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FOA 3104

EN N Æ A ,

OU

APPLICAÇÃÖ DO ENTENDIMENTO

SO B R E A

PEDRA PHILOSOPHA
L.
}

1
R.265.142 1

1173

4
EN NÆA,
OU

APPLICAÇÃỞ DO ENTENDIMENTO
SO B R E A

PEDRA PHILOSOPHAL ,
PROVADA , E DEFENDIDA
Com os meſmos argumentos com que os Reverendiſſimos Padres
Athanaſio Kircker no feu Mundo Subterraneo , e Fr. Bento Hie
ronymo Feyjoo no ſeu Theatro Critico,concedendo a poſſibili,
dade, negað, e impugnaó a exiſtencia delte raro ,e gran
de myſterio da Arte Magna.
PARTE PRIMEIR Á .

OFFERECIDA
AO ILLUSTRISSIMO SENHOR

D. FRANCISCO DE MENEZES ,
CONEGO DA SANT A IGREJ A PATRIARCHAL ,
e do Conſelho de Sua Mageftade, oʻc.

POR ANSELMO CAETANO


MUNHOS DE AVREU GUSMAY
E CASTELLOBRANCO ,
Doutor na Univerſidade de Coimbra , Familiar do Sanro Officio
Medico do Excellentiſſimo Senhor Duque de Aveiro , é na
tural da antiquiſſima Villa de Soure.

LISBOA OCCIDENTAL :
Na nova Officina deMAURICIO VICENTE DE ALMEIDA
morador ao Arco das Pedras Negras .

M. DCC . XXXII .

Com todas as licenças neceſſarias , e Privilegio Real.


i
ILLUSTRISSIMO SENHOR .

AQUELLE venturoſo tem


po , em queVOSSA ILLUS
IRISSIMA eſtudava , é juntamente enfimava na
Univerſidade de Coimbra , era a ſua caſa huma dou
* üj tiſſima
tiſima Aula , 01 eruditiſima Academia , em que fo
erao admittidos por Academicos, ou Candidatos os Va
rões illuſtres nas letras humanas , ou conſummados nas
ſciencias Divinas ; e foy VOSSA ILLUSTRIS
SIMA entað ſervido difpenfar comigo , para que ſem
tanta ſabedoria podeſſe entrar naquella venturoſa Athe
nas , tendo eu tao poucas letras,,, como.annos., e tao
pouca ſciencia , como idade, para que em tres luftros,
que então tinha imperfeitos , ſahiſſe daquelle Collegio
da Sapiencia com a ſua erudição perfeito Academico,
e com a ſua grande Sabedoria hum confummado Phi
loſopho ; porqueasſim como os que bebidõ antigamente na
Fonte Cabalinaficavao
, Poetas laureados no Monte
Parnaſo , tambem os que goſtava o nectar da ſcien
cia naquelle Oceano da Sabedoria , eraõ Philoſophos
graduados na Univerſidade de Coimbra. Se com o tra
to dos perverſos ficaõ os homens pervertidos , e scom
panhando com os Santos ſeſantificaõ : Cum Sancto
Reg . 3. 22 .
26.27 . Sanctus eris , & cum perverſo perverteris ; neceffa
riamente na companhia de tantos Sabios todos os ad
mittidos se faziao doutos, e illuſtres em todas as ſcien
cias , e artes liberaes , principalmente com o trato de

hum Heroe então no ſangue, e nas letras, e agora na


dignidade Epiſcopal , e em todas as virtudes illuſtriſ
Jimo ; porque juſto era , que algumas vezes , affim co
mo o forað ſempre os males, e os vicios, foffem tambem
contagioſos os bens, e as virtudes.
Napreſença do grande Propheta Samuel profeti
zarað tambem os Archeiros , Beleguins, e Soldados da
guarda d'ElRey Saul ,mandados por elle em differen
-tes occafióes a Naioth em Rematha', para prenderem
-do valeroſo, e perſeguido David tanto que entrarað
no congreſo dos Prophetas, a que Samuel preſidia :
Reg. lib . 1. Qui cùm vidiflent cuneum Prophetarum vaticinan
tium
19. 20.
tium , & Samuelem ſtantem ſuper eos , factus eſt
etiam Spiritus Domini in illis , & prophetare cæpe
runt etiam ipſi; e até o meſmo Rey Saul profetizou
na companhia dos Prophetas, e na preſença de Samuel :
Prophetavit cum cæteris corum Samuele ; porque
com o trato, e companhia dos Prophetas todos profe
tizão , como ficon em Proverbio eſte notavel fucceffo
d'ElRey Saul : Unde & exivit proverbium : Num
& Saul inter Prophetas ? E podera tambem ſer pro
verbio na Univerſidade de Coimbra ſer eu Academi
00 , ſo porque entrey no Collegio dos Academicos, a quem
VÕSS A ILLUSTRISSIM A preſidia como
Samuel aos Prophetas , diſcorrendo eu tao facilmente
nas Sciencias , como Saul nos futuros , ſem mais tra
balho , nem eſtudo, do que entrar naquelle Circulo de
Sabios, aonde er að tao communicaveis as Sciencias
que pareciao contagiofas, convertendo VOSSA IL
LUSTRISSIMA com a ſua Philoſophia , que be

a verdadeira Pedra Philoſophal , o ferro dos males,


na prata dos bens , e o mercurio dos vicios , no ouro
das virtudes .

Mas quando nao houvera eſta razão , que para


mim foy sempre a mayor de todas concorrem da mia
nha parte tantas obrigações para dedicar , e offerecer
a VOSSA ILLUSTRISSIM A eſta primei
ra parte da minha Ennæa , que por nao poder agra
decellas de outro modo , ſenão com a publica confiſao

de tantas devidas , quero tambem neſte lugar dizer o


muito que lhe devo , para que o Mundo conheça , que
ſempre fou devedor; porque nao porto ſatisfazer tao
grandes obrigações com tao pequena offerta . As con
fiſsões mais verdadeiras ſe coſtumað fazer em ſegre
do , e ainda que eu quero fazer a minha bem verda
deira , e bem publica , ſempre ficarà em ſegredo , por

me não ſaber explicar ; e para declarar o que nað rey
dizer , me ſervirey de bum exemplo , em que tambem
be ſegredo, e verdade o que ouvem os ouvidos, e vem
os olhos.

Tres milagres da Natureza obſervaõ os Egypcios


nas agoas do Rio Nilo ; o primeiro fer Rio fem prin
cipio ,
nem fim ; porque ainda os olhos humanos naó vi
rão o berço em quenaſce, nemo tumulo, em que ſe ſe
puilta , por ſe lhe ignorar o verdadeiro naſcimento , e
por entrar tað impetuoſamente no mar , que perpetua
mente lhe diſputa o vencimento , abrindo tão grandes,
multiplicadas bocas contra o Tridente de Neptuno, que
parece quer de hum forvo conquiſtarlbe o Imperio das
agoas : 0 ſegundo deſpenbar -ſe com tanto eſtrondo, que
os homens , que vivem junto às Catadùpas do meſmo
Rio , ouvem o doce murmurar das claras fontes entre
as areas', e a branda viração do Zefyro entre as flo
res ; e os que chegaõ de novo a ver aquelle precipicio
de criſtal, nem o grande eſtrondo das agoas deſpenha
das podem perceber ; porque cahindo de huma rocha mui
to alcantilada, que tem meya legoa de altura ,ſobre
hum profundiſſimopego , cercado de altas , efragoſas cer
D. Franciſc . ras , parece hum perpetuo trovao , que atroa , e enſurdece
Man . Epa- 'aos eſtranhos , é ſervede harmonia aos moradores das
naph. 1. pag. Catádupas ; é o terceiro , que fem chover nunca no
Egypto , nem apparecerem là outras agoas , que pof
fáő augmentar a caudaloſa corrente deſte grande Rio,
e inundando
a certos tempos enche asſuas margens
os campos os fertiliza , enriquecendo com os ſeus
a di
fructos a todo o Reyno do Egypto ; donde veyo.
zer Plinio , que ſó os Egypcios não olhavao para o Ceo,
porque nao eſperavao de là o ſuſtento , como os outros
homens.
Todas eſtas tres maravilhas da Natureza tenho
acha
achado na liberalidade, e magnificencia , 'com que VOS
SA ILLUSTRISSIMA ſempre me favoreceo ,
porque be para mim tão antigo o ſeu favor , que ami
nha memoria lhe nað acha principio , nen pelo que o
diſcurſo , e experiencia me vað moſtrando , poderão os
meus olhos verlhe o fim ; e quando continua as mercès,
nað ſó multiplica os beneficios , mas atè abre muito as
mãos , 'para me dar por huma vez todas as riquezas
da terra. Sað tað effrondofas as ſuas liberalidades, que
fazendo nos meus olvidos excellente harmonia pelo cor
trome de as receber , deixað atroados os daquellas per
foas , a quem novamente chega o rumor da ſua deſpe
nhada grandeza. E ſem manifeſtar VOSSA IL
LUSTRISSIMĂ O modo porque me faz tantas

mercès, nunca cheguey ao ſeu lado , que não ficaſſeca


mo as margens do Nilo , cheyo , é muito enriquecido
com a inundação da ſua magnificencia ; e deſtá forte ,
como os Egypcios, não tenho neceſſidade de olhar para
outras mãos , aſſim como elles nað olhao para o Ceo.
Mas por iſſo meſmodevo beijar muitas vezes as
de VOSSA ILLUSTRISSIMA , por me te
sem dado o muito , que poſſuo ; e como nao ſou pobre ,
nem ambicioſo , é a VOŠSA ILLUSTRISSI
MA fobeja , o que a grandes Senhores falta , jà que
me não he neceſſario acabar rogandolhe muitos bens,
nem pedindo para mim novas mercès , devo ſomente
acabar agradecendo tantos beneficios , louvandolhe os
ſeus grandes merecimentos. Neſta obrigaçao me poza
coſtume , ou eſtilo dos Panegyriſtas, queneſte lugar elo
giao as acções , e manifeſtao a nobreza dos ſeus cha
mados Mecenas. Porèm eu não quero , nem poſſo di
zer de VOSSA ILLUSTRISSIMA , o que o
Mundo ſabe , e ſó o Mundo explica ; porque noo hapal
mo de terra no Univerſo, aonde os ſeus nobiliſſimos ,
aliguſ
auguſtiſſimos aſcendentes , nao tenhao eſcrito com ca
racteres de ſangue , derramado das veyas de ſeus ini
migos , as ſuas heroicas acções ; ſendo o Mundo todo
pequeno padrão, em que com o ferro das ſuas eſpadas
eſculpirað os mais verdadeiros elogios do ſeu valor , e
nobreza .

Não poſſo porèm deixar em ſilencio dous exemplos,


hum natural , e outro politico, com que moſtre ao meſmo
Mundo pintada , ou retratada a agigantada fidalguia
de VOSSA ILLUSTRISSIMA pelo dedo : Ex
digito Gigas , como o Leão pela unha : Ex ungue Leo
nem . Naſce o famoſo rio Tejo no alto monte de Val
lecilho , junto de Albarracin , poucas legoas diſtante
da Cidade de Toledo, e da Corte de Madrid ; e ſendo.
o Tejo neſte alto berço hum pequeno arroyo , deſcendo lo
go aos valles , e recebendo as agoas de outras fontes ,
que de longe o vao buſcar para ſe unirem com elle ,
chegando a eſte Reyno de Portugal em figura de Dra
gao deprata com dentes de bronze , e de ferro , quei
xos de pedra, e lingoas de fogo , enveſte tão furioſa
mente o Oceano, que não ſó o fez tremer , e ſugeitar
ao dominio dos Monarchas Luſitanos , mas atè lhe fez
tributarios os rios de todo o Mundo. Eſte be o verda
deiro > e natural retrato da nobreza de VOSSA
ILLUSTRISSIMA ; porque naſcendo no alto
monte do Auguſtiſimo, Senbör D. Ordonho II. Rey
de Leão , deſceo o ſangue Real como arroyo ao valle de
Menezes, aonde a Sereniſſima Senhora Infanta Dona
Ximena , comofonte Real , recebeo por ſeu Eſpoſo ao
Senhor D. Tello de Menezes , o qual transformando
ſe pela uniao , e vinculo do matrimonio , na fonte que
o recebera , depois deſta uniao , e transformação, af;
fim comono Tejo ſe não diftinguemas agoas , quese
lhe ajuntao , affim naquella Real familia fe não dif
ferens
ferençavaò os ſangues , que ſe anirao . Todo eſte ſangue
eramuito proporcionado para ſer illuftrifimo principio
deſta familia Real ; por que o puro , e muito eſclareci
do ſangue do Senhor D. Tello era como a mais rica
tela , e o ſangue da Sereniſſima Senhora Dona Xime
na era como a mais fina purpura ; e aſſim como para
o adorno dos Monarchas a purpura , e a tela ſão e
mais precioſo entre as galas : tambem eſte ſangue para
a fidalguiá be o mais illuſtre entre as familias.
Por iſſo recebendo outra vez o ſangue Real do Au
guſtiſſimo Senhor D. Sancho I. e dos Excellentiſſimos
Marquezes de Orelhana , Caſtro Forte , e dos Condes
de Neyva, Faria , Cantanhede , e outros grandes Se
nbores : quando no Paço d'ElRey D. Pedro Cru de
Caftella corridõ rios dejte illuftriſimo , e auguſtiſſimo
ſangue, derramado ſé pelas mãos Reaes , não por cri.
mes de traiçaõ , ſenaộ por deliktos de amor , veyo cor
rendo o dos eſclarecidos Heroesaſcendentes de VÓSSA
IL LUSTRISSIMA , como o caudaloſo rio Tejo

para eſte Reyno , augmentando -ſe cada vez mais na


Corte com a uniao de outro ſangue igualmente puro,

e bem naſcido , para competir hoje no claro , e no lim


po com a meſma agoa do Tejo no criſtalino, e no pue
10, ſervindo de guarniçaõ de tað ricas telas, e de tað
finas purpuras ,o valor , e acções heroicas dos nobi
liſimos , 'invictos , e sempre Auguſtos Progenitores de
VOSSA ILLUSTRISSIMA , os quaes naa

Só vencer að, e conquiſtarao a terra , mas tambem ſua


gettarað o mar , fazendo feudatarios à Coroa de Por
tugal todos os Diademas dos Mundo, como lemos die

minutamente eſcritto nas Hiſtorias Portuguezas, e ef


trangeiras ; porque ſe nao poderàő eſcrever , nem con

Chrtodas
tar as ſuasproezas, amdaque para ſe fazer a ſua
onica
e numerar os ſeus triumphos , empreſtaſſem
a todos
** ij
a todos os Hiſtoriadores 'a Esphera para papel ;
immenſa grandeza do ſeu dilatado circulo ; o Ferma.
miento para letras cabidol.s , o numero innumeravel
das ſuas Eſtrellas ; o Ether para bradar nos clarins
pa fama toda a região dos ares ; a terra para letras
dequenas toda a multidao das ſuas areas ; e o mar
para tinta toda a inmenſidade das ſuas agoas.
Finalmente coroon todas eſtas grandes honras a
Mitra Epiſcopal , que VOSSA ILLUSTRIS
SIM A logre tantos annos , como eſte papel tem de le
tras. Eſta grande dignidade o conſtitue Principe da
Igreja , depois de naſcer dos mayores Monarchas e

Principes da Europa; e por eſta cauſa fica VOSSA


ILLUSTRISSIMA ſuperior aos meſmos Senho
res , que no ſangue o igualarað ; ſendo mayor credito
deſta nova fuperioridade, a mercè Real, que por for
te o preferio a muitos fidalgos benemeritos para aſſif
tir , e ſervir a Deos na Santa Igreja , 0n Baſilica Pa
triarchal, que eſtà unida com o Real Palacio , e ſe ve
nera , e admirá hoje em todo o Mundo ; porque as elei
ções do Auguſtiſſimo , Sereniſſimo , e inviếto Senhor
D. JOAM V. em tudo acertadas , parece , que ſe
na eſcolha de outros Sacerdotes , e Miniſtros da Santa
Igreja, egrande Baſilica Patriarchal forao volunta
rias, a reſpeito da nomeação que fez de VOSSA IL
LUSTRISSIMA, é dos Illuſtriſſimos Conegos da
Santa Baſilica , de que lhe fez mercepor carta do Se
cretario de Eſtado , forao reguladas pela forte , que
diſtinguio entre as familias mais fidalgas as nobrezas,
8 acreditou entre as mayores virtudes o merecimento .
Elegeo voluntariamente ElRey David de todos os
Principes , Sacerdotes , e Levitas do Reyno de Ifraël, in
numeravets Préſidentes, Miniſtros , Sacerdotes , e outras
muitas peſſoas para ſervirem continuamente a Deos no
Templo
Templo de Hierufalem , que era huma grande Bafili
ca , unida com o Palacio do Rey : Ex his electi ſunt, Paralip. 1.23.
& diftributi in miniſterium domus Domini : Do- 4.
mus Domini juxta Regem , fecit etiam atrium Sa- Paralip : 2. 4
9.
cerdotum , & Baſilicam grandem : Mas quando quiz
nomear os vinte e quatro Illuſtriſſimos Sacerdotes def
tendentes das mais illuſtres , e principaes familias do
· Reyno de Ifraël, para também allijirem náğuelle Tem
plo tao famoſo ,e nomeado em todas as Regiões do Mun ,
do : Domus autem , ut in cunctis regionibus nomi- Paralip . 5.22.
netur : dividio por fortes as farnilias de Eleafar , e 5.
Ithamar , deſcendentes do Summo Sacerdote Aar að ;
dando naš a vontade d'ElRey David , ſengo a forte,

os lugares aos fidalgos mais honrados , é benemeritos


de tão grande honra, da qual lhe fez mercè.por huma
carta do Secretario de Eſtado , que entao eră Semeias,
filho de Nathanael : Porro diviſie utraſque inter fe Paralip. 1.242
familias fortibus : deſcripfitque eos Semeas' filius 5.6 .
Nathanael fcriba Levites coram Rege ; porque as no

meações , ou nominas de Sacerdotes Illuſtriſſimos , eſco


lhidos das mais illuftres, e principaes familias do Rey
no , para ſervirem a Deos noſevi Templo , ou Baſilica
grande : Baſilicam grandem ; nao hao de ser feitas
como as dos outros Sacerdotes , e Miniſtros , ſó pela :
vontade Real , ſenaõ pela diviſão , e deſtribuiçað das
fortes , que prefiraõ tanto as qualidades das familias,
como os merecimentos dos benemeritos : Diviſie utral
que inter fe familias fortibus : -os outros Miniſtros ,
e Sacerdotes , elege-os a vontade , e o agrado do Rey :
Ex his electi ſunt ; porém os Sacerdotes Illuſtriſſimos
diſtingue- os a forte , que myſterioſamente examina a
qualidadeda nobreza, e a juſčiça do merecimento : Di
viſit utrafque inter ſe familias fortibus. Por eſtemo
do dividio 0 Auguſtiſſimo Senhor D. JOAM V..os
winse
vinte e quatro Illuſtriſſimos Canegros da Sania Baſilica
Patriarchal, eſcolhendo-os conforme a forte do ſeul me
recimento
3 e da ſua fidalguia os diſtinguia : Diviſit
utraſque inter ſe familias fortibus ; paraque deſte mo
do eſcolhidos os mais nobres , emais dignos, affiftiſſem ,
ou Baſilica gran
e ferviſſem a Deos dentro no Templo ,
de , que eſtà unida com o ſeu Réal Palacio : Domus
Domini juxta Regem , fecit Baſilicam grandem .
Tað grande , e taõ celebrada Baſilica no Mundo, pe
los clarins da fama , como foy o Templo d'ElRey Sa
lamaõ , merecendo pela ſua granderiqueza , magnificen
cia , e Mageftade ſer nomeada em todas as regiões do
Univerſo : Domus autem , ut in cunctis regionibus
nominetur. Para eleger tantos Sacerdotes , e Miniſ
tros da Santa Baſilica Patriarchal , com a ſua Real
vontade fez o nosſo grande Monarcha huma acerta
da eleição : Ex his electi funt ; mas para nomear , e
para eſcolher a VOSSA ILLUSTRISSIMA,
e aos Illuftrifimos Conegos da Santa Igreja , dividio ,
ou diſtinguio primeiro as principaes , e mais illa:ftres
familias de Portugal, e depois jeparou dentro nellas os
benemeritos com as fortes, quemyſterioſamente cahir

ſobre os mayores merecimentos: Diviſit utrafque inter
ſe familias fortibus ; e deſta eſcolha , e dignidade lhe
fez mercè por carta eſcrita tambem pelo Secretario
de Eſtado : Diſcripfitque eos Semeias ſcriba co.
ram Rege. Paraque veja , e conheça o Mundo, que
a eleiçao , ou eſcolha , queSua Mageſtade fez da Per
foa de VÓSSAIL LUSTRISSIMĂ, para fii
vir a Deos na Sacroſanta Bafilica Patriarchal , he
igualmente elogio da fua nobreza , e panegyrico do ſeu
merecimento ; porque ſe o ſeu merecimento nao fora tað
grande , e a ſiia nobreza tað illuſtre , não ſeria eleito,
ou eſcolhido entre muitos pela forte, para posſuir com
a Mitra
a Mitra Epiſcopal o titulo de ILLUSTRIS SIMO .
Com eſta nobreza tao calificada , com eſta digni
dade tað grande , e com eſta ſabedoria tao conſumma
da , podera VOSSA ILLUSTRISSIMA fer
a inveja dos Nabucos , dos Darios, dos Alexandres ,
e dos Julios Ceſares, ſe hoje chegaſſem a ver , o que a
Mundo nao comprehende, mas ve , e admira ; porque
emprendendo eſtes Monarchas a Conquiſta do Mundo
e aſpirando à gloria da divindade , nao chegaraõ a fer
divinos , nem conſeguir að como VOSSA ILLUS
TRISSIMA o abſoluto dominio ſobre todos os Reys,
Monarchas , e Emperadores da terra. He verdade,
que a mayor couſa, que vio o Mundo depois de ſi meſ
mo , e do ſeu Criador , quando feito homem remio o
genero humano , forað os quatro Imperios dos Affyrios,
Perſas , Gregos , e Romanos , repreſentados primeiro
nos quatro metaesda Eſtatua de Nabuco , aos quaes
fuccedeo o quinto Imperio de Chriſto, figurado na my
terioſa Pedra , que derrubou a Eſtatua , e creſceo de
forte ſobre as ſuas cinzas, que encheo , e occupou toda
a redondeza da terra. O primeiro Imperio principiou
em Nabucodonofor Rey dos Aſyrios : o ſegundo em Da
rio Rey dos Perſas : o terceiro em Alexandre Magno
Rey dos Gregos ; eo quarto em Julio Ceſar Supremo
Dictador. dos Romanos. Nabucodonofor duvidou que
houveſſe outro Deos fenao elle , ou ſe atreveo a compe
tir con o Deos verdadeiro , quando diſſe a Sidrach ,
Miſach , e Abdenago , que Deos os poderia livrar das Dan . 3. 15 .
ſuas mãos ? Mas por caſtigo da ſua ſoberba , e arro
gancia , o caſtigou Deos , lancando-o fóra da companhia
dos homens , e convertendo - o em hum bruto. Dario or
denou por hum Decreto ', ou Edito, que ninguem por
certo tempo pediſſe mercès a Deos , nem aos homens ,
fenao a elle , com pena de que ſeria lançada no lago dos
Leões
Leões toda a peſſoa , que fizeſe o contrario como

Succedeo ao Propheta Daniel, por fazır oraçãõ a Dcos;


moſtrando com eſte caſtigo , é Decreto , que elle ſó era
.
mayor , i e mais poderoſo, quetodos os Deoſes, e ho:nens
Alexandre Magno, ſendo filho naõ de Philippe Rey de
Macedonia, e de ſua mulher Olympias, mas de Olym
pias , e de hum profugo , e humilde Egypcio chamado
Nečtanabo , foy reputado por filho do Deos J 11 piter ;
porque Olympias para occultar o adulterio, frigió , que
eſtá fabuloſa Deidade fupprirano thalamo a ausencia de
Philippe ; e Julio Ceſar , chamado tambem julio Mog
no , ſendo hum homem particular de Roma , paſſando
a He panha pela aſpereza dos Alpes , chegou a huma
pequora , e pobriffima povoaçaõ daquelles ſoberbosmon
tes , e deſejou mais fer o primeiro naquella Aldea , de
que o ſegundo em Roma ; e aindague depois de tantas
batalhas glorioſamente vencidas , foy o primeyro entre
os Emperadores Romanos, não conſeguio fer divino en
tre os Deojes , aindaque depois da ſua morte o divini
farao os Romanos, crendo, e publicando, que o Come
ta , que appareceo depoisde o matarem às punhaladas no
Senado , era a alma de Ceſar collocada no Ceo entre as
Eſtrellas ; mas todos eſtes grandes Monarchas , ſe atre
e
vidamente competirað com Deos , como Nabuco ,
Dario, 014 ſe lhe attribubio falſa divindade , como ao
grande Alexandre , e Julio Ceſar , nað forað , nem
podrað fer Deoſes. Porém a divindade , que não conſe
gairao os Cefares, Alexandres, Darios , e Nabucos,
ainda que Reys , e Emperadores do Mundo , alcançou
VOSSA ILLUSÍRISSIMA , dominando com BG
mais abſoluto dominio ſobre todos os Reys , e Empera
dores da terra .

faz o Direito Canonicoentre a dig ,


Tanta differença
midade Eccleſiaſtica , e a dignidade Reala; e Imperato
rida
1
rza , como entre o chumbo , e o ouro : Aurum non

tam pretiofius eſt plumbo, quam Regia poteſtate Caffald.tract.


eſt alcior dignitas Sacerdotalis. Bem confeffon a fu- de Imperat.
perioridade dosBiſpos, e Ecclefiafticos ſobretodos os Mo Quæſt.50.n .
narchas o Emperador Conſtantino Magno , quando ſe 18.cap. Deni.
Diſt. 4 .
que glof.
celebrou o Concilio Niffeno ; porque eſteve em pe no meyo ubi ver
do pavimento com a cabeça deſcuberta , efperando , que bo Dignitas
todos os Ecclefiafticos ſe aſentaſſem , para elle a jenis pès cap. Duæ
tomar depoisaſſento , en hum pequeno , e humilde ban- funt 96 .
co , como ſerefere na Hiſtoria Tripartita ; porque o ma Dift.
yor Emperador do Mundo nao tem dignidade igual à
do Sacerdote : Imperator non eft dignior Sacerdo
te ; Por iſo Conftantino nað tomou conhecimento da in- Joan.Hugon.
Tract. offic .
juria , queo' Arcebiſpo de Myra S.Nicolao fez neſſa oc
caſião à Mageftade Cefarea , dando na ſua preſença , e 4. Prælator.
Part.4 .Verſ,
de todo o Concilio , huma grande bofetada no Hereſiar- quod .
cha Arrio ;" mas dimitio aos Ecclefiafticos como enferior
o.conhecimento deſta afronta , para que elles.caftigaf
fem :0.delicto , do qual abfolveram o Rey dos Reys ,
Se
nhor dos Senhores , o Summo Sacerdote, e Pontifice Su
premo da Igreja Catholica J ESU Chrifto, é a Em
peratriz dos homens , e dos Anjos MARI A Sanctif
fima ao innocente , e ſanto Prelado ; para que ſe viſe
que os Eccleſiaſticos nao tem outro ſuperior ſe nað a
Cabeça da Igreja
Mais fazia , e muito mais venerava os Eccleſiaf
cos , do que o grande Conſtantino, Boleslao Rey de Po
bonia ; porque nuncafe affentou diante dos Sacerdotes,
como eſcreve Cromero. Ate nos Sacerdotes dos Gentios Cromer . lib;
bavia eſta ſuperioridade fobre os Reys , e Emperadores 3. Hiftor.
do Mundo, como'ao Emperador Cayo Auguſte eſcre- Pol .
veo ElRey Agrippa , ſegundo lemos em Philo Hebreo
Por iſſo Santa Ilabel Auguſtiſſima Rainha de Hun-
. Phi
leg. lib . Cas
l . ad de
gria , e Santa Heduviges Duqueza de Polonia ſe proſ
*** yum .
travao
travaõ de joelhos diante dos Sacerdotes para os vene
rarem , e beijarem a terra , que elles pizavao, confor
Lud . Blor. me eſcreve Ludovico Bloſio. A Chriſtianiſſima Rai.
lib . 20. de fi- nha de França Santa Radegundes, eſpoſa de Clotario
gn . Ecclef. Rey daquella Monarchia , varria com as ſuas Reaes,
cap.5. e preciojas galas o po , queaos Sacerdotes cahia dos ça
patos , quando celebravao o ſacroſanto Sacrificio da
Laur. Sur. in Miffa . Com eſta humilde, e devota piedade honraã as !
13. Aug. V. Mageſtades, é Altezas aos Eccleſiaſticos , & Sacerdo
H. Engelgr. tes , confeſſando , epublicando com eſtes Catholicos oba
ſequios a ſua grande ſupcrioridadeſobre os Reys, e Em
pyr. Tom . I.
in feſt. An. peradores do Mundo.Aſlim o confeſſou também o Em ..
nunt . B.V.s. perador Maximo, quando em hum boquete,para que
2. convidou ao Pontefice S. Martinho., lhe deui por ſua
propria mão huma taça cheya de vinho para beber ,
eſperando , que Sua Santidade o honraſſé , dandolhe
tambem com aſua mão o copo para que bebefle , porem
á Santo Padre, depois que provou o vinho deu a taça
com elle a hum pobre Clerigo, que eſtava entre os Prin
cipes do Imperio, que aſiſtiao à meſa ; e aſſim o Em
perador , como todos os Senhores que eſtava preſentes,
louvaraš muito , que o Summo Pontifice preferiſe
Mageſtade Ceſarea a dignidade. Sacerdotal poden
Ut expreſie do então dizer todos com verdade', e difcriçãõ : Ma
tradit Specu- ximus laicus minor eft minimo Clerico. Com ma

lat.tit.de Rel- yor honra recebeo , e hoſpedou Pepino Rey de França ao


cript. præ- Papa Eſtevao III.quandoretirado de Roma,ſe foy'valer
$ .9.n.2. da ſua protecção contra Aiftulpho Rey
lent. dos Longobar
ibi.Maxim ...
dos ; porque o mandou esperar aos confins de Reyno , e
conduzir para a Corte por ſeu filho Carlos Magno, que
depois foy Emperador ; e o meſmo Rey de França sem
hio tres milhas fóra de Pariz a eſperar , e para rece
ber a Sua Santidade ; e chegando à ſua preſença , deſ
montado do ſeu cavallo , beijou o pé ao Summo Pon
tifice
tifice , e a pe foy levando , e guiando pela redea o ca
hia montado o Papa , e com eſta honra,
e veneração o condu zio ao ſeu Real Palacio , como ſe
le na Hiſtoria Imperial, na vida do Emperador Conf
tantino V. Anda fez mais o grande Emperador Ro
dolpho I. quando apeando-ſe do ſeu coche; o deu a huin
Sacerdote, que caminhando a pè ; levava para gran
de diſtancia o Sagrado Viatico a hum enfermo. 18
norando eſta fuperioridade do Sacerdocio o
, u desprezan
do a dignidade Eccleſiaſtica a ſoberbiſſima "Empera
triz Euſebia , mandou chamar ao Paço de Conſtanti
nopla com grande imperio ao Santo Bijpo' Leoncio
para com elle tratar hum negocio de importancia ; po.
rem o Santo Prelado lhé mandon dizer, como eſcreve

o Eminentiffimo Cardeal Ceſar Baronio , que élle hi- Baron. Tom .


ria fallar-lhe, ſe quando elle chegaſſe do Paço, vieſſe 3. Anno 325.
a Emperatriz buſcallo ziou recebello à porta com toda num . 16.
a reverencia , e cortezia , ficando a Emperatriz em
pè ; depois que elle ſe affentaſſe , e que nao fe affentaria
Euſebia na ſua preſença , jèmque primeiro Leoncioo
mandaſje, é lhe detajle a ſuabenção. Não era foberba
efta føberania de Leoncio , era regalia da fria dignida
de ; porque quando os Sacerdotes eſtiverem na preſen
ça das Senhoras mais illuſtrés bão de eſtar affenta
dos, e ellas em pé , por elles ſerem Anjos , e ellas mu
lheres. Muito illuftre mulher era a Magdalena ; por
ser huma das mais nobres Senhoras da Corte dé Hie
ruſalem , e quando no ſepulchro eſteve na preſença dos
Anjos, e converſando com elles , ella eſteve em pé , e
os Anjos afſentados : Maria autem ftabat ad monu- Joan.20.12
mentum foris plorans. Dum ergo fleret', inclina
Vit fe , & profpexit in monumeiitum : & vidit duos
Angelos in albis fedentes." E aſſim devem eſtar ëm
pe as Senhoras na preſença dos Sacerdotes , por ſerem
*** ij Anjos,
Anjos, como lhes chama o Propheta Malachias : La
bia Sacerdotis cuftodiunt ſcientiam , & legem re
1
quirent ex ore ejus , quia Angelus Domini exercia
tuum eſt ; Por iſo Lconcio juſtamente dava Leys à
Emperatriz Eufebia , que ella devia receber em pe;
como mulher , eſtando elle aſſentado como Anjo. Nuā
ſe eſcandalizem as Senhoras da noſſa Corte, que hoje.
Le vem adoradas até dos Sacerdotes , que com errada
politica as comprimentaõ de joelhos ,quando ouvirem ,
ou lerem , que devem eſtar em pè diante dos Sacerdo
tes , que na ſua preſença eſtiverem aſſentados ; porque
os meſmos Anjos nao permittem , nem conſentem que
os adorem os Sacerdates , à viſta dos Sacerdotes of
taõ em pè os meſmos Anjos. No Templo de Hierufalem
appareceo hum Anjo ao Sacerdote Zacharias , mas ena
pe ( por veneraçao do Sacerdocio ) eſteve aquelle Efpi
Luc. 1.5.8 pirito Angelica :Sacerdos quidam nomine Zachas
12. rias cum Sacerdotio fungeretur. Apparuic autem
illi Angelus Domini, Itans à dextris altaris incen
ſi; e querendo S. Joaă adorar bum Anjo , que no ſexo
Apocalypſe lhe appareceo gloriofo : Cecidi ut adorem
ante pedes Angeli ; o meſmo Anjo o impedio, porque
pelo Sacerdocia era tambem Anjo's. Jodo , como tam .
Apocalypl. bem ſão Anjos os mais Sacerdotes : Vide ne feceris ,
22.9 . conſervus enim tuus ſum , & fratrum tuorum Pro
phetaruum . Vejaõ agora as Senhoras feitas do barro
de Adao , se merecem ſer adoradas pelos Sacerdotes ,
de cuja adoração fað indignos os Anjos? E ſe alguma
dellas deſvanecida da ſua belleza , e fidalgnia imagina
que he hum Anjo na fermoſura , & nobreza , e pre
tende por nobre, e por fidalga ſér atè das Sacerdotes
adorada ; advirta , que Lucifer quefoy Anjo , e, ima
tentou que o adoraffe o Summo Sacerdote : Si cadens
oma .
adoraveris me : tu es Sacerdos in æternum , heo:

jor de todos os Demonios . Eſtá


Eſta be a razão altiſſima porque Santo Agoſtinho
depois de moſtrar , que os Sacerdotes fao ſuperiores ao
Ceo , mais perfeitos , que o Sol , mais puros que a Lua ,
e mais illuftres, que as Eſtrellas : accreſcenta , que lao
mais diſcretos, que os Anjos , mais ſublimes , que as
Dominações, e ſomente a Deos inferiores : Oh Sacera D. Aug.apud
dos Dei , fi altitudinem Cæli contemplaris , alcior Dionyf.Paul,
es : Si pulchritudinem Solis, Lunx , & Stellarum , in fuo folc.
pulchrior es : Si diſcretionem Angelorum , diſcre- part. 2. num.
86 .
tior es : Si omnium Dominorum Lublimitacem , fue
blimior es : Solo cuo Creatore inferior es. Atè aqua
ſe atreveo a dizer e Salamaõda Ley. nova Santo Agoſ
tinho ; porém o meſmo Deos diſſe o mais , que não ſe
atreveo a dizer o ſubtiliffimo Doutor , e grande Lu
me da Igreja ; porque diſſe por boca de hum Propheta
Rey , que os Sacerdotes erão Deoſes : Ego dixi Dii Pfal. 85.6.
eftis , porque ſaã Deoſes na grandeza , Deoſes na Ma- Vieir. Part.
geftade ,Deojės rio poder , Deoſes na adoração, e tam- 1. fol.98.
bem Deoſes no nome : Dii. Bem vejo , coma diz ogran
de Padre Joao Paulo Oliva, quefaz paſmar partici
parem os homens do titulo da Divindade : Stupet enim Patr. Oliva
divinitatis titulum hominibus communicatum ; mas Strom . Tom ,
fol. 143
todos eſtes pafmos, e admirações fufpende dizello por 1. .
boca de David o meſma Deos : Ego dixi ; Por eſta
razaõ lhe chamon tambem Deofes o Emperador Conf
tantino Magno, dando - lhe o nome que Deos lhe tinha
pofto : Vos Di eſtis à Deo conftituti ; o que appro- Div . Gregor .

port, porque o refere:o grande Pontifice e


, Oraculo da Papa lib . 4 .
Igreja Catholica Romana S. Gregorio Papa . A. con- Epift. ad
templaçao , e exclammação do meſmo Santo Agoſtinho Maur.
ainda exalta mais a dignidade Sacerdotal ; porque eles
va a tanta honra os Sacerdotes , que os faz Progeni
tores , como a Virgem MARIA Serihora nofſá , do
ſeu Filho,,. a Divino Verbo , JESU Chrifto , Filho
do
Div. Aug. in de Deos : Oh veneranda Sacerdotum dignitas, in
lib.de digni- quorum manibus Dei Filius velut in utero Virgi
tat . Sacerdot. nis incarnatur ! De maneira, que proferidas as pala

vras da conſagração, ficao os Sacerdotes ſendo de hum


certo modo Pays do meſmo Filho de Deos, aſim como
MARIA Santiſſima be fua Máy; poriſſo a Igreja na
Miſa do Sacramento põem o meſmo Prefacio do Na
tal : Per incarnati Verbi myſterium , nova mentis
noftræ oculis lux tuæ claritatis infulſit ; porque af
fim como o Divino Verbo tem no dia de Natal a
MARIA Santiſſima por Mãy , na iriſtituição da E1l
chariſtia tambem tem aos Sacerdotes por Pays; e das,
qui ſeſegue, que ſendo a Virgem MARIA Senhora
noja Mãy do filho de Deos ; e ſendo tambem os Sacer
dotes Pays do meſmo Filho , ficão os Sacerdotes tambem
ſendo espoſos daquella Soberana , e puriſſima Virgem ,
de quem o Eſpirito Santo tanto ſe preza de fer Ejpofo:
Cantic.9. 10. Vulneraſti cor meum foror mea Sponſa. Äffim o dif
ſe o Beato Alano em nome do Divino Verbo, fallando
Alan. Part. 4. dos Sacerdotes : Cum itaque tali ratione Sacerdotes
cap:26 ,Serm . fiant mihi quodammodo Patres , par eft , ut ean
2,
dem mecum lortianturmihiMatrem MARÍAM , &
in Sponfam acceprent. Mas na meſma fecundidade,
com que os Sacerdotes gerao , como MARIA Santiſ
fima , ao meſmo Filho de Deos , gozao os Sacerdotes
de prerogativas , e excellencias mayores , que as da
meſma Mãy de Deos , porque a Máy de Deos concebeo
Cao Verbo Divino , como dizem os Theologos tanquam
paſſivè le habens; e os Sacerdotes o gerao , e produt
5. Bernardin .
de Sena in zem agendo activè nas palavras da conſagraçao . A
Serm . 20. fe. May de Deos concebeo ao Filho , quando disſe : Fiat
mihi fecundum Verbum tuum e os Sacerdotes o geo
riæ 3. poft.
Domin . 2 . raã, quando effectivamente proferem : Hoc eft enim
Quadrag.c.7 . Corpus meum ; e nao hà duvida , que he mais no
bre
bre modo de obrar o activo, do que o paſſivo. A Máy
de Deos , quando concebeo o Verbo Divino , obrou com
mayor dilação , proferindo oito palavras : Ecce , Ancil .
la , Domini , fiat, mihi , fecundum , verbum , tuum ;
e os Sacerdotes, quando gerao o meſmo Filho de Deos
obrao com muisbrevidade, proferindo ſomente cinco pa
lavras : Hoc , eſt , enin , Corpus , neum . A Máy. Ad Roman.
de Deos , nos primeiros inſtantes, em que concebeo ao cap. 9. D.
Thom . in 3 .
Verbo Divino , nao excedia o Corpo de Chriſto , con 3
dift. 3.quæft.
forme enſina depois de S. Paulo Santo Thomaz , a
5
grandeza de huma Abelha ; e os Sacerdotes , quando
o produzem com as palavras da conſagraçao , be na
meſma grandeza , com que Chriſto reſuſcitou glorioſo ,
no
e reyna triumphant e Ceo . A Mãy de Deos gerou a
Chriſto mortal, paſivel, Sugeito como homem a fomes ,
frios , ſedes , dores., ang uſtias, lagrimas, e trabalhos;
& os Sacerdotes , quando conſagrando a Hoftia , gerað
de novo a.Chriſto , fica o Senhor impaſſivel , immor
tal, e gloriofo . A Máy de Deos finalmente , aindaque
agora quizeſſe conceber de novo ao Verbo Divino, pro
ferindo as meſmas palavras do ſeu conſentimento, de
nenbum modo tornaria nella a encarnar o Divino Ver .

bo e
; os Sacerdotes podem gerar tantas vezes ao Filho
de Deos , quantos ſãoos dias ; e cada dia o poderiaã
gerar muitas vezes ,‫ و‬fe lhe fora licito. Mais : A Mãy
de Deos , quando por virtude das palavras do ſeu coño
ſentimento gerou a Chriſto ., for individualmente em
buma ſó entidade natural , dentro de ſuas puriffimas
entranhas , e nað multiplicado nellas, ou reproduzido
em muitos corpos ; e os Sacerdotes em hum fó acto, com
a meſma prolação das palavras dà conſagração, pò:
dem gerar ao meſmo Fého de Deos em milhares; é mi
lboens de Hoftias ,ficando em cada huma dellas realmen
te o meſmoChriſto. Porèm nao he o mais admiravel ,
que
que os Sacerdotes lovem neſta grande picrogativa al
gumas ventagens à Mãy de Deos, quando ao Eterno
Pay no modo de obrar excedem os Sacerdotes.
Mais fazem os Sacerdotes proferindo as palavras
da conſagraçao , do que fez o Eterno Pay créendo com
aquelle ſeu prodigioſo Fiat tantos milhares de Anjos,
e toda eſta grande , e fermoſa machina do Univerſo ;
porque o Eterno Pay tudo o que creo : com o ſeu Fiat,
he temporal , tranſitorio',finito , ou limitado ; mas o
que os Sacerdotes produzem quando conſigrao a Hof
tia , he eterno , incorrupto, immortal, e infinito , por
fer o meſmo Filho de Deos. Por iſſo alguns Theologos
dizem , on enſinao , que a dignidade Sacerdotal não
fó.he Druna , mas infimta ; porque ſecouforme a dón
D. Thom . 1. trina do Angelico Doutor Santo Íbomaz , toda a cau
Part. Quæſt. ſa porque a dignidade de fer Máy de Deos he em MA
25. Art.6 . RIA Santiſſima infinita , reſulta , e piovem do fer de
Máy pelo reſpeito que diz ao Filho , e da grandeza do
Filho fe.collige a grandeza, e dignidade da Mãy ; Co
mo não pode haver Filho mayor do que Deos , fendo
MARIA Santiſſima Mãy de Deos “, nað be poſſivel
a Deos fazer outra melhor Mãy : Beata Virgo ( diz
Santo Thomaz ) ex hoc , quod eft Mater Dei, ha
bet quandam dignitatem infinitam ex bono infini
to , quod eft Deus, & ex hac parte non poteft ali
quid fieri melius ei , ficuti non poteft aliud melius
effe Deo . Ao ponto agorą. Se no conſtitutivo dos Sa
cerdotes entra tambem o Sacrificio , ſendo o Sacrificio .
do Altar o meſmo Deos ; fegueofe , que aſſim como a
Deos lhe nað he poſſível poder fazer melhor Sacrificio,
tambem nao pode fazer melhoresSacerdotes. Veja ago
ra VOSSA ILLUSTRISSIMA , qual be a
fua grandeza pela dignidade Sacerdotal, que ſó ella
empobreceo a Omnipotencia Divina ; porque ſe o fer
Sa
Sacerdote , hé huma dignidade tao grande , pelo reſpei
to que diz ao Sacrificio , que celebra ; ſendo o Sacrificio
infinito , infinito fica tambem ſendo o Sacerdote , como
da Mãy de Deos affirma o Doutor Angelico. E como
Deos não pode fazer melhor Māy , doque MARIA ,
mayor Sacrificio , do que o da Euchariſtia , nem Sacer
dotes mais perfeitos , que os da Igreja Catholica ; ſendo
VOSSA ILLUSTRISSÍMA Sacerdote da

Igreja Romana , que celebra tão grande Sacrificio, nao


pode o meſmo Deos fazer mayor Sacerdote , nem criar
mayor Dignidade , que a de VOSSA ILLUSTRIS
SÍMA.
Nao comparo agora a VOSSA ILLUSTRIS
SIMA com os Nabucos , Darios , Alexandres , Ce
fares, e outros Monarchas , e Emperadores do Mun
do , por não offender a ſua grande Dignidade , igua

lando o infinito com o limitado , eo Divino com o hu


mano ; mas nao deixarey de ponderar , que competindo
Nabuco com Deos , ficou Nabuco convertido em br14
to , e depois que reconhecèo a Deos, como Superior a to
dos os habit adores da terra , foy reftituido ao throno
como Emperador : intentando Darioempobrecer a Om
nipotencia Divina , prohibindo que ſe lhepediſſem mer
cès, para Deos não poder fazer beneficios ; nao impe
dio , que' a Divina Omnipotencia livraffe a Daniel
do lago dos Leões : aſpirando Alexandre a fer Divino,
como Filho do Deos Jupiter , nao conſeguio a Divin
dade entre os Deofes do Olympo , ſenão que de Olym
pras foſe publica a humanidade ; é fingindo os Ronia
nos , que Ceſar depois de morto fora collocado no Ceo
entre as Eſtrellas , quando o fingimento chegaſſe a ſer
verdade , nunca podia fer Deos hum Cometa . Porèm
VOSSA ILLUSTRISSIMA com a ſua gran

de Dignidade , ſendo mais alto , que o Ceo , mais luzi


**** do , que
do , que o Sol , mais claro, que a Lula , e mais illuſtre,
que as Eſtrellas : Si altirudinem Cæli contemplaris ,
altior es : li pulchritudinem Solis , Lunæ , & Stella
rum , pulchrior es : nað ſó eſcurece a luz do Ceſareo
Corneta , mas tem debaixo deſeus pès ao meſmo Ceſar :
.com a ſua grande Dignidade , ſendo nað fo Deos : Dij
eſtis, mas Filho de Deos : Dedit eis poteſtatem fi
lios Dei fieri ; e Progenitor de ſeu Unigenito Filho, ex
cede ao grande Alexandre , aindaque fora , nao filho
de Nečtanabo, e de Olympias , ſeñao do meſmo Ž upi
ter ; porque Jupiter he hum Planeta inferior às ES
trellas do Ceo , ſobre as quaes collocou a VOSSA
IL LUSTRISSIMASanto Agoſtinho : Si alci
tudinem Cæli contemplaris , altior es : com a ſua
grande Dignidade empobrecendo, e exhaurindo a Óm
nipotencia de Deos , vence VOSSA ILLUSTRIS
SIMA a Dario ; porque Dario nao pode impedir , que
Deos obraſſe milagres , e fizeſſe a Daniel os mayores
beneficios ; e com agrande Dignidade Sacerdotal eftaã
como inhibidos os poderes de Deos , por não poder fa
zer mayores Sacerdotes , nem ſacrificios : finalmente
-com a ſua grande Dignidade competindo humildemente
com Deos, e produzindo VOSSA ILLUSTRIS
SIMA com cinco palavras em huma Hoſtia ao meſmo
Deos, cierno , incorrupto, immortal, e infinito, quan
do Deos com a ſua palavra Fiat tað poderoſa , é Om
nipotente , ſo creou humas creaturas temporaes, tran
fitorias, mortaes , limitadas, e finitas : triumpha tam
bem de Nabuco, a quem Deos converteo em bruto , por
querer ſendo homem , fer como Deos. Mas que muito
be , que por querer hum homem ſoberbo fer como Deos,
o transformé Deos em bruto ; ſé por eſte grande atre
vimento , converteo Deos a Lucifer em Demonio ,ſendo
Lucifer hum Seraphim ! Porèm daqui infiro eu agora,
que
que perdendo Lucifer a cadeira , que tinha no Ceo,
é ſendo arrojado à terra por indiſcreto , qui neſcio :
Perdidiſti lapientiam tuam in decore tuo , in terram Ezech .28 .
projeci te ; ſendo VOSSA ILLUSTRISSIMA 17 .
mais ſabio , ou mais diſcreto do que Lucifer , e todos
os Anjos , e exaltando-o a ſua Dignidade Sobre o Ceo :
Si alticudinem Cæli contemplaris , altior es : lidil.
cretionem Angelorum , diſcretior es : alcançarà no
Ceo por eſta diſcrição , ſabedoria , 'c exaltação a mes
ma cadeira , queLucifer là per deo .
· Prometteo Deos aos filhos de Iſraël, quando hou
verão de entrar na Terra de Promiſao , que todo olu
gar que ne la pizaffem ſeria ſeu : Omnem locum , quem Jofue. 1. 3 .
calcaverit veſtigium pedis veſtri, vobis tradam . A
Terra de Promiſao era figura do Ceo ; e deſta pro
meſa de Deos infere Origenes , que quem vencer a
Lucifer, e o meter debaixo dos pès, alcancarà no Ceo
o ſeu lugar OM ,Cadeira • Lucifer fedem habebat in

Cælis ; poftea verò quam factus eſt Angelus refu


ga , fieum vincere potero , & fubjicere pedibusmeis,
confequenter locum Luciferi merebör in Cælis. E
fe he conſequencia fundada na promeſſa Divina , que a
cadeira de Lucifer perdida pela ſoberba ', ignorancia
e indiſcrição , ſó a conſeguirà aquelle , que ſendo mais
diſcreto do que Lucifer , o meta debaixo dos pès , ven
cendo com a ſua diſcreta ſabedoria , a ſua ſoberba ig
norancia , com a humildade Chriſtãa , a ſúa diabolica
ſoberba , e com a exaltaçaõ da dignidade Divina , ofeu
precipicio diabolico : tendo VOSSA ILLUSTRÍS
SIM A como Sacerdote collocado no Ceo , a Lucifer
metido debaixo dos pès , como deſpenhado , e arrojado
na terra , e vencendo a fua diabolica ignorancia , com
a ſua Catholica ſabedoria ', e abatendo com huma
Chriſtáa humildade , a ſoberba. mais diabolica : a
**** VOS
VOSSA IL LUSTRISSIMA ſe deve, confor
me a promeſſa Divina , a cadeira , que Lucifer perdeo
no Ceo.

Toda eſta grande honra , e felicidade, que VOS


SA IL LUŠTRISSIMA poffue como Sacerdote,
1
conſegnio tambem , e com muita eſpecialidade , corno
Conego da Santa Igreja Patriarchal, e com a Digni
dade de Biſpo ; porque eſta Dignidade, e honra o exal
ta tanta ſobre os -Monarchas da terra , que juntamen
te o coroa no Ceo , para de tão ſupremo lugar , domi
nar , e reynar ſobre todos os Monarchas , Emperado .
res , e Reys do Mundo. V io o Evangeliſta S. Joao hu
ma Igreja', ou huma Sé collocada no Ceo , que ti
nha à ſua viſta hum mar cryſtalino como vidro e
Joann . Apoc. diante do ſeu throno ardiað ſete alampadas : Ecce le
4.2.5.9 .
des polita erat in Cælo : & feptem lampades ar
dentes ante thronum : & in confpectu fedis tam
quam mare vitreum fimile cryſtallo. Na circumfe
rencia deſta Sé havia vinte e quatro thronos , ou af
ſentos, em que ſeaſſentavað vinte e quatro Anciãos, co
roados com Mitras Epiſcopaes, ou Coroas de ouro : Et
in circuitu ſedis , ſedilia viginti quatuor : & fuper
thronos viginti quatuor ſeniores fedentes , & in ca
pitibus eorum coronæ aureæ . Eſtes vinte e quatro
Anciãos declarou S. João , que erão Sacerdotes , que
reynava) , e dominavao ſobre a terra : Feciſti nos
Deo noftro Regnum , & Sacerdotes , & regnabi
mus ſuper terram , e ſendo Reys que dominavað , e
Apoe. 5.10 . reynavão , eraõ tambem o Reyno de Deos : Feciſti nos
Deo noftro regnum . Por eſte Ceo , que no ſentido li
teral he o Empyreo : Sedes pofita erat in Cælo , en
tenderaõ Aureolo , e Lyra a Igreja Militante , pela
Sé a Santa Igreja Romana , em que preſide o Summo
Pontifice, Vigario de Chriſto , e pelis vinte e quatro
Anciños
for
Anci todos os Biſpo da Igrej
-deo ão
Sylvs s a , como ſe pode ver
em eira : Cælum eſt Eccleſia militans : Dei ſe . Sylveira in
É R S
des ccleſia omana , in qua fedet ummus Pon- Apoc. cap.4 .
S V
t anqu C icar q
tife
x , am hrifti ius : viginti uatuor quæft ., 13. n.
feni o E p i ſcop P M e n
ores funt mnes . orèm ochi
o , Pe. 101. fol.
Corn A e i
rei
ra , e elio lapide ntendem pelos vinte e qua
tro Ancião os mai infigne illu
s s Eva s , e ſtre Santos dá ce
n s
left g cha
ial Curia , a quem o eli
ſta mou Velhos por
reſ a ntig gra ſabe
pei uida vid dori ,
pru to da ſua f de , ade , a 290 .
den i g nifi i nnoc
cia ; e em caçã da ſua enci
rez deſcr ve o a v S
a , os eve ſitnitdos de brancio : Per hos igin- nuylveir. ibid.
quat ſenio ellig nſig m.10
uor res u ntur n i o res, & il . 5.fo
ltuift d l.
rior Sanc cæleſt C u r
i c u n t a u t e f 2
es ti is iæ : ur m e- 91 .
antiq gravi ſapie
nes ob fuam uicac tatem ntiam
prud em , , i ep,u
enti f veſti a nno
ac i c l
ti bis ob c e
pura m ,
itat
ut & celeſ n
tiam & em . Mas por eſta Curia tial , e

por eſte Reyno do Ceo , de que em varias partes falla


Eſcr ente a
itur
a , ſe deve nder lgumasvezes a Igreja
G
do t e mpo p r e ſ ente , omo ſina S. regorio Papa : Scien- D. Gregor.
c e n
dum nobis eft , quod fæpe in facro eloquio Reg . Pap. in Ho.
C præſ tem Eccl
num æloru enti por
is eſia dicitur.
m s
Send poi eſt I grej I
o s a a , ou Sé poſta no Ceo , a Sé , gre
p tam
ja , ou Curia , que no tempo reſente bem vemos
eſtab cryſ
eleci n ter h tali
da ſa ra , à viſta de um mar no
emel c a l u mil. 12. in
como idro, v h antec ao r y ſ t m e a d com
onti a l , a Mat
alam a n u a d t th . 25 .
pada , que rdem ment iant do hron ,
s inſi eilluf e o
aonde vinte e uatro q g n iſſi t r ifſim
Sace m
coroos , e os Co
negos Ancião rdot a c Mit
s, e s, d o s o m r a s, co
mo ſet
ca e
Biſp t vin quat
ro ndeen iras, aſſentos, ou
thrm os , q em aſſteent e hum I g
os em ue ſe ão: com a r e j a, uo
seme
lhan
Só tem mais ça, do que com a Santa Igreja
Patri
archa p
l; orqcuoe tem à viſta o mar , e o tejoque
nſp tan
he quafi mar : In ect ſed qua mar
u is m e;
alam a
C a p e M a y ſ p a d r d e n c o n
e na lla or emt ete as do ti

nuam
en

n
li
nuamente diante do throno : Septem lampades ante
thronum ; e como VOSSA ILLUSTRISSIMA

he hum dos vinte e quatro inſigniſſimos , e illu:firiſi


mos Sacerdotes , ou virtuofos , e Santos Biſpos Anciãos
deſta celeſtial Curia : Inſigniores, & illuſtriores cx
leſtis Curiæ : eſtando como elles aſſentado cà na terra
ſobre o ſeu throno , tambem eſtà coroado, e aſſentado em
huma cadeira là no Ceo , para de tað altolugar rey
nar nað ſomente ſobre a terra : Regnabimus fuper
terram ; mas tambem paraqueſendo o Reyno de Deos:
Fecifti nos Deo noftro regnum ; domine , e impere
fobre os Reys , Monarchas , e Emperadores do Mun .
do, ſegundo eſcreve o Doutor Maximo S. Hieronymo:
D. Hiero . Hi
namque ſunt Reges , ideft , fe & alios in virtu
nym . in cap . cibus
Duo funt cap. tibus regentes ; & ita in Deo regnum habent , &
nera 12 . ge- hoc deſignat corona in capite . Com eſtas virtudes,
quct.u. com o Sacerdocio, com a dignidade de Biſpo , e com •
dominio de Rey , domina VOSSA ILLUSTRIS
SIMA tudo quanto abaixo do Ceo , e do ſeu Creador,
vive e reyna cà na terra : Regnabimus fuper ter
ram . Porque conforme eſcreve Sylveira commentando
eſte Texto , tem VOSSA ILLUSTRISSIMA
eſte dominio ſobre o Sagrado , e profano , e tanio no Ec
clefiaftico , como no politico : Conſtituiſti nos univerſa
les principes Eccleſiæ , quia tam Sacra , quam pro
fana, cam Ecclefiaftica , quàm politica curemus , at
que adminiſtremus fuper terram. Na terra domi
na ſobre os Anjos , e Lucifer , que cahiraõ do Ceo : na
terra domina ſobre Nabuco , é o Imperio dos Alyrios:
na terra domina ſobre Dario , e o Imperio dos Per
fas : na terra domina ſobre Alexandres , e o Imperio
dos Gregos : naterra domina fobreCeſar , e o Impe
rio dos Romanos ; e na terra domina ſobre todos os
Reys , e Monarchas, que hoje mandao , e governao.2
Mundo ;
Mundo ; porque VOSSA ILLUSTRISSIMA,
e os Senhores Conegos da Santa Baſilica , ſao Reys ,
que poluindo , e governando o Reyno de Deos , impe
raó ſobre todos os mais Reys , e Émperadores do Uni
verfo : Feciſti nos Deo noftro regnum , & Sacer
dotes , & regnabimus fuper terram . E deſta forte
fe estabeleceo na Sacroſanta Baſilica Patriarchal o quin
to Imperio do Mundo , e de Chriſto ; porque he Reyno
de Deos, e do Ceo , promettido por Chriſto ao primei
10 Rey de Portugal , para elle , para ſeus deſcendentes,
e para o meſmo Chriſto.
Todos ſabem que o Reyno de Deos , e do Ceo , be
o Imperio quinto, que fuccedeo aos quatro Imperios dos
Allyrios , Perfas , Gregos , e Romanos : In diebus Daniel. 2.44.
autc m regnorum illorum ſuſcitabit Deus Cæli reg .
num . Não he eſte Reyno , ou Imperio o de Alemanha,
nem outro algum dos que atègora adquirio o valor ,
ou repartio a fortuna ; mas he hum Imperio novo , mas
jor que todos os pasſados , naõ de huma ſo nação , ou
parte do Mundo , mas univerſal , e de toda a terra.
He certo , que há de haver eſte Imperio ; porque conf.
ta eſta verdade de muitos lugares da Eſcritura. Nabua
codonoſor aquelle grande , e ſoberbo Monarcha dos Chal.
deos , ou Áfyrios, poz -fe huma noite a conſiderar , se
o ſeu vaſtiſſimo , e dilatado Imperio , ſeria perpetuo,
ou ſe depois delle ſuccederiaõ outros no Mundo'; é ador
mecendo com eſtes penſamentos, e cuidados , vio em fom
nhos aquella famoſa , e prodigiofa Eſtatua ,cuja cabe
ça era de Ouro , o peito de Prata , o ventre de Bronze,
e dahi atè os pes era de Ferro, e barro : vio tambem
que huma Pedra deſcida do alto, dando nos pès da Ef
tatua, a derrubava , e desfazia em pó ; é a meſma
Pedra creſcendo, ſe augmentava, e dilatava de ſorte ,
que ficava como hum alto monte , e de tanta grandeza,
que.
1

que enchia , e occupava toda a terra. Eſte foy o mys


terioſo ſonho de que Nabuco totalmente ſe eſqueceo, atè
que o Propheta Daniel lho trouxe à memoria , decla
randolhe tambem a ſua ſignificaçao. A cabeça de Ouro
( diſle Daniel ) ſignifica o primeiro Imperio , que he o
dos Chaldeos , ou Aſſyrios , a que ha de ſucceder o dos
Perſas : e perto de Prata fignifica o ſegundo Imperio ,
que he o dos Perfas , a que ha de ſucceder o dos Gre
gos: 0 ventre de Bronze ſignifica o terceiro Imperio, que
be o dos Gregos , a que ha de ſucceder o dos Romanos;
e o de mais de Ferro , e barro atè os pès fignifica o
quarto Imperio , que he o dos Romanos a que bà de
fucceder o da Pedra , que derrubou a Eſtatua , ea
desfez em pó : e a meſma Pedra fignifica o quinto Ime
perio , a que nenhumoutro ha de ſucceder ; porque el

le he o ultimo ; e aſſim como a Pedra ſe levantou a al


tura , e ſe eſtendeo a grandeza de hum monte , que
encheo, e occupou o Mundo todo : aſſim eſte quinto Im
perio dominarà o meſmo Mundo , e ſeră reconhecido ,
Daniel. 2.35 é obedecido em toda a terra : Lapis autem , qui per
Ibib.44 cufferat ftatuam factus eſt mons magnus , & imple .
vit univerſam terram : ſuſcitabic Deus Cæli Reg
num , quod in æternum non diſſipabitur , & Rege
num ejus alteri populo non tradetur : comminuet
autem & conſumer univerla Regna hæc , & ip
ſum ftabit in æternum . Eſta Pedra que derrubou , e
desfez a Eſtatua , he Chriſto Senhor noſſo , come diz
Ad Cor.1.10 S. Paulo : Petra autem erat Chriſtus , porque Chrif

4 to deſcendo do Ceo à terra , desfez , é derrubou os


quatro Imperios da Gentilidade , é da Idolatria , fgu
rados nos metaes, e barro da Eſtatua , que he a ma
teria de que ſe formavao os Idolos ; e com a ſua Igreja
Romana fundada em S. Pedro , encheo , e occupou toda
K redondeza da terra : Lapis implevit univerſam
terram :
Terram : tu es Petrus , & fuper hanc petram ædi
ficabo Ecclefiam meam . E efte be o Imperio eſpiritual
da Igreja Catholica , como enſina a Fé , e diſe clara
mente o Propheta Daniel a Nabucodonofor : Suſcitabit
Deus Cæli Regnum , quod in æternum non diſipabi
-tur. Porèm eſte meſmo Imperio, que ſendo de Chriſto ,tam
..bem. he temporal , porquefendo do Ceo , encheo , e occu
pou toda a terra : Lapis implevit univerſam ter
ram , prometteo Chriſto ao Senhor Rey de Portugal

D. Affonſo I. para elle , para ſeus deſcendentes, e para


o meſmoChriſto, dizendo- lhé , que elle como edifica
dor , e deſtruidor dos Reynos , e dos.Imperios , quaes
foraó os dos Afyrios, Perſas, Gregos , e Romanos ,
queria nelle , e na ſua deſcendencia eſtabelecer o ſeu Im
perio, que jà tinha fundado na Igreja Romana , para
encher , eoccupar o ſeu nome toda a terra : Ego ædifi- Monarch .
tor, & diſlipator Regnorum ,atque Imperiorum ſum : Luſitan. 3.
volo enim in te,& in ſeminetuo Imperium mihi ftabi- part . cap. 5.
lire , ut deferatur nomen meum in exteras gentes. Chronic.
De maneira , que o quinto Imperio do Mundo , ſendo Cyſt.5.3.c.3.
Imperio eſpiritual , e de Chriſto , tambem be temporal,
e dos Reys Portuguezes ; e tendo-o fundado Chriſto na
Santa Igreja Romana o eſtabeleceo depois na Sacro
fanta Baſilica Patriarchal, que por ſer Igreja junta ,
:
e unida com o Palacio d'ElReyDomus Domini jux
ta Regem , entre ElRey , e ó Ecclefiaftico eſtà repar
tido fem diviſao o quinto Imperio : 0 Ecclefiaftico com
o Summo Pontefice governarà o eſpiritual ; e ElRey
com os ſeusMiniſtros dominarà o temporal deſte quinto
Imperio do Mando, é do Ceo.
Replicàrão os Doutos contra eſte diſcurſo, dizendo, que
Imperio repreſentado na Pedra , he o meſmo Reyno
de Chrifto ; e que ſendo de Chriſto naă be , nem pode
fer do nosſo Emperador , e Rey Portuguez , poſto que
***** Seja
Jeja Catholico.O argumento parece fortiſſimo,
mas não
desfaz , antes confirma todo eſte diſcurſo. Que diſſe
Chrifto por ſua Sagrada bocca a ElRey D.Affonſo ?
Querò em ti, e na tua deſcendencia eſtabelecer hum Im
perio para mim : Volo enim in te , & in ſemine tuo,
Imperium mihi ſtabilire. Primeiramente jà nað fal
la de Reyno , como quando diſſe ao meſmo Rey : Uc
initia Regni fuper firmam petram ſtabilirem , fenao
de Imperio : Imperium ; e eſſe Imperio em quem , e
. Venhao
para quem ? Em ti, e para mim : In te mihi
Padre Vieira agora como diz o Padre Antonio Vieira , todos os
Palavr. De- Doutores do Mundo, e todos os Interpretes mais ſabios ,
ſemp . s . Mas
mais agudos ,, é mais eſcrupuloſos , e cafem -me ejte Te,
fol. 102 .
com eſte Mihi, e eſte Mihi com eſte Te. Hey de fundar
hum Imperio , diz Chrifto , em ti : In te , mas pa
ra mim : Mihi. E que quer dizer em ti , e para mim ?
Quer dizer , que férà Imperio Eccleſiaſtico de Chriſto,
e juntamente politico do Rey de Portugal. Porque he
fundado para mim : Mihi , he meu : porque he funda
do , ou eſtabelecido em ti : In te ', he teu : logo feo
meſmo Imperio he meu e teu , he de ambos ,
e eſtes
ambos ; ou eſtes dous Monarchas quaes fao ? Chriſto
que o diſe , e o Rey de Portugal à quem o diſle , ou
a quem fez tao grandepromeſſa. E porque razão depois
de dizer o meſmo Senhor : In te em ti , accreſcentou :
Et in femine tuo poſt te , e na tua deſcendencia de
pois de ti ? Porque era Imperio em promeſſa, e em pro
fecia : Teſtimonium enim JESU eft fpiritus prophe

Apoc. 19.10 . tiæ . Em promeſſa para o Rey preſente , e em profecia


para o deſcendente futuro : fundado agora em ti, e de
e na
pois levantado , e eſtabelecido nelle ; mas em ti
tua deſcendencia , ſempre Imperio para mim : In te ,
& in ſemine tuo Imperium mihi '; porque aſſim como
o Piloto governa o leme, e o Sol governa o Piloto , e
ambos
ambos governað a Náo : aſſim eu deſde o Ceo domiña
rey , e governar ey o Imperio como meu , e tu neſte Mun
do'o dominar às , e governaràs como teu . Melhorex
emplo ainda. Aſſim como o meſmo Chriſto fundou a
ſua Igreja em S. Pedro , e ſeus ſucceſſores , aſſim fun.
dou tambem o ſeu Imperio em D. Affonſo, e ſeus des
cendentes. Que diſe Chriſto a S. Pedro ? Tu es Per
dro, e ſobreeſta pedra edificarey a minha Igreja : Tu
es Petrus , & fuper hanc Petram ædificabo Eccle
fiam meam . Do meſmo modo pois em lugar de Eccle
fiam , ponha-ſe Imperium : em lugar de Meam , po
nha-ſe Mihi: em lugar de Tu es Petrus , & fuper
hanc Petram , ponha-ſe : In te , & in ſemine tuo ,
ut initia Regni ſuper firmam Petram ſtabilirem . E
aſſim como a Igreja univerſal por ſer de Chriſto , naã
deixa de ſer de Pedro , e por fer de Pedro , naa deixa
de fer de Chriſto : aſſim o univerſal Imperio , ſem dei
xar de ſer de Chriſto , por fer de Portugal , e ſem dei
,
xar de ſer de Portugal , por fer de Chriſto ſerà Im
perio de Chriſto , e juntamente Imperio de Portugal,
como antigamente foy o T hrono de Ifraël I brono de
Deos, e † hrono d'ÉIRey Salamaố : Sedit, que Salo . Paralip.1.29.
mon ſuper folium in Regem pro David patre ſuo , 23 .
& cunctis placuit. Pois ſe antigamente agradou iſto
a todos : Cunctis placuit; porque'nao agradarà tam
bem agora ? Bem vejo, que por ſer tao agradavel, todos
approvao a ſemelhança , que não pode fer mayor. Epa.
ra que a ninguem fique oeſcrupulo de fer , ou parecer
minha , ouçamola da boca do Propheta Zacharias na
meſma Igreja , e no meſmo Imperio. 3

Moſtrou Deos a Zacharias quatro Carroças, pelas


quaes tiravaõ tantos Cavallos , todos diverſos nasi co
res , e
;
primeyra Carroça eraõ Caſtanhos, os daſegunda erao
***** ij Mura
Murzellos , os da terceira eraõ Pombos , e os da quar
Zachar . 6. 3. ta eraõ Remendados , e Fortes : In quadriga prima,
equi rufi , & in quadriga fecunda , equi nigri, &
in quadriga tertia , equi albi, & in quadriga quar
ta , equi varij , & fortes. E perguntando Zacharias
a hum Anjo , que couſa eraõ aquelles Cavallos , ref
pondeo , que eraó quatro Ventos do Ceo , que ſabiao
para eſtarem em pè diante do Supremo Monarcha domi
nador de toda a terra : Iſti funt quatuor venti Cæ
li , qui egrediuntur , ut ſtent coram Dominatore
omnis terræ. Eſtas quatro Carroças ſignificavao os
quatro Imperios , que ſucceſſivamente precederað ao
quinto , fymbolizando nas rodas a ſua perpetua revo .
lução, e inconſtancia ; e nos cavallos, nao ſerem gover
nados.de homens, e por razão , mas ſem úzo della , le
vados , é arrebatados por brutos , fe repreſentava a
brutal ambição dos Monarchas , que os dominàrao ,
cada hum ſugeito à idea das proprias paixões , que
tambem ſe retratavao na diverſidade das cores . A prio
meira Carroça.era o Imperio dos Allyrios , a ſegunda
o dos Perfas , a terceira o dos Gregos, é a quarta o
dos Romanos. Mas porque reſtava ſomente o quinto , e
ultimo Imperio , declarou o Anjo a Zacharias, que ſe
repreſentava no Dominador de toda a terra , porque
apparecia depois dos quatro Ventos, e das quatro Car .
roças , figuras dos quatro Imperios , os quaes na ſua
preſença eſtao em pè como vaſſallos y Ut ſtent co
ram Dominacore omnis terræ . Eſte Dominador de
toda a terra fe repreſentava tambem em Jeſu filho
de Joſedec , a quem Deos mandava coroar pelo meſmo
Zacharias com duas Coroas , huma de Quro , e outra
de Prata , por edificar dous Templos a Deos , e ſer Sa
Ibid . 11. 12. cerdote : Ét ſumes aurum , & argentum : & facies co
ronas , & pones in capite Jeſu filii Joſedec Sacer
13:
dotis
dotis magni , & loqueris ad eum , dicens : Hæc
ait Dominus exercituum , dicens : Ecce vir oriens
1 nomen ejus : & ſubter eum orietur , & ædificabit
templum Domino : & ipfe extruer templum Domi
no : & ipfe portabit gloriam , & fedebit , & domi
lo nabitur ſuper ſolio ſuo : & eric Sacerdos ſuper ſo
1 lio fuo , & conſilium pacis erit inter illos duos.
Jeſu filho de Foſedec era figura de JESU Chriſto Se
nhor , e Redemptor noſſo , Filho do Eterno Padre: e as
duas Coroas
figuravao tambem os dous poderes ſoberanos,
que.competem ao meſmo Senhor como Filhe de tal Pay:
á Coroa de Ouro , e mais precioſa ſignificava o poder

spiritual , por fer. PontificeSummo, e univerſal da,


Igreja : e a Coroa de Prata ſymbolizava o poder tem
poral, por ſer Emperador Supremo, e univerſal de to
do o Mundo. Neſta intelligencia concordao ſem contro
verſia todos os Expoſitores. Mas com facil reparo en .
contro huma grande duvida nas ultimas palavras deſ
te grande Texto : Et ſedebit, & dominabitur ſuper
folio ſuo ; & erit Sacerdos ſuper ſolio ſuo , & con
filium pacis erit inter illos duos. Aſſentarſeba, e do
minaràſobre o ſeu Throno , e o Sacerdote tambem se
aſſentarà ſobre o ſeu Solio , e baverà grande concor ,
dia , ou concelho de paz entre eſtes dous ; Et confi
lium pacis erit inter illos duos . De maneira , que
diz o Anjo ao Propheta , que neſte quinto Imperio do
grande Dominador da terra , bà de haver dous Solios
e que reſtes dous Solios , ou Thronos , ſe haõ de afſentar
dous , que nelles preſidao, e que entre eſtes dous ha de
haver grande uniao , concordia , e paz : Et conſilium
pacis erit inter illos duos. Pois ſe Jeſu filho de 70
ſedec era.hum fó , JESU Filho de Deos , a quem
ellerepreſentava , he tambem hum ſé , como ſendo hum ,
se bà de afſentar em dous Solios, e depois de seaffentar
em
em dous Solios, elle tambem ha de ſer dous : Et confi
lium pacis erit inter illos duos ? Não se pode dizer
nem mais admir avelmente , nem com mayor propriedade.
Aſſim como Chriſto ſendohum fó , tem duas Coroas :
aſſim ha de vir tempo , em que tenha dous Vigarios ,
99!e o repreſentem na terra : hum coroado com a Coroa

de Ouro , que he o poder , e juriſdıçaõ eſpiritual : 01


tro coroado com a Coroa de Prata , que he o poder , e
juriſdicçãõ temporal. O coroado com a Coroa eſpiritual ,
he ő Summo Pontifice , que tem o poder , e juriſdic
çao univerſal ſobre toda a Igreja : Et erit Sacerdos
ſuper folio ſuo : 0 coroado com a Coroa temporal, ha
deſer o novo Emperador , que terà o poder , ejuriſ
dicção univerſal ſobre toda a terra : Ut ſtent coram
Dominatore omnis terræ : & ſedebit , & domina
bitur ſuper ſolio ſuo. Eſte he o ſentido mais proprio,
e literal deſta profecia. E quanto ao Imperio temporal,
e univerſal do Mundo, que pode parecer novidade , te
nho mais de trinta Authores, que fallaõ expreſſamen

te delle , huns antigos , e outros modernos , huns por


conhecido eſpiritode profecia , outros por intelligencia
das Sagradas Eſcrituras, e outros por diſcurſo hiſto
rial, e politico. Por final, diz o grande Vieira ,que
boa parie dos meſmos Authores põem a cabeça deſte
Imperio em Portugal , ſinalando os lugares , ou Me
tropoles deſtes dous Solios , como logo veremos.
Sobre eſtes Authores , huns Santos, e outros doua
tos , entre agora a authoridade Divina. Tornando Deos
a revelar terceira vez ao Propheta Daniel os quatro
Imperios do Mundo , para declarar mais o quinto , e
' ultimo, moſtrou a Daniel não jà quatro Metaes, nem
quatro Carroças , ſenao quatro Beſtas feras : Et qua
tuor beftiæ grandes afcendebant de mari . Eſtas
quatro grandes Feras eraõ os quatro Imperios dos Af
Syrios,
forios , Perſas , Gregos , e Romanos , a que ſuccedeo
o quinto Imperio de Chriſto, e do ſeu Catholico Em
perador : Ecce quali filius hominis veniebat , & Dan.7.13.
ad antiquum dierum pervenit , & dedic ei poteſta
tem , & honorem , & regnum , & omnes populi ,
Tribus , & linguæ ipſi ſervient. Note ſe agora mui
filius
to , muito o quafi filius hominis : quem he o
hominis , e quem be o quali filius hominis ? o Filho
do homem bé Chriſto : Cum autem venerit Filius Matth.25.30.
hominis : 0 quaſi filho do homem , he o quaſi Chriſ
to , ou Vice Chriſto. De forte , que afim como o pri
meiro Vigario. de Chriſto , que he o Summo Pontifice ,
pela juriſdicção univerſal, que tem ſobre toda a Igre
ja , ſe chama Vice Chriſto no Imperio eſpiritual ; af
Jim o ſegundo Vigario do meſmo Chriſto pelo dominio
univerſal, que terà ſobre o Mundo todo , ſe chamarà
tambem no Imperio temporal Vice -Chriſto : quali fi,
lius hominis.
Por todas as circunſtancias, que ficaoponderadas,
be o noſſo Auguſtiſſimo Monarcha o Sereniſſimo Se
nhor D. JOAM V. o primeiro Emperador do quin
to Imperio. E porque ? Porque promettendo Chriſto a
ElRey D.Affonſo I. que nelle, e na ſua decima ſex
ta geração, havia de fundar hum Reyno, e eſtabele
cer hum Imperio, para que o nome de Chriſto foſſe
conhecido, e adorado nas eſtranhas , e remotas Na
ções , como ſe vè das palavras formaes do juramento
do meſmo Řey : Dileétus es Domino, poſuit enim
fuper te, & ſuper femen tuum poft te oculos miſe,
ricordiæ ſuæ uſque in decimam fextam generacio
nem , in qua attenuabicur proles , ſed in ipfa atte
nuata ipfe reſpiciet , & videbit. Ego ædificator ,
& dilli pator Regnorum , atque Imperiorum, ſum :
volo enim in te , & in fémine tuo Imperium mihi
ſtabi
ſtabilire , ut deferatur nomen meum in exteras gen
P. Vieir . Pa- tes. Sendo o Senhor Rey D. Joað IV . a decima ſexta
lavr.de Deos geração, e o Senhor Rey D. Pedro II. a prole atte
enpenhad.şi nuada, por ſer o ultimo deſcendente da geraçaõ deci
ma ſexta , e ſe ver fem filhos do primeiro Matrimo
te ful. 58 .
nio depois di morte da Princeza a Senhora Dona Iſa
Dom Luiz de bel , à qualprole, e nao a geração ſe refere opronome,
Menezes Có ou relativo Ipfa : em ElRey D. Pedro II. como em
de da Eri- firme pedra ſe eſtabeleceo o Reyno de Portugal funda
ceira na Hif- do primeiro em Affonſo : Ut initia Regni ſuper fir
toria dePor- mam petram ſtabilirem ; para depois ſe eſtabelecer em
tug . Reſtaur. ſeu filho o Senhor D. JOAM V. o quintoImperio;
tom . 1. livro
porque aſſim como a Igreja ſe fundou em Pedro , como
2.fol. 92. An- 'em pedra : tambem como em pedra, ſefundou em Pe
no de 1640. dro o Reyno , para que fobre lao ſolidos fundamentos ſe
eſtabeleceſje o Imperio quinto de Portugal , e da Igre
ja Catholica.
Iſto profetizou antigamente Anna , mãy do Pro
pheta Samuel , quando diſſe , ou prediſſe , que Deos
havia de julgar os fins da terra , e dar o Imperio ao
ſeu Rey , paraque ſublimaſe a potencia do ſeu Chriſto:
Reg. 1.2 . 10. Dominus judicabit fines Terræ ,& dabit imperium
Regi luo , & ſublimabit cornu Chriſti fui. Alguns
Mendoç. lib. Authores , como ſe pode ver no Padre Mendoça , ?
1. Reg.Vieir. mais facilmente no Padre Vieira , cuidaráð que fal.
Palavr. de lava aqui Anna do juizo final : mas , diz o meſmo
p
D :os deſemp. Vieira , aſſim neſte lugar , como em outros, he ouca
§.X.fol.134. intelligencia das Éſcrituras ; porque todas as vezes que
Deos muda Reynos, e Imperios , e o quer manifeſtar,
repreſenta - ſe na Eſcritura fazendo juizı. Aſim o vio
o Propheta Micheas, quando Deos quiz tirar a vida, co
Reyno a ElRey Achab : Vidi Dominum fedentem
Reg.3.22.19. fuper ſolium fuum , & omnem exercitun Cæli af

fiftentem ei. E aſſim o vio o Propheta Daniel no noſſo


pro
proprio caſo , 'corno acabamos de ponder er , quando
condemnou a fogo o Cornu parvulum , e deo o Imperio

univerſal ao quafi filho do homem : Afpiciebam do


nec throni pofiti ſunt , & judicium fedit , & libri
aperti ſunt. Finalmente por eſtes meſinos termos pro
fetiza S. Joeo a deſtruição da Cidade de Roma , figura
rada em Babylonia : Cecidit Babylon magna : ideo Apoc. 18.2.8 .
in uno die venient plagæ ejus, mors, & luctus, &
igne comburetur : quia fortis eft Deus, qui judica
bit illam . Nem eke juizo , ſendo o final , podia ſer ſó
dos fins da terra, ou das ultimas acções dogenero hus
mano ; porque como enfina a Fé , e diz o Padre Mens
doça , no juizo final ha de julgar Chriſto de tudo , e
a toda a terra. Eſtes fins da terre , na fraze da Sa
grada Eſcritura , be o Imperio Romano, como ſe vio
por experiencia no cumprimento da profecia de Moyfe's:
Adducet Dominus iuper te gentem de longinquo , Deut. 28.49.
& de extremis terræ finibus in fimilitudinem aqui
la volantis ; porquegovernando o Emperador Veſpa
fiano , feu filho Tito com o Romano exercito defiru .
hio a Corte de Hierufalem , e outras muitas Cidades
dos Judeos , levando nos eſtandartes huma Aguia pin
tada , ou debuxada , que era a inſignia daquelle Impe
rio e da verdadeira Aguia ſó tinha a ſemelhança :
In fimilitudinem aquæ volantis . E daqui ſe ſegue,
que depois da extincção do Imperio Romano , que he
quarto , o Imperio , que ao ſeu Rey darà Deos , beo
quinto , e quinto tambem o Rey , a quem Deos darà o
Imperio ;; porque nenhum Rey he mais de Deos , do que
o Senhor D. FOAM V. porque a elle quadrað aspa
lavras do referido Texto de Zacharias: Ecce vir oriens
nomen ejus : & ſubter ejus oriecur , & ædificabic
templum Domino : & ipſe extruet remplum Domi
no ; porque elle edificou dous magnificos Templos a Deos
******
ein Lisboa , e ' em Mafra : 0 Tempo de Mafia expli
tada pelo verbo extruo , que nao lo ſignifica edificar ,
mas tambem compor , accumular , e aparelhar ; por
que eſte magnifico edificio accumulou o Auguſtiſſimo Se
nhor D. FOAM V. à Igreja , e a Portugal, pois o
edificou depois da Santa Baſilica Patriarchal , compor
do-o con grande magnificencia , e aparelhando-a para
Confas muito grandes , que ver ao com admiração os
Portugriezes e
, com inveja todas as mais nações : Et
ipfe extruet Templum Domino ; e o Templo de Lis
boa , que he à Santa Baſilica : Ét ædificabit Tem
plum Domino : elle ſe chama JOAM , a que profe
ticamente alludio o Propheta Zacharias, quando diſſe :
Eccé vir oriens nomen ejus ; porque à margem deſte
Texto fe acha citado o rapitulo primeiro de S. Lucas ,
aonde o Evangeliſta eſcreveo eſtas palavras , como ſe
coinmentàrd a Zacharias : Oriens ex alto : JOAN
NES eſt nomen ejus : Elle ſe nað he Sacerdote, he
todo Ecclefiaftico, é como ſe fora Sacerdote, aſſiſte fre
quentiſimamente nos Templos aos facrificios, e Officios
Divinos : Et erit Sacerdos ; por iſſo a elle darà Chrif
to o Imperio , como a Rey tanto ſéu , pois tanto exal
ta o nome , e potencia do meſmo Chriſto : Dabit Im
perium Regi fuo , & ſublimabit cornu Chrifti fui.
Não ſó o exalta com o culto , que lhe dà em Portugal;
mas tambem o ſublima , fazendo-o adorar em todas as
firas Conquiſtas, entre os que antigamente foraõ Gen
tios : Ur deferatur nomen meum in exteras gentes.
Eſte Texto entenderaõ de Chriſto S. Gregorio , S. Hie
ronymo, Theodoreto ', Beda , Řaperto , Procopio, Hu
Mendoç. lib . 8.0 , Carthuſiano; Lyra , Caetano, Abulenfe, Men
1. Reg. num . doça , e outros ; e daqui tira , ou infere Santo Agof
10.fol.365. tinho , referido por Mendoça, eſta concluſão :Frgonon
eft ſermo de Imperio , feu Regno , quod Chriſtus
à Patre
à Patre accipiet , fed quod A poſtolis, aut quibul
cunque aliis voluerit , Chriftus conferer. Os serena
ta Interpretes em lugan de Regi fuo , trulledar að :
Regibus noſtris"; e dazu infiro eu , ampañado por
Santo Agoſtinho , por taes Interpretes , e por tao
fabios , e Santos Expoſitores s; que je 12efde Texto nað
fallou Anna do-Reyno, ou Inperio , que Chrifio rece
bèra de feu 'Eterno Padre, fenao do que deo aos .Apol
tolos, ou a outros homens , a quem o qız dar : Quibuf .
cunque aliis voluerit ; Chriftus conferet ; dizendo
Chriſto a ElRey D. Affoxlo I. que a elle , e feus def
cendentes queria dar o Reyno dePortugal, e o ſeu Im
perio univerſal do Mundo : Volo enim in te , & in
ſemina cùo Imperium mibi ſtabilire : A nenhuns ho
mens veo eſte Reyno , e Imperio , fenao à Se Apoſtoli
ca , e`aos nosſos Reys Portuguezes : Regibus noftris ;
porque ſó Portugal be o Reyno , que hejuntamena
te Imperio , como do Imperio de Chriſto ſe le na coma.
cordia deſte Texto na Biblia Maxima : Sed meta
phorice regnuin ', Imperium . E como eſte Imperia
be d'ElRey de Portugal , juntamente de Chriſto :
In te , mihi ; por iſſo Anna diſſe que o Rey he de
Chrifto : Regi luo ; e Chriſto no modo poſſie
! tain
bem be deſte venturoſo Rey : Chriſti ſui. Nao o po
de haver Rey mais venturoſo, do que o Senhor Rey
D. JOAM V. a quem deo Chriſto o ſeu Imperio ;
porque o meſmoChriſto, que disſe: In memanet, & ego
in illo , eſtà tao unido com o noſſo Emperador , que
fendo doi:s Reys, e ambos Reys nosſos : Regibus nof
tris , parecem hum ſó , e o meſino Rey : Regi ſuo. Af
fim ſe cumprio no Auguſtyſimo Senhor D.
JOAM V. L.
a profecia de Anna , e a promeſa de Chriſto , porque
elle be o primeiro deſcendente da prole attenrada dade
cimaſexte geração ,‫ ژ‬com o nome de JOAM.V. que
****** ij gover
1
governa efte Reyno , ou Imperio de Chriſto, frecceden
do nelle ein razão do nome ſobre o Senhor D. Joaõ IV .
e ſó aquelle Monarcha , que ſe chamaſſe J OAM V.
por ſucceder com eſte nome no Reyno de Portugal ſobre
João IV. eſtava promettido o Imperio quinto.
Na ordem myſterioſa dos quatro Imperios dos Al
fyrios, Perfas , Gregos , e Romanos , foy o Romano,
o quarto Imperio. Todos eſtes Imperios revelou Deos an
tivamente aos Prophetas na figura enigmatica de qua
tro metaes , Ouro , Prata , Bronze , e Ferro , como na
Daniel. 1 . primeira viſão dız Daniel ; ou de quatro Carroças, ti

radas por outros tantos Cavallos Caſtanhos , Murſel


Zachar . 1 .
los , Pombos , e Remendados , como vio Zacharias ;
ou de quatro Feras 'Leaõ , Ulfo, Pardo , e de outro
Bristo , a quem o Texto Sagrado nao dà outro nome,
declarando ſomente , que he Forte , Terrivel , . Ada
Daniel . 7 . muravel, como na ſegunda viſaõ deſcreve Daniel ; ou
finalmente de quatro Rodas, pelas quaes tiravao quatro
animaes enigmaticos Homem , Leao, Boy, e Aguia , co
Ezech . 1. 10. mo ſe vê na Carroça de Ezechiel : Similitudo autem
vultus eorum : facies Hominis , & facies Leonis ,
à dextris ipſorum quatuor ; facies autem Bovis à lie
aiſtris ipſorum quatuor , & facies Aquilæ deſuper
ipiorum quatuor. Por eſta Carroça de quatro Rodas, e
de quatro animaes entender ao S. Juftino, Lyra , Mala
donado, Sixto Senenſe , e outros Expoſitores as quatro
Monarchias do Mundo , que forao os referidos Impe
rios dos Caldeas, ou Affyrios , Perſas , Gregos , e Řo
Cornel . Ala- manos , como diz o Padre Cornelio Alapide : Currus
pide comm . hic , five quadriga adumbrabat quatuor Monarchias
in Ezech.cap. puta Chaldæorum , Perfarum , Græcorum , &r Roq.
quält. 2 , fol .
manorum ; a todos eſtes quatro Iimperios deftruhio hu
955
ma Pedra myſterioſa , que na viſão de Zacharias ſe
chama Dominador de toda a terra ; e na ſegunda pro
phecia
phecia chama Daniel quaſi filho do homem , que he
tambem aquella Aguia Real, ou Imperial , que na Car
roça de Ezechiel voa ſobre todos os quatro aminaes :
Facies Aquilæ deluper ipſorum quatuor ; e ſignifica Ezech . 1 .
( como as outras figuras) Emperador do quinto Im
perio ; porque apparece no quinto lugar ( eſcrita com cin
to letras, como a Pedre) immediatamente depois donu
mero quarto, em que eſte ve o Imperio Romano. Neſta
carroça de Ezechiel, ſymbolo dos quatro Imperios , re
preſenta tambem a Aguia , conforme a intelligencia de
S. Irineo , Santo Athanaſio , Santo Agoſtinho , Santo
Ambroſio, S. Gregorio , e os Padres , e Doutores , a
quem citao, e ſeguem Viegas, Ribeira, Alcazar , Pe
feira; e outros Expoſitores a S. Joao , que voando fo
bre todos os quatro animaes , ſe remontava ſobre os
quatroEvangeliſtas, ſymbolizando o Imperio quinto, e
o ſeu primeiro Emperador: Recte acommodánt qua- Alapid . loc .
tuor Cherubim quatuor Evangeliſtis : Sanctus Joan- cit . fol.959.
nes eſt Aquila. He certo , que eſte he o quinto Impe
rio de Chriſto , que o meſmo Senhor fundou no pri
mero Rey de Portugal, depors de deſtruhir, e difſipar
os quatro referidos Imperios'
, para ſé perpetuar na ſua Monarch .
decimaſexta geração : Ego ædificator ; & diſſipator Lufit. 3. part .
Regnorum , atque Imperiorum fum : volo enim in cap.5.Chron.
te , & in ſemine tuo Imperiun mihi ſtabilire. Uf . Cyft.5.3.c.3.

que in decimam textam generationem , in qua atte- VieiraPalavr.


Ruabitur proles, ſed in ipſa attenuara ipfe refpicier, de Deos £mp:
& videbit.E eſta geração decima ſexta , como dizem $. VIII , verf.
Efte fol. 58 .
o Padre Vieira , eo Cónde da Ericeira , foy o Senh r
Rey D; Joað IV . eſtabelecida , e eternizada na fua D. Luiz de
deſcendencia , ou prole attenuada : In ipſa attenuata; da Ericeir.
a qual ſem queſtão foy o Senhor Rey D.Pedro II.a quem Hift.de Port.
Auguſtiſſimo, e Invicto Senhor D.JOAM V.fuc- Ref.Tom.1.
cedeo no Sceptro como legitimo fucceffor , e filho ; é co- liv.2.Annode
mo 1640. fol.92
mo S. Joao , ſendo hum fó, e o ultimodos quatro Evan
geliftas , parece , que nao podia voar ſobre todos qua
tro ; porque havia de voar tambem ſobre ſi meſmo , e
fobre os outros tres animaes, ou Cherrbins, que occii
pavao os primeiros lugares, ficando elle no ultimo ; por
ijo Joao quando voa ſorre foað o quarto Cherubim, ou
animal enigmatico da Carroça de Ezechiel, era figura
expreſſa de JOAM V. porque em quinto lugar fica
JOA M remontando fe no voo ſobre Yoao IV ; por
que ſobre o quarto , não voa , nom pòde ſubir immedia
. Eſta me parece a
tamente outro numero, fenaõ o quinto
razão altiſſima, porque o quinto Imperio do Mundo, fi
g ?!Tudo em Joãő ,e prometido por Chriſto a outro 70AM
deſcenden :e do Senhor D. Affonſo I. e da prole attes
nuada da ſua decima ſexta geração , nao compete , nem
pode competir a otro Monarcha , finañ a hum Rey de
Portugal chamado JOAM V. porque ſó ſendo-elle
JOA : 1, deſta categoria voa ſobre 7010 IV. e como
Agnia myſterioſa ſobre outra. Agria , ſymbolo , e inſignia
do quarto Imperio dos Romanos , a que ha de fucceder
o quinto. Porèn elſim como a Agria , ſendo hum jo
animal , e voando fjöreſi mimi, ripreſe:ziavà dous
animaes, mas tam tenidos , e conformes como ſe for ao
hum fo : aſſim tambem João , ſendo hum ſo Evangeliſ
ta , repreſenta duas peſſoas ,huma Ecclefiaftica , e ou
tra ſecular : hum Emperador , e hum Pontifice , que
São os dous Vigarios de Chriſto do quinto Imperio , mas
tão conformes , e unidos entre ſi , como ſe forao huma
ſo peſſoa , ſendo realmente duas pacificamente unidas
como Chriſto , e o ſeu Rey : D.bit Imperium Regi
fuo : & confilium pacis erit inter illos duos.
Como eſtes Vigarios de Chriſto, ſendo duas peſſoas,
hao de ſer tão conformes , e não de reynar tað unidos
como ſe foraõ huma ſó : tambem baõ de aſiſtir em hu
ma
ma Corte , que ſendo huma ſó Cidade, ſeja juntamen
te duas Cories. Alguns Authores , a quem ſegue o Pa
į dre Vieira , dizem , que em Lisboa eſtar ao eſtes dous
Vigarios de Chriſto ; por iſſo o Pontifice Clemente XI.

1 e o Senhor D.JOAM V. ſem dividirem a Corte , re

I pararao a Cidade de Lisboa em duas partes Oriental ,

3 e Occidental, diſpondo myſterioſamente ElRey de Por


tugal, e o Pontifice Romano , que eſta ſó Cidade fore
juntamente duas Cortes , para nella reſidirem os dous
Vigarios de Chriſto, Para que os Romanos , e os Por
tugue zes conheção , que ſem lifonja digo a verdade, ou
çaõ a S. Joað fallanda de Lisboa, e de Roma. Da Ci
dade de Roma profetiza , que ha de ſer deſtruhda, e
affollada , detalforte, queficaràtotalmente deſerta, co
mohabitação dos Demonios, e não dos homens : Cecidit, Apoc. 18. 2.
cecidit Babylon magna , & facta eſt habitatio Dæmo
niorum . Aſſim o entendem S. Hieronymo, Santo Agor
tinho , Santo Ambroſio , Santo Thomaz , Ecumenio
Tertuliano , Andrè Ceſarienſe , Aretas , Menochio ,
Sà , Ferrario , Caſſiodoro, Beda, Alapide, Vieira,
e outros Padres , a quem ſeguem concordemente Inter- Sylveir.com .
pretes , e Theologos : Per Babyloniam Romam intel- in Apoc . cap.
.8.quælt.
ligunt : eſcreve Sylveira , provando a ſua ſentença com 14.v.
humas palavras do Apoſtolo S. Pedro: Salutar vos Ec- 21.nu??).100 .

cleſia , quæ eſt in Babylone collecta. Não ſerà deſ- Petr .Epift. 1 .
truida Roma pelo que hoje he , ſenao pelo que antiga. cap . $ . 13 .
mente foy , e ainda ha de ſer : Roma eſpiritual he eter.
na ; porque contra ella naš prevalecerað os conſelhos ,
Matth.16.18
ou portas do Inferno : Portæ Inferi non prævalebunt
adverfus eam ; mas Roma a temporal, fugeita eſtà co
mo as outras Metropoles das Monarchias , e nað fó file
geita , mas condenada ao Cataſtrophe das couſas muda .
veis, e aos eclypſes do tempo , por caſtigo dos grandes
peccados das ſuas antigas idolatrias , das perſeguições
dos
dos Catholicos, e de outros graves delictos , que ainda
ha de cometer no tempo futuro , como àlem de outros
diz Sylveira na expoſição deſte Texto : In everfio
ne Romanæ civitatis, puniec Deus idolatriam Ro
mæ Ethnicæ ; puniet perſecutiones omnes , quas
fecit in Chriftianos , & puniet omnia alia crimina
quibus eſt fornicata. Sem offenfa da Sé Apoſtolica o
pregou aſſim à meſma Roma o grande Padre Vieira
na occaſião , em que lhe repreſentava eſta tragedia nas
cinzas , em que os Romanos como homens ſe converter
H
depois de mortos. Porém em outras cinzas lhe podia
moſtrar com igual verdade eſte deſengano , que ſão aquel.
las, a que reduzirà a Roma hum voraciſſimoincendio :
Apoc . 18.8 . Igne comburerur ; ficando Roma nað fó queimada ,
Jenao totalmente deſerta , ſendo habitação nao de ho
Sylveir . in mens, ſendo de Demonios : Ficta eſt habitatio dæmo
Apoc.cap.18. riorum : per quod fignificatur magna urbis folitu
1. n. 6. fol. do , ubi erat magna frequentia : ac proinde civitas
folo #quata in magnum defertum redigenda eſt : ſo
338 .
lent enim dæmones in locis deſercis , & horribili
bus commorari . Chegando pois Roma a eſte miſeravel,
e laſtimoſo eſtado , ou antes de padecer tão juſto , e ſe
vero caſtigo, ſahir à da Corte Romana a Santa Igreja
de Roma , para não participar dos ſeus delictos nem
Apoc. 18. 4. dos ſeus caſtigos : Exite de illa populus meus : ut
ne parcicipes licis delictorum ejus, & de plagis ejus
non accipiatis ; e como em alguma Cidade Catholica
ha de collocar o Pontifice a Cadeira de S. Pedro , em
Lisboa ficar à de aſſento a Santa Igreja de Roma ; por .
que Lisboa he Corte de hum Reyno puro na Fé : Fide
purum : Lisboa he Corte de hum Reyno amado , e efe
colhido por Chriſto , pela ſua piedade , para nelle com

a Cadeira de S. Pedro eſtabelecer o ſeu Imperio : Pie


fate dilectum : Lisboa he Gorte de bum Rejno o mais
ſeme
femelhante à Igreja : e Lisboa he Corte de hum Rer
no , que em todas as quatro partes do Mundo meteo
fempre, e meterà debaixo dos pès o Imperio dos Turcos,
e dos Mouros , para fobre a potencia Othomana , é
Mahometana aſentar o T hrono da Igreja , ou Cadei
ra de S. Pedro , exaltandoa , e ſublimandoa a tanta
altura , que a por à ſobre as pontas da Lua.
No ſeu Apocalypſe vio S.João huma Mulher vef
tida da'luz do Sol , coroada com doze Eſtrellas , e
com a Lua debaixo dos pès : Mulier amicta Sole , & Apoc . 12. I.
Luna fub pedibus ejus , & in capite ejus corona
Stellarum duodecim . Eſta Mulher veſtida das luzes
do Sol , be a Igreja Catholica , que eſtà veſtida da
luz de Chriſto, que naſceo como Sol : Oriecur vobis
Sol : Mulier amicta Sole ; e neſte ſentido entendem
commummente eſte Texto todos os Padres, principalmen
te Latinos, como eſcreve Sylveira : Per eam intelli- P. Sylveir. in
gunt Eccleſiam . A coroa de doze Estrellas , ou as Apoc.cap.11.
verf. 1.expof.
doze Eſtrellas da coroa , ſao os doze Apoſtolos , con
forme omefmo Sylveira : Per duodecim Stellas intel- 1.9.1 . fol . 2 .
ligunt duodecim Apoſtolos; e por liçaõ de S.Boaven- Sylveir. ibid .
tura diz o meſmo Expoſitor , que pelas doze Eſtrellas 6.91 .
ſe pòde entender a Aureola dos Meſtres , e Doutores :
Corona verò Stellarum fignificat Aureolam Doc . Sylveir . ibid .
forum ; porque com as Doutores , Meſtres , e Apofio. n . 199
los , fé coroa a - Igreja como com Eſtrellas : Qui ad Dan . 12.3 .
juſtitiam erudiunt multos , quali ftellæ in perpe
tuas æternitates ; poriſoa Igreja Catholica em todas
as Ses tem duas Cadeiras para os Meſtres , e Douto
res , e por reſpeito dos doze Apoſtolos tambem ſe cha
ma Apoſtolica , coroando- ſe com tað luzidas Ejtrellas:
Er in capite ejus corona Stellarum duodecim
e a Lua debaixo dos pès be o Imperio do Turco , e a
Lua Othomana , que a Igreja com os pès muitas v2
******* zes
zes tem pizado. No anno de 1683. pizou com os pès
o Sumnio Pontifice Innocencio XT. o grande Eſtandar
te de Mafoma , Suprema , e mayor inſignia do Impe
rio Othomano que Mahometo IV. Emperador dos
Turcos deo por ſua propria mão n i Cidade de Adria
nopolis a Carà Muſtafá ſeu Grao Viſir, ao qual ver
ceo Innocencio XI. com as ſuas orações , e com os foc
Hiſt. do Em
perador Leo corros , que deo ao Emperador Leopoldo I. pořiſſo
pold.I. Tom .foað III. Rey de Polonia conhecendo , que nao ao len
3. cap.2. An- grande valor , nem ao braço invencivel de Carlos v .
no de 1683. Duque de Lorena, mas à Igreja ſe devia a victoria,
fol. 98 . e retirada de hum exercito , que conſtava de trezentos
mil homens, por hum Prelado de grande authoridade
mandou pôr aos pès do Pontifice , e da Igreja com
aquelle Eſtandarte a Lua Othomana , ficando a Igre
ja tað exaltada , como poſta ſobre as pontas da Lua , e
a Lua tao abatıda , como pizada com os pés da Igre
ja : Ec Luna ſub pedibus ejus ; mas porque S. Joao
deſcreve a Igreja na metaphora de Mulher, tambem
neſta allegoria falla de Portugal, e da Cabeça de Por
tugal , que he Lisboa , aonde Chriſto prometteo efta
belecer o ſeu Imperio , e o da Igreja , por ſer Reyno
eſcolhido pela pureza da ſua Fé : Fide purum , pie
tate dilectum . A Mulher pois veſtida da luz do Sol
eſtà dizendo , que he a Luſitania , duas vezes veſti
da das luzes de Chriſto : a primeira quando ſe veſtio
da luz do meſmo Sol Divino 7 E SU Chriſto , rece
bendo a ſua Fé, e o Bautiſmo ; porque todos os que ſe
bautizao, e recebem a Fé, ſe veſtem da luz deſte Di
Ad Galat. 3. vino Sol , como diz S. Paulo: Quicumque in Chrif
27 .
to baptizati eftis , Chriſtum induiſtis : a ſegunda ,
quando no campo de Ourique na eſcuridade da noite
foy novamente illuſtrada , ou veſtida com as luzes de
Chriſto , que da parte do Oriente vinha mais reſplan
de
derente , que bum ra
jo , e que todos os rayos do Sol :
Vidi ſubito à parte dextra Orientem verſus mican
tem radium : as doze Eſtrellas poſtas por coroa da ca
beça da Luſitania , ſao os doze Biſpos , e Arcebiſpos
do Reyno de Portugal , cujas Metropoles ſerven de
diadema à Corte de Lisboa. Eſtas ſão Braga, Evora,
Coimbra, Leiria , Guarda , Lamego , Viſeo, Por
to , Miranda, Portalegre, Elvas ,
e Faro , as quaes
completamente fazem o numero de doze Eſtrellas:
Et in capite ejus corona Stellarum duodecim . Nef
te ſentido , que he o Tropologico , entender ao Pannonio ,
e Alapide os Prelados pelas dozeEſtrellas ; porque com
a ſuagrande fabedoria , e ſantidade Jaõ coroa de Chrif
to , e da Igreja : Notar Pannonius duodecim Stel- Alapide cap .
las eſſe Prælatos quofibet , qui hic admonentur 12. in Apoc.
tol. 201 .
eximiæ fapientiæ , & fanétitatis : nam ipſi funt co

rona Chrifti , & Ecclefiæ ; e se quizermos coroar a


Igreja com a Aureola dos Meſtres , e Doutores , na
Univerſidade de Coimbra temos as mais luzidas Eſtrel
las , e da mayor grandeza , para fazer o diadema da
Igreja : Corona verò Scellarum fignificat Aureo
Jam Doctorum . Aſſim o eſcreveo ao Reytor da Uni
verſidade de Coimbra o Papa Clemente XI
. reſponden.
do à carta , em que eſte nobiliſſimo , e doutiſſimo Prea
lado punha aos pès de Sua Santidade a ſua peſſoa ,
todos os Academicos , e o aſſento , que em clauſtro ple
no fez com juramento a meſma Univerſidade , de de
fender a Bulla Unigenitus atè derramar o ſangue , e
perder a vida : Nec fane aliter opinari fas erat de
Academia , in qua Orthodoxa Fides præſidium ,
& decus maximum , fancta verò hæc Sedes præci
puum , ac inviolabile obſequium ſemper invenit.
E quando os Hereges pertendiao atropellar a Conſtit 1
çao Apoftolica de Clemente XI. pondo a Univerſidade
******* de
* ij
de Coimbra aos pès de Sua Santidade a fra obedien
cia ,
a Sé Apoſtolica poz na ſua cabeça eſtas Acade
micas Eſtrellas por coroa : Ec in capite ejus corona
Stellarum duodecim ; e a Lua debaixo dos pés da
Mulher veſtida de luzes, ou da Luſitania , he a Lua
Othomana ; porque Portugal foy o primeiro Reyno,
que ſe livrou do jugo dos Sarı acenos , e Mahometa,
nos e depois de tað famoſas victorias , meteo ſempre
as Luas Othomanas debaixo dos ſeus pès : Ec Luna
ſub pedibus ejus. Toda a empreza do Imperio Otho
mano , be que a ſua meya Lua encha, e occupe o Mun
do todo : Donec totum impleat orbem ; e o timbre
da Lufitania he calcar , pizar , e meter debaixo dos
pès a meſma Lua , até que a lance fóra do Mundo ;
Donec auferatur Luna , ou como declara o Texto na
Pſalm . 71.7. verſão Hebrea : Donec auferantur ſervi Lunæ. Os
Pregadores quando explicaộ eſte lugar do Apocalypſe,
dizem , quea Mulher , figura da Igreja , eſtava coroa
da de Eſtrellas , veſtida do Sol , ecalçada de Lua.
Eſte modo de fallar , diz o Padre Vieira, que be ele
gante , mas improprio. O Texto naõ diz , que a Lua
ba de calçar a Mulher , ſenað que a Mulher ha de
calcar a Lua , metendoa debaixo dos pès : Luna ſub
pedibus ejus ; e aſſim vay metendo a Igreja a Lua
Othomana debaixo dos pès', e os vaſſalios , ou fer vos
da meſma Lua , com as victorias, que por mar , e ter
ra glorioſamente tem conſeguido , nas quaes ſempre te .
ve grande parte o Reyno de Portugal.
Aſſim lemos , que q. Conde D. Henrique , de quem
deſcendem os Reys Portuguezes , venceo , e desbaratou
muitas vezes aos Mouros na Europa , e na Afia , fen
do hum dos doze Capitães , por quem ſe repartio o go
verno das armas Catholicas na Conquiſta de Hieruſa
bem : elle lançou fóra os Mouros de muitas terras de
Portu
Portugal , depois deos vencer , e deſtruir muitas ve
zes em Caſtella : D. Affonſo 1. toda a vida gaſtou em
deſtruhir , e vencer os Mouros, cativando na prodi
gioſa victoria do campo de Ourique cinco Reys , como
Joſue, para neſte cativeiro principiar a repreſentação
do Imperio quinto ; porque tinha cinco Reys tão podes
rofos ſugeitos à ſua obediência. Na entrada de Miramo.
lim vencèo ElRey D. Sancho I. quatrocentos mil ca.
vallos, e quinhentos mil Infantes, de que ſecompunha
o formidavel exercito dos Mouros , répartindo -ſea Vic
toria , como a de Gedeao , entre e eſpada de Deos e
a de Sancho , continuando em vencer fóra de Portu
gal os Sarracenos , cam o braço do Meſtre deAviz na
batalha de Alarcos : contra D. Alfonſo Il. fe aquar
tellarað em Elvas com numeroſos exercitos os dous Reys
Mouros de Sevilha , e Jaen ; porèm Affonſo, que com
o nome herdou o valor de ſeu Avô , não ſó venceo em
batalba campal aos dous Reys ; mas entrando como
vencedør por ſuas proprias terras, caſtigou com ferro,
e fogo , todo o Reyno de Andaluzia : ElRey D. San
cho II. que injuſtamente infamaraõ de pouco cuidadoſo;
porque fizerao a comparaçað entre elle , e os valeroſos
Reys , que o precederao , nao fez tao pequena guerra
aos Mouros , que lhe não tiraffe da cabeça a Coroa
do Reyno dos Algarves : D. Affonſo III. venceo os
Mourosdentro em Portugal , lançando-os totalmente
fóra deſte Reyno , e conquiſtando-lhe fóra delle muitas
Villas , e Caſtellos : ajudou ElRey D. Diniz I. a El
Rey D. Fernando de Caſtella na intentada Conquiſta
do Reyno de Granada : com as forças de toda a Afrue
ca paſfou ElRey de Marrocos a ſoccorrer os Mouros
de Granada , é duvidando os Catholicos dar batalha ,
por ſer innumeravel a multidao dos barbaros , D. Af
fonſo IV . que de Portugal tinha paſſado a Sevilla ,
foy
foy o que aconſelkou a batalia , é o primeiro, que
a venceo : ElRey D. Pedro I. e ElRey D. Fernando I.
como nao tinhao Mouros dentro no Reyno , deixar að
tomar alento aos Portuguezes , para continuarem as
Conquiſtas nas terras Africanas, onde ElRey D.
Joað l.
em bum fo dia tomou , e ſugeitou à ſua Coroa a famo
ſa , e fortiſſima Cidade de Ceuta : Fiftentou - a podero
Jamente ElRey D. Duarte ; e logo ElRey D. Affon
fo V. tendo jà tomado Alcacer aos Mouros , fe fez
tambein Senhor de Tangere : proſeguio a meſma em
pieza , e com mayor fortuna ElRey D. Joao 11. por
Widt" , e terra , ganhando Praças , fundando Fortale
zas , e ſe paſſara , como intentou , peſſoalmente a Afri
leking conquiſtara toda eſta parte do Mundo ; porque
ſó a fama de que paſſava , baſtou para conſeguir o ſeu
intento : conquiſtou ElRey D. Manoel I. muitas Cida
des Africanas , e fez outras tributarias , e não conti
nuou neſta empreza , porque intentou conquiſtar a Hie
ruſalem , como repreſentou aos Summos Pontifices por
ſeus Embaixadores, para que ſe fizeſle guerra ao Tur
co por ambos os mares, e que elle tomaria por ſua con
ta toda a do mar Roxo, é ſuſtentaria no Mediterra
neo trinta galeões de guerra :D. Joað 111. ajudou a
guerra de Tunes com huma competente Armada, fa
zendo no Oriente , e Occidente eclypfar as ſuas Luas:
ElRey D. Sebaſtião peſſoalmente entrou na Africa ,
aonde ſe perdeo a batalha , deixou dous Reys mortos
na campanha , e os Mouros no ultimo eſtrago. Entre
tantos gaſtos , e cuidados enthefourava dinheiro o Se
nhor D. Joao IV.como declarou a hum ſeu confidente,
ſegundo refere o Padre Antonio Vieira, o qual preſua
mo fer o meſmo confidente, que nos dà eſta noticia, pa
ra com eſte dinheiro, depois da guerra de Caſtella, fazer
guerra ao Turco. Morreo aquelle Precurſor da noſſa li
berda .
e do ada e
dad xan a le enu ell an
gu ber , dei na ſu pro att aqu gr
dol de Rey ó Senhor D. Pedro II. qu:e foy a Pedra , em que
ari Chriſto Senhor noſſo tinha promet tido eſtabelecer os fun
damentos do Reyno : Ut initia Regni fuper firmam
paol. petram ſtabilirem ; o qual foy tão inclinado a eſtagier
amat ra , como teſtemunha o grande foccorro , que mandou
deri contra o ſitio de Oran , e as duplicadas Armadas con

tieth tra a Cidade de Argel .; offerecendo-ſe contra o Turco


723 ao Promotor deſta guerra o Santiffimo Pontifice Inno
cencio XI . com tão prompto ſoccorro , que foro pri
meiro que appareceo em Roma . Finalmente o Auguſtiſ
tale fimo Senhor D.JOAMV não ſó conſerva as nosſas
the armas na Africa , como chave Meltra para abrir as

1le portasaos Soldados conquiſtadores deſta dilatada par


fell te do Mundo ; mas em foccorro da Igreja mandorl ao
Mediterraneo muitos Galeões de guerra , que vence
Cida
conto rão primeiro doque outras Néos de guerra a podero
Hill ſa Armada do Turco ; ſendo feliciſſimo annuncio de que
Portugal deſtruirà totalmente o Imperio Othomano ,
vencer a Capitania dos Portuguezes a Capitania dos
Turcos : teſtemunhando naquelle naval conflicto os Tur
cos vencidos, e os Catholicos vencedores , que ſó osPor
tuguezes com o fumo dos ſeus tiros podem eclipfar as
ſuas Luas , e tirallas deſte Mundo com os golpes das
f.
ſuas balas : Donec auferatur Luna.
110s:
Sobre eſtes, e outros grandes merecimentos de Por
tos tugal, e ſobre a promeſa de Chriſto , aſſentarà o fa
- vor do Ceo , quando deſtruhida a Cidade de Roma,
paſſarà para eſte Reyno à Cadeira da Igreja , como
santou o nosso Poeta , ou Homero Luſitanio ; porque

ef1 Via eſtar todo o Ceo determinado ,


De fazer de Lisboa noya ' Roma ..
ZET
ali Então verão os Portuguezes , e todas as nações 'do
Man
Mundo , que Deos func ! on eſte Reyno , para eftabelecer
nelle oſeu imperio , e a lua lgreja ; deſtinando ſempre
aos Portuguezes para ultimos vingadores das injurias,
e injuſtiças feitas aos Catholicos ; e por iſſo lhe infun
dio nos corações hum fino amor para com a igreja , e
hum refinado odio contra osſeusinimigos. Donde vinhaa
Moyfe's aquella averfað naturalcontra os Egypcios , com
gite ſendo homem , vingava nelles com a morte as inju
sias feitasaos Hebreos , que eraõ a Igreja daqrelle tem
Num . 20. 4. po : Cur eduxiſtis Eccleſiam Domini in ſolitudinem ;
e ainda ſendo menino , e innocente, metia eſte grande
Propheta debaixo dos pès a Coroa de.Pharaò , ſenão
porque Deos forjava, elavrava nelle o cutello do Egipto,
aruna de Pharaò , é do ſeu barbaro Imperio ? E poique
fwy Samſão tão contrario dos Philiſteos , Gedeão dos !
1
Madianitas, Jofriè dos Camaneos , ſenão porque aos
cabellos de hum e aos fios das eſpadas dos outros tie

nha Deos vinculado os caſtigos daquellas nações inimi


gas de Deos ? Com razão poſſo lngo inferir pelos Ca
nones , e regras univerſaes da Juſtiça , e Providencia
Divina , que os Portug nezes , e os ſeus Auguftiffimos,
e valeroſiſſimos Reys , bão de ſer os Moyfes , os Ge
deões ; os Sansões , e os fuès da potencia , e tyran
nia Othomana , é os libertadores gloriofos da Terra
Santa > é Caſa de Hierufalem , lançando fóra della
a ſua Lua : Donec auferatur Luna , e metendoa de
baixo dos pès da Igreja : Et Luna fub pedibus ejus ;
porque aos Portuguezes eſcolheo Deos para eſta gran
de empreza, revelando aos Prophetas, que depois de
caſtigar a Roma, bà de pôr em Lisboa a fua Igreja ,
dando o ſeu Imperio ao ſeu , e noffo Rey: Dominus ju
dicabit fines terræ , & dabit Imperium Regi ſuo .
A eſta myſterioſa razão tirada do Texto Sagrado

ajunta outra politica Juſto Lypſio , varað incomparavel


nas
was noticias do Mundo antigo, e moderno , é diligentif
fimo obſervador das declinações, e angmentos dos Rey
nos , e Imperios , e das cauſas porque huns ſe levantaó,
e outros cabem : huns dominaó, e outros ſervem : huns
naſcern , e outros morrem , e quaſi debaixo da ſepultu
Vieira Palav.
ra alguns tal vez reſuſcitao.Eſta razão politica inferio
elle prudentemente da liçaõ de todas as hiſtorias do Mundo Prèg.Em

do ;porque a experienciahavidapelas hiſtorias, he aquel- fendida s. x,


le e pelho inculcado por Salama), em que olhando para fol.205.
o paſſado ; ſe antevem os futuros : Quid eft quod fuit?
Ipfum quod futurum eſt : quid eft quod factum Ecclef. 1.9.
eit ? Ipfum quod faciendum eft. E poſto que eſtes de
pendao dos decretos Divinos, pelos effeitos , que os olhos
vem dos meſmos decretos , nað ſó conhece o diſcurſo hu
mano quaes elles foſſem , mas ainda quaſi com certeza ,
quaes hajao de fer . Ajjim o notou o grande Meſtre da
Politica , advertindo ( e pedindo ſe conſidere ) que o po
der , e dominio do Mundo ſempre veyo caminhando
eu defcendo do Oriente para o Occidente : Neſcioquo
Providenciæ decreto res & vigor , ( conſidera fi
voles ) ad occaſum eunt. O primeiro Imperio , que
foy o dos Afljrios, e dominou toda a Aſia , tambem foy
o mais Oriental: dalli paſſou aos Perfas mais Occiden
taes , que os Alyrios : dalli aos Gregos mais Occiden
taes, que os Perjas : dalli aos Romanos , mais Occio
dentaes , que os Gregos ; e como jà tem paſado pelos
Romanos , e vay
e vay levando o ſeu curſo para o Occiden
te , havendo de ſer como he de Fé, o ultimo Imperio ,
aonde pòde hir parar ſenaõ na gente , e Cidade mais
Occidental de todas ?

Mas porque o meſmo Author deſta advertencia Vieira Palav.


confeſſa ignorar arazao della , e a da Providericia De do Prèg.Ş.X.
fol.209.
vina em bum tal decreto : Nefcio quo Providencie
decreto , não ſerà temeridade , nem conſideraçað fis
********
per :
Theodoreto referido por Sylveira : Cornuia divina
Scriptura , aliàs pietatem vocat , aliàs potentiam ,
Sylveir.com
aliàs regnum , e para fazer eſta exaltação em huma
in Apoc . cap :
17.quæft.26. Igreja, que em Lisboa Occidental , ou Mafrenſe, fem
num.221.fol.pre eſtà unida com o Palacio do Rey , ſahio a primeira
322 forte a Joſeph : Ut exaltaret cornu in miniſteria Do
mus Domini juxta Regem : Egreſſa eſt ſors prima
Jofeph . Pois aſſim como ao Principe ſahio a primeira
forte para exaltar a potencia de Chriſto , tambem lhe
Jahio por forte a fo :meira Cidade de Lisboa , que he a
Oriental, para ter nella a ſua Corte. Em pouco diffe
re Corte , de forte ; por iſſo pela primeira forte ſe pode
tambem ler , e entender a primeira Corte.
Mas vejo, que todos meeſtaóperguntando a razañ
porque farà Deos tantas merces ao noſſo grande Empe
rador ŞQAM o Magno? Primeiramente reſpondo con
S. Paulo , que os juizos de Deos ſao incomprehenſiveis.
Porèm ſé pela experiencia do paſſado ſe alcança o co
nhecimento do futuro , como ha pouco diſſe com Sala
mao, pareceme que dará Deos o quinto Imperio a JO AM
o Magno , porque lhe edificou dous grandes Templos.
No tempo paſado prometteo Deos a ElRey David , que
amaria como pay a ſeu filho Salamað , perpetuandólhe
o Solio , ou Throno do Reyno de Iſraël para ſempre ; por
Paralip. 1.22 . que o meſmo Salamað lhe edificaria hum Templo : Ipfe
10 . ædificabit domum nomini meo : & ipſe erit mihi in
filium , & egoero illi in patrem : firmabo que folium
Regri ejus fuper Ifraël in æternum . Com eſta cer
teza diſſe David a toda a Igreja , que ſeu filho Sala
mao eſtava eleito por Deos para ſer o mayor Monarcha
de Iſraël ; porque fizera huma obra muito grande,
que era , nað o Palacio, que edificàra para ſi , ſendo o
Templo , qrie dedicara ao meſmo Deos : Locutuſque
eft David Rex ad omnem Eccleſiam : Salomonem
filium
filium meum unum elegit Deus adhuc puerum , &
tenellum , opus namque grande eft , neque enim ho
mini præparatur habitatio , fed Deo . O meſmo digo eu
atoda a Igreja:eleg èo Deos afOAMoGrande paraEm
perador do quinto Imperio , ſendo ainda menino, por
que lhe havia de edificar , e conſagrar dous magnifi
cos Templos, não como habitação de homens, mas co
mo caſas de Deos : Ipfe ædificabit domum nomini
meo : firmabo que folium Regni ejus : opus namque
grande eft, neque enim homini præparatur habita
sio ,
ſed Deo. Edificar Templos à Deos, e ſervir a
Deos, he a cerdadeira grandeza; por iſſo chamey ao
110/70 Monarcha
JoAMO Magno, eJoÄMo Grande;
porque em todas as ſuas obras, e acções he grandioſo ,
ao Grandes Ale
e magnifico. Por antonomaſia ſé chamar
xandre Magno, Pompeo Magno, e Julio Magno , ſem
outro merecimento que o de ſerem grandes Tyrannos.
E em que paràrão as grandezas dos Cefares , dos Pom
peos , e dos Alexandres ? Acabàrão em nada . Ao Em
perador Carlos V. reputa o Mundo por grande Em
perador com tantas victorias, e com tantos augmentos
da Monarchia ; e a mayor acção de Carlos foy renun
ciar a Coroa, e coroar todas as ſuas victorias com a
retirada, que fez para S. Juſte, onde mandou fazer
huma caſa muito pequena unida com o Convento, para
acabar a vida entre os Religioſos de S. Hieronymo: Ad Padr.Famiani
Strada de Bel.
Divi Jufti Hieronymianum Cænobium ,delectam jam
diu fedem , re & ta fe contulit... conſtruiſibidomuncu- lo Belgic. De
cad . 1. lib . 1 .
Jam juſſerat , cænobii additamentum . Quanto mayor fol. 10
acçáð he a de JO A M tambem V.e Grande Empera
dor , que accreſcenta a Igreja com hum Convento , e
com hum Palacio, para viver com os Religiofos, ego
vernar juntamente o ſeu Imperio. Eſtas ſim , que fað
as verdadeiras grandezas ; porque ſempre durco , e
nunca
nunca acabaõ. Mas aſſim como JOAM excede neſta
acçaõ a Carlos , tambem excedeo neſta obra a Salamão;
porque Salamaõ edificou o Templo antigo de Hierufa
lem , que acabou ; e Joao edifica com eſte Templo huma
nova Cidade de Hierufalem , que ha de durar atè e
Joan. 21.2. fim do Mundo: Et ego Joannes vidi ſanctam civita
tem Hierufalem novam deſcendentem de Cælo à Deo

paratam ſicut fponfam ornatam viro fuo. Neſte sen


tido entende Sylveira a Igreja Militante , figurada em
nova Cidade de Hierufalem , ou pela nova Cidade de
Hierufalem deſcida do Ceo , entende a Igreja Militante
novamente fundada na terra , em que tudo he novo :
Sylveir.com . Si verò de Ecclelia milirante intelligas, recte dici
in Apoc . cap . tur Jeruſalem nova diſtinctione ab antiqua terreſ
21.9.4. n . 38. tri : & quia in hac Eccleſia vetera tranſierunt, &
fol.490. nova funt omnia . Tudo diz o meſmo Padre, he novo

neſta Igreja : novo o Legislador Š ESU Chriſto : no


va a Ley da Graça : nova a doutrina do Evangelho,
explicada pelos Pontifices Romanos: novaa preſença
Sacramental de Chriſto ; e novo o meſmo Cantico Ec
Apoc.5.9 . cleſiaſtico : Cantabunt Canticum novum ; poriſſo em
premio de tanta novidade deo Chriſto ao edificador def
tes novos Templos hum Imperio tambem novo , fem ne
nhuma novidade, porque he o meſmo Reyno de Salamao,
e Imperio de Chriſto.
Dous grandes Reynos fundou Deos per ſi meſmo,
6 Reyno de Iſrael, e o Reyno de Portugal. Ambos do
muarað o mar , a Ethiopia , Arabia , Ilhas , e outras
Provincias do Mundo : Dominabitur à mari uſque
ad mare , & à flumine uſque ad terminos orbis cer
rarum : coram illo procident Æchyopes : & inimi
ci ejus terram lingent : Reges Tharlis , & Inſulæ
munera offerent: Reges Arabum & Saba dona addu
cene : & adorabunt eum omnes Reges terræ ; om
nes
-
nes gentes.fervient ei. Todas eſtas profecias ſe cum
prirão em Chriſto, e muitas dellas ſe cumpriràõ tam
bem em Salamao , como conſta da Hiſtoria
Sagrada.
Mas poriſſo meſmo ſecumprem tambem em JOAM 0
Grande , e mayor que todos aquelles Heroes, a quem a
verdade com razão, ou a liſonja fem ella deo o epiteto ,
01 anthonomaſia de Magnos ; porque he Rey daquem ,
e dalem Mar : Dominabitur à mari uſque ad mare,
He Senhor de Guinè , da Conquiſta , Navegação , e
Comercio da Ethiopia , Arabia ,
Perſia , e da India :
Procident Æthyopes, Reges Tharſis , Reges Ara
bum , & Saba dona adducenr. Recebe o que lhe offere
cem tributariamente varias Ilhas do Oceano : Inſulæ
munera offerent ; e brevemente chegarà o tempo , ein
que todos os Reys da terra o venerem , e todas as gen
tes o firvað : Et adorabunt eum omnes Reges terræ ,
omnes gentes fervient ei ; e deſte modo ficarà ZOAM
o Grande com o Reyno de Salamao conquiſtando a Ter
ra Santa de Hieruſalem , e com o Imperio de Chriſto ,
dominando a todo o Mundo.
Mas ſobre eſta profecia de David , diz o Padre
Vieira, ſé offerece húma grande duvida, à qual antes
quizera onder reſponder , do que dar arepoſta. O Rey
no de Salamao , figura do Imperio de Chriſto , e do
Imperio de Portugal , como conſta de todas as outras
profecias, e deſta meſma foy dado a Chrifio. Chriſto
deſde o inſtante de ſua Conceição teve todo o dominio
fupremo eſpiritual, é temporal do Mundo em quanto Fi
lho de Deos : e em quanto homem teve o meſmo domi
:0, ao menos depois da Reſurreição , como elle meſmodiſ
se : Data eſt mihi omnis poteftas in Cælo & in ter
ra. A experiencia moſtra , que muitas Nações Barba
Tas , Hereticas , e Infieis nao crem , nem fervem a
Chrifto , conforme diz S. Paulo : Nunc autem nec- Ad Hebr.z?
dum
dum videmus omnia eſe ſubjecta ei : • como ; out
quando pois ſe cumprio eſta myſterioſa Prophecia de
David : Adorabunt eum omites Reges cerræ : om .
nes gentes fervient ei? Eſta duvida, que certamen
te he grande , ſolta- ſe facilmente com huma repoſta ,
que confirma eſte diſcurſo. Chriſto Senhor noſso ſempre
foy Senhor do Mundo , quanto à juriſdicção, é domi.
nio de Senhor ; mas o mundo não foy, nem he ainda
univerſalmente de Chriſto, quanto à obediencia , e ſua
geição dosvaſſallos. Iſto ſignificað expreſſamente aquela
las palavras : Adorabunt eum omnes Reges terræ :
omnes gentes ſervient ei. Jà todos os homens , e tos
dos os Reys ſao ſeus ; porque ſobre todos tem Chrifto
juriſdicção , e dominio como Senhor; mas ainda o nao
adorao , e ſervem como vaſſallos. Porém depois que o
Emperador Catholico deſtruhir o Turco , e le pregar o
Evangelho em todo o Mundo, todos os Reys da terra,
e todas as gentes adoraràő , e ſerviràő a Chriſto. Nać
depende Chriſto do noſſo Emperador , para que os ho
mens o ſirvão , é adorem ; mas o poder , e armas do .
Emperador , ( das quaes nao tem Chriſto dependen
cia ) facilitaràò a pregaçao do Evangelio, como fuc
cedeo no tempo de Conſtantino I. Carlos V. Manoel I.
e Joao III. como em ſuas cartas confeffa S. Franciſco
Xavier ; e foy praxe approvada pelosSummos Pontia
fices na converſaõ de ambas as Indias.
Porèin para que nao pareça novidade , que o nof

fo temperador com as ſuas armas facilite a pregação


do Evangelho, ouçamos a Chriſto fallando deſta mif
fað. Na Parabola do Seineador introduz Chriſto mui
tos impedimentos , que o Semeador Evangelico encon
trou no Campo, quando ſemeava a palavra de Deos:
Luc . 8 . Semen eſt verbum Dei ; porque achou pedras , achou
achou aves , e ach
eſpinhos, ach ou ou homens ; e todos eſtes im-,
pedi
pedimentos embaraçàrao a pregaçaõ do Evangelho, ou
Jementeira da palavra de Deos : os homens calcàrão ,
e pizàraõ a doutrina 2 como diz o Texto , e declara a
Gloſa: Conculcatum eft ab hominibus : as aves co
merao-na: Volucres Çæli comederunt illud: os eſpi
nhos ſuffocar aa-na : Spinæ fuffocaverunt illud , Čas
pedras ſecaraó-na : Cecidit fupra petram , & natum
aruit. Para tirar pois do campo eſtás pedras, para en
xotar eſtas aves , para cortar eſtes eſpinhos , e para pi
Zar eftes homens, quecalcao, e metem debaixo dos pès
a palavra de Deos, diz Chriſto a ſeusDiſcipulos, que
por ſer grande a ſeara , os operarios poucos , eos impedi
mentos muitos , roguem ao Senhor da ſeara para que
mande os operarios : Mellis quidem mulca , ' operárii Matth. 9. 38.
autem pauci : rogate ergo Dominum meſſis , ut mit
tat operarios in meſlem fuam . Eſtes operdrios for ao os
Apoſtolos, e todos os Prègadores Evangelicos, que fe
meàraõ a palavra de Deos em todo o Mundo , onde en
contràrao tambem os referidos impedimentos, que cal
càrao, Secàraó , comèrað, e ſuffocarão a Doutrina do
Evangelho , poriſſo aindahojevemos o Mundo com he
regias, e infidelidades. E quefez Chriſto para desfa
zer eſtes impedimentos ? Tomouhuma fouce muito agu
da na ſuamão, e a rogos dos Anjos a lançou no Mun
do, e com ella ſegou toda a terra : Ecmiſit quiſedebat Apoc. 14. 16,
fuper nubem falcem fuam in terram , & demeſſa eſt
terra. A fonce he inſtrumento de ferro , com que ſe cor
ta o que he inutil para ſe colher ſomente o util ; e com
eſtes inſtrumentos ſéarmárað Chriſto, eos Soldados com
panheiros dos Prégadores, para alımparem o campo da
Igreja, em que ſe fez a ſementeira do Evangelho.
Nao
Segore Chriſto con eſta fouce para cortar , e perder os ho
mens, ſenão para os colher ; nað applicou o ferro para
os ferir, e matar , ſenão para os farar , ifto he, para
********* de
Sylveir.com. de incredulos os fazer fieis , como diz Sylveira: Meſ.
in Apoc. cap. ſuit , inquam , non perdendo, ſed eos colligendo ;
14.verf. 16.n. non percutiendo , fed ab incredulitate ſanando , &
300.fol. 212. ad veram fidem fuæ divinitatis convocando. E por
que ſe compara Chriſto neſte lugar com hum homem ,
que tem huma fouce de ferro na mão ? A eſta pergunta
reſponde o meſmo Sylveira, que ſe compara Chriſto com
o ſegador ; porque quando eſte encontra algum impedi
mento cegando o trigo, o corta fortemente com a fouce;
por iſſo Chriſto apparece primeiro com a fouce na mão ,
e a ſeu tempo a mete na ſeara, para moſtrar aos homens,
que a ſeu tempo competirà o rigor futuro com a pre
ſente paciencia : Ille qui falce aliquid demetit , vi
eam retrahit , ut quod obvium validè præſcindat.
Ecce cur Chriftus primo apparet falcem manu tem
nens ; deinde cùm tempus adeft , eam in mellem mits
tit , ut ſignificetur quod quanto magis Chriſtus ра .
tiens, ac longanimis judicium differt, cum tempus
advenerit, eo rigidius illud exercebit. De maneira ,
que feitas muitas miſsões , em que fructificou tão pouco
a palavra de Deos , queſó deo fručtoa doutrina, que caa
hio na terra boa , que fað os homens de bom coração ,
ficando eſteril a que cahio aonde foy pizada , comida,
Suffocada , e ſeca : para que na ultima miſſão , ou ſéc
menteira ſe não encontrem tantos impedimentos , ſe ar
·mou Chriſto , e aos ſeus Soldados com huma fouce, ou
inſtrumento de ferro para alimparem o campo da Igrea
ja das pedras, dos eſpinhos, das aves , e dos homens ; e
porque nao baſtàrão os ameaços , que fez com a fouce,
on eſpada , que tinha na mão , a meteo finalmente na
feara, e com ella ſegou toda a ſementeira da terra : Et
mifit falcem in terram , & demeſſa eſt terra.
Não diffe Chriſto no Evangelho , nem declara
S. Joaõ'no Apocalypſé, quem faõ eſtes ſegadores , a quem
do Ceo
* do Ceo lançou a fouce para ſegar em a terra ; mas no
campo de Ourique declarou Chriſto , que os Portugue
zes eraõ os ſegadores , que elle eſcolhera para acompa
nharem os Pregadores neſta última, e grande miljao:
Per illos enim paravi mihi meffem multam , & ele
gi illos in meſores meos in terris longinquis. De
forte, que o meſmo Chriſto com os ſegadores, ou Solda
dos preparou a ſeara : Paravi mihi meſlem ; e com os
Soldados, ou ſégadores fez tambem a colheita : Elegi
eos in meſores meos ; porque com as fouces , ou eſpa
das dos Portuguezes alimpou no tempo paſſado , e alim
parà tambem no tempo futuro, o campo da Igreja Ca
tholica das pedras, dos eſpinhos, das aves, e dos maos
homens, que embaraçaða ſeara, e prègação do Evan
gelho. Por iſſo Salamao vendo profeticamenteos progreſs
Jos da Igreja neſte eſtado : P deſcreve defendida com os
eſquadrões de homens de guerra : Quæ eft iſta , quæ Cantic . 6.9 .
progreditur quaſi Aurora confurgens,pulchra ut Lu
na , electa ut Sol , terribilis ut caftrorum acies ordi
nata ; porqué os Soldados affugentàrão , ou ſugeitàrão
com as armas os impios , e inimigos de Chriflo c
, omo es
creve o Padre Cornelio Alapide : Melius alij hæc om- Cornel . Ala
nia ad progreſſus Eccleſiæ Chriftianæ referunt.Tunc pide com . in
enim Èccleſia oppreſſa fub Antichriſto , & impijs , Cantic.cap.6 .
& pene excincta, ab Elia, & Enoch ſuſcitata, confur. v.9.fol. 278 .
get quali Aurora , ſenſimque increlcec ut Luna , ac
candem radiabir uc Sol ſplendidiſſimus , erit que ut
caſtrorum acies ordinata , quiomnes antichriſtianos,
& impios vel profligabit , vel ſibiſubiget. Mas como
os Soldados acompanhando os Prègadores , e as fouces,
ou eſpadas, na companhia da doutrina , fe ordenao não á
guerra , ſenão à paz , porque a eſpada de Chriſto fenão
deſembainha para matar , ſe não para dar vida , como
diz Sylveira , fazendo comparação entre a eſpada , e a
********* ij fou
Sylveir . loc. fouce : Gladius filij hominis non eſt ut pereat, fed
cit.num . 302. ut cuſtodiat in vitam ; com eſtas fouces, ou com eſtas
fol.212 .
eſpadas, lugeitaràő ſem violencia , mas por vontade, as
Soldados de Portugal todo o Mundo ao ſeu Rev , e os
Prègadores toda a terra à obediencia de Chriſto, e do
Summo Pontifice ; e aſſentados entað o Pontifice no ſeu
Throno , e o noſſo Emperador no ſeu Solio , governardo
ambos o Imperio de JESU Chriſto: o Emperador no tem
poral, e no eſpiritual o Pontifice ; mas tão conformes, e
tão unidos ,como ſe forão huma peſſoa, como ſendo dous
homens Moyſes, é Aarão , parecião hum ſo ; porque go
vernavão o Povo Hebreo , e a Igreja antiga com huma
Pfalm.76.21. ſó voz , com hum ſó ſceptro, e com huma ſó mão : In
manu Moyfi , & Aaron ; e por eſte modo haverà con
cordia , uniao , e paz no Conſelhodo Summo Pontifice,
e do noſſo Emperador : Tiszonfilium pacis erit inte
illos duos.

Finalmente, chegando o Reyno de Portugal afer Ca


beça do Imperio univerſal de todo o Mundo, é a San
ta Baſilica Patriarchal o throno da Cadeira de S. Pem
dro , ſerað os Illuſtriſſimos Senhores vinte e quatro Com
negos Eminentiſimos Cardedes da Santa Igreja Ro
mana. Eſta conclufað infiro seu das premiſſas , em que
tað ſolidamente tenho fundado eſte diſcurſo ; porque ſe
os Šenhores Conegos da Santa Baſilica ſao os meſmos
vinte e quatro Sacerdotes', e Biſpos Ančiãos do Apoca
Lypfe , que ſe repreſentað nos Sacerdotes , que antigamen
te havia no Templo de Hierufalem , como diz Alapides
Cornel . Ala- Alludit ad viginti quatuor principes Sacerdotum ,
pide comm . tot enim erant eorum familiæ à Davide diſtributæ ,
in Apoc . cap . ut per vices facra obirenc in Templo ; porque tam
4. verf.4 . bem tinkað ſuas cadeiras ,' e thronos dentro no Templo ,

folios verdadeiramente auguftos , como fağ os dos Prin


cipes., eRrys ; e como agora temos Bipos, e os Pontifi
ces ,
tes, por cujo reſpeite ſe chamao as ſuas Igrejas Cathe
draes : Id eft throni auguſti , quales lund Regum , Alapide ibid ,
& Principum : nam viginti quatuor Principes Sac
cerdotum in templo ſuas habebant cathedras , &
thronos , uti jam habent Epiſcopi , & Pontifices
à quibus vocantur Ecclefiæ Cathedrales; ſendo os mef
mos vinte e quatro Sacerdotes , e Biſpos Anciãos no ſen .
tir do Padre Alapide, figura dos Cardeaes da Santa
Igreja Romana, chamada vulgarmente Capella do Sum
mo Pontifice , em que ſe vè a imagem da celeſte Hieru
falem , donde ſe derivou , e tirou a Santa Igreja de Ro
ma, como copia de tao perfeito original , Jegundo con
clue o meſmo Alapide : Hoſce viginti quacuor ſenio
res repreſentant Cardinales , adeoque thronos , ſo
lium , totumque hoc capuc eleganter reprefentat con
feflus ( vulgo Capella Pontificis , in qua videtur
imago Cæleſtis Hierufalem , ut merito ex illa hæc
deprompra videatur ; bem ſe ſegue, que tambem ſerão
Eminentiffimos Cardeaes da Santa Igreja Romana os
Illuſtriſſimos Conegos da SacroſantaBaſilica Patriar
chal , que he tað ſemelhante à Santa Igreja de Roma ,
como a Igreja Romana à Cidade de Hierufalem Ce
tefte ; porque aſſim como da Celeſte Hierufalem fe deri
vou a Igreja de Roma , da Igreja Romana, como de
perfeitiſſimo original , ſe tirou a perfeita copia da Sa
crofanta Baſilica Patriarchal: Ui merito ex illa hæc

deprompra videatur. A Santa Igreja de Roma, tam


bem ſe chama vulgarmente Capella do SummoPontifi
ce : Conſeſſus vulgò Capella Pontificis ; e atè neſta
circunſtancia ſe parece com a lgreja Romana a Santa
Baſilica Patriarchal ; porque ſendo antigamente a Ca
pella Real dos Monarchas Luſitanos, ainda hoje he Ca
pella dos meſmos Reys , eorulgo lhe chama Capella :
Vulgò Capella . Poreza não ſó he imagem da antiga
Hier 1
Hieruſalem , e da Hierufalem Celeſte , mas nova Ci
dade de Hieruſalem deſcida do Ceo à terra > e collo

cada onde a vem os olhos do Grande JOAM : Ego


Joannes vidi Sanctam Civitatem Jeruſalem novam
deſcendentem de Cælo à Deo paratam ſicut fpon
ſam ornatam viro fuo. Pergunta o Padre Sylveira nef
te lugar : porque occultando S. Joao o ſeu nome em to
das as viſoens do Apocalypſe , o poem ſo , quando diz
que vio a nova Cidade de Hierufalem , deſcida do
Ceo à terra ? E reſponde com S. Bernardo , que co
- mo Joao quer dizer graça , e eſta Cidade de Hieruſa
lem be figura do Ceo, e da gloria , que tambem quiz
moſtrar S. João , que nao veràagloria , nem entrarà no
Ceo, quem como Joao nao eſtiver em graça. Nenhuma
couſa traz70Ă Mo Grande mais diante deſeusolhos,
do que o culto Divino , e o ornato deſta novaCidade de
Hierufalem , a quem a ſua magnificencia tem dado tan .
ta riqueza , que no Ouro , e Prata , e pedras precioſas
excede ao Temploda antiga Hierufalem no reynado de
Salamaõ ; poriffo Deos o ama, como amou ao meſmo Sala
mað ,eternizandolhe o Reyno,dilatandolhe o Imperio, e fo
bretudo promettendo a ÉlRey D. Affonſo I. pelo Ermi
taodo Campo deOurique de pôr nelleos olhos de ſua
miſericordia : Pofuit enim ſuper te , & ſuper ſemen
-tuum poſt te oculos miſericordiæ fuæ ; como tam
bem Deos prometteo a ElRey David pela Propheta Na
than de ejtabelecer o Reyno , e firmar othrono de Iſraël
em ſeu deſcendente Salamao, ſegurando, que não apar
Paralip.1. 17. taria delle a ſua miſericordia : Suſcitabo ſemen tuum
I1.12.13 poltte : & ftabiliam regnum ejus , & firmabo folium

ejus : & miſericordiam meam non auferam ab eo . E ſe


Deos poz os olhos da ſua miſericordia emy0 AMoGran
de, grande fundamento tenho para dizer, que tambem
como JOAM eſtà em graça de Deos; porquena graça de
Deos
Deos eſtà aquelle Monarcha com quem Deos uſa da ſua
mifericordia. Por iſoverà a Hierufalem Celeſte o meſmo
JOAM que vio a nova Cidade de Hierufàlem deſcida
do Ceo à terra : Ego Joannes vidi Sanctam Civitatem
Hieruſalem novam defcendentem de Cælo. Tambem
parece que S.Joao pozo ſeu nome neſta viſao, para mos
trar que JO AM havia de ver , o que S.Jcao eſtava ven
do : Ego Joannesvidi ; porque JO8 MoGrande vio
anova Cidadede Hierufalem ,naõ ſó como a antiga , mas
como a Celeſte, e Romana , aonde os vinte e quatro Illuf
triſſimos Conegos , ſendo Sacerdotes , ſao Principes ,ſao
Reys, fao Biſpos, eferao Cardeaes ; etodaseſtas honras,
e dignidades poffue VOSSA ILLUSTRISSIMA,
com virtudes , e merecimentos para ſer coroado com a
Thiara Pontificia. Deos guarde a VOSSA ILLUS
TRISSIMA como a Igreja , Portugal, e os criados
de VOSSA ILLUSTRISŚIMA havemos myſter,
Lisboa Occidental, 12. de Janeiro de 1730.

ILLUSTRISSIMO SENHOR ,

B. AS M. DE V. ILLUSTRISSIMA

Seu criado obrigadiſlimo.

Anſelmo Caetano Munhos de Avreu Gufmaõ e Caſtello Branco .


1

ci
}

il
Pag. 2

Wys .

hornene

PROLOGO

GALEATO .

§. I.

ODA a Philoſophia naſceo de pa


radoxos; porque o ſeu principio te
T ve origem na admiraçao. Sempre o
que na primeira viſta pareceo eſtra
nho , o ulo , e facilidade fizeraõ vil;
porque tudo he peregrino antes que ſe conheça .
As mais notaveis maravilhas de Deos , nao fufpen
dem os noſſos entendimentos quando faõ conci
nuas , e couſas muito faceis nos admirao , e aſſom
braó por defuſadas. Daqui nalce , que os homens
imprudentes julgaó por delirio , o que nao alcança
o ſeu juizo ; porque como paſſaros ſem penna ,
tudo o que he fahir do ninho , em que obtuſamen

te naſceraõ , julgão por deſpenho , e precipicio.


Nað fað as couſas por admiraveis impoſſiveis . Os
homens , que vivem junto às Catadupas do Rio Nilo,
j ouvemo doce murmurar da corrente breve das cla
ras fonteſinhas entre as areas, e a branda viração do
Zephiro entre as fores, e os que chegaõ de novo
a yer
PRO LOG
O

a ver aquelle precipicio de criſtacs , nem o ſober


bo eſtrondo das ondas deſpenhadas pòdem perce
ber , e ficaō aturdidos do rumor , que os naturaes
da terra não eftranhao ; e vem -ſe a deſenganar , que
naõ he impollivel à Natureza , tudo o que he pe
regrino aos ouvidos. Foy atè agora paradoxo a Pe
dra Philofophal, e ſerà indeciſo problema a reali
dade da Chryſopeia , até que fe vejao deſpenhar as
agoas do Rio da Prata , e foliar as correntes do Rio
do Ouro Preto , e fe defenganem com a experiencia
os muito circunfpecto ; porque fez Deos as gran
s
des maravilhas da Natureza , e da Arte , para ac
commodalla ao juizo dos homens ; mas criou o jui
s
zo humano , para que admirado com os milagres
da Omnipotenc , e com os prodigios da Arte ,
ia
pudeſſe accommodar - ſe à contemplaçao do ſeu po
der , e para que dentro da eſphera dos poſſiveis ,
nenhuma couſa , por mais rara , e difficultoſa que
foſſe lhes pareceſſe impoſlivel, ou chymerica.
Para perſuadir o entendimento humano , a que
creya eſte myſterio da Philoſophia Hermetica , The

proporey os meyos, com que o meſmo Deos , ( con


Vieira Part.. forme diſcorre Vieira ) the facilitou a crença dos

1. fol. 167. Myſterios da Fé Catholica. Argumentando contra


a Gentilidade Tertulliano no feu Apologetico dilo
fe , que as Fabulas dos Gentios faziao mais criveis
os Myſterios dos Chriſtãos. Parece propoſiçaõ dif
ficultoſa ; porque as Fabulas dos Gentios, fað mencie
'ras , fað fingimentos : os Myſterios dos Chriſtáos ſaố
: a

Tertullian . tira accrefcente o credito á verdade ? O meſmo


Apol. cap.21. tulliano fe explicou com ojuizo , que coſtuma : Fi
& 23 . deliora funt noftra , magis que credenda, quorum imagi
nes
G A L E A TO. 3

mes quoque fidem invenerunt. As Fabulas dos Gentios,


ſe bem ſe conſideráo, fað huns arremedos, faõhumas
ſemelhanças , ſao hụmas imagens , ou imagin »ções
dos Myſterios Chriſtãos ; e ſe os Gentios deraó fé
ao arremedado ſomente dos noſſos Myſterios, por
que a nao hao de dar ao verdadeiro delles ? Se cre
raó , e adorarað os retratos , porque hao de duvi,
dar a crença , e negar a adoraçao aos Originaes ;
Fideliora , magifque credenda , quorum imagines quo
que fidem invenerunt ? Com a ſua meſma Idolatria,
eſtà convencendo a razão aos Gentios , para que
nao pollaő negar a Fè ; porque nenhuma couſa
lhes
propoem tão difficultoſa de crer a Fè, que el
les å não tenhão jà concedido , e confeſſado nas
ſuas Fabulas . Daqui le entenderà a razão , e pro
videncia alciſſima , que Deos teve , para permittir a
Idolatria no Mundo. E qual foy ? Para que a mer
ma Idolacria abriſſe o caminho à Fè , e facilitaſſe
no entendimento dos homens a crença de tão al
tos , e tão ſecretos Myſterios , como os que Deos
cinha guardado para a Ley da Graça ,,
Aſim como Deos neſte Mundo criou hum ſó
homem , para Pay de todos os homens , que foy
Adam , allim fez outro homem para Pay de todos
os crentes , que foy Abraham . A hum deu o pri
mado da Natureza ; a outro a primaſia da Fé. Mas
eſſe meſmo Abraham , fe bem lhe examinarmos a
vida, acharemos , que antes de crer no verdadeiro
Deos , foy idolatra : Thare pater Abrahæ , & Na- Joſue24.2 .
chor , Servieruntque Diis alienis. Pois idolatra Abra- Mafius hic.

ham , que hade ſer Pay de todos os crentes ? Sim , de raha..


Ab.lib
Phil
e por iſſo meſmo. Permitçio Deos , que o Pay da Fè Genebrard .
folle filho da Idolatria ; porque a Idolatria he de- & Hebræie
a ij grào
7 PRÓ LÖ GO

grào , e ſucceſſað para a Fè. A porta da Fè he a


credulidade , como dizem os Theologos ; porque
antes de huma couſa ſer crida , hà de julgar o en
tendimento , que he crivel : e ifto he , o que fez a
Idolatria no Mundo , vindo diante da Fe. A Ido
latria ſemeou a credibilidade; e a Fècolheo a cren
ça : a Idolatria com as Fabulas começou a fazer
os Gentios credulos ; e a Fècom osMyſterios aca
bou de os fazer crentes : como a Fè he crença de
couſas verdadeiras , e difficulcofas : a Idolatria fa
cilitou o difficultoſo , e logo a Fèintroduzioo ver
dadeiro. As repugnancias , que tem a Fe , heo gran .
de , o arduo , o eſcuro , e o lobrenatural dos Myl
terios : crer o que não vejo , e confeſſar o que não
entendo : e eſtas repugnancias jà a Idolatria as.ti
nha vencido nas Fabulas, quando a Fè as conven .
ceo nos Myfterios.
Com eſtes dous exemplos diante dos olhos ;
facilmente conheceraó os entendimentos , que le
Deos os convencèo antigamente com o fingimento
das Fabulas , e com os erros da Idolatria , para de
pois crerem como infalliveis as verdades , e realida f
des dos Myſterios da Fè ; que tambem podem , c 9
devem crer nos myfterios da Philofophia Hernietica, lu
allumeados primeiro com os Myſterios da Fé Cao
tholica. Se a mentira , e o engano facilitarão a cren
ça da verdade ; porque não facilitarà a verdade
a credulidade do que nán he engano , nem menti
ra ? Crerão os entendimentos Gentilicos, e Idola .
tras , que Ariadne le convertera em Eſtrella , Jupi.
ter em Touro , Ceſar em Cometa , Neptuno em
Delphim , Echo em Voz , Acis em Rio , Arethuſa
em Fonte, Alcione em Ave , Syra em Pomba , Ado
nis
G A L E A TO

nis em Flor , Athlante em Pedra , Daphne em Lou


TO , Adamas em Diamante , Apollo em diverſas fór
mas , e Protheo em varias figuras ; por iſſo lhes fi
cou facil de crer a converſão da Mulher de Lor
em huma Eſtatua de Sal : a converſao da Vara de
Moyſes em huma grande Serpente : a converſao
das agoas do Nilo em verdadeiro ſangue : a con
verlað da luz do Sol nas eſcuras trevas do Egyp
to : a converſao da Pedra de Horeb em copioſa
Fonte de agoa : a converſao da Serpente na pro
digioſa Vara de Moyſes : a converſa ) do Fogo do
Altar em pouca agoa congellada : a converlao da
meſma agoa em labaredas de Fogo : a converfað
da Agoa de Canna em generoſo Vinho ; e a con
verſao do Vinho , e do Páo Sacramentado em ver
dadeiro Corpo , e Sangue de Chriſto , como depois
da diffinição dos Concilios Tridentino , e Floren
tino eſcreveo o grande Philofopho, e mayorTheo
logo Franciſco Soares , daSagrada Companhia de
JESUS : In Euchariſtia , ubi intervenit vera con
verſio Panis , & Vii in Corpus, & Sanguinem Chrif- P.Soar. Lur.
ti. Pois ſe Deos , que he Author da Natureza, à Trad . deGeo
qual imita tão perfeitamente a Arte, em todas as ner.& Corup.
ſuas producções , e operações , ubrou com a Omni- Sect. 3.9.1.8.
potencia converſões tao milagrofas , paraque o 47. fol.7.
entendimento humano ſe accommodaſſe à contem

plaçao do ſeu poder, conhecendo , e crendo , que


ao braço Omnipotente nenhuma couſa , por mais
ardua , e admiravel que foffe , era impoſſivel: poro
que não crerà tambem agora , que a Arte imita
dora da Natureza pode obrar grandes , e iguaes
maravilhas , quando a Natureza enfina a Arte , e a
melhor , ou a mais facil meſtra da Fè , he a meſma
Natureza.
Os
1
G A L E A T O.

Vieira Part . 1 . Os Prophetas ( continua , ou proſegue Viei


fol. 191 . ra ) que forao os que prègarão , e enſinarão os Myl
cerios da Fè aos homens, não os mandou Deos ao
Mundo no tempo da Ley da Natureza', ſenão no
tempo , que ſe leguio depois della , que foy o da
Eſcrita. È porque ? Douta , e aviſadamente Ter
culliano : Premiſit tibi Naturam magiftram ſubmiſ ,
furus, & prophetiam , quò facilius crederes prophetia
difcipulus natura. Deo Deos primeiro aos homens
por meftra a Natureza , havendolhes de dar depois
a Prophecia ; porque as obras da Natureza ' lao

rudimentos dos Myſterios da graça ; e muito mais


facilmente aprenderiaó os homens , o que ſe lhes
enſinaſſe na Eſchola da Fé , tendo ſido primeiro
diſcipulos da Natureza : Quo facilius crederes pro
phetia diſcipulus naturæ. Sequeres ſer Meſtre na Fè,
fazete diſcipulo da Natureza ; porque os exem
plos da Natureza te deſacaràó as difficuldades da
Fè. Com a Fè ſer ſobrenatural , a melhor , ou a
mais facil Meſtra da Fè , he a Natureza . Pois ſe a
Natureza en ſina aos homens os Myſterios ſobrena
turaes , como não enſinarà os artificiaes aos Her.

mecicos ? Enſina a Natureza aos Philofophos a in .


telligencia das Prophecias , e não enſinarà melhor
as Philoſophias aos homens ? Pode a Natureza en
ſinarlhes o mais difficil, e não lhe poderà enfinar o
mais facil ? Ha de poder a Natureza o mais , e não
ha de poder o menos ? Toda a difficuldade , que
os Philoſophos Academicos de Platão , ou Peripa
941
ceticos diſcipulos de Ariſtoteles , pòdem achar na
operação da Chryſopeia , e Argyropeia , he a tranſ,
mycaçaõ das ſubſtancias metallicas em Prata, e Ou
>
ro ; porque conforme os verdadeiros Axiomas da
Phi.
G A L E À TO. ' 7

Philofophia , ſao immutaveis as eſſencias , é natu .


rezas de todas as couſas ; e com tudo lhes enſina a
Natureza o contrario na nutrição natural do cor
po humano , convertendo em poucas horas o pão,
e agoa em verdadeiro ſangue , em que fe'acha com
lera amarella como Ouro , e Phleuma tað branca
como Prata ; e como a Arte imita a Natureza ,
tambem converte humas em outras ſubſtancias.

Ito le prova com a induſtrioſa operaçaõ de


alguns Chymicos, que dentro de hum vafo de vidro
fizerao artificialmente chylo , e ſangue, lançando
ſobre alguns alimentos, hum licor ſubacido vola
til, ajudindo a ſua operaçaó com hum calor mo .
derado. O celeberrimo Boyle , não ſó fez chylo ,
mas ſangue da carne de hum frangaó diffolvido ,
e fermentado com acidos. vicriolicos , e outros
menftruos, ajudando eſta operaçaõ com hum ca
lor, e quaſi natural , como elle eſcreveo por eſtas
formaes palavras : Beneficio menſtrui cujuſdam aci- Boyl . in util.
di, ex vitriolo artificioſe parati, carnes pulorum tranf Philof . Ex
mutari, accedente blando calore, in licorem inſtar cu- per. P. 2. fol.
jufdam chyli , qui licor affuſione menſtrui altus me- 20,
diante digeſtione tranſmutatur in licorem rubicundiſi.
mum inftar fanguinis. A operação do Magiſterio
de enxofre he hum claro eſpelho , em que fe pó
de ver, o que tão occultamente fuccede dentro no
eſtomago , e veyas na elaboração do chylo , e na
tranfmutação da ſubſtancia chylofa em perfeito fan
gue; porque do mefmo modo , que o enxofre rea
duzido a Magiſterio , ou a pos fabriliſlīmos fe faz
branco : aflim os alimentos eſtando bem fermenta
dos, e attenuada a fua fubſtancia dentro no eſtoma
go , le convertem em branco chylo ; e do meſmo
modo ,
8 PRO LOGO

modo , que o enxofre totalmente desfeito he de


cor vermelha : aſſim as partes do chylo eſtando
totalmente exalcadas, e desfeitas, por repetidas cir
culações dentro das veyas , e arterias , ſe fazem rubi
cundas , transformando - ſe em perfeitiſſimo ſangue.
Eſta ſubſtancia rubicunda , ou ſangue ſe con
Verte em materia nos apoftemas, ficando nelles de
cor branca ; porque o acido preternatural , que
nelles encontra , havendo -o quali fixado , e reunin
do as ſuas parces inſeparaveis ,lhe faz comar a cor
alva do chylo ; do meſmo modo, qne o licor aci
do , que ſe lança ſobre a diſſoluçao vermelha do
enxofre , lhe faz comar cor de leite . Eſte penfa
mento ſe confirma com eſta admiravel experiencia.
Fervendo -ſe em hum vaſo de vidro , ou de burro
huma parte de chylo , ou de leite , miſturado com
duas partes de oleo de tartaro feito por diliquio ,
o licor , que era branco , ſe faz logo vermelho ; por
que o Sal de tartaro rarifez , e inteiramente dif
ſolvco a parte mais oleoſa , ou fulphurea do lei
te , e do chylo , convertendoa em huma eſpecie
de ſangue , o qual ſerá mais vermelho , e mais craf
fo , conforme a ciencia do Artifice , e a repetiçað
das circulações. Mas de qualquer modo , que le fa
ça eſta operação , ſempre veraó os olhos , o que
por falta do conhecimento della coſtumão negar
os entendimentos , perſuadindo-ſe erradamente
que não pode a Arte imitar nas ſuas operações as
obras da Natureza ;, ſendo certo , que aflim neſta
como em outras muitas , obra tão perfeitamente co
mo ella. De hum ovo tira a Arte hum frangaó ,
como o tira a galinha por natureza. Todos ſabe
-mos , que ha Çinnabrio , e Alambre artificiaes , táo
me :
G A LE AT O.

medicinaes, e perfeitos , como os naturaes. Jà Pli


nio fez menção deSal natural , e artificial, como fe
pode ver no feu Livro trigefimo primeiro. Em Po
lonia ha Sal mineral, e em França ha Sal artificial,
com as meſmas propriedades , efficacia , e natureza
do noſſo Sal marino , como fe pode ver em Tho
maz Arfoncino , tão grande Juriſconſulto , como
acerrimo defenſor da Pedra Philoſophal. Por iſſo o
grande Philoſopho Ariſtoteles affirma, que a Arte
imita perfeitamente a Natureza , vendo que por
ella ſe fazem , e aperfeiçoað muitas couſas naturaes,
como faó o colehorar , e o calcantho. Iſto fe pro
va evidentiflimamente com a experiencia , que re

ferem Bechero , e Digbeo de hum grão de cevada


artificialmente nutrido , e preparado , o qual com
eſta induſtria produzio duzentas , e quarenta e no
ve aſteas, e dezoito mil grãos . Nað leyo femelhan
tes exemplos da Natureza , ainda que me lembre da
fertilidade do Egypto , onde por teſtemunho da
Eſcritura , houve canta abundancia de trigo , que
no tempo em que o governava Joſeph , igualava
às areas do mar : Tantaque fuit abundantia tritici, Genef.41.49)
at arena maris coæquaretur . E fe nas terras maig
ferteis do Mundo não produz tanto a Natureza ,
como defta vez produzio ajudada pela induſtria
da Arte , bem fe fegue , que a Arte não ſó imita
a Natureza , conforme diz Ariſtoteles , mas que
tambem algumas vezes nas fuas operações a excede,
como experimentou Santo Alberto Magno : Cam San &t.Albert)
faperem , & intelligerem quod naturam ſuperaret ;con. Magn.Libell,
vertendo os Metaes imperfeitos em Prata, e Ouro , de Alchym.in
o quenao pode fazer a Natureza , depois de eſta Præf . §.cum,
fol.i.
rem atrancados da mina: Inveni efe posſibilem tranf
b
10 P R O LOGO

mutationem in Solem , & in Lunam ; e transforman


do com mayor admiraçao , e difficuldade o eſpiri
to de vinbo alcoolizado em terra , os íays volateis
acerrimos , em agoa inſipida, os ramos , e folhasdas
arvores , em Pedras , e Ferro , e o Ferro em verda

deiro Cobre , como com experiencias proprias , e .


Manget. in alheyas affirma o grande Medico Mangeto : Nam
Præfact, ad ſi ſpiritus vini defecatiſſimus , diñaxime aiccoliſa
tus, totus quantiis , & fèrvato eodem materiæ ponde
moi.Biblio
re , in terram ; ſi falia volatilia accerrima, in aquam
th . Chemic .
$ . Nec. inſipidam ; ſiarborum frondes , drami, in lapideum ,
ac ferruginoſum quid ; imò fietiam , ut admetalla
tranſeam ., ferrum in cuprum per novam particularım
tum
inſinuationem , converti queant , ut tum propria ,
aliena experientia plufquam probatum credimus. E ſe
pela induſtria da Arte Magna não fað frequentes :
e manifeſtas muitas outras converſões, he por igno
rancia , ou perguiça dos Artifices; porque alguns,
que foraõ diligentes , e fabios , com à ſua grande
fciencia, e trabalho , deſcobrirao novas , e inaudicas
maravilhas ; fendo amais rara , e plauſivel de todas, CINE
o invento da Pedra Philoſophal, que não ſó converte
os Metaes viz , e imperfeitos, em perfeitiſſimo Ou d
ro , e finiſſima Prata; mas excedendo às admiraveis

Blutcauto virtudes da Pedra Iman , que como elcreve Bluteau , da


cabul. Tom . tomada em certa quantidade preſerva da velhice ,
6.fol. 358. & transforma as moleſtias em ſaude mais perfeita , do
Tom . 7.fol. que a de Senofilo Muſico , que viveo cento e ſeis
514 annos fem nenhuma enfermidade , convertendo a
idade decrepita na mocidade florente , conforme a
Pfalm . 102. outro intento cantou David : Qui replet in bonis de•
. juventus tua ;
fiderium tuum : Renovabitur ut aquila
e como jà creraó os Gencios nas Fabulas de Elon ,
e de
G A L E A T O. in

de Midas; porque deſte affirmaó , que conver


tia em Ouro quanto tocava com as mãos ; e da
quelle dizem , que de velho decrepito , ſe transfor
màra em florido mancebo .

S. II.

Omo a empreza deſte Prologo he convencer


a incredulidade dos entendimentos , defen
dendo a poſſibilidade , é exiſtencia da Pedra Philo.
ſophal, e desfazendo todas as duvidas , que nos
Dialogos nað oppoz Enodio a Enodato , por naó
confundir a converſação com Philoſophicas diſpu
fas, quero nelle provar, e confirmar fundamental
mente a Philoſophia Hermetica da Chryſopeia , nað fó
com a Peripatetica , mas tambem com a razao , é
experiencia , para delvanecer totalmente as diffi
culdades, que fazem incrivel a exiſtencia da Chry
ſopera. Imitando , pois , e feguindo o coſtume
e o eſtylo dos Philofophos , que logo no prin
cipio das ſuas controverſias diffinem as materias ,
que diſputa , digo.com Sennerto , que merecen
do ſó o nome de Chymicos os Hermeticos , que
tranfmutað os Metaes viz em Prata , e Ouro , e
dos Metaes , e Mineracs , como tambem dos Ve.
getaveis prepara utiliſſimos remedios para conſer
vaçao da ſaude , e nað os Artifices mecanicos ,
que trabalhaó nos Metaes , e Mineraes para difte D. Sennert .
rentes uſos: Ufus fere obtinuit , ut non quivis fine dif- Pomenn.de
crimine, qui circa metalla , da mineralia occupantur, Chym :cum
& ſerviles operas in iis præftant , hodie Chymici appel- Arift .& Ga
lentur : fedý folum , qui metalla viliora in aurum & len. conſ.ac
argentum tranſmutare conantur ; vel utilia medica- diſt. cap. 1 .
menta fol.180 .
bij
: 12 PRO LOGO

- menta ex metallis ő mineralibus elaborant, sit da qui


- ex vegetabilibus artificiofé idem præſtant : eſtes nobi
- liflimos Philofophos ſão aquelles Sabios, aquen ſó
chamarey humas vezes Chymicos , outras Hermeti
cos , algumas Adeptos, e poucas vezes Alquimiſtas ;
porque derivando -le eſte nome de A'chymia , que
fignifica Chymia elevada , ou ſublime, nao he tao
conhecido, e nomeado no Mundo como o dos Chy .
micos ; por iſſo diffinirey a Arte Magna, chamando
lhe nað Alchymia , fenao Chymica. He a Chymica
hunia Arte de relolver os corpos naturaes compor.
cos , ou os concretos naquelles principios de que ſe
compoem , para com a reſolução ficarem mais pu
ros , e com mayores , e mais efficazes virtudes , de
tal ſorte , que ſirvaó áo Medico comoremedios mais
uteis , e excellentes , para evitar as doenças , curar
as enfermidades, dilatar as vidas, e purificar, e tranſ
Sennert. loc . formar os Metaes em Prata , e Ouro : Ext nimirum ,
citat. cap . 1. ars corpora naturalia compozita, five concreta in ea , è
fol. 182 . quibus naturaliter conſtant , reſolvendi , reſolutaque
pura , & viribus validiffima reddendi, iit utilia Ne
dico præbeant remedia , vel metallorum perfectionibus,
er tranſmutationibus inſerviant.Elta Arte, ou os ſeus
effeitos , que a razaó perſuade a muitos ſer impoſſia
vel , moſtra ſer poſſivel a experiencia , como eſcre
Sennert. loc . ve Daniel Sennerto : Et ſi verò ea plurimis impoſſi
cit.cap.2, fol. bilis videatur: teſtatur tamen contrarium experientia.
282 .
Sobre eſta experiencia entrarà logo mais confiada
a razaố ; porque ſe como neſte lugar diſcorre Sen
nerto , he grande temeridade contradizer com a ra
1
zao a experiencia , ſobre a experiencia deve o Phi
loſopho indagar os Phenomenos , e deſcobrir as
caufas com a ſubtileza da razao : Praterea do hoc
Caven

.
G A L Ε Α Τ Ο. 13

cavendum , ne experientia ratio temerè præjudicet,


fed primò danda opera , ut de re per experientiam conf
tet , poſtea ejuſdem rationes inquirantur. A razaó pois
natural de coda eſta admiravel Philoſophia he , por
que todo o ente imperfeito , e incompleto , que
ſe altera , aperfeiçoa , e enche com alguma couſa ,
ou agente , que o aperfeiçoa , e purifica , le pòdo
purificar, e aperfeiçoar cada vez mais , atè adqui
rir o ultimo termo da ſua natural perfeiçao , tranſ
mutando -ſe dentro do ſeu meſmo genero de imper
feito em perfeiciſlimo : fed fic eft , que os Metaes
impuros a reſpeito do Ouro , e da Prata , ſó diffe
rem entre fi por imperfeitos , e incompletos , e ſe
podem aperfeiçoar cada vez mais pela Arte Magna
atè chegarem ao ultimo complemento , e perfeiçao
natural , dentro do meſmo genero , iſto he , atè fe
rem Ouro , ou Prata , que he a mayor , e ultima
perfeiçaõ dos Mecaes : Logo todos os Metaes imper
feicos, e incomplecos te pòdem aperfeiçoar pela
Arte , até que finalmente chegando à ſua mayor
perfeiçao , e complemento, ſe convertaó em Prata,
e Ouro. A mayor deſte fylogiſmo confeſſa Ariſtote
les tracando da geraçao , e corrupçaõ , como cam
bem no primeiro da Metaphyſica , e no letimo dos
Topicos, e o vemos por experiencia na geraçaõ dos
animaes, a qual cada vez mais ſe aperfeiçoa , atè fi
nalmente adquirir a ſua ultima perfeiçaõ. A menor
provaõ os Chymicos com muicas experiencias , aper.
feiçoando
Os Metaes, como vemos todos os dias ; e
le
a mayor , e menor eſtao provadas , ou concedi,
das, não importa , queme neguem a conſequencia;
porque a negaçað ſem fundamento merece tanto
credito,
como fe deve dar a quem diſſer , que o Sal
nað
14 P R O LOGO

nað luz , o fogo nao queima, e a agoa nao molha.


Prova -le mais a tranſmutaçao dos Metaes , con
fórme diſcorre Theophilo traductor , e illuſtrador
de Æireneo Philalera; porque lendo, ſegundo en
fina a Eſchola Peripatetica , a materia indifferente
para todas as formas , ſe o Artifice encontra como
agente proporcionado para nella introduzir a fór
-ma de Ouro , ou Prata , applicando- o com acerto ,
lograrà ſem duvida a producçao , ou educçao da dica
forma. Confirma eſte diſcurſo com a famoſa expe .
riencia da trantmutaçaõ do Ferro em Cobre , por
meyoda Pedra Lipis, ou Vitriolo azul, da qual fe fe
gue a poſibilidade, e realidade da tranſmutaçaõ dos
Metaes. Eſte argumento tomado da indifferença da
materia para todas as formas , ainda que poſto por
Theophilo ſó nos termos da Philoſophia de Ariſto .
teles , ainda tem mais fenſivel força no Syſtema de
Deſcartes; porque como na Philofophia Carteliana,
a variedade dos mixtos conſiſte ſomente na varia
textura , e configuraçao das ſuas partes , tem con
fórmeeſte Syſtema, menos que trabalhar o Artifice,
para conſeguir a producçao de qualquer mixto ;
porque nað he neceſſario eduzir da materia aquel
le novo ente , que os Ariſtotelicos chama ) Forma

ſubſtancial, balta fó variar a textura , e figura das


partes , o que igualmente , e ainda com mais pro
priedade he da juriſdicçao da Arte , que da Natur
reza: Por iſſo dizem alguns Neotericos, e dizem a
verdade, que a compoliçaõ dos mixtos naturaes ,
como explica Deſcartes, he mais artificial do que
natural; porque a forma dos compoftos artificiaes
nao conliſte ſenao na contextura,e configuraçao
das partes , que concorrem para a ſua compoſiçaó.
Por
G A L Ε Α Τ Ο. 15

Por eſta raza ) , para provar a poſibilidade do


Ouro artificial com argumento commum a todo o
Syſtema Philoſophico , he preciſo formallo , naõ ſo
bre a materia primeira , ou remota do Ouro, ſenað
fobre a proxima. He certo , que na formaçao dos
mixtos de todos os tres Reynos Animal , Vegetavel
e Mineral , a Natureza nao ufa immediatamente
da materia nua de toda a fórma, nem taó pouco
della collocada debaixo de qualquer forma indif
ferentemente , mas da materia collocada debaixo
de alguma forma determinada , a qual ſe ha como
preludio ,
ou preliminar da forma do mixto, que
de intenta. A fim ſe forma o animal da materia col
locada debaixo da forma de Embriaó , e a planta
da materia collocada debaixo da forma de ſemente.
A materia proxima dos Mineraes naó occorre aos
nollos ſentidos de maneira , que poſſamos ter certe
Za do que he ; porém naó ha duvida , que a pro
porção, tambena tem fua materia feminal ; e em
quanto aos Metaes , muitos Philoſophos julgao , que
le geraõ de verdadeira ſemente , ſendo por eſte mo
do rigorofos Vegetaveis , donde veyo chamarem
nos ſem receyo de impropriedade Planetas fubter
raneo . Mas ſejão , ou não ſeja ) Vegetaveis os Me
taes, com tudo não ſe pòde negar , que precede im
mediatamente à ſua geração , a materia debaixo de
alguma determinada forma, com a qual faz huma
maſſa, que vem a ſer como ſemente , rudimento , ou
preludio do compoſto metallico , que a Natureza
intenta . Sejaefta maſſa compoſta de vapor , ou exha
Jaçaó , como quer Ariſtoteles ; ou de Enxofre, e
Mercurio , como pertendem os Chymicos ; ou de
Acido , Alkali , e Enxofre , como lentem muitos
Mo
16 PROLOG

Modernos , em qualquer deſtas fen :enças ſe verifi


ca o noſſo alumipro . He cambem certiſſimo, que
ha algum agente determinado , o qual obrando lo
bre eſta mareria proxima, a reduz ao fermetallico .
Sobre eſtas innegaveis ſuppoſições , forma o fubci
liſlimo Feyjoo , de quem tirey efta doutrina , hum
fortiſlimo argumento por efte modo : Pòde a Arte
applicar aquelle agente , ſeja qualquer , que for, o
qual tem actividade para formar Ouro , ou Prata ,
aquella materia proxima de que a Prata , e o Ouro
ſe formáo : logo pòde a Arte fazer Ouro , e Prata.
A confequencia he evidente , co antecedente in
negavel ; porque fuppondo , que ha na.Natureza
aquelle agente , e aquelle paſſo , que ſe podem ap
plicar hum ao outro , que repugnancia ſe pòde af
fignar , para que a diligencia humana os conheça ,
e applique : Roberto Boyle refere como couſa cor
ta e conſtante , que hum Chymico do ſeu tempo ,
que ſe andava canfando nos alcançes deſte grande
fegredo , logrou em huma occaſião huma pequena
porção de Ouro ', mais por accidente , đo que por
Arte; porque repetindo depois a meſma operação
C
fobre a meſma materia , não confeguioo effeito de
fejado, e pertendido, por falta fem duvida de al
guma, ou muitas circunſtancias, que obſerva fem
pre neſta obra a Natureza , e pode tambem alcan
çar a Arté, obrando com ſciencia , o meſmo que
fez o Chymico por acaſo . O que fe fez a primeira
vez por acafo , ſe repete depois muitas vezes por
artificio ; porque faci'mente executa a Arte , o que
The enfina huma caſual experiencia. Aſſim inventa
são caſualmente Bertoldo Schuvar o artificio da pol
pora : Jacobo Mecia o invento do Telelcopio :
por
G A L E A TO . 17

por acaſo ſe deſcobrio o uſo da Agulha , tocada da


Pedra Iman , para obſervar o Polo , com tanta uti
lidade da Nautica ; de ſorte , que iſto de inventar ,
ordinariamente he huma mera , e caſual felicidade ,
em que aos chamados inventores ſuccede o meſ
mo , que ao ruſtico Lavrador, que arando o cam
po , deſcobre nelle hum thefouro .
Prova - ſe tambem a tranſmutação dos metaes
com eſta natural paridade : a Arte faz as meſmas
tintas, que nas ſuas minas cria a Natureza : logo
tambem pode fazer os Metaes , que a Natureza cria
nas minas. O antecedente confeita Ariſtoteles , di- Ariſtotel. 4 .
zendo , que a Arte faz o calcantho , ou colchotar , Meth.cap de
que ſao humus cintas naturaes , e mineraes; e con- corp ,miner.
keſando o antecedente , eſtimara ouvir a algum Pe . & de atra.
ripatetico ſeu diſcipulo a razão da diſparidade.Aʼlem ment:
do que , he certo , que pela Arte ſe faz a Pedra hu.
me, chamada de Rocca , que he mineral creado tam
bem pela Natureza : logo tambem pode fazer Ou
ro , e Prata , que a Natureza cria nas entranhas da
terra. E a razão diſto he , porque todo o Este
indigefto, e ordenado a digeltáo , e todo o Ente ,
ou ſubſtancia impura , mas habil para ſe purificar ,
ſe pòde digerir , e purificar ; os Metacs imperfeitos,
alguns lao indigeſtos , e impuros, como vemos no
Eſtanho , e no Chumbo , e alguns fomente faó im
puros, como he o Cobre , eo Aço , porèm habeis,
e diſpoſtos para a ſua digeſtao , e purificaçao com
pleca : logo pòdem completamente digerir -ſe , e
purificar -le por beneficio da Arte ; e como a com
pleta digeſtao , e depuraçaó nos Metaes , he fe
rem , ou chegarem a ſer Ouro , ou Praca : ſegue-feurs
que chegando a eſte termo de digeſtão , e depura
E çaó ,
18 PRO LOGO

çað , que pela Arte em Prata , e Ouro , como nas


Minas , ſe transforma) . E daqui ſe ſegue, que ſe a Ar
te. Magna purifica os Mecaes impuros, e imperfei
tos , tambem purifica os corpos humanos , conver,
tendo -lhe a idade de Ferro em idade de Ouro .
Confirma- ſe finalmente eſte diſcurſo com out
tro puramente Philoſophico . Hepollivel , que pela
Arte puramente natural le pode fazer huma Pedra,
ou Tinctura, que naó ſó converta em Ouro , ou
Praca todos os Mecaes imperfeitos , e impuros ; mas
que tambem infinitamente os multiplique , a qual
preſerva de todas as moleſtias, cura todas as enfer
midades , e prolonga por muitos ſeculos a vida;
porque na ſura exiltencia , e realidade nað ha im
plicancia da parte da Natureza, nem da parte do.
fugeito , ou Semente aurifera , nem da parte do Ar
tifice , nem da Arte , nem finalmente da parte do
homem , e muico menos da parte de todas eſtas cou
las reduplicativamente tomadas : logo naturalmen
te he poflivel a Chryfopeia , que converte os Mecaes
viz em Ouro , e a Argyropeia, que os transforma em
e natural
Prata ; e ſe não he impollivel eſte raro
effeito do Lapis , facilmente alcanção os fabios eſte
ſegredo ; porque fe do mais difficil para o mais fa
cil val o argumento dentro da meſma maceria ; co N
mo do acto para a potencia , não deixarào os: Chy d
micos peritos, e fabios na Philofophia Hermetica de
tranſmutar os Metaes viz em Prata , e Ouro , por fer
mais facil transformar a materia , que em todos os
Metaes he ſempre a meſma, quando como fcientes
na Arte Magna , transformáo atè as ſubſtancias die 3
verſas na materia, que he operaçao muito difficul
tofa , mas vencida fácilmente pela Sabedoria , e fe
gre
G Α ι Ε Α Τ Ο. 19

gredos da Arte Magna , com que converterão as


ſuas Varas em Serpentes os famoſos Magos do Egy
pto,

S. III.

Ontra eſta parte da Philoſophia Hermetica fe


levanta o mayor Antagoniſta da Chryſopeia , o
Reverendiffimo Padre Meſtre Athanaſio Kircker, P. Kircker.
Varão grande entre os mayores , não ſó da ſempré Mund . Sub
illuſtre , eſclarecida , e dontiſlima Religiaõ da Com- ter. tom . 2 .
panhia de JESUS , mas de todo o Orbe Litera- lib . 11. ſect.

rio, a quem antes de o impugnar , faz JoaðZwel- 2 caponide


lapid.Philo
fer, Medico do limperador Leopoldo I. eſte peque foph.
no elogio para o leu grande merecimento: Ex pro- Zwelf. Man
fello , & acerrime imprgnat , & elimmarenititur cilSpag.Part
.
Magnus ille Societatis Scriptor , & Presbiter Pater 1. cap . 1. fol.
Athanaſius Kircherus, vir incomparabilis doctrine , a6 324
talenti, multiſque ævo noſtro arcanis tomis , luculen
ter editis, conſpicuus; porque para clogiar. Varáo
tão Sabio , os mayores. hyperboles faỗ limitados
panegyricos. He a ſagrada Religiaõ da Companhia
de JESUS, aquella Caſa , que para ſi edificou a
Sabedoria : Sapientia ædificavit ſibi domum ; eo Re Proverb.9. 12
verendiſſimo Padre Kircker he hunia das mais ſoli
das , e firmes columnas , que com o Nonplus ultra
das ſciencias , e virtudes ſuſtenta melhor que Aclana

te o Ceo , eſte doutiſſimo , e celeſtial edificio ; por


que como eſcreve Caramuel , foy Divinitus edoctus.
Mas allim como os Apoſtolos da Companhia de
JESUS , quando paſſaráo com ſeu Divino Meſtre
pelas ſearas alheas , não colhera ) codas , ſenaó al
Cæ- Matth . 12. 1 .
gumas eſpigas ; Diſcipuli autem ejus efurientes ,
cij perunt
P R O LOGO

perunt vellere fpicas ; porque ſó principiarão , ou


começàraó a colher : Cæperunt vellere ; affim eſte
grande Apoſtolo não colheo todas as eſpigas ,
quando meteo a mao na ſeara alheya ; porque el
tudando , trabalhando , e eſcrevendo doutiſlima
mente da Chymica , nao pode averiguar o ſegredo,
nem deſcobrir o invento da Pedra Philofophal , de
que reſultou eſcrever acerrimamente contra a ver
dade da Chryſopeia , cujos argumentos feraó agora
fundamentos deſta diſputa , com os quaes o inten
Carey Vencer , como David ao Gigante Golias , com
o golpe deſta Pedra , e com a ſua propria eſpada.
Para proceder com mayor clareza , fupponho
primeiro com o grande Medico Paracelſo , que na
rigorola transformaçao perdem as couſas transfor
madas a ſua propria forma, e recebem outra de no
Vo , como vemos nas transformações do pano em
papel, da pelle em grude , do pão em cinza, do
Metal em pedra , e da cinza em vidro . Eſta rigo
roſa transformaçao nao admitte o Reverendiffimo
Kircker nas eſpecies dos Mecaes , e com efte fun
damento nega os effeitos , e por conſequencia a
verdade da Chryſopeia. Demos agora forças a eſta

ſua opiniao , para com avictoria ſermaisplauſive!


efte Hermetico triumpho . Os Hermeticos mudao
os Metaes quanto aos accidentes , e nao quanto às
eſpecies : ficaó ſemelhantes na apparencia , e nao na
realidade , como realmente ſendo muito diverſos ,
ſað tambem muito ſemelhantes o Salcommum , co
Şal Armoniaco. Se os Mecaes diffirirao accidental,
e nao eſſencialmente huns dos outros , ſeria tað fa

cil a ſua tranſmutaçaó , como mudarem -ſe os acci


dentes ; mas como differem pelas eſpecies , he çað

impof
G A L E A TO . 21

impoſſivel a ſua transformaçao , como a mudança


das eſſencias. Neſte ſentido taó impollivel he tranſ
formar Ferro em Prara , cu Cobre em Ouro ,
como converter hum Leao em Tygre , huma Pom
ba em Aguia , huma Maçã em Pera , hum Pef.
ſego em Figo , e hum Melao em Laranja , co
mo diſcorre Thomaz Eraſto, Medico do Empera
dor Rodolpho, aquem convence Claveo , infigniſ
ſimo Francez , com huma doutiſſima apologia ,
que
anda impreſſa no Segundo Volume do Theatro
Chymico.
A repoſta do grande Medico Heſpanhol, ou
Francez Arnaldo de Villanova , recebida por Rai
mundo Lullio , e outros Philofophos Hermeticos ,
que dizem nað ſe transformarem as eſpecies , le
naó os individuos , nao ſatisfaz aos argumentos
contrarios. Confeſſao os Hermeticos , que a argen
teidade ſe nað commuta em aureidade ; mas affir

maó , que o Ouro ſe transforma em Prata. Iſto po


rèm he caó difficultoſo de provar , como a tranſ
formaçao de huma Balea em hum Delphim , ou
de hum Elephante em hum Camello . Se hum in
dividuo fe convertèra em outro , tambem as eſpe
cies , e differenças individuantes ficariao transfor
madas , como a Petreidade em Pauleidade, fe Pau
lo ſe convertera em Pedro. Para reſponder a eſte
argumento ou deſarar cortando eſte nò Gordio ,
ſupponho tambem com a commum opiniao de codos
os Philofophos Peripateticos ( que ſao os mais ef
crupuloſos, e os menos illuſtrados com a noticia
das tranſmutações , que taz a Chymica ) que ha
verdadeira converſao de huma em outra fubſtan
cja , como conſta da ſuameſmadiffiniçao : Eſtran
fitus
22 P R ☺ LOGO

P.Soar.Luf. fitus' unius: rei in aliam ; e ſe a Pedra Philoſophal


loc.cit.num . nað he outra couſa ſenað huma cinctura , ou pò
39 . branco , e outras vezes vermelho , dameſma cor do
açafrað pizado , e reduzido a pò ſubtit ; cao 'reſ
plandecente como vidro triturado, a qual tinctura
converte os Meraes impuros em Prata , ou em Ou
ro , eas enfermidades em ſaude, que he o meſmo ,
que converter huma couſa em outra : Eſt tranſitus
unius rei in aliam : admitcindo os Peripateticos eſta
converſa ) em todas as coulas, ou ſubſtancias cria
das ; porqueo genero comprehende a todas, e nao
exclue a nenhuma das ſuas eſpecies, não podem ne
gar a meſma converſao nas eſpecies dosMetaes ,e
dos humores , a que os Hermeticos defenſores da
Chryſopeia chamaó por outro nome tranſmutaçao
da enfermidade em ſaude , e dos Metaes imper
feitos em Ouro , ou Prata perfeitiſimos.
He tao certa elta Philoſophia entre todos os
Philoſophos Ariſtotelicos , e Academicos, que o
meſmo Kircker , inimigo declarado da Philofophia ,
e Medicina de Hermes ingenuamente confeſſa , que
nenhum Philofopho a duvidou atè agora ; admit
tindo cambem , que o Ouro ſe faz ſugeito de ou
tra differente efpecie : Aurum fit ſubjectism altes
rius fpeciei, de quo nemo Philoſophorum hucuſque du
bitavit. Mas ao melmo tempo , que confeſſa a tranf
formação do ſugeito , nega incoherentemente a con
verlaó das eſpecies ; lembrando -ſe no meſmo lu
gar , de que determinava eſcrever em outra parte ,
que huma herva ſe transforma em outra , 0 fucco
das plantas ſe tranſmuta em varios inſectos , os
brucos mortos ſe convertem em animaes vivos , os '

alimentos ſe commutað em ſangue, e as cinzas fe


crif
G A L E A TO. 23

criſtalizaõ em vidro que fað indiffoluveis argu


mentos contra a ſua Philoſophia , e muito folidos
fundamentos da Pedra Philoſophal. Para iſto ſe per
ceber melhor, devemos advertir , que por dous mo
dos , conforme eſcreve o meſmo Kircker, le pode
conſiderar a metamorphoſe , ou transformação de
huns em outros Metaes , a que o doutiffimo Pa
dre chama transformaçao propria , e immediata , ou
mediata , e impropria transformaçað : ' na transfor .
maçaõ impropria , e mediata por falta de apridað
para a permuraçao , de ſugeito commum , e permu
tavel, e de ſugeito immediato da acção permutan
te , mas feita por outro diverſo lugeiro , ſó as eſa
pecies, ou accidentes ſe pòdem mudar : Hoc aute
patto ſpecies, & accidentia tranſmutari poffunt. Não
pode por eſte modo tranſmutar a argenteidadê na
auriedade , nem a eſpecie abſtrahida do Ouro fe
pode transformar in abſtracto na eſpecie de Prata ;
porque eſtas eſpecies abſtrahidas dos ſeus indivi
duos eſtao iſentas de toda a permutação fenfivel,
excitada pela compoſiçaó , accreſcimo, ou contra
riedade, que as transformáo ; mas accidental, o
impropriamente ſe podem transformar pelo inftru
mento do fogo : Sed per accidens quidem , dim .
proprie , do mediate verbi gratia igne transforman
tur. E na transformação propria, e immediata, que
tem aptidão da ſua immutabilidade ,, fugeito com
mum , que repugne à converſao , ou mutação , e
que admitte qualquer ſugeito , que activamente
transforme , tranſmutarſebao os individuos, e não
as ſuas eſpecies : Hoc autem paéto fpecies mutari im
poßibile ef? ; fed fpeciei duntaxat illius individua. E :
conſideradas as transformações por qualquer deſ
tes
24 P.RO LOGO

tes dous modos , que propoem o Reverendiſlimo


Padre Kircker , nunca eſte grande Philofopho po

derà com elles provar a impoſſibilidade da tranſ


formaçao dos Metaes feita pela Chryſopeia ; por
que ſe admitte a converſaó propria , e immediata
quanto aos individuos , e não quanto as eſpecies
abſtrahidas, concede a tranſmutacaó , que os Her
meticos defendem , e praticão ; e a razão he , por
que elles fazem a transformação de entidades phy
ficas , e váo de eſpecies metaphyſicas. Fazem as
ſuas operações reaes , ou à parte rei, aonde não hà ,
nem pode haver eſpecies abſtrahidas, ſenão os in
dividuos, que faó o objecto , e lugeito das tranſ
formações. E ſe pelo contrario admitte a transfor
mação impropria, e immediaca , concede , que atè
as eſpecies ſe convertem , couſa que nem os meſ
mos Adeptos diſſerão , nem ſonharáo. Neceſſaria
mente deve Kircker admitcir huma deſtas tranf.

formações, propria , ou impropria ; porque fað os


unicos dous modos , em que elle divide a conver
Laõ , a qual não pode negar como Philoſopho dil
cipulo de Ariſtoteles , aindaque na ſabedoria tão
ſuperior ao grande Stagyrita, que pode ſer ſeu Me
Itre.
CE
Nem o Reverendiſſimo Padre Kircker pode
negar a transformação propria dos Metaes imper.
feitos em perfeitiſſimo Ouro , confeſſando inge
Salamaó Bla- nuamente, que os Mecaes differem entre ſi ſó pelas
wenſt, apud fuas eſpecies, e não pela ſua materia : In ſpecie qui
Mang.com ... dem .differunt, non tamen in materia ; porque a ma
Bibliot. Che
mic . l . 1. feet. teria do Ouro , como depois de outros eſcreve Sa
2.ſubſ.2.cap. lamão Blawenſtein, he Enxofre louro , lubriliſlimo,
2.9 . In, f. 314 . e puriſſimo : a mareria da Prata he Enxofre branco,
e Mer
G A L E A TO 1

eMercurio claro , e puro : a materia do Cobre , he


Enxofre amarello,craſſo ,e impuro , e Mercurio com
alguma impuridade : a materia do Ferro , he Mer
. curio immodico, e Enxofre eſpeſſo , mas ambos im
- puros , eadureates : amateria do Chumbo , che Mes .
curio impuriffimo , craffo , e feculento , e Enxofre
r. tambem impuro zle a materia do Eſtanho , he final
ro mence Mercurio branco na ſuperficie , corado no
Y interior , e de Enxofre mal mitturado . Além deſtes
as Met aes , ha fete Eſpiritos Alchymicos , quatro prin
cipes , que faó , Mercurio , Enxofre , Ouropi
mente , e SabArmoniaco ; e tres ſecundarios , ou
[. compoſtos, que faó Marcaſica , Magneſia., e Tú.
21 tia ; mas em todos tein o primeiro lugar o Enxofre,
tè eo Mercurio , como elementos da ſua compoſiçað .
To
Só o Antimonio, que he minerał quaſi metallico ,
fem por materia o Enxofre ſemelhante ao com
mum , como fe averigua pela fua anathomia. E fe a
materia dos Metaes he Enxofre , e Mercurio , ou
para o dizer melhor , he fempre a meſma materia,
facilmente ſe podem cransformar todos os Metaes
em outros diverlos na cor , e náš na eſſencia por
huma verdadeira e propria transformaçao ; por
que he muito facil, e muito natural , que o mel
mo Metalnað ſeja diverſo de ſi meſmo. Antes mais
difficil , ou 'verdadeiramente impollivel parece ,
que os Metaes fejaõ differentes nas fuas elpecies ,
lendo certamente os meſmos nas ſuas eſſencias.
E o exemplo, que traz Kircker, de que a ſenten
te Sulphureo -Salino-Mercurialde todos os Meraes
he ſempre a meſma , mas que da terra recebe as dif
ferenças accidentaes , ainda facilita ! mais a poſli
bilidade,e certeza da fua transformação ; porque
fr. d OS
26 PRO LOGO

os accidentes , ou cores dos mixtos mudao -le com


facilidade, e muito melhor fendo identicas as fubf
tancias dos fogeitos da ſua inhelaõ ; e havendo em
todas as materias appetite para receber todas as for
masi; por iſſo o grande Medico Avicena , ainda que
concede , que ſe nað mudaõ as eſpecies dos e
taes, e dos Mineraes , affirma que ſe transformað
?
com perfeita tranſmutaçao , introduzindo- fe novas
fórmas na commum materia.

Porèm ainda nefta fuppofiçaõ fe condemna mais


o meſmo Kircker , admitcindo , ou efcrevendo im
mediatamente no meſmo diſcurſo , que os Bichos
da ſeda, e as Lagartas fe convertem em Borboletas:
ps Infectos em hervas ; e as Plantas em varios Inlea
ctos, naõ ſó por obra da Natureza, mas tambem por
induftria da Arte : De admiranda vero vegetabilis
Haturæ , qua non folum una herba in aliam trans
mitatur , fed ex herbarum putreſcente fucco , anima
liumque putredine ,, differentis fpeciei animalia pro
ducuntur , metamorphofi , in ultimo hujus operis libro,
magno experimentorum apparatuidigeremus ; porque
a Arte fermentando os humores dos Animaês , e os
ſuccos, das Plantas obra tao admiraveis produc CE
ções , como a Natureza ; tendo digno de mayor a
admiraçao , o que fe lè no ſegundo Tomo do Thea
tro:Critico y de huma eſpecie de Gafanhoto do Brais
fil , que pela Primavera fe converte em Planta. De
clarando a palavra Catopa , efcreve o grande Bluteau
no ſeu ! Vocabulario , por liçaó de Diogo de Cou
to , que deſta.arvore cahem humas folhas mais peu
quenas , que as gorses cujo pèshe cabeça de bum
bicho, ou Borboleta , eo talo , o corpo e as veyas,
que procedemrdelle , pès, e mãos , e as folhas azas,
com
GALE'A TO. 27

com que logo voaó , ficando perfeita Borboleta , e


juntamente folha: Cada anno renova eſta arvores
lançando humas candeas , como de caſtanheiro , é
de hum pedaço dellas fahe ihum bicho , fervindo
lhe osigraðs à roda de pèsy e o talo de corpo ; e as
folhas novas criað huns bichos, como de hortaliçaj
que cahem de cima pendurados por fios , como
teas de aranha , que acodem a apanhar buma caſta
de beſpas , e as mecem em ſeus ninhos, que fazem
de lama dentro nås cafas , e enchendoas daquelles
bichos, capao ham pequeno buraco , que tinhaó para
ſervincia , e vao-fé as beſpas para outro pouto ,

deſtes bichinhos, que ficão nos ninhos ;lte gerað


outras befpas, que por tempos fahem dalli a bufe
carmantimento para ſuſtentar a vida. Nos mares
de Gaóxa , Ilha da China nia Provincia de Quantun
go, ha hum peixe , a que os Chins, ſegundo eſcream
ve Kircker, chamaó } loangeioyu , que vale o meſa
mo , que peyxe amarello. Do principio do Outono
atè entrar o Eltio fica eſte peixe nasagoas do mar ,
donde procuraó os nacionaes peſcallo , porque he
muito delicado , e ſaboroſo ao goſto ; mas no prine
cipio do . Verað fé transforma em Ave de penna
amarella , e como as mais Aves ,levanta o voo , e vay
buſcar 'nos montes o ſeu ſuſtento . Porém em ches

gando o Inverno , paſſa do Sertao para as prayas


do mar , e merido nas ondas , converte as plaması
em eſcamas , até que tornando a Primavera , the
renafcem as azas , e aſlim com perpetua revoluçao
vay eſte animal amphibio mudando de eſpecie. Na
geração do Picaflor, ave do Brafil , contago Padre
Simao de Vaſconcellos quatro transformações , que
vem à fer de bichos brancos em moſquitos , de
d ij ·mof
28 P R O'LOGO

moſquitos em lagarcaś, de lagarras em borbole


tas , e de borboletas en aves. E fe the dermos o
credito , que merecem os eſcritos do fapientiffimo
Padre Ar[dekim , confeſſaremos mais admiraveis
transformações; porque eſcreve, que em Irlanda
hą hum lago , aonde fixando - ſe hum pao compri
do , a parte que penetra a terra , fe converte em fera
ró , a que fica na agoa , ſe transforma em pedra ,
conſervando o que fica ao ar o fer , que dantes ci
nhà . E nao ſo muicos , e graves Eſcritores, fenað
tambem o meſmo Kircker confeffaô , que os ho
mens , brutos, arvores , plantas , e outras couſas
viventes ſe converteraó em pedra , penetradas com
o eſpirito lapidifico , e petrificante, expirado to.
pentinamente das entranhas da terra , como temos
viſto nos caranguejos de Aynað: e daqui le ſegue,que
ſe asentidades perfeicas, e imperfeitas fe convercèraố
em pedra , que he buma efpecie taódifferente , como
o infenſivel, e o vivente , que mais facilmente le
poderào transformar os Mecaes em Ouro , e Prata ,
havendo entre elles , naó ló analogia , e fympaa
thia , como eſcreve o meſmo Kircker, mas verda
deira identidade , fem a fonhada differença , ou ima
ginada diverſidade de eſpecies ; porque ainda que
a Prata feja branca , o Ouro amarelo , o Cobre ne
gro , o Ferro azul, e o Chumbo livido , naó dif
ferem eſpecificamente, como tambem eſpecifica
meáte nao faó differentes os homens Europeos ,
que fáo brancos ; dos Ethiopes , que faó negros ,
nem os Chrins , que faõ amarellos , dos America
nos , que laó pardos.Os Tapuyas cem cor de Brore
ze : alguns Chins tem cor de azeitona ; e muitos: 1
negros tern cor de neve , chamados por eſta cauſa
Albi
G A L E A T .. 29

Albiños, ou Alvinhos , como eſcreve Bluteau por


liçaõ de Dapper, na Deſcripçaõ da Echiophia . Nel
ta Corte vi hum negro do Secretario de Guerra ,
tað alvo como huma pomba : porém as feições do
roſto, e o creſpo do cabello eraõ como as de qual
quer negro , taó preto como hum Corvo . Hoje vive
em Cala do Excellentiflimo Senhor D. Gabriel de
Alencaltro VIII.Duque de Aveyro , hum negro tað
dalpicado de branco, que comoalvo, e eſcuro igual
mente proporcionados em manchas , repreſenta em
noite elcura o Ceo eſtrellado . Com a diverſidade
das cores naó fe differençaõ eſſencialmente os in
dividuos. Por ventura o Cavallo Dourado , o Ca
vallo Branco , o Cavallo Caſtanho , e o Cavallo
Murzello , faó Brutos taó differences nas efpecies,
como faó diverſos nas cores ? He certo que nao.
Pois fe a diverfidade das cores nað he argumento

para provar differentes eſpecies nos meſmo bru


cos, é homens : tambem nao he fundamento ſo
lido ,, para provar diverſas eſpecies nos meſmos
Metaes de differentes cores.
E para que nao fique duvida , nem efcrupulo
neſta materia , aquem ler eſta anticipada apologia
dos tres Dialogos , quero reſponder neſte lugar
por dous modos a hum Texto de Direito Cano ,
nico , tirado como fe diz do Concilio Alquirenſe ,
ou Ancyrano , no qual , conforme as Collecções de
Buchardo , Ivo , e Graciano , ſe achaó eſcritas
cſtas palavras : Quæfquis credit poffe fieri aliam crea- Text. in cap .
turam , aut in melius , aut in deterius transformari Epiſcopi 26.
in aliam fpeciem , vel aliam fimilitudinem , niſi ab ipſa 9.5 .
Creatore , qui, omnia fecit , infidelis eft. Saó formida
veis eſtas palavras entendidas alim como foao ,
por :
30 PRO LOGO

porque parece , que totalmente condemnao por


infiel o meu diſcurſo ; mas quando foſſem Canoni
cas , ſendo entendidas no feu verdadeiro ſentido ,
nað ſe oppoem ao meu aſſumpto . Eſte Concilio
Auquirenfe he chymerico ; porque o nao houve
na Igreja. O Concilio donde os Canoniſtas tirarao o
dito Texto , he o Aquilenſe , ou Ancyrano, onde
ſe introduzio aquelle Canon fendo efpurio , e apó
cryfo ; porque ſe nao achaem muitos exemplares
Gregos, e Latinos do Concilio de Ancyra. 'Nem as
Collecções de Dionyfio Exiguo , e de llidoro Mer:
cator fazem delle mençaó , ſendo as mais antigas.
He verdade , que ſe acha eſte Texto em Buchar
do , Ivo , eGraciano , porém Varões muito doutos,
ainda depois da correção de Graciano ,feita por or
dem dos Papas Pio IV . e Pio V. e principalmente
por mandado de Gregorio IX . o reputað por fal
fo, Natal Alexandre referindo todos os Canones
delte Concilio , nað faila neſte Texto , o qual cam
bem omiccio o P. Labbe ; e o P. Harduino no Pro

logo daquella Collecçað , que augmentou , inſi


pua , que fe não reputem por verdadeiros os Ca
nones , que ella omitcio , ainda que ſe achem em 1
outros Collectores. Porém ainda que forao Cano
nicas as palavras do Concilio nao contradizem a
minha Philoſophia ; porque fallað fó da transfor
maçao das peſſoas, e nao da tranſmutaçao dos Me
taes, ou da metamorphoſe de outros ſemelhantes
mixtos , como as explica o grande : Juriſconſulto
Arfonc.apud Thomaz Artoncino : Nam Textusillenon loquitur de
Mang Ton) .
1. Bibliothec. Speciebus Metallorum , aut fimilium rerum ; red de
Chem . lib .1. ſpeciebus perfonarum : hoc ejt de mulieribus fortilegis,
Sect. 2. Subſ. qua dicebant , quod noctu transformabantur in varias
6. fol . 216.
fpe
G A L E A T
31

cies animalium, & per ſylvas , ac nemora cum Diana


vagabantur. Juftinimamente prohibiria o Direito
Canonico às Feiticeiras , ou Bruxas affirmarem , que
de noite fe transformaó em varias efpecies de ani

maes, e que deſte modo transformadas, vagão ,


ou andão correndo pelos boſques , e ſelvasna com
panhia da fabulofa Deofa Diana , acompanhando-a,
e fervindo -a naquellas montanhas no divertimento
da caça ; porque a Alma racional não pode natu
ralmente informar corpo , que não eſteja organiza
do com organização humana. Toda a forma pede ne
ceffariamente determinada configuração da materia ,
de forţe, que he impoflivel ſubfiftir em configuração
propria de outra eſpecie . Efta doutrina , que Fey- Feyjoo Theap
joo fegue como communiflima entre todos os Phi- tr.Crit. Tom .
loſophos, fe pode confirmar com eſtas duas hor- 4.Diſcurſ.9.
rendas experiencias . No ſeu Diccionario Hiſtorico, : 2.2num . Svo
fol. 27.
imitando os Authores da fua nação ,chama Luiz Mo
reri Striges a huns cadaveres de defuntos, que fe
achão em Polonia , e particularmente na Ruflia , a
que os naturaes da Terra chamáo Upiers. Eftao eta
tes corpos mortos cheyos de hum certo humor , que
parece fangue. He opiniaó provada com eſtupen- Bluteau Vo
dos ſucceſſos, que o demonio tem chupado , ou cabul. Port.
tirado eſte fangue de gente viva , ou de alguns ani- Tom.7 . Ver
donde o treſpaſſa para os cadaveres i dos bo Strige fol,
quaes em certos tempos fahe o diabo a fazer mal 751 .
aos parentes dos defuntos , deſde o meyo dia atè a
meya noite . Depois deſta perſeguição , torna o de
monio a entrar dos cadaveres com todo o fangue ,
que tem roubado , que algumas vezes hé tão co

pioſo , que fe o não tiráo , rebenta, pelos narizes ,


pela boca , e particularmente pelos ouvidos , fican
とな 。 do
32 PRO LOGO

do os corpos nadando no ataude , e padecendo tan


ca fome, que comem as mortalhas , que ordinaria
mente ſe lhes acháo na boca. Efte Demonio , que
-fahe dos cadaveres apparece de noite aos ſeus paren
tes , e amigos , repreſentandolhes a figura dos de
- funtos , com os quaes ſe abraça , e apertando -os mui
to , e tirando- lhes as forças de maneira ', que acor
dão aflictos , gemendo , e pedindo ſoccorro ; e por
-lhes ter o Demonio cirado muito fangue , ficão
-muito fracos , e ſummamente atrenuados , e deſte
-modo ſe váo mirrando até que acabão a ſua vida.
Dura elta perſeguição atè o ultimo deſcendente
da ſua familia , le não atalhão , e evitað com o re
-medio ráo lastimoſo eſtrago . Fazendo -ſe veſtoria
nas fepulturas, eſtao eſtes funeſtos cadaveres bran
dos , inchados, vermelhos, e Alexiveis , ainda que
fe tenha paſſado muito tempo depois da kua mor
-te. Corrão -lhe logo a cabeça, arrancãolhe o cora
ção , recolhem todo o ſangue, que ſahe das feri
das , e amaffando- o com farinha , fazem della hum
pão , que os vexados comem , e con eſta mutila
için de membros , não entra mais o Demonio na
quelles corpos , theatros funeſtos das ſuas repre 1
S
denrações. Entre os Gregos ainda hoje fað muy ce
Jebres as apparições dos Brocolacas , que laõ cada

Blureau Vo veres de poſtrasexcommungadas , falla , e apparen


cabul. Port . temente reſuſcitadas pelo Demonio , entrando den
Tom.5.Viro tro nos ſeus corpos , aniinando - os , e obrando de

bo Ntoupi -fcrre com a ſua organização , que fallão , andão , co


fol. 763 mem , e bebem ; mas ranto que lhe arrancaó o co
-saçao do peito , e cortado em pedaços o ſepultam ,
nao pode o Diabo repreſentar aquelles vitaes fingi
mentos. Sem a organizaçao natural dos corpos hu
manos
G AL Ε Α Τ Ω. 33

manos, vemos nos cadaveres dos Broucolacas fem


coração, e dos Striges ſem coração , nem cabeça, não
ſó a Alma Racional , mas nem ainda o meſmo Demo
nio pode cauſar transformações , nem repreſentar fin
çimentos. Logo não podendo , conforme enſinão os
Thcologos, fazer o [ emonio operações ſobrenatu
.
raes, e milagroſas, he preciſo confeſſar, que não po
de o Diabo conſeguir, quea Alma Racional informe
3 algum corpo, configurado com organização propria
de alguma eſpecie de bruto , e por conſequencianão
pode fem romper, ou delatar o vinculo , e união
da alma com o corpo , transfigurar o corpo huma
no em outra eſpecie, com diverſa organizaçao.
Para fingir eſtes preſtigios , jó tem o Demonio 2
poder , conforme advertio Santo Agoſtinho , e não Div. Auguft. 1
para transformar huma em outra creatura , como lib.de ſpirit.&
algunserradamente imaginàrão dos Arcadios tranf- Anim.cap.17.
formados em Lobos, de Iphigenia mudada em Corfa, & 18.
e dos companheiros de Diomedes convertidos em
aves , e dos de Ulyſſes, pelos encantos de Circe,tranfa
figurados em brutos. Com arte diabolica tomava Si
mão Magoa figura que queria , e com tão grande le
melhança trocou a cara de Fauſtiniano na ſua, que ſó
S. Pedro conheceo eſte engano. Foy eſte impoſtor
táo temerario , que ſe offerecco , a que lhe cortaf
ſem a cabeça , promettendo, que reſuſcitaria dahi a
tres dias. O Emperador o mandou degollar , e con
Seus preſtigios poz debaixo do cutello a cabeça de
hum carneiro em lugar da ſua, e paſados os dias
fe apprelentcxi diante do povo , e do Principe com
admiração de todos . Na ſua hiſtoria diz Apuleyo,
que imaginando ter morco tres homens , achou que
eráo tres pelles de bode, que a encantadora Pam
e pila

1
34 P R O LÔ G O

pila com ſeus magicos preſtigios reprelentàra de


baixo da figura de tres homens . E fendo eſta a ver
dadeira intelligencia do Texto reputado por Ca
nonico , não ſe deve trocer contra a transformação
dos Meraes , e de outros mixtos femcibantes , à
qual ſem diabolico artificio , nem encanto magicr ,
ſe faz naturalmente por industria da Arte Magna .
Não ſendo eſte o verdadeiro ſentido do Concilin ,
-ferião infieis todas as peſſoas , que affirmaſſem , que
os ovos ſe transformavão cn françãos , e outras
aves : os bichos da feda em borboletas , e os alimen
tos em carne , e ſangue , que todas eſtas couſas (að
creaturas transformadas. O : meſmos Juriſconſultos
ferião reos de infidelidade ; porque affirmão nos
Text.in l.2.C. feus Textos , que tudo ſe converre em dinheiro ,
de conft. pe- e que o veneno ſe transforma em thraça , pondo
cun . Text. in o exemplo no celebre antidoto chamadoMethrida
L.quod læpe to , e deſta forte não hà razão , Texto Divino ,
S.senena ff.de
ou bumano , nem ainda authoridade , que deſtrua
conti, emp .
os fundamentos , com que os Hermeticos defendern
os decantados effeitos da ſua famoſa Chryſopeia.

S. IV.

Ambem da contradicção dos Adeptos infere o


T , que ,,
nos enganão os Hermeticos ; e com eſte fundamen
to conclue , em que não bà Pedra Philofophal no
Mundo ;; porque
porque he ſufficientiſſimo argumento da
ſua falſidade, a variedade das ſuas grandes contradic
ções : Contradi& tionum varietas, (uifficientiffimum falſi
tatis argumentum . Toda eſta contradicçaõ dos Philo
ſophos Chymicos, he dizerem , que o Ouro conſtitu
tivo
G A L E Α Τ Ο.
35

vo do Lotis, não he Circ , nem o Mercurio na


Arte Ningna ne Mercurio ; e com tudo para faze
rém a Obra Magna , uſaõ do Mercu: io , e do Ou
ro : Aurum , quod lapidem conftituit, non effe Au
Tulin , Mercurium in Arte Magna non effe
Mircu
rium ; & tamen diuruin , e Mercurium ad opus
Magnum affumunt ; porque Ouro , e não Ouro ,
Mercurio , e não Mercurio , lie grande contradic
ção , que he o mayor abſurdo , que ſe encontra
na verdadeira Philoſophia : Quodmanifeſi am implı
Cat contradicionem, gio in vera Fhilofophia nınılab
fardins ejt. Facilmente le defata , ou rompe o nò
deſta contradicção, como alludindo ao no Gordin,
que ſenão podia deſatar , The chama com alguma
jactancia o meſmo Kircker , ſe diſtinguirmos a fe
mente Solar , ou Mercurial doMercurio , e do Ou
ro , donde ſe tirão com a diſtinçao , que os Phi
lofophos chamáo includentis ab inclufo , & inclufi.
ab includente ; porque com eſta diſtinção fica a fe
menre Mercurial ou Solar tendo , e juntamente não
fendo Ouro , ou Mercurio , como a ſemente de
qualquer vegetavel , he , e nao he juntamente a
meſma planta. He planta, porque conforme a Fi
gura Synedoche ( a qual diz mais , ou menos do
qué le na rcalidade , tomando a parte pelo treo,
ou o rodo pela parte ) bafta ſer parte ſua , para
ter o nome da planta trda. Alim chamamos triço
a toda a ſcara , e tambem a qualquer grão della .
E não he juntamente planta ; porque a ſemente he
huma
parte ſo da planta , em que naſceo . Por el
te modo fe pòde chamar Ouro , ou Mercurio às
fuas
partes feminaes, que faó a ſemente Mercurial;
ou Solar y que os.Hiermeticos cirão deſtes mixtos ,
e ij para
.
O
O G
R O
36 P L

para fazerem o Lapis com o ſegredo da Arte Mag


na : Et tamen Aurum , & Mercurium ad optts Mag
num aſſumunt ; não ſe devendo chamar Mercurio,
nem Ouro , a materia de que os Adeptos formão a
Chryſopeia , aqual entra na obra Magna : Aurunz
quod lapidem conftituit , non eſſe alırım ; Mercarum
in Arte Magna non effe Mercurium ; porque eſta
materia do Lapis he incompleta , por eſtar defti
tuida , e feparada de muitas das fuas partes ince
grances , e como tal nað tem toda a fua material
perteição, ainda que por eſtar purificada , he perfei
tiſſima. Explicome com hum exemplo Philofophi
ço. O homem efſencialmente he Animal Racional ;
e com tudo não podemos chamar homem a qual
quer deſtas formalidades , quando objectivamente
le diſtinguem pelo entendimento ; porque ama
bas compoem o homem unidas , e não feparadas,

porèm eſtando diſtintos eſtes dous graos methaphi


ficos , não há duvida , que o Racional he perfeie
tiflimo , como vemos nos Anjos. Da meſma forte
não le pode chamar Ouro , ou Mercurio a quala
quer deſtes mixtos, feparando -lhes as ſuas partes
integrantes, e componentes a Arte Magna , poſto
que eſtando purificados , ficão muito mais perfeia
tos. E neſte ſentido não faó Mercurio , nem Ou
ro , aindaque por Synedoche ſe pode chamar a ef
ta materia ſeminal , Ouro , ou Mercurio . Por eſte:
modo me parece , que fe explicaõ os Hermeticos
fem conrradicção , e com admiravel rhetorica.
Eſta ſemente Mercurial , e Solar , admiste o
meſmo Kircker diſtincta do meſmo Ouro , e Mer-;
curio , quando eſcreve , que o halito , ou vapor
Sulphureo -Salino -Mercurial he a materia fugeita.
dos
G A L E Α Τ Ο0.. 37

dos Metaes ; mas não he Meral , fenão ſements.


metallica : Aurum , argeniiain , art plumbum non
eft , ſed veluti femen quoddam . Não ne Owo , Pra
ta , nem Chumbo , mas he parte fua , como he a .
ſemente dos Vegetaveis parte , e não toda a plan .
ta ; e com admirtir Kircker eſta femente diſtincta
dos Metaes, intenta provar , que os Hermeticos a
não tirão do Ouro ; porque le deſtroe com tantas
diſſoluções , calcinações , e outros tormentos do
fogo , ou das agoas corroſivas : Urgeo , quomodo
probas illud femen per tot diſſolutiones, cæteraque tum
gros, tum aquarum roſivarum tormenta non eſſe deſ
tructum ? Prova eta inſtancia , com eſta parida

de : a ſemente dos Vegetaveis deftroe-ſe com os re


pecidos cozimentos : logo tambem ſe deftroe a dos
Meraes com os referidos tormentos. A eſte exemplo
porèm relpondo com a diſparidade , que elle mele
mo reconhece entre a femente dos Meraes , e dos
Vegeraveis: Aliter fe habere cum feminibus vegetabia.
lium , aliter cum femine metallicorum corporum ; por
que a natureza do Ouro he indeſtructivel , como
confella Kircker neſte lugar : Ab auro minerali prea;
mitusaſſumpto , natura ſua ideftructibılı ; e a na
tureza dos Vegetaveis totalmente ſe deſtroe pelo
cozimento : Ut potius deſtructa per tam frequentent
decoctionemforma, & feminis vim vegetabilem , una pe
rire neceffe fit. De maneira , que para defender a
Chryſopeia , nao acho melhor doutrina , do que a
contradicçaõ de Kircker ; porque as ſuas lanças
mais agudas , e penetrantes , fað os eſcudos im
penetraveis da noſſa Pedra . E agora juſtamente ſe
deve notar , que admittindo eſte grande Philoſo

pho , que a lemente , ou porçaõ do Ouro ſe def.


troG
38 P R O L () GO

trce hos tormentos do fogo , diga juntamente no


meſmo lugar, que per fer eſte Meral natureza in
defutur , lonão pode deſtruir , contradizendo
ſe cm poucas regras , ao meſmo tempo em que
com tanta advertencia argue contradicçõcs.
Se a contradicção he grande abſurdo na Phi
lor phia : 02:0 in vera Philofophia whil abſo!rdius
eſt ; ncs elcritos não dos Hermeticos , ſenão do Re
verendillimo Kircler , e do pay da Philoſophia
Ariſtoteles , ſe achio eltesabſurdos ; porque o
melio Ariftotcles no livro de Mirabilibus auſculta
tioubus affirma, que em Silicia hà hum lago, don
do metendo -ſe os animaes afogados , refuſcitão ,
ou recupero a vida ; contradizendo com eſta re
furreição à ſua grande maxima, em que diz , que
não hà regreſo da privação para a forma. E nolia
vro quinto da Hiſtoria dos animaes , não ſó di
credito à fabula da Salamandra ; mas accreſcenta ,

que nos fornos de Meral da Ilha de Chypre nal


cem , e ſe crião no meyo da chammas humas pe
quenas aves , que faõ os infectos volantes chama.
dos Pyranji15 ( dos qunes ailirmão o meſmo Elia
no , Plinio , qytchilo , e Aldovrando) tão fym
bolicas com o fogo , que morrem logo que as apar
tão do lume , contradizendo -le no livro tegundo
di geração dos animaes, aonde prova ; que o fo GE

Kircker. To- go não geri animal algum . Tambem Kircker ſe 0

mo 2. lib . 8. contradiz , quando eſcreve , que na Helvecia ſe


fect ... fol.95. creira husa homein debaixo da terra , e na com
& T0.1.2.lib .
panhia dis Dragées fubterrancos , camia ſomente
9.lect.5.fol.3 . Sal pedia ; athrmando em outra parte , que o ho
mem je nao pode alimentar , e nucrir, ſe não com
alimentos vegetaveis , que he tão grande abſurdo ,
Como
G A L E A TO. 39

como manifeſta contradicção . E ſe da contradicção


dos Hermeticos infere Kircker que não hà Pedre Phi
lofophal, tambem com o encontro dos Vegetaveis ,
e Sal pedra eſtão as pedras encontrad.is. Elle con
clue, em que não hà Pedra Philoſophal , porque
fe contradizem os ſeus defenſores : e eu tambem
provo com o meſmo argumento a exiſtencia da
Chryfopeia , porſecontradizer o meſmo Kircker ,
que a impugna.

$. V.

10m a meſma fubcileza argue o Reverendiſ


limo dos Herine
Kicker des contradicções
ficos, ſobre o deſcobrimento , ou eleição da mate
ria , e do methodo com que preparao a Chryſopeia ;
porque cada hum elege materia differente , e a pre
para por diverſo modo , ou methodo. He certo ,
que ſe a materia do Lapis he o Mercurio , Enxofre ,
Arſenico , Calcantho , Magneſia , Marchaſita , San
gue , Antimonio , Tutia , ou qualquer dos outros
innumeraveis mixtos , que acertão todos os Adea
ptos , ou acerra hum ló Hermetico ; e como he
tão duvidoſo acertarem todos neſta materia , tam
bem hà grande duvida , em que hum ſó homem
deſcubra a verdade, aqual fenão pode achar entre
tantas contradicções : Vel enim unus virtutem atin .
git , vel omnis ſiinul. Sed ficuti illud incertum eſt ,
ita in poſteriori veritas tot contradi&tionibus involuta,
locum habere non poteſt. Poriſſo Villanova injuría
a Lullio , Paracelſo impugna a ambos , e Libavio
refuta a Paracelſo : Villanovanus infeétatur Lul
lium ; utrumque impugnat Paracelſus; hunc Libavius,
omnium
PRO LOGO
li

0 :nnium bipedum , quadripedumque nequiffimum im


poſtorem intitulat . Em caſtigo deſta calumnia, vie
rão outros Fiermeticos , que ſatyrizaráo a Libavio ,
e a todos os Antigos , chamando aos mais velhos
ignorantes , e fatuos , e a Libavio calumniador ,
mentiroſo , e fallo accuſador , que tudo iſto quer
dizer a palavra Sycophanca : Omnes vero reliqui
cantra Libavium infirgentes, Sycophantain livore ple
num mordacitate faiyrıca efferum vocant , omnes
tandem fingulos fatos, a inaros rerum intitulant.
Nem os Hermeticos ſe ajuſtað fobre o methodo ,

com que fab cao o Lapis, porque Azotho emenda


á Lullio , Libavio a Azotho , c Paracello a todos:
Afothus emendat Lalırım , Libavius Azothum , Pa
s'acel 115 onines. Antes que reſponda a eſta cenſura ,
quero advertir huma contradicçao , que tambem ſe
acha neſtas poucas palavras de Kircker : primeiro
diz , que Libavio eſcreveo contra Paracello , e
depois affirma, que Paracelſo emendou a Libavio,
ſendo Libavio mais moderno , e eſcrevendo muito
tempo depois de Paracelſo ; porque de outro mo
do não podia fatyrizallo nos ſeus eſcritos.
Para desfazer a cenſura das contradicções re
feridas , não recorro ao Polyónymo , com que por
m do de Synonymo , com variedade de nomes , fe
cxplica a meſma couſa ; nem aos ſentidos allern,
rico , e metaphorico , em que os Ilermeticos fallas
quando ſcrevem da materia , e mechodo com que
fabricão o Lapis ; porque como a metaphora he
figura , que muda a propria em outra ſignificação,
e a allegoria diz huma couſa , e entende outra ,
por qualquer daquelies mixcos entendem os Her
meticos coufas differentes, e antes querem moftrar ,
! que
G A L E A T O. 41

que ſe contradizem a reſpeito da materia , ou do


methodo , com que fazem a Chryfopeia , do que rc

5 velar o myſterio da Pedra Furlojophal; à quai cam


bem no fentido allegorico , e tropologico chamað

T os Chymicos Ceo , Chryfofforna , Semente de Oiro,


Terra benediéta, Agua da vida , Sigillo de Salaindo,
" Fogo da Natureza , Leite de Virgen, Mercurio dos
Philofophos, Dragão , Aguia , Carzo, Laton , Eli
xır , Remedio de todas as enfermidades, das quaes
não morre quem o toma , como diz Kircker : De
quo qui bibit , non moriatur ; porque os Adeptos
ulando da Proſonomaſia , ou conjunção de nomes
ſemelhantes , dað varios epithetos ao Lapis , imi

tando aos Antigos , que por Hieroglyphicos ſe


explicavão com myfterio , e brevidade , para com
barbara aphonia de palavras Phenicias , e Arabicas
żombarem de ignorantes , e preſumidos Edipos ;
mas recorrerey a ſemelhante contradicçao , que ſe
acha em todos os Syſtemas dos Philofophos anti
gos , e modernos ſobre a averiguação dos Ele
mentos > ou materia de que ſe compoem todos os
mixtos , porque os Ariſtotelicos dizem , que os
Elementos ſao quatro , Fogo , Ar, Agoa , e Ter
ya : os Chymicos affirmão , que faõ cinco , Sal , En
xofre , Azougue , Terra , e Agoa : os Cartheſia
nos defendem , que faõ tres , Materia Subtil , Glo
boloſa , e Craſſa ; e os Antigos Epicuros , e mo
dernos Gaflendiſtas ſuſtentáo a opinião , ou ca
pricho de infinitos Elementos , que faõ os Atomos.
Em todos eſtes Syſtemas, como diſcorre o doutif
ſimo Feyjoo no Sceptiſmo Philoſophico do ſeu
Theatro Critico , eſtà tão duvidoſa a verdade, que
i provavelmente nenhum delles he verdadeiro. Ao
f menos
42 P R O L O GO

menos de qualquer dos referidos Syſtemas, huma


fó Seita diz , que he verdadeiro , e tres affirnáo ,
que he falfo : que he o meſmo , que dizer , huma
teſtemunha o juſtifica , e tres o condemnáo: o Syf
tema de Ariſtoteles parece fabula aos Chymicos :
o Syſtema dos Chymicos parece chymera aos Car.
theſianos : 0 Syltema de Deſcartes parece fingi
mento aos Epicuros, e Gaflendiſtas ; e
e oo Syſtema
de Epicuro , e de Gaſſendo parece ſonho a todos
os Philofophos; por iſo os Philofophos todos afron
tao a Gaflendo , e Epicuro : os Gaſſendiſtas , o
Epicuros injurião a Deſcartes : os Carthelianos ſa
tyrizão aos Chymicos ; e os Chymicos calumniaó a
Ariſtoteles. Comparemos agora a diſcordia de to
dos eſtes Philoſophos a reſpeito dos Elementos, e
Syſtemas da ſua Philoſophia , com a oppoliçao dos
Hermeticos ſobre a materia , e methodo da ſua Chry
Sopeia , e acharemos , que ſe Villanova injuria ' a
Lullio : Villanovanus infectatur Lullium , que o
meſmo fazem os Chymicos calumniando a Ariſtote
les : fe Paracelſo impugna a Lullio , e Villanova:
Uirumque impaznat Paracelſus , que o meſmo fa
12
zem os Carthelianos fatyrizando aos Chymicos : le
Libavio oſtende a Paracelſo : Hunc Libavius om CUE
nium bipedin , quadripedum impoſtorem intitulat ,
que o meſino fazem os Gaflendiſtas , ee Epicuros, US
injuriando a Deſcartes ; e ſe todos os Philoſophos
afrontão a Libavio , e aos antigos , e modernos
Hermeticus : Omnes vero reliqui conira Libaviri
inſurgentes, Sycophanta :n livore plenum , mordacita
te fiat yrıca e feruin vocant , omnes tandem fingulos fa
tuos, ex ignaros rerum intitulant ; que o meſmo fa
zem os Philoſophos rodos , afrontando a Gaffen
do ,
G A L E Α Τ Ο. 4-3

do , e a Epicuro. Pois ſe entre todos os Philoſo


phos fe acha eſta diſcordia emulação e con

tradicção em preprios termos , iſto be, ſobre a ma


teria dos mixtos , e do . Lapis , que muito he , ſe
encontre tambem entre os Hermeticos ? Se por el .

kas contradicções os cenfura Kircker, contra todo


o Orbe literario publica eſta cenſura ; porque não
ha Philofopho, que feguindo a qualquer dosSyſ
temas , e oppondo -ſe aos contrarios , não poſſa ſer
cenſurado . Aflim cenſurou antigamente Santo An
felmo aos PhilofoposNominaes , fequazes daopinião
de Guilielme Ocham , Religioſo de S. Franciſco ,
natural de Inglaterra , e difcipulo do Subtiliflimo
Scoto , chamandolhe Hereges da Dialectica, achan
do- ſe os Reaes , e Integraes comprehendidos neſta
Voluntaria cenſura . Nas Eſcholas da Theologia
Eſcolaſtica ha grandes contendas e diſcordias
entre Thomiſtas , Scotiſtas , e Jeſuitas , fem que
a diverſidade das opiniões fe opponha ao eſſencial
da verdade. Finalmente , ſe eſta contradicção Her .
metica he delicto , que haja de caſtigar ſó quem
não tiver commertido o mefmo crime, não te acha
rà na Republica das Letras Philofopho , ou Sabio
que The poſſa dar o caſtigo .
Os Eſcribas, e Phariſeos, que erão antigamente
os Sabios , e Doutores entre os Hebreos, accuſaráo
diante de Chriſto huma mulher adultera , quemere

cia ſer apedrejada por tao grave crime: Moyfesman- Joan. 8.554
davit nobis hujuſmodi lapidare. E que refpondeo Chri
fto , como tão fabio , àquelles douros accuſadores ?
Não refpondeo por palavra , fenão por eſcrito : Dis
fcribebat in terra. O que Chriſto eſcreveſle, não
gito
le ſabe de certo . Entendem commummente os Pa
fij dres
4.4 PRO LOGO

dres , que foráo os pecçados dos accuſadores. Que


accuſe o homicida ao homicida , o ladrão ao ladrão,
o adultero ao adultero : Homem , accuſate a ti: olha
que quando accuſas os peccados alheyos , te con
demnas nos proprios. A fim fuccedeo. Depois que
o Senhor eſcreveo o proceſo , não da accuſada , le

não dos accuſadores , levantou - ſe, e não lhes diſſe


muis que eſtas palavras: Qui fine peccato eſt veſtrum ,
primus in illain lapidem mittat . Aquelle de vos, que
fe achar fem peccado , leja o primeiro , que atire
as pedras. Aqui me lembráo as do Doutor Maxi

mo S. Hieronymo. As pedras , que trazião apare


Khadas contra a delinquente, converceo -as cada hum
contra o ſeu peito ; e os que vinhão entrado tão
zelofos , começarão a fahir confuſos : Audientes
antem unus poft unumexibant , incipientes a ſenioribus.
Sahirão -ſe ; porque entràrão na propria conſciencia;
e como todos ſe acharão culpados , nenhum ſe atre
veo , nem pode caſtigar aquella culpa. Com as
meſmas contradicções dos Hermeticos ſe achão no
Orbe Literario todos os Philoſophos ; e nenhum
poderà fentencear as ſua ; culp :s , ſem ler no mel
mo proceſſo os ſeus deli tos ; e não poden caſti
gar ettes crimes , os que não eſtiverem innocentes.
Sein huma innocencia muito puri , ninguem pò
de eſcurecer a outros a fama. Astheſouras com que

ſe eſpivitavão , e os vaſos em que ſe


apagavão as
luzes das ſete Alampadas do Tabernaculo , erão
Exod . 37:23 . de Ouro limpiſlimo : Fecit & lucernas ſeptem cum
emunétorus fuis , & vaſa ubi ea , que emuncta ſunt
extinguantur , de auro mundiffimo. Táo limpo deve
fer como Ouro puriſſimo , quem ſe atrever a puri
ficar Alanıpadas , e quizer extinguirlhes as luzes. E
nota
G A L Ε Α Τ Ο. 44

nota o Evangeliſta S. João , que os Eſcribas , e


Phariſcos , que ſabiráo primeiro do Tempo , fo
rão os mais velhos : Incipientes à ſenior ibus. Excla- Vieir. Part. 1 .
ma ſobre eſte lugar o grande Vieira : miſeravel fol. 763.
condição da vida humana ! Quantos mais annos ,
mais culpas ! E muito mais mileravel he a condi
çáo Philofophia , e ſciencia humana ; porque quan
to mais labios, é mais Philofophos , mais , e mayo ..
res ſao as contradicções. Porém entre eſtas contra
dicções ſe apura a verdade , como vemos nos Hil
toriadores, Chronologos, Juriſconſultos , e Theo
logos. E ſé a contradicção dos Authores fora effi
Çaz argumento contra a verdade das materias , fo
bre
que tão contradictoriamente eſcreverao , e diſs
putàrão , ſeguia ſe eſte grande abſurdo : ſobre o
deſcobrimento , e averiguação da verdade ha gran .
des controverſias, e contradicções entre os ſeus in
dagadores : logo não há verdade. Da verdade dir
te Kircker , eſcrevendo contra o Lapis , que de
pois de conhecida , nenhuma couſa lhe deſtrubia a
ſua infallivel certeza : Cum veritas una , & fimplex
fit , quæ ſemel,revelata , nunquam fua deftruitur cer
titudine. E accreſcento eu agora , que tambem a
não deſtroem as contradicções dos que a ignorão ,
ou contradizem , antes da ſua clara , e manifefta re
velação. Antigamente ſó em Judea era conhecido ,
o verdadeiro Deos : Notus in Judæa Deus ; e leng
do Deos eſſencialinente a meſma Verdade , porque
poſſue a plenicud da verdade , não por alguma ver
dade adventicia , mas ſó em virtude da ſua propria
eſſencia , contradizia a ſua exiſtencia o nelcio Acheo,
là no interior do ſeu infideliflimo coração :Dixit in- Pfalm . 13. 1 :
Sipiens in corde fuo , non eſt Deus ; e com tudo nao
pode
O
46 PRO LOG

pode a neſcia contradicção do Atheo deſtruir a ver


dade certa , e infallivel da exiſtencia do verdadeiro
Deos, aindaque por falta do conhecimento eſta
va Deos como occulto , e deſconhecido entre as
neſcias contradicções do Atheiſmo .
He verdade certa , e infalivel a exiſtencia de
Cyro , famofiflimo Rey da Perſia , e da mayor par
te da Aſia ; porque tambem faz delle honrada men
ção o Sagrado Texto , como ſe pode ver no capi
tulo primeiro do primeiro livro de Eſdras , aonde
não ſó o nomea muitas vezes , mas tambem trasla
da o Decreto com que eſte Monarcha deu liberda
de ao Povo de Ifraël, cativo então em Babylonia ,
o qual principiava aflim : Hæc dicit Cyrus Rex Per
farum ; e não faltão contradicções entre a narração
hiſtorica de Herodoto , e Xenophonte , referindo
ambos por diverſo modo as acções heroicas deſte

grande Rey. Náo he menor a diſcrepancia , ou


contradicção dos Hiſtoriadores entre as circunſtan
cias da ſua morte ; porque Herodoto affirma , que
morreo em huma batalha , que deu contra Thomi
ris Rainha dos Scytas: Diodoro Siculo refere , que
foy morto ou crucificado por ordem de Thomi
ris , depois deprizioneiro namelma batalha : Cteſias
conta , que acabou a vida atraveſſado com huma
ſetta , batalhando contra os Dervicios , Povos viſi
nhos da Hircania : Xenophonte diz , que morreo
na Perſia de morte natural ; e não faltão Hiſtoria
dores, que eſcreverão , que Cyro morrera em huma
batalha naval contra os Samios. Ninguem duvida,
que Xenophonte eſcreveo muitas fabulas na vida de
Cyro; vicio , que tambem deſcobrirão os Criticos

na hiſtoria de Herodoto ; e por muitos capitulos ef


tà re
G A L E A TO . 47

tà reputado Ctefias por ſuſpeitolo : e não ſe pode,


nem deve inferir daqui , que Cyro he hum Rey
fabuloſo. Os Hiſtoriadoresde Heſpanha defendem ,
e prováo , que o Apoſtolo Santiago Mayor con
verteo à Fè de Chriſto eſta grande Peninſula do
Mar Oceano : e os Eſcritores Francezes negão ,

que elte Apoftolo vieſſe a Heſpanha : alguns Hef


panhoes eſcrevem , que S. Paulo convertera eſta
Provincia; outros dizem que Santiago , e outros,
como le pode ver no Tbeatro Critico , affirmão ,
que pregàrão em Heſpanha ambos eſtes Apoftolos.
Serà licico agora inferir deſta diſcordia de opi
niões, e contradicçaó de Hiſtoriadores, que nenhum
deſtes Apoítolos veyo a Heſpanha ? Pois a illação
tem a ſeu favor, não ſó a prova da contradicçaó ,
mas tambem os fundamentos de opiniões tão con
trarias, e oppoſtas; porque a opinião , que prova
a vinda de Santiago exclue totalmente a de S. Pau
lo, e a que defende a de S. Paulo , deſtroe abloluta
mente a de Santiago ; e ſe admittirmos , que os fun
damentos de cada huma deſtas opiniões ſao tão ver
dadeiros , como oppoſtos, devemos confeſſar , que
nenhum deſtes Apoftolos veyo a Helpanha; e com
tudo he certo , que hum ſó , ou ambos converterão
os Heſpanhoes à Fè de Chriſto , conſervando -le a
Verdade pura entre tão grandes contradicções.

S. VI .

Ontra a multiplicação do Ouro , que com a


C ſemente aurifera , infinitamente multiplica a
Pedra Philoſophal, argumenta acerrimamente o gran
de Kircker com eſte Dilemma : ou eſta ſemente au

rifera
48 P R O L 0 G 0

rifera multiplicativa do Ouro tem vida , ou náo :


Vel hoc fernen auima vegetativa erit præditi , vel
0:0n ; ſe não tem vida , como he poſlivel, que pri
vada do movimento vical , poſſa ſer tão fecunda ,
que ſe o Mar ſora de Mercurio , o converteſe to
do em Ouro : Atque adeo trimidos fluctus maris im
buat auro , quando as coufas vitaes carecem deſta
tão grande fecundidade ? E ſe tem vida , contra
todos os principios da natural Philofophia , ſerão
OS Hermeticos obrigados a conceder vitalidade em
todos os corpos mineraes e metallicos , que fem
duvida fao inanimados , affirmando contra a ver
dade, que todos em ſi formalmente tem vida .
Bem previo o doutiſſimo Kircker , que os
Chymicos enfurecidos ſe levantarião contra elle , ar
guindo a ſua ignorancia , ou accuſando o ſeu zelo
indiſcreto : Non dubito , quin Alchymiſte hic contra
me aſtro furoris perciti inſurgent, meam five ignoran
tiam , five indiſcretum zelum fint accufaturi. Contra
o indiſcreto zelo , com que eſte grande Padre in
juria aos Hermeticos com palavras afrontofas , não
eſcreverei huma ſó palavra ; porque nem me con
ſidero offendido , nem com palavras , ſenão com
razões melhores , que as ſuas medeſafronto deſtas
injurias. Porèm neſte ſeu Dilemma conſiderarei
nað a ſua ignorancia , ſenaó o ſeu deſcuido. Acha
eſte grande Philoſopho ſer impoſſivel , que tenha
virtude multiplicativa , o que nao tem vitalidade,
eſquecido de que fem vitalidade multiplica huma
pequena porçaõ de fermento huma grande quan
tidade de maria , fazendoa creſcer , ou multiplicar
com grande exceſſo : Modicum frumentum totam
maflam corrumpit. Nem he inconveniente conce
der
GA LESA : T O.
49

der vitalidade aos corpos mineraes , e metallicos ,


quando ſem os apertos deſte Dilemma , affirmað
muitos Philoſophos , que os Metaes , e Mineraes
fað rigorolos vegetaveis , como eſcreve Feyjoo no
Tomo III. do Tbeatro Critico , impugnando a Pe
dra Philofophal, a quem refuta doutillimamente
Enodato no primeiro Dialogo deſta obra : La ma
teria proxima, dizelle , de los minerales no incurre a
nuestros ſentidos de manera , que podamos tener certe
no hai duda ' , que a proporcion
tienen tambienſú materia ſeminal ; y en quanto a los

metales,' muchos Philofophos julgan , que se procrean


de verdadera ſemilla yſon
, rigoroſos vegetables ,por
lo qual no recélan darles el nombre de plantas ſubter .
#aneas. En nueſtras Paradoxas Phyſicas , contenidas
en el fegundo Tomo, hemos tocado eſta materia , y alle
se puede ver ; e para que todos a vejað neſte lugar,
e conheçaó o deſcuido do Padre Kircher , traduzi
rey aqui o mais curioſo , que na decima Paradoxa
refere o meſmo Author ; e concluirey eſte diſcur
{ o com razões , e experiencias do Padre Kircker
e do leu Muſeo Kirckeriano.
Na compoſiçao de todos os vegetaveis ( el
creve Feyjoo) entra alguma porçaõ metallica. Efta
he huma grande novidade na Phyſica. Monfieuc
Gofredo da Academia Real das Sciencias , haven
do examinado as cinzas de muitas plantas , em to
das achou pequeniflimos grãos , que attrahia a Ped
dia Iman , donde inferio , que eraõ de Iman , ou
de Ferro os meſmos grãos. Mas porque reſtava a
duvida , ſe acalo a virtude aceractiva do Iman ſe
eltendia ( aindaque atègora nað le haja conhecido
a outras algumas.particulas ; que entrao na com
g

polis
50 P R O L O GO

poliçaõ dos vegetaveis , fem que ſejao do Iman ,


sein do Ferro , ou de outro algum metal'; Os Sea
nhores Lemerys Pay , e Filho , fizeraó nova averi
guaçao ſobre a meſma materia , que reſolveo cada
a duvida ; porque uſando do Eſpelho Vítorio , der
Teteraõ as particulas , que o Iman tinha attrahido
das cinzas das plantas , as quaes ſe derretèrao na
meſma forma, com que ſe liquidao , ſcintelleando
muito o Iman , e formáraó finalmente huma bola de
conſiſtencia , e dureza metallica . Ainda no mel de
pois da ſtia deftillaçaó , acharão eſtas particulas,
que actrahia o Iman ; donde ſe infere , que atè ao
fucco mais ſubtil das flores , ſe eſtende eſta com
poſição metallica . Sem embargo deſte exame, ains
da ficava por averiguar , ſe eſtas particulas preex
iſtiao na planta , ou reſultàrao da calcinaçao , .co
mo producto do fogo , em que a producção pare
ce mais verofimil ; porque ſe nao acha difficuldade
alguma , em que o fogo tranſmute em Metal al
gumas particulas dos vegetaveis ; encontrando - ſe
grande duvida , em que o ferro ſendo tão pezado,
poſſa ſubir à mayor altura das arvores .
Monſieur Lemery Filho desfez eſta duvida,
com ſubcis , e curioſas experiencias , as quaes não
fó o certificàraõ da volatilidade do Ferro , mas
tambem o inclinaraó a crer , que eſſe Metal contri
bue muito em todas as plantas para a vegetaçao. A
mais famoſa experiencia , que fez , foy por eſte
modo. Havendo lançado eſpirito de nitro acido ſo
bre limadura de Ferro , ſe ſeguio hum violento fera
vor , ou evoluçao , que em fim focegou , fican
do, hum licor vermelho com a diſſolução do Me

càl : miſturando depois na compoſiçao oleo de.


tar
G A L E A T O. 51

tartaro por deliquio , fe excitou mcdiana fermenta .


çaó , em que ſefoy inflammando cada vez mais o lie
cor , atè formarpelos lados do valo varios , e ſub
tiſſimos ramos, os quaes depois de excincta coda a
fenſivel fermentaçao , foraố creſcendo acè toda a
altura do vaſo.Ainda que a primeira vez , que fe
e
fez eſta experiencia , confeguio ſó os rudes linea
mentos de huma arvore, variando depois por mui
tos modos adoſisdo oleo de cartaro , foy conſeguin

do com mayor perfeiçao eſta vegetaçað metallica ,


atè lograr finalmente huma arvore perfeiramente
delineada, ou formada com raizes , tronco , ramos ,
folhas, flores, efructos. Eſte grande , e excellen.
tiffimo Chymicocolheo deſta admiravel experiencia ,
que aſſim a volatilidade, comoa vegetaçao , ſe de
viaó à limadura do Ferro ; porque fem ella, o mais
que ſe produziria , ſeriaõ alguns criſtaes no fundo
do vaſo, pela diffolução do eſpirito de nitro.
Mas nem por iſſo fe iinagine , que a vegeta
ção metallica le faz fómente com o Ferro ; porque
o celeberrimcu Abbade de Vallemont no Primeiro
Tomo das o rioſidad es daNaturez , e da Arte fo
a
bre a agritultura , diz , que em Pariz fe fizera ſe
ó
melhante vegeta
s ções artifici c o m M e t a es di fte .
aes

fentes, Ouro, Praca , Ferro , e Cobre. Porém a


mais commum de todas , he a que ſe faz com Pra
a quem os Chymicos chamão Arvore de Diana .
A fua formação he por eſte modo. Diffolve- ſe hu .
de Praça, com duas , ou cres onças de el
pirico de nitro acido. Evapora ſe eſta diſſolução a
fogo de areya , atè confumir-ſe quali ametade. O
que reſta, fé miſtura em valo proporcionado , com
yinte onças de
agoa commum , e muito clara , e
gij duas
P R O LOGO
осо

duas onças de azougue. Deixando depois eltamiſa


tura em quietação por eſpaço de quarenta dias ,
neſte tempo ſe vay formando huma arvore de Pras
ta , com baſtante analogia às naturaes em quanto a
figura . Monſieur Homberg Chymico celeberrimo da
Academia Real das Sciencias , uſando dos meſmos
materiaes , achou modo de formar eſta arvore me
tallica em menos de hum quarto de hora . Rhodes
Canaſſes, ChymicoGrego , tem achado o ſegredo de
huma vegetacao artificial, da qual ſe tem feito expe
riencia em Pariz , e conſiſte na preparação de certa
agoa forte , a que o dito Rhodes chama Agoa de Ca
thao, na qual os Mecaes , como Ouro , Prata, Fera
ro , Cobre , ſe vem brotar, fubir , e ramificar em
poucos inſtantes atè a ſuperficie do dito licor.
* Eſtas vegetações metallicas , juntas com a expe
riencia de ſe acharem porções de ferro nas cinzas
de todas plantas , naó ſó prova) , que osmetaes pòa
dem em virtude de certas fermentações fazer - ſe vo
lateis , quanto baſta para ſubir pelos cubos, por on
de ſobe o fucco alivel àsplantas, mas tambem fazem
provavel , que a miſtura do metal devem as arvo
res , e todos os vegetaveis a ſua vegetação. Até CE
aqui o Theatro Critico. Confirma-ſe eſta doutrina
com duas experiencias de Kircker. Em huma , que
traz neſte meſmo lugar , confeſa , que nas cinzas de
muitas hervas ( principalmente no Reyno de Hun
lhes
gria ) fe'acha Ouro , quando as queimão para
tirar o Sal ; porque da terra ſe communicàraó , e
introduzirão nas ſuas raizes os eſpiritos auriferos ,
é dahi ſe diffundiraó por toda a planta : Dum hera
bas nonnullas in cineres ad falem extrahendum redi:
gunt , aurum reperiunt ; & audivi id fæpius in Huna
garia
G A L Ε Λ Τ Ο. 53

garia juxta aurifodinas accidere ; rationem hujus hanc


damus , quod fpiritus auriferi in radices , ac reliquam
herbarum ſubſtantiam delati , &c . E em outra nao
pode negar , que no ſeu Muſeo Kircheriano le via
no tempo ,em que vivia eſte grande homem , huma
arvore de Prata, naſcida , e formada , como eſcre
ve Bluteau , da contufaó , e fermentação de ſubti- Bluteau Supl.
liflimas particulas do dito Metal , encerradas em aoVocabular .
Tom . 1. Ver
hum vaſo de vidro , que ſe abrirao em folhas , e
bo Arvore me
eſtenderaõ em ramos , que pareciaõ originados de
tal, fol.77 .
huma natural vegetação . E'deftas razões , expe
riencias Kirckerianas, e nova doutrina dos Chymi
cos Francezes , infiro contra Kircker , que ſe os Me
faes fazem vegetaveis as plantas , que os Metaes ſao
vegetativos ; porque ſe o nað forao , nao lhe po
deriaó communicar a vitalidade , ſe a não tiverão;
porque ninguem dà , nem pòde dar o que não tem .
Aʼlem do que Thomaz Campanela , Religiofo Do
minico , e celeberrimo Philoſopho , em varias para
tes das fuas doutiſlimas obras , prova com varios
argumentos , que todas as couſas elementaes ſao len
fitivas ; e ſendo os Mecaes mixtos elementaes , ne
ceſſariamente hão de ſentir , e forçofamente háo de
viver ; porque conforme a Philoſophia Peripateti.
ca , que fegue Kircker , o vegetavel inclue - ſe no
Senfitivo.

S. VII.

H não permitra Deos , que os incautos Leia


O tores do grande Kircker imaginem , que por
eu defender a Chryſopeia , que elle impugna , fou
tão mào homem , como elle diz, que laõ todos os
que
P R O LOGO

que ſe applicáo ao eſtudo , e exercicio da Chryſopeia!!


Affirma, que a mayor parte dos Chymicos tem De
monios familiares , como por liçaõ de Gefnero , ela
creve contra Paracelſo : Dæmone utebatur familiart,
uti ex ejus diſcipulo audivi ; ou queo Demonio trata
com muita familiaridade aos Chymicos : Quod Da .
mon , ut plurimum ſe Alchymiæ cultoribus immifceat.
Taes diz elle , que forao Sendivogio , Roberto de
Fluctibus, o Marquez de Vilhena, e innumeraveis
outros , de que ſe lembra com pejo ; porque todos
foraó Magicos , e Alchymiſtas : Talis Sendrvogius,
talis Robertus de Fluctibus, talis Marchio de Villena,
do innumeri alij, quorum piget meminiſſe , omnes Mas
gi , d Alchymiſta. Semelhantes a eſtes, e ao mef

mo Paracello, dizelle, que fað os famoſos Philofophos


Inviſiveis , chamados cambem da Roſa Cruz , que
he huma Irmandade de Philofophos , que com eſte
riculo ſe erigio hà poucos annos em Alemanha :
Huic fimiles funt illi fratres , qui à Rofea Cruce nomen
babent, impium genus hominum , & diabolico commer
cio tumidum . Eite he cambem hum argumento do
Reverendiffimo Padre Kircker contra os Hermetis
Contac
cos , com o qual pretende atemorizar aos homens
pios , e cimoratos , para que não eſtudem , nem ex
ercitem huma Arte tað ucil, a quem deve as cores
am
a Pintura , as arcelharias a Milicia , e os remedios
a Medicina.

Admiro -me muito , de que confeſſe o meſmo


Reverendiſſimo Padre Kircker, no lugar aonde iſ .
to eſcreveo , que cinha eſtudado a Chymica : Ega
fane tunc temporis Chymiæ jtudio intentus; e que por
Jerem os ſeus eſtudos, e experiencias taó publica
mente notorias , chegara ) à noticia de hum peritiſa
ſimo
G A L È A TO . : 55

fimo Chymico, que o veyo conſultar ſobre os Myf


terios da Arte Magna : Ego hoc loco tantum narra
bo, quid ore tenus mihi à viro Chymica artis peritif
limo, cujus nomen conſulto reticeo , fimili illuſione à
Lamone decepto, relatum fuit . Audierat is de meis
circa hoc ftudium experimentis ; unde me convenit , ro
gans, gund de magna artis myfteriis fentirem ; e de
clara no fim do queeſcreveo contra a Chryſopeia ,
que conheceo , o que pode , e nao pode a Nature
za , à qual nao pode nunca vencer a Arte : Noor
quid Natura poßit, quid non poſſit. Novi Naturam
ab Arte ſuperarinunquam poffe. E para que naõ dif
ſellem os futuros Chymicaftros , que elle eſcrevia
da Chimica , ou contra ella , ſem eſtudo , nem ex
periencia , remettendo o Leitor ao exame das duas
doutillimas obras , fe jacta de preſidir no Ergaſte
rio , ou officina do Collegio Romano , a varios
Chymicos Alemaens , Polacos , Francezes , e Itab
lianos, a quem pagava muito bem o trabalho da
manipulação , mandando a eſtes homens , como o
Medico aos Cirurgiões , e Boticarios , e como o
Architecto aos Canteiros, e na companhia deſtes
Chymicos , ou per fi meſmo femelles , fez todas as
experiencias : Nihil in hoc opere experimentorum adfer
*!, quod partim per memet , partim per dietos laban
Tum peritos Cbymicos in mea preſentia , non come
probatam fit ; e conclue finalmente fazendo hum
grande panegyrico à Chymica , elogiando a ſua di
gnidade , e excellencia , como porta unica da Phi
lofophia natural, e da Medicina mais ſecreta, por
onde le entra para deſcobrir os mais incimos Myfa
terios da Natureza: Ne proinde me , ' aut Chymie
contrarium effe exiftiment ; navi enim ejus fummam

dignis
56 PRO LOGO

dignitatem , & excellentiam , eamque romper veliti


unicam Philoſophia naturalis , ac Medicinæ fecretioris
portam , qua ad intima quævis Naturæ myfteria adi
tus nobis concedatur fatis deprædicare non defino. Só nos
eſcritos de Kircker leyo os louvores da Chymi 3
-ca , encontrados com os vicuperios da Arte Magna ;
-mas pareceme, que a contradicção com que louva
ſerve de facisfaçað ao aggravo com que offende ;
porque como a injuria precedeo ao elogio , pode
o panegyrico fer arrependimento da cenfura , e la
cisfação de cáo grande afronta ; porém como os ar
rependimentos naõ baſtao para ſatisfazer publicos
aggravos , que tanto infamão o credito , quero
moſtrar ao Mundo a ſem razão , com que Kircker
injuſtamente infamou aos Profeſſores da Chymica ,
e defenſores da Chryſopers.
Primeiramente quando a Chryſopeia não fora ef
feito de huma Arce , que por ſer mais Divina , que
humana , codos os que a profanâo , facrilegamente
a offendem , ſegundo com palavras de Guilherme
Aragolio eſcreve Beyerlinck , chamando a eſte Au
thor novo Placáo , Philoſopho , e Medico mais ex
Beyerlinck, cellente que todos : Ut qui hanc præterquam iis,
Tomo 2 . quorum evulgatio plus commodi quam incominodi mor.
Theatr. Vitse talibus, affert, prophanare inftituunt , facrilegi 119
Human .Ver- sine jure poftr-lari queant... Manus autem operatio ,
bo Chymia que a moint fupra nutriam ſumitur , divina potins
fol.203.
quam hinnana , artis mechanice umbram folummodo
oftendit' : confella o meſmo Kircker nas primeiras
palavras da ſua diſſertaçao , que não achara na Phys
Jologia , que he o meſmo , que fciencia , eſtudo ,
ou diſpuca das couſas naturaes , argumento mais
controvertido do que o curiofiffimothema da Chry
fopeia :
G A L E A TO .
57
fopeia : Vix nullam in Phyſiologia argumentum tot ,
tantufque , tamque acribus Authorum velitationibus
exagitatum , tanta opinionum varietate diſcerptum ,
( quibus imtricato opinionum fune , se je nunc in hanc'
,
nunc in illam partem trahere , lite in hanc rufque drem
pendente , contendunt , ) quam hoc de Chryſopala
thema fexe "curiofifſimum reperi ; e como o eſtudo ,
ou eſpeculação , e a praxe da Chryſopeia convida
aos entendidos com a curioſidade , aos ambicioſos
com a riqueza , aos enfermos com a ſaude , e aos
fãos com a duração da vida ; porque a Phyſiolo
fla , como declara Bluteall ſe deriva do Grego Bluteau Vo
Phyſis, Natureza , e Logos , diſcurſo , e geralmen- cab.Port.To
te le toma pela Phyfica ; mas propriamente fallan- mo 6.fol.489.
do, Phyfiologia he a parte da Medicina , que ob
ferva , é conſideraa Natureza do homem , a for

mação, conformação , e perfeição do feto , a dif


ferença dos temperamentos , e das idades , os efpi
sitos, as faculdades , os humores, e outros funda
mentos da Arte Medica , e rudo ifto em ordem ao
conhecimento , e remedio de todo o genero de doen
ças , para os enfermos alcançarem faude, e dilata
rem os homens a vida : vendo todos , que Adão ,
primeiro pay do genero humano , foy o primeiro
Meſtre da Arte Magna, como diſcorre Daniel Sen
Berto : Ut Chymiam plane antiquam effe demonſtrent, Sennert. To :
inventionem ejus ad Adamum primum generis huma- mo 1. de conf.

mi parentem referunt , eumque ejus primum magiftrum & dift. Chy


fuisſe : vendo ,que Tubaſcaim fóra, ſenão inventor, mic.cum Ga
Profeſſor deſta Arte , ſegundo com mayor probabili len.cap. 3.fol.
dade affirma o meſmo Author: Probabilius Alchymiæ 184
inventio , & rudimenta ad Tabalcaimum referentur :ven
do, que o grande Anteſignano dos Thcologos, con
h forme

1
O
58 P R O LOG 11

fórme lhe chamão Alapide , e Vieira, o famoſo Her


mes Triſmegiſto , Rey , Sacerdote , e Philoſopho
Maximo , eſcreveo a Chymica nos meſmos livros
da Theologia , miſturando os ſegredos Chymicos
com os myſterios Theologicos , como no Theatro
Beyerlinck. da Vidahumana refere Beyerlinck : Hermes Triſme
Tomo 2 .
guſtus , Rex , Sacerdos , & Philofophus maximus,
Theatr. Vitæ libris , qui extant Theologicis paſim Chemica myſteria
Human. Ver- afpergere videtur : vendo , que Moyſes, como Sabio,
bo Chymia e excellentiffimamente erudito em todas as fcien
fol. 204:
cias do Egypto , não ignorava a Chymica , ſogundo
eſcreve o meſmo Beyerlink no referido lugar: Præa
fertim cum Moyſes in omni Ægyptiorum fapientia ,
quod ex facris conſtat , excellentiſſimus , ne Chemic
quidem ignarus ené potuerit : vendo , que era quel
cáo problematica , ſe o muito Ouro , e Prata , que
poſſuhio ElRey Salamaó , foy herança de ſeu pay
David , lucro do commercio de Ophir, ou effeito da
Pedra Philofophal ; porque , conforme alguns hoc
mens doucos, de quem Beyerlinck faz mençao , das
transformações da Arte Magna parece que eſcreveo
Salamaó , couſa , que Enodato não quiz ponderar
nos Dialogos, nem affirmar neſte Prologo , ainda
que por eſtas palavras ſe ache eſcrito eſte proble
ma no Theatro da Vida huinana : Salomonem Reo .

Beyerlinck gem Judæorum . . Aure, argentique tantam fub eo com


Tomo 2 . piam Hieroſolymis extitiffe , quantam lapidum aiunt.
Theatr. Vitæ An hoc thefauris paternis , an navigationi trienaliper:
Human .Vcr- mare Rubrum in Ophir . . an ipſi Lapidi Philofophi
bo Chymia co acceptum ferendum ? In Meretricis certe difcriptio
fol. 204 .
ne , Ecclefiaften capita præcipua Chymia metamorpho
feos perſecutum effe harum rerum periti antamant :
vendo , como diz o melmo Beyerlinck , que poc
ſe
GALE AT O. 39

le julgar Catholica : Catholica quædam cenferi pote- Beyerlinck.


Tit , eſtudarão , e praticarão a Arte Magna o Sum- Tomo 2 .
mo Pontifice Joao XXII. o Eminentiflimo Car. Theatr. Vitæ
Human . Ver
deal Gilberto , que de hum ovo fazia pela Chymi
bo Chymia
ca hum Baſilico , Santo Alberto Magno , Biſpo de fol. 203.
Ratisbona , que fez com eſta Arte huma cabeça de
Metal, e Ferro , que fallava , e reſpondia ao que
lhe perguntaváo , Raymundo Lullio , que tranf
formou os finos das Torres de Londres em finiffimo
Ouro , Bafilio Valentino , Joao de Rupeſcifta ,
Joao Trithemio , Rogerio Bacon , o meſmo Athać
nalo Kircker , Morieno , Savanorola , e outros
muitos Religioſos de exemplar virtude , e grandes
letras, aſlim Divinas , como humanas : com o ſeu
exemplo fe animàrão a eſtudar , e praticar eſta Are
te outroshomens , ſem o perigo deferem Magicos ,
ainda que foſſem , como alguns Santos , tentados ,
e perſeguidos pelo Demonio. E daqui fe pòde for
mat, ou voltar contra Kircker , e a favor da Chry
ſopeia eſte argumento : fe por haver na Arte Magna
Profeſſores máos , como diz que forão o Marquez
de Vilhena, Cornelio Agrippa , Roberto de Flu
ctibus, Sendivogio , Paracello , e outros , hà de ſer
mà : havendo na mefma Arte profeſſores bons, co
mo forão Joao de Rupeſciffa , Religiofo Franciſca
no ,João Trithemio , Monge Benedictino , Roge
rio Bacon , Religiofo de S. Franciſco , Baſilio Va
lentino, Monge de S. Bento , Athanaſio Kircker,
Religioſo da Companhia de JESUS, Alberto Ma
gno ,Religiofo Dominico , Biſpo , e Santo , Ray
mundo Lullio , Frade Franciſcano , e Martyr, Mo
rieno,Savanorola ,e o Eminentiſſimo Cardeal Gilber
to , aos quaes, ajuntáo alguns ao Papa Joað XXII .
hij como
60 PROLOGO

como ſe pode ver no meſmo Kircker , e àlem dos


referidos, IIRey Salamáo , Moylés , Hermes, Tu..
balcaim , e Adaó , tambem por reſpeito de tað bons
Profeſſores ha de ter boa ; porque não hà mayor
razao para não tomar a Arte Magna o bem dos bons,
tomando a malicia dos mãos . Dos màos ſe recebem
os males , como dos bons os bens. Aſlim o cantou
David fallando com Deos , no dia , em que ſe vio
Reg.2.22.26. livre de ſeus inimigos : Cum San &to San £tus eris :
27 . e cum robuſto perfectus. Cum electo electus eris : da
Cum perverſo perverteris. Os homens pervertem - ſe
com os perverſos , e fanctificáo - ſe com os Santos.
Santo foy Joſuè ; mas na companhia de Moyſes ,
tambem Santo : Santo foy Samuel ; mas na compa
nhia de Heli , tambem Sanco : Santo foy David ;
mas na companhia de Nathan , tambem Santo: San.
to foy Elizco ; mas na companhia de Elias , tam :
bem Santo : Santo foy Ezechias ; mas na compa
nhia de Iſaias , tambem Santo : Santo foy Corne
lio ; mas na companhia de Pedro , tambem Santo :

Santo foy Dionylio ; mas na companhia de Paalo,


tambem Santo : Santo foy Agoſtinho ; mas na com
panhia de Ambroſio , tambem Santo : Santo foy Xa
vier ; mis na companhia de Ignacio , tambem San
to , fancificado com o exemplo de todos osSantos.
Na Arte Magna deve Kircker admittir eſta doutri
na , e conceder eſta conſequencia ; porque ſendo
eſta Arte mà , e perverſa , por haver nella , como
elle diſcorre , Profeſſores perverſos , e mãos ; tam :
bem ha de ſer ſanta , e virtuola , porque muitos
Chryſopeios forão virtuolos , e Santos.
Porèm como a Arte he indifferente para o bem , aby
e para o mal , applico aos Chryſopeios, o que Santo
Agoitis
GA'L E A TO. 61

Agoſtinho diſſe dos Mercadores : Mercatorum vi- Div. Aug. in


tia non Artis , ſed hominum ſunt. Os vicios parti- Pſal. 70,
culares dos homens não faố culpaveis nas Artes ,
que elles profeſſað ; e fe porque houve alguns Her
meticos magicos , fe ſeguiſſe ſerem Magicos todos
os Hermeticos, tambem ſe devia ſeguir , que todos
os homens neſte Mundo eráo máos, porque hou
ve no Mundo máos homens. Se eſta confequencia ſe
não ſegue , nem conclue , Cambem a do Padre Kir
cker le não infere , nem colhe . Do Ceo cahirão
alguns Anjos feitos Demonios : do Apoſtolado ſa
hio Judas feito Diabo : das Religiões fugiráo mui
tos Apoſtatas : nos Thronos dominaó muitos T ya!
fannos : nos Tribunaes ſentenceão injuſtamente al
guns Miniſtros : nas campanhas pelejão covardemen
te algunsSoldados ; e nas Academias reprováo os
Meſtres alguns idiotas;masnem por iſlo ſe deve infe
rir
şque faõ idiotas todos os Academicos : covardes
todos os Soldados : injuſtos todos os Miniſtros :
tyrannos todos os Dominantes : apoſtatas todos
es Religioſos : Diabos todos os Apoftolos; e . De
monios todos os Anjos. Atè o tempo da ſega per
mittio o Pay de Familias , que ſe creaſſe a zizania
na companhia do trigo : Sinite utraque creſcere 22 - Matth.13.30.
que ad mellem ; e não foy culpa para o trigo'o
vicio da zizania , porque no tempo da colheira
foy a zizania condemnada ao fogo , e o trigo foy
recebido no celleiro : Colligite primum zizania , & Matth.13.30.
alligate ea in faſciculos ad comburendum , triticum au
tem congregate m horreum meum . Sempre os máos
andárão de companhia com os bons ; e não ſe def
acreditáraó as virtudes dos bons com os peccados
dos máos. No Ceo eſteve Lucifer com Miguel; e
na
be
62 PRO LOGO

na terra vivéráo . Caim com Abel : Iſmael com


Iſaac : Eſau com Jacob : Saul com David : Na
buco com Daniel : Aſſuero com Eſther : Amans

com Mardocheo : Hollofernes com Judith , e Ju


das com Pedro ; mas não deſacreditou a Pedro
a traição de Judas : não infamou a Judith a laſcia
via de Hollofernes : não arruinou a Mardocheo .a
inveja de Aman : não perdeo a Eſther a infideli
dade de Aſſuero : não caſtigou a Daniel o pecca
do de Nabuco : não matou a David a ingratidão
de Saul : não empobreceo a Jacob a ira de Elau :
não manchou a Ifaac a perverſidade de Iſmael :
não deſacreditou a Abel a culpa de Caim ; nem
precipitou a Miguel a ſoberba de Lucifer. Injufa
to he logo culpar os bons Chryſopeios nos vicios dos
maos Hermeticos ; e muito mais culpavel he condem
nar a Arte Magna nos delictos de alguns Artifices,
ſe alguns por acaſo forão Magicos. Se os delictos
dos máos Artifices foraõ culpaveis crimes das ſuas
Artes , todas ferião exterminadas da Republica
por ſuas enormes culpas ; porque em nenhumaAr .
te houve atègora Profeſfores , que no leu exercicio ,
e fóra delle n
, ão commetteſſem alguns erros , como
máos Artifices,ou alguns delictos,como homens. Por
iſſo ſem razão imputa Kircker o peccado de alguns
Artifices à innocencia das Artes ; porque ſe não de.
ve imputar às Artes innocentes o peccado dos Artie
fices culpados , como em defeza da Chryſopeia el
creveo o famoſo Juriſconſulto Thomaz Arfoncino:
Artificum vitia nequaquam Arti imputanda eſſe.
Huma couſa he o Artifice , e outra a Arte; necella
rio he logo diſtinguir o uſo do abuſo , com que
os máos Artifices a exercição. Não tem culpa a Me
dici,
G A L E A TO. 63

dicina dos erros do Medico : a Nautica dos deſcui


dos do Piloto : a Milicia da temeridade do Soldado:

a Mathematica do prognoftico do Aftrologo : e a


Rhetorica da ignorancia do Orador. Approva o Di
reito commum aArte monetaria , e condemna ao fo
go os que fazem moeda falſa : louvao os Juriſcon
ſultos aos Medicos , e nao faltaó neſta Arte embuſ
teiros, que merecem condemnados.como falfarios :
condemnað as Leys a ſciencia Mathematica , que
hoje eſtà bem recebida , ainda que por ignorancia
dos Aſtrologos anda mal avaliada. Se por culpa
dos máos Artifices , e Profeflores foſſem culpa
das, e condemnadas as ſuas Sciencias , e Artes , que
ſeria da Juriſprudencia , com as trapaças dos Re
querentes, com os enganos dos Advogados, e com
as injuſtiças dos Miniſtros ? Que deſcreditos nao pa
deceria a Theologia com a prevaricaçao de tantos
Herefiarchas ? Que afrontas nao experimentaria a
Philofophia com a ignorancia de tantos Scepticos?
Que injurias nao ouviria a virtude com os fingia
mencos de cancos Hipocritas ? He logo neceffa
rio ſeparar as nuvens do Ceo , as fezes do Ouro ,
o fumo da luz , o lodo da perola, a palha do trie
go , a noite do dia , o eſpinho da rola , ő mal do
bem , e a mentira da verdade.
Nao conſta , que o grande Medico Philippe

Theophraſto Paracelſo foſſe Magico , ainda que o


diga Cortingio , que nao faz prova, por ſer reſte
munha ſingular ; e poſto que Geſnero o affirme , ou
lhe levante eſte falſo teſtemunho ; porque Geſne
so funda eſta aſſeveraçao no dico de hum feu dif
cipulo , que naó nomea : Uti ex ejus diſcipulo audi
pl, o qual pur ſér teſtemuntia ſingular, e de audito
alheyo ,
64 P R O L ( GO

alheyo , nað faz prova ; e muito menos referindo .


ſe a peſſoa incerta ; porque fica lendo entao de ou
vida vaga. Nem ao referente ſe dà credito , ſem
que conſte do referido , com codas as ſuas quali,
dades ; em que o referente ſe transfunde ; princin
palmente em cauſas arduas , e em materias de hon .
ra , em que fe requerem provas , como nos delictos ,
não ſó legaes , mas tão claras como a luz do Sol ,
conſórme com muitos Doutores reſolvem Maſcar
do de Probationibus, e Farinacio de Teftibus ; e Cor
ringio com muito menor fundamento lhe chama Ma
gico '; porque nem com femelhante teſtemunha o
prova ; e por ſer inimigo da Chymica , fica o ſeu
teſtemunho muito ſuſpeito ; porque ſe preſume ,
que para delacreditar eſta Arte , infamou ao ſeu
mais perito Artifice . Todo eſte rumor deſmente o
Epitaphio , que o Sereniſlimo Principe , e Illuf
triffimo Arcebiſpo deSalisburgo mandou gravar na
depultura de Paracelſo , para credito da ſua grane
de virtude , e charidade para com os pobres , que
deixou por herdeiros de todos os ſeus theſouros :
Ac bona fua in pauperes diſtribuenda , collocandaque
honor,avit ; e ſe o Reverendo Kircker der mais cre
dito a hum homem deſconhecido , do que a hum
Prelado , Principe do Imperio , não ſe admire , le .
virmos , como diz Zwelfer , aos ſeus eſcritos com
deſprezo : Quibus ſi Pater Kircherus fidem negarit ;
interveniente tanti Præſulis authoritate , neque ipſe deo ;
miretur Author , ſi ejus partus minus æquo judicemus
oculo. Nem Oporino táo ingrato criado , e diſcipu
lo de Paracelſo , como Cuculo do Divino Platão , na
carta ſatyrica , e libello infamatorio , que contra el
le eſcreveo a Joao Viero , diz acerca da fuo Magica
huma
G A L E A TO. 65

huma ſó palavra . E o teſtemunho de Paracelſo , refe


rido , e ponderado pelo Reverendo Padre Kircker ,
a reſpeito da campana , ou ſino pequeno do Mar
quezHenrique de Vilhena,cuja eſtampa lhe mandou
a Roma o Padre Thomaz de Leao , para que o Re
verendo Padre Kircker declaraſle o myfterio , e ex
puzeſſe a ſignificaçao de tantos caracteres , a qual ſe
pode ver no ſeu Edipo ; mais juſtifica a ſua innocen
cia , do que prova a lua Magica ; porque nelle confef
fa Paracello , que fallando em Heſpanha com aquel
le famoſo Nigromantico , nao pudera conſeguir del
le a communicaçao , ou revelaçao do que myſterio
famente ſignificavaó, e occultavaó aquellas palavras,
e caracteres, alcançando com a ſua eſpeculaçao , o que
pór modeſtia deixava ſepultado no ſilencio : Non au
tem eo perveni , ut homo arcanum , & myſterium verbo
Tum , at que characterum mihi communicaret : cæpitan
dem ipfe hac de re penitus ſpecuları, ita ut in mentem mi
hi venirent, quæ hoc loco tacebimus. E ſe Paracelſo fc
Fa Magico , nem o Marquez , como a companheiro
da!Nigromancia , lhe occultara o ſegredo , nem elle
alcançara o myſterio com a ſua natural, eagudaeſpe
culação , como tambem o alcançou Kircker com a
fubtileza do ſeu engenho, e preſpicacia do ſeu juizo ,
e o que hoje he credito do engenho, e entendimen
to de Kircker , não pode , nem deve ſer diſcredito
da peſſoa , e infamia da conſciencia de Paracelſo .
Finalmente conclue Kircker , em que ſe não de
ve crer , o que os Herineticos affirmao da Arte Au .
rifera : Ut proinde nulla Aiti Aurifera fides haben ,
da fit; e daqui le ſegue , que ſe Paracelſo nað fou
be fazer a Pedra Philofophal, que nao tinha conſigo
Demonio Familiar , porque trazendo-o na ſua com
i panhiaj
66 . PRO LOGO

panhia , elle lhe enſinaria a preparar a Chryſopeia ,


porque o meſmo Kirckor , depois de Santo Thomaz,
affirma , que os Anjos, e os Demonios, não pormi.
lagre , mas pela ſua grande ſabedoria , fabem o le
gredo da Arte Aurifera : Certe præter Angelum , aut
Demonem , ut pote qu: a pollet potentia humana ſupe
rori, nemincin alium hoc præftare poffè, quis non vin
det ? Et tamen cum talia , ac tanta operantur , non ea
miraculofa , ſed ex occulta nobis naturæ potentia do
efficacia praſtant , inter qılæ artem quoque auriferam ,
quam juxta natura exeinplar perfeéte ncrunt , adnu
merandam cenfeo. E não fica tendo incrivel , que
tendo o Demonio tanta familiaridade com Paracel
fo , lhe deſcobriſſe eſte ſegredo , que revelou a outro
com
Chymico , a quem Kircker occulta o nome , fem
elle ter nenhuma familiaridade , e de facto com eſte
methodo fez na primeira operação trezentos arrateis
de excellentiſſimo , e finiſſimo Ouro : Sede itaque,
& fcribe veram procedendi methodum . Ego ftatim ar
repto calamo dictantis verba , in duodecim puncta di
AE
viſa , excepi , excepta methodo ait, jam ea in praxım
te operante , eo prorſus ordine, & juxta præceptorum f
la
preſcriptionem , redigamus. Quo peracto , jubente Ma
giſtro exemi ex vafe Chymico materiam inftar olei re
lucentem , & fuperaffuſó liquore mox congelatam mal
fam reperi, quæ in pulverem redacta , & fæpra 300 .
libras hydrargyri projecta , illud in obryſum , & no
biliſſimum aurum ,multo naturali excellentius , nobiliuf

que convertit , quod


apud Aurifices optimi ,& perfe
Etifimi auri examen fubiret .A’ viſta pois deſtas autho
ridades do Reverendiſſimo Kircker , infiro , que ſe

os Anjos , e os Demonios, nao por milagre m


, as
por ſciencia natural podem fader Ouro : Tanta
operan
G A L E A TO . 67

operantur , non ea miraculofa , ſed ex occulta nobis Na


turæ potentia , & efficacia præſtant , inter quæ artem
quoque auriferam , que tambem Paracelſo , e outros
Sapientiflimos Hermeticