, seu genro, só está aberto do queixo ( 20) Forse per indugiar d'ire alla pe."
até o alto da cabeça ; porque tendo sua na . É um erro orthographico pôr uma
cabeça mais doutrina, que a de Maho virgula entre muse e forse ; porque o
met, em vez de empregal- a no sentido sentido é este ; « Mas quem és tu, que
de se voltar á antiga união religiosa, estás ahi sobre o rochedo a olhar, tal
pelo contrario empregou - a em multipli vez para chegares o mais tarde, que te
car a discordia, multiplicando as rami for possivel á fossa, que te foi destina
ficações da seita . da por Minos, para expiar as tuas cul
( 17 ) ... e però son fessi cosi. Aqui dá pas ?» Por esta pergunta, vê - se que Ma
o Poeta a razão da congruencia entre a homet crê que Dante seja um conde.
culpa, e o castigo, segundo expliquei ha mnado malicioso sujeito a castigo maior
pouco. Offerece -se aqui outra duvida : que o seu, e que para differir o tormen
Mahomet, Ali, e seus sectarios foram to finge estar fazendo observações se
violentos semeadores de discordias, scis rias do alto do rochedo . Estando Ma.
mas, heresias, etc. Porque pois não são homet no fundo da fossa, e Dante lá em
punidos entre os violentos, mas sim en cima da rocha, não podia conhecer que
tre os fraudulentos ? Responde -se, que elle era vivo, e por isso o considera
todo o chefe de seita , ainda que use de condemnado aos castigos eternos.
violencia na practica ou na propagação (21 ) Nè morte il giunse ancor , nè col
da sua heresia , como Mahomet, e Lu pa il mena . Isto é, nem é morto, nem
thero, todavia na parte doutrinal de seus condemnado. N'este attingir (giusse),
erros, que é a que lhes sobrevive, usa quanta verdade, e belleza ! Este attin
de engano e fraude ; fazendo valer os gir indica, que a morte corre sempre
seus mesmos crros como verdades be . atraz dos mortaes até que por fim os
bidas em fontes puras, e que todo o alcança !
ensino que lhes é opposto conduz à per ( 22 ) Ma, per dar lui esperienza piena.
dição das almas, etc. Eis a razão por que Como si Virgilio dissesse : « Eu o condu
o Poeta mette estes heresiarchas entre zo, para fazel- o conhecer plenamente
os fraudulentos . as penas eternas aqui, e as temporaes
( 18) Perocchè le ferite son richiuse no Purgatorio, a fim de que, aterrado
Prima ch ' altri dinanzi gli rivada. Com com tão doloroso espectaculo, conver
effeito, causa menos dor um golpe dado ta - se e entre nos caminhos de melhor
n'uma parte să do corpo, do que n’uma viver» . Mas porque Virgilio responde, e
parte já ferida, embora cicatrizada de não Dante a quem Mahomet dirigia a
COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII 5 ப

pergunta ? É porque Dante era qual um Mahomet, o qual ainda duvida , que
condemnado no conceito de Mahomet : Dante voltaria ao mundo, a despeito
por isso, respondendo elle aquillo que das graves asseverações de Virgilio !
respondeu Virgilio ,não mereceria credito ( 27) Indi a partirsi in terra lo distese.
a Mahomet. Tractava -se de convencer Como si dissesse : O calar, e dar ás
um incredulo de primeiro lote, como Ma gambias foi um só acto . Dar ás gambias
homet, e por isso era necessario offe é fugir depressa.
recer uma prova, sem replica, da vida, e (28 ) E non avea ma che un'orecchia
da innocencia de Dante ; ora uma tal sola. Das tres feridas d'este condemna
prova não podia ser offerecida, senão do vê - se, que não era só um golpe de
por um morto, qual Virgilio, que asse espada , mas muitos, que aquelle diabo,
gurava ter sido auctorisado por quem de quem falou- se ha pouco , vibrava nos
tudo póde a servir de guia a Dante. E infelizes que passavam diante d'elle ; é
si sem embargo d'isto Mahomet não por isto que Dante de pensado usou do
ficou convencido, como ficaria, si fosse verbo accismare, que significa cortar,
Dante , que lh'o affirmasse ? retalhar. E porque este condemnado é
(23) E questo è ver così, com ' io ti ferido na guela, no nariz, e na orelha ?
parlo. Juramento assertorio . Virgilio jul Porque foi um semeador de discordias
ga necessario recorrer ao juramento por entre as familias, isto é, entre a familia de
causa da natureza incredula de Maho Guido de Polenta, e a de Malatesta de
met . Rimini: e taes mexeriqueiros peccam
(24) S'arrestaron nel fosso a riguar pela lingua falando, pelo nariz farejando
darmi. Sem duvida, a novidade de per o que hão de dizer, e pelos ouvidos re
si era grande, mas tornava -se maior aos cebendo quantos rumores futeis se lhes
olhos de pessoas incredulas, como offerecem de feição a lhes servirem de
aquelles condemnados : por isso para combustivel, para o incendio da intriga.
ram , para olhar maravilhados, para um Admiravel, estupendissimo Dante no
homem vivo no Inferno ! Ha n'este acto seu systema penal !
bellissima naturalidade . (29 ) () tu , cui colpa non condanna. Este
( 25 ) Or di' a Fra Dolcin dunque, che acreditou na palavra de Virgilio, que
s'armi. Este fr. Dolcino foi um eremi lhe disse que Dante era vivo, porque
ta seductor, e instituidor de uma falsa não era incredulo como Mahomet; mas
religião, um de cujos mandamentos era sómente semeador de discordias ; por
o communismo de bens, e de mulheres. isso era menos cruelmente retalhado do
Com tres mil homens, e quasi outras que elle, si bem tivesse tres feridas.
tantas mulheres, por elle seduzidas, pas ( 30) E cui già vidi su in terra latina .
sava uma vida de nefanda libidinagem Ținha visto Dante em Bolonha quan
nos visos de um monte inexpugnavel, do este era estudante : terra latina por
entre Navarra, e Vercelli . terra italiana .
Uma densa nevada o impediu a descer (31 ) Rimembriti di Pier da Medicina.
para premunir-se de viveres, e por esse D'este Pedro Cattani de Medicina já se
motivo foi compellido a entregar-se ao falou no Argumento, como tendo sido
povo de Novara, a que se tinham asso o intrigante mór das duas familias de
ciado muitos lombardos, para prendel-o: Guido de Polenta, e de Malatesta de
colhido ás mãos dos novos confederados, Rimini , e ao qual Pedro Dante chama
estes o fizeram queimar vivo com uma homem illustre, e mordaz (morditor ).
sua concubina Margarida de Trento, Medicina é uma terra na provincia de
em 1306. Foi um appendice á historia Bolonha .
dos Valdezes. (32) Se mai torni a veder lo dolce pia
( 26) Tu che forse vedrai il sole in no. A bella planicie da Lombardia, que
breve. Eis-aqui quanto era incredulo do districto de Vercelli se estende atra
512 O INFERNO

vés de mais de 200 milhas até Mar deria, si, procrastinando a sua marcha,
cabó, castello junto a Ravenna , hoje désse tempo a Pompeo a fortificar -se
destruido. inexpugnavelmente.
(33 ) A messer Guido ed anche ad An (37) Con la lingua tagliata nella stro ;
giolello. Estes dous honradissimos gen 7a . E porque era mudo ? Porque pouco
tis -homens da cidade de Fano, sendo antes o diabo lhe havia com um golpe
convidados por Malatestino, tyranno de espada cortado a lingua pela raiz.
cruel de Rimini, para uma conferencia, ( 38 ) Curio, ch'a dicer ſu così ardito !
poseram - se em viagem por mar, e quan Ousado, porque o conselho que deu a
do chegaram em frente do castello cha Cesar foi um grande delicto contra a
mado Catholica, foram, segundo as in patria, e contra as leis. D'este nefando
strucções do tyranno, lançados nas ondas conselho resultaram guerras civis san
pelos conductores do navio. Crê - se acon guinolentissimas, e por fim a ruina com
tecido este facto no correr de 1304. pleta da Republica . Releva não esque
(34 ) Quel traditor che vede pur con cer, que quando Dante diz que Curião
l'uno. O tyranno Malatestino era cego dissera a Cesar : « Para o homem prepa
de um olho . rado, o differir é sempre fatal», não fez
( 35 ) Poi farà si, ch ' al vento di Focar senão reproducir aquelles dous celebres
ra. Focara é um alto monte na margem versos de Lucano :
do mar, e visinho á Catholica, de cuja
foz desemboca um vento tão furioso, Dum trepidant nullo firmatæ robore partes:
que os marinheiros, antes de chegarem Tolle moras , sempre nocuit differre paratis.
áquelle ponto, fazem votos, e preces a ( Phars., V. 280, e 281. )
Deus, a fim de que lhes não aconteça
nenhum naufragio. Non farà lor mesiter ( 39) Si ch 'l sangue facea la faccia
voto nè preco. Quando Dante diz que o sozza. Logo os côtos eram levantados,
tyranno urdirá o trama de modo, que e unidos sobre a cabeça, e por isso o
os dous cidadãos de Fano não houveram sangue, que d'elles escorria pelas faces
mister de votos, nem de preces, quer as tornava hediondas. Vê-se que este
significar, que os dous infelizes serão condemnado estava ao nivel da ponte
lançados ao mar de pedra ao pescoço, debaixo de Dante ; porque do contrario
antes de attingirem aquelle ponto, onde os côtos ensanguentados não teriam si
o vento de Focara sopra com impetuo do collocados assim.
sidade . Cumpre observar que este Ma ( 40 ) ...ricordera' ti anche del Mosca.
latestino perverso, e cego de um olho Este Mosca era da familia dos Ubertis,
era irmão de Gianciotto, marido da des ou dos Lambertis.
graçada Francisca de Rimini. (41 ) ...Capo ha cosa fatta .Proverbio
( 36) Questi è desso, e non favella . Este que quer dizer : « Quando a cousa é feita,
mudo era Curião, que, expulso de Roma está feita , e não ha mais que dizer». E
pelo partido de Pompeo, se passou para esta ensubstancia, a funesta theoria dos
o exercito de Julio Cesar, que estancia factos consummados, ante os quaes des
va juncto ao Rubicon, indeciso de pas apparece, annulla -se toda a justiça, todo
sal - o. Cesar estava indeciso ; porque , pas. o direito, prevalecendo só o direito da
sar o Rubicon, e tornar-se inimigo decla força !
rado da patria. Fluctuando em todas estas (42) Che fu il mal seme della gente
hesitações, eis que surgiu Curião , que lhe Tosca. Que foi a infausta origem de
tirou todas as duvidas, affirmando, que tantas discordias sangrentas na Toscana;
em Roma seus inimigos estavam prepa discordias, que devoraram Mosca, e sua
rados para fugir, e que elle , tão munido familia, e parentes Ubertis. O caso foi
de forças, como estava, facilmente al. este em resumo : Buondelmonte, da

cançaria a victoria ; e o que não succe grande familia dos Buondelmontes , de


COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII 513

Florença, tendo promettido casar com Poeta se vale, encaminha -se a dar a sua
uma parenta dos Amidieis, não só faltou visão o maximo aspecto de verdade.
á sua palavra, como, levado da ambição Sabe -se alem d'isto quam escrupulosa
de maior dote , casou - se com outra era a consciencia de Dante : a paixão
moça da familia dos Donatis. Sabido a partidaria podia alguma vez fazel - o crer
facto, os parentes, e amigos dos Ami alguma cousa não verdadeira ; mas ao
deis reuniram nas casas dos Ubertis, mesmo tempo era elle incapaz de in
para tractarem dos meios de tomar uma vental- a de proposito em damno da
vingança exemplar. Mosca propoz que fama de ninguem .
fosse assassinado de publico Buondel (46) Sotto l'osbergo del sentirsi pura .
monte . Houve discussão larga , em que Isto quer significar que, assim como a
appareceram prós e contras. Mosca couraça é a defeza do peito, assim tam
porém acabou com todas as duvidas, e bem a pura consciencia é a defeza da
hesitações, pronunciando o referido pro pessoa , que a tem . Esta defeza diz aqui
verbio : Capo ha cosa fatta. Effectiva Dante ter na sua con
onsciencia, como
mente Buondelmonte foi assassinado disse no verso antecedente , ter na mes
em pleno dia, n'um domingo da Resur ma consciencia uma boa companheira,
reição. Seria assas longo o reproduzir e testemunha fiel.
as horrorosas scenas de sangue, que (+7 ) I'vidi certo ed ancor par ch'io
d'este facto resultaram ; basta dizer que 'l veggia. Tractando de cousa incrivel,
d'elle nasceram na Toscana os dous par insiste o Poeta nas affirmações , que
tidos Guelphos, e Gibellinos, em 1215 . commummente fazemos, quando quere
(43 ) Perch ' egli, accummulando duol mos que se acredite no que temos de
con duolo. Accumulando a dor das pe contar.

nas infernaes com a dor da lembrança (48 ) Un busto senza capo andar ... É
ou da exprobração, que lhe faz Dante visivel que Dante aqui tira a imagem do
de ter sido elle a causa da destruição facto historico do martyrio de S. Diony.
de sua propria familia , e das desgraças zio, o qual, depois de lhe cortarem a cabe
de sua patria , etc. Diz Optimo, que todos ça, levou - a nas mãos, desde o Montmarte ,
os Ubertis, homens, e mulheres, ou fo . em Paris até o logar onde é hoje a ba
ram mortos, ou exilados, alem da de silica chamada de S. Diniz, isto é, mais
vastação de todas as suas propriedades de 3 milhas caminhou o corpo sem
(Fraticelli). cabeça ! Sancto Agostinho no livro De
(41) E vidi cosa ch ' io avrei pura. quantitate animæ, prova, com a expe
Ha cousas tão extraordinarias, que pa riencia das partes sobreviventes dividi
recem mais inventadas, que verdadei das, ou separadas de uma centopeia, que
ras ; por isso devemos ser mui cautelo a alma póde aviventar membros de cor
sos em narral-as; porque, como disse pos separados. Certo é que Dante ex
no canto xvi , fazem que quem as re hibiu n’este canto bellissimas , e varia
fere, ainda sendo verdadeiro, passe dissimas phantasias anatomicas , das
sem culpa por mentiroso, e credulo , si, quaes, como de outras muitas, que
alem do proprio testemunho , outra pro abundam no sacro Poema, sem duvida
va não offerece, que o corrobore. inspirou-se o terrivel Miguel Angelo ao
(45) . Se non che conscienzia m’assicura. traçar o quadro sublimemente horrifico
Quem narra um facto sob o seu proprio do seu Juizo Final.
testemunho , para ser acreditado, é ne (49) E il capo tronco tenea per le chio
cessario que seja tido, e havido por ho me . E porque tinha a cabeça cortada, e

mem de consciencia sā, religiosissima, não outro qualquer membro ? Porque


de modo que a possa invocar como atiçou um filho a rebellar -se contra o
prova da verdade de suas asserções. proprio pae, que é cabeça da familia.
Todo este artificio oratorio , de que o Dante o dirá mais logo.
33
514 O INFERN
O

( 50) guisa di lanterna. A lan zil - a. Este tutta não foi jamais usado
terna, a fim de que possa allumiar os em circumstancia mais expressiva !
passos, é necessario leval- a baixa. Logo ( 57) Per appressarne le parole sue. E
a mão , que levava a cabeça, era pendu um caso inteiramente novo jamais idea
rada, e da mão pendia a cabeça. do por ninguem, o de um homem , para
( 51 ) E quei mirava noi, e dicea: 0 falar com outro, levantar com a mão a
me ! E aquella cabeça , como si de per cabeça cortada para elle ! Mas de quem
si constituisse um homem , olhava, e fa eram
as palavras? Eram da cabeça ?
lava, dizendo a Dante, e a Virgilio : « Ai Não ; eram de quem a levava. A cabe
de mim » (ahimé ! ) . Era tudo o que po ça não é senão um meio para fazel-as
dia fazer aquella cabeça, a qual conser sair, mas ellas têem sua origem nos pul
vava olhos e lingua, aptos para suas func mões do tronco. Pelas palavras operam
ções. se dous actos espirituaes: um da mente,
( 52) Di sè faceva a se stesso lucerna. que está na cabeça , outro da vontade,
De si ou da sua cabeça fazia lucerna a que está no coração. D'estes dous actos
si mesmo, para allumiar - lhe os passos. o predominante é o do coração, e
A lanterna o continente, a luz o con tambem por esta razão se diz, que as
teúdo. Quando se diz lanterna, está sub palavras eram de quem levava na mão
entendida a luz, na circumstancia em a cabeça. Em tudo isto não se deve só
que agora estamos falando. mente admirar a alta poesia, mas sobre
( 53 ) Ed eran due in uno, ed uno in tudo a alta philosophia dantesca !
due. Dous corpos separados, cabeça, e ( 58) Tu che, spirando, vai veggendo i
busto em um só individuo animados morti. Este condemnado é o primeiro
de uma só alma, e uno in due, um só in d'esta nona fossa, que advertiu , pelo res
dividuo em dous corpos separados. pirar de Dante, que elle era vivo. E
( 54) Com'esser può , Quei sa, che sì porque só elle notou esta circumstancia?
governa . Como uma só alma possa simul Porque só elle se approximou mais de
taneamente animar dous corpos, só sa Dante, do que os outros, levando o mais
be Aquelle, que por seu justo governo que poude a cabeça até pol -a face a face
assim castiga peccadores taes. com a d'elle .
( 55 ) Quando diritto appiè del ponte ( 59) Vedi s ' alcuna è grande come
fue. Este terceto é de uma phantasia a questa. Dante aqui parodiou aquillo dos
mais terrivel ! Dante devia sentir gelar Threnos de Geremias: Attendite, et vi
se -lhe o sangue em presença d'esta sce dete si est dolor sicut dolor meus.
na ! Porque o condemnado avançou até (60) Sappi ch ' i ' son Bertram dal
· ao nivel da ponte ? Para approximar -se o Bornio ... Já ficou dito no Argumento
mais possivel de Dante, a fim de ser quem fosse este Bertrando de Bornio.
por elle ouvido, devendo a bocca he (61) Ch'al Re Giovane diedi i mai
dionda da cabeça decepada proferir conforti Que dei maos conselhos, que
poucas, mas horrendas palavras! Assim lhe infundi pessimas suggestões.
tambem o poeta conseguia dar aquelle (62 ) Achitofèl non fe più d'Absalone.
acto o maximo horror pela vizinhança Achitophel, perfido cortezão de David,
da cabeça á sua face! contra o qual rebellou seu filho Absa
(56) Levò il braccio alto con tutta la lão .
testa . Este verso é de uma arte maravi (63) Dal suo principio, ch ' è ’ n questo
lhosa ! Elle mesmo se alça a custo, e troncone. Do seu principio, isto é, do
com peso, como o braço com a cabeça ! coração, que se diz ser primum vivens,
Tutta . É tal a propriedade da expressão et ultimum moriens, sendo a séde, e
que mal se poderá explicar. Traduzin forja dos espiritos, que ahi fabricados
do- a em outra lingua, que não a portu se diffundem depois, e subministram vi
gueza, difficilmente se poderia reprodu gor a todos os outros membros (Ven
COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII 515

turi) , ch'è n questo troncone. N'este cor toteles, quizesse Dante referir -se aqui
po decapitado. Mas a esta interpretação quando diz que o cerebro estava dividi
de Venturi os nossos leitores acharão do ou separado do seu principio (dal suo
de certo preferivel a seguinte que deve principio) isto é, da medulla espinhal.
mos á gentileza do Senhor Floriano que é o tronco das vertebras » ,
Caldani, illustrado professor de Anato (64) Cosi s'osserva in me lo contrappas
mia na real universidade de Pisa ( ?) . so. Assim se executa em mim a lei de
« Prossagora (diz elle ) e Plistonico, se Talião, que prescreve castigo similhante
guindo Galeno, foram de parecer que ao delicto commettido; por isso tenho a
o cerebro se deve considerar qual ap cabeça separada do corpo, porque pe
pendice da medulla espinhal; e talvez a las minhas instigações separei o filho de
esta opinião, que foi tambem a de Aris seu pae .
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXIX

Na decima fossa são punidos os falsificadores, que são de quatro especies: fal
sificadores de metaes ou alchimistas, falsificadores de moeda, ou cunhadores de
moeda falsa, falsificadores de pessoas, ou que se fazem passar por outra pessoa ,
para receberem heranças, ou outras quasquer cousas, que de direito lhes não per
tencem . Dous cantos emprega o Poeta n'esta decima fossa: no primeiro tracta da
primeira especie de falsificadores, isto é, dos alchimistas, entre os quaes reconhece
um certo Griffolino de Arezzo, e um certo Capocchio de Siena, que havia sido seu
condiscipulo, o qual, despido de todo o amor da patria, reforça os asperos vitupe
rios do Poeta contra a vaidade dos Sanezes. O supplicio d'estes alchimistas é jaze
rem por terra crivados de hostellas asquerosas, que mesmo em vida se manifestou
nas pessoas, que exercitam a alchimia, arte tão falsa, quanto perigosa ás pessoas
ignorantes, quaes são pela maior parte os falsificadores de metaes: assim o dizem
os chimicos scientificos, que conhecem a natureza dos metaes. Iniquissima é tal
fraude, e incalculaveis os males que occasiona , e por isso são dignos do odio uni
versal os falsificadores alchimistas, e que n'aquelles tempos eram verdadeiros fla
gellos da sociedade . Nota - se que elles no Inferno não se descobrem voluntaria
mente a Dante; não se fazem porém rogar muito para lhe declarar seus nomes :
isto tem sua razão. O vulgo popular não conhece o mal que elles fazem , e não os
aborrece ; alem de que são por via de regra pessoas vis, e que, indifferentes durante
a vida á fama, á honra, e á gloria, não o são menos depois da morte.
O primeiro d'estes dous falsificadores, Griffolino de Arezzo, conta a Dante que
elle foi queimado vivo por ordem do Bispo de Siena, pelo facto de ter dicto a um
tal Alberto de Siena que sabia a arte de voar pelos ares, e que esse Alberto, insen
sato como elle, pedindo - lhe que o instruisse nos segredos d'essa arte, negou-se a
ensinar-lhe : por essa razão o accusou de nigromancia ao Bispo , que de conformi
dade com as leis em vigor, o mandou queimar vivo : diz depois que, chegado á pre
sença de Minos, juiz infernal, foi condemnado por alchimista, e não por nigroman
te, accrescentando que Minos é infallivel nas suas sentenças, e quer dizer com isto
que o bispo errou, condemnando - o por nigromancia.
A sentença do Bispo foi barbara. Essas crueldades tão estultas, quanto contra
rias ao divino espirito do Evangelho, são, em verdade, uma negra pagina nos
annaes da humanidade ; mas não se confunda a humanissima, e immaculada Reli
gião de Jesus Christo com o ignorante, e feroz fanatismo de alguns de seus minis
tros, que aliás eram homens, e homens, que viviam n'uma sociedade, em cujo seio
o systema penal era o mais atroz. A Egreja Catholica, fiel ás tradições de caridade,
e de brandura de seu Supremo Fundador, sempre protestou, e condemnou essas
518 O INFERNO

sanguinarias aberrações do zelo religioso . Quando os Judeus eram perseguidos, e


queimados por toda a parte, em Roma recebiam dos Papas todo o acolhimento, e
protecção. Esta é a verdadeira historia, preconisada até por escriptores protes
tantes .
Si por fortuna porém a sociedade hodierna está livre dos damnosos embustes
dos alchimistas, e nigromantes castigados pelo nosso Poeta, ainda assim não está
livre dos fabricadores de moeda falsa, dos falsificadores de titulos honorificos, de
mercadorias de todos os generos, desde a seda até o vinho, desde o vinho até ás
drogas, desde as drogas até ás firmas, etc.
CANTO XXIX

Partem os dous Poetas para a nona fossa, na qual são punidos os falsificadores : Chegam a ponte da decima ,
d'onde ouvem os lamentos dos suppliciados: Não podendo vêl -os, por causa da escuridão, descem da ponte,
e tornam á esquerda : Descripção das varias posições, e molestias dos enfermos : Dante fala com Gritfolino,
e reconhece Capocchio, seu condiscipulo.

A grande multidão de peccadores, e as suas diversas chagas me


embriagaram tanto os olhos, que desejavam demorar-se , para se sa
ciarem de lagrimas . (1 )
Mas Virgilio me disse : « Porque olhas ainda ? Que pertinacia é essa
de embeberes a vista n'aquellas tristes , e mutiladas sombras? (2)
«Não fizeste assim nas outras fossas: Si esperas fazer a resenha de
taes infelizes, é bem que saibas, que o valle tem 22 milhas de circum
ferencia. (3)
« E a lua já se acha ao nosso nadir : (4) o tempo, que nos é conce
dido, abrevia-se, e ainda te falta ver cousas, que não imaginas. » (5)
De prompto lhe respondi : «Si soubesses a causa porque eu olhava
com tanto affinco, talvez me tiveras permittido demorar mais tempo . »
Entretanto o meu Guia andava, e eu o seguia, respondendo, e
accrescentando : « Dentro d'aquella fossa um espirito do meu sangue (6)
chora a culpa, que lá se paga mui cara» . (7)
«D’aqui por diante, disse o Mestre, não tens que te affligir a seu
respeito: cuida n'outra cousa, ( 8) e elle que permaneça lá onde está : (9)
eu o vi ao pé da ponte designar-te, e ameaçar-te com o dedo (10) for
temente, e percebi chamal-o Geri de Bello. (11)
« Mas tu estavas tão entretido com aquelle, que governou Alta
forte, que não olhaste para o logar onde elle estava, senão depois que
havia partido . » (12)
Exclamei : « Oh meu Guia, a sua morte violenta, que ainda não
520 O INFERNO

foi vingada por nenhum de seus parentes, ( 13) embora coparticipantes


da injuria recebida, o torna despeitado para commigo, e por esse mo
tivo, creio eu , elle se retirou sem me falar, o que faz que d'elle mais
me compadeça ». ( 14)
Assim fomos trocando palavras até o primeiro ponto, que do ro
chedo se descobriria o fundo do outro valle, si fosse menos escu
ro. ( 5)
Quando chegamos á ultima fossa de Malebolge (16) d'onde se po .
diam ver seus moradores , (17) horriveis lamentos (18) traspassaram-me
o coração, como si foram settas de ferro, e por isso tapei os ouvidos
com as mãos .
Si se reunissem n'uma só fossa, entre julho e septembro, todas as
molestias dos hospitaes de Valdichiana, ( 19) de Maremma , e da Sarde
nha, (20) offereceriam um espectaculo de dor egual ao que testemunhei
no fundo d'aquella fossa, d'onde saía tão putrida exhalação, qual cos
tuma evaporar -se de membros gangrenados !
Descemos ainda á erquerda, por sobre o ultimo dique do longo
do rochedo , (21) e foi então que a minha vista penetrou mais viva
mente (22) no fundo da fossa, onde a justiça infallivel, ministra do Ex
celso, pune os falsificadores, (23) que aqui registra.
Não creio que fosse maior tristeza ver em Egina todo o povo
enfermo (24) quando reinou tal epidemia, que extinguiu todos os ani
maes até o pequeno verme, e por causa da qual as nações antigas se
reproduziram do germen das formigas, segundo narram os Poetas, ( 25)
do que ver n’aquelle escuro valle definharem os espiritos a montões
diversos ! (26)
Qual jazia sobre o proprio ventre , qual sobre as espaduas (27) de
seu vizinho, qual outro se arrastava de quatro pés pela triste estrada .
Passo a passo seguiamos silenciosos, (28) observando, e ouvindo as
queixas dos enfermos, que nem sequer podiam erguer- se !
Vi dous assentados , apoiando- se um no outro, (29) como duas tor
teiras superpostas se apoiam para aquecer-se , (30) e ambos manchados
de crustas da cabeça até os pés :
E não vi jamais moço de cavallarica , esperado por seu senhor, ou
velando máo grado seu , almofaçar as costas do ginete com tanta força,
como cada um d'elles, instigado pela comichão arranhava-se furiosa
mente com as unhas, como allivio ao soffrimento . (31)
E as unhas lhe tiravam rente a crusta das chagas , como a faca
tira pela raiz as escamas do sardova , ou de outro peixe que as tenha
mais largas . (32)
O meu Guia bradou a um d'elles:«Ó tu, que te dilaceras (3 ) com os
dedos como si foram tenazes , (34) dize-me, si, entre os pecadores que
CANTO XXIX 521

estam aqui , se acha algum italiano , c por gratidão te desejo, que a


unha te dure eternamente, (35) para empregal -a n'este trabalho.
Respondeu um d'elles chorando : « Nós ambos, cujo estado mise
ravel estás vendo, fomos italianos : (36) mas quem és tu , que nos fazes
essa pergunta ? »
E o meu Guia disse : « Eu sou um morto, que conduzo de circulo
em circulo este homem vivo , no designio de lhe fazer conhecer o In
ferno ) .
Então os dous espiritos , rompendo o apoio reciproco, (37) separa
ram-se, e ambos tremendo ( 38) voltaram- se para mim , bem como
outros , que pela repercussão da voz de Virgilio poderam ouvil- o. (39)
O meu bom Mestre , achegando-se a mim, disse : «Pergunta-lhes
o que desejas saber ». Pois que elle o permittiu , comecei dizendo : « Ah
que a vossa memoria não pereça no mundo, (40 ) onde primeiro ( 1) ha
bitam as almas humanas, mas que viva por muitos annos . ( 42) Declarae
me quem sois vós, e qual a vossa Patria : (43) o vosso hediondo , e fasti
dioso supplicio (44) não vos seja estorvo de abrir- vos commigo » .
« Eu fui de Arezzo, respondeu um dos dous, e Alberto de Siena
me fez queimar vivo, (45) accusando-me de negromancia ; mas outro
foi o delicto que me conduziu aqui .
«Verdade é que em conversa disse por gracejo : « Si eu quizesse,
« poderia voar pelos ares » . E elle, que sobrava em curiosidade, e pouco
senso , quiz que eu eu lhe ensinasse a minha arte , e só porque o não
fiz voar como Dedalo, fez-me condemnar ás chammas por aquelle,
que o tinha por filho. (46)
«Minos, que não erra nas suas sentenças, condemnou-me á ultima
das dez fossas de Malebolge pela fraude, com que no mundo exerci a
alchimia . » (47)
E eu disse ao Poeta : « Houve jamais gente tão frivola como a
Sanese ? (48) Por certo nem mesmo a nação franceza o é tanto ! » (49)
Outro leproso , (50) que me estava ouvindo , respondeu a este meu
dito: « Exceptua o Strica , (51) que soube fazer despezas moderadas ,
e Nicolau, (52) que foi o primeiro, que descobriu o dispendioso uso do
cravo no horto, (53) onde germina esta semente : exceptua ainda a
sociedade (54) em que Caccia de Asciano dissipou suas vinhas, (55) e seus
bosques, e Abbagliato (56) fez pompa de seu engenho jovial.
Mas para que saibas quem assim corrobora o teu juizo sobre a
indole frivola dos Sanezes, aguça bem para mim os teus olhos, a fim
de que a minha figura corresponda ao desejo , que mostras de conhe
cer-me : verás assim que eu sou a sombra de Capocchio, (57) que falsi
ficou os metaes , por meio da alchimia ; e , si não confundo a tua pessoa
com outra, te deves recordar que fui por natureza um bom macaco . »
COMMENTARIOS AO CANTO XXIX

( 1 ) La molta gente e le diverse pia (4) E già la luna è sotto i nostri pie
ghe Avean le luci mie sì inebriate, Che di. Quer dizer que era já meio dia ; pois
dello stare a piangere eran vaghe ... Ine que nos plenilunios a lua está de noite
briate. Assim como o vinho bebido em sobre o horisonte , a meia noite no ze
abundancia embriaga de tal forma, que nit, e por conseguinte no nadir ao meio
a face se torna rubra, e os olhos turgi dia, isto é, está exactamente sob os nos
dos, assim tambem o sentimento de sos pés.
compaixão profunda embriaga os olhos, ( 5 ) Ed altro è da veder che tu non
impregnando-os de lagrimas. Embria vedi. Diz Virgilio, que restava pouco ;
guez dos olhos, é uma bella metapho porque, sendo então meio dia, deviam
ra . Um classico do nosso idioma diz : ter percorrido todo o resto do Inferno,
« Embriagar a espada da sua ira, e vin antes que se fizesse noite ; e que outras
gança do sangue dos miseros seduzidos» . cousas mais espantosas tinha Dante que
Direi todavia que ha maior belleza , e ver ainda ; pelo que era urgente apertar
propriedade na embriaguez dos olhos, os passos .
do que na embriaguez da espada. ( 6) ...
un spirto del mio sangue...
(2 ) Che dello stare ... A dor grande Isto é , um meu consanguineo.
tem necessidade de desafogar -se em la ( 7) La colpa che laggiù cotando costa.
grimas. Eis-aqui, porque nos diz o Poeta, Esta culpa, que no Inferno é punida
que os seus olhos desejavam parar na com penas tão graves, é a de semear
contemplação das cousas, que estavam discordias .
vendo, a fim de poderem chorar até sa (8) ...Non si franga.Lo tuopensier...,
ciar o prurido. etc. Querendo dizer : « D'ora avante não
( 3 ) Che miglia ventiduo la valle volge. penses mais n'elle . Non franga - não
« Si julgas poder enumerar todas aquel fracciones, não dividas o teu pensamen
las sombras, não deixes de advertir que to. Dante devia passar sem perda de
a fossa tem 22 milhas de circumferen tempo a ver, e pensar n'outras cousas ;
cia » . É esta a primeira vez que Dante mas, si em vez de proseguir, parasse
nos dá a medida de um logar no Inferno. para contemplaș a triste sorte do seu
Com esta base, e com outra, que elle parente, a sua mente se distrahiria, e
nos dará no canto trigesimo, nota 49, menor se tornaria a sua attenção sobre
poderemos fazer todas as dimensões in os objectos novos, que lhe restavam ver.
fernaes . Virgilio, dando - lhe este conselho, não
524 O INFERN
O

fazia senão pôr-lhe ante os olhos aquillo de Dante, isto é, que as injurias pes
de Horacio : Pluribus intentus est singu soaes se tornavam communs a todos os
la sensus. membros da familia do offendido, sendo
(9) Attendi ad altro, ed ei là si riman . todos obrigados a tomar parte na vin
ga. « Pensa n'outra cousa , e deixa que gança. Este barbaro, e falso ponto de
elle se conserve lá onde está » . Phrase honra teve origem entre os Germanos,
de grande desprezo para com seu pa segundo observa Tacito n’estas pala.
rente ! E qual a razão por que Virgilio vras : Suscipere tam inimicitias, seu par
fala com esta dureza ? A razão foi, não só tis, seu propinqui, quam amicitias neces .
porque elle viu o condemnado ameaçar se est. Esse funesto costume passou da
Dante , como porque, a despeito d'isto, Germania á Italia, onde se tornou talvez
o mesmo Dante mostrava sentir com mais feroz, sendo a causa das discordias
paixão de um homem , que a Justiça intestinas, e do furor dos partidos, que
Divina punia no Inferno, embora fosse dilaceraram toda a Peninsula. As facções
seu parente ; porque no Inferno vive a Guelphas, e Gibellinas foram tambem
compaixão quando é bem morta : Qui importadas da Germania (Lombardi).
vive pietà quando e bem morta . Cumpre porém advertir, que não se
( 10 ) Mostrarti e minacciar forte col entenda das palavras de Dante , que
dito. Disse muito em poucas palavras. elle approve o barbaro costume das vin
O parente de Dante, com o dedo indice ganças particulares ; mas como fala de
levantado, e apontado para elle, mos. um condemnado, em quem o odio é
trava- o aos seus companheiros de sup eterno, presume , que a causa do seu
plicio; depois, agitando o mesmo dedo, despeito contra elle Dante era não lhe
o ameaçava espumando de raiva ; gesto ter este, ou outro membro da familia
que, por amor de Dante, muito escan vingado a morte . Ao menos em vida do
dalisou Virgilio . Poeta, segundo refere Landino, tal vin .
( 11 ) Ed udil nominar Geri del Bello. gança não houvera .
E eu ouvi os outros espiritos chamal - o ( 14) Ed in ciò m'ha el fatto a sè più
Geri de Bello. Este, com effeito, foi filho pio. Theologicamente falando, Dante
de Bello Alighieri, e por conseguinte não podia ter compaixão de um con
primo do pae de Dante ; era homem demnado, ainda mesmo seu parente.
rixoso, e provocador de litigios, e dis Mas aqui é necessario entender a cousa
cordias : um dia , altercando com um
pelo lado do sangue, e da natureza :
membro da familia Sacchetti, foi por n'este sentido pode ser justificada a
este assassinado . compaixão, embora não devesse ser
( 12 ) Tu eri allor sì del tutto impedi approvada por Virgilio , como represen
to. Dante olhava tão fixa, e attentamen tante da recta razão, ante a qual só o
te para Bertrando, ex - governador do merito espesinhado é digno de toda a
castello de Altaforte, que não teve tem compaixão, e não o vicio descarado,
po de olhar para o sitio, onde estava qual o de Geri de Bello ; por isso disse
seu parente Geri de Bello, de modo que Virgilio a Dante, que o tal seu parente
este partiu, e metteu -se debaixo, sem devia permanecer no logar onde estava ,
que elle o visse. que era o que convinha ás suas malda
( 13 ) Che non gli è vendicata ... «Não des .
foi vingada por algum da nossa familia, ( 15 ) Così parlammo insino al luogo
aliás participante do ultrage, que elle primo. Che dello scoglio l ' altra valle
recebeu. Diz porém Laddino, que 30 mostra. Assim fomos falando até o pri
annos depois Cione Alighieri, consan meiro logar (al luogo primo) da pedre.
guineo de Dante, vingou a morte de gosa ponte (dello scoglioso ponte ),d'onde
Geri de Bello, matando o seu assassino . se poderia ver perfeitamente o outro valle
Um cruel prejuizo reinava nos tempos (a decima fossa ), si houvesse mais luz.
COMMENTARIOS AO CANTO XXIX 525

( 16) Quando noi fummo in su l' ulti busto sentir, e riquissima phantasia o
ma chiostra Di Malebolge. A palavra levam a crear imagens, que se diriam
chiostra significava, e significa ainda na amaneiradas, ou sem naturalidade . Mas
Toscana um logar fechado por mura em taes occasiões Dante não olha para
lhas, e os pateos das casas se chamam a cousa em si, mira somente o effeito.
chiostre. Não significa, portanto, como E na verdade quem lê esta hypothypo
alguns commentadores querem, o logar sis dos lamentos com frechas ferradas
or estão os monges, porque esse lo de compaixão (con gli strali ferrati di
gar se chama chiostro ( claustro ), e não pietà) não attende tanto ao exame da
chiostra. E Dante não chama chiostra á figura, quanto ao effeito que ella produz,
fossa do Malebolge, senão figuradamen que é o traspassamento do coração.
te, isto é, no sentido de logar fechado ( 19) Di Valdichiina tra 'l luglio , el
por diques ( luogo chiuso da argini). E settembre. O valle por onde corre o rio
diz ultima chiostra, porque depois se Shiana chama-se Valdichiana ; provincia
gue-se o poço dos gigantes (Fraticelli) . entre Arrezzo, e Perugia. Nos tempos
( 17) ... sì che i suoi conversi. Conver de Dante esse rio formava, em alguns lo
si aqui é na accepção de riversi; roves gares, grandes gantanos apaulados, cu
ciate, isto é, voltados de baixo para jas exhalações putridas infestavam os
cima, ou arrimados uns sobre os outros, ares, e produziam enfermidades: hoje
e assim eram verdadeiramente conversi porém, a sciencia hydraulica tem torna
(voltados uns sobre os outros, ou de do esse valle um dos mais bellos, e fer
frente para os outros ). Interpretar con teis da Toscana .
versi por frades leigos, para fazer cor (20) E di Maremma e di Sardigna
responder a metaphora a chiostra no į mali. Consiste a Maremma em vastos ,
sentido de claustro, é absurdo . E que e paludosos terrenos, outrora cobertos
necessidade tinha Dante (accrescenta de muitas cidades, e obras monumen
Costa) de usar d'este ridiculo jogo de taes; converteram-se depois n'um grande
palavras só para dar o nome de frades foco de miasmas pestilenciaes . Tres ve
aos espiritos n'esta fossa ? Os inimigos zes fala Dante na Maremma : a primeira
da religião não perdem ensejo de tirar vez ( Inf., c. 26) por causa das suas ser
partido de qualquer palavra de Dante, pentes : a segunda n'este canto xxix,
que lhes pareça de sentido equivoco, ou por causa das febres, que ahi soffriam
que realmente tenha multiplicidade de os habitantes : a terceira, (Purg., c. 5)
significação. por causa da morte que ahi encontrou
( 18) Lamenti saettaron me diversi. Pia, encerrada pelo marido em um cas
Metaphora ousada, mas de grande força, tello das Maremmas. Tambem a ilha de
que demonstra quanto lhe penetravam Sardenha é insalubre, e d’ahi enfermida
no fundo do coração aquelles lamentos, des .
outras tantas setas guarnecidas de fer (21 ) Del longo scoglio ... Diz longo,
ro na ponta . Alem da metaphora atre porque o rochedo ou a ponte atravessa -
vida, ha tambem aqui uma "hypothy va as dez fossas do Malebolge.
posis animadissima , uma pintura vivis ( 22) E allor fu la mia vista più viva.
sima, em que os lamentos fazem de Era natural que a vista do Poeta abran
besteiros, que vibram setas, nas pontas gesse mais vivamente o fundo da fossa,
das quaes, em vez de ferro havia com porque, approximando-se mais, melhor
paixão, que traspassavam o coração do distinguia os peccadores punidos no
Poeta. A belleza , e energia d'esta ex fundo.
pressão sabe seiscentismo por uma (23 ) Punisce i falsator che aqui re
certa apparencia de exaggeração . Dante gistra. Pune aqui os alchimistas, como
é mestre da simplicidade , mas algumas tambem aquelles, que em damno do
vezes a potencia do seu genio, o seu ro proximo falsificam metaes, e moedas.
526 O INFERNO

registra ; quer dizer: «Pune -os com re cura desembaraçar -se logo e depressa
gra, dando a cada um aquella molestia em alimpar o cavallo. Stregghia , signi
que mais se apropria ao genero de fal fica almofaça, instrumento com que se
sificação, que praticaram ; sendo que limpam as bestas.
não todos falsificaram a mesma cousa » . ( 32) Del pizzicor, che non ha più soc
(24) Fosse in Egina il popol tutto in . corso. As esfoladuras que faziam em si
fermo. Fabúla a mythologia, que em com as unhas produziam tal comichão,
Egina, ilha grega , sob o rei Caco, hou que não tinham outro remedio senão
ve tal peste , que feriu todo povo, e que empregar as mesmas unhas em lacerar
quasi todo morreu ; e que o rei, vendo as carnes .

um formigueiro em um carvalho, rogou ( 33 ) O tu che colle dita ti dismaglie.


a Jove que convertesse aquellas formi Como si dissesse : « Ó tu, que rompes
gas em outros tantos homens, e que as malhas, etc.» A epiderme ou a pelle
assim aconteceu . porosa, que circumda o corpo, é como
(25 ) Quando fu l'aer si pien de mali um tecido de malhas. Quem pois arra
gia . A peste diffunde -se por infecção do nha a pelle de modo a estrangulal-a,
ar, com differença do contagio, que se rompe -lhe as malhas de que é tecida.
diffunde pelo contacto. A peste é mais É admiravel Dante no emprego de pa
fatal . Até na diagnosis ou diagnostico lavras translaticias !
Dante mostra -se perito ! ( 34) E che fai d'esse talvolta tanaglie.
( 26 ) (si che i suoi conversi ). Os inter Abrindo os dedos sobre as crustas das
pretes, inimigos dos frades, viram no chagas, e restringindo -as no coçar, as
conversi a significação de frades leigos ! semelham -se a tenaz, que abre, e aperta
(27) Qual sovra 'l ventre, e qual sovra depois o ferro.
le spalle. Eis-aqui em sentido litteral os (35) Che son quinc ' entro, se l'unghia
conversos (conversi) de que se falou no ti basti. Assim a unha te baste para di
verso . lacerar-te eternamente ! Imprecação ter.
(28) Passo passo andavam senza ser rivel !
mone. Porque caminhavam os dous Poe ( 36) Latin sem noi, che tu vedi sì guas
tas assim devagar, e silenciosos ? Pela ti. Como si dissesse : Nós dous, que
razão de ser a estrada desegual, assim assim vês esfolados com as nossas pro
como pela razão de quererem attentar prias unhas, somos Italianos. (Latin aqui
bem para o estado dos enfermos, já con quer dizer italianos ).
templando - os na sua desgraça, já ou (37) Allor si ruppe lo comun rincalzo.
vindo suas lamentações. Estando elles apoiados , costas com cos
(29 ) l' vidi duo sedere a sè poggia tas um no outro , separaram-se ambos,
ti. Apoiados costas com costas um no para melhor admirar o caso estranho,
outro, de modo que olhavam para lados qual o apparecimento de Dante no In
oppostos. Eis os conversos supra. ferno estando ainda vivo.
(30) Come a scaldar s ' appoggia teg (38 ) E tremando ciascuno a me si rol
ghia a tegghia. Porque o Poeta os com se. Porque tremiam ? Porque a natureza
para as duas torteiras postas ao fogo ? do mal , ou da acrimonia do sangue le
Aqui a similhança é engenhosamente vada ao summo gráo, torna inquietos,
tirada da profissão dos falsificadores, tremulos, e furiosos os que se arranham
que se aquecem junto ao fogo em que com tanto impeto. Tremiam , alem d'isto
derretem os metaes, que pretendem vi porque, cessando de se sustentarem
ciar. mutuamente, não tinha cada um a força .
( 31 ) Nè da colui che mal volentier necessaria para se conservar em pé de
vegghia. Si o senhor tem pressa de usar per si . Isto é obvio, e natural; e é tambem
do cavallo, ou si o moço tem pressa de obvio e natural, que estando elles até
ir dormir, em ambos os casos este pro então de costas um para o outro, mos
1
COMMENTARIOS AO CANTO XXIX 5:27

trando-se aos dous Poetas somente de (45) l' fui d ' Arezzo ed Albero da Sie
lado, um olhando para a ponte, e o ou na . Já ficou dito em outro logar quem
tro para a parte opposta , agora , que se foi este condemnado, e a razão por que
separaram, olharam ambos para a ponte, foi queimado .
e para os dous Poetas, que n'ella esta (46) Ardere a tal che l'avea per fi
vam . gliuolo . O Bispo era tio, e não pae. Os
(39) Con altri che 'l udiron di rim sobrinhos são chamados filhos dos cle
balzo. Não porque a resposta de Virgi rigos, e d'ahi o proverbio : Filii presbi
lio tenha repercutido, mas porque , ten terorum vocantur nepotes.
do sido dirigida directamente a um , foi (47) Me per l'alchimia, che nel mon
entendida pelos outros. O nosso grande do usai. Alchimia é a arte de trocar em
Poeta não usa de expressões equivocas; ouro os metaes por meio da chimica ,
ha sempre toda a precisão no que diz. segundo sôa a mesma palavra, com o
(40) Se la vostra memoria non s'im prefixo al ( arabico ). Esta arte não tro
boli. Querendo dizer em sentido depre cava verdadeiramente os metaes em

cativo : « Assim a vossa memoria não se ourc, mas só os falsificava em prejuizo


esvaeça da mente dos homens no mun dos nescios, que os recebiam como ouro .
do, onde primeiro viveste ; mas que per (48) Ed io dissi al Poeta : Or fu giam
dure pelo curso de muitos annos » (Fra mai Gente sì vana come la Sanese ?
ticelli ). Mais de uma vez temos obser Dante disse a Virgilio estas palavras
vado que, segundo Dante, os proprios em voz baixa , para não serem OL
condemnados desejam, como unico bem vidas por Griffolino. Gente sì vano: le
natural, que possam ter, a conservação viana, frivola, applicada a cousas futeis,
da sua memoria no mundo. Virgilio ha como era a alchimia, e outras occupa
via-lhe augurado cousa diversa, isto é, ções de nenhum interesse, e utilidade
o poder arranhar-se com as unhas por real .
toda a eternidade . (49) Certo non la Francesca si d'as
(41 ) Nel primo mondo... Este pri sai. « Certamente nem a nação franceza
meiro mundo desperta ao pensamento é frivola , e vaidosa em tão alto gráo ».
a idea do segundo. Em um seculo de Este dardo satyrico é allusivo ao apoio
tanta incredulidade, e materialismo, prestado pelo Rei de França, e Anjùs de
qual é o nosso, o pensamento da outra Napoles á facção Guelpha na Toscana .
vida, a que Dante continuamente allude Poggiali. Francesca por Francese.
no seu Poema ultramundanal, confirma ( 50) Onde l'altro lebbroso, che m'in
a idéa catholica, e condemna os incre tese. A sarna é uma especie de lepra,
dulos . contagiosa , e asquerosa como esta. Este
(42 ) Ma s ' ella viva sotto molti soli, condemnado ouviu o que não ouviu
Por muitos soes, isto é, por muitos an Griffolino ; e entrou a provar com ironia
nos O sol gyrando, como se cria então, a asserção de Dante sobre a frivolidade,
em torno da terra, vinha a estar sobre e madraçaria dos Sanezes.
nós, e por conseguinte nós debaixo d'elle. ( 51 ) ...Trammene Stricca, Che seppe
Por isso diz sotto molti soli, em vez de far le temperate spese. Dil- o por ironia ;
per molti soli. porque esse Stricca era consummado
(43 ) Ditemi chi voi siete, e di che gen alchimista, que, depois de ter dilapida
ti. De qual povo da Italia sois. Sabia do todos os seus bens, entregou-se a
que eram Italianos, mas quem fossem , e especulações futeis, quaes a da alchimia,
e d'onde eram não sabia ainda . sem se importar com os damnos, que
(41) La vostra sconcia e fastidiosa causava com isso ao proximo.
pena. Isto é, a sarna, que vos cobre o ( 52 ) E Niccolò, che la costuma rica ...
corpo de pustulas, e crustas rcpugnan Continúa a ironia, querendo dizer que
tes . Nicolau entrava n'este numero de ocio
528 O INFERNO

sos alchimistas. La costuma rica allude Caccia, por pertencer tambem á dita
á arte culinaria de temperar os faisões companhia, vendeu as suas vinhas, e
com cravo, e canella ; diz ricca, por ser bosques (la gran fronda ).
este costume dispendioso. ( 56 ) E l'Abbagliato il suo senno
( 53 ) Nell'orto, dove tal seme s ' ap proferse. Isto é, este Abbagliato, tam
picca. Chama horto a cidade de Siena, bem Sanez, não tendo ducados para pôr
para continuar a idéa do cravo , queren em commum , empregou o seu genio
do dizer toda a Siena era dada á vaida alegre em procurar meio de satisfazer
de ociosa dos condimentos sumptuosos . a gula, tornando-se bôbo, ou jogral da
Tudo isto demonstra e prova a asser companhia dos gosadores.
são supra : Gente vana . (57 ) Si vedrai ch'i' son l'ombra di
( 54 ) E tranne la brigata, in che dis Capocchio. Este Capocchio dizem que foi
perse. Nos tempos de Dante formara - se de Siena, e collega de Dante no estudo
em Siena uma companhia dos princi da philosophia natural, mediante a qual
paes senhores, chamada companhia dos entregou -se depois ás especulações d'al
Gosadores (diz Goderecci), cujo fim era chimia ; mas que, não colhendo bom
darem- se a banquetes, e divertimentos. resultado, se exercitou na sophistica
Essa companhia foi organisada com o ( isto é, na arte de falsificar ), e subtilissi
capital de duzentos mil ducados, que em mamente falsificou os metaes ; por isso
vinte mezes foram consumidos, caindo diz a Dante, que se deve recordar de
em miseria todos os associados, que por que elle foi um bom macaco da nature .
isso entregaram -se á alchimia ; de modo za : Com ' io fu buona scimia, di natura.
que de comilões se converteram em fal Querendo dizer, que soube contrafazer
sificadores. as cousas naturaes com a mesma habi
(55 ) Caccia d'Ascian la vigna e la lidade com que o macaco imita os actos,
gran fronda. Asciano , castello Sanez. e movimentos humanos (Vellutello) .
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXX

O Poeta conserva-se ainda parado no mesmo ponto da fossa decima, na qual o


deixamos no canto precedente. Sem mover-se adquire conhecimento dos outros
falsificadores, começando pelos falsificadores de pessoas, isto é, aquelles que enga
nam o proximo fingindo -se pessoas, que o não são: n’este numero reconhece Myr
rha, que se fingiu outra donzella, para induzir seu pae Cinyras a horrendo incesto :
reconhece depois João Schicchi Cavalcanti, que se fingiu Buoso Donati, fallecido
ab intestado ; e removendo do leito o cadaver, deitou -se em seu logar; e dictou um
testamento com todas as formas legaes em favor de Simão Donati, sobrinho do
morto , e com tal artificio imitou a voz de Buoso, que o tabellião, e os parentes pro
ximos, verdadeiros herdeiros, não deram pela fraude; fraude empregada sob a con
dição de lhe dar o pseudo-herdeiro a mais bella egua da estrebaria de Buoso Donati,
e essa egua , segundo um antigo commento, publicado ultimamente pelo illustre
lord Vernon, era conhecida por madona Tonina. João Schicchi era christão, Myr
rha gentia.
Em continuação reconhece o Poeta os falsos moedeiros, entre os quaes o
christão Mestre Adamo de Brescia, que falsificou os florins de Florença guarnecidos
de lirios. Finalmente vê os falsificadores da verdade, isto é, os perjuros, e calumnia
dores, e d'esta especie de falsificadores nos indica dous gentios, a mulher de Puti
phar, que calumniou o casto José perante seu marido, e Sinon grego, que enganou
a Priamo Rei de Troia, dizendo-lhe, que o cavallo fabricado pelos gregos, e cheio de
gregos armados, era um voto, que elles tinham feito para applacar as iras de Pallas
por causa do rapto do Palladio , e para impetrar a sua volta para a Grecia. Os falsi
ficadores da primeira especie, isto é, dos metaes, foram dous christãos, Griffolino, e
Çapocchio. Os falsificadores de pessoas, com Myrrha, e João Schicchi Cavalcanti,
correm furiosos, como cães hydrophobos, pela fossa, e mordem os outros conde
mnados, que ou estão deitados, ou assentados, ou de quatro pés, que se arrastam
pouco e pouco para outro logar.
Agora cumpre investigar quaes d'estes falsificadores sejam menos ou mais culpa
dos, segundo o conceito do Poeta. Os menos punidos, e por isso menos culpados,
me parecem os falsificadores de pessoas, quaes são Myrrha, e João Schicchi; por
que atormentam os outros, e não são atormentados por nenhum, e no morder os
outros como que o não fazem , senão por desafogo da sua raiva furiosa ; ao passo
que os outros, alem do castigo proprio da hydropisia, da sêde, ou da febre, têem
sempre medo da mordedura, e, de quando em quando, da mesma mordedura dos
furiosos falsificadores de pessoas. Depois d’estes parece que sejam menos punidos
34
530 0 INFERNO

e menos culpados, os falsificadores de metaes, ou os alchimistas, figurados em Grif


folino, e em Capocchio ; porque o Poeta os encontra antes dos falsos moedeiros, e
dos perjuros; e si não os encontra antes dos falsificadores de pessoas, isso não obsta,
porque correm em torno. Alem de que parece que falsificar os metaes não seja
peccado grave, e conhecido, como falsificar as moedas, e a verdade, mais precio
sa que as moedas; e mais ainda porque os alchimistas podiam crer mudar os me
taes verdadeiramente, isto é, não fazer ouro falso, ou prata falsa similhante á ver
dade, mas fazer ouro verdadeiro e prata verdadeira.
Depois d'estes mais culpados, e mais punidos estão os falsos moedeiros, figura
dos em mestre Adamo, cujo peccado traz comsigo a ruina da sociedade. Emfim ,
punidos e culpados sobre todos parece que são os perjuros, e os calumniadores,
figurados na mulher de Putiphar, e no grego Sinon, que jurou falso em Troia ; por
que , supposto que o peccado d'elles não se possa estender quanto o dos falsos
moedeiros, todavia parece nequicia maior, e obra de animo muito mais perverso,
chamar Deus em testemunho da falsidade, com engano e damno do proximo, e ca
lumniar o proximo innocente, do que cunhar moeda falsa para seus illicitos inte
resses .

Duas palavras sobre as qualidades d'estes falsificadores, que o Poeta encontra


n'esta fossa. Os falsificadores de pessoas são Myrrha, e Schicchi Cavalcanti, um ho
mem , e uma mulher, e porque ? Porque ambos os sexos são capazes d'este delicto :
uma gentia, e um christão; porque a fraude é peccado antigo, como se prova pelo
Velho Testamento, e porque tambem entre os pagãos era conhecida a sua malicia.
Os falsificadores de metaes, ou alchimistas, são dous homens, porque é só propria
do homem tal arte, ou impostura. São dous christãos, ou porque este artificio não
era conhecido antes do christianismo, ou antes porque, si houve alchimistas entre
os gentios, não chegou a sua fama até o Poeta, visto como os alchimistas pertencem
ao numero d'aquelles abjectos, cuja memoria o mundo não conserva (dei qualifama
il mondo esser non lassa, disse o Poeta n'outro logar) .
Um só moedeiro falso (Mestre Adamo) é homem ; porque não é proprio de mu
lher cunhar moedas: é christão pela razão já dita a respeito dos alchimistas. Os
perjuros são dous, um homem, e uma mulher, porque o mentir, e o perjurar é pro
prio de ambos os sexos : mas ambos os perjuros são gentios, talvez para notar que
o perjurio era mais frequente entre os gentios, do que entre os christãos, os quaes
têem tido sempre horror ao perjurio ; as excepções annullam -se sob o peso da ge .
neralidade. É de crer que na epoca do Poeta o perjurio não avultasse entre os
enormes crimes, que elle fulmina; e por esse motivo não apresenta senão dous
gentios perjuros, e nenhum christão.
Todos estes reprobos são castigados com enfermidades diversas corresponden
tes á natureza de seus crimes : os primeiros com lepra, os segundos com loucura
uriosa, os terceiros com hydropisia , os da quarta especie com febre ardente .
Os falsificadores de metaes são punidos com lepra, ou crustas na pelle porquc,
tendo elles com arte perversa alterado a superficie dos metaes, fazendo parecer ouro
aquillo, que não é, era de razão que fossem elles alterados na superficie de seus
corpos com crustas ou escamas hediondas.
Os falsificadores de pessoas são punidos com loucura furiosa ; porque assim
como as pessoas se conhecem e se distinguem pela cabeça, e não pelos outros
membros, era de razão que quem falsificou uma pessoa fosse punido na cabeça. E
porque a maior, e mais terrivel molestia é a loucura, por causa da qual se perde o
entendimento, que tem a sua sede na cabeça, por isso aos falsificadores é imposta
a loucura levada ao mais alto gráo, que é a furia.
Os falsificadores de moedas são punidos com a hydropisia , porque, pondo elles
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXX 531

toda a sua mira em avolumar sua fortuna por este meio corrupto, é de razão que
fossem castigados com um espantoso volume do ventre , cheio de humor corrupto,
que lhes pesasse tanto como os metaes de que fabricaram moeda falsa .
Os falsificadores de palavras são punidos com febre ardente, porque, tendo elles
em mente prostrar o proximo na desgraça, falsificando o direito que lhe assiste, é
de razão que fossem no Inferno prostrados por uma febre continua, sem treguas
nem remissão .
Os loucos correm mordendo os leprosos, e os febricitantes se engalfinham en
carniçados com os hydropicos; porque os loucos furiosos, devendo obrar, segundo
sua natureza, devem correr como loucos, mordendo seus vizinhos, e porque os vis
plebeus, como costumam ser os falsificadores de palavras, e de moedas, é tambem
conforme a sua natureza que se offendam , e dilacerem , mordendo-se. Ha ainda
outra razão da pena : assim como os falsificadores de toda a especie se entenderam
sempre entre si n’esta vida , é de razão que na outra vivam em discordia mortal,
atormentando - se uns aos outros .
Todos os falsificadores finalmente são enfermos; porque assim como os quatro
peccados, que elles commetteram são a causa de todas as molestias sociaes, pois que
nenhuma sociedade deixa de cair em ruinas quando ha no seu seio falsificação de
metaes, falsificação de pessoas, falsificação de moedas, e falsificação de palavras;
assim os auctores das molestias publicas devem ser tambem condemnados a moles
tias terriveis, constituindo elles no Inferno um enfermaria á parte, com todos os
generos de enfermidades, começando do mal da cutis até o mal do entendimento.

i
CANTO XXX

Continúa o Poeta a falar da decima ſossa, onde, alem dos falsificadores de metaes indicados no canto anterior
encontra tres especies de falsificadores : falsificadores de pessoas, de moedas, e de acontecimentos. Os pri
meiros são punidos com uma loucura furiosa , os segundos com hydropisia, os terceiros com febre ardente .

No tempo em que Juno, por suas rivalidades com Semel , ardia


em odio contra o sangue thebano, ( 1) como o demonstrou mais de uma
vez, Athamante, por influições d'ella, foi accommettido de tal accesso
de loucura que, desconhecendo sua mulher , que trazia pela mão seus
dous filhos Learcho, e Melicerta, gritou : (2) «Estendamos as redes de
geito, que eu possa colher em sua passagem a leoa, e os seus leõsi
nhos» ; e depois, aferrando com as desapiedadas garras o primeiro,
volveu-o nos ares, e o despedaçou sobre um rochedo, e a infeliz mãe,
que o caso viu , desvairada afogou -se com o segundo.
E quando a fortuna abateu o poderio dos Troianos, (3) que tudo
ousava, (4) e de um só golpe exterminou o reino, e o Rei , Hécuba, triste,
misera, e prisioneira , (5) ao ver morta Policena , e o cadaver do seu
Polydoro, jazendo na praia do mar, no seu desespero a mesquinha ululou
como cadella : tão grande foi o transtorno que na mente lhe produziu
a dor extrema !
Mas nunca ninguem vira nem Thebanos, nem Troianos, (6) agitados
pelas furias, morder tão cruelmente, já não digo homens, mas feras,
como eu vi duas sombras macilentas, e nuas, que corriam mordendo,
quaes o porco, quando do chiqueiro foge.
Uma d'ellas chegou-se a Capocchio, e o mordeu na nuca, atirando-o
por terra com tanta violencia, que o fez esfolar o ventre no duro pavi
mento .

E Griffolino d'Arezzo, que permaneceu tremendo, me disse :


534 O INFERNO

« Aquelle maligno é João Schicchi , que na sua furia hydrophobica vae


mordendo os miseros que não podem correr.
« Oh, lhe disse eu, si o outro furioso não te afferra os dentes nas
costas , não te seja penoso dizer-me quem elle é , antes que d'aqui se
retire . »
«Aquella, respondeu elle, é a alma antiga (7) da scelerada Myrrha,
que contra o decoro do amor honesto se fez amante de seu pae.
«Para conseguir tão negro fim , falsificou - se a si propria, fazendo-se
crer outra donzella, como tambem aquelle, que lá vae adiante, offere
ceu-se, sob a promessa de se lhe dar a senhora da turma , para contra
fazer -se em Duoso Donati, dictando, e dando ao testamento fórmas le
»
E depois que passaram os dous furiosos, sobre os quaes eu tinha
os olhos fixos, (9) os convergi para os outros dous reprobos. (10)
Eu vi um com o rosto, e o pescoço, tão emaciados, e o ventre
tão inchado, que teria a similhança de um liuto, (11) si o corpo lhe
fosse cortado pelas verilhas .
A grave hydropisia, ( 12) que por causa do humor, que se converte
em má substancia, desproporciona os membros de modo , que o rosto
não tem justa correspondencia com o ventre, obrigava o desgraçado
a ter os labios sempre abertos, (13) como faz o ethico, que, por effeito
da sêde, volta um dos labios para o queixo, e o outro para o na
riz. ( 14)
O vós, disse-nos, que estais n'este mundo de dor, exemptos de
toda a pena , ( 15) sem que eu saiba o porquê, (16) vede, e attendei ( 17) a
miseria do Mestre Adamo de Brescia ; (18) enquanto vivi, tive em abun
dancia tudo o que desejava; (19) e agora , ai de mim ! não tenho uma
gota de agua, que tanto anhelo. (20)
«Os regatos, que dos verdes outeiros do Casentino correm para o
Arno, (21) serpenteando por entre frescas, e amenas relvas, me estam
sempre presentes aos olhos da alma, e não debalde, porque a imagem
d'elles me desecca muito mais, (22) do que a molestia que o rosto me
descarna. (23)
«A severa justiça, que me castiga, tira motivos do mesmo logar,
onde pequei , (24) para tornar mais frequentes, e crueis os meus suspi
ros .

« Lá está o castello Romena, dentro do qual falsifiquei (25) os flo


rins de ouro, que tinham de um lado a effigie do Baptista ; (26) por cujo
crime deixei no mundo meu corpo queimado vivo .
«Mas, si eu podesse ver n'esta fossa a alma scelerada de Guido, ou
a de Alexandre ou a de seu irmão, (27) não trocaria o prazer de vêl-as
padecer commigo pela agua limpida da fonte Branda ! (28)
CANTO XXX 535

« Já tenho cá dentro uma d'ellas (29) si as sombras furiosas, que


correm em torno (30) mordendo -nos, dizem a verdade ; mas de que me
serve sabel-o, si tenho os membros tolhidos ? (31 )
« Si eu fosse ainda tão ligeiro , que pudesse andar em cem annos,
ao menos, uma pollegada, (32) já me teria posto a caminho, procurando-a
' entre essa gente repulsiva, (33) não obstante a fossa ter ii milhas de
circumferencia , e não menos de meia milha de largura . (34)
« Por causa d'esses tres malvados, acho -me no meio d'esta matilha
de reprobos : (35) foram elles que me induziram a bater os florins falsos,
que tinham 3 quilates de fezes .» (36)
E eu lhe perguntei : «Quem são esses dous miseraveis , (37) que
jazem á tua direita , esfumaçando como mão banhada no inverno ? ( 38)
« Aqui os encontrei, (39) respondeu, quando cahí n’esta borda , e
desde então não se moveram , nem creio que se possam mover por
toda a eternidade. ( 40)
« A senhora é a mulher de Putiphar, que accusou falsamente a
José ; ( 41 ) o homem é o embusteiro Sinon, grego de Troia : ( 12) uma
febre aguda fal - o exhalar um fumo putrido. »
E Sinon , ferido talvez no seu orgulho de grego, por ouvir assim
falar de si com tanta ignominia, vibrou um sôcco na dura pança de
Mestre Adamo. (43)
A pança sãou como um tambor : (44) e Mestre Adamo com seu
braço, (45) que não parecia menos duro, (46) deu uma bofetada em
Simon , dizendo: « A despeito do peso , e immobilidade dos meus mem
bros, ainda tenho braço livre para este exercicio» , ( 47)
« Não o tinhas assim livre, respondeu Sinon , quando marchavas
para a fogueira; mas o tinhas lesto quando batias os teus florins.» (48)
E o hydropico Adamo a Sinon : « N'isto dizes tu verdade, mas não
a disseste quando lá em Troia te foi exigida».
E Sinon : « Si falsifiquei a verdade, tu falsificaste o cunho dos
florins: (19) aqui estou penando por um só peccado ; mas tu penas por
muitos mais delictos do que outro qualquer condemnado» .
E Mestre Adamo : « Recorda-te, ó perjuro , do cavallo de Troia ,
e sejas castigado pela infamia que o mundo inteiro conhece» . (50)
E Sinon : « Sejas tu punido com a sede que abraza a lingua, e com a
agua immunda , que tanto te avoluma a pança, que te veda de ver
alem » .
E o moedeiro Adamo : « Não abres a bocca, senão para vasar in
jurias, como é teu costume : Si a sede me abraza a lingua, e o humor
me avoluma o ventre, a febre perturba-te a cabeça , e para beber na
fonte, onde se espelhou Narciso, (51 ) não te fizeste de muito roga
do » . (52)
536 O INFERNO

Assim os ouvia attento , quando Virgilio me disse : « Agora continúa


a ouvil- os: por pouco que não rompo comtigo » . (53)
Vendo-o falar-me tão indignado, voltei-me para elle com tal ver
gonha, que ainda está viva na minha memoria. ( 54)
E qual aquelle, que sonha uma sua desgraça, e sonhando, deseja
sonhar, a fim de que o que sonha não passe de sonho : (55) tal fiquei eu ,
não podendo falar com vergonha ; desejava justificar-me, e todavia me
justificava, mas não cria que me justificasse. (56)
« Menos vergonha, disse Virgilio, lavaria defeito mais grave , do
que o teu : (57) desaggrava pois o teu animo de toda a tristeza.
« E si alguma outra vez acontecer por acaso, que te aches em si
milhantes litigios de gente plebea , faze de conta que eu esteja sempre
ao teu lado (58)para vedar que lhes prestes attenção; porque envolver-se
em querellas taes não é digno de uma mente elevada, e de um meu
discipulo . »
COMMENTARIOS AO CANTO XXX

Este canto rompe magnificamente , tornou florescentissimo (eis uma das ra


não só pelo andamento do verso, grave, zões porque tudo ousava). Esposou Ecu
e sustentado, como pelas fortes ima ba, filha de Cisseo, rei da Thracia, da
gens, que n'elle brilham, conservando o qual teve dezenove filhos, e entre ou
leitor por longo espaço suspenso, atten tros Páris, que roubou Helena (eis outra
to, e desejoso de chegar ao fim (Pog razão porque tudo ousava ). Este rapto
giali). foi causa da ruina de Troia, que os gre
( 1 ) Nel tempo che Giunone era cruc gos saquearam, pelos annos de 1184 an
ciata. Segundo a mythologia, o primeiro tes de Christo. Priamo foi morto então
d'estes dous factos teve a seguinte ori por Pyrrho, filho de Achilles, ao pé de
gem : Jupiter amou Semele, filha de Ca um altar, onde se tinha refugiado, de
dmo, fundador de Thebas, e o fructo pois de ter reinado cincoenta e dois
d'esses adulteros amores foi Baccho . Ju annos .

no, mulher de Jupiter, e devorada de ze ( 5) Ecuba trista, misera e cattiva . A


los, tomou -se de odio contra Semele, e historia é esta : Hécuba triste pela perda
contra a familia do primeiro, jurando do marido; misera pela perda do reino ;
tirar d'ella uma vingança em occasião captiva pela perda da liberdade, tendo
opportuna. O dia da vingança chegou, e tocado em sorte a Ulysses, que a fez
consistiu em tornar louco furioso Atha escrava , viu em additamento a tudo isto
mante , marido de Ino, e rei de Thebas, tambem a propria filha Policena sacri
successor de Cadmo. Athamante, assim ficada sobre o tumulo de Achilles, e
louco varrido, enfureceu - se inconscien soube, no acto de entrar no navio, que
temente contra a propria mulher e filhos, Polydoro, outro seu filho, jazia morto
objectos seus aliás muito amados, e pra na praia do mar. Então transportada de
ticou os excessos, que Dante aqui re excessiva dor, tornou -se furiosa, vomi
fere. tando mil imprecações contra os Gre
(2) Gridò.. , « Gritou ». O phrenesi fa gos, uivando, e ladrando como uma ca
zia -lhe ver na mulher uma leña, e nos della, em que a fabula verdadeiramente
filhos uns leãosinhos. a transformou . Em summa, á Athaman
(3) L'altezza de' Troian, che tutto ar te, e Ecuba loucos furiosos, são compa
diva. A altivez dos Troianos, que ousa rados pelo nosso Poeta aos primeiros fal
va tudo contra os seus vizinhos, e con sificadores, que veremos.
tra a Grecia. (6) Ma nè di Tebe furie nè Troiane.
(4) Si che insieme col regno il re fu Nem as furias, que agitaram Athamante
casso . Priamo rei de Troia, reconstruiu de Thebas, nem as furias, que agitaram
Ilio, e dilatou os confins do reino, que se Ecuba de Troia, morderam jamais tão
538 INFERNO

cruelmente homens, e animaes, como os humores, que deviam ser converti


duas sombras macilentas, e nuas ( isto é, dos em sangue, em carne e em outras
dous falsificadores de pessoas ) que cor substancias : estes humores accumulados
riam , como o porco, que sáe do chi no peito, e no ventre , engrossam estas
queiro, mordendo furiosamente á direi partes, e afinan, ou adelgaçam as outras
ta, e á esquerda tudo o que se lhe op produzindo assim uma grande despro
põe ; com a differença, que essas duas porção nos membros do corpo (dispaia,
sombras não corriam furiosamente por desproporciona), de modo que a cabe
que fossem agitadas por alguma furia, ça, e o pescoço, que se tornam mui finos,
mas porque ellas eram furias de si mes não correspondem (non risponde) á in
mas. A comparação com o porco, que chação do peito, e do ventre.
se escapa do chiqueiro, é assas expressiº ( 13 ) Faceva lui tener le labbra aperte.
va , e bella . O hydropico tem sempre os labios aber
( 7) ... Quell’è l'anima antica . Diz que tos, por dupla razão, uma positiva, e é
a alma de Myrrha era antiga por ser a mesma repleção do humor aquoso,
uma alma dos tempos mythologicos, e que dentro o inflamma ; a outra negati
não visinhos ao Poeta . A fabula do in va, e é a abstinencia das bebidas aquosas,
cesto de Myrrha pode ser lida em Ovi que o refrigerariam por instantes, mas
dio (Metamorphosis , x ). que lhe aggravariam o mal interno.
(8 ) Per guadagnar la donna della ( 14) Come l'etico fa, che per la sete
torma. Já ficou dito n'outra parte que L’un verso 'l mento, l'altro in su river
Schicchi Cavalcanti falsificou o testa te. Tambem o hethico padece sede con
mento de Buoso Donati em favor de tinuamente, e não podendo sacial - a,
Simão Donati, mediante a promessa de conserva abertos os labios, um voltado
lhe dar este a mais bella egua da sua para cima, outro para baixo, buscando
estrebaria, egua chamada madonna To assim algum refrigerio na absorpção do
nina. ar frosco. Tal era a posição em que
(9) Sovra i quali io avea l'occhio te este hydropico tinha os seus labios .
nuto. Porque tinha Dante os olhos fixos Dante descreve scientificamente as mo.
sobre estes dous condemnados ? Porque lestias , as suas causas , e os seus effei
tos .
eram elles os protagonistas da scena
mais maravilhosa , e horrivel, que se po ( 15 ) O voi che senza alcuna pena siete.
dia ver n'aquella fossa. Era natural pois Como sabia este condemnado , que
que a curiosidade do Poeta fosse attra Dante, e Virgilio não tinham pena, que
hida por aquelle espectaculo. soffrer no Inferno ? Sabia-o pela res
( 10) ... gli altri malnati. Estes outros posta de Virgilio a Griffolino (canto
ribaldos são os falsificadores de moedas antecedente ) quando lhe disse : « Eu sou
ou moedeiros falsos, que são da tercei um morto que desço com este vivo de
ra especie de falsificadores, e os primei circulo em circulo com a missão de
ros, que veremos aqui. mostra-lhe este Inferno. l' son un che
( 11 ) l' vidi un fatto a guisa di liuto. discendo Con questo vivo giù de balzo
Liuto instrumento musical de corda. É in balzo. E di mostrar l ' Inferno a lui
o que vulgarmente chamamos bando intendo » .
lim . Tem o pescoço fino, e bojo largo, ( 16 ) E non so io perchè ... Como si
e redondo, formando uma pança. dissesse : Não sei explicar como um
( 12 ) La grave idropisia, che sì dispaia . homem ainda vivo póde andar pelo In
Eis a causa porque aquelle peccador ferno sem ser atormentado» . Já se tem
era similhantemente ao liuto : era hy dito que os condemnados têem algum
dropico. A hydropisia (repleção, ou conhecimento do futuro, mas não do
abundancia de humor aquoso) é uma presente.
enfermidade, que converte só em agua ( 17 ) ...guardate e attendete. Todas
COMMENTARIOS AO CANTO XXX 539

as palavras d'este condemnado são assás peccai. Si a memoria das delicias goza
patheticas, e maviosas ; têem uma tal das na terra é um horrivel tormento
doçura, e espontaneidade de dicção, para o condemnado, a memoria do
como nunca usaram os poetas mais logar, onde peccou , é um tormento
ternos. Dante tira esta scena do dialogo muito mais horrivel. Isto tambem é
entre o rico avarento e Abraham no pura verdade, e não phantasia.
Inferno. ( 25) Ivi è Romend, là doy ' io falsai.
( 18) Alla miseria del maestro Adamo. Eis o logar do peccado. Eis o peccado.
Este Adamo (Adam ) foi natural de Per quæ peccaverit homo per hæc et pu
Brescia, o qual, convidado pelos Condes nietur .
de Romena, castello do Casentino jun (26) La lega suggellata del Batista .
cto á nascença do Arno, ahi falsificou O florim de ouro tinha de um lado a
os florins de ouro, e depois, sendo des effigie de S. João Baptista , protector de
coberto pela policia, foi queimado vivo Florença , e do outro lado tinha lirio.
em 1280 . (27) Ma s' io vedessi quì l'anima
( 19) Io ebbi vivo assai di quel ch'i' trista . Os cumplices, sobretudo os in
volli. Querendo dizer : « Eu tive tudo stigadores do peccado, são de modo
quanto quiz, e podia desejar dos Condes particularissimo odiados pelos conde
de Romena, em compensação das mui mnados, nos quaes o desejo de vèl - os
tas vantagens, que elles tiraram das padecer com elles excede ao prazer da
moedas , que falsifiquei ». vingança. Por isto este moedeiro falso
( 20) E ora, lasso ! un gocciol d'acqua desafoga todo o seu odio contra Guido,
bramo. Lamenta-se do rigor da sede , contra Alexandre, e Aghinolfo (como se
como o rico avarento de que ha pouco crê) senhores da Romena, seus cumpli
falei. Com effeito , quando a sède é ces, e instigadores. Ainda aqui não ha
excessiva, faz esquecer outro qualquer ficção poetica, mas terrivel verdade !
‘tormento. Temos d'isto um sublime (28) Per Fonte Branda non darei la
exemplo no nosso Divino Mestre, que vista. Querendo dizer: « Não obstante
do alto da cruz bradou : Sitio. Tenho achar -me devorado de sêde, como te
sēde ! Eguaes exemplos temos nos san tenho dito, comtudo me seria mais agra
ctos martyres christãos. davel vel-os aqui padecer commigo, do
(21 ) Del Casentino discendon giuso que saciar-me nas crystalinas aguas de
in Arno. Todos os montes, e valles todos os referidos regatos, que serpen
amenos são cortados por toda a parte teiam pelas encostas amenas do Casen
de regatos crystallinos. Para cumulo do tino» . Fonte Branda. Em Siena, diz
tormento, Adamo os descreve com pa Fraticelli, ha uma fonte branda assás
lavras, que lhe fazem , como se costuma abundante de agua , e todos os commen
dizer, vir agua á bócca. tadores dizem que a esta alludíra Dante.
(22 ) Sempre mi stanno innanzi, e non Mas havendo outra fonte branda juncto
indarmo. A memoria dos bens gozados da Romena, é mais natural que Adamo
n'este mundo atormenta cruelmente o a ella se referisse . Qualquer das hypo
condemnado, como ao contrario a me theses é admissivel.
moria do arrependimento é deliciosa (29) Dentro c'è l' una già ... Dizem
ao bemaventurado. Isto não é phantasia uns que esta alma, que já estava dentro
poetica , é pura verdade theologica . da fossa decima era a de Guido, o mais
(23) Che 'l male, ond ' io nel volto mi velho dos irmãos, com o qual Dante se
discarno. Descarnar o rosto é fazel- o tinha combinado para reentrar em Flo
emmagrecer. É este um dos effeitos da rença ; dizem outros, que é a alma de
hydropisia, ao passo que faz crescer o Aghinolfo. Não é isto questão que valha
ventre desproporcionadamente. a pena averiguar.
(24) Tragge cagion del luogo, ov'io ( 30) Ombre, che vanno intorno ...
540 O INFERNO

Estas sombras são os falsificadores de (36 ) Ch ' avevan tre carati di mondi
pessoas, como as duas vistas antes. Ada glia. Tinham tres quilates de fezes, isto
mo Bresciano mostra crer pouco ou na é, tres vigesimas partes de uma onça;
da n'aquellas sombras furiosas, porque o que era assas em um florim , que era
os falsificadores são indignos de inspi muito menor que uma onça. Mondiglia
rar confiança. fezes, immundicies, etc., mas no uso das
(31 ) Ma che mi val, ch'ho le membra moedas ou metaes de ouro, quer dizer
legate. Os membros do hydropico tor cobre ou outro inferior metal, que se
nam - se tão pesados, que lhe não per mette na liga do ouro, para falsifical-o.
mittem mover-se. O Poeta algumas ve ( 37) ...chi son li duo tapini. É esta
zes desloca as sombras para dar varie a quarta especie de falsificadores, isto é,
dade aos tormentos, outras vezes as os falsificadores de acontecimentos ou
considera immoveis para ir de accordo de palavras .
com a Escriptura. Assim contenta não ( 38) Che fuman come man bagnata il
só a poesia , como a theologia . verno . As exhalações quentes, como o
(32) S io fossi pur di tanto ancor respiro, ou vapor do suor, produzem
leggiero, Ch'i' potessi in cent'anni an como um fumo visivel no inverno pela
dare un' oncia. A explicação é bastante condensação, que succede no inverno,
clara. Notarei sómente, que a supposi muito mais que no calor. Variante : A
ção do condemnado é aqui estabeleci evaporação da agua produzida pelo ca.
da pelo Poeta para indicar o espirito de lor da mão banhada, sendo a agua con
crueldade, e de vingança implacavel, densada no inverno pelo frio , torna -se
que domina os condemnados, e dar as em fumo aos nossos olhos mais visivel
sim uma idéa terrivel do Inferno, d'onde que no estio : razão por que tambem o
a caridade é totalmente banida . halito que nos sáe da bôcca torna -se
Esta pintura de almas ferozes faz um mais visivel no inverno : parece que ex
bellissimo contraste com a das almas halâmos fumaça.
benevolas, e bemfazejas que o Poeta ( 39) Qui li trovai, e poi volta non dier
descreve no Céo. no . Tambem esta immobilidade é uma
(33 ) ...tra questa gente sconcia. Isto verdade biblica, que n'um ou n'outro
é, que pela natureza da molestia, que canto convinha fixar, e que aprouve ao
lhes transtorna os membros, fica repel Poeta fixar n’este canto trigesimo, por
lente, deforme, e asquerosa . que é o canto dos enfermos, e quem é
( 34) Con tutto ch'ella volge undici mi enfermo torna - se incapaz de mobilida
glia. « Ainda que a fossa tenha u mi de .
lhas de circumferencia, e meia milha de (40) E non credo che dieno in sempi
largura » Com esta medida da fossa de terno. « Nem creio que se possam mo
cima, e com a outra da fossa nona, ver por toda a eternidade . » Isto é tira
canto xxix, nota 5, temos um dado se do do Ecclesiastes : Si ceciderit lignum
guro para calcular as dimensões em cir ad Austrum aut ad Aquilonem , in quo
cumferencia, e largura de todas as dez cumque loco ceciderit, ibi erit (c. x, 3).
fossas, e depois a dimensão comprehen (41 ) L ' una è la falsa, che accusò
siva do oitavo circulo . Em logar compe Giuseppo. Uma das almas que ali encon
tente ficou já desenvolvido este ponto. trou Mestre Adamo era a mulher de Pu
( 35 ) Io son per lor tra sì fatta fami tiphar, que accusou falsamente a seu
glia. Os condemnados têem odio par marido o casto José hebreu de haver
ticular, e por isso fazem particulares attentado contra a sua honestidade .
queixas ou lamentações contra os se ( 42 ) L'altro è il falso Sinon greco da
ductores, ou causadores dos seus pec Troia . Este Sinon, fingindo -se perse
cados. Este canto está cheio de doutri guido dos seus, refugiou -se em Troia
na puramente theologica. junto ao rei Priamo, a quem com arte
COMMENTARIOS AO CANTO XXX 541
5

fraudulenta logrou introduzir na cidade pedito quando batia, e falsificava moe


o grande cavallo de madeira , fabricado da !
pelos Gregos. Diz de Troia, não porque (49) Ma tu non fosti si ver testimonio .
o cavallo fosse originariamente troiano, O hydropico ao seu crime oppõe o cri
mas porque se tornou celebre por aquella me do seu adversario, dizendo : « Si eu
empreza. É ainda porém de notar, que fui falsificador de moedas, tu foste fal
não é Dante que diz ser Sinon natural sificador de palavras, e de acontecimen
de Troia, mas o Mestre Adamo. Dante tos ». Allude ao facto seguinte : Sinon,
sabia que elle não era de Troia, mas da estando nas vizinhanças de Troia, de
Grecia. Fazendo falar um falsario, qual pois da fingida partida dos Gregos, foi
Mestre Adamo, é bello ouvil-o falsificar interrogado a respeito de si, dos seus,
até a patria de um seu vizinho, e por e do cavallo, e taes mentiras disse , que
este modo desprezal-o ; porque aos enganou os Troianos acarretando -lhes
olhos de um Grego toda a terra , que a ruina.
não fosse a Grecia, era vil. (50) Ricorditi, spergiuro, del cavallo .
(43) Col pugno gli percosse l'epa Constrangido o hydropico a admittir
croia. A pança era teza, e dura, porque que o seu crime excedia em numero
a pelle, inchando, estirou- se, e se fez rija. ao de Sinon , pretende que o crime
(44 ) Quella sono come fosse un tam d'este exceda ao seu em gravidade , que
buro. Este verso é omnomatopaico. A rendo dizer- lhe : « É verdade que eu pe
pança estrondou como se fosse um quei mais vezes do que tu, mas todas as
tambor. minhas culpas sommadas , pesam menos,
(45) E mastro Adamo gli percosse il que a tua, embora seja só uma : culpa
volto. O Poeta chama mestre a Adamo , de per si gravissima pelas circumstan
porque todo o artifice, de qualquer cias, que a acompanharam (mentindo,
profissão que seja, chama-se mestre. e jurando falso) como pelas circumstan
Adamo era artifice, ou fabricador de cias, que se seguiram com escandalo
moedas. de todo o mundo, a cujas extremidades
(46) Col braccio suo , che non parve chegou a noticia da tua negra traição,
men duro. Porque falando de Sinon disse ao passo que o escandalo, que dei, fal
braço ? A razão é tirada da posição de sificando moedas, não passou do estreito
ambos. Na posição em que se achava ambito da minha patria » .
Sinon, em relação a Adamo, podia per ( 51 ) E per leccar lo specchio di Nar
cutir a pança d'este com o punho, sem cisso. Fonte na qual o nescio mancebo
estender o braço : na posição em que Narciso mirando-se, tanto se namorou
se achava Adamo, em relação a Sinon, de si mesmo, que se esqueceu de comer,
não lhe podia dar a bofetada sem es e beber, até que morreu. Como si o hy
tender o braço. Não eram estranhas a dropico dissesse : « Tambem tu tens tão
Dante as regras da esgrima (Bennassutti). ardente sêde, que não seria preciso ro
(47 ) Ho io 'l braccio a talmistier dis gar-te muito, para te induzir a beber
ciolto. Costumada basofia dos espada em alguma fonte» . Leccare significa
chins plebeus, jactando-se de terem sem lamber, chupar com a lingua, como fa
pre mais força, e destreza do que o seu zem os animaes ; e nisto revela o des
adversario . prezo, para com o grego Sinon !
( 48 ) ... Quando tu andavi Al fuoco,non (52) Ad ascoltarli er'io del tutto fis
l'avei tu così presto . Duas injurias em so. Dante, prestando tanta attenção a
uma só : lança-lhe em rosto o castigo, e esta esgrima de convicios plebeus, fazia
o crime com a mais bella antitheses do mal, não só porque perdia o tempo pre
castigo, e do crime; porque na occasião cioso, como porque ía de encontro ás
de ir ser queimado tinha o braço preso, recommendações que a este respeito
ao passo que o tinha muito livre, e ex não cessava Virgilio de lh'as fazer, tan
542 O INFERNO

to mais quanto d'aquella rixa não podia ( 54) Volsimi verso lui con tal vergo
sacar proveito algum . Mas, depois de gna. Como si dissesse : « Voltei- me para
ter prestado tanta attenção a scena tão Virgilio tão confuso pelo desprazer de
burlesca, devia descrevel-a, já porque haver praticado uma acção indigna de
não contrariava a indole da sua Comc mim , e desagradavel para elle, que ainda
dia, que não exclue o estylo comico, já d'isso me recordo. As cousas , que nos
porque não deixava de ter seu interes. causam profunda impressão , ficam por
se o descrever a natureza dos litigantes muito tempo gravadas no nosso animo.
plebeus. ( 55) E quale è quei che suo dannaggio
( 53) Che per poco è che teco non mi sogna, Che sognando desidera sognare,
risso. Virgilio reprehende , e ameaça Si che quel ch'è, come non fosse, agogna.
Dante, não por descrever a scena, mas Quem sonha, que lhe succede uma des
pela attenção, que lhe prestou. Mas graça, quasi sempre no mesmo sonho
porque Virgilio não o advertiu logo deseja, que não seja verdadeira, ou deseja
desde o principio ? 1.º Porque Dante que seja sonho aquillo, que realmente é
não teria feito esta descripção tão na sonho. « É este, diz Biagioli, um d'aquel
tural, e tão propria dos costumes de les logares, que mostram que Dante sa
pessoas vis; 2.', porque Virgilio sabia cava muitas vezes os seus thesouros
ter Dante um genio extraordinario para d'aquellas minudencias, que, por sua fu
estudar, e notar os effeitos das paixões tilidade, é difficilimo de poder discer.
humanas, por mais burlescas, que fossem nir. Com esta comparação do que se
as suas manifestações. Ora quando o passa no sonho, Dante explica o seu es
homem é assim dotado de genio natu tado actual. Cheio de vergonha, e con.
ralmente investigador , vê e observa fusão, deseja falar, e justificar- se, e não
tudo fixamente. pode falar, porque a vergonha o impe
Esta paixão dos Poetas é como a dos de ; mas contra o seu crer, aquella con
pintores , e comicos. Berghen, por exem fusão, e vergonha são exactamente o
plo, grande pintor flamengo, perdia ho que o justificam para com Virgilio ».
ras e horas nas tabernas, para observar Como quer que seja, ninguem , senão
todos os meneios dos beberrões, para Dante, notou jamais tão engenhosa
depois desenhal-os, perfeitamente; e mente estes sentimentos da natureza !
Goldoni andava sempre pelas ruas es ( 56 ) Tal mi fec'io non potendo parla
treitas, e pouco frequentadas, só para re. Querendo dizer: «Aquillo, que acon
ouvir as rixas das mulheres plebeas, tece a quem sonha uma desgraça sua,
que depois punha maravilhosamente em aconteceu-me a mim , que por confusão
scena . Isto porém, que era um bom es não podia falar. E que cousa me acon
tudo para os poetas, pintores, e comi teceu ? Aconteceu-me desejar tambem
cos flamengos, Virgilio não achava bom uma cousa que realmente eu fazia sem
para seu discipulo, que devia ser Poeta saber o que fazia. E que cousa era esta ?
grave; por isso, bem que o deixasse se Era justificar-me : eu a queria fazer, e
guir a sua indole investigadora, ob sentia não podel-a fazer com vergonha;
servadora, etc., todavia o reprehendeu mas no emtanto com a mesma vergo
severamente para que no futuro se con nha eu me justificava de modo mais sa
tivesse nos limites da gravidade. Como tisfactorio ; porque as escusas de pala
inclinação natural, dissimulou algum vras poderiam ser fingidas, mas as escut
tanto ao principio, como inclinação, po sas da vergonha são indicios certos, e
rém, que o desviava do seu fim mais sinceros » .
alto, reprovou . ( 57) Maggior difetto men vergogna
Seria um não acabar o especificar lava. Como si Virgilio dissesse : «Um de
uma a uma todas as bellezas do nosso feito maior que o teu seria perdoado por
Poeta ! uma vergonha menor que a tua; por isso
COMMENTARIOS AO CANTO XXX 543

tranquilisa-te , que mais que nunca estás modo burlesco, por que gente da sua
justificado para commigo. Um arrepen laia se tracta entre si, manifestando a sua
dimento prompto, e verdadeiro nobilita total falta de educação, e moralidade.
em certo modo a falta commettida » . Vir (58 ) E fa ragion, ch'i ' ti sia sempre
gilio chama defeito, e não culpa o acto allato. Querendo dizer : Pensa que estás
de seu discipulo. Este teria sido culpado, sempre na minha presença . É, com ef
si tivesse prestado attenção aquella dis feito, certo que a presença de uma pes
puta plebea, por mero gosto, e agrada soa respeitavel, e estimada obsta a que
vel passatempo, como fazem os curio se commettam faltas. É preceito mesmo
sos futeis ; mas seu discipulo foi pelo de Deus imposto á Abraham , quando
contrario levado pelo desejo de estudar lhe disse : Caminha sempre na minha
a natureza, querendo aprender d'aquel presença, e serás perfeito: Ambula sem
les dous villões (Adamo e Sinon ) o per coram me, et esto perfectus.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXI

Descidos os dous Poetas da ultima encosta de Malebolge seguem directamente


para o poço, ou centro do fundo de Malebolge : nota -se que não voltam á esquerda,
mas voltarão quando chegarem ao poço. Em torno d'este poço, estão os gigantes,
que Allighieri á primeira vista crê que são torres, embora surjam do poço só com
metade do corpo, isto é, do umbigo para cima. As cousas transmittidas pela histo
ria , e pela mythologia a respeito dos gigantes são tantas, tão estranhas, e tão dispa
ratadas, que não é possivel admittil-as, afora o que diz a Biblia; aqui indicaremos
sómente as que tem relação com o assumpto do Poeta, ou concernentes ao peccado
dos gigantes, e ao logar que lhes destina no Inferno. Elles foram sem duvida incon
tinentes, mas não são punidos entre os incontinentes; porque a incontinencia foi o
minimo dos seus peccados : foram violentissimos contra o proximo, contra Deus e
contra a natureza ; mas não são collocados entre os violentos ; porque commetteram
peccado mais grave que a violencia . Fraudulentos não parece que fossem ; porque ,
podendo pela força alcançar tudo dos homens , não tiveram necessidade de usar da
fraude : contra Deus não se dá fraude; não eram tão parvos que cressem possivel
enganar a Deus. Foram porém traidores e rebeldes a Deus: foram para com elle na
terra o que os anjos rebeldes foram no Céo. Segundo a mythologia, collocaram mon
tes sobre montes para subir ao Céo, e assaltar Deus na sua propria casa . A Historia
Sagrada diz que elles tentaram fabricar uma torre, que chegasse ao Céo; e por aqui
se vê como a crença pagā parodeia confusamente a crença hebraica. Verdade é que
a Sancta Escriptura attribue o pensamento da torre de Babel a todos os homens, e
não exclusivamente aos gigantes. Como porém Nemrod reinou primeiro que todos
em Babylonia, depois da dispersão das gentes, assim verosimilmente Dante o faz
auctor do soberbo pensamento de que nasceu a confusão das linguas.
Mas, em summa, qual teria sido o peccado dos gigantes ? Em que modo teriam
tentado uma rebellião contra Deus ? Assim como o soberbo Nabuchodonosor fez
levantar a si uma estatua de ouro, ordenando sob pena de morte a todos os seus sub
ditos que a adorassem ; dizendo aos tres mancebos hebreus : « Que Deus poderá
livrar-vos das minhas mãos ? » Assim tambem os gigantes levaram o seu orgulho a
pretender para si o culto que só é devido a Deus. O Antichristo, que precederá ao
fim do mundo, e que se ha de oppor a tudo o que se referir a Deus, e a Christo,
não será em ultima analyse senão um gigante . Os gigantes, portanto, excederam
em impiedade a todos os homens impios, e por esta razão deviam occupar no In
ferno de Dante um logar distincto do dos outros impios. Qual foi Cerbero para
3
546 O INFERNO

com os gulosos, qual Plutão para com os avaros, qual o Minotauro para com os
violentos, qual Geryão para com os fraudulentos: taes são os gigantes para com os
traidores. isto é, para com os mais scelerados entre os peccadores : são portanto os
guardas dos traidores no mais fundo e tenebroso circulo do Inferno, como minis
tros immediatos de Lucifer.
Dante fala -nos de proposito de tres gigantes, Nemrod, Ephialtes, Anteo, e por
incidente, de Briareo . Nemrod e Anteo são distinctos dos outros gigantes pelos
factos, e pelo castigo. Ephialtes é similhante aos outros. Nemrod pertence a Historia
Sagrada ; foi causa da confusão das linguas; sua linguagem é por este motivo con
fusa , inintelligivel para si , e para os outros. Está em frente da estrada que conduz
os peccadores ao poço, e lhes dá aviso com o som de um horrivel ibuzio. Anteo não
se achou presente na batalha de seus irmãos contra Deus, e por não ter movido as
mãos contra elle, as tem soltas com differença dos outros gigantes, que as tem li
gadas pelas costas; e faz descer ao fundo do abysmo os peccadores. Ephialtes é simi
lhante a todos os outros; por isso, querendo Dante ver o desmesurado Briareo,
Virgilio não accede ao seu desejo, dizendo - lhe que elle está ligado como Ephialtes,
e que no aspecto é algum tanto mais feroz; e assim se entende a respeito dos outros.
E este Ephialtes similhante aos outros era necessario que Dante o visse; porque, ven
do - o, via em certo modo todos os outros . E d'aqui se vê como nada seja posto ao
acaso n'este divino Poema, mas tudo tem sua razão, seu conselho, seu fim . Não
será descabido ver n'esta severa punição dos gigantes uma severa allusão aos pre
potentes da terra , e mais particularmente aos que com abuso execravel da força
flagellavam a Italia n'aquelles tempos, dispondo dos bens, e da vida dos cidadãos,
expulsando -os á viva força de seus domicilios, de sua patria, etc.
O fructo que d'este episodio dos gigantes se deve colher é o seguinte : A força
do homem está na razão , e na justiça ; muitos animaes são sem comparação mais
fortes, e mais ferozes que o homem ; mas é tambem innegavel que o homem os do
mina com a força da razão. Na fabula do lobo com o cordeiro , escripta por Phe
dro, ha um verso que vale mais que ouro : Repulsus ille veritatis viribus. O lobo foi
repellido pela força da verdade. Si a razão vence os animaes mais ferozes, vence
por superioridade de motivo os homens, e o mais poderoso dos homens é sem du
vida aquelle que faz melhor uso da razão, pautando seus actos pela verdade, e pela
justiça. Abusar pois da razão é peior que não a ter, é voltar contra si proprio a
arma mais formidavel da natureza. Os gigantes quizeram substituir a razão pela
força brutal, e o seu reinado foi breve, apesar de serem os homens de então menos
cultos, menos civilisados que os de hoje , não tendo á sua disposição tantos meios ,
e tantos instrumentos de defeza, quantos a arte, e a sciencia hoje subministram aos
fracos contra os fortes. O reinado da força é portanto momentaneo, a propria na
tureza rebella- se contra elle; porque a natureza rebella-se contra tudo que tende a
perturbar o equilibrio dos elementos, que a constituem . Mal vae á sociedade, diz
Cicero, quando recorre ao emprego da força para obter dos subditos aquillo, que
elles deveriam fazer por vontade. Qualquer superior, desde o primeiro magistrado
da nação até o chefe de familia, se deseja manter a sua auctoridade, deve-se per
suadir, que a sua força será tanto maior, quanto mais acrysolado for o respeito que
professar ás regras do justo , e do honesto.
A todo aquelle, que desdenha, ou affrouxa no fazer executar estes preceitos do
justo, e do honesto, succede o mesmo que succedeu ao gigante Nemrod, que nem
se entende a si, nem os outros o entendem ; a sociedade civil desde então torna - se
uma escola de rebellião, verdadeira imagem da torre de Babel. Oh Dante ! Oh Poeta !
Oh legislador profundo !
CANTO XXXI

Descem os dous Poetas ao nono circulo, dividido em quatro gyros , onde são castigados quatro especies de
traidores: mas n'este canto Dante refere que somente encontrou em torno do poço alguns gigantes, entre
os quaes conheceu Nemrod , Ephialtes, e Anteo, e nos braços d'este desceram ao fundo do abysmo.

A mesma lingua de Virgilio, que antes me mordèra de modo tão


pungente, que de vergonha me fez córar ambas as faces, foi-me depois
medicina de saudavel conforto . (1 )
Assim eu ouço de antigos vates, que a lança de Achilles , de seu
pae herdada , costumava ferir, e depois curar . (2)
Voltámos as costas ao fundo da misera fossa, caminhando em si
lencio (3) através da borda , que a cingia .
Ali nem era escuro como a noite, nem claro como o dia, ( 4) de
fórma que a minha vista pouco alcançava ao longe ; mas ouvi soar
um buzio ( 5) tão fortemente, que abafaria o estampido de qualquer
trovão ; de sorte que, para melhor lhe conhecer a origem , segui o som
a contrapello, levantando os olhos para o logar d’onde elle vinha.
Depois da dolorosa derrota (6) de Roncesvalles, quando Carlos Ma
gno perdeu a sancta batalha , não soou tão terrivelmente o buzio de
Orlando !
Conservei algum tempo a cabeça voltada (7) para o ponto d'onde
vibrava o som, e não me parecia ver, senão muitas torres altas ; pelo
que perguntei: «Mestre, que terra é esta ? »
E elle respondeu : « Como olhas de nuito longe por entre as tre
vas, acontece que o teu espirito concebe uma falsa imagem dos obje
ctos .

«Si lá chegares em pessoa, has de ver perfeitamente quanto a longa


distancia engana o orgão visuali apressa mais os passos , si
queres
conhecer logo a tua illusão . »
548 O INFERNO

Depois, tomando-me pela mão affectuosamente , me disse : « Agora,


antes que prosigamos, para que o facto te pareça menos estranho, é
bem que saibas , que aquelles vultos não são torres, mas gigantes».
Assim como quando se dissipa a neve os olhos distinguem as
cousas, que sob o ar condensado se occultavam , assim tambem , á
proporção que íamos rompendo o escuro, e denso véo, e que mais nos
approximavamos da borda do poço, eu via melhor que os vultos
eram gigantes, e não torres, e por isso recrescia o meu terror. (8)
Porque do mesmo modo que Monteregião (9) é coroado de torres
sobre os muros redondos , que o circumdam , os horridos gigantes , a
quem Jupiter ainda ameaça do céo quando troveja, (10) torrcavam (11)
com a metade do corpo'a borda , que circula o poço .
De algum d'elles via eu já a face, (12) os hombros, o peito, e grande
parte do ventre, e pelas costas tinha presos ambos os braços . ( 13)
Houve -se sabiamente a Natureza (14) quando cessou de produzir
monstros quejandos ; porque assim arrancou a Marte taes executo
res . ( 15)
E si ella não desiste de produzir elephantes e baleias , (16) quem
reflectir com agudeza ha de julgal-a mais justa , e discreta : ( 17) porque
quando o raciocinio se allia com a vontade perversa, (18) e com a força,
nenhuma resistencia possivel se lhe póde oppor.
A face d'aquelle gigante me parecia longa, e grossa , como a pinha
de bronze de S. Pedro em Roma, (19) e os outros membros do corpo
estavam em egual proporção .
D'est’arte a borda do poço, que o encobria do embigo para
baixo, o apresentava do embigo para cima tão alto, que tres Frisões,
postos um sobre o outro, não lhe chegariam á coma : ( 20) porque eu via
que elle tinha mais de trinta palmos ( 21 ) desde o embigo até o logar ,
onde o homem afivella o manto .
Rafel mai amèch zabi almi, (22) começou a gritar a fera bôcca , da
qual não podiam saír mais doces harmonias.
E o meu Guia disse para elle : « Alma insensata , (23) continúa a en
treter -te com o teu buzio, c com elle desabafa , (21) quando a ira ou
outra paixão te agita .
« Tactèa o collo , ó alma nescia , e n'elle acharás a soga , ( 25) que

The tem preso o teu instrumento, (26) e vê que te agaloa o grande


peito . » (27)
Depois me disse : « Elle proprio se está denunciando : (28) este é
Nemrod, (29) cuja temeraria empreza foi causa de não se falar no mundo
uma só lingua.
« Deixemol- o ficar, (30) e não percamos palavra ; porque toda a lin
guagem é tão estranha para elle, quanto para os outros é a sua . » (311
CANTO XXXI 549

Seguimos pois mais avanta, voltando á esquerda ; (32) e, na distan


cia de um tiro de besta , encontramos outro gigante mais feroz, c
maior. (33)
Não sei dizer qual fosse o artifice, que o subjugou ; mas sei bem ,
que elle tinha atado por diante o braço esquerdo, e pelas costas o
direito ; sendo ambos ligados a uma cadeia , que dava cinco voltas
em torno da parte do corpo, que estava fóra d'agua desde o collo
até o embigo . ( 34)
« Este soberbo, me disse Virgilio, quiz experimentar suas forças
contra o summo Jupiter, e eis o premio, que tirou da sua temeridade ,
e petulancia !
« Chama -se Ephialtes, e fez grandes provas do seu valor, quando
todos os gigantes colligados amedrontaram os deuses : os braços que
então moveu , não os moverá jamais, .porque os terá eternamente liga
dos.» (35 )
E eu lhe disse : « Mestre, si fosse possivel , eu desejaria ver com
os meus olhos o desmesurado Briareo, (36) de quem tu falas na tua
Eneida » .
Respondeu : « Perto d'aqui verás Anteo, (37) que não é confuso como
Nemrod, mas se exprime claramente, e tem as mãos soltas, (38) e não
algemadas como Ephialtes : por isso nos fará descer ao fundo do
abysmo de toda a maldade .
«Briareo, que desejas ver, está muito mais adiante, e está preso
como Ephialtes ; é grosso, e alto como este , ( 39) com a differença de
ser mais feroz no aspecto . »
Não houve jamais terremoto tão impetuoso, que mais fortemente
abalasse uma torre, ( 40) do que o subito arremesso de Ephialtes ao
ouvir as palavras de Virgilio ! (41)
Confesso que mais que nunca temi a morte, e de simples terror
teria morrido, si não tivesse anteriormente visto o gigante preso pelas
cinco voltas (42) da cadeia !
Continuando o nosso caminho, chegámos á Anteo, cujo corpo, não
contando a cabeça, saía fóra do poço bem trinta palmos .
«Ó tu, lhe bradou Virgilio, que, no afortunado valle, (43)que fez
Scipiáo herdeiro de gloria (44) quando Annibal com os seus bateram
em fuga, levaste outr'ora mil leões de presa ; (45) e que si houvesses
estado presente á batalha (46) de teus irmãos , parece que ha quem
creia , que elles teriam levado de vencida os gigantes (47) filhos da
terra : (48) transporta-nos agora (e não te apostemes), lá em baixo , onde
o frio condensa , e gela o rio Cocito . ( 49)
«Não nos obrigues a ir pedir este favor a Ticio, nem a Tiphêo : (50
este , que me acompanha , pode dar aquillo, que no Inferno se de
550 O INFERNO

seja : ( 51 ) inclina-te, pois , para levar-nos, e não torças o nariz : elle


(Dante) , ainda te póde dar fama lá no mundo ; pois ainda é vivo, e
espera viver longa vida, si a graça o não chamar antes de tempo .» (32)
Com tal promessa Anteo alliciado , estendeu logo os braços (cujo
grande aperto Hercules experimentára ) , (53) e tomou o meu Guia .
Quando Virgilio se sentiu seguro, disse-me : « Chega-te a mim de
modo, que eu te possa tomar» . Depois ageitou-se por forma, que
ficámos constituindo um só corpo nos braços do gigante .
Qual a torre Garisanda parece caír a quem a olha de baixo do
lado pendente, (54) quando uma nuvem lhe passa por cima , em direc
ção contraria ao seu declivio, tal me pareceu caír o gigante, (55) quando
o vi inclinar-se, para tomar -nos em seus braços, e momento foi aquelle
de tanto terror, (56) que eu teria preferido descer por outra qualquer
estrada . ( 57 )
(58)
Mas nos poz levemente no fundo do abysmo, que devora Lu
cifer e Judas ; e, longe de se demorar curvado , ergueu-se têso qual
mastro de navio . (59)
COMMENTARIOS AO CANTO XXXI

( 1 ) Una medesma lingua pria mi Indica este dizer, que o sol se tinha
morse, Si che mi tinse l'una e l'altra posto pouco antes; era o crepusculo da
guancia, E poi la medicina mi riporse. noite .
Como si dissesse : « Virgilio, que antes ( 5) Ma io senti' sonare un alto corno,
me reprehendeu com tal aspereza, que Tanto ch' avrebbe ogni tuon fatto fioco.
me cobriu as faces de vergonha, foi o Querendo o Poeta dizer : « Bem que eu
mesmo que depois reparou tudo isso, nada podesse ver através d'aquelle cre
confortando -me .» pusculo , pude todavia ouvir o alto som
(2 ) Così odo io, che soleva la lancia de um buzio , som tão forte, que torna
D'Achille e del suo padre esser cagio ria rouco o estrondo de qualquer tro
ne Prima di trista e poi di buona man vão » . O som do buzio era alto, e forte,
cia. Conta-se que a lança de Achilles, porque o instrumento era soprado por
que elle herdou de seu pae Pelêo, tinha Nemrod, o qual com os outros gigantes
a virtude de curar as feridas, que tinha estavam enfileirados pela borda, por
antes aberto. Trista mancia, é a ferida, onde caminhavam os dous Poetas, cuja
buona mancia é a cura da ferida. Trista chegada era annunciada por aquelle vo
e buona mancia litteralmente quer dizer zear da buzina estrepitosa.
bom ou máo presente, offerta, etc., mas (6) Dopo la dolorosa rotta, quando.
allegoricamente significa ferida, e reme Allude á dolorosa derrota de Roncesval
dio, por isso que n'este mesmo sentido les, onde, por traição de Gano, foram
Achilles, falando de Telepho, ferido an mortos trinta mil christãos, quando
tes pela sua lança, e depois curado, diz : Carlos Magno perdeu a sancta empreza
opusque meæ bis sensit Telephus hastæ de expulsar de Hespanha os Arabes.
(Ovidio, Met., XII, 112 ) . Hygino escreve, N'essa occasião, diz Dante, não soou
que Telepho curou a ferida, mediante tão terrivelmente o buzio do palladino
um emplasto , feito com a ferrugem da Orlando . Narra Purpino que o som

lança do mesmo Achilles : quam (hastam) d'aquelle buzio se ouvíra a 8 milhas de


cum rasissant remidiatus est (Fab., distancia .
110) . ( 7) volta la testa. Assim se lê na
( 3 ) Attraversando senza alcun sermo edição Nidobeatina, na de Lombardi,
ne. Um silencio momentaneo é um ef na de Fraticelli, etc. Algumas outras
feito natural produzido pelas reprehen porém trazem : alta testa. Biagioli quer
sões, não só em quem as faz, como em que esta ultima seja a verdadeira lição ;
quem as recebe . mas Pogiali pensa que a primeira va
(4) Quivi era men che notte e men riante (volta la testa ) é preferivel á se
che giorno. Não era nem noite, nem dia . gunda, evitando -se assim a repetição do
552 O INFERNO

cpitheto alto, que se encontra no verso terrados em roda d'elle, como estacas,
seguinte (alte torri). Ainda ha outra ra até o umbigo, formavam uma perspe
zão de preferencia: o volta la testa ex ctiva similhante á das torres, colloca
prime mais naturalmente a posição do das de espaço a espaço na summidade
Poeta , o qual diz no verso anterior que, das muralhas rotundas, que cercam
ouvindo o som do buzio, levantou todos Montereggião.
os seus olhos para o logar donde elle Torquato Tasso imitou este logar nos
vinha: Dirizzò gli occhi miei tutti ad un seguintes versos:
loco . É mais natural portanto, que elle
conservasse a cabeça voltada para o dito Quindi ira ' merli il minaccioso Argante
logar, a fim de melhor comprehender a Torreggia, e discoperto é di lontano .
origem do som. A dizer a verdade, as
duas variantes entre si não repugnam É inconcebivel, diz Biagioli, que haja
essencialmente, e basta de subtilezas. quem tenha criticado Tasso pelo uso
( 8) Ciò che cela 'l vapor che l'aere d'este verbo torrear, aliás tão expressi
stipa. Faz -nos o Poeta comprehender vo !
que a neve não é outra cousa , senão o ( 12 ) Ed io scorgeva già d ' alcun la
vapor aquoso condensado pelo ar frio. faccia . Porque via Dante a face de al
Não se podia melhor, nem mais philo gum, e não de todos ? Porque, estando
sophicamente definir a neve ! os gigantes em torno do poço rotundo,
( 9) Montereggion. Pequeno castello não podia ver a face, senão de algum,
perto de Siena . Conserva ainda, bem que estivesse em frente, ou quasi em
que um pouco derrocados, os seus mu frente.
ros quasi circulares, e as suas torres ( 13 ) E per le coste giù ambo le brac
collocadas a umas cincoenta braças cia . Tinham os braços atados pelas cos
umas das outras ( Fraticelli ). tas, porque os tinham atados na vida,
( 10 ) Giove dal cielo ancora, quando como se dirá logo (Fraticelli) .
tuona . Segundo a fabula, o trovão, e os ( 14) Natura certo , quando lasciò l'ar
raios são os instrumentos bellicos de te. Antes do diluvio uma grande parte
Jupiter. Com elles aterrou outr'ora osigi dos homens eram gigantes , que de
gantes, que ousaram mover-lhe guerra, pois foram submergidos nos tempos de
e para retel- os sob a pressão de conti Noé. A elles allude o propheta Baruch
nuo terror, troveja de quando em ( III, 26 ) : Ibi fuerunt gigantes nominati
quando do Céo, advertindo-os, que de illi, qui ab initio fuerunt,statura magna,
pois do trovão, virão os rayos. scientes bellum . Depois do diluvio repro
( 1 ) Torreggiavan di mezza la per duziram -se, mas não n'aquellas grandes
sona . Torrean poeticamente é tomado proporções de outrora. Mais que em
no sentido de ostentar- se alto , levanta outra região avultaram na Cananéa.
do á estatura de torre : Moyses, tendo mandado reconhecer a
« Torrêa Adamastor sobre altos montes terra promettida (a Cananéa ) os seus
D'ondas, que vão as nuvens rosciando , enviados referiram -lhe, que tinham vis
(Cambes) .
to n'aquelle paiz os filhos de Enac da
estirpe dos gigantes, que eram homens
Outro classico escreve : « Quiz a natu similhantes a monstros , diante dos
reza vallar, e torrear aquelles campos quaes elles não eram senão gafanho
com a serrania altissima chamada dos tos. A final o ultimo gigante de que
Orgãos ». Está entendido que se refere á ha noticia foi Golias no tempo de David,
nossa formosa cordilheira brazilica . Com que o fez morder o pó n'um combate
egual conveniencia, e mestria pois diz singular ou duelo.
o nosso Poeta, que os gigantes torrea ( 15 ) Per tor cotali esecutori a Marte.
vam ( torreggiavan ) o poço; porque, en Allude ás palavras de Baruch quando
COMMENTARIOS AO CANTO XXXI 553

diz que os gigantes eram peritos na Poeta , que um posto sobre o outro não
arte da guerra : Scientes bellum . lograria chegar á cabeça dos gigantes
( 16) E s'ella d'elefanti e di balene. ( Butii ) . Bennassutti porém diz, que os
A natureza, depois do diluvio universal, Frisões eram homens da Frisia, antigo
fez uma distincção para os homens, e reino da alta Germania .
para os brutos. Continuou a crear os bru ( 21 ) Perocch' io ne vedea trenta gran
tos todos com as dimensões primitivas, e palmi. Alem da medida tomada dos
os homens geralmente com dimensões tres Frisões, Dante nos dá outra , que
assas inferiores. Não obstante isto, os explica melhor a primeira; pois que , da
gigantes renovaram - se na Palestina, de parte inferior do pescoço, onde se afi
pois de terem sido dispersos, ou des vela o manto , até o umbigo dos gigan
truidos no tempo da conquista da Terra tes, elle calcula a extensão, não só de
Sancta pelo povo hebreu. Vê-se pois trinta palmos, mas de trinta palmos gran
que a natureza continuou a crear ele des, isto é, palmos de uma mão assás
phantes, e baleias com as mesmas pro grande !
porções antigas, mas não assim os gi ( 22 ) Rafèl mai amèch zabi almi. Quan
gantes, como diz o nosso Poeta . do me occupei da explicação do ver
( 17) Più giusta e più discreta la ne so Pape Satan (canto vni) , segundo a
tiene. Este proceder da natureza, ampla interpretação do celebre Veronez Giu
com os brutos, e restricta com o homem , seppe Venturi, alludi a outra interpre
em vez de ser attribuido a defeito, deve tação dada por elle as palavras do gi
pelo contrario ser attribuido á justiça, e gante Nemrod no presente canto; e por
á discrição da mesma natureza. tanto vem a pello apresental- a agora de
( 18) Chè dove l'argomento della preferencia a todas as outras, dadas
mente. Aqui dá o Poeta a razão da jus pela torrente dos commentadores. Ven
tiça , e discrição da natureza . Os bru turi admitte a lição commum, com o
tos têem a vontade perversa, e grande accrescentamento da aspiração syriaca
poder ; mas falta - lhes a luz do entendi á amèch, e da arabe á àlmi, sobre a se
mento, porque lhes falta a razão, e por guinte pontuação :
isso não fazem aquelle mal, que pode . Raphèl Mai Hamèch ? ... Zabi...
riam fazer. Si houvesse ainda gigantes, Halmi, e traduz : Raphel (por Deus ! ou
estes não só teriam a vontade perversa ou poder de Deus ! ) Mai (porque eu )
dos animaes, como teriam toda a mali Hamèch (n'este profundo, ou poço ?)
cia do engenho, com os quaes dotes Zabi (torna para traz) Halmi (esconde
reunidos deveriam ser tanto mais noci te) . Pretende pois Venturi que a lingua
vos, e fataes á humanidade ; porque, em gem não seja uma só, mas hebraica (á
summa, teriam a força material, e a in qual pertence a primeira palavra) , e os
tellectual. seus dialectos nascidos na confusão de
( 19) Come la pin.1 di San Pietro a Babel. Ora, usando - se cinco palavras,
Roma. Uma pinha de bronze, que antes cada uma de differente linguagem, d'isso
estava sobre a cupula do sepulchro de deriva uma linguagem mixta inintelligi
Adriano (hoje fortaleza de Sancto An vel ( a nullo noto ), como diz Dante, e
gelo) achava-se, ao tempo de Dante, como seria inintelligivel o verso seguin
sobre a praça da antiga basilica de te, que é quasi traducção d'aquelle do
S. Pedro no Vaticano, e agora está no divino Poeta, e tirado do hespanhol,
jardim, que conduz ao palacete de Inno latino, tedesco, francez, italiano :
cencio VIII ( Fraticelli ) .
(20) Tre Frison s ' averian dato mal Pardiez ! cur ego hier ? va - t -en , t'ascondi.
vanto. Frisões, povos da Asia na região
chamada Phrygia : são homens mais al O ser pois aquelle verso composto de
tos, que todos os outros, e por isso diz o palavras tiradas dos dialectos babelicos,
554 O INFERNO

parece que o mesmo Dantę o diz mais louca empreza; e por isso diz -lhe : en .
abaixo : contrarás a correia, que é symbolo do
...egli stesso s ' accusa ; chicote com que se castigam as bestas
Questi é Nembrotto, per lo cui mal coto
indomitas (Butti).
Pur un linguaggio nel mondo non s ' usa . (26) Che 'l tien legato, o anima con .
fusa ! Como si lhe dissesse : « Que bello
Em caracter hebraico, que pode ser troador de buzio, que, tendo o buzio
vir tambem aos outros orientaes, se es preso á corda do pescoço, o não acha !
creveria o sobredito verso , segundo o Não vês sequer, aquillo que tens sob o
citado Venturi, assim . nariz ? Pois bem , te direi onde está : o
Mas um intelligente hebraista, lendo buzio te cinge o peito : apalpa - o, e o
com Venturi a palavra zàbi com 7, ob encontrarás » .
serva que se deverá usar no texto he (27) E vedi lui che 'l gran petto ti
braico, em vez da letra samech D , a
doga. O verbo dogarè derivado de doga,
tradiz, etc. que é uma d'aquellas curvas, listas ou
( 23 ) ... Anima sciocca. Chama- lhe alma tiras de madeira, que formam as costas
estupida sciocca ), derivando o epitheto do tonel ; por isso dogarare significa
da culpa commettida por Nemrod, que cingir, ligar tiras ou listas (Fraticelli).
foi uma immensa estupidez emprehen E vedi lui, isto é, o buzio, que cobre,
der o temerario commettimento de le e veste o teu grande peito : che 'l gran
vantar a torre babelica, que foi um de petto ti doga. Diz isto para significar que
safio lançado a Deus. É alem d'isto a buzina era grande , porque grandissima
alma estupida, porque não sabe nem foi a soberba de Nemrod ; assim como
falar, nem entender o que fala . figura que a buzina lhe pende do peito,
(24) Tienti col corno, e con quel ti dis porque a sua grandissima soberba lhe
foga. Como si lhe dissesse : « Em vez de saiu do coração, que está na arca do
gaguejares palavras, que não sabes ar peito ( Butti) .
ticular, é melhor, que te atenhas a soar ( 28) Egli stesso s'accusa . « Elle pro
o teu buzio, em desafogo da tua ira, ou prio se denuncia por sua confusa lingua.
outra paixão, que te rôa por dentro » . gem ” .
Vê - se por esta resposta de Virgilio a (29 ) Questi è Nembottro, per lo cui
Nemrod, que foi este o gigante, que mal coto . Perverso pensamento. Do la
soou o buzio, cujo sonido forte ouviu tim cogitatio fez-se coto em italiano, e
Dante, quando disse : Ma io senti' so cut provençal. Póde tambem ser synco
nare un alto corno , e tambem se conhe pe de cotato, que quer dizer cogitação.
ce agora que Nemrod soou então o bu O perverso pensamento, ou cogitação
zio por erro, tomando os dous Poetas má , arrastou Nemrod a levantar uma
por duas almas precitas cuja chegada torre que chegasse ao Céo, para evitar
annunciava aos outros condemnados. o ser submergido por um novo diluvio,
É bello este pensamento de fazel- o er menosprezando assim a palavra de Deus,
rar o alvo, tomando a nuvem por Juno ! que havia promettido não renovar egual
E Virgilio soube aproveitar- se d'este cataclismo. Et ponam arcum meum in
erro do monstro, para chasquear a sua nubibus in signum fæderis. Deus, porém ,
estupidez. para castigar -lhe a soberba, cortou-lhe
( 25) Cercati al collo e troverai la soga. a obra em meio, confundindo a lingua
Virgilio diz-lhe em tom de exprobração gem dos operarios, os quaes, não se
que elle se entretenha com o buzio, que entendendo mutuamente, dispersaram
tem ao pescoço, pois que a tinha presa se .

ao pescoço, como symbolo do peccado, ( 30) Lasciamlo stare, e non parliamo


que lhe pendia do collo, isto é, a sober a vòto. Virgilio procurava um gigante,
ba, que o subjugou quando tentou a que o tomasse nos braços com Dante,
COMMENTARIOS AO CANTO XXXI 555
1

para depol-os no fundo do primeiro escriptura, que diz que até então não
gyro do poço. Nemrod teria sido o havia na terra, senão uma linguagem :
mais apto para executar esse desejo de
Virgilio, si houvesse comprehendido a
sua proposta; mas desde que a não po
E
Erat terra labii unius.
Bennassutti, a quem sigo completa
mente na interpretação d'este passo,
dia entender, era inutil continuar a fa diz : « Bianchi, no seu commento , assegu
lar- lhe . ra que o egregio polyglotta Giuseppe
(31 ) Chè così è a lui ciascun linguag Venturi, de Verona , considerava as pa
gio, Come il suo ad altrui, ch ' a nullo lavras de Nemrod syriacas, e como
è noto. Como si dissesse : « Nem a nossa taes as explicava. O sabio Venturi po
linguagem , nem outra qualquer do mun rém não podia dizer similhante cousa ,
do, inclusive a hebraica, a arabe, a sy e o sr. Conego Bianchi foi sem duvida
riaca , a chaldaica, etc., lhe é conhecida, induzido em erro por algum Veronez ,
nem entendida por elle ; assim como a que lhe impingiu, por interpretação de
d'elle não é por ninguem entendida ». Venturi, aquillo que não era. Giuseppe
Logo Nemrod não tinha nenhuma Venturi foi meu mestre de hebraico, e
linguagem ; tinha somente uma algara eu mesmo o interpellei sobre o verso
via de vozes, que davam uma confusa, Pape Satan, etc., e sobre este Rafèl mai,
e remotissima imagem da linguagem etc. Sobre o primeiro respondeu -me
hebraica, que n'elle morreu, e dos no satisfactoriamente, explicando aquellas
vos dialectos, que d'ella derivam . Si os palavras de Pluto como habraicas ; e so
commentadores tivessem prestado a de bre o segundo nada disse, repetindo -me
vida attenção ao texto dantesco, por apenas aquillo, que já tinha escripto a
certo não teriam tido a presumpção de outro discipulo seu, isto é, que na sua
explicar o sentido obstuso, ou inintel opinião faz falar Nemrod com palavras
ligivel das palavras de Nemrod, quando apropriadas aquelle orgulhoso fundador
aliás nem Virgilio, nem Dante as en de Babel : « A mio parere il Poeta (Dante)
tenderam ! Si taes palavras fossem he fa parlare Nembrotto com parole conve
braicas, que é a unica supposição, que nienti a quel orgoglioso fondatore di
se possa fazer, Virgilio as teria entendi Babelle » .
do, como entendeu logo as palavrasde Á vista de tão explicita declaração ,
Pluto : Pape Satan, Pape Satan aleppe: reputo apocrypha uma certa interpreta
palavras que o sabio gentil, que tudo ção, que alguns commentadores apresen
soube (E quel savio gentil che tutto sep. tam, ou improvisam como obra do men
pe ), explicou immediatamente a Dante, cionado polyglotta Giusepe Venturi.
como teria entendido, si Plutão houvesse Mas porque havia Dante de pôr na
falado alguma das linguas orientaes. bocca de Nemrod palavras de nenhuma
Eu disse ha pouco, que é a unica significação ? Porque fazia falar um ho
supposição que se possa fazer, porque mem sobre cuja lingua caiu a maldi
em bôcca de Nemrod não se podia pôr ção de Deus, um homem tal, que fa
nenhuma das linguagens, que surgiram lava, sem que ninguem o entendesse,
depois d'elle : por conseguinte, não só como elle não entendia aquillo que lhe
aquelles commentadores, que conside diziam seus operarios na fabricação da
ram syriacas as palavras de Nemrod, torre de Babel . Dante não era nenhum
como aquelles, que as consideram ara nescio, que pozesse palavras claras na
bicas ou de outra qualquer lingua, com bocca de um homem, que foi conde
mettem um grande anachronismo, e mnado por não se fazer entender pelos
uma imperdoavel impropriedade, intei seus proprios subditos. Não ; Dante sa
ramente alheia da exactidão e proprie bia bem a sua arte. Era necessario que
dade, que caracterisam Dante, o qual Nemrod conservasse O seu caracter

tinha ante os olhos o texto da sagrada proprio , e não podia conserval-o, senão
556 O INFERNO

com a confusão , e inintelligibilidade da gilio na descida ao centro da terra (ao


sua linguagem , si de linguagem podes Inferno ) siga sempre a direcção á es.
se ter o nome. Assim entendeu Virgilio, querda , como temos visto n'alguns
e o entendeu perfeitamente. cantos anteriores ( x, xiv, xvii ), e no
Aqui porém surge uma duvida : si presente. Porque o Poeta toma sempre
Virgilio disse a Dante, que era inutil esta direcção á esquerda ? Porque a es
perder tempo em falar com Nemrod, querda é o lado peior, e por isto é o
como se explica que fosse elle o pri mais adaptado ao Inferno, e no dia do
meiro em falar -lhe, quando lhe disse : juizo universal os que estiverem do lado
« Alma insensata, toca antes a tua buzina, esquerdo do Supremo Juiz serão os
do que gritares assim, etc. Tienti col cor destinados á condemnação eterna.
no, e con quel ti disfoga !» Respondo : ( 33 ) A cinger lui, qual che fosse il
Virgilio não falou a Nemrod, porque não maestro . « Quem tenha tido tanta força
se fala a quem não entende; mas só para encadeal-o, não sei dizer ». Assim
mente o olhou, como olhâmos os cães, fala Dante para dar uma verdadeira
ou outros animaes, quando lhes gritâ idéa do corpanzil, e da robustez, que
mos, para os espantar, ou intimidar : mostrava o gigante.
olhâmos para elles, mas não falâmos a ( 34) ... ha cotal merto . E por causa
elles. Assim fez Virgilio : falou para da sua audacia teve o castigo de ser es
Nemrod, mas não a Nemrod, ou antes treitamente encadeado, como se acha.
gritou-lhe, mais por escarneo, do que ( 35 ) Fialte ha nome; e fece le gran
por outra qualquer cousa . prove. Este Ephialtes foi um dos gigantes,
Ainda ha outra variante : si conside filhos de Titan , que moveram guerra
rarmos bem aquellas palavras de Virgi contra Jupiter, e foram por elle fulmina
lio, reconheceremos que ellas são taes, dos.
que se prestam muito a fazer suppor, ( 36 ) smisurato Briareo . Este gi
que fossem acompanhadas de gestos, que gante, no dizer de Homero, era pelos
podessem tornar intelligivel o sentido homens chamado Egeon , e pelos Deuses
d'ellas ao gigante . Em summa, Virgilio Briareo. Dante o deseja ver, talvez,
podia proceder com Nemrod como nós pela estupenda descripção, que d'elle
procedemos com os mudos, aos quaes faz Virgilio nos seguintes versos :
fazemos entender as cousas por acenos,
De cem braços e mãos Egeon , narram ,
e gestos, etc. Mas ainda se póde, n'esta
Fogo expirava de cincoenta fauces,
ultima hypothese, objectar dizendo : si Com cincoenta broqueis tinindo, espadas
Virgilio podia fazer - se entender por Cincoenta a menear contra Tonante . »
meio de gestos, porque não usou d'elles (Eneid,, liv. x , Odorico Mendes ).
para persuadir Nemrod a descer ao
fundo do poço com elle, e Dante nas ( 37) ... Tu vedrai Anteo. Gigante da Li
costas, ou nos braços ? Respondo, que bya, filho de Neptuno, e da Terra, foi
nem tudo se pode fazer entender por soffocado por Hercules. Virgilio faz- se
gestos. Uma cousa é entender uma conhecedor practico do logar, a fim de
cousa , e outra é fazer entender muitas. diminuir os temores de Dante, e para
Para persuadir o gigante a levar os premunil- o contra os temores futuros.
dous Poetas ao fundo, era necessario Aquillo, que elle antes lhe havia affir.
adduzir- lhe taes razões abstractas, que mado, isto é , de ter descido até o fundo
não podiam ser comprehendidas por do Inferno, onde é o circulo de Judas,
toda a gente, maxime por uma alma es agora lh'o confirma com todas as parti
tupida, e confusa, a quem toda a lin cularidades.
guagem era estranha , inintelligivel, etc. (38) ...che parla , ed è disciolto. Como
( 32) Volti a sinistra ; ed al trar d'un si dissesse : « Este possue as qualidades
balestro. É digno de notar-se, que Vir necessarias para conduzir - nos ao fundo,
1
COMMENTARIOS AO CANTO XXXI 557

pois que fala, e tem os braços soltos, desbaratou Eneas a Turno, e os seus
bem differente do insensato Nemrod, soldados.
que não nos entende, nem nós a elle , e (4+) Che fece Scipion di gloria reda
de Ephialtes, e Briareo, que estão com (reda por rede). Diz o Poeta que
os braços presos . aquelle valle fez Scipião herdeiro de
( 39 ) e fatto come questo. A saber : é gloria, para indicar, que seus antepas
alto, e grosso como Ephialtes, e não tem sados foram tambem gloriosos nas ar
os cem braços, nem as cincoenta cabe mas, e que deixaram a Scipião o direito
ças, que lhe attribue a fabula . de adquirir sempre a mesma, ou maior
( 40) Che scotesse una torre così forte. gloria . A gloria d'esta victoria valeu -lhe
Insiste na idéa da torre com referencia a antonomasia de Africano, que o tor
aos gigantes, que torreavam a borda do nou mais celebre, que os outros Sci
poço. É uma bella, e magnifica simi piões.
Thança , da qual se serve para encarecer (45 ) Recasti già mille lion per preda.
bem o arremesso subito do gigante . Mille lion, muitissimos leões, numero
( 41 ) Come Fialtes a scuotersi fu determinado pelo indeterminado . Que
presto. Qual a razão d'esse arremesso ou Anteo foi um bravo caçador de leões, o
sacudimento ? Foi porque ouviu que diz Lucano : Ferunt epulas habuisse leo
Virgilio o fazia inferior a Briareo, e en nes .

cadeado como Briareo. Pungiu - o egual (46) Eche se fossi stato all'alta
mente o ouvir, que era mais feroz no guerra. Isto é, a guerra, que os gigan
rosto, que Briareo, etc. tes teus irmãos fizeram na Thessalia aos
(42 ) cinqu ’ alle. Estas cinco medi deuses, sobrepondo monte a monte para
das equivalem aos trinta grandes pal chegarem ao Céo, e prender os ditos
mos de Ephialtes, desde o pescoço até o deuses. Anteo , porque não assistiu a
umbigo, como foi dito atraz. Isto con essa guerra, não está encadeado no
firma o que Dante disse ha pouco, isto Inferno, como Ephialtes, e Briareo.
é, que Anteo era feito como Ephialtes, ( e (47) De ' tuoi fratelli, ancor par ch'e'
fatto come questo ); pois era tão alto, si creda. Diz por ironia, que o mundo
tão grosso como elle ; por onde se co ainda parece crer, que os gigantes tc
nhece que Nemrod é dos gigantes de riam sido vencedores, si Anteo o hou
menor estatura. Alle é o nome de uma vesse ajudado, em vez de andar a ma
medida ingleza (alla ), que corresponde tar leões, etc.
a dous braços florentinos. Os francezes (48) ... i figli della terra . A etymolo.
dam mesma denominação Aule ou gia de gigante soa filho da terra . Note
aune ; assim como os allemães chamam se que todos estes louvores, e lisonjas
elle. são artificios, que o Poeta emprega ,
(43 ) O tu , che nella fortunata valle, para persuadir Anteo a fazer -lhe a
etc. Este valle é perto de Zama, em vontade no que lhe vae pedir. Ora, bem
Africa, onde, segundo Lucano, tinha se vê, que estas, ou outras razões de
Anteo 0 seu reino . Fortunata é um similhante genero, não podia Virgilio
adjectivo, que se applica a todas as dizer a Nemrod, nem mesmo por ges
cousas, em que a fortuna intervem . Logo tos, que por mais frisantes, que podes
é applicabilissimo aos logares, onde se sem ser, não seriam jamais comprehen
dão batalhas. Aqui fortunata toma-se didos por aquelle estupido ( anima scioc
no sentido de feliz, porque aquelle bello ca ); o que não acontece com Anteo, quc
valle teve a feliz sorte de ver Scipião tinha os braços livres, e a lingua solta .
desbaratar Annibal, e os seus, pondo (49) Mettine giuso ( e non ten venga
assim termo á segunda guerra punica. schifo) Dove Cocito lafreddura serra. É
N’este mesmo sentido expliquei o for sabido que a parte mais fria da terra
tunata terra de Apuglia, porque n'ella são os fundos dos poços, e é por isso
358 O INFERNO

que a este baixo logar se deu um tal pos estão no mundo possuidos por de
nome. Este Cocyto é o mesmo rio Phla monios, e suas almas já aqui padecen
getonte, que primeiro ferve, e depois do o eterno tormento; não, elle (Dante)
gela com o frio que lá em baixo reina . vive, e vivirá ainda largo tempo, si
( 50) Non ci far ire a Tizio, nè a Tifo . Deus o não chamar prematuramente ao
Ticio, e Typheu, dous dos gigantes, que Paraiso. Com estas palavras, não só
moveram guerra a Jupiter, e que Virgi Virgilio acabou de convencer o gigante
lio suppõe existirem em torno do mes de que Dante era vivo, como que era
mo poço infernal. uma alma boa, e predestinada.
( 51 ) Questi può dar di quel che qui si ( 53 ) ... e quegli in fretta Le man
brama. Torelli, interpretando este verso, distese, e prese il Duca mio, Ond ' Er
diz que Dante allude aqui a alguma cole sentì già stretta. « E Anteo, engoda
noticia do estado dos viventes, visto do pela lisonjeira promessa de que se
como, segundo elle, os condemnados lhe faria reviver a fama no mundo, es
não conhecem o presente. Que Dante tendeu depressa os braços ( cuja forte
pois não allude aqui á fama, basta at compressão experimentára outr'ora Her
tender, que no terceiro verso seguinte, cules ) e tomou o meu Guia » . Bem conhe
diz : " Este ainda te póde restituir a fama cida é a fabula da lucta, que houve
lá no mundo: Ancor ti può nel mondo outr'ora entre Anteo, e Hercules, aca
render fama. Ora não seria possivel que bando este por matal- o, não sem fadiga.
Dante repetisse tão á queima roupa o É visivel aqui a intenção do Poeta. O
mesmo pensamento », « Este, que está seu fim é fazer avultar aos olhos do lei
commigo póde dar o que aqui se dese tor as grandes, e fortes mãos de Anteo.
ja. Questi può dar di quel che qui si ( 54) Qual pare a riguardar la Cari
brama. » Anteo não entendeu por estas senda Sotto il chinato, quando un nuvol
palavras, que Dante ainda fosse vivo, e vada Sovr ' essa si ch'ella in contrario
que por conseguinte podesse voltar ao penda. Carisenda, ou Garisenda é uma
mundo, e com effeito ellas o não decla torre inclinada de Bolonha, que tira o
ravam explicitamente. nome do architecto que a fez. É incli
E tanto assim é, que Virgilio, para nada, ou porque o terreno tenha abati
certifical- o d'esta circumstancia, The do de um lado, ou mais provavelmente
allirma com o adverbio de tempo ainda porque foi de proposito assim feita.
( ancor ), que Dante se acha ainda em Mais de uma torre da edade media é
estado de poder prestar-lhe serviços no fabricada n'este estylo ; haja vista, por
mundo, restabelecendo a sua memoria . exemplo, a de Pisa, a mais notavel de
Não obstante esta affirmação, Anteo he todas. Para alguem conhecer, e avaliar
sitava ( e não sem fundamento ) em crer, bem a propriedade, e belleza da compa
não tanto que Dante fosse vivo , mas ração, que o Poeta faz entre a curvatu
que, ainda sendo vivo, podesse voltar ao ra de Carisenda, e a curvatura de An
mundo; porquanto Anteo sabia que ali teo, é preciso verificar em pessoa a
no fundo do poço infernal estavam illusão optica de que elle se serve n'este
condemnados alguns ainda vivos ( como estupendo parallelo ! Por mais de uma
Branca Doria, e fr. Alberico), cujos cor vez, eu com outros estrangeiros fize
pos, occupados por demonios, viviam mos a experiencia. Realmente quem ,
no mundo . pondo -se ao pé da torre ao lado para
( 52 ) Ch'ei vive, e lunga vita ancora onde se inclina, olha ao longo d'ella
aspetta. Virgilio, em presença das hesi para o Céo, no momento em que uma
tações de Anteo, julga necessario refor nuvem lhe passa por cima em direcção
çar de novo a sua affirmação, dizendo contraria a inclinação, parece que se lhe
lhe : Este que está commigo, não é afigura, que não é a nuvem, mas sim
como Branca Doria e outros, cujos cor a mesma torre, que se move, e declina !
COMMENTARIOS AO CANTO XXXI 559

Esta comparação, repito, é estupenda, e ( 57 ) Ch ' i ' avrei voluto ir per altra
eminentemente poetica ! strada. Por qual outra estrada queria ir
(55) Tal parve Anteo a me che stava Dante, se estava nos braços de Virgilio ?
a bada. Porque diz : « Tal me pareceu a Responde - se, que queria ir por aquella
mim, e não a nós ? » Porque não Virgi estrada, em que vemos lançarem-se os
lio, mas somente Dante via Anteo de meninos, quando, contra a sua vontade,
face, segundo a posição de cada um dos estão presos nos braços de pessoa, que
dous Poetas. Que quer dizer que Dante lhes mette medo, preferindo caírem com
stava a bada. Di vederlo chinare. Quer desastre a se conservarem nos braços
dizer, que Dante estava em observação de quem tanto temem . Foi isto que
(mas em observação de amedrontado, aconteceu a Dante n'aquelle momento
com a bôcca aberta, e pouca respira de terror .
ção), vendo Anteo inclinar -se , e tardan ( 58 ) Ma lievemente al fondo. Este mas
do o momento de os depor no fundo. (ma) significa muito. Como si Dante
( 56) ... e fu tal’ora. Allude ao ponto, dissesse : sem embargo de todos os
que formaria a illusão terrivel de quem meus temores , Anteo levemente nos
está debaixo da Garisenda no momento poz em terra, isto é, no fundo do poço,
em que a nuvem lhe passa por cima. onde Lucifer com Judas são atormenta
Tambem entre Dante e Anteo houve dos.
esse momento fatal, e foi o ponto que ( 59) E com ' albero in nave si levò.
Anteo fez a curvatura para inclinar- se Ergueu-se direito, e grave, como o mas
para o fundo. Grande foi o terror tro de navio ( Landino ). Bellissima com
d'aquelle momento ! paração !
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXII

Não fala de pagãos, nem de christãos antigos, mas só dos modernos, e se


contemporaneos, talvez por desafogo da indignação que fervia no coração do Poeta
contra taes infames traidores. N'este ponto é ainda digno de elogios pela severa
imparcialidade com que castiga Gibellinos , e Guelphos, mostrando-se inexoravel
para com uns e outros. O Poeta moralista esquece o homem politico, quando tracta
de flagellar o vicio ou o crime.
O Cocyto tem de diametro uma milha, e tres milhas, e um septimo de circumfe
rencia. O seu fundo é coberto de um gêlo tão alto como um quarto de milha, ou
750 braças de altura . No meio está infincado Lucifer, que tem uma milha de altura,
ou 30 : 000 braças ; tem um quinto de milha de grossura ou 600 braças. O circuito
entre Lucifer, e a parede do poço tem de largura quatro quintos de milha, e é divi
dido em quatro gyros, cada um com um quinto de milha de largura, ou 600 braças ;
e em cada um é punida uma especie de traidores, como ficou dito.
Disputam os commentadores si Ptolomea deriva de Ptolemeo hebraico, genro
de Simão Machabeo, que matou por traição o sogro, e dous seus cunhados, que
convidára para um banquete em sua casa ; ou se deriva de Ptolemeu egypcio, que
trahiu Pompeu Magno, quando, depois da sua derrota na Pharsalia, procurou abrigo
no seu reino. Si se reflecte, porém, que no juizo de Dante é mais grave a traição
da hospitalidade que do parentesco, pois colloca os traidores dos hospedes mais
vizinhos ao centro do que os traidores dos parentes ; si se reflecte por outro lado
que Ptolemeu hebreu convidou a jantar seu sogro, e n'essa occasião o assassinou
pela ambição de reinar ; si se reflecte finalmente que Pompeu , bem que trahido sob
o reinado de Ptolemeu, não foi directamente trahido por elle, pois que era ainda
de menor idade, e por conseguinte sem nenhuma imputação ; é clarissimo que do
Ptolomeu hebraico, e não do Ptolemeu egypcio , deriva o nome da Ptolomea.
Este canto, alem dos engenhosos incidentes scenicos, que o recommendam ,
brilha pela moralidade dos principios philosophicos, que insinúa . O Poeta, conside
rando homogeneas as palavras patria, e parentes, como oriundas de uma mesma
estirpe ( pae ), colloca os traidores da patria, e dos parentes, não só no mesmo cir
culo, mas unidos uns com os outros ; assim como colloca os semeadores de discor
dia entre os parentes, e no seio da patria, não só na mesma fossa, como os põe em
contacto entre si ; mas com uma differença, que considera os traidores da patria
mais criminosos do que os traidores dos parentes, visto como os põe mais vizinhos
a Lucifer, isto é, no extremo supplicio : por similhante modo considera aquelles,
que semeiam discordia entre os parentes, mais criminosos, do que aquelles, que
36
562 O INFERNO

semeiam discordia entre os cidadãos, ou que dividem a patria. Não creio que estas
distincções feitas pelo Poeta sejam arbitrarias, e casuaes, antes parecem fundadas
em justa razão ; porque ha muita differença entre dividir e trahir. Não se pode
trahir a patria , sem trahir com ella os parentes, que são sua parte integrante ;
como , ao contrario, não se pode operar scisão entre os parentes, sem occasionar
damno á patria . Entendo, pois, com o Poeta, que alguns deveres nos prendem mais
aos parentes, outros á patria ; mas se ligam fortemente entre si ; porque quem in
fringe aquelles ou estes é condemnado á ultima caverna com pena gravissima, e
asquerosa. Mas a sanctidade d'estes deveres para com os parentes, e para com a
patria , torna -se por evidente pela excessiva perversidade d'aquelles, que a violam ;
porque não ha inimisade, nem inveja, nem odio, que eguale ás inimisades, invejas,
e odios dos parentes entre si ; e assim a patria não tem inimigo mais fero, do que
um seu cidadão, que taes malquerenças semeia . O Poeta diz -nos portanto : « Amae
os vossos parentes, amae a vossa patria : sede uteis aos vossos parentes, e á vossa
patria». Mas como é iniquo damnificar os outros para avantajar os parentes, assim
tambem é iniquo damnificar a patria dos outros para engrandecer a sua ; e este foi
o grande peccado do amor proprio dos pagãos, e que hoje se tem renovado com a
theoria das annexações violentas, ou das nacionalidades formadas com usurpações
de territorios de outras delimitados pelos seculos. Dante, fiel aos principios do
Christianismo, que tende a formar um só povo de todos os povos, queria que a uni
dade de sua patria se operasse pela união universal do poder com a fé, aquelle
representado por um Imperador, e este pelo Papa ; prova de que julgava impossivel
toda a unidade nacional, que não fosse constituida, senão sob estes dous auspicios.
O nono, e ultimo circulo infernal é um lago de gêlo, que se chama Cocyto, que
é o quarto, e ultimo rio do Inferno. Aqui o gêlo significa o quarto effeito que o
peccado produz no peccador obstinado, obsecando-o no vicio. Chama- se Cocyto,
que quer dizer pranto, para denotar que o peccador, chegando a tal grao de cor
rupção de espirito, torna- se incorregivel, e por isso condemnado ao pranto eterno.
Cocyto, o mythologico, corresponde, pois, aquelle estado do peccador, que os theo
logos definem cegueira irremediavel da alma, endurecimento de coração, completo
abandono da graça de Deus.
Este tanque de gêlo é dividido em quatro espheras, ou gyros concentricos, nos
quaes são punidas quatro especies de traidores . O primeiro d'estes gyros, para nós
que descemos do Limbo ao fundo do Inferno, chama-se Caina , porque n'elle é pu
nido Caim, traidor de seu irmão Abel, e n’este mesmo gyro, consequentemente, são
punidos todos os traidores dos parentes, ou consanguineos.
O segundo chama-se Antenora, derivação de Antenor troiano, traidor da pa
tria, vendendo -a por dinheiro aos Gregos. O terceiro chama-se Ptolomea, por causa
de Ptolemeu hebraico, que, convidando a um banquete, Simão Summo Sacerdote,
o matou na mesa : n'este, são por egual consequencia, punidos os traidores dos
hospedes, e dos amigos. O quarto , finalmente, que circula Lucifer infincado no
centro da terra, e no primeiro principio do Inferno, chama-se Giudeca, de Judas,
traidor de Christo, seu Superior, seu Mestre, e Bemfeitor : n’este gyro, portanto, são
punidos os traidores dos superiores, que na idea christã são todos benfeitores ;
porque, ainda quando castigam os subditos, mostram-se seus bemfeitores, corregin
do - os .
Estas quatro espheras, ou circulos concentricos, não se distinguem por nenhuma
circumstancia real, e não tem bordas como Malebolge, nem se desce passando de
um a outro, bem que todo o circulo penda para o centro : toda a distincção ahi re
sulta dos peccadores, e da maneira diversa por que estam mettidos no gêlo. Os
peccadores da Caina, e da Antenora, estam perpendicularmente immersos no gelo
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXII 563

até o pescoço, tendo sómente de fóra a cabeça ; mas os da Caina têem o rosto livido
pelo frio, e os da Antenora, onde o frio é maior, têem o rosto quasi negro, e enru
gado como o focinho do cão. Os peccadores da Ptolomea, jazem no gêlo, tendo de
fóra a cabeça voltada para cima : os da Giudeca, finalmente, estam com todo o
corpo debaixo do gêlo, e em posição diversa .
N'este canto tracta o Poeta da Caina, e da Antenora . Na Caina encontra Ale
xandre, e Napoleão, da familia Alberti, dous irmãos que se assassinaram reciproca
mente ; encontra tambem Sassolo Mascheroni, assassino de um sobrinho, de quem
era tutor, e Comicion dos Pazzis de Florença. Colloca na Antenora Bócca dos
Abatis, famoso traidor de seus concidadãos na batalha de Monteaperti ; e finalmente
ahi colloca o Conte Ugolino Pisano, e Roggero dos Ubaldinis, arcebispo de Pisa :
mas d'estes dous tracta largamente no canto seguinte.
CANTO XXXII

Tracta o Poeta n'este canto da primeira, e em parte da segunda das quatro espheras, em que divide este nono,
e ultimo circulo : Na primeira , chamada Caina , onde são punidos os traidores dos parentes, encontra Al
berto Camicion dos Pazzis, que lhe dá noticia dos outros peccadores, que ahi penam com elle : Na segunda,
chamada Antenora, onde são punidos os traidores da patria , encontra Bócca Abati, o qual indica - lhe ou
tros.

Si eu podesse compor versos asperos, e rouquenhos , como convi


riam ao horrendo poço, para o qual gravitam todas as outras rochas
infernaes, exprimiria o mais emphaticamente que fosse possivel o succo
do meu pensamento ; mas, pois que esse dom me fallece, não é sem
grande temor que me abalanço a falar. (1)
Porque descrever o centro de todo o universo não é empreza com
que se brinque, (2) nem tarefa da lingua que balbucia papá e mamā. (3)
Mas aquellas musas , que inspiraram a Amphião canto tão doce, que
moveu as pedras a formar em torno a Thebas (4) alterosos muros , in
spirem-me tambem canto adequado ao escabroso fim , que me pro
ponho .
Oh raça, mais que todas as outras execranda, (5) que habitas um
logar tão intractavel! (6) Que melhor não fôra teres sido n'este mundo
ovelhas, ou cabras ! (7)
Quando chegámos ao fundo do poço escuro, muito mais abaixo
d'aquelle onde o gigante punha os pés, (8)enquanto eu ainda admirava
o alto muro, de que haviamos descido, (9) ouvi uma voz dizer-me :
« Olha como passas ! (10) Repara não pises as cabeças dos teus irmãos
miseros e cansados ) .
A estas palavras, abaixei os olhos , e vi diante de mim, e sob meus
pés, um lago, que por estar gelado, parecia de vidro, e não de agua.
() Danubio na Austria ( ) não formou jamais crusta de gelo tão
566 O INFERNO

denso no inverno, nem o Tanai lá sob o frigido céo, ( 12) como espesso
era aqui o gelo : de forma que, si o monte Tabernicck , ( 13) ou o Pie
trama (14) desabasse sobre o lago, não teria feito triz ( 15) nem mesmo
na orla, onde o gelo é menos forte.
E tal como no estio, por volta da noite, quando a camponeza
muitas vezes sonha respigar, (16) a ran, só com o focinho fóra d'agua ,
se põe a coaxar ; assim aquellas almas dolorosas, e lividas ( 17) esta
vam enterradas no gêlo até á parte do rosto, onde se mostra a ver
gonha, e no tiritar dos dentes imitavam o som estridulo do bico da
cegonha . (18)
Cada uma d'ellas , para que lhe fosse menos sensivel o fustigar do
vento, que assoprava do Cocyto, tinha a cabeça baixa : (19) o bater dos
queixos testemunhava a intensidade do frio, como a inchação dos
olhos a tristeza do coração . ( 20)
Depois que por algum tempo girei os olhos em torno , os voltei
para os meus pés, (21 ) e vi dous peccadores tão travados entre si, que
confundiam os cabellos da cabeça . (22)
«Quem sois , bradei-lhes, que assim collaes um com o outro vossos
peitos ? » (23) E elles, desligando -se , dobraram o collo para traz , ( 24) e
depois que me viram, seus olhos, que antes só estavam internamente
humidos, gotejaram lagrimas sobre os labios, que foram de subito
condensadas pelo gêlo no orbicular das palpebras. (25)
Jamais a cavilha apertou tão fortemente duas pranchas, (26) como
aquelle gêlo apertou palpebra com palpebra ! Por isso os dous con
demnados marraram entre si (27) como dous bodes : tão grande era a
colera que os dominava !
E outro, que pelo rigor do frio tinha perdido ambas as orelhas, (28)
me disse, continuando de cabeça baixa : (29) « Porque olhas tanto para
nós ? ( 30)
« Si queres saber quem são estes dous, o valle, d'onde desce o Be
sencio, (31 ) foi possessão de ambos, e de Alberto seu pae . Nasceram
de um só ventre : (32) e tu poderás percorrer toda a Caina, sem n'ella
encontrares uma só alma fratricida, que mereça mais , do que a d'elles,
ser mettida n’esta gelatina. (33)
« Nem mesmo a alma d'aquelle, a quem Arthur fez no lado tão
larga ferida, que os raios do Sol atravessavam seu corpo ; (34) nem a
de Focaccia ; (35) nem a d'este , que com a cabeça me impede de ver
mais longe, e que foi chamado Sessuolo Mascheroni . (36) Si tu és Tosca
no , deves conhecer agora que traidor elle foi.
« E para que me não apouquentes mais com perguntas, saibas que
fui Camicion dos Pazzis : (37) espero Carlinho , que me ha de servir de
justificação .» (38)
CANTO XXXII 567

Em seguida, vi mil rostos roxeados (39) pelo frio : por isso a lem
brança d'esses tanques gelados ha de inspirar-me sempre grande hor
ror .

E emquanto proseguiamos para o centro da terra , para onde todas


as cousas gravitam , e eu tremia no meio d'aquella sombra eterna
mente congelada, (40) não sei si por disposição de Deus, ou si por
effeito da minha vontade, ou si por acaso, passeiando por entre aquel
las cabeças , tropecei fortemente n’uma d'ellas . (41)
A desgraçada gritou chorando : « Porque me pisas ? (42) Si não vens
aggravar a vindicta , que mereci pela traição de Monte Aperti, (43) por
que me molestas ? »
E eu disse a Virgilio : « Mestre meu, faze -me a graça de esperar
aqui um pouco, (44) a fim de que eu tire uma duvida (45) em que estou
acerca d'este sujeito : depois me darás a pressa que quizeres ) .
O meu Guia parou , e eu disse áquelle, que ainda blasphemava
duramente contra mim : « Quem és tu , que de modo tão villanesco
improperas os outros ? » ( 46)
« Mas quem és tu mesmo, respondeu, que andas por Antenora (47)
pisando no rosto de teus irmãos com tanta rudeza , como o não fa
rias, si ainda fôras vivo ? » (48)
« Ainda sou vivo, disse-lhe eu, e te posso ser util, registrando teu
nome entre outras notas de que farei uso no mundo, si desejas
fama.» ( 49)
E elle a mim : « O contrario de tudo isso desejo eu . Retira- te d'aqui ,
e não me molestes mais ; porque não conseguirás engodar com tuas
lisonjas os peccadores d'este valle » .
Então agarrei-o pelo cachaço, (50) dizendo-lhe : « Força será que me
digas teu nome, ou que te não reste cabello algum na cabeça» .
« Ainda que me arranques até o ultimo, respondeu , não direi quem
sou, nem levantarei o rosto de modo que me possas ver, ainda mesmo
que desabes com todo o peso do corpo sobre minha cabeça . »
Eu tinha -lhe já os cabellos enrolados nas mãos , e lhe arrancado
mais de uma guedelha, emquanto elle, ladrando com dor, e raiva,
abaixava o mais que podia os olhos encovados.
Eis se não quando outro gritou : « Que tens tu , Bócca ? (31 ) Não te
basta que o frio te faça bater as queixadas, has de ainda ladrar como
cão ? Que diabo te molesta ? »
Eu , que lhe ouvi o nome, disse-lhe : « Agora já não quero que tu
fales, malvado traidor ; porque, máo grado teu , levarei de ti veridi
cas noticias»). (52)
« E elle respondeu : «Vae -te depressa, e digas de mim o que qui
zeres ; ( 53) mas, si voltares ao mundo , não te esqueças de falar d'aquelle
568 O INFERNO

indiscreto , (54) cuja lingua foi tão prompta (55) em fazer-me conhecer
por ti.
« Elle aqui chora o dinheiro que recebeu dos Francezes, (56) em paga
de lhes entregar Manfredo, e os Gibellinos . «Eu vi, poderás lá dizer,
eu vi Duoso de Duera (57) no logar, onde os traidores tomam banhos
frescos . ) (58)
« E si te perguntarem : «Quem era o outro ?» Te digo que tens ao
teu lado aquelle de Beccheria, (59) cuja cabeça Florença mandou cor
tar , (60)
« Creio que mais adiante estam Gianni de Soldanier , (61 ) Ganellone,
e Trebadello, (62) que abriu ao inimigo as portas de Faensa, quando
a cidade dormia . »
Haviamo -nos separado já d'aquelle peccador, (63) quando vi dous
d'elles n'uma cavidade de gelo por tal modo dispostos, que um tinha a
cabeça sobre a cabeça do outro. (64)
E á similhança do faminto que devora o pão, (65) o primeiro devo
rava a nuca do segundo ! (66)
Não derricou Tydeu com maior furor (67) o craneo de Manalipo , do
que aquelle a nuca da sua victima !
Horrorisado interpellei- o: «Ó tu, que manifestas odio tão selva
gem contra esse, que devoras, dize-me quem sois vos ambos, e o
motivo de tão cruel vingança ; certo de que retribuirei no mundo a
cortezia com que me responderes, justificando teus aggravos, si a
lingua com que agora te falo se não tornar secca pelo sopro da morte ! »
COMMENTARIOS AO CANTO XXXII

( 1 ) S ' io avessi le rime e aspre e rouquenhos, isto é, de máo sabor e de


chiocce, Come si converrebbe al tristo máo som .
buco, Sovra 'l qual pontan tutte l'altre Come si converrebbe al tristo buco .
rocce, l' premerei di mio concetto il suco Isto é, ao centro da terra, e do univer
Più pienamente: ma perch'io non l'ab so, ao pavoroso fundo do Inferno, so
bo, Non senza tema a dicer mi caduco. bre o qual gravitam todas as outras
Rime, versos, a parte pelo todo . Não rochas infernaes. Assim como toda a
sem razão diz rimas, e não versos; por rocha inferior sustenta aquella, que está
que tambem a escolha das rimas impor em cima, servindo-lhe de contraforte;
ta muito ao sentido do discurso . N'este assim tambem a rocha do poço, sendo
canto , por exemplo, temos subito occe, inferior a todas as outras rochas, serve
uco, abbo, e mais abaixo icch , e no final de apoio a todas ellas . Sovra 'l qual
do outro canto notamos a rima aguda pontan tutte l' altre rocce .
em ò. Os grandes Poetas são grandes ľ premerei di mio concetto il suco.
até nas mesmas palavras ! Bellissima comparação tirada das fructas,
.. aspre e chiocce. Para descrever cujo precioso succo extrahe -se pela com
convenientemente uma cousa, é mister pressão. As palavras chamam- se expres
que se escolham taes palavras, que cor sões exactamente porque extrahem da
respondam ao objecto . Por exemplo : mente a idéa, que, de invisivel, e espi
Si o objecto é horrido, as palavras de ritual que era, a tornam sensivel, e en
vem ser horridas; si é pathetico, devem carnada n'ellas . Extrahir o succo do
as palavras ser patheticas; si alegre, ale conceito é o mesmo que exprimir o con
gres devem ser as palavras. Esta arte de ceito, a idéa, o pensamento, etc.
apropriar palavras a estas tres especies de ... ma perch ' io non l'abbo. Com
objectos, dá ao estylo a força como no esta declaração da propria insufficiencia,
primeiro caso, a tristeza como no se Dante bellamente restringe- se á seguinte
gundo, a alegria como no terceiro. Por argumentação, que engrandece o seu
isso vemos , que Dante é forte no Infer objecto. Si Dante, tão potente de enge
no , melancolico no Purgatorio, alegre nho como é, não pode exprimir exacta -
no Paraiso. Quanto pois á razão poeti mente o conceito que forma do seu ob
ca, esta confissão que faz o Poeta da jecto, é força confessar que a horribilida
insufficiencia da sua palavra para de de d'este baixo Inferno excede todo o
screver o ultimo baratro infernal, é uma humano conceito .
arte bellissima para engrandecer o seu (2 ) ...da pigliare a gabbo. Isto é,
horror. Por este motivo diz, que dese não é empreza, que se deva tractar com
java poder usar de versos asperos, e indifferença ou com pouca seriedade .
570 O INFERNO

(3 ) Nè da lingua che chiami mamma mas Musas, que ajudaram Amphiáo a


e babbo. Nem da lingua, que diz « mamā cingir de muros a cidade de Thebas,
e papá ». Outras edições trazem mam a fim de que o inspirem de modo que
ma o babbo, mamā ou papá; mas deve na presente descripção do baixo Infer
se attender, observa Lombardi, que o no o seu estylo seja adequado, e não in
menino chama á mãe mamă, e ao pae ferior ao seu objecto. Si che dal fatto il
papí. O que Dante porém quer dizer é dir non sia diverso .
que, em presença de objecto tão estranho, ( 5 ) Oh sovra tutte mal creata plebe.
e horroroso, a lingua d'elle Dante era tão Estes são os maiores peccadores de todo
debil , e insufficiente, como é a do meni o mundo, e por isso são condemnados a
no, que mal balbucia as palavras « mamá, padecer no logar mais profundo do In
e papá » . Ora, si a lingua de um Dante ferno: razão pela qual os qualifica de
é insufficiente, que não serão as lin canalha a mais execranda de todas !
guas dos outros, que não são Dantes ? ( 6 ) Che stai nel loco, onde parlare è
Mas a verdadeira allusão aqui é á lingua duro. Quer dizer, que é muito difficil de
italiana, então nascida de pouco tempo, descrever um logar tão intractavel, como
por causa de cuja infancia o Poeta ha este .

via primeiramente pensado em escrever ( 7 ) Me ' foste state qui pecore o zebe !
o seu Poema em versos latinos, de que Me' abreviatura de Meglio. Querendo
ainda existe uma parte . Mas Dante de dizer : « Melhor fôra que aqui no mundo
pois mudou de resolução. Após longos, onde escrevo aquillo que vi lá no Infer
e profundos estudos da lingua, que elle no, vos tivesseis sido ovelhas, ou cabras» .
procurou desveladamente desenvolver, Sendo este o circulo infernal, onde Judas
e enriquecer de termos, e locuções no é atormentado, é visivel, que Dante
vas, determinou em boa hora compor a com esta apostrophe alluda aquellas
Divina Comedia, na lingua vulgar italia terriveis palavras, que Jesus Christo di
na, em que se tornou tão poderoso en rigiu ao discipulo traidor : Bonum erat
tão, como depois. Eis como elle come ei si natus non fuisset ( S. Math ., 26, V.,
çava a composição latina : « Ultima regna 24 ) .
canam fluido contermina mundo, Spiri ( 8) Sotto i piè del gigante, assai più
tibus quæ lata patent. Quæ premia sol bassi. Andando os dous Poetas pela su
vunt, etc. » perficie do poço para o centro, acha
( 4) Ma quelle Donne aiutino il mio ram-se em logar mais fundo, do que
verso, Ch ' aiutaro Anfione a chiuder Te aquelle, em que o gigante Anteo tinha
be. Fabulam os Poetas, que Amphião posto os pés, quando os depoz : logo a
vibrava magistralmente as cordas da superficie circular era mais inclinada
lyra, e que, não tendo outro meio de para o centro .
cingir os muros da cidade de Thebas, (9) Ed io mirava ancora all ' alto mu
d'onde havia sido expulsado Cadmo, ro. Dante olhava para traz o muro do
começou a tanger o seu instrumento poço, pela curiosidade natural de ver
com peregrina suavidade . De repente, de que altura era elle, e Virgilio tinha
viu - se então uma cousa maravilhosa : as descido, para ver melhor a outra me.
pedras, movendo-se dos montes, e col tade do gigante do umbigo para baixo.
locando-se em ordem natural em torno Pois a não tinha visto quando foi depos
da cidade, formaram altos muros. Toda to ? Não ; porque o grande terror o fez
a gente póde sob o véo da fabula reco fugir d'ali a toda pressa, e quando se
nhecer os admiraveis effeitos da elo . viu livre do gigante, então olhou para
quencia, que teve a força de attrahir traz para vel- o melhor. Tambem isto é
homens ferozes, e rusticos dos montes, naturalissimo . Eu disse, ha pouco , que
e reduzil- os á vida social . Dante invoca o fundo do poço era um plano circular
n'este canto o auxilio d'aquellas mes . bastante inclinado para o centro. Este
COMMENTARIOS AO CANTO XXXII 571

dlano inclinado era um lago todo gela trario avizinha -se mais do equador, ten
do, formado pela agua do Cocyto ; e o do só cerca de 45 gráos de distancia.
mesmo gelo era inclinado para o fundo. ( 12) Nè 'l Tanai là sotto 'l freddo
Pergunto portanto porque o gelo fosse cielo. O Tanai é um rio que agora se
assim inclinado , quando se sabe, que a chama geralmente Don, que nasce per
agua procura o nivel, e que assim ni to de Moskow, e com direcção de norte
velada se congela ? Respondo, que a ao sul vae desaguar no lago Meois, hoje
agua do Cocyto não podia pôr-se ao ni mar de Azoff. Tambem d'este rio in
vel, porque o intenso frio d'aquelle lo dica -se a parte septentrional porque é
gar gelava a agua no acto de descer. E mais fria ; sendo a sua nascença cerca
por isso nós vemos em certos dias muito de 55 gráos de latitude, e a sua foz cer
frios, que a agua no acto de descer pe ca de 47
los conductos ao longo dos rios conge ( 13 ) Tabernicch . Monte da Escla
la- se pelo ar, formando longos cones vonia .
voltados perpendiculares ao terreno. ( 14) Pietrapana. Monte na Garfa
Observei isso em Padua . gnana em Modena .
( 10) Dicere udi' mi: Guarda come ( 15 ) Non avria pur dall'orlo fatto
passi. Como ha pouco vimos, Dante cricch. Porque nem sequer na orla fa
olhava para traz, e caminhava para ria triz, isto é, não romperia o gêlo ?
diante. Cumpre porém observar, 1.º, que Porque na orla, ou borda do poço, o
Dante podia confiar em olhar para traz, gelo é muito mais fino do que no fundo.
e andar para diante, porque elle, sem Logo quer o Poeta dizer que, si aquel
ainda advertir, caminhava por um la les montes caissem sobre o poço, nem
geado bastante liso, desembaraçado de sequer quebrariam o gelo no ponto em
todo obstaculo : este lageado era de que elle é mais fino. Está-se conhecen
gelo ; 2.", que n'aquelle espaço gelado do que tem por fim exaggerar hyperbo
percorrido por Dante, não havia almas licamente a densidão do gêlo ainda
enterradas; porque estas começavam mesmo onde é elle mais delgado.
a estar atufadas no logar onde o gêlo Cricch é o som do gêlo, ou do vidro
era mais grosso, e o gêlo se torna mais quando se rompe , triz.
grosso , quanto mais se afasta da borda; ( 16) ... quando sogna. A ceifa tem
3.", que a escassez de luz era tal, que logar no principio do estio. Então suc
os condemnados temiam que Dante, cedem duas cousas : a rã leva a coaxar
não os vendo, os pizasse; por isso lhe toda a noite com o focinho fóra da
dizem : «Anda de modo que não pises agua; e a camponeza , como leva o dia
com as plantas as cabeças dos dous mi em respigar o campo, de que lhe ha de
seros irmãos quebrantados. Fa si che tu vir a abundancia, sonha com isso mui
non calchi con le piante Le teste deifra. tas vezes na noite. A parte principal
tei miseri lassi». Isto dizia aquelle con d'este simile engenhoso é a primeira,
demnado a Dante, porque suppunha que indica o modo por que jazem os
que elle fosse algum traidor scelerado, condemnados no gêlo : a menos princi
que viesse participar do mesmo suppli pal é a segunda, que indica a hora no
cio dentro do gêlo eterno. ( Bennassutti ). cturna, em que se vê, mas pouco, exa
( 11 ) Di verno la Danoia in Austeric ctamente como se via no fundo do po
ch . O Danubio no archiducado da Aus ço.
tria. Diz na Austria, porque o Danubio (17 ) Livide insin là dove appar vergo
tem diversas latitudes septentrionaes, e gna. É proprio do gêlo tornar livida a
o archiducado da Austria é um dos lo côr dos que estão mettidos n'elle. Insin
gares, onde o Danubio é mais elevado là dove appar vergogna. O logar, onde
do equador, contando cerca de 49 gráos, a vergonha se manifesta pelo rubor, é
e por isso é mais frio . A sua foz ao con o rosto. Quer pois dizer o Poeta, que
572 O INFERNO

aquellas almas estavam lividas ou até o que o serem eternamente mettidos no


rosto, ou até lá onde se mostram as gelo, visto que tiveram em vida um co
partes pudendas. Os commentadores, ração de gelo, endurecido como o gêlo.
que seguem esta segunda interpretação, ( 21 ) Quand ' io ebbi d' intorno alquan
diz Fraticelli, observando que os trai to visto . Porque Dante olhou primeiro
dores da quarta esphera, com differen em torno, e depois para os pés ? Não
ça dos da terceira, que têem a cabeça era dos pés que vinha aquella voz ?
de fóra, estão totalmente cobertos com Respondo : É verdade que era dos pés
o gelo ( Là dove l'ombre tutte eran co que vinha a voz, mas parecia algum
perte, E transparèn come festuca in ve tanto longinqua; porque aquelle dos
tro, Inferno xxxiv, 11 , 12) deduzem que dous, que falou, unha a voz algum
uma gradação na immersão no gêlo tanto rouca pelo natural effeito do gelo,
deve ser tambem para os traidores da e se tornava ainda mais rouca, porque
segunda, e da primeira esphera; e que a bocca, que falava estava muito unida
assim se explica que aquelles da segun á bôcca do outro ; e por isso o som de
da estejam atufados até as espaduas, e suas palavras era rouco, parecendo que
os da primeira até o umbigo. vinha de mais longe. Eis-aqui porque o
( 18 ) Mettendo i denti in nota di cico . Poeta primeiro olhou em volta de si,
gna. Batendo com os dentes, produziam para averiguar de onde vinha a voz, e
aquelle som, que costuma a cegonha nada percebendo, olhou depois para os
fazer quando bate a parte superior do pés . Tudo é admiravel, e bello n'este
bico com a inferior. assombroso Poeta !
( 19) Ognuna in giù tenea volta la fac (22 ) Volsimi a' piedi, e vidi due si
cia. É o terceiro effeito natural do frio : stretti. Estavam intincados no gêlo, e
encolher-se a gente o mais que póde. unidos estreitamente do seguinte modo :
Em summa: tres são estes effeitos: livi Pernas com pernas, ventre com ventre,
ez, bater os queixos, abaixar o rosto . peito com peito, face com face, por isso
Mas não esqueça que, segundo Dante, os cabellos da cabeça de ambos se con
o ter aqui o rosto baixo é posição muito fundiam : parecia que eram cabellos de
propria dos traidores. uma só cabeça ! 1

(20) Da bocca il freddo, e dagli oc (23 ) Ditemi voi, che si stringere i


chi 'l cor tristo. Conhece -se quem pa petti. Porque estavam estes dous mise
dece um frio horrivel especialmente ros assim tão ligados ? Para maior tor
pelo bater dos dentes, como se conhe mento d'elles : pois que , tendo sido dous
ce que padece uma dor interna espe irmãos, romperam a união natural, que
cialmente pelos olhos impregnados de devia existir entre elles, e se assassina
lagrimas. Porque porém estes, e outros ram mutuamente : portanto , para que
peccadores foram condemnados a estar mais cruel lhes seja o supplicio, a divi
enterrados no gêlo, qual mais, qual me na Justiça os condemna a padecer eter
nos, segundo o grao da culpa ? E porque namente collados um com o outro.
todos estes foram traidores de pessoas, ( 24) ... E quei piegaro i colli. E aquel
que n'elles confiaram , e as traições les dous condemnados , para poderem
d'este genero Dante considera traições ver Dante, foram obrigados a separar
de caso pensado , as quaes, para serem rosto de rosto, o que não podiam fazer
commettidas, estuda - se muito, medita sem dobrar os pescoços para traz.
se muito, combina -se com muita frieza N’esta posição, olharam para cima, e
tudo o que é preciso pôr em pratica, viram Dante sobre a borda do poço.
suffocando - se d'esta arte os mais arden Mas como sabiam elles, que Dante se
tes, e ternos sentimentos da natureza : avizinhára, si ainda o não tinham visto?
nenhum castigo portanto é mais apro Souberam pelo rumor surdo dos pés
priado a este especie de traidores, de de Dante, andando por cima do gêlo. 1
COMMENTARIOS AO CANTO XXXII 573

(25) Gli occhi lor, ch'eran pria pur por causa da herança; discordia que
dentro molli, Gocciar su per le labbra, acabou por se assassinarem mutuamen
e'l gelo strinse Le lagrime, tra essi, e ri te .
serrolli. Como si dissesse : « O frio era tão (32 ) D'un corpo usciro ... isto é,nas
intenso, que a agua do Cocyto se gela ceram de um mesmo ventre .
va apenas cahia no poço .» O mesmo ( 33 ) Degna più d'esser fitta in gela
acontece com as lagrimas dos conde tina. Chama gelatina áquelle gelado, ou
mnados, as quaes, apenas saíam dos porque fosse composto de agua lamosa,
olhos, gelavam-se -lhes sob as palpebras! ou por facecia ironica.
Isto diz tudo quanto á horrivel intensi ( 34) Non quegli a cui fu rotto il petto
dade do frio ! E Dante não sentia tam e l'ombra . Mordredo, filho de Arthur
bem os seus effeitos? Sentia ; mas, por Rei da Gran Bretanha, segundo o ro
privilegio especial da graça divina, podia mance de Lancillotto, rebellou- se con
supportal-os sem tormento. tra o pae. Mas, saindo -lhe ao encontro
( 26) Legno con legno spranga mai para matal-o, o pae preveniu - lhe o gol
non cinse. Isto é uma bellissima compa pe, traspassando-lhe com a lança o pei
ração! Spragna, cavilha, torno de páo to de lado a lado, de modo que (diz a
ou de ferro, com que se travam as ma historia) pelo buraco da lança passou
deiras, e as vigas. um raio de sol tão manifestamente, que
( 27) Cozzaro insieme... Ha tambem Girffet o viu . Por isso diz Dante que,
aqui grande propriedade no dizer, que com um só golpe, foi roto o peito, e a
os dous miseros, vendo -se com as pal sombra , isto é, foi juntamente com o
pebras fechadas pelo gêlo, forcejavam peito aquella sombra, que o peito con
com a dor para se separar um do outro tra o Sol fazia sobre a terra (Fraticelli ) .
e no desatino da dor, e da cegueira jo (35 ) Non Focaccia . Focaccia da fami.
garam cabeçadas entre si como dous lia dos Cancellieri, nobre Pistoiense,
bodes ! Come duo becchi. mancebo audaciosissimo, diz Landino ,
(28) Ed un , ch'avea perduti ambo gli e de pessimos costumes. Cortou uma
orecchi. É egualmente um effeito natu mão a um joven seu primo, por uma
ral do frio, como sabemos por historias impertinencia pueril, por este commet
de muitos viajantes nas partes boreaes, tida, e não satisfeito de tão atroz vin
onde o frio é tão forte, que ora faz cair gança, correu á casa do pae do infeliz
o nariz, ora a orelha, etc. É este por rapaz, e que era seu tio, e o assassinou ,
tanto o quarto effeito do frio. D'esta execranda façanha, continúa
( 29 ) pur col viso in giue. Outro Landino, seguiram-se scenas horroro
effeito do frio é , como já se disse, obri sas, que enluciaram por muitos annos
gar a abaixar o rosto . toda a Toscana, pois que d'ellas nasce
( 30) Disse: Perchè cotanto in noi ti ram as facções Branca, e Negra, que
specchi ? Si o condemnado tinha o rosto antes retalharam Pistoia, e depois Flo
baixo, como sabia que Dante o estava rença .
olhando (in noi ti specchi?). Sabia -o ( 36 ) E fu nomato Sassol Mascheroni.
pelas palavras, que Dante já lhe havia Este Mascheroni, diz Landino, que era
dirigido : Ditemi voi, che si stringete i de Florença, e assassinou seu tio. Di
petti ? Dizei - me, porque vos collaes peito versamente diz o Anonymo que, sendo
com peito ? Mascheroni tutor de um seu sobrinho ,
( 31 ) La palle, onde Bisenzio si dichi o matou para haver-lhe a herança.
na. O valle, por onde o rio Bisenzio ( 37) Sappi ch ' i ' fu il Camicion de '
desce, foi propriedade de seu pae Al Pazzi. Estes Alberto Camicion da fami.
berto dos Albertis, nobre Florentino. lia dos Pazzi de Val d'Arno assassinou á
Seus dous filhos Alexandre, e Napoleão , traição Ubertino seu parente.
morto seu pae, entraram em discordia (38) Ed aspetto Carlin che mi sca
574 O INFERNO

gioni. Querendo dizer : « Eu o espero (42) Piangendo mi sgridò: Perchè


não aqui onde estou , mas muito abaixo mi pestel. O condemnado exaggera ,
de mim, entre os traidores da patria.” pois que Dante não o pisou, tropeçou.
Este Carlinho, pertencente tambem á fa E porém proprio de quem se queixa
milia dos Pazzis, occupando por parte dizer mais do que sente.
dos Brancos de Florença o castello de (43) Se tu non vieni a crescer la ven
Piano de Trevigne, o entregou por di detta. Como si dissesse : « Si tu não vens
nheiro aos Negros em 1303, de cuja augmentar o castigo que tenho mereci
traição resultou a morte de muitos do pela traição, que fiz a patria em Mon
Brancos : É por isso que Camicion diz te Aperti, porque me maltratas ?, Este
que o seu crime, comparado com a in condemnado é Bocca dos Abatis, que,
fame traição de Carlinho, parecerá um corrompido pelo dinheiro dos Gibelli
acto innocente. Che mi scagioni. nos, na batalha de Monte Aperti, estan
(39) Poscia vid ' io mille visi cagnaz do elle do lado dos Guelphos, cortou a
ii. Os peccadores precedentes, isto é, mão a Giacopo Pazzi, que levava a
aquelles da Caina, ou os traidores dos bandeira ; pelo que os Guelphos, inva
parentes têem o rosto livido : aquelles didos de subito terror, pozeram -se em
da Antenora, por isso que o frio é mais desconcertada fuga, morrendo quatro
forte, o seu rosto é roxeado (cagnaz70 ); mil, no dia 14 de septembro de 1260 .
pois que, quanto mais se avizinha ao Dante, mettendo no Inferno este trai
centro, tanto mais recrudesce o frio; c dor dos Guelphos, prova mais de uma
assim como maior culpa é trahir a pa vez a sua exemplar imparcialidade po
tria, que os parentes, assim por conse litica .
guinte mais grave é o tormento d'estes, (44) ... Or qui m ' aspetta. Como fi
do que o d'aquelles traidores. Porque cou dito, Virgilio andava muito apressa
mil rostos ? Porque os traidores da pa do pela urgencia , que tinha de termi
tria são em maior numero , que os trai nar a viagem do Inferno n’aquelle dia.
dores dos parentes . (45) Sì ch' i'esca d'un dubbio per
(40) Ed io tremava nell'eterno rez . costui. A duvida de que Dante queria
70. Póde - se tremer de frio, sem sentir saír, era exactamente verificar aquillo,
dor, ou tormento algum. Já dissemos que a fama dizia ter Bócca praticado ,
anteriormente, que Dante não era isto é, de ter cortado por dinheiro dos
exempto dos effeitos do frio infernal, Gibellinos a mão do vexillario dos
mas, por graça especial divina, podia Guelphos . Ah maliciosa duvida Dantes
supportal-os sem incommodo; portan ca !
to o facto de dizer elle, que tremia ( 46) Qual se ' tu che così rampogni
n'aquella eterna sombra, não contradiz altrui? Querendo dizer : « Quem és tu,
a nossa asserção. Elle mesmo o confes que tão villāmente injurias a outrem ,
sa com o emprego da palavra re770, que pois que não sabes que pessoa tropeçou
significa sombra de logar aberto, onde no teu rosto, nem si o fez por acaso,
não penetra sol, e faz fresco. ou por má vontade ? »
(41 ) ...passeggiando tra le teste. Só (47) Or tu chi se ' che vai per l'Ante
mente as cabeças estavam fora do gêlo, nora. « Agora pergunto eu quem és tu ,
e em diversa posição. A cabeça d'este que vaes por Antenora, etc. » Já se disse
em que o Poeta tropeçou tinha o rosto n'outra parte , que o segundo gyro cha
voltado para baixo; por isso o pé bateu mado Antenora deriva o nome de An
The fortemente na face. Forte percossi tenor, que alguns historiadores dizem
il piè nel viso ad una. Diz fortemente, ter trahido Troia, sua patria .
pois que Dante caminhava com muita ( 48) Si, che se fossi viro, troppo fora !
pressa, para poder seguir Virgilio na sua Este Bócca parece não estar inteira
rapida marcha. mente certo, si Dante é vivo; só sabe que,
COMMENTARIOS AO CANTO XXXII 575

si ainda fosse vivo, aquelle golpe de pé, Uma questão de esthetica : Será bello,
que lhe tinha dado no rosto, fora de e louvavel este procedimento de Dante
masiado forte para ser considerado um contra um misero condemnado? Res
mero accidente , e não uma offensa vo pondo : A acção considerada em abstra
luntaria, intencional, etc. É por isso que cto não é nem digna, nem generosa;
Bócca acreditou, que Dante viesse de mas considerada sob certas relações se
proposito aggravar-lhe o castigo, que a torna plenamente justificavel. Dante,
divina Justiça lhe tinha imposto pela que é de gosto apuradissimo, sentiu o
traição por elle commertida em Monte effeito d'esta scena , e attendeu menos
Aperti . Os commentadores têem sido ao decoro, do que a naturalidade, isto é,
escassos na interpretação d’este verso, a natureza. O amor da patria é tão
realmente difficil. Bianchi limita - se em congenito com a natureza, e inflam
dizer, que Bócca pensava ser Dante uma ma tanto os corações, que os faz esque
sombra, e maravilhava-se da força, com cer outro affecto mais terno, e doce. O
que elle lhe havia tropeçado no rosto . sentimento, ou amor da patria era en
Parece que isto só não é bastante para tão muito mais ardente, e exaltado, que
exprimir precisamente o conceito do é hoje, não obstante as loucas jactan
Poeta . cias que vemos em nossos dias. Ora,
(49) Ch'io metta 'l nome tuo tra l'al quem era esse condemnado contra o
tre note. É este costumado engôdo, que qual Dante se enfurecia ? Era um trai
Dante emprega para arrancar declara dor da patria, indigno de toda a con
ções aos condemnados. É esta porém a templação, e a quem toda a affronta, que
primeira vez, que elle acena com a se fizesse era pouca. Dante viu clara
fama os condemnados de Antenora . Mas mente, que este seu golpe de scena,
estes são de gosto differente dos outros por mais inconveniente , que parecesse,
condemnados ; pois repellem a honra de seria acolhido com applausos univer
serem lembrados no mundo. E porque? saes, attenta a qualidade do individuo,
Porque a qualidade do seu delicto é tão e da sua infamia, e por isso bateu na
vergonhosa, e infamante, que, tentar es tecla da paixão popular mais exaggera
cusal -o, seria aggraval-o, porque não da , qual era o amor da patria offendido,
haveria justificação possivel para as e violado pelos traidores d'ella. Muitas
traições feitas á patria. Por isso Bócca vezes não é bella uma cousa em si, mas
repelle a proposta de Dante, dizendo a paixão póde tornal- a tal, e nos calcu
lhe, que elle com as suas lisonjas não los de um grande Poeta não pode dei
logrará attrahir a boa vontade dos pec xar de entrar esta consideração .
cadores d'aquelle baixo, e lamoso valle : ( 51 ) Quando un altro gridò : Che
Chè mal sai lusingar per quuesta lama. hai tu Bocca ? Bellissimo, e naturalissi
( 50) Allor lo presi per la cuticagna. mo artificio, para saber de um o que o
Porque lhe agarrou os cabellos da nuca outro não quiz dizer !
e não os do alto da cabeça, por onde ( 52 ) Omai, diss ' io, non vo ' che tu
costumam ser agarrados os adversarios? favelle. Dante certificou agora que Bóc
Porque a nuca, segundo o que já ficou ca era aquelle mesmo, que a fama pu
dito, era a parte, que se manifestava a blica apregoava como traidor dos Guel
Dante, porque era a unica, que se tor phos na batalha de Monte Aperti, e
nava palpavel, por estar o condemnado que a fama era verdadeira ; por isso lhe
de rosto voltado para baixo. La testa disse : non vo ' che tu favelle, isto é, não
di costui era volta colla faccia all'ingiù. quero agora que fales. Esta prohibição
Havia outra razão para que Dante o vale um thesouro ! Como si o Poeta
agarrasse pela nuca, e é, que a arran dissesse : «Agora não quero que fales,
cadura dos cabellos n'esta parte da ca entende -me bem : não somente não quero
beça é muito mais dolorosa . que fales, como me faz prazer que não
576 O INFERNO

fales; porque me seria muito fastidioso , e d'este facto resultou a destruição de


ouvir a voz de um traidor, qual tu foste; Cremona. Aqui temos dous traidores :
e porque, sem que tu fales, levarei, máo Bócca, traidor dos seus correligionarios
grado teu, noticias de ti ao mundo; sim , Guelphos; e Buoso, traidor de seus allia
lá darei informações do teu horrivel dos Gibellinos ! Quem ousará accusar
tormento, causado por tua infame trai Dante de parcial, em face d'estes dous
ção; informações, que darei de tanto traidores por elle mettidos no Inferno ?
melhor vontade, quanto ellas te aggra ( 57) vidi, potrai dir, quel da Due
vam o tormento » . ra. Querendo dizer: « Tu disseste, ha
( 53 ) Va via, rispose, e ciò che tu vuoi, pouco, que levarias ao mundo verdadei
conta. Verdadeira resposta de um trai ras noticias de mim : pois bem, peço -te,
dor denunciado, e furioso de despei que não te esqueças de dizer tambem
to ! lá, que viste aqui padecendo o mesmo
( 54) Ma non tacer, se tu di qua entr ' castigo, que eu padeço, aquelle celebre
eschi. Outro bellissimo artificio! O con Buoso da Duera, que, em vez de , no
demnado, que não quiz dizer o proprio seu proprio interesse, conservar - se ca.
nome, diz o nome de outro para vingar lado, teve a lingua prompta para me fa .
se . Dante faz nascer todos os inciden zer conhecer a ti, quando gritou : « Que
tes com uma riquissima pompa de ima tens tu, Bócca ? »
ginação, para variar assim uma narra (58) Là dove i peccatori stanno fres
ção, que seria aliás enfadonha, sem estes chi. Pungentissima ironia lançada a
episodiosinhos. Buoso! Dizer que elle estava em um lo
( 55 ) Di quel, ch ' ebbe or così la lingua gar, onde os peccadores tomam banhos
pronta. Este que teve a lingua prompta , frescos, era dizer, que estava enterrado
foi aquelle que disse : Que tens tu Bócca . no gêlo de Antenora , onde são punidos
Pois bem : era Buoso de Duera, Cre os traidores da patria .
monense, como todos os outros traido ( 59 ) Tu hai da lato quel di Beccheria.
res da patria , e não desejava tambem Familia poderosa de Pavia . O Becche
dar- se a conhecer. Mas Dante fez co ria, a quem allude Bócca, foi Abbade
nhecer com superfina argucia o inciden de Valombrosa : mandado pelo Papa Ale
te, que Buoso de Duera, sem pensar xandre IV a Florença, como seu lega 1
trahir seu companheiro Bócca, o nomeas do, incorreu na suspeita dos Guelphos
se, perguntando -lhe que motivos tinha de fazer causa commum com os Gibelli
de estar a ladrar como cão : esta inter nos; tanto bastou para que Florença lhe
pellação, que tanto desagradou a Bócca, mandasse cortar a cabeça. A cidade foi
obrigou-o a vingar-se de Buoso, denun excommungada pelo Papa; porque, ver .
ciando - o tambem , assim como a outros dadeira ou falsa que fosse a accusação
traidores. Artificiosissimo engenho poe ( muitos a têem por falsa, se bem que
tico, que d'esta fórma amenisa com va Dante a tenha por verdadeira ) , o Para
riegadas cores um quadro, que de per era quem devia julgar, e punir o seu le
si era monotono ! (Bennassutti ). gado : Eis- aqui outro Guelpho fautor dos
( 56 ) Ei piange qui l'argento de ' Gibellinos condemnado por Dante ; e o
Franceschi. O facto historico é este : que se segue será um Gibellino fautor
Buoso havia sido posto pelos Gibelli dos Guelphos, tambem condemnado.
nos, e por Manfredo, Rei da Apulia, de (60) Di cui segò Fiorenza la gorgie
guarda em um sitio sobre o Parmigiano , ra . Do qual ( Becchieria ) Florença cor
para cortar o passo ao exercito de Car tou a cabeça. Gorgiera, é uma arma
los de Anjú , commandado pelo Conde dura do pescoço ; aqui é tomada pelo
Guido de Monteforte . Buoso porém , su mesmo pescoço ; o continente pelo
bornado por Guido, o deixou passar li conteúdo .
vremente com o seu exercito invasor, (61) Gianni del Soldanier, credo che
COMMENTARIOS AO CANTO XXXII 577

sia. Giovanni, da familia Soldanieri, Flo onde são punidos os traidores da pa


rentino; mas da facção gibellina. Trahiu - a tria .
em favor da facção guelpha, da qual se ( 64) Ch'i ' vidi duo ghiacciati in una
fez chefe. Foi podestá (governador) de buca. Cumpre advertir que , para fazel
OS estar com a cabeça um sobre o
Faenza, que tirou aos Gibellinos, e en
tregou aos Guelphos bolonhezes, abrin outro, o Poeta os põe em um buraco
do as portas de noite com auxilio de de gêlo . O que tinha a cabeça por cima
Tribaldello dos Zambrasis Faentino . Ch' era o Conde Ugolino; o que tinha a ca
apri Faenza quando si dormia. Este beça debaixo era o Arcebispo Roggero.
Tribaldello havia sido antes da facção No canto seguinte se explicará a razão
gibellina, a quem tambem trahiu. Credo d'isto.
che sia . E porque não tem como certo? (65 ) E come 'l pan per fame si man
Porque os condemnados não estam duca. E porque tira o Poeta o simile do
certos a respeito d'aquelles, que são pão, e não de outros manjares ? Porque
seus vizinhos, ainda que os vejam . Si o pão tem a polpa , e a codea : a polpa
sabem dos outros, sabem - no indirecta aqui corresponde á carne, ou ás partes
mente; porque é um condemnado que o molles do lado posterior da cabeça (a
diz a outro esguelhadamente, e este nuca), e a codea corresponde ao osso
transmitte o nome ao que está distante. da cabeça. A cabeça, que estava em
É por isso que Bócca se exprime de cima, no devorar a outra , que estava
modo duvidoso : Credo che sia. debaixo , fazia com os dentes aquelle
(62 ) Più là con Ganellone e Tribal rumor, que faz aquelle, que devora o
dello. Não concordo, que più là queira pão esfomeadamente . Isto é bellissimo
dizer muito mais em baixo para o cen de engenho !
tro, e que por conseguinte sejam mais (66 ) Così 'l sovran li denti all'altro
punidos, como entendem Bianchi, e pose. Là ve 'l cervel s'aggiunge colla
Tomasêo . Parece claro que, tendo nuca. Assim aquelle, que tinha a cabe
dito Bocca pouco antes : Tui hai dallato ça em cima da outra, ferrou os dentes
( tu tens ao lado) , o adverbio più là n'esta, no logar precisamente onde o
( mais alem) se refira á dallato; logo, cerebro se une com a nuca . Isto não
mais alem do teu lado . Ora, Dante , que quer dizer, que fosse esta a primeira
descia para o centro, tinha a face para vez que Ugolino ferrava os dentes na
este , e o seu flanco olhava ao gyro em nuca de Roggero; quer dizer, que Ugo
torno . lino, vendo approximar -se Dante, levan
Ganellone. Gano ou Ganellão Magan tou a cabeça , para saber quem vinha,
zese foi aquelle que, de combinação e assim suspendeu um instante a sua
com o rei mouro, desviou, por traição, horrivel operação; mas depois conti
a Carlos Magno de voltar atraz, para nuou a devoração cruel.
defender a sua retaguarda assaltada (67 ) Non altrimenti Tideo si rose .
por aquelle Rei, quando o intrepido Tydeo, e Menalippo, combatendo um
Orlando tocou tão fortemente a sua com o outro junto de Thebas, feriram
trombeta . se ambos. Mas Menalippo morreu, e
(63 ) Noi eravam partiti già da ello. Tideo sobreviveu . Então Tideo fez tra
Haviam já partido para o centro; mas zer a si a cabeça de seu rival, e come
permaneciam ainda no repartimento, çou a roêl - a com toda a furia da raiva .

37.
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXIII

O peccador, que no fim do canto precedente disse Dante haver encontrado


roendo com furor a nuca de outro, era o Conde Ugolino dos Gerardeschis de Pisa,
e senhor de Pisa : o outro era Roggero dos Ubaldinis, tambem de Pisa, e seu Arce
bispo. Estes dous homens foram por algum tempo amigos politicos , e depois rom
peram a mutua alliança. Mas para melhor se comprehender o enredo da scena tra
gica, que o Poeta introduz episodicamente n’este canto, é necessario condensar,
e esclarecer os factos, que precederam, e acompanharam a horrenda catastrophe.
Tomarei por fonte, e guia, de par com outros historiadores, G. Villani, que, sobre
ser comtemporaneo, passa pelo mais veridico, e severo de todos.
Diz elle : « O Conde Ugolino, de accordo com os Florentinos, com os Sanezes, e
com outros caudilhos Toscanos, expulsou de Pisa, em janeiro de 1274, todos os Gi
bellinos, e d'ella se fez senhor com os Guelphos ( Hist., VII , 98 ). Depois, no mez de
maio de 1275 , foi elle por sua vez expellido de Pisa com seus sequazes, (ibid ., VII ) ,
até que os Pisanos, desbaratados pelos Florentinos pouco alem de Pontedera, resta
beleceram em Pisa o dito Ugolino com todos os seus expatriados Guelphos (ibid.,
vi). Mas pelos annos de Christo 1288, correndo o mez de julho, surgiram grandes
divisões nos animos por causa do supremo governo da republica ( signoria ); sendo
chefe de uma das parcialidades Giudice Nino de Gallura dos Viscontis, de parceria
com alguns Guelphos : chefe de outra parcialidade era o Arcebispo Roggero com
os Lanfranchis, Gualandis, Simondis, e outras familias Gibellinas. Ugolino, em o in
tuito de empolgar o supremo governo, colligou-se com o Arcebispo, e trahiu Giudice
Nino, sem attender, que era seu neto, filho de sua filha, e logo ordenaram, que fosse
expulso de Pisa com seus adherentes, e preso em pessoa . Giudice Nino, avisado da
conspiração, e não tendo forças para suffocal- a, saíu ás occultas da cidade para o
seu castello de Calsi, e logo fez pacto de alliança com os Florentinos, e os Luche
ses para debellar os Pisanos. Note - se, que Ugolino, para melhor disfarçar a sua trai
ção ao neto, ordenada que fosse a destituição, e captura d'este, partiu emcontinenti
para sua casa de campo, quasi castello na magnificencia, e fortidão, e que se cha
mava Seltimo, d'onde voltou, apenas soube da expulsão de Giudice Nino, e foi
acclamado pelos Pisões governador da Republica no meio de grande solemnidade ,
e alegria.
« Mas pouco desfructou, continúa Villani, as delicias do mando ; porque Deus, no
designio de castigar suas traições, e crimes, lhe tornou adversa a fortuna. Com
effeito, muitas eram suas traições, e crimes. Quanto aos crimes, eram - lhe imputados :
1.', o envenenamento do Conde Anselmo de Capraia, filho de sua irmā, do qual
580 O INFERNO

tinha grande inveja por sua popularidade em Pisa, e pelo receio de o privar do
exercicio do poder publico ; 2.º, o assassinato de um sobrinho do Arcebispo Roggero,
que disputava a outro sobrinho seu a mão de uma rica herdeira; e quanto ás trai
ções á patria, contam-se : 1.“, a que praticou a 6 de agosto de 1284 no acto da ba
talha de Meloria, conservando de proposito inactiva a terça parte da armada ; o que
occasionou o triumpho dos inimigos ; 2.", a de ter provocado tumultos favoraveis ao
partido guelpho ; 3.", de ter entregado por dinheiro a Florença, e á Luca, de com
binação com o Arcebispo, os castellos de Ripafrata, de Vernia, e de Anciano; dis
pondo de outros a titulo de dote ás suas filhas, ou sob outro titulo . A ira de Deus,
portanto, repete Villani, não tardou de caír sobre o scelerado que, assim como de
concerto com o Arcebispo havia trahido, e expulsado seu neto Giudice Nino, da
mesma sorte viu de repente os seus novos alliados excitar contra si o povo , que em
grande furor se dirigiu tumultuariamente ao seu palacio, tendo á sua frente o Arce
bispo de cruz alçada, os Lanfranchis, os Gualandis, os Simondis, que todos a una
voce , accusando-o de trahir a patria, o fizeram prender com seus dous filhos, e dous
netos, filhos de seu filho Guelpho ; sendo mortos no conflicto um seu filho bastardo,
e um neto de nome Henrique. Colhidos assim á mão, foram mettidos na torre
Muda.
« Aqui temos pois o traidor pelo traidor trahido ! E così fu il traditore dal tradi
tore tradito . Está entendido que a parcialidade guelpha foi completamente abatida,
e exaltada a facção gibellina ( ibid ., VII, 121, 128). Os Pisanos, em 1289, elegeram por
seu capitão de guerra o Conde Guido de Montefeltro, dando-lhe grande jurisdicção,
e poder. Chamado a Pisa lá dos confins d'Asti, logo que chegou, achando presos o
Conde Ugolino, e seus filhos, e netos, mandou trancar a porta da torre, e porque o
povo não duvidasse, lançou as chaves no rio Arno, a fim de que fosse vedada aos
presos toda a alimentação ! ( ibid ).»
Em face d'estes factos historicos, passados sob os olhos do proprio Dante, não
podia elle pôr em duvida que Ugolino houvesse trahido a patria, e por isso
o metteu em Antenora entre os traidores da patria. Não sirva de argumento
contrario o ter o Poeta, ao exprobrar a Pisa a morte cruel de Ugolino, se mostrado
como duvidoso da criminalidade d'este. O Poeta não pareceu retrahir o braço, senão
para vibrar golpe mais profundo. Disse calculadamente que, si era certo que Ugo
lino havia entregado os castellos da patria aos inimigos d'ella, não era isso razão
para que os filhos, que eram innocentes, fossem condemnados á mesma pena tão
barbara. Dante pois não põe em duvida a existencia do crime . Não parece atte
nual-o, senão para realçar a innocencia dos filhos, e carregar de negras cores a ini
quidade de Pisa que, qual outra Thebas, onde as furias arrastaram Athamante a
matar seus filhos innocentes, se deixou com tal excesso dominar do furor da vin
gança, que, na condemnação de Ugolino, preteriu todas as formas regulares do pro
cesso, ao ponto de não discriminar a innocencia dos filhos da culpabilidade do pae,
e d’ahi o serem irremissivelmente sujeitos a padecer a mesma pena cruel : acto esse
tão atroz, que tornou os Pisznos indignos do nome italiano!
Alguns interpretes superficiaes têem notado com ares de grande novidade, que
Dante errou quando disse, que quatro, e não dous somente, eram os filhos de
Ugolino, e que os outros dous eram netos. Tão facil é a arte da critica, quanto
difficil é ser critico verdadeiro ! Quem não sabe, que na accepção vulgar se
chamam filhos tambem os netos ? Demais, Dante, escrevendo no meio de contem
poraneos, que conheciam perfeitamente o numero do filhos, e dos netos de Ugoli
no, teve, ainda assim, a precaução, não só de declarar os nomes dos dous filhos
de Ugolino, como os nomes dos dous netos, que morreram com elle na prisão.
Outro critico sem criterio tambem houve, que disse ter havido equivoco em Dante
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXIII 581

em affirmar, que dous foram os netos de Ugolino, que morreram com elle, Brigata;
e Anselmucio, quando morreu mais um, de nome Henrique ! Mas já o leitor viu das
transcripções historicas de Villani, que esse Henrique morreu com effeito, não na
prisão, mas na occasião do assalto popular ao palacio de Ugolino. Em summa,
outros interpretes, aliás respeitaveis, inclinam - se a crer, que Ugolino fôra innocente,
e que só por inveja, e ciume foi atraiçoado pelo Arcebispo ! É na verdade estranha
vel, que eruditos do pulso de Pogiali, e Lombardi mantivessem duvidas a respeito dos
crimes do Conde Ugolino ! Isto só se explica por não serem ainda conhecidos no
tempo d'elles os documentos historicos, que ultimamente foram exhumados dos
archivos, e bibliothecas da Italia, e até da Allemanha.
Quanto ao Arcebispo Roggero dá -se a dupla circumstancia de ter trahido a pa
tria, e o amigo Ugolino, e, segundo Dante, é maior delicto trahir a amisade, do que
trahir a patria : mas porque colloca o Arcebispo na Antenora entre os traidores da
patria, e não na Ptolomea entre os traidores dos amigos ? A razão é porque Dante
entende, que entre homens politicos, mormente si são máos, como foram Ugolino,
e Roggero, não se dá aquella amisade sincera, e virtuosa que o Poeta prefere ao
amor da patria; visto que a traição entre taes amigos não é delicto tão grave como
a traição á patria : portanto o delicto mais grave do Arcebispo foi a traição á patria,
aconselhando, ou concordando em que Ugolino entregasse os tres castellos de Pisa,
sua patria, a Luca, e a Florença. Por este motivo é o Arcebispo mettido na Anteno
ra , e não na Ptolemea, bem que não deixe de ser punido pela traição aquella tal ou
qual amisade , que o ligára a Ugolino; por isso, alem do gêlo commum, em que são
atormentados os traidores da patria, foi o Arcebispo posto á mercê de Ugolino, que
lhe devora a nuca de modo horrivelmente doloroso.
Ha tambem outros eruditos, que consideram innocente o Arcebispo Roggero, e
criminoso somente o Conde Ugolino. O Conde de Troia, por exemplo, diz no seu
Veltro Allegorico (pag. 29) o seguinte : « Unico, entre os conterraneos, Dante foi o
primeiro, que accusou o Arcebispo Roggero de ter dado o impio conselho de fazer
morrer á fome o infeliz Ugolino, e seus filhos; mas nenhum outro historiador cuevo,
Guelpho, ou Gibellino lançou tal atrocidade á conta do Arcebispo. Todos affirmam
ter sido isso obra dos Pisanos. Um d'esses historiadores disse a verdade, quando
affirmou que o responsavel de tudo foi Guido de Montefeltro, em cujas mãos estavam
as redeas do governo de Pisa . Occorre que o Arcebispo não era natural de Pisa, mas
sim de Mugello. Quando era podestá, ou governador supremo, podia mandar matar
Ugolino, e não o fez. Ao inverso do Bispo de Arezzo, demittiu-se do exercicio da go
vernação publica. Si Roggero pois trahiu Ugolino, trahiu o traidor da propria patria,
e não a sua patria, que era Mugello, como já ponderei. Não obstante, entre os
traidores da patria figura o Arcebispo na Antenora do auctor da Divina Comedia ,
ao qual seguiu, sem mais exame , a innumeravel turba dos commentadores ; não
advertindo, que Nicoláo IV, novo Pontifice, successor de Honorio IV, mandando ir
a Roma o Arcebispo, para defender -se da morte de Ugolino, e de seus filhos, não
The resultou d'isso condemnação, ou censura alguma, e continuou a reger a sua
diocese por mais de tres annos».
Todas estas asserções do Conde de Troia são evidentemente falsas perante os
factos historicos até aqui por mim adduzidos, como perante outros, que passarei a
adduzir. Primeiro que tudo, porém, começo por dizer, que Dante não profere em
todo o drama horrivel, que descreve, uma só palavra de indignação contra o Arce
bispo, nem tam pouco deixa escapar cousa, que faça crer ter sido elle o auctor do
impio conselho de matar de morte tão cruel os miseros prisioneiros. Não importa
que o Poeta ponha na bocca de Ugolino as mais acerbas accusações contra o Arce
bispo, como auctor de todos os seus males ; mas o certo é que o Poeta, ao acabar
582 O INFERNO

de ouvil-as, em vez de proromper em imprecações contra a memoria do Arcebispo ,


vasa toda a sua bilis sobre Pisa ! Affirmar, pois, que Dante foi o unico dos contem
poraneos, que accusou o Arcebispo de auctor de tanta barbaridade, é ignorar de
todo o ponto a historia patria ! Alem do testemunho de Villani, que de per si vale
todos, temos o testemunho de outro contemporaneo egualmente auctorisado, o de
Boccaccio, que assim se exprime : « N’este tempo (fala como coevo) , a Communa
de Pisa elegeu por seu Capitão, e Senhor, o Conde Guido Montefeltro. O Arcebispo
Roggero dos Ubaldinis, aconselhou a este, e á Communa, que fizessem aferrolhar
na prisão da torre Muda o Conde Ugolino .»
Butti, natural de Pisa, e que explicava a Divina Comedia em cadeira publica,
em 1385, não arguiu nunca o Poeta de ter, na minima circumstancia, alterado a
narração historica a respeito da morte de Ugolino, da edade juvenil de seus filhos,
etc. E quanto á parte, que em todo esse horroroso drama teve o Arcebispo, Butti
declara positivamente que o Arcebispo Roggero foi o ordenador, e machinador da
obra contra o Conde Ugolino : L'Arcivesco Ruggieri fu ordinattore, e trattatore
del trattato contra il Conte. Boccaccio, e Butti seguem litteralmente a narração
historica de Villani, e todos tres eram contemporaneos dos acontecimentos, de que
fala o Poeta, não esquecendo que d’este fôra amigo intimo o referido Villani.
Cesar Balbo, que passa com justa razão pelo mais correcto dos biographos de
Dante , depois de descrever todas as circumstancias da prisão, e morte de Ugolino,
e de seus filhos , conclue : « Ficou, portanto, o Arcebispo Roggero, primando como
chefe da Communa de Pisa com o titulo de podestá por cinco mezes ; passados os
quaes, resignou em Gualtieri de Branforte o mando supremo, que sem demora caiu
nas mãos do Conde Guido de Montefeltro, o qual , apenas chegou a Pisa , ordenou
com furia de banido, em 12 de março de 1289, que fosse trancada a porta da torre,
e lançadas no rio Arno as chaves da horrenda prisão, dentro da qual jaziam , ha
nove mezes, o velho Ugolino, e seus jovens filhos, e netos, que por fim acabaram
de cruel e ignota morte pela fome .»
Donato Bocci, eruditissimo investigador das cousas, que se referem a Dante , e
ao seu tempo, diz : « Não ha duvidar, que o Conde Ugolino fosse culpado de graves
traições, não só á patria, e aos partidos em que militou, como aos seus proprios
consanguineos; assim tambem não ha duvidar, que por todos esses crimes mere
cessem o justo castigo, que lhe inflingiram os seus concidadãos. Todavia, Dante Al
lighieri soube excitar a compaixão em favor do traidor, já pondo - lhe ao lado outro
traidor mais censuravel, que elle , o Arcebispo Roggero, já expondo em estylo in
imitavel a scena tragica, em que figura um velho pae, que morre de fome, e que,
antes de morrer, vê morrer egualmente de fome seus filhos, e netos, sem os poder
salvar ! »
Bennassutti, tão virtuoso sacerdote , quanto illustrado interprete de Dante , resu
mindo habilmente todas as particularidades historicas do horroroso drama da torre
Muda, é mais explicito ainda a respeito da parte principalissima , que o Arcebispo
Roggero teve no tragico fim de Ugolino.
« A noticia de tão horrorosos flagicios chegou a Roma ; o Papa fel- o immediata
mente citar a sua presença, para ser ouvido, e processado. Não ousou comparecer,
e foi condemnado por contumaz !»
Eis-aqui destruidas pela base todas as asserções do illustre Conde de Troia ! E
porque não fique sem resposta outra, em que sustenta, que o Arcebispo Roggero
era natural de Mugello, e não de Pisa , dir-lhe-hei que ainda n'isto se equivoca ;
porquanto o citado Donato Bocci assegura, no seu Diccionario historico universal,
que «o Arcebispo Roggero foi dos Ubaldinis de Pila, e teve o poder archiepiscopal
da sua patria ».
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXIII 583

Seria absolutamente impossivel, que Dante condemnasse, como traidor da pa


tria, em Antenora, um homem, que houvesse trahido uma patria não sua ! É pro
vavel, que o equivoco do Conde de Troia proviesse do facto de ser a familia Ubal
dini originaria de Pila, que era um pequeno castello sobre o monte Imario, em
Mugello ; mas é sabido que um importante ramo d'essa familia, muitos annos,
mesmo antes do nascimento do Arcebispo, veiu estabelecer-se em Pisa ; d'ahi vem
a denominação dos Ubaldinis de Pisa, para distinguirem-se dos outros ramos.
Este celebre episodio, em que o sublime, o atroz, o amor, e o odio , travam-se
de concerto, é, na phrase de Cesar Balbo, um grito de guerra contra os desmandos
da epocha, e eu acrescentarei, que é um brado , mais de indignação, que de com
paixão, como pretendem alguns. Não podia certamente ser o fim do Poeta provo
car sentimentos de piedade em favor de um reprobo, que elle condemnou na An
tenora entre os traidores da patria, e não na Caina, porque é maior peccado trahir
a patria , que os parentes. Tam pouco teve elle por fim lastimar a morte dos filhos
de Ugolino, embora innocentes ; pois não tinham nada que ver com o Sacro Poema,
em o qual não entram de concomitancia, senão por acaso, unicamente para fazer
sobresair cada vez mais a odiosidade dos flagicios de Pisa, e ao mesmo tempo
tornar perenne o horror ás discordias civis, parto abominavel das ambições trucu
culentas das parcialidades politicas, sob cujo damnoso influxo a justiça se havia
tornado iniqua, devassa, e cruel. O Poeta da rectidão não podia deixar de fulminar
com todo o azedume da indignação tão clamorosas infracções das leis divinas, e
humanas.
Sob outro aspecto, o episodio de Ugolino, como o de Francisca de Rimini,
prestam-se a revelar -nos os prodigios do genio creador de Dante Allighieri ; pres
tam-se a servir de eterno pregão da gloria do seu nome entre todos os povos civi
lisados, onde o culto do verdadeiro bello nas artes do gosto é uma religião sensata,
e não uma idolatria tresloucada, delirante, etc. Um canto só da Divina Comedia,
vale mais em solidez, profundidade, e invenção do que volumes, e volumes, que
aturdem hoje no mundo litterario o cerebro das turbas, que provavelmente os não
avaliam , senão pelo estalo, que fazem .
Emfim ! Faltam -me as tintas, e o pincel para reproduzir todas as bellezas d'este
inimitavel episodio !
Rematarei o quadro com estas palavras do grande J. B. Giuliani : « Todos, qual
mais, qual menos, celebram este estupendo episodio, em que foram desvendadas
ao mundo as angustias extremas do infeliz Conde Ugolino, e todos mostram corn
prehendel-o pelo sentimento ; mas pouquissimos são aquelles, que sabem dar a si
mesmos a razão da primorosa excellencia de uma composição, que nem a inveja
de seis seculos tem achado nada que emendar, muito menos imital- a ! O mais que
alguem já ousou dizer foi, que este episodio de Ugolino, sem duvida admiravel,
não era a obra prima de Dante ! »
CANTO XXXIII

N'este canto narra a historia tragica da morte do Conde Ugolino, e de seus filhos e netos: Tracta em seguida
da terceira esphera, chamada Ptoloméa , na qual são punidos com horriveis tormentos os traidores dos
amigos: Encontra entre esses traidores fr. Alberico dos Manfredos.

Do fero pasto aquelle peccador a bocca levantou (1) ensanguentada,


limpando-a nos cabellos da cabeça, que estava roendo pela nuca.
Depois começou a dizer : «Queres tu que eu renove uma dor des
esperada , (2) que me rasga o coração, só em pensal-a, antes de mani
festar a sua causa .
«Mas, si as minhas palavras devem ser fructiferas de infamia para
o traidor, que devoro, (3) me verás falar, e chorar ao mesmo tempo .
« Não sei quem tu sejas, nem por que modo desceste a esta lo
brega morada ; mas , quando te ouço, me pareces verdadeiramente um
florentino. (4 )
« Deves saber, que fui o Conde Ugolino, e este o Arcebispo Rog
gero : agora te direi o porque sou para com elle tal vizinho. (5)
«Não é necessario, que te refira como, por confiar na sua ami
zade, fui preso, e depois morto por effeito de suas perversas urdidu
ras . (6 )
«Mas o que não podes ter sabido é quanto a minha morte foi
cruel : ouvirás, e saberás, si d'elle me não queixo com razão. (5)
« Uma pequena fresta dentro da Muda, (8) que por minha causa se
ficou chamando torre da fome, e na qual convem que algum outro
seja ainda encerrado, 9) me havia permittido ver pelo seu orificio o
curso de muitas luas, quando tive aquelle máo sonho, que me rasgou
ovéo do futuro . (10)
«Na sinistra visão se me afigurava, que este, que estou roendo,
586 O INFERNO

era chefe, e senhor de uma turba de gente, que dava caça ao lobo, e
aos lobinhos (11) nos contornos do monte, que veda aos Pisanos ver a
cidade de Luca . ( 12 )
« Afigurava -se-me tambem , que seguiam na vanguarda Gualandi,
Sismondi, e Lafranchi, escoltados de cadellas esfaimadas, rapidas, e
monteiras.
« Após uma breve correria, o pae, e os filhos me pareciam desfal
lecidos , e como que eu via, que dentes aguçados lhes dilaceravam as
ilhargas .
« Quando despertei antes de romper o dia, (13) ouvi, que meus
filhos, que jaziam ao meu lado, choravam no somno, e sonhando pe
diam pão . ( 14)
« Fôras bem cruel, si não te doêra na alma o pensar no grande
mal, que se annunciava ao meu coração ; e si tamanha desventura
não vale tuas lagrimas: por qual outra causa costumas tu vertel-as ? (15 )
« Eram já meus filhos acordados, e passava da hora em que de
costume se nos trazia a comida, ( 16) e cada um d'elles, sob a impressão
de sonho similhante ao meu, se mostrava duvidoso. (17)
« Eis que ouvi cravar (18) a porta inferior da horrivel torre , e sem
gesto de surpreza olhei (19) silencioso para o rosto de meus filhos. (30)
« Eu não chorava porque tinha o coração petrificado pela dor : (21)
elles porém se desfaziam em lagrimas, (22) e o meu Anselmosinho me
disse : « Que tens tu , pae, que nos olhas assim ? » (23)
«Mas nem esta enternecida pergunta me arrancou uma lagrima ,
nem falei por todo aquelle dia, (24) nem por toda a noite seguinte, até
que outro sol brilhou no mundo . (25)
« Quando um pequeno raio de luz penetrou no carcere angustioso,
e que pude ver no rosto de meus filhos estampada a minha propria
imagem , n'um phrenesi de dor, mordi ambas as mãos ; (26; e elles,
crendo que eu o fizesse por excesso de fome, ergueram-se de subito ,
e disseram:;«Ó pae ! ser-nos-ha menos doloroso, que nos devores a nós,
do que a ti ! Tu nos vestiste d'estas miseras carnes ; despoja-nos
d'ellas, (27) e com ellas te alimenta , e vive para nosso amparo ! »
« Com esse ' rasgo de piedade extrema procurei dissimular o meu
desespero, (28) a fim de lhes não aggravar a consternação : n’aquelle
dia, e no seguinte nos conservamos mudos : (29) ah, terra obdurada ,
porque não te abriste para tragar-nos vivos ? (30)
« Depois que chegamos ao quarto dia , Gaddo atirou-se-me aos pés
dizendo : (31 ) « Meu pae , porque me não soccorres? » (32)
« Ali exhalou o ultimo suspiro ; e como tu me vês agora, (33) assim
eu os vi caír um após outro , entre o quinto, e o sexto dia . (34)
«Já cego pela dor, e pela fraqueza, arrastei -me ás apalpadellas por
CANTO XXXIII 587

sobre seus cadaveres, chamando- os , durante dous dias , depois de


mortos : (35 ) mas por fim poude mais a fome que a dor ! »
Concluida esta funebre narração, Ugolino, esgazeando os olhos,
afferrou de novo a misera cabeça com dentes tão fortes, que penetra
ram no osso , como si foram dentes de cão ! (36)
Ah Pisa, vituperio dos povos (37) do bello paiz, onde o sim sôa ! (38)
Pois que os teus vizinhos se mostram tardios em punir teus crimes, ( 39)
movam-se de seus logares a Capraia , e a Gorgona, (40) e se colloquem
como dique inconcusso na foz do Arno, de modo que as suas aguas ,
retrocedendo com impeto, alaguem , e submirjam todos os teus habi
tantes !
Si a fama arguia o Conde Ugolino (41) de haver entregado teus
castellos ao inimigo, não devias ter votado seus filhos a morte tão
cruel .
Sua edade juvenil, (42) ó nova Thebas, (43) era o mais seguro penhor
da innocencia de Ugucião , e de Brigata , e dos outros dous menciona
dos n'este canto. (44)
Proseguimos até o logar, 145) onde o gêlo aperta duramente os ou
tros peccadores, (46) que estam com o rosto, não voltados para baixo ,
mas para cima . (47)
O mesmo pranto não lhes permitte chorar; (48 ) porque o gêlo lhes
condensa as lagrimas apenas borbulham , e a dor, que n’ellas busca
um lenitivo, encontrando os olhos obstruidos , reflue para dentro, e
reduplica o supplicio . (49)
As primeiras lagrimas congeladas impedem as segundas , e, como
viseira de crystal , enchem toda a cavidade dos olhos .
E si bem que , pelo excesso do frio, o meu rosto houvesse perdido
toda a sensação, como carne callosa, comtudo me parecia sentir na
face algum sopro de vento ; (50) pelo que perguntei a Virgilio : « Mestre,
quem move este vento ? Não é este abysmo privado da actividade do
sol ? »> (51 )
« Dentro em pouco , respondeu-me, chegarás a um logar, onde com
os teus proprios olhos conhecerás a causa do phenomeno, que te ma
ravilha . ) ( 52)
E um dos infelizes do tanque de gêlo gritou para nós : « O almas
crueis, (53)) que fostes condemnadas a vir penar n’este ultimo circulo
do Inferno, arrancae-me dos olhos este duro véo, (54) a fim de que eu
desafogue um pouco a grande dor, que me inunda o coração , antes
que o frio gele as novas lagrimas». (55)
E eu lhe disse: « Si queres que te soccorra, declara quem és ;
e depois, si não te desembaraço os olhos, seja eu lançado ao fundo
do gêlo entre os mais iniquos traidores» . (56)
588 O INFERNO

Então respondeu : « Eu sou fr. Alberico, aquelle tão famoso pelas


fructas do máo horto ; e agora recebo aqui tamaras por figo .» (57)
«Oh, lhe disse eu, pois tão depressa morreste ? » (58) E me respondeu :
« Não sei como meu corpo esteja no mundo. (59) Tal vantagem tem
esta Ptolomea (60) sobre os outros circulos do Inferno, que muitas
vezes a alma é aqui precipitada, (61) antes que Átropos lhe corte o fio
da vida .
« E para que mais depressa me desobstruas os olhos d'estas vitreas
lagrimas, saibas que, apenas uma alma commette uma acção infame,
qual a que eu commetti, o seu corpo é arrebatado por um demonio,
que d'ahi por diante o governa por tanto tempo, quanto devera estar
unido á alma . (62)
« Ella cáe dentro d'esta cisterna, e talvez no mundo ainda appareça
o corpo de uma , que se estorce de frio aqui atraz de mim.
«Tu a deves conhecer, si vens agora de la : (63) é Senhor Branca
d'Oria, e já são passados muitos annos, que a sua alma foi clausurada
n'esta Ptolomea. )
Eu lhe disse : «Creio que tu me enganas ; pois que Branca d'Oria
não morreu ainda : (64) come, e bebe, e dorme, e veste roupas finas . » (65)
A sombra replicou : «A fossa de Malebranche, (66) onde ferve o pez
tenaz, não tinha ainda recebido Miguel Zanche, (67) quando a alma de
Branca d'Oria deixou em seu logar, dentro de seu corpo, um diabo,
e outro dentro do corpo de um parente d'aquelle, que se lhe associá
no crime da traição . (68)
«Mas estende tu agora a mão, e me abras os olhos» . E eu lh’os
não abri ; e o ser villão para com aquelle scelerado foi acto de corte
zia. (69)
Ah Genovezes, homens de costumes diversos de todos os outros,
e cheios de todos os vicios, porque não sois exterminados do mun
do ? ( 70 )
Porquanto, com o peior espirito da Romanha (71) encontrei um
vosso concidadão, que, em castigo da sua obra infame, (72) a sua alma
está no banho gelado do Cocyto, ao passo que o seu corpo apparece
ainda vivo na terra !
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII

( 1 ) Lo bocca sollevò dal fiero pasto. deixa muito mais a pensar do que o que
Ugolino, interpellado por Dante sobre a diz, especialmente quando o silencio
causa do furor com que devorava a é bello ( quando il tacere é bello ).
cabeça de Roggero, interrompeu por (2) Poi cominciò: tu vuoi ch' io rin
um instante a sua horrivel operação, novelli Disperato dolor ... Renovar uma
para averiguar quem fosse a pessoa que dor desesperada lembra aquillo de
o apostrophava . Deve notar-se que a Virgilio :
cabeça, continuamente roida, continua Infandum , regina, jubes renovare dolorem .
mente se refazia, conservando sempre
o ser primitivo, segundo outros exem A narração de um caso atroz, que
plos, que temos visto n’esta mysteriosa profundamente fere o coração, não
viagem. Alimpou o sangue da bocca em pode ser feita, sem que o mesmo cora
os cabellos, para poder falar mais des ção se resinta dos crueis transes, que
embaraçadamente . lhe produziu. O proprio Dante, ao falar
E porque roia a cabeça, e não outra da selva selvagem em que andou ex
parte do corpo ? Por duas razões, uma traviado, disse, que a lembrança d'ella
litteral, outra allegorica: a 1.", porque ainda lhe renovava o terror no pensa
só a cabeça estava fóra do gêlo ; a 2.", mento : Che nel pensier rinnova la pau
porque a cabeça é o logar, onde resi ra .

dem os máos pensamentos, e sendo ella ( 3) Ma se le mie parole esser den se


roida continuamente, continuamente me Che frutti infamia al traditor, ch ' i'
avivava na mente do Arcebispo a me rodo. Mas em consideração á promessa,
moria dos seus delictos, filhos d'aquelles que me fazes, de infamar no doce mun
máos pensamentos ; vindo assim a ser do o traidor, que eu devoro, me resolvo
vir- lhe tão cruel memoria de verme a falar, bem certo de não poder conter
roedor da consciencia , verme, que não as lagrimas, que me sairão com as pa
morre, diz o Evangelho. lavras; mas em summa o desejo da vin
Il fiero pasto corresponde ao que Es gança sobrepuja em mim o martyrio da
tacio disse de Tydeo « dulcique nefandus dolorosa narração, que vou fazer -te :
immoritur tabo; assim como a cabeça Parlare e lagrimar vedrai insieme. Fa
roida pela nuca desperta-nos o pensa lar, e chorar me verás ao mesmo tem
mento Menalippo : effracti perfusum tabe po Quem não vê n'este verso uma ex
cerebri ( Stacio, Theb ., ix, 18, VIII, 17). pressão energica da furiosa dor, que di
Certamente Estacio é aqui o melhor, e lacerava o coração do desventurado
mais seguro interprete de Dante, que pae ! Tambem Francisca já havia ma
590 O INFERNO

nifestado suas lastimosas queixas com sejas de tudo isto, saberás si elle me
estas mesmas palavras : Farò come co não offendeu do modo mais atroz..
lui che piange e dice ( canto v, 120 ) . Cada palavra é tão significativa, e pro
Mas a diversa situação, e indole dos pria do caso descripto, que explical -a é
dous condemnados dão um tom diver tirar-lhe toda a efficacia . Alem do cunho,
so ás palavras aliás identicas : Francisca que a narração recebe da historia em
desafia a compaixão, Ugolino produz si , recebe do coração de Dante uma força
horror ! Mas, si as minhas palavras fru nova, prepotente, e encantadora !
ctiferas de infamia . Fructiferas, parece ( 8 ) Breve pertugio dentro dalla mu
me expressão mais adaptada para si da. Breve pertugio, uma pequena fresta
gnificar authenticamente o conceito do ( fessura: Purg ., XVIII, 114), que se abria
Poeta , o qual no Convito havia já es talvez na abobada da tenebrosa torre,
cripto : « As palavras, que são como acolhendo os reflexos periodicos da
semente de operação, devem ser muito lua , havia mostrado já, que muitos
discretamente usadas, não só para que mezes o infeliz conde Ugolino se acha
va
sejam bem recebidas, e fructiferas, mas no carcere, isto é, desde agosto
para que de sua parte não haja defeito de 1288 até março de 1289, quando viu
de esterilidade ». no sonho (Par., XII , 65 ) o tremendo sup
(4 ) ... ma Fiorentino Mi sembri vera plicio, porque elle, e seus filhos haviam
mente quand'i't'odo. Ugolino tinha ouvi de passar. E contava os mezes pelas lu
do a fala de Dante, quando este o apos nações, por serem estas mais faceis á
trophou no fim do canto precedente . memoria, e por ter experimentado
Já tambem Farinata no canto x havia n'aquellas longas noites o horror da
conhecido, que Dante era Florentino, prisão. Allighieri já tinha feito prognos
pela linguagem ; dizendo-lhe : La tua lo ticar o seu proprio exilio dentro de
quela ti fa manifesto. cincoenta mezes; contando- os pelo cur
( 5 ) Or ti dirò perch ' io son tal vici so periodico da lua : Ma non cinquanta
no. « Agora te direi porque sou para com volte fia raccesa ( Inf., x, 79) .
elle vizinho tão cruel, isto é, o motivo Muda, é aquella estancia escura, onde
por que com tanto furor lhe devoro a se mettem os passaros no tempo em
nuca . que devem mudar as pennas . Diz o au
( 6) Fidandomi di lui, io fossi preso . ctorisado commentador Francisco Butti,
Como si dissesse : « Arrastado por seus natural de Pisa, que se chamava Muda
perfidos conselhos, pela confiança que a torre , que serviu de prisão a Ugolino,
n'elle depositava, entreguei os castellos; porque n'ella se recolhiam as aguias da
mas depois, para salvar -se a si do furor Republica, para mudar as pennas. Vil
do povo , o excitou contra mim ; tudo lani havia dito já, que essa mesma es
isso porém não é mister, que te eu diga ; tancia ficou sendo chamada torre da
pois que a cousa se soube, e foi muito fome, depois de ter n'ella morrido de
reprovada pelo mundo universo : Dac fome Ugolino e seus filhos ( Hist., 23,
chè la cosa si seppe e forte fu biasimata 28 ) .
per l'universomundo.» ( 9) E in che conviene ancor ch ' altri
( 7 ) Però, quel che non puoi avere in si chiuda. Ugolino fazia este prognosti
teso, Cioè come la morte mia fu cruda, co em consideração ás luctas civis, que
Udirai, e saprai se m'ha offeso. « Dir dilaceravam a sua patria, e de que ne
te -hei somente aquillo, que ninguem cessariamente haviam de resultar vin .
te poderá ter dito , porque foram scenas ganças crueis, quaes o conduziram ao
horriveis, que se passaram no segredo fundo d'aquelle tenebroso carcere. Dan
do carcere, isto é, os transes crueis por te finge esta prophecia ; mas não é liçi
que passei antes da morte, que me to duvidar de que , quando elle a escre
infligiu este traidor : informado que veu, vinte e um annos depois da morte
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 591

de Ugolino, muitos criminosos, e muitos uma confusão (como é proprio dos so


innocentes teriam sido lançados na tor nhos ) de cousas passadas , e futuras. As
re da fome. cousas passadas são : 1.4, o motim , que
( 10) Che del futuro mi squarciò il ve fizeram os nobres, e o povo excitados
lame. Acontece , não raro, não se sabe pelo Arcebispo, na occasião do mallo
como nem porque temos presentimen grado assalto á casa do dito Ugolino ;
tos de qualquer sinistro, que nos ha de 2.a, a tentativa, que este fez para sal
acontecer, e esses presentimentos, por var-se d'aquelle motim furioso, duran
via de regra, se dam em sonho. É ver. te o qual lhe foi morto o filho ou neto
dade que, bem investigadas as cousas, Henrique (Arrigo ); e 3. , a captura de
dentro ou fóra de nós, encontramos toda a familia, exposta a longos pade
causas naturaes, que têem alguma rela cimentos do carcere. As cousas futuras,
ção com essas mesmas cousas, que es são a barbara morte imminente d'elle e
tam para acontecer. Graves auctores dos filhos, etc.
occupam-se dos presentimentos, mos ( 13) Quando fui desto innanzi la di
trando a veracidade, e confirmação de mane. Quando Ugolino teve o máo so
muitos. nho, ou tristissima visão, era quasi ma
( 11 ) Questi pareva a me maestro e don nhã (presso al mattino) na hora exacta
no, Cacciando il lupo e i lupicini ... Ugo mente em que se sonha a verdade : si
lino sonha ter visto uma caçada de lobos. sogna del ver ( Inf., xxvi, 7 ), Dianzi, nell'
O chefe, e senhor dos caçadores era o alba che precede al giorno, Quando l '
Arcebispo Roggero : seus companheiros, anima tua dentro dormia (Purg., ix, 52 ) .
mandados na vanguarda, pertenciam as Antes, na aurora, que precede ao dia,
tres poderosas familias dos Gualandis, quando tua alma dormia dentro de teu
Sismondis, e Lanfranchis. Davam caça corpo.Dormitavit anima mea . ( Psalm ). E
ao lobo, e aos seus lobinhos, na direc tambem seus innocentes filhos tiveram
ção de Pisa a Luca, para o monte S. egual sonho antes de amanhecer; o que,
Giuliano, interposto ás duas cidades. É percebendo o desventurado pae, e pre
desnecessario dizer, que Ugolino figura vendo a realidade, antecipou com a idea
em si o lobo, nos filhos, e netos os lo o tormentoso resultado. D'aquelle pon
binhos, nas cadellas magras, e avidas o to começa a horrenda tragedia !
povo pisano: parte magro pela pobreza , ( 14) Pianger senti' fra 'l sonno i miei
parte avido de tumultos de que podesse figliuoli, Ch ' eran con meco, e dimandar
tirar proveito : figura tambem nas ca del pane. No sonho dos filhos via Ugo
dellas amestradas os nobres , dos quaes lino o seu proprio sonho ; mas melhor
eram chefes as familias menciona determinado, quanto ao genero de mor
das; e no monte vizinho a Luca o refu te, que se lhe presagiava, isto é, a fome,
gio, que elle com seus netos teriam indicada no pedir do pão. De ambos
procurado n'aquella cidade, para salvar estes sonhos concluia, portanto, que
se da perseguição pisana. era imminente a ultima catastrophe, e
( 12 ) In picciol corso mi pareano stan no modo presentido. Era, com effeito ,
chi. Continúa o sonho. O lobo, e os lo assombrosa a coincidencia de ver, que
binhos ( Lo padre e i figli) nos primei todos sonhavam , todos choravam, to
ros passos, que deram para refugiar - se dos pediam pão !
em Luca, enfraqueceram , e por isso fo ( 15 ) Ben se' crudel, se tu già non ti
ram alcançados pelas cadellas, isto é, duoli. É admiravel o sentimento d'esta
pelos sequazes furiosos, que os iam fe apostrophe de Ugolino a Dante !
rindo dos lados, antes de agarral-os de ( 16 ) Già eran desti, e l' ora s'appres
todo. Ugolino n'esta sonhada presa, que sava Che 'l cibo ne soleva essere addot .
as cadellas fazem do lobo, e dos lobi . to. Entre o despertar do somno, e a ho.
nhos, e no dilacerar das ilhargas, vê ra costumada da refeição, devia correr
592 O INFERNO

algum tempo : o Poeta deixa suppor que pedia a punição dos presos, assim
essa eventualidade, ou conjectura. Em como o fechar a porta com pregos era
tanto, em todo esse tempo, reinava si uma significação terrivel de desengano
lencio entre os prisioneiros, e veremos para os mesmos presos.
já o porque. Que scena tragica ! L'uscio di solto . D'aqui se vê que o
( 17) E per suo sogno ciascun dubita carcere, onde estavam os prisioneiros,
va . Eis a razão do silencio de todos : era em algum dos andares altos da torre,
é que todos pensavam no proprio so e que a porta que conduzia ao mesmo
nho fatal! Os sonhos infaustos dam carcere, era no pavimento baixo da
sempre o que pensar a todos; mas os prisão.
sonhos infaustos dos presos acham ( 19) ...ond ' io guardai. Acto natu
na propria desventura um fócco de mil ralissimo : olhou para os filhos para co
phantasias, e de mil espectros sinistros ! nhecer, que impressão havia n'elles cau
Cada um dos infelizes emmudecia para sado o forte bater dos prégos na porta ,
poupar uns aos outros maior dor ! e se tinham comprehendido o que aquil .
( 18) Ed io sentii chiavar l'uscio di lo queria dizer : todo esse gesto do in
sotto . Chiavar tem dous sentidos : fe . feliz pae foi acompanhado de profundo
char com chave, e fechar com prégo, silencio, porque a dor não lhe permittia
inchiodar, que é synonymo de spranga falar.
re, bater com força. Do inchiodar, te ( 20) Nel viso à miei figliuoi senza
mos exemplo no mesmo Dante ( Purg., far motto. É, com effeito, no rosto, que
VIII, ultimo terceto): se manifesta ao homem o estado inte
rior, ou a côr do coração ( che ľuomo
Che cotesta cortese opinione
Tifia chavala in mezzo della testa
dimostra lo stato dentro, ossia il colore
Con maggior chiovi, che d ' altrui sermone, del cuore: Conv ., 11 , 8) . O infeliz Ugoli .
no não podia chorar: tanto il dolore gli
Que esta cortez opinião, que tu tens da minha avea indurato il cuore ! A dor tinha - lhe
familia te será cravada na memoria (li fia chiavata ),
icon maggior chiovi), com melhores argumentos, feito de pedra o coração : nel cuore l'
que as narrações de outrem ( che d'altrui sermone) . avea fatto di pietra ( Purg ., xxxIII 74) .
Mas não posso pensar no angustioso
Qual pois dos dous sentidos se deve estado d'aquelle misero velho, de olhos
aqui adoptar: fechar com chave , ou fe. fixos, immovel, ante a perspectiva da
char com prego? Indubitavelmente o cruel sorte futura, sem se me despertar na
segundo : 1.", porque a porta da torre memoria outro espectaculo similhante,
já estava fechada com chave, como é o de Niobe, a quem no Purgatorio, c .
facillimo de crer, e por isso fica exclui XII, 37, o Poeta exclama :
da toda a idea de fechal- a com a chave ;
2.º, porque o ser ella fechada com cha. O Niobe, con che occhi dolenli
Vedeva io te segnata in su la strada
ve, dado que se possa suppor, não devia Tra selle e sette tuoi figliuoli spenti !
ser tomado como indicio certo de que
os prisioneiros seriam condemnados a Ó Niobe, com que olhos dolorosos não le via eu
morrer á fome, como por indicio certo delineada n'aquelle pavimento entre os teus sete fi.
Thos, e sete filhas mortas ! ,
o tomaram os presos mais velhos, e pre
cisamente porque o som do bater terrivel (21 ) Io non piangeva, sì dentro impie
dos martellos sobre os prégos os poz trai. O pranto é um desafogo da dor;
em alarma, e é isto o que o Poeta quer mas até esse refrigerio faltava n'aquelle
notar; 3.°, porque este verdadeiro sen momento á dor de Ugolino ! É proprio 1
tido dos prégos ( dei chiovi) não destroe de uma dor immensa o não poder res
o facto historico da chave ser lançada folegar no pranto.
no Arno; porque o lançar a chave no Si dentro impietrai. Dá a razão por
rio era uma demonstração para o povo, que não podia chorar: a dor interna

1
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 593

era tão funda, tão intensa, que lhe ti terpretasse isso por chôro. É verdade,
nha petrificado o coração, que é a séde que Dante não toca n'esta circumstan
da sensibilidade . cia; mas deixa pensar assim . Certamen
(22 ) Piangevan elli. Todos os outros te quem pozesse em scena este drama
choravam ; mas com a differença que os horrivel, deveria figurar Ugolino um
dous filhos Gaddo, e Ugucino, e um instante com as mãos nos olhos.
neto (Brigata ) filho de seu filho Guelpho Tu guardi si, padre; che hai? Pae, que
como eram os mais velhos, choravam ; tens tu , que nos olhas assim ? Este no
porque sabiam, que o cravar -se -lhes a me de pae, esta piedade filial, que sur
porta com prégos significava condemna ge espontanea, e verdadeira nos animos
dos a morrerem todos de fome: e ao juvenis, foram uma nova punhalada no
contrario o neto Anselmosinho (Ansel coração de Ugolino, só vivo no amor
muccio), filho de seu filho Lotto, como dos seus innocentes e dolorosos filhos.
era mais novo, do que os outros, e (24) Però non lagrimai, nè rispos' io .
menos capaz de comprehender aquelle Que dia, que noite aquella, em que
insolito incidente , chorava porque via todos choravan , todos perguntavam , e
os outros mais velhos chorar, e porque só o triste velho não chorava, nem res
via o pae, que, posto não chorasse, tinha pondia !
os olhos tão injectados de humidade, Porém eu não chorava ! E porque
que lhe parecia a elle como quem cho não chorava ? Porque, vendo - os chorar,
rasse. Tudo isto é cheio de naturalida e por mais terna que fosse aquella per
de, e de terribilidade! Ao magnifico gunta do seu Anselmosinho, o infeliz
quadro de tanta tragedia não podia fal Ugolino estava petrificado pela dor, não
tar um menino ! Sei que Anselmosinho respondendo sequer, as outras pergun
não era tal; mas o Poeta o fez tal , e tas clamorosas, que ouviu todo aquelle
fez muito bem . A poesia não é historia. dia, e toda a noite seguinte até que
Anselmuccio mio . Chama - lhe Anselmo appareceu o novo sol (nuovo sole: Purg .,
sinho, para indicar por este diminutivo vii , 69 ; xix, 39 ).
a sua tenra edade : chama -lhe meu , não (25 ) Tutto quel giorno, nè la notte
só para indicar o affecto de pae, que appresso. Um dia, e uma noite em pre
The tinha, como, e principalmente por sença de quatro filhos, sem soltar uma
tel-o adoptado por filho, desde que Lot palavra, nem derramar uma lagrima , é
to, pae do menino, foi mettido nos muito , não é ? Todavia uma tal exag
carceres de Genova, como seu prisio geração é muitissimo conveniente, e
neiro em Meloria. imaginada com grande, e fino artificio .
( 23 ) Disse : Tu guardi si, padre: che Dante mesmo deve ter conhecido o ex
hai ? Esta interrogação do menino allu cesso a que elle levava a scena ; mas
de ao modo estranho por que o pae os viu que este excesso aprazeria aos lei
olhava, observando-o n'aquelle estado, tores da Divina Comedia; porque em
como que lhe dissera : «Pae, tu choras, verdade nas cousas, que tocam ao co
bem que não pareça; mas choras segu ração, apraz- nos a exaggeração. O segre
ramente ; sim, sim, tu choras : logo que do está em collocar as exaggerações a
tens» ? O menino , como atrás ficou dito, tempo, e logar. Estas são bem empregadas
não tinha percebido o alcance do tran sómente nos assumptos patheticos, como
camento da porta com prégos, embora este, e depois que se sabe ter- se com
tivesse ouvido as martelladas. Poderia movido o coração com factos preceden
tambem explicar este passo de outro tes, como sem duvida no caso presente .
modo. Não é improvavel, que Ugolino Observo alem d'isto que o Poeta n'este
tivesse posto as mãos nos olhos, como dia, e n’aquella noite de silencio, e de
se costuma fazer nas grandes dores, e estupefacção, deixa-nos toda a liberda
que Anselmosinho, como os outros in de á phantasia para imaginar mil cou
38
594 O INFERNO

sas, que se concebem melhor do que ceu n'elle a propria imagem: ut singul.
se exprimem ! tantia vidit Ora, trahit oculos, seseque
( 26) Infin che l'altro Sol nel mondo agnovit in illo . ( Pheb., viii, 52 ). É frisante
uscio. Come un poco di raggio si fu O contraste .
messo Nel doloroso carcere , ed io scôr ( 27 ) E quei, pensando, ch' io 'l fessi
si Per quattro visi il mio aspetto stesso, per voglia Di manicar, di subito levor
Ambo le mani per dolor mi morsi. No si, E disser: Padre, assai cifia men do
temos antes de tudo a antithesis: O sol, glia, Se tu mangi di noi: tu ne vestisti
que nasce para illuminar todo o mundo, Queste misere carni, e tu le spoglia. A
não illumina senão escassamente o dolo scena representada n'este terceto, e no
roso carcere . Tudo arte, tudo natureza outro seguinte, é toda a acção, que faz
n'este admiravel Poeta ! um contraste com a inacção dos dous
Raggio aqui é usado por luz ( lume), tercetos antecedentes. Mas aqui temos
Como si dissesse : « Quando um tenue um d'aquelles toques, que, considerados
golpe de luz, qual podia passar por em si mesmos, e com a razão fria, não
aquella frestasinha da parede da torre são plausiveis, ao passo que , considera
( breve pertuggio ) penetrou no doloroso dos em união com o todo, e no mo
carcere, eu olhando para o rosto dos meus mento de grande commoção, arrancam ,
quatro filhos vi n'elles espelhado o meu sem o que o saibamos, a nossa admira
proprio semblante (il mio specchiato ção, e applausos !
sembiante) porque os rostos d'elles es É fóra de duvida, que Dante conheceu
tavam pallidos pela fome, e estupidos o vicio d'este golpe de scena, em que
pela dor ( Purg ., XXII, 43 ) : então, conhe os filhos se offerecem para saciar com
cendo, que a mesma transformação de as suas carnes a fome do pae; mas é
via estar estampada no meu rosto, tambem fóra de duvida, que Dante co
mordi ambas as minhas mãos como nheceu o effeito magnifico, que havia
aquelle , a quem a ira roe por dentro de produzir nos espectadores, e tanto
( Si come quei, cui l'ira dentro fiacca .Inf., bastou para que o expozesse .
XII, 15) . O animo, quando está profundamen
« Tanta ira devia de subito ven te abalado, não olha a maior ou menor
cel-o, assaltado, como estava, da idea probabilidade da cousa ; está já dispos.
de que o seu semblante assim tão des to a receber as commoções mais fortes,
figurado não consternasse cada vez mais e não quer receber senão estas. Assim
seus innocentes filhos. Em verdade, a ha momentos, em que nos deixâmos illu
palavra dor aqui vale tanto como furor dir tanto pela paixão, que nos agita,
ou raiva , conforme nos ensina Dante que facilmente cremos possiveis aquel
n'outro logar ( Inf., xiv, 65 ), nem Tasso las cousas, que são de todo o ponto
a entendeu em sentido diverso n’aquel impossiveis. A natureza tem tambem os
la sua clara imitação: Ambo le labbra seus erros, e anomalias, e feliz o poeta,
per furor si morse. Tal com effeito se que logra descobril -os, e usar d'elles
torna a dor, quando multiplicada leva a tempo, e logar. E quei pensando. Os
nos até á loucura (Tanto il dolor le fela filhos de Ugolino, pensando, por aquillo
mente torta, Inf., xxx, 21). Tydeusamens que elles experimentavam em si, que o
ira: Tydeu louco de ira ( Theb. de Stae., pae mordesse as proprias mãos, im
VIII, 51 ). Alem d'isto cumpre bem notar pellido pelo rigor da fome, de que
as palavras, que Dante põe na bocca elles estavam egualmente transidos, ex
de Ugolino ( io scorsi Per quattro visi il citados de improviso pela piedade filial,
mio aspetto stesso) são mais potentes de levantaram-se de subito, e disseram
energia, do que as que Estacio põe na lhe :

bocca de Tydeu, o qual, ao ver o trans « Pae, ser -nos-ha menos doloroso, que
formado rosto de Manilippo, reconhe nos devoreis a nós, do que a vós ! »
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 595

Estas vozes terriveis, impregnadas de mover-se de compaixão, abrir-se, e oc


tão affectuosa ternura, foram magistral cultal-os aos olhos dos mortaes ! ( Inf.,
mente recolhidas pela sublime mestria XX , 31 ) .
do Poeta, para glorifical-as, e fazel-as (30) Ahi dura terra, perchè non
exercer a sua magica potencia sobre o ť apristi ? É inutil advertir, que esta
coração humano ! E sem duvida, aquel magnifica, e estupenda exclamação Ugo
les accentos de tanto, e de tão impe lino não a fez no carcere; mas fal- a
tuoso amor soaram sempre tocantes agora a Dante, como um desafogo dos
aos ouvidos de Tasso, que dizia não acontecimentos até aqui descriptos , ma
se poder saciar de admiral- os (da non xime depois de lhe haverem os filhos
poter saziarsi dell'ammirarli), e que Al offerecido suas proprias carnes. Esta
fieri não os repassa na memoria, sem desesperada exclamação lembra aquel
experimentar uma nova sensação de l'outra de Virgilio :
deleite ( li ripensava sempre con nuovo Que ha sem ti , caro irmão , que já me apraza ?
diletto )! Quem não comprehenderá a Oh si eu vira a meus pés abrir- se a Terra ,
ineffavel ternura d'estas palavras : «Pae, Levar-me mesmo Deosa ao fundo do Orco!,
tu nos vestiste d'estas miseras carnes ,
(B. F.) -- Eneid., XII , 883.
despe -nos d'ellas, e te sirvam de alimen.
to ! Mas todas estas bellezas de estylo Taes foram os clamorosos gritos de
não nos fazem olvidar, que todo aquelle Jiuturna ao ouvir prenunciar-se a do
rasgo de piedoso affecto filial era um lorosa derrota, e a morte de Turno; o
accrescimo de dor lancinante ao dilace qual quando se viu lançado no mar, e
rado coração do pobre velho ! envolvido por um turbilhão furioso ,
(28) Queta’mi mi allor pernon farà più doendo-se do estrago dos seus compa
tristi. Outra mutação de scena totalmen nheiros, havia já exclamado :
te diversa da ultima. Era natural . A
violencia da scena passada não podia Que farei ? qual abysmo assás profundo
durar longo tempo; antes, porque foi Abre a terra a meus pės ? De mim piedade
tão violenta, tinha necessidade de um Tende oh ventos, nas rochas, nos cachopos
O batel desfaze !....
contraposto : um momento de repouso. (B. F. )
Isto é que se chama conhecer as varias,
e bellas condições dramaticas ! Vê-se que Dante, aproveitando-se do
Queta' mi allor. Dante allude aqui pensamento do seu Mestre Mantuano,
áquelle verso de Virgilio : o apresenta em uma forma muito mais
natural, e toda consentanea ao senti.
Ul primum cessilfuror et rabida ora quierunt.
mento, e ao grito da alma traspassada
«Apenas o furor cessado havia. de dor.

E o rabido semblante se aquietára » . (B. F. ) No emtanto Ugolino, que no princi


pio do segundo dia se enfurecêra de dor
(29) Quel dì e l'altro ... (O segundo até o ponto de morder ambas as mãos
e o terceiro dia ) mais por excesso de ( a mordersi ambo le mani), agora, como
dor, e de piedade, do que por excesso que implorando esforço ao seu proprio
de fome, todos estiveram mudos. Silen amor para com os filhos, mostra-se ap
cio tremendo ! Immersos na dor, aquel parentemente tranquillo, para os não
les miseros affligiam -se cruelmente, to tornar mais tristes : farli più tristi. E os
dos por cada um, e cada um por todos; filhos, por um impulso, que elles mes
mas no infeliz velho a natureza, e a ira mos não comprehendem, cessam de
duplicavam a amargura ! Em presença chorar, e gritar, e durante aquelle dia ,
de tanta angustia, e de caso tão lastimo e o terceiro, fecham - se no silencio de
so parecia que por fim a terra, commu dor cruel. A tragedia agora avança ra
ne madre ( Purg ., xi, 53 ), devesse com pida ao seu desenlace terrivel, a cuja
O
596 O INFERN

perspectiva o pensamento refoge horro succumbissem, a narração seria langui


risado ! da, alem de pouco natural. Elle portan
( 31 ) Posciachè funimo al quarto di ve to affirma que viu morrer os outros tres,
nuti, Gaddo mi si gittò disteso a ' piedi. um após outro entre o quinto, e o sexto
« Chegaram ao principio do quarto dia ». dia .
Recapitulemos : dia primeiro vinte e ( 34) Vidio cascar li tre ad uno ad uno
quatro horas: Tutto quel giorno, nè la Tra 'l quinto dì, e 'l sesto; ond ' io mi
notte appresso , 36 : dia segundo , e ter diedi Già cieco a brancolar sovra cias
ceiro tambem de vinte e quatro horas : cuno, E due di li chiamai, poi ch'e'fur
Quel di e l'altro stemmo tutti muti, 42 ; morti. Tra quinto di, e 'l sesto. No princi
principio do quarto dia : Poscia che fum pio do sexto dia os filhos eram parte
mo al quarto di venuti. mortos , parte agonisantes. Por isso
Gaddo. Este Gaddo é um dos filhos d'aquelle dia em diante, Ugolino perdeu
de Ugolino. E porque Dante faz de inteiramente a vista dos olhos; mas ain
Gaddo a primeira victima da fome ? da tinha força de mover-se, ou arras
Fal- o pela razão natural, e pela razão tar-se sobre os cadaveres de seus filhos,
poetica . Pela razão natural , porque Gad ainda com vislumbre de esperança de
do estava n'aquella edade, em que abraçal- os, e beijal -os. E due di chia.
mais se sentem os estimulos da fome : mai, poi ch ' e fur morti. Do sexto ao
a juventude. Pela razão poetica , porque , oitavo dia, perdeu o desgraçado velho
sendo um filho, e não um neto, a pri o uso dos membros, e da razão : dos
meira victima, era motivo para que membros porque já não podia se não
Ugolino mais se affligisse, e mais se arrastar, ás apalpadelas por sobre os ca
affigisse em um tempo, em que ainda veres dos filhos: e da razão, porque,
conservava o exercicio dos sentidos . estando já mortos, ainda chamava - os.
Gaddo com effeito era o menor dos (35) Poscia, più che 'l dolor, potè 'l
dous filhos de Ugolino ( il minore dei digiuno. No fim do oitavo dia, o misero
due figliuoli ). pae achou - se collocado entre dous ver
( 32 ) Dicendo : Padre mio, che non dugos : a dor, e a fome; mas a fome
m'aiuti? Estas palavras dirigidas por poude mais, que a dor; porque foi a
um filho moribundo, a um pae já en fome, que lhe cortou o fio da existencia !
fraquecido, já quasi tambem moribundo, Pela dor somente elle ainda podia so
deviam rasgar-lhe o coração ! Como si breviver a tanta angustia; mas a fome
lhe dissesse : « Meu pae, porque me não não lh'o permittiu. E porque o velho re
confortas ao menos com palavras de sistiu mais tempo á fome, do que os
doçura, que me suavisem as angustias moços? Por diminuição de humores des
do passamento ? seccativos.
( 33 ) Quivi mori: e come tu me vedi. Più che 'l dolor, potè 'l digiuno. Este
Esta concisão é de per si eloquentissi bello verso, de sentido aliás tão obvio,
ma, e nos permitte imaginar as longas tem sido erroneamente interpretado por
agonias de que foram repassados todos alguns commentadores de modo a fazer
aquelles dias, que precederam a morte crer, que Ugolino devorou com os den
de Gaddo ! Come tu mi vedi. Como si tes as carnes dos filhos, e d'ellas se nu
dissesse : « Como agora me estás vendo, triu ! Esta supposição é, no dizer de Fra
eu te asseguro, que , não obstante, se ticelli, alem de extravagante, absurda;
haverem já passado quatro dias de fome, alem de absurda, inverosimil, e alem de
todavia, para cumulo de dor, meus inverosimil, impossivel ! Sim , impossivel;
olhos ainda podiam ver as tragedias, pois que sabemos da sciencia physiolo
que se representavam em torno de gica, e dos factos, que um homem, es
mim ». Si Ugolino tivesse já perdido os pecialmente em edade avançada (como
sentidos, antes que todos os seus filhos Ugolino) e que por oito dias inteiros
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 597

não tinha tomado alimento algum, é de to não vale a pena que d'ella me occu
todo impotente, para derriçar, e engu pe ; mais largamente, porque seria offen
lir carnes cruas, nem mesmo cozidas ! der a estupenda belleza da verdade,
Sobreleva, que os chronistas d'aquelle despojal -a da sua efficacia. Certamente
tempo dizem, que a prisão foi aberta não se deve perder tempo em refutar o
oito dias depois, e que todos os cinco absurdo dos que deturparam o sentido
infelizes foram encontrados mortos, sem de um verso, já consagrado pelo juizo
que nenhum dos seus cadaveres apre dos seculos com inviolavel cunho, quan
sentasse o menor indicio de ter sido do não bastasse a auctoridade do pro
mordido, e muito menos devorado ! prio Poeta, que affirma ter a torre de
O grande Giuliani, explicando o cele Pisa, prisão de Ugolino, tomado o ti
bre verso ( celebre não pela sua suppos tulo de torre da fome : il titol della fa
ta ambiguidade, mas pela sua reconhe me (v . 23). E porque ? Porque a fome
cida belleza) exprime- se assim : « Depois tinha ali desenvolvido toda a pompa
que Ugolino, no affectuoso delirio cha da sua barbara tyrannia .
mou pelo nome a seus filhos, já mortos, ( 36) Quand ebbe detto ciò, con gli
mais que á vehemencia da dor, succum occhi torti Riprese il teschio misero co'
biu ao excesso da fome: Più che il do denti, Che furo all'osso, come d' un can,
lore, potè nel dargli la morte la fame. forti. Note-se a alacridade delirante com
Esta o matou, quando a dor desespera que Ugolino, terminada a sua narração ,
da ou a raiva o teria ainda feito sobre atira-se de novo á cabeça do Arcebispo,
viver ( sopravivere) ao odio, e á maldi retorcendo mais que nunca os olhos !
ção do seu deshumano e pessimo trai Co' denti. Com os dentes só, porque,
dor (o Arcebispo Roggero) . A morte exceptuando a cabeça todo o resto do
pois o surprehendeu entre as furias da corpo estava enterrado no gêlo ; portan
raiva. » Foi esta grande raiva, que até na to não podia fazer uso, senão dos den
mesma hora da morte se lhe reaccendeu tes. Che furo all'osso. Os dentes pene
indomavel, a causa pela qual poude o traram no craneo do Arcebispo, como
Poeta verosimilmente condemnal -o na os dentes de um cão, que devora um
Antenora a roer a nuca do odiado Rog osso; e com isto o Poeta nos quer fa
gero. Já ficou dito acima, que o voca zer ouvir o ruido dos dentes do cão
bulo dolore n'este logar, se deve tomar quando roe um osso.
na significação de raiva ou furor, como Cumpre não passar adiante, sem pre
Dante d'elle usou n'outra occasião ( Inf., cisar ainda duas outras particularidades
XIX, 65 ) ; dolor adjunctam habet ægritu a respeito d'estes dous traidores da pa.
dinem: nam qui iratus est, dolet. ( Arist., tria, Roggero, e Ugolino: o primeiro,
Artis. Vet., II, 6) . A dor, que antes ti alem do tormento do gêlo, commum a
nha concentrado toda a raiva : dolor ra todos os outros traidores da patria, pa
biem collegerat omnem ( Ovid ., Met., IX, dece um tormento especial, que vem a
213 ) não encontrou mais obstaculo em ser, o servir de pasto a Ugolino, que
vasar -se de novo sobre o auctor de tan . lhe roe cruelmente a nuca; e Ugolino,
to supplicio, Roggero. alem do mesmo tormento do gêlo, é .
Si n'isto tivessem reflectido bem al condemnado a alimentar- se das putri
guns glosadores, que suppozeram n'a das carnes molles da cabeça do traidor!
quelle sublime verso uma indisivel, e No canto anterior já ficou explicada a
impossivel deshumanidade de Ugolino conveniencia ou propriedade do casti
para com seus filhos (comendo -lhes as go do gêlo imposto aos traidores; ago
carnes), não lhe teriam dado aquella ra vejamos a conveniencia ou proprie
absurda interpretação, que ao são crite dade especial do mutuo tormento d'es
rio de Tomasêo se antolhou repugnan tes dous condemnados , que vem a ser :
tissima, e que tambem no meu concei Tendo Roggero por si ou por outros
598 O INFERNO

condemnado a morrer de fome, não só do mar toscano, muito afastadas da


Ugolino, que todavia era criminoso, foz do Arno, a primeira 100 milhas,
mas tambem os seus filhos, e netos, que e a segunda 50. Demoram ellas na
eram innocentes, pedia a razão juridica, direcção de Pisa a Corsega ; Gorgona
que Roggero o resarcisse de modo es. está a 27° 55' de longitude, e 42° 22'
pecial com as suas mesmas carnes; ap de latitude : Capraia a 27° 30' de lon .
plicando -se a estes dous traidores a gitude, e 45° 5' de latitude, e perten
pena de Talião, segundo a qual se deve ciam a Pisa, como a mesma Corsega,
impor ao offensor aquella pena, que an em qualidade de vassalla. Não sei com.
tes havia imposto ao offendido. Não es prehender como muitos commentado.
queça que Ugolino havia mandado ma res, taes como Venturi, Cesari, Bianchi,
tar um sobrinho do Arcebispo. Tomaseo, e Fraticelli, tenham dito, que
( 37 ) Ahi Pisa, vituperio delle genti. estas duas ilhas são vizinhas da foz do
Porque o Poeta não vibra a sua setta Arno, contradizendo assim a geogra
contra o Arcebispo, mas contra todos os phia, e a razão poetica ! Digo a razão
habitantes de Pisa ? Porque os Pisanos poetica, porque Dante, dizendo, que
foram parte auxiliadora da morte cruel visto os povos vizinhos de Pisa, ou os
de Ugolino, e de seus filhos, segundo se habitantes de suas aldeias circumvizi
verifica das seguintes palavras do histo. nhas, não se apressaram em tomar a
riador Villani : « D'essa crueldade foram devida vingança de Pisa pela atrocida
os Pisanos accusados, e estigmatisados de, que praticou, elle conjurava as lon
fortemente por todo o universo mundo, ginquas terras outr'ora dependentes de
onde chegou a noticia do facto; não tanto Pisa, quaes eram aquellas duas ilhas, a
por causa do Conde, que por seus crimes, virem-se collocar na foz do Arno, a fim
e traições era digno de tal morte, mas por de que fizessem as aguas represar ou
causa de seus filhos, e netos, que eram retroceder, etc., indicando com isto o
jovens innocentes• » (Hist. liber., VII, C. Poeta a perda da Corsega das mãos dos
127). Importa advertir, em honra da im Pisanos para as dos Genovezes (Ben
parcialidade de Dante, diz o grande pro nassutti ).
fessor Giuliani , que Pisa, entre todas as Francisco Butti, doendo-se d'esta ter
cidades daToscana, era o mais valente ba rivel apostrophe contra Pisa, sua patria ,
luarte dos Gibellinos, de cuja facção ha diz no seu commentario : « Parece que
quem pretenda que o mesmo Dante se Dante se contradiz a si mesmo ; porque
faz echo preconisador na Divina Come para punir uma crueldade elle deseja
dia , sem se attender, que elle n'ella fus maior crueldade; visto como, si cruel
tiga com egual vehemencia Guelphos, e dade foi matar quatro filhos de Ugolino,
Gibellinos ! » que eram innocentes do peccado do paè,
(38) Del bel paese là dove il sì suona. maior crueldade era matar, e afogar
O bello paiz, onde o sim sôa nos labios todos os filhos innocentes dos Pisanos .
dos habitantes, é a Italia. Outros en Depois d'isto, Butti, em vez de mostrar
tendem a Toscana, onde o sim sốa mais que era falso o fundamento da invecti
docemente, e o idioma é mais puro, va, e livrar da gravissima calumnia a
que nas outras partes da Italia (Frati propria patria, ao contrario passa a jus
celli ) . tificar Dante com dizer, que este fala
(39) Poichè i vicini a te punir son len rhetoricamente (per exuperationem ), e
ti. Os vizinhos aqui não são nem Flo que aliás não é injustiça desejar que se
rença, nem Luca, porém sim os mes ja punida a universidade dos habitantes,
mos povos circumvizinhos de Pisa, como quando esta houver commettido um gran .
se vae ver no seguinte verso. de crime. « Mas esta terrivel imprecação,
(40 ) Muovasi la Capraia e la Gorgo que se poderia desculpar, por ter sido
na . Capraia, e a Gorgona, duas ilhotas excitada pelo impetuoso, e cego hor
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 599

ror do cruel delicto, é, sem embargo, con como por um simples boato de ter Ugo
tinúa Giuliani, uma patente, e censuravel lino entregado os castellos aos inimigos
contradicção de Dante, o qual no mes ella, sem mais forma de processo regu
mo acto, em que deseja ver Pisa casti lar, condemnou o Conde a tão cruel
gada por ter iniqua, e cruelmente puni morte (Bennassutti) .
do os innocentes filhos de Ugolino, in (42) Innocenti facea l'età novella.
voca o exterminio completo de todos Edade nova, importa o mesmo que
os Pisanos , como si entre elles não hou edade juvenil ou adolescente. E no Con
vesse muitos innocentes no lastimoso vilo , seguindo Aristoteles, Dante chama
supplicio de que se tracta ! Não é raro giovinezza (juventude) aquella, que de
ver o homem contradizer-se a si mes pois melhor especifica, e determina como
mo, quando ou a sua paixão, ou a ra adolescenza (adolescencia (Conv ., iv, 23,
zão dos tempos insidiosamente preva 24), a qual adolescencia, principiando
lece ao melhor accordo . » Louvando a dos dez annos dura até os vinte cinco
imparcialidade d'este juizo, sinto não (dura fino al venticinquesimo anno) de
poder concordar que haja contradicção onde pois começa a juventude propria
em Dante, o qual, biblico insigne, como mente dita . Releva emfim advertir que
era, não perdia occasião de usar de lo aquella mulher joven, e gentil, mencio
cuções biblicas, toda a vez que queria nada na Vita Nuova ( S xxx) se celebra
poeticamente engrandecer ou diminuir tambem qual mulher piedosa, e de nova
a grandeza de um conceito. Ninguem edade (quale donna pietosa e di novella
accusará de barbaros, e de contradicto etade); e poderemos d’ahi deduzir com
rios os Discipulos de Christo, quando a maior segurança, e precisão que na
lhe pediram, que fizesse chover fogo do mente do nosso Poeta os indicados vo
céo sobre aquella cidade da Samaria, cabulos significam a mesma cousa. Si
que havia mandado intimar ao mesmo alguns commentadores reflectissem com
Redemptor, que n’ella não entrasse. Por attenção n'estas explicações, que Alli
ventura não haveria gente innocente ghieri nos ministra nas suas Obras me
n'aquella cidade? Demais, quem não vê nores, e na Divina Comedia, ( Purg ., XXX,
na imprecação de Dante mais uma bel 115 ) não teriam suscitado tantas ques
leza poetica, do que um desejo delibe tões sobre a edade, maior ou menor, dos
rado, e sincero de ver Pisa submergida filhos, e netos de Ugolino, bastando -nos
pelas aguas do Arno ? O mais, que se saber, que elles não ultrapassavam os
pode dizer é, que a hyperbole excede vinte cinco annos. Quanto mais se medita
os limites do possivel, e n'isto mesmo nas suas particularidades, tanto mais a
está a justificação do Poeta . Que hyper verdade, e a belleza resplandecem n'este
bole mais atrevida do que a do nosso canto, e lhe grangeiam aquelle indizi
Vieira, quando diz : « fere o clamor os vel primor, com que os grandes artistas
astros; vam as ondas orvalhando as es fazem mais e mais realçar a dignidade
trellas ? » da natureza humana (Giuliani) .
(41 ) Chè se il Conte Ugolino aveva vo (43 ) Novella Tebe.... Qualificar de
ce. Aveva voce. Com este modo de falar nova Thebas a cidade de Pisa, immediata
Dante indica incerteza, não já porque mente depois de ter affirmado a inno
não estivesse certo da traição de Ugo cencia dos miseros mancebos, é vibrar
lino, pois do contrario não o teria met lhe o mais ferino dardo, que o impeto
tido no Inferno entre os traidores; mas da ira podia acerar; querendo exprimir,
porque, estando a invectivar Pisa por que Pisa reunia em seu seio todas
causa da sua atrocidade, convinha em aquellas furias thebanas, de que se fa
certa maneira attenuar o crime de Ugo lou no canto xxx, e que por isso reno
vava os acontecimentos tragicos dos
lino, apresentando assim Pisa como pre
cipitada nos seus julgamentos; visto Atridas. Verdadeiramente este soberbo
600 O INFERNO

canto , em vez de ser um canto de guer por isso que, estando elles com a face
ra , é um brado de dor, e de maldição voltada para cima, as lagrimas, que
em vindicta da ultrajada humanidade, e saíam dos olhos não podiam correr para
justiça ! baixo; deviam portanto estagnar na
(44 ) E gli altri duo ... E os outros concavidade dos olhos, em torno da so
dous eram Anselmosinho, e Gaddo. brancelha, e ahi gelarem ; formando
(45 ) Noi passamm ' oltre... Os dous assim sobre os olhos uma especie de
Poetas passaram ao terceiro circulo escama de gêlo, a modo de viseira , que
chamado Ptolomea, de que já dei ex impedia a saída a outras lagrimas. Eis
plicação n'outra parte . como 0 mesmo pranto não permitte

(46) Ruvidamente un' altra gente fas aos condemnados do terceiro gyro cho
cia. Ruvidamente , rudemente, porque o rar, e eis explicado tambem o outro
gelo em que esta gente estava mettida terceto . Disse eu egualmente , que é
era durissimo. Un' altra gente, isto é, os necessaria consequencia do maior gráo
traidores dos amigos, e dos hospedes, e de frio que ali ha , não só porque esse
não da patria ou dos parentes, como gyro está mais no fundo do que os ou
Ugolino, e o Arcebispo Roggero. Fascia , tros, como porque sopra um vento frio,
do verbo fasciare, que significa cingir, que gela immediatamente os humores,
apertar, etc. como veremos já.
(47) Non volta in giù , ma tutta river (49) E avvegna che, sì come d'un callo,
sata . Quer dizer, que os peccadores es Per la freddura ciascun sentimento Ces
tavam deitados sobre as costas com a sato avesse del mio viso stallo. O frio ,
barriga para cima. Em outras palavras: quando é excessivamente intenso tolhe
Até aqui vimos, que os traidores, que aos membros do corpo de tal modo a
padecem na Caina, e na Antenora, ti sensibilidade, que se pode cortar um
nham o rosto voltado para baixo, ou d'elles sem a menor dor. A expedição
pela razão physica do frio, que natural napoleonica á Russia apresenta muitos
mente obriga a gente a baixar a cabe exemplos d'isto, etc. Só um privilegio da
ça, ou pela razão moral da vergonha, graça divina teria preservado Dante de
que faz os traidores conservarem o ros ser gangrenado pelo rigor do gelo !
to baixo, para não se tornarem conhe . ( 50 ) Già mi parea sentire alquanto
cidos. Mas aqui estes terceiros traido vento . Eis a outra causa do maior gráo
res, si tivessem podido, teriam feito de frio n’este terceiro gyro, que ficou
como os outros, isto é, occultando o indicada no fim da nota 47.
rosto com abaixal- o; mas não o podiam ( 51 ) Non è quaggiuso ogni vapore
fazer, porque eram forçosamente com spento? Dante aqui fala como physico.
pellidos a ter o rosto para cima, de A physica ensina, que uma corrente de
modo que, afóra a superficie da face, vento é originada por vapores contra
todo o resto do corpo , inclusive toda a rios, como elle mesmo disse no canto
parte posterior da cabeça , estava enter ix . No canto XIV , V. 21 , e no canto XVII,
rado no gelo. Esta é a primeira parti V. 24, tomando o vapor por calor. Ora
cularidade dos traidores, que padecem elle sabe que n'aquelle fundo todo o
na Ptolomea : d'aqui a pouco veremos calor é extincto, e por conseguinte toda
a segunda . a causa productora do vento não existe .
(48) Lo pianto stesso lì pianger non Mas, não obstante, existe vento, porque
lascia. O mesmo pranto não lhes per o sente no rosto. Logo, quem o move ?
mitte chorar. É esta uma consequen ( 52 ) Di ciò ti farà l'occhio la rispos
cia necessaria da posição em que jaziam , ta. Querendo dizer: « Dentro em pouco
e do maior gráo do frio, que faz n'esta (avraccio) teus proprios olhos verão
Ptolomea. Eu disse, que é necessaria quem move o vento ». O bater, e sacu
consequencia do modo por que jaziam ; dir das azas de Lucifer, que estava no
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 601

centro da terra, era que produzia o um grande allivio do coração ! Imagi


vento . ne - se quam acerba não seria a angus
( 53 ) Ed un de' tristi della fredda cros tia do desgraçado padecente !
ta Gridò a noi : 0 anime crudeli. Não ( 56 ) Al fondo della ghiaccia ir mi con
creio que se entenda só o gelo em que vegna. É uma imprecação illusoria, que
estavam sepultados; porque seria com o condemnado tomava n'um sentido, e
mum a todos os outros peccadores; mas Dante em outro . O condemnado persua
creio que por fredda crosta de gelo se diu- se de que Dante, pelo temor de des
entende aquella viseira de crystal, de cer ao fundo do gêlo, onde os tormen
que ha pouco se falou, isto é, aquella tos eram terriveis aos traidores, havia
especie de escama , que as lagrimas de cumprir a promessa de desembara
d'estes terceiros traidores lhes forma çar-lhe os olhos; mas Dante , fazendo
vam sobre os olhos, como viseira. Este essa promessa illusoria, sabia, que, pelo
conceito me parece, não só mais bello, privilegio divino de visitar livremente o
como mais preciso. Inferno (privilegio, que o condemnado
Gridò a noi. Como sabia este pec ignorava) havia de descer ao fundo do
cador, que se approximava d'elle mais gelo sem o menor perigo de participar
de uma pessoa? Soube - o, porque ouviu de tormento algum. E seguramente este
o ultimo dialogo sobre a origem do um dos tercetos mais difficeis da Divi
vento, travado entre os dous Poetas. na Comedia .
O anime crudeli. Bellissima equivo (57 ) Rispose adunque: l'son Frate
cação ! Crer que os dous Poetas eram Alberigo, Io son quel dalle frutte del mal
duas almas condemnadas a padecer na orto, Che qui riprendo dattero per figo.
ultima parte do Inferno, onde são exa Este Alberico, da familia dos Manfre
ctamente castigadas as mais reprobas, dos, senhores de Faenza, era frade
isto é, as almas dos traidores dos seus Gaudente. Vivendo em profunda inimi
bemfeitores, é na verdade um bellissimo sade com os parentes Manfredo, e Al
engano ! Mas porque os toma por con bergetto, filho d'este, e querendo ma
demnados ? Porque percebe que os dous tal- os fingiu o desejo de reconciliar-se
Poetas vão atravessando a caverna , em com elles; e, para esse fim , os convi.
que ella se achava, e que alem d'ella dou para um lauto banquete. Na occa
não havia senão outra, que era reserva sião em que deviam comer as fru
da ao tormento das almas mais crueis. ctas, romperam do interior da casa al
Demais, tendo o condemnado uma vi guns sicarios, segundo anterior combi
seira sobre os olhos, não via senão nação, e assassinaram cruelmente na
muito pouco; mas via sempre, como se mesa os dous convidados . Isso aconte
poderia ver por um véo. Occorre final ceu em 1285 (Fraticelli ).
mente , que estando o condemnado es ... dattero per figo.Receber támara por
tendido de costas sobre o gêlo, e tão figo é um proverbio, que significa: «Re
encravado n'elle, que não podia mover ceber maior damno, do que aquelle,
a cabeça, os dous Poetas tinham neces que se faz a outrem » . Com effeito,
sariamente de passar por cima d'elle, e muito maior tormento padecia Alberi
n'essa occasião poderia ter visto ou per co dentro do Inferno, do que recebe
cebido a direcção perpendicular , que ram os parentes, que foram assassinados.
elles tomavam (Bennassutti) . (58) Oh, dissi lui, or se' tu ancor mor
( 54) Levatemi dal viso i duri veli. Cha to ? Dante sabe, que Alberico vive ainda
ma véos á crusta do gelo ; porque, co no mundo, e por isso se maravilha de
mo ha pouco disse, o gêlo lhe permittia encontral-o no Inferno!
ver alguma cousa como por um véo. ( 59) Ed egli a me: Come il mio corpo
( 55 ) Si ch' io sfoghi 'l dolor che'l cor stea Nel mondo su, nulla scienzia porto .
m ' impregna. O pranto é na verdade Com estas palavras quer o Poeta fazer
602 O INFERNO

entender, que Alberico vivia corporal jantar, e n'esta occasião o matar, é


mente no mundo, mas que a sua alma acção da maior perfidia, e requintada
se achava já no inferno. Assim lhe aprou malicia. Em summa, o que o Poeta
ve, fingir para collocar n’este ultimo cir quer significar é que amigos traidores
culo dos traidores alguns scelerados, que são diabos em carne, e osso.
ainda viviam em 1300 ( Fraticelli ) . Mas (62 ) E forse pare ancor lo corpo suso.
aqui, accrescento eu, não ha uma sim Fr. Alberico, assim como não sabe, si
ples ficção poetica, ha uma profunda seu corpo é vivo ou morto, tambem não
verdade allegorica. Dante, como versa sabe o destino do corpo dos outros trai
do que era nas cousas biblicas, sabia dores, como elle. Alem de que, os con
por um texto de S. João que o incredu demnados não têem sciencia alguma do
lo já está condemnado antes de morrer. presente, e embora Alberico ainda não
Qui autem non credit, jam judicatus est; esteja effectivamente condemnado, deve
quia non credit in nomine Unigeniti Fi por força da ficção falar como conde
lii Dei. Sancto Agostinho, explicando mnado .
este ponto, diz : « Ainda a sentença não (63 ) Tu 'l dèi saper, se tu vien pur mo
foi proferida, e já o réu está condemna giuso. Isto é, deves saber, si elle foi ou
do » . Nondum apparuit judicium, et jam não sepultado; porque, sendo pessoa
factum estjudicium . Admiro que nenhum notavel, sua morte não podia passar
dos commentadores não tivesse adver ignorada .
tido no sentido allegorico d'este passo (64) l ' credo, diss' iolui, che tu m' in
da Divina Comedia ! ganni; Chè Branca d' Oria non morì un-.
Nulla scienzia porto. « Não sei como quanche. Branca d'Oria, Genovez, sogro
meu corpo permanece lá entre os vivos ». de Miguel Zanche, juiz, e senhor de Lo
É bellissimo ver um individuo, que não godoro, julgado da Sardenha. Branca
sabe, si está vivo ou morto! É exacta d'Oria, tendo convidado a um banque
mente o que acontece ao peccador ob te este seu sogro, assassinou - o á trai
stinado, que, na cegueira de seus erros çāo em 1275, para apoderar-se do seu
e crime, não sabe si vive ou si morre ; julgado. Apenas morto Miguel Zanche,
porque para elle tudo é indifferente! sua alma caiu na fossa dos traficantes
(60) Cotal vantaggio ha questa Tolo (canto xxii), e a alma de Branca d'Oria
mea. Diz vantagem por antiphrase. cahiu no terceiro repartimento dos trai
(61 ) Sappi che tosto che l'anima tra dores n'esta Ptolomea, deixando entre
de. Ainda aqui não ha simples ficção poe tanto seu corpo a viver ainda no mun
tica . Satanaz em vida de Judas lhe en do, sob o governo de um demonio,
trou no corpo : Intravit Satana in Judam que d'elle se torna possuidor ( continúa
( S. João ) . ainda aqui a allegoria biblica ); de modo
Já disse n'outro logar que o nome de que do assassinato de Zanche á epocha
Ptolomea alguns querem, que derive presente de 1300 decorriam vinte cinco
antes de Ptolemeo, Rei dos Hebreus, que annos .

em um banquete assassinou traiçoeira (65) E mangia e bee e dorme e veste


mente o sogro, e dous cunhados. Mas panni. Não se poderia descrever com
diz Bennassutti, que uma, e outra deri mais ferino epigramma a vida epicuris
vação é verdadeira; porque n'este ter ta, e bestial de um homem ! E o melhor
ceiro gyro estão os traidores dos ami de tudo é que este homem mais de
gos, e dos hospedes, como os dous uma vez havia de ter lido este canto ,
Ptolomeos trahiram não só os hospedes onde a sua pessoa representa o mais 1

como os amigos. Resulta porém que só conspicuo papel, já como assassino trai
os traidores dos hospedes descem vivos dor, já como sendo possuido, e gover
ao Inferno; porque o trahir de tal modo nado por um diabo, e já como um epi
fingindo amisade, convidando outro a curista selvagem !
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIII 603

(66) Nel fosso su , diss' ei, di Male paixão aqui no Inferno é viva quando é
branche. Na fossa dos traficantes: c . XXII. bem morta .
(67) Non era giunto ancora Miguel Entendeu pois Dante que o ser villão
Zanche. O assassinado Miguel Zanche para com aquelle infame traidor era um
não havia ainda chegado ao Inferno, acto de cortezia, e não falta de palavra,
para occupar o seu posto entre os tra nem de gentileza, segundo o bem co
ficantes, quando o seu assassino Bran nhecido proverbio :
ca d'Oria, perdida a alma, se vê occu Rende giusto il tradimento
pado por um demonio. O assassino Chi tardisce il traditor .
pois foi punido no mundo antes do as « Paga com justa traição
sassinado. Que promptidão de justiça! Quem atraiçoa o traidor,
Mas como fr. Alberico sabia noticia (70) Ahi Genovesi, uomini diversi
de Miguel Zanche? Porque, para Albe D'ogni costume, e pien d'ogni maga
rico descer á sua Ptolomea, devia pas gna, Perchè non siete voi del mondo sper
sar pela fossa dos traficantes, e n'essa si? Já se deverá ter observado , que em
occasião deveria ter falado com elle, ou todo este canto, Dante assim como con- .
pelo menos visto de relance . Havia dez demna com acrimonia Guelphos, e Gi
annos que Miguel Zanche estava no seu bellinos indistinctamente , assim tambem
tormento, porque elle foi assassinado estigmatisa indistinctamente cidades gi
em 1275, e o crime, pelo qual Alberico bellinas, e cidades guelphas. Pisa gibel
foi precipitado na Ptolomea, teve logar lina teve, como vimos ha pouco, largo
em 1285 . quinhão no vituperio; agora vemos aqui
(68 ) Che questi lasciò un diavolo in Genova guelpha receber quinhão não
sua vece Nel corpo suo, e d' un suo pros inferior ! Uomini diversi D' ogni costu
simano. Commummente se traduzem me, e pien d'ogni magagna. Sabe -se
estes dous versos assim : « Este (Branca que Genova nos tempos de Dante, e pro
d'Oria) deixou um diabo em seu logar vavelmente ainda hoje o é, era um ag
governando o seu corpo, e deixou ou gregado de povos de varias nações, de
tro governando o corpo de um seu pa costumes, e lingua inteiramente diver
rente » . sos do resto da Italia . Essa agglomera
Butti adverte, que este parente não o ção hybrida não podia deixar de viciar
era de Branca d'Oria, mas sim de Mi e corromper os costumes nacionaes,
guel Zanche, que com elle se associou como acontece em toda a parte . O Poe
na traição ao sogro, e que por conse ta não invectiva o Genovez porque seja
guinte, antes mesmo de morrer Miguel Genovez, pois seria injusto, invectiva os
Zanche, a alma dos dous traidores bai habitantes de Genova , e não os filhos
xou ao Inferno, ficando o corpo de cada de Genova .
um d'elles governado, e possuido por D'ognimagagne. De todo o peccado,
um demonio . de todo vicio.
(69) Aprimi gli occhi; ed io non gliele (71 ) Chè col peggiore spirto di Roma
apersi; E cortezia fu lui esser villano . gna. Era fr. Alberico, que se tinha feito
E faria bem Dante em não desembara frade Gaudente ; e era Romanholo de
çar os olhos do desgraçado Alberico ? Faenza .
Fez: porque abrir -lhe os olhos seria um (72) Trovai un tal di voi, che per su '
acto de caridade , e com os condemna opera. Como si dissesse: «Encontrei
dos pela justiça divina não ha caridade, um tal vosso concidadão, isto é, Branca
sob pena de arguir de injusta essa mes d'Oria, que pelo acto infame (per sua
ma Justiça. Dante já tinha ouvido de opra ), que commetteu, assassinando á
Virgilio uma reprehensão por mostrar falsa fé seu sogro Miguel Zanche, já se
se compasivo com alguns condemnados banha em alma no gêlo do Inferno, e
de outro circulo , dizendo - lhe : A com no corpo parece ainda vivo no mundo.
1
1
.

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INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXIV

Chegados os dous Poetas a Giudecca , e penetrando um pouco alem começam


a ver Lucifer, imperador do reino doloroso. O Poeta fal- o da altura de uma milha,
e da grossura de um quinto de milha : está encravado com o grosso das ancas no
centro preciso da terra, ou no fundo do Inferno : está encravado no gêlo até o meio
do peito, isto é, uma quarta parte do corpo, e por isso um quarto de milha ; porque
o gêlo do Cocyto tem a altura de um quarto de milha ; razão pela qual pôde dizer
o Poeta que, si o monte Tabernicch ou o monte Pietrama caisse sobre o lago ge .
lado, não teria feito triz, nem siquer na orla, onde o gêlo costuma ser menos forte.
Do meio do peito para cima Lucifer ergue-se horrivelmente do gêlo ; e por isso, si
Anteo tivesse deposto os dous Poetas propriamente no fundo do Cocyto, a cabeça
de Lucifer se elevaria acima dos gigantes quasi um quarto de milha, e Dante o teria
visto muito primeiro do que viu os gigantes. Do grosso das ancas até os joelhos,
isto é, uma quarta parte do corpo, Lucifer está encravado na pedra ferruginosa,
que constitue o pavimento da cidade Dite : e fóra d'esta pedra, no outro hemisphe
rio, tem as pernas levantadas para o alto, correspondendo ellas a outro quarto de
milha da sua altura, e por isso a outro quarto de milha de altura do gêlo.
Lucifer tem uma só cabeça, mas com tres faces, das quaes a do meio alonga-se
um pouco para diante das outras, e é côr de fogo; e com a bocca d'esta, tritura
com os dentes Judas Iscariotes, traidor de Christo, seu Superior, Mestre, e Bem
feitor: a face direita é de côr livida, e com ella mastiga Cassio, traidor de Cesar, que
era seu concidadão, mas que por vicissitudes politicas se havia tornado seu supe
rior, e bemfeitor: a face esquerda é de côr negra, e n'ella mastiga Bruto, filho
adoptivo de Cesar, e traidor d'este, que era seu superior natural, e civil, e seu bem
feitor. O Poeta não perde de vista a idea de superiores bemfeitores ; porque na
Giudecca se punem os traidores dos seus superiores bemfeitores.
Debaixo de cada uma das faces sáem duas grandes azas, com as quaes Lucifer,
batendo incessantemente, move tres ventos, cujo sopro gela todo o Cocyto.
Observando bem Lucifer, e visitado todo o Inferno, os dous Poetas preparam-se
para sair d'elle. Dante abraça-se ao collo de Virgilio, e Virgilio agarra-se a uma das
azas de Lucifer, e desce entre Lucifer, e o gêlo até o centro da terra : aqui che
gando com grande fadiga, Virgilio volta a cabeça para onde tinha os pés, e depois
com egual fadiga sobe entre Lucifer, e a pedra , e por um buraco redondo saem do
Inferno n'outro hemispherio. Aqui Dante fica maravilhado de ver que Lucifer tem
as pernas voltadas para cima, e de ouvir a Virgilio que é uma hora, e meia do dia.
Depois, explicada por Virgilio a razão de ambas as cousas, sobem por uma vereda
606 O INFERNO

escura, tortuosa, ingreme, estreita , e vam saír na base da montanha do Purgatorio,


a qual tem o seu centro no fundo do Inferno, ou a sua base sotoposta a base do
Monte Sião .
Concluindo o resumo litteral d'este canto, lembrarei que o Poeta distingue
quatro especies de traidores : os traidores dos parentes, punidos na Caina, que é a
esphera maior, a mais afastada de Lucifer, e por isto estes traidores são os menos
criminosos entre os outros. Depois d'estes, os menos criminosos são os traidores da
patria punidos na segunda esphera ; depois d'estes, os traidores dos hospedes, pu
nidos na Ptolomea ; depois d'estes, finalmente, são os mais criminosos de todos os
homens os traidores de seus legitimos superiores, que na idea christan são amigos,
e bemfeitores. Estes traidores, portanto, são os mais severamente castigados no
proprio logar, onde é castigado Lucifer, que foi o chefe dos traidores.
Todas estas cousas envolvem grandes mysterios, que procurarei agora explicar,
a fim de que o leitor se compenetre bem do alto pensamento moral do grande
Poeta christão-theologo.
Lucifer, segundo a revelação divina , foi o mais bello dos Anjos ; mas a soberba
o fez rebellar contra o seu Creador, arrastando muitos anjos comsigo : mas tal não
é o Lucifer de Dante. Assim como Dante por Virgilio entende a razão humana, por
Beatriz a Theologia, por Lucia a graça ; assim por Lucifer entende o principio
máo, a fonte de todo o mal, o adversario de Deus, origem suprema de todo o bem :
expliquemos esse antagonismo entre o verdadeiro bem , e o verdadeiro mal.
Deus existe de si, da sua propria essencia : d'aqui a razão necessaria de todas as
suas infinitas perfeições : porque, existindo de si, não tem superior, e, não tendo
superior, é impeccavel. Ora, não tendo superior faz o que quer : eis a sua omnipo
tencia. O que faz é bem feito ; eis a sua sabedoria . O que faz é bom : eis a sua bon
dade. Nada pode acontecer sem que Ele o saiba : eis a sua presciencia. Não po
dendo ter superior, nem egual, não pode estar sujeito, nem á soberba, nem á in
veja : nada podendo acontecer, sem que elle o consinta, (sem tolher a liberdade
humana) , é exempto de ira : em summa, a sua existencia tem de per si todas as
perfeições.
O contrario de tudo isto é Lucifer ; porque Lucifer não existe de si, mas porque
Deus o creou ; logo é creatura : d’aqui a razão sufficiente de suas imperfeições, de
suas quédas, de seus males de culpa, e de castigo. Digo razão sufficiente, e não
necessaria ; porque, si bem que a creatura seja peccavel por sua natureza, todavia
é de fé que, mediante o auxilio da graça, póde manter-se firme nos bons proposi
tos. Digo, pois, que o ser creatura é razão sufficiente de todo o mal de culpa, e de
castigo ; porque, em verdade, ser creatura quer dizer, que tem um superior, um
Creador, e por isso se deve conformar com a sua vontade, que é lei soberana, in
defectivel; e eis a peccabilidade no anjo, e no homem : eis a razão da soberbia de
Lucifer, e do peccado de Adam . O ser creatura quer dizer, ente limitado em qual
quer perfeição : no poder, na sabedoria, na bondade, na belleza, na felicidade; e
eis a cubiça, origem primitivissima de todo o peccado, ou de todo desejo desme
dido dos bens não concedidos pelo Creador : o ser creatura quer dizer ter entre as
outras creaturas não só eguaes, mas superiores ; e eis a soberba, e a inveja : o ser
creatura quer dizer tambem ter inferiores entre as outras creaturas, e eis a vanglo
ria , o orgulho, o desprezo do proximo, e por ahi alem.
Ora, Deus é uma trindade de Pessoas, Padre, Filho, e Espirito Sancto, corres
pondentes a tres attributos principalissimos : Poder, Sabedoria, e Bondade ; ao
passo que Lucifer é uma trindade de vicios oppostos : impotencia, ignorancia, e
inveja ; e eis porque Dante colloca tres faces na cabeça de Lucifer. A face do meio
é opposta ao Padre (ao Poder), porque, sendo ella côr de fogo, representa a ira, e
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXXIV 607

a ira provém da impotencia de fazer o que se quer : a face de côr negra é opposta
ao Filho ( á Sabedoria ), e representa a ignorancia : a face livida é opposta ao Espi
rito Sancto ( á Bondade ), e representa a inveja, ou a má vontade, ou malquerer, como
lhe chama o Poeta. Mas, pondo de lado a impotencia de fazer o que se quer, e con
siderando particularmente a ira significada na cor vermelha, diremos, segundo o
Poeta, que as tres faces de Lucifer significam ira, ignorancia, e inveja : certamente
de um monstro iracundo, ignorante, invejoso, deve provir todo o mal, como do Ser
Soberano, poderoso, sabio, e bom, deve provir todo o bem.
A Pessoa do Padre em Deus é o principio consubstancial das outras duas divi
nas Pessoas ; e assim a face do meio é a face natural da cabeça de Lucifer, em
quanto as outras duas faces lateraes são accrescentadas á do meio, e se unem a ella
no logar da crista, no ponto mais alto da cabeça, para denotar que inveja, e igno
rancia provém da soberba, significada pela face do meio, a qual, si na cor vermelha
representa a ira, comtudo, por estar no meio das outras duas, e adiante d'ellas, re
presenta a soberba, que é a causa primaria da ira ; porque, si Lucifer não fosse so
berbo, não ousaria ambicionar ser o que não podia ser, nem teria razão de se pos
suir de ira, nem a sua face média seria côr de fogo. Agora se pode comprehender
a razão por que Dante põe na bócca de Lucifer, Bruto, e Cassio, traidores de Julio
Cesar, de cada lado de Judas, traidor de Christo.
Judas era Apostolo ; quer dizer que tinha renunciado ao mundo, para dedicar-se
ao Céo ; fazendo - se voluntariamente sacerdote de Christo, para cooperar com elle
na salvação das almas ; por isso, trahindo seu divino Mestre, oppoz-se ao seu reino
espiritual ; como Bruto, e Cassio, trahindo Julio Cesar, oppozeram- se ao reino
temporal de Christo ; porque , segundo Dante, Julio Cesar foi o capitão enviado
pela Providencia para unir as gentes, e sujeital- as a Roma, destinada para sede do
Papa, chefe supremo da Religião universal, e séde tambem do Imperador romano,
chefe supremo da monarchia universal. Esta idea de Dante era mais alguma cousa ,
que uma ficção poetica ; era um grande conceito moral, direi mesmo, theologico,
que se encarnava n'um facto providencial ; visto como os sanctos Padres, e Theo
logos, como Sancto Agostinho, e Sancto Thomaz de Aquino, são accordes em dizer,
que a sujeição dos povos pagãos ao imperio romano, contribuíra admiravelmente
para a propagação universal do Evangelho.
Que a republica romana devesse, antes da vinda de Christo, converter-se em
monarchia, deduz-se evidentemente da estatua sonhada por Nabucco, e interpre
tada por Daniel, onde se diz que n'aquelles tempos Deus fundaria um reino, que
não seria destruido in æternum . Logo a monarchia romana foi por Deus preorde .
nada no Evangelho, e por isso o reino corporal preordenado ao espiritual ; de modo
que assim como o reino espiritual teve um Precursor em S. João Baptista, assim
não é absurdo dizer que tambem o reino corporal teve o seu precursor ; e si o teve,
como crê o Poeta , foi certamente Julio Cesar, cuja espada fez por todo o mundo
o que fez a lingua do Baptista no deserto, e ao longo das margens do Jordão.
Julio Cesar com a espada, e com a violencia preparou o reino da carne : o
Baptista com a palavra, com o exemplo, com a persuasão, preparou o reino do
espirito. Tudo isto seja dito para demonstrar o caracter das concepções giganteas
do nosso Allighieri.
Ora este exordio seria fóra de proposito ; seria mettido a martello no Poema, si
o Poema não fosse moral: mas, sendo moral, este exordio é tão apropriado ; deriva
de tal modo das entranhas do assumpto, que nenhum outro o poderia substituir.
Sim, si o Poema não fosse essencialmente moral, talvez Dante não tivesse saído
do Inferno pela mesma porta, por onde entrou, como Eneas ; e, voltando a sua
direita, e gyrando um novo arco, em todo o circulo, teria podido infamar outros
608 O INFERNO

inimigos seus pessoaes. Mas porque o Poema é essencialmente moral, viu Dante
que lhe não era permittido voltar sobre uma materia , já esgotada, e que, para co
lher o fructo da sua mystica viagem, convinha passar de subito do Inferno ao Pur
gatorio, isto é, do vicio á emenda, emquanto o coração se achava compungido do
espectaculo das penas infernaes. Por isso, saindo do Inferno, não olha a terra , não
pensa em Florença, nem na Italia, nem nos Gibellinos, nem nos Guelphos : levanta
os olhos ao Céo, e se compraz no aspecto das estrellas, e no pensamento da bem
aventurada eternidade.
E esta immediata passagem do Inferno ao Purgotorio, é o fructo, não só do
ultimo canto, mas de todo o Cantico ; e felizes de nós, si, como o Poeta, o colher
mos com proveito. Este fructo cessa com o Cantico do Inferno, porque a razão, a
precisão, não lhe concede logar nem no Purgatorio, nem no Paraiso ; e por isto
n'estes dous Canticos não se lê : Si Deus te permitte, o leitor, colher fructo da tua
lição, e nem cousa similhante ; porque o Purgatorio é fructo por si mesmo ; por
que caminhar pelo Purgatorio significa purificar -se, emendar -se : o Paraiso é o
triumpho pleno do fructo já colhido.
Saírei pois do Inferno com Dante : trocarei com jubilo intenso a infernal caverna
pela aerea montanha, o ar caliginoso, e fétido pelo aspecto sereno do ar puro até
o primeiro gyro ; os gritos de desespero, os accentos de ira , as vozes roucas, as
blasphemias atrozes dos condemnados pelas sanctas orações , pelos divinos louvo
res, entoados pelos espiritos, que se purificam nas chammas salutares : trocarei em
tim os asperos sons da poesia morta, pelas suaves melodias da poesia resuscitada
de Allighieri, e por ella guiado, sairei da selva escura , para subir ao monte delei
toso, esmagando as cabeças das tres feras, que fazem d'este mundo peior Inferno,
que o do Poeta !
CANTO XXXIV
Estam na Giudecca , todos cobertos de gelo, os que atraiçoam os seus bemfeitores : Lucifer está encravado no
centro, saindo fora do gelo do meio do peito para cima : Dante descreve a sua monstruosa , e horrivel figura :
Virgitio , com o cujo pescoço se abraça Dante , agarra -se ás pelludas costas de Lucifer, e passa o centro
terrestre : d'onde, seguindo o murmurio de um regato , sobem à superficie do outro hemispherio.

Vexilla Regis prodeunt Inferni:( 1 ) « Os estandartes do rei do Inferno


avançam para nós, me disse Virgilio : olha porém para diante , a ver
si o distingues.» (2 )
Assim como quando uma grossa nuvem se desata em vapores
aquosos, (3) ou como quando as sombras da noite envolvem o nosso
hemispherio, si nos afigura ver ao longe através da cerração um moinho
movido pelo vento : ( 4) assim me pareceu então ver uma similhante
machina : depois por causa do vento , acocorei-me atraz de Virgilio,
visto que outro abrigo não havia . (5)
Eu já era chegado (e com pavor o ponho em verso ) ao logar onde
as almas estavam todas cobertas de gêlo , (6) e transpareciam como
palhinha dentro do vidro. (7)
Umas jazem, outras estam em pé , com a differença que estas ulti
mas , umas estam com a cabeça para cima, outras com a cabeça para
baixo ; outras finalmente, á guisa de arco, têem a cabeça curvada até
aos pés . (8)
Quando em seguida andáramos tanto , que aprouve ao meu Mestre
mostrar-me a creatura , que teve o mais bello semblante, (9) que todas
as outras, tirou - se de diante de mim , e me fez parar, (10) dizendo :
« Eis Dite, ( 11 ) e eis o logar, onde convem que te armes de toda a forta
leza d'animo. ( 12)
Quanto me tornasse então gelado, e mudo, ( 13) não m’o perguntes,
ó leitor, pois não o posso descrever; porque , por mais que dissesse,
diria pouco .
39
610 O INFERNO

Não fiquei nem morto, nem vivo : (14) si tens alguma flor de enge
nho, ( 15) pensa lá comtigo um estado entre a morte , e a vida !
O imperador do reino doloroso ( 16) estava fóra do gêlo do meio do
peito para cima; e a minha estatura tem mais proporção com a de um
gigante , do que a dos gigantes com a grandeza dos braços de Luci
fer : pódes agora avaliar quam alto deve ser aquelle todo, a que con
vem braços tão longos !
Si elle foi creado tão bello, quanto agora é hediondo, ( 17 ) e depois
se rebellou contra o seu Creador, bem se deve concluir que d'elle pro
cedem todos os nossos males .
Oh que grande maravilha não foi a minha, quando vi, que elle
tinha tres faces na cabeça ! (18) Uma adiante , e esta era vermelha : as
outras duas, surgindo sobre o meio exacto de cada uma espadua , la
teralmente se ajuntavam á face dianteira, e superiormente íam reunir-se,
como em um ponto commum , no logar da crista.
A face direita me pirecia entre branca, e livida : a esquerda era da
côr d'aquellas tribus, que estanceiam nas regiões d'onde o Nilo des
cende .
Debaixo de cada face irrompiam duas azas tão amplas, quaes eram
de mister a tamanho passaro : (19) não vi jamais velas de navio tão
grandes !
Aquellas azas não tinham pennas ; mas a sua fórma era como as
azas do morcego ; (20) e as batia com tanta força, que agitava tres ven
tos . (21 )
Ao sopro d'estes tres ventos todo o Cocyto gelava : Lucifer cho
rava com seis olhos, e por sobre suas tres barbas corriam lagrimas,
e humores , sanguineos . (22)
Em cada uma das tres bóccas trincava os ossos de um peccador
com os dentes, á similhança d'espadella , (23) e d'este modo atormen
tava tres ao mesmo tempo .
Aquelle peccador, que estava dentro da bôcca da face do meio,
era muito menos atormentado com a trituração de seus ossos , do que
com as unhas crueis , com que Lucifer lhe rasgava o resto do corpo,
que alguma vez ficava em chaga viva.
Virgilio disse : « Aquella alma duplamente atormentada, que tem a
cabeça dentro da bócca, e fóra agita as pernas, é Judas Iscariotes. (24)
« Dos outros dous, que estam de cabeça para baixo, aquelle, que
pende do negro focinho de Lucifer, é Bruto : vê lá como se estortega
em convulsões sem soltar um gemido ! (25)
« E aquell'outro, que parece tão membrudo, é Cassio ; (26) mas a
noite resurge , (27) e nós devemos partir ; porque temos visto tudo . »
Como lhe aprouve, abracei-me com o seu pescoço ; e o bom Mes
CANTO XXXIV 611

tre tomou posição, espreitando o tempo opportuno : e quando Lucifer


abriu bem as azas, agarrou -se-lhe as lanosas espaduas: depois desceu
de vello em vello entre os flancos pelludos do dragão, e o espesso
gêlo do Cocyto. (28)
Quando escorregamos até os quadris do monstro, Virgilio com fa
diga, e angustia voltou a cabeça para onde tinha as pernas, (29) e ape
gou -se-lhe ao pello, á guisa de um homem que sobe ; (30) de maneira
que eu cria voltar ainda para o Inferno.
O meu Mestre offegante, como quem estava cansado, disse-me :
« Segura -te fortemente aos meus hombros ; porque é por estas escadas
que se pode partir d'esta região do mal. » (31 )
Depois , saíndo pelo buraco de um rochedo, (32) fez-me sentar sobre
a orla ; mas, comprehendendo que eu amedrontado não podia estar
longe d'elle, teve a prudencia de vir collocar- se juncto de mim .
Levantei os olhos, (33 ) e acreditei ver Lucifer como o tinha deixado
( porque eu cria ter voltado para o Inferno ), e ao contrario vi que elle
tinha as pernas para cima .
E si me tornei então confuso, e maravilhado, pense a gente ignara,
que não comprehende, que ponto seja aquelle , que eu tinha passa
do , 13.1)
« Levanta -te, disse-me Virgilio , que a viagem é longa, e o ca
minho máo ; (35) e já o sol marca sete horas , e meia da manhã . » (36)
Não era uma caminhada de palacio o logar, onde estavamos ; mas
sim um calabouço natural, de solo escabroso , e privado de luz. (37)
Logo que me paz de pé , disse- lhe: « Mestre meu, antes de arran
car-me a este abysmo, rogo - te que me digas algumas palavras, que
me dissipem as duvidas em que estou .
« Onde está o gêlo ? E porque está Lucifer enterrado de cabeça para
baixo ? E como em tão pouco tempo o Sol fez o seu trajecto da noite
para o dia »
(
Imaginas tu, respondeu -me, que ainda estás aquem do centro da
terra , no hemispherio de Jerusalem , (38) onde me agarrei ao pello d'esse
verme malfazejo, que atravessa o mundo ?
« Tu lá estiveste tanto tempo , quanto foi o tempo em que desci :
quando me voltei de cabeça para baixo , tu passaste o ponto , a que
são attrahidos de toda a parte todos os corpos.
« E agora chegaste sob o hemispherio celeste , que é contraposto
áquelle, que, á guisa de uma abobada , cobre a grande terra arida, e
sob o mais alto do qual hemispherio foi crucificado o Homem , que
nasceu, e viveu sem peccado : tens os pés sobre uma pequena esphera,
que é antipoda da Judéa .
« Quando n'este hemispherio é manhã n’aquelle é noite : e este Lu
612 O INFERNO

cifer, que nos serviu de escada para descer ao centro, está ainda en
cravado como estava d'antes . (39)
« Foi d'esta parte , que elle caiu do Céo , ( 40) e a terra, que antes
occupava esta zona , espavorida da sua presença, se cobriu com as aguas
do mar para o não ver, (41 ) e veiu para o nosso hemispherio : e talvez
para fugir do monstro, deixando vasio este logar , correu para cima a
formar aquelle monte, (42) que apparece, e se vê d'aqui .
Lá no fundo ha um logar, que se estende tanto alem de Belze
buth , (43) quanto é alta a caverna do Inferno, que lhe serve de tumba,
e que por ser escurissimo, não é conhecido pelos olhos , mas sim pelo
rumor de um regato , que ahi desce pelo buraco, que seu curso tor
tuoso, e precipite, no andar dos longos seculos, abríra n'um rochedo.
Eu , e o meu Guia , desejosos de voltar ao mundo da luz, entrá
mos por aquelle caminho tenebroso, sem mais pensarmos em descanço:
subimos, elle adiante, e eu atraz , que de outro modo não permittia
a estreiteza da viella : subimos tanto , que eu pude por um buraco re
dondo ver algumas das bellas maravilhas que o Céo ostenta no seu
giro, e sem demora saímos a saudar de novo as estrellas do Firma
mento !
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIV

( 1 ) Vexilla Regis prodeunt Inferni. piedade de sentimentos de Allighieri


Assim rompe o hymno da Sancta Cruz, para fazer- lhe tal imputação !
(2) però dinanzi mira, Disse 'l
Será isto uma profanação das palavras Maestro mio, se tu 'l discerni. Lançar os
sacrosantas ? Não creio ; porque o uso olhos, ou dirigir a vista a algum objecto
d'estas palavras encontra a sua justifi para o ver : o ver é acção do sentido ;
cação no conceito evangelico dos dous olhar é attenção do cuidado . Quando a
estandartes, o de Christo, e o de Sata luz é escassissima , como era no logar
naz, sob os quaes militam duas ordens onde estavam os dous Poetas, Virgilio
de homens contrarios: os bons, e os diz a Dante : « Olha com àttenção ao
máos. E si Dante ou Virgilio se serve longe, a ver se distingues bem Lucifer ,
d'estas palavras da Egreja, não é para que se approxima» .
profanal- as , como, com a sua habitual (3 ) Come, quando una grossa nebbia
malevolencia, diz Venturi; mas tão só spira . Ou o Poeta diz soprar em vez de
mente para melhor fazer resaltar o pro exhalar, entendendo ser a nuvem , como
fundo antagonismo entre os dous es realmente é, uma exhalação de vapo
tandartes. As bandeiras do rei do Céo res da terra , e d'agua, ou apropria o
tremulam ovantes ao som de successivos soprar, que é proprio do ar, á nuvem ,
canticos de alegria, desde as alturas por isso que é movida pelo ar (Lom
do empyreo até ás ultimas extremi bardi ) .
dades da terra ; enquanto as ban (4) Par da lungi un mulin che 'l vento
deiras do rei do Inferno se desenrolam gira. Qual apparece ao longe um moi
ao estrondo de gritos de dor, e de de nho, que o vento faz andar á roda . Bel
sesperação nos mais tenebrosos abys lissima comparação entre as azas do
mos do Orco. As primeiras têem por divi . moinho, e as de Lucifer, vistas de lon
sa : « Bemaventurança eterna ! » as segun ge , e a pouca luz.
das : « Condemnação eterna ! » . Não es ( 5 ) Veder mi parve un tal dificio allot
queça alem d'isto, que a Divina Comedia ta. Dificio por edificio. Allotta por allora.
é Poema sacro, e tende a fim sancto, e Póde - se tomar aqui edificio por machi.
religioso, qual a regeneração espiritual na, nome, que Dante dá, por motejo, á
do homem ; e portanto nenhum funda figura estranha, sob que Lucifer se lhe .
mento tem a censura dos que, como ostentava de longe, como fabrica in
Venturi, condemnam o uso, que fez distincta .
Dante das referidas palavras, applican (6) Poi per lo vento mi ristrinsi retro.
do - lhe o proverbio : Nolite miscere sa Que differença entre as azas dos moi
cra profanis. É preciso desconhecer a nhos, e as de Lucifer ! Aquellas são
614 O INFERN
O

movidas pelo vento , estas movem 0 Diz com effeito o Mestre das Sentenças,
vento , e vento tão frio, que faz gelar que não houve no Paraiso um Anjo
o Cocyto, Dante pois, para amparar- se mais formoso do que Lucifer ( liv. 2 ?
contra o sopro de tal vento , abriga - se dist . 6 ).
atraz de Virgilio, por não haver gruta , ( 10) Dinanzi mi si tolse, e ſe restarmi.
onde se mettesse . Como ficou dito , Dante, para resguar
( 7 ) Là , dove l'ombre tutte eran coper dar - se do vento frigidissimo, produzido
te. O logar, aonde o Poeta tinha che pelo bater das azas de Lucifer, tinha -se
gado, é o quarto gyro , ou repartimen abrigado de traz de Virgilio; por isso
to do tanque de gêlo , reservado ao diz agora que este se tirou de diante
supplicio dos traidores dos seus bem d'elle, e fel- o parar, porque ambos an
feitores. Sendo esta qualidade de trai davam .
ção mais grave , que todas as outras,.os ( 11 ) Ecco Dite... Virgilio fala como
que a practicam estam por isso con Poeta latino. Os latinos chamavam
demnados a maior castigo, qual o de Dite o rei do Inferno. Nós porém o
serem totalmente cobertos do gêlo in chamaremos Lucifer.
tensissimo, dentro do qual o transpare ( 12 ) Ove convien che di fortezza t' ar
ciam como palhinhas mettidas no ama mi. Porque armar -se de fortaleza : Ou
go dos crystaes É gentilissimo este si para resistir á impressão do terror, que
mile ! lhe havia de causar o aspecto terrivel
(8) Altre sono a giacere ; altre stan de Lucifer, ou porque tinha de montar
no erte, Quella col capo, e quella colle nas costas d'este, agarrando -se - lhe ao
piante; Altra, com ' arco , il volto a piedi pello, para sair do Inferno. Virgilio não
inierte. () Poeta aqui descreve as qua podia dizer nada d'isto a Dante, sob
tro posições principaes, e genericas, pena de o ferir de subito terror. Limi
em que pode estar o corpo , deixando á tou - se a recommendar -lhe coragem .
imaginação do leitor o adivinhar as ( 13 ) Com ' io divenni allor gelato e
tantas outras se cundarias, sujeitas as fioco. O terror faz-nos perder a côr na
quatro principaes referidas. A primeira tural, e a voz.
posição é a d'aquellas almas, que jazem , ( 14 ) Qual io divenni d'uno e d'altro
e estas podem jazer, ou de barriga para privo. « Privado da vida, porque não
cima, ou de barriga para baixo, ou de permaneci vivo; privado da morte, por
um dos lados. A segunda posição é a que não morri». É verdade que isto é
d'aquellas, que estam em pé ou de ca uma contradicção, um contrasenso ; mas
beça para cima, e com as pernas para é contradicção, si se entende physica
baixo, ou de pernas para cima, e com a mente; si porém se entende moralmente,
cabeça para baixo; e tambem estas po é verdadeiro o conceito do Poeta . (Ben
dem estar em varias formas, e direcções, nassutti). Outra variante de Venturi:
quantos são os movimentos, que se po « Privado da morte , porque a minha
dem dar a um corpo invariavelmente em alma não se tinha ainda separado do
pé. Assim se diz das outras que estam corpo; privado da vida, porque perma
curvadas para os pés. Miguel Angelo, ci sem uso dos sentidos ».
no seu celebre Juizo da Capella Sir ( 15) Pensa oramai per le, s' hai fior
tina, reproduziu muitas d'estas posi d'ingegno. « Si tens flor de engenho”,
ções descriptas no presente terceto isto é, penetração, agudeza de enten
(Bennassutti). dimento elevada a gráo tão subido, que
( 9) La creatura, ch' ebbe il bel senbian se torna uma flor de imaginação.
te. Como si dissesse : « Quando aprou ( 16) Lo 'mperador del doloroso regno.
ve a Virgilio mostrar -me Lucifer, que Querendo dizer: « O imperador do rei
antes de peccar foi a creatura mais no da eterna dor saia fóra do gelo de
bella de todas as creaturas angelicas» . meio peito para cima, isto é, eu não via,
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIV 615

senão uma quarta parte da sua pessoa; máos, são sempre pintados com azas ;
por isso posso calcular, que tenho mais c por isso se podem com toda a pro
proporção com um gigante, do que os priedade chamar aves.
gigantes com os braços de Lucifer; por (20) Non avean penne, ma di vipis
quanto vi que Nemrod, o menor dos trello. Outra particularidade horrivel do
gigantes, é dezoito vezes alto como eu ; rei do Inferno! Tão asquerosas são as
logo um braço de Lucifer é egual a de suas faces, quanto as suas azas! Entre
zoito Nemrods, e mais : Nemrod porém os passaros, o morcego é o unico, que
tem cincoenta e quatro braças de altu não tem pennas nas azas, e por isso
ra : logo um braço de Lucifer tem mais são nojentas: entre as aves o norce
de novecentas e setenta e duas braças ; go é o unico, que chupa o sangue dos
mas o braço é a terça parte do homem viventes, o symbolo mais perfeito de
e por isso tambem de Lucifer; logo Lu Lucifer, o funesto morcego do genero
cifer tem mais de duas mil novecentas humano ! Dante é inimitavel nas suas
e dezeseis braças. Ora, calculando que comparações !
o braço de Lucifer seja egual a dezoito ( 21 ) Si che tre venti si movien da ello.
Nemrods, e meio (por isso que é o me D'aqui a pouco dará uma acção terri
nor dos gigantes) e confrontando eu o vel ás tres boccas de Lucifer, para
braço de Lucifer, não com Nemrod , unir n'elle todo o terror, que a imagina
mas com os gigantes Ephialtes, e Anteo, ção humana lhe póde atribuir !
resulta ter Lucifer duas mil novecentas Aqui entretanto dá uma acção ás azas ;
e noventa e nove braças : em summa acção terrivel, totalmente diversa d'a
tres mil braças, e uma milha. quella das azas das outras aves ! As
( 17 ) S’ ei fu sì bel com ' egliè ora brut outras aves, sempre gyrovágas, se ser
t ). Querendo dizer: « Si antes de peccar vem das azas para voar : esta ave infer
Lucifer foi tão bello, quanto é horren nal pelo contrario sempre immovel se
do depois do peccado ; e si tão bello serve das suas azas para produzir tres
como era, ousou ser ingrato, e rebelde ventos, e vento de tal natureza , que são
ao seu Creador, devemos concluir, que capazes de gelar um rio !
elle é o principio máo, a origem funes De modo que o numero d'estas azas,
ta de todos os males do mundo » . que são seis, e a sua amplidão, que é
( 18 ) Quando vidi tre facce alla sua maior do que as velas dos navios, e a
testa . Em addittamento ao que ficou sua materia, que são membranas esqua
dito na introducção, direi que estas tres lidas de morcego, e finalmente o seu
faces symbolisam os tres peccados capi movimento gerador de frios ventos, fa
taes : a face do meio vermelha significa zem d'estas azas, e de quem as agita, a
a ira do soberbo, que não pode realisar cousa mais terrivel! Diz Fraticelli que
os seus altos projectos ; a face livida si esses tres ventos serão talvez o symbo
gnifica a inveja do soberbo, que se lo dos tres vicios geradores de todo o
apostema com a felicidade dos outros, mal: soberba, inveja, e avareza .
vendo n’ella a sua humilhação ; a face ( 22 ) Con sei occhipiangeva . Da acção
negra significa a ignorancia do so. dos olhos ( particularidade terrivel) passa
berbo, que, presumindo de si , desde á acção das azas (outra terrivel particula
nha instruir-se dos principios da verda ridade ) . Subdivide - a em tres partes para
de : assim a sua ira impotente ousa maior horror: a acção dos olhos, a
oppor-se á omnipotencia do Padre: a acção das barbas, a acção das boccas.
ignorancia negra á sabedoria do Filho, Os olhos são seis, e choram sempre; as
a livida inveja á bondade do Espirito barbas são tres, e sempre banhadas de
Sancto . lagrimas, e de baba sanguinosa : tres
( 19 ) Quanto si conveniva a tanto uccel são as boccas, e mastigam peccadores
lo. Os anjos, ou sejam bons, ou sejam continuamente (Bennassutii).
616 O INFERNO

( 23 ) Da ogni bocca dirompea co' denti Tuquoque, Brute ? Tambem tu meu filho
l'n peccatore a guisa dimaciulla .Como Bruto ?
a acção dos olhos declara com o choro (26) E ľaltro è Cassio, che par si
as suas más emprezas contra Deus, as membruto. Cicero , na terceira Catilina
sim a acção das boccas declara com a ria, diz que Lucio Cassio era membrudo
devoração as suas más emprezas con musculoso : Vec L. Cassii adipem. Mas
tra o homem , fazendo dos peccadores Dante, segundo observa o Cardeal Mai,
manjar. Segundo o costume, Dante pri confundiu Lucio Cassio com Caio Cas
meiramente fala em geral do horrivel sio, attribuindo a este aquella qualida
manjar, depois em particular. N'este ter de physica de Lucio Cassio.
ceto fala em geral. (27) Ma la notte risurge ... É esta a
Maciulla.-- Espadella, instrumento á noite de sabbado. No percorrer o Infer
guisa de espada de páo, com que se no empregaram pois os dous Poetas
rompe a parte fibrosa aspera do linho, vinte e quatro horas. Veja-se a nota
e que é a sua ultima escoria , ou alimpa ultima do Paraiso (Fraticelli).
dura para o afinamento d'elle . A com ( 28) Tra 'l folto pelo e le gelate croste.
paração é a mais apropriada e bella . Vê-se, pois, que o gélo, em que estava
( 24) ...Giuda Scariotto. O collocar encravado Lucifer, não era ligado á
Judas Iscariotes entre dous traidores é sua pessoa ; por isso Virgilio, descendo
quadruplicar-lhe o supplicio; porque pelas ancas do monstro , poude furar o
isso lhe recorda, que pela sua infame lago, passando pela fenda, que as bor
traição foi o seu Divino Mestre, e Bem das deixavam algum tanto aberta (Fra
feitor crucificado entre dous ladrões ! ticelli ) .
Dante, fazendo atormentar Judas de ( 29) Si volge appunto in sul grosso
modo tão horrivel, ao passo que impõe dell' anche. Diz Dante, que Virgilio vol
a maior pena á maior culpa, que jámais tou a cabeça para onde tinha as pernas ,
se commetteu , communica, qual subli isto é, de cabeça para baixo , com fadi
me pintor, a mais bella variedade ao ga, e com angustia (con fatica, e con an
seu horrivel quadro ! Seria um quadro goscia ); porque o ponto, em que elle
monotono si os tres traidores fossem fez esse movimento, sendo o centro da
punidos com supplicio egual ; como terra , Dante, segundo a Physica d'aquel
tambem não seria harmonico, nem sym les tempos, acreditava, que a força at
metrico o quadro, si os dous, que têem tractiva, e centripeta estivesse no seu
a mesma pena , não fossem postos dos maximo gráo; o que oppunha resisten
lados, ou si Judas, em vez de ficar no cia a voltar -se Virgilio de cabeça para
meio, fosse posto de um lado. Dante, baixo .
em muitas partes do seu poema, nos (30 ) Ed aggrappossi al pel com'uom
offerece uma escola pinturesca do mais che sale. Passado o centro da terra, e
fino gosto ! de cabeça para baixo, Virgilio, para en
(25 ) Vedi come si storce, e non fa caminhar-se ao hemispherio opposto,
motto ! Si o Poeta nos apresentasse devia subir, e não descer; mas Dante, o
Bruto simplesmente pendurado como homem allegorico, suppondo que, para
um morto, tiraria á vivacidade do retra chegar ao outro hemispherio, se deves.
to 99 por cento ! Tambem aquelle es se sempre descer, vendo o seu Guia
tortegar de Bruto sem proferir uma pa subir, e não pensando já em que elle se
lavra é da maior eloquencia ! oh quantas voltaria para baixo, cria tornar nova
cousas aquelle silencio não deixa a mente para o Inferno.
adivinhar! Quem sabe , si lhe não pren ( 31 ) Attienti ben , chè per cotali scale.
deriam a lingua aquellas amorosas pa Querendo dizer : « Agarra-te fortemente
lavras, que Cesar lhe dirigiu no mo a mim ; porque para sair d'este Inferno,
mento em que era por elle assassinado : o peior dos males, é necessario affron
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIV 617

tar difficuldades, e fadigas. Entramos opposto . É por isso que Dante, para
n'este abysmo de dor pela porta sem vêl- o, diz que levantou os olhos (levai
fechadura muito facilmente; mas o mes gli occhi).
mo não acontece para sairmos d'elle. (34) La gente grossa il pensi, che non
como te está mostrando este meu an vede. Como si dissesse : « Agora pense a
ciar; o que é prova do facto, que cantei gente idiota , ignorante das leis physicas
no sexto livro da minha Eneida, isto é, que não conhece o ponto, que eu havia
que a entrada do Inferno é facil, mas passado.
difficil a sua saída : Facilis descensus ( 35) La via è lunga, e il cammino è
Averni. malvagio. Querendo dizer : « Sus ávante!
( 32 ) Poi usci fuor per lo foro d' un O trajecto que temos de fazer para tor
s.asso . Quer dizer: « Virgilio, depois de nar a ver as estrellas é longo, e o cami
ter descido do meio do peito até os nho é máo, e fadigoso ; porque ao ho
quadris de Lucifer, entre o mesmo Lu mem, que deixa o peccado por temor
cifer e o gêlo, encontrou a pedra fer do Inferno, torna - se difficil o caminho
ruginosa, em que é escavada toda a ci para a virtude. Nós temos empregado
dade de Dite , no centro da terra ; e por vinte e quatro horas para descer da su
isso tinha elle a cabeça voltada para perficie ao centro; outras tantas horas
onde tinha as pernas : depois que co nos são necessarias para subir do centro
meçou a subir, se achava entre Lucifer, á superficie. Amanhã á noite devemos
e a pedra; subia por um buraco da pe estar nas faldas da montanha do Pur
dra, e não do gélo, como aquelle pelo gatorio: o tempo pois que nos é conce
qual descêra até o centro da terra : an dido é este dia , e a noite seguinte, para
tes de sair, elle me fez assentar na orla aquelle outro hemispherio ; isto é, para
do buraco ; depois saíu elle mesmo, o hemispherio , que tem Jerusalem por
saiu pela parte onde me tinha assenta centro .

do, quando aliás podia saír longe de ( 36 ) E già il Sole a mezza terza rie
mim ; porque aquelle buraco furado por de. O dia é dividido em quatro partes
Lucifer era da largura de um quinto de eguaes : terça, sexta, noa , e vespera .
milha, e ali n'aquelle ponto Lucifer ti Mezga terza, é a oitava parte do dia.
nha as pernas, as quaes não deixavam Tendo Virgilio dito antes no outro he
vasia grande parte : mas Virgilio caute mispherio, que a noite resurgia, é na
loso saiu perto de mim , entendendo que tural que n'este diga depois de algumas
cu amedrontado não podia estar sem a horas, que é passada a oitava parte do
sua presença ; porque os sentidos, ater dia ; visto como enquanto n'um hemis
rados pela meditação do Inferno, e pherio o sol se punha, no outro nascia. Si
pelo passo perigoso, têem necessidade o sol se punha quando o Poeta se agar
de ser assistidos, e acoroçoados pela rava a Lucifer para transpor o centro
razão (representada em Virgilio) por terrestre, no outro hemispherio devia
isso digo que Virgilio foi prudente em surgir: mas, feita a passagem, adverte
vir para junto de mim : Fu accorto nel que á já mezza terza, isto é, uma hora
venire appresso a me » . e meia de sol; logo uma hora e meia
( 33) I ' levai gli occhi, e credetti vede durou aquella passagem pelo centro da
re . Como acima ficou dito, Dantè acre terra ( Bianchi).
ditou que voltava para o Inferno (avea (37 ) Non era camminata di palagio.
credutto tornara in Inferno) Lucifer, es Là v'eravam , ma natural burella. Ca
tando encravado no centro da terra , a mminata ( caminhada) chamava -se an
metade do seu desmesurado corpo ( a tigamente a gran sala (a grande sala )
cabeça e o peito) para o nosso hemis em que se passeiava depois do jantar,
pherio está erecta, e outra metade (as e se faziam outros exercicios palacia
anças e as pernas) para o hemispherio nos. A fadiga soffrida pelos dous Poe
618 O INFERNO

tas para sairem do Inferno, e a difficul. Mas, e porque dá a Lucifer aquella sede?
dade de tornarem para verem de novo Não foram porventura os anjos creados
as estrellas, podem significar os esfor para todo o Céo ? Sim ; mas aquelle Céo,
ços grandissimos, e a coragem , que são segundo Dante, é muito mais bello do
necessarios, para deixar o vicio, e em que o nosso, como se verá da descri
prehender o caminho difficil para a vir pção , que d'elle fará no principio do
tude . Purgatorio. Era pois conveniente, que
Burella, cavidade subterranea, escu o chefe d'estes anjos, qual era Luci
ra .É palavra derivada de buro, que os fer, habitasse a parte do Céo mais es
antigos empregavam em logar de buio, plendida ; e por isso, chegado o momen :
como paro por paio. Chamou-se tam to da sua rebellião, e da sua quéda, não
bem burella a prisão; e ainda hoje em devia cair de outras partes, senão da
Florença existe uma rua d’este nome quella, que era a sua. É verdade, que
junto do palacio dos Ottos, onde exa isto é uma ficção poctica de Dante ; mas
ctamente eram , e são os carceres, se é verdade tambem que, postas certas
gundo affirma Bianchi. circumstancias admittidas por Dante,
( 38 ) E se ' or sotto l'emisperio giunto . e que veremos, é uma ficção mais criti
Como si dissesse : « Estás agora no he ca do que se não crê. Vejamos uma
mispherio opposto ao hemispherio de d'essas circumstancias, que justificam
Jerusalem , e precisamente no ponto uma tal quéda d'aquella parte. Dante
opposto aquelle ponto do monte Sião, collocou o Inferno no nosso hemisphe
onde foi plantada a cruz de Christo en rio, e devia collocal- o; porque só no
tre as cruzes dos dous ladrões. Tu tens nosso havia habitadores, segundo a
os pés sobre uma pequena rocha esphe opinião d'aquelles tempos; e seria fóra
rica, que, da parte opposta , forma a de razão collocal-o em outra parte . A
Judea . Tu hai i piedi sopra un piccolo este Inferno Dante devia dar um impe
sasso sferico, il quale dell' altra faccia rador, e com effeito lh'o deu em Luci
della parte opposta , forma la Giudecca. fer. Mas este imperador devia estar em
( 39 ) Qui è da man , quando di là è sera: pé ( ritto ) no seu reino, e de certo nós o
E questi, che ne fe scala col pelo, Fitto è vimos em pé dominar o vasto cóne in
ancora si come prim ' cra . Virgilio, asse fernal de todo o seu centro . Ora, per
gurando a Dante , que Lucifer se con gunto eu , de que parte podia caír Luci .
servava na mesma posição, em que elle fer, para que podesse permanecer em
o víra anteriormente , accrescenta , para pé no Inferno? Devia absolutamente
melhor o convencer : « E si tu voltasses cair do hemispherio opposto ao nosso.
ao Inferno, verias o mesmo Lucifer com Em verdade quem cae do alto, cac com
a cabeça para cima , como agora o vez a cabeça para baixo; porque a parte,
de pernas para cima; porque baixo é o que tem maior peso, qual é a da cabeça,
centro da terra, e alto é todo o ponto , . deve preceder á outra de menor peso,
que d'elle se afasta para qualquer lido . Lucifer, assim caindo, dá na terra, esta
(40) Da questa parte cadde giù dal se abre, e elle continúa a sua quéda.
cielo. Querendo dizer o Poeta: « D'esta Vae assim até o centro ; e, chegando
parte, onde agora estamos, ou da parte metade de cá , e metade de lá, é con
do hemispherio inferior em relação a strangido a parar, e para com effeito,
nós, caiu Lucifer ». Porque Dante faz tendo a metade , onde está a cabeça, no
cair · Lucifer d'aquelle Céo n'aquelle nosso hemispherio, e a outra metade,
hemispherio, em vez de o fazer cair do onde estam os pés, no hemispherio op
nosso Céo no nosso hemispherio ? Por posto. Eil-o que assim está em pé no
que, segundo Dante, aquelle Céo era a Inferno. Si tivesse pelo contrario caído
séde de Lucifer, como a terra d'aquelle do nosso hemispherio, Dante quando o
hemispherio devia ser a séde do homem . viu a primeira vez, não o teria visto em
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIV 619

pé, mas de cabeça para baixo, segundo xando ao arbitrio de cada um crer o caso
o aspecto sob que o representa alem como melhor lhe parecer, admittindo
do centro ; que para um imperador mesmo a producção d'aquelles effeitos
não teria sido uma posição conveniente terraqueos, que não se oppõem ao que
(Bennassutti ). ella diz. O systema das catastrophes
(41 ) E la terra che pria di qua si terraqueas antes da creação do homem
sporse . Antes do descobrimento da Ame é admittido por doutos, e bem reputa
rica, acreditava- se que , assim como o nos dos commentadores da Biblia , com a
hemispherio é coberto em grande differença, que uns admittem as depres
parte do continente, a contrario senso se sões do solo, outros as sublevações, e
acreditava, que o hemispherio inferior outros finalmente ambas as cousas , como
fosse todo coberto de mar . Tambem Dante n'este logar. Demais d'isto, esta
Dante era d'esta opinião, salva uma pe deslocação de terrenos de umpara outro
quena excepção de uma ilha, que era o hemispherio era em Dante, alem de
seu Purgatorio. Mas Dante, alem da um systema, uma consequencia das pre
opinião commum , tinha outra sua pro missas. Havendo estabelecido que o In
pria , e é a presente. Suppoe elle, que ferno é no nosso hemispherio, e que
antes da creação do homem , e depois Lucifer devia caír do outro, é natural,
da creação dos anjos, o nosso globo e poetico, que seja deslocada a terra
terraqueo fosse todo o contrario d'a d'aquelle para este hemispherio, no
quelle, que se suppunha nos seus dias, qual os habitantes deviam achar -se so
isto é, que o nosso hemispherio fosse bre o Inferno Bennassutti).
todo coberto de mar , e que o hemi (42 ) Per fuggir lui lasciò qui luogo vo
spherio inferior fosse todo coberto de to . Allude ao monte altissimo do Pur
continente . Como foi que mudaram as gatorio, antipoda de Jerusalem , e no
condições das cousas como eram em meio do mar. Como pois se formou
seus dias ? Dante attribue toda essa revi aquelle monte depois que todo o conti
ravolta á quéda de Lucifer. Este bestar nente do baixo hemispherio se retirou
rão caiu do Céo; a terra o viu , cspan para o nosso ? Formou -se d'aquelle ro
tou -se com a sua presença, e fugiu chedo, que occupava o cóne fronteiro ao
espavorida, surgindo no nosso hemisphe cóne do verdadeiro Inferno até á caída
rio e assim afastando - se d'elle o mais de Lucifer, do qual se retirou por medo.
que fosse possivel, a parte d'onde ella (43 ) Luogo è laggiù da Belzebù rimo
se moveu aterrorisada, toda se cobriu to. Tendo Virgilio terminado o seu dis
de mar. O pensamento não pode ser curso, começa aqui Dante a falar ao
mais magnifico, nem mais terrivel! É leitor,. dizendo : « Lá em baixo, passado
uma phantasia verdadeiramente dantes o centro da terra, ha um logar caverno
ca ! Mas não será ella contraria á sagra so, separado de Lucifer, e tão extenso
da Escriptura? Não : porque a Escriptu quando se estende a caverna infernal ; o
ra, onde fala da quéda terrivel de Luci qual logar, sendo escuro, não se faz co
fer, e seus companheiros, o representa nhecido por meio da vista , mas por
certamente como tendo sido precipitado meio do murmurio de um regato , que
do Céo á terra ; mas não nos diz que lá desce pela bocca de uma rocha , que
cousa fosse a terra n'aquelle momento, elle tem roido com o seu perenne cur
nem de qual parte caira o dragão ; dei so, tortuoso, e um pouco pendente ».
Terminada a impressão do primeiro Cantico da Divina Comedia , releva aqui
registrar, que na revisão das provas do commentario me foi de prestadio auxilio
a benevola, e espontanea cooperação do Sr. Conselheiro Antonio José Viale. Este
favor, unico que nos meus trabalhos dantescos recebi do insigne erudito, consti
tue de per si larga materia para profundo agradecimento meu.
A sua experiencia , criterio, e espirito esmerilhador, a la par dos conhecimentos
especiaes do assumpto , o tornavam assás competente para me coadjuvar n'esta
tão ardua, e tão complicada revisão ! Prolongue Deus Nosso Senhor os preciosos
dias de tão benemerito operario das lettras patrias.
( Nota do traductor. )
INDICE

Paginas
PROLOGO .... VII
TRAÇOS BIOGRAPHICOS DE DANTE ALLIGHIERI. XLV
A DIVINA COMEDIA , CXXIX
SYNTHESE DOS TRES CANTICOS DA DIVINA COMEDIA . CXLIX
DANTE E BEATRIZ .. CLIX
TITULO DO LIVRO .. CLXVII
OBRAS MENORES DE DANTE ALLIGHIERI.. CLXXV
INTRODUCÇÃO Ao Canto I ..... 3
Canto I- Adverte Dante que se acha como por encanto perdido n'uma selva escura - Declara
que é diflicil descrevel-a -D'ella sảe a muito custo - Vae dar comsigo a um monte ameno
irradiado pelo sol nascente - Tenta logo subil-o- E impedido ao começar por tres Feras : uma
Onça , um Leão, e uma Loba - Amedronta - se , e precipita -se de novo na selva - Um homem
desconhecido apresenta -se -lhe, e fal - o parar - Dante pede- lhe auxilio contra a ultima fera -
O desconhecido declara -se Virgilio, c o interroga porque volta de novo á horrenda selva
Dante mostra-se firme em querer subir o monte - Pede de novo a Virgilio que o soccorra
contra a fera - Mas Virgilio o dissuade da empreza, que para elle era insuperavel, e que o
meio de sair de tantas difficuldades cra tomar outro caminho, sem indical.o - Consola-o com
a predicção de que a Loba terá um vencedor , que ha de fazer a salvação da Italia - Indi
ca- lhe os altos predicados d'esse vencedor portentoso - Confortado assim Dante, Virgilio
annuncia -lhe a viagem em que lhe ha de servir de guia, levando - o pelo Inferno, é pelo Pur
gatorio, promettendo -lhe que uma pessoa mais digna do que elle (Virgilio) o conduzirá de
pois ao Paraiso -- Dante, reanimado, pede a Virgilio que o leve pelo caminho, que lhe aca
bava de traçar .... 35
COMMENTARIOS AO Canto I 39
INTRODUCÇÃO Ao Canto II . 69
Canto II – Dante pára : teme as diſliculdades da viagem : pergunta a Virgilio si terá bastante
força para sustental- o : o sabio narra - lhe a missão que recebeu de Beatriz, para soccorrel - o :
reanima -se, e prosegue ... 71
COMMENTARIOS AO Canto II.. 75
INTRODUCCÃO Ao Canto III . 89
Canto III --Chega o Poeta á porta do Inferno, e lê na fachada uma inscripção, que o espanta –
Entra precedido de Virgilio - Encontra no vestibulo as almas dos egoistas mordidas inces
santemente por insectos crucis - Aborda o Acheronte, de cujas margens o barqueiro Ca
ronte transporta para o outro lado as almas condemnadas - Lá, deslumbrado por um relam
pago, o Poeta các em profundo somno ...... 95
COMENTARIOS AO CANTO III .... 99
IntroduccÃO AO CANTO IV .. 1:1

Canto IV – Dante, despertado por um forte trovão, acha-se na orla do primeiro circulo, a que
foi levado pela graça superna -Entra com Virgilio no Limbo , onde esiam os meninos, que
morrem sem o baptismo - Continuando, vam dar a um senhoril castello, dentro do qual es .
tanceiam os sabios da antiguidade, que, embora pagãos, tiveram vida virtuosa : d'estes, re
cebe Dante honroso acolhimento - Desce depois ao segundo circulo .. 113
COMMENTARIOS AO Canto IV .. 117
INTRODUCCÃO AO CANTO V .... 129
Canto V— Na entrada do segundo circulo Allighieri encontra Minos, juiz do luferno, que o adverte
com voz em grita, que não se illuda com a largura da porta - Virgilio impõe-lhe silencio
Aqui são punidos os peccadores carnaes, cujo supplicio consiste em serem continuamente
arrastados com violencia por uma tempestade furiosa - Entr'elles descobre Dante a infeliz
Francisca de Rimini , de quem ouve a historia triste do seu infausto amor ... 147
COMMENTARIOS AO Canto V. 151
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INTRODUCCÃO AO CANTO VI 167
Canto VI – No terceiro circulo , onde se acham os dous Poetas, são punidos os gulosos, cuja pena
é serem expostos a uma furiosa chuva de agua sordida, mesclada de nere, e saraiva, alem
de serem cruelmente esfolados pelas unhas, e dentes do cão Cerbero . – Entre estes conde
mnados Dante encontra Ciacco, celebre comilão florentino, do qual ouve prognosticos a
respeito do luturo da patria . 169
COMMENTARIOS AO Canto VI.. 173
INTRODUCÇÃO AO CANTO VII.... 181

Cinto VII - Na entrada do quarto circulo os dous Poetas encontram Plutão, que tenta intimi
dal -os com estranha vozearia - Virgilio manda- o calar, e desce com o seu discipulo ao fundo
da caverna , onde são punidos os avaros, c prodigos - Discorre acerca da Fortuna - Passam
depois à quarta fossa , dentro da qual está a lagoa Estyge, e dentro d'ella jazem atufados os
iracundos, e por baixo d'estes os acidiosos , ou inertes no serviço de Deus.... 187
COMMENTARIOS AO CANTO VIL 181
INTRODUCCÃO Ao Canto VIII .. 201

Cinto VIII – Emquanto os dous Poetas gyram em torno do pantano, Flegias, ao ver o signal da
torre, corre com a sua barca para transportal-os a Dite - Encontram no trajecto Filippe Ar
genti – Chegados ás portas da cidade , os demonios oppõem feroz resistencia a entrada de
Dante - Procura Virgilio accommodal -os : batem - lhe as portas. - A despeito d'este insulto,
assegura ao seu discipulo que vencerá a batalba, e que não está longe quem os lia de soccor
rer ....... 205
COMMENTARIOS AO Canto VIII 209
INTRODUCCÃO AO Canto IX 215
CANTO IX - Depois de varios incidentes, e de terem visto as Furias infernaes, entram os dous
Poetas, mediante o auxilio de um Anjo, na cidade de Dite, na qual são punidos os atheus, e
herejes dentro de tumulos inflammados 219
COMMENTARIOS AO Canto IX .. 223
INTRODUCCÃO AO CANTO X . 233
CANTO X Caminhando os dous Poetas entre os sepulchros, e as muralhas, Dante manifesta a
Virgilio o desejo de ver os peccadores que ali jazem , e de fallar com algum : ouve uma voz
que o chama: E Farinata dos Ubertis, com o qual conversando, é interrompido por Caval
cante Cavalcanti, que lhe pergunta por seu filho Guido - Responde-lhe em parte - Reata a sua
conversa com Farinata, que lhe vaticina o exilio, e o informa de outras cousas . 233
COMMENTARIOS AO CANTO X .. 237
INTRODUCÇÃO AO CANTO XI 2-13
Canto XI -- Chegados os dous Poetas á orla de um alto despenhadeiro, que está sobre o septimo
circuln, param um pouco atraz da coberta de um grande tumulo, que tem n'uma inscripção o
nome do Papa Anastacio - Emquanto ahi se demoram , Virgilio instrue Allighieri a respeito
da condição dos outros circulos, que restam a visitar - O primeiro, em ordem ao septimo,
é dividido em tres gyros, cada um dos quaes encerra uma especie de violentos : o se
gundo, isto é , o oitavo, é dividido em dez fossas, cada uma das quaes contém uma espe
cie de fraudulentos : o terceiro, isto é, o nono, é dividido em tres espheras, ou circulosi
nhos concentricos, cada um dos quaes tem em si uma especie de traidores - Depois fallam
ácerca dos incontinentes , e dos usurarios, até que chegam ao ponto por onde descem até ao
fundo 247
COMMENTARIOS AO CANTO XI 251
INTRODUCCÃO Ao Canto XII 257
Canto XII – Desce Dante por um logar escabroso com Virgilio ao septimo circulo, onde são puni.
dos os violentos contra o proximo - Encontram abi de guarda o Minotauro, que se exalta em
furor ao vel -os – Virgilio impõe -lhe silencio – Proseguem na descida - Antes de chegar ao
fundo, bispam um rio de sangue, em que são suppliciados os violentos contra o proximo :
estes, si tentam sahir do sangue, são asseteados por Centauros - Tres d'estes oppõem-se
a que os dous Poetas desçam - Virgilio por bons modos obtem que lhes sirvam de guia -
Dante é informado da condição d'este rio, e das almas que dentro são atormentadas 259
COMMEMTARIOS AO CANTO XII 263
INTRODUCCÃO Ao Canto XIII 273
Canto XVI – Passa o Poeta ao segundo gyro, onde são punidos os suicidas, e os delapidadores
Os primeiros transformados em arvores nodosas, sobre as quaes nidificam as Harpias - Os
segundos perseguidos, e dilacerados por cadellas furiosas - Encontra Pedro delle Vigne, de
quem ouve a causa por que se suicidou, e as leis da divina Justiça a respeito dos suicidas
Vê depois Lano, Sanese , Thiago de Sancto André Paduano ; e finalmente ouve de um sui
cida fiorentino a origem das desgraças da sua terra 277
COMMENTARIOS AO CANTO XIII .... 281
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INTRODUCCÃO AO CANTO XIV 295
Canto XIV- O terceiro gyro do septimo circulo, aonde agora chegam os dous Poetas, é uma pla
nicie de areia, sobre a qual chovem de continuo largas chammas de fogo - Ahi são punidos
os violentos contra Deus, contra a natureza, e contra a arte - Entre os primeiros distinguem
o soberbo Capanéo-Proseguindo ,encontram um rio de agua sanguinea , e fervente - D'este ,
e de outros rios infernaes, explica Virgilio a mysteriosa origem .. 297
COMMENTARIOS AO CANTO XIV 301
INTRODUCÇÃO AO CANTO XV .. Зоо
Canto XV – Depois de terem os dous Poetas caminhado muito sobre o dique do Phlegetonte, sur
giu -lhes ao encontro uma multidão de almas dos violentos contra a Natureza, que eram
aquellas que corriam pelo areal ardente - Intre estas almas estava a de Brunetto Latini,
mestre de Dante, a quem fala, e lhe prediz o seu exilio ... 313
COMMENTARIOS AO Canto XVI . 317
INTRODUCCÃO AO Canto XVI.. 325
CANTO XVI - Caminhando sempre ao longo do Phlegetonte, chegam os dous Poetas quasi á ex
tremidade do terceiro gyro, onde são suppliciados os violentos contra Deus, contra a Natu
reza, e Arte - Encontram outros violentos contra a Natureza - Param , para falar com tres
d'estes , que saem a correr para elles --Depois avançam até a orla , que divide o septimo do
oitavo circulo, que é uma profunda voragem - Virgilio atira dentro do abysmo um novello,
para avisar a Geryão, que suba á superficie, para os tomar nas ancas : então apparece essa
horrenda figura 327
COMMENTARIOS AO Canto XVI 331
INTRODUCCÃO AO CANTO XVII . 339
CANTO XVII – Descripto Geryão, narra o Poeta como, emquanto seu Mestre se entretem com a
hedionda fera, vae elle , por permissão sua , ver alguns condemnados , que se assentam em
cima do areial ardente - São usurarios ou violentos contra a arte - Volta o Poeta - Monta as
espadnas de Geryão, e n'elle desce com Virgilio ao fundo da voragem , que é o oitavo cir
culo destinado aos fraudulentos.. 311
COMMENTARIOS AO Canto XVII 345
INTRODUCÇÃO AO CANTO XVIII 353
Canto XVIII – oitavo circulo, chamado Malebolge, é dividido em dez grandes fossas circula
res, e concentricas, em cada uma das quaes é punida uma especie de fraudulentos – Tracta -se
n'este canto das duas primeiras fossas, n'uma d'ellas são castigados a golpes de azorrague
por mãos dos demonios os rufiões ; n'outra estam mettidos n'um esterco horrivel os adula
dores, e as mulheres lisonjeiras.. 357
COMMENTARIOS AO CANTO XXIII . 361
INTRODUCCÃO AO CANTO XIX .... 367
CANTO XIX – Na terceira fossa , sobre cuja ponte se acham agora os dous Poetas, são punidos os
simoniacos infincados de cabeça para baixo dentro de buracos, ou pocinlios, tendo as pernas
para cima, e as plantas dos pés envoltas em chanmas - Vendo Dante que um dos condemna
dos perneava mais fortemente, que os outros, deseja falar -lhe - Virgilio o leva até o fundo do
abysmo - Verifica ser Nicolao III , da familia Orsini – Exprobra-o asperamente do seu pec
cado - Depois torna Virgilio com o Discipulo pela mesma encosta por onde tinha descido. .. 375
COMMENTARIOS AO CANTO XIX 379
INTRODUCCÃO AO CANTO XX 381
Canto XX -- Na quarta fossa os dous Poetas encontram os embusteiros, que professam a arte de
adivinhar - Descreve-se o seu castigo - Figura entre elles Manto Thebana, da qual vem a
origem da cidade de Mantua, cuja fundação Virgilio narra ao seu Discipulo .... 389
COMMENTARIOS AO CANTO XX ... 393
INTRODUCção ao Canto XXI . 399
Canto XXI - Na quinta fossa, dentro de um lago de pez ardente , estam os traficantes, ou os
que traficaram com os empregos, e cousas publicas – Em torno da fossa andam os demonios
armados de ganchos, para garfar o traficante, que pozer a cabeça fóra do pez - Testemu
nham os dous Poetas o martyrio cruel de um traficante de Luca – Virgilio apazigua os dia
bos, e consegue que estes o escoltem a elle , e Dante, sem perigo 401
COMMENTARIOS AO CANTO XXI 405
INTRODUCÇÃO AO CANTO XXII 409
CANTO XXII - Continua o assumpto do canto antecedente -Os dous Poetas encontram na quinta
fossa grande numero de traficantes - Entre elles figura Ciampolo de Navarra , que foi minis
tro do rei Thebaldo, de cujas graças, e valimento abusou : Astucia d'este Navarrez, para
escapar aos maos intentos dos demonios - Descripçás comica de uma briga entre dous
d'estes, que, se batendo, caem no lago de pez fervente .. 111
COMMENTARIOS AO Canto XXI ... 415
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JSTROpiccÃO 10 CANIO XXIII . 419
Casio XXIII – Afastando -se com destreza os dous Poetas da companhia dos demonios, emquanto
estes se occupavam de arrancar do fundo do pez os dous companheiros, proseguem sós o
seu caminho até que, receiando serem perseguidos por elles, descem de costas pelo declivio
da rocha a sexta fossa , onde encontram os lıypocritas vestidos de pesadas capas de chumbo
exteriormente douradas – Falam os Poetas com dous frades Gaudentes Catalano, e Lode
ringo - Vèem crucificado na estrada Caiphaz – Ouvem de um dos frades o modo por que
podem sair da fossa - Continuam sua viagem 123
COMMENTARIOS AO CANTO XXIL... 427
INTRODUCCÃO AO CANTO XXIV
Cinto XXIV— Descreve Dante o seu desfallecimento , em vista da turbação de Virgilio, e o
prompto remedio , que este lhe applicou - Com grande difficuldade, e fadiga, saindo os dous
Poetas fóra da fossa, continuam a caminhar pelo rochedo, e chegam sobre a fossa septima,
na qual encontram enlaçados por horriveis serpentes os ladrões , que, mordidos por ellas,
se incendeiam , e pouco a pouco resurgem de suas cinzas. Fala -se n'este canto especialmente
dos ladrões sacrilegos, entre os quaes Dante reconhece o pistoense Vani Fucci, que no
desafogo da raiva lhe prediz o desbarate dos Brancos...
COMMENTARIOS ao Canto XXIV
INTRODUCCÃO Ao Canto XXV
Caro XXV-- Continuando a observar os ladrões, encerrados na fossa septima, vê Dante o Cen
tauro Caco, todo coberto de serpentes, correndo atraz do blasphemador Vanı Fucci - le
em seguida alguns illustres Florentinos , que foram ladrões da fazenda publica - Descreve
maravilhosas reciprocas transformações de homens em serpentes, e de serpentes em ho
mens ......
COMMENTARIOS AO Canto XXV .. 133
INTRODUCCÃO AO CANTO XXVI ..
Canto XXVI – Descem os dous Poetas a oitava fossa , que resplandece de innumeraveis cham
mas, dentro das quaes ardem os conselheiros fraudulentos - Uma chamma bifurcada encerra
dous peccadores : Diomedes, e Ulysses - Virgilio pede que Ulysses lhe narre a sua ultima
viagem .. 407
COMMENTARIOS AO CANTO XXVI 471
INTRODUCÇÃO AO Canto XXVII . -179
Canto XXVII – Concluia Ulysses a sua narração, quando uma voz saida de uma chamma roga a
Virgilio, que se demore ainda um pouco , a fim de lhe dar noticias da Romanha - Virgilio
diz a Dante que lhe responda - Satisfeita a pergunta do espirito, Dante pergunta-lhe por sua
vez quem foi elle no mundo- E o conde de Montefeltro, que lhe conta como por causa de
um fraudulento, e máo conselho, que deu a Bonifacio VIII, foi condemnado. 183
COMMENTARIOS AO Canto XXVII...
INTRODUCCÃO Ao Canto XXVIU 419
Carro XXVIII – Da ponte da nona fossa os dous Poetas observam no fundo os semeadores de
escandalos, de scismas, e de heresias, que têem por castigo o serem horrivelmente retalha
dos pelo fio da espada de um demonio, que lhes renova os golpes quando as feridas fecham
O primeiro, a quem falam , é Mahomet : depois falam com outros .. 501
COMMENTARIOS AO CANTO XXVIII 505
INTRODUCCÃO AO Canto XXIX ... 017
Canto XXIX Partem os dous Poetas para a nona fossa, na qual são punidos os falsificadores -
Chegam a ponte da decima, d'onde ouvem os lamentos dos suppliciados - Não podendo vèl -os,
por causa da escuridão, descem da ponte, e tornam á esquerda – Descripção das varias posi
ções, e molestias dos enfermos - Dante fala com Griffolino, e reconhece Capocchio, seu con
discipulo ...... 510
COMMENTARIOS AO Canto XXIX 523
IsTroducção ao Canto XXX 520
CANTO XXX -- Continúa o Poeta a falar da decima fossa, onde, alem dos falsificadores de metaes
indicados no canto anterior, encontra tres especies de falsificadores : falsificadores de pessoas ,
de moedas, e de acontecimentos - Os primeiros são punidos com uma loucura furiosa , os se
gundos com hydropisia, os terceiros com febre ardente
COMMENTARIOS ao Canto XXX 537
INTRODUCCÃO AO CANTO XXXI .. 5.15
Cisto XÝXI — Descem os dous Poetas ao nono circulo , dividido em quatro gyros , onde são cas
tigados quatro especies de traidores - Mas n'este canto Dante refere que somente encontrou
em torno do poço alguns gigantes, entre os quaes conheceu Nemrod , Ephialtes, e Anteo, e
nos braços d'este desceram ao fundo do abysmo... 6,17
COMMENTARIOS ao Canto XXXI .. 531
INDICE 627

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INTRODUCCÃO Ao Canto XXXII 361
Canto XXXII — Tracta o Poeta n'este canto da primeira, e em parte da segunda das quatro es.
pheras, em que divide este nono e ultimo circulo - Na primeira, chamada Caina, onde são
punidos os traidores dos parentes, encontra Alberto Camicion dos Pazzis, que lhe da noticia
dos outros peccadores, que ahi penam com elle - Na segunda, chamada Antenora, onde são
punidos os traidores da patria, encontra Bocca Abati , o qual indica -lhe outros.. 505
COMMENTARIOS 10 Canto XXXII ... 509
INTRODUCCÃO AO CANTO XXXIII ....... 579
CANTO XXXIII - N'este canto narra a histo tragica da morte do Conde Ugolino, e de seus filhos
e netos - Tracta em seguida da terceira esphera , chamada Ptolomea , na qual são punidos
com horriveis tormentos os traidores dos amigos – Encontra entre esses traidores fr. Albe
rico dos Manfredos ... 585
COMENTARIOS AO CANTO XXXUI. 589
INTRODUCCÃO AO Canto XXXIV 005
Cunto XXXIV-- Estam na Giudecca , todos cobertos de gelo , os que atraiçoam os seus benfeito
res - Lucifer está encravado no centro , saindo fora do gelo do meio do peito para cima -
Dante descreve a sua monstruosa, e horrivel ligura - Virgilio , com o cujo pescoço se abraça
Dante , agarra -se ás pelludas costas de Lucifer, e passi o centro terrestre : d'onde, seguindo
o murmurio de um regato , sobem à superficie do outro hemispherio ... бок ,
COMMENTARIOS AO CANTO XXXIV . 613
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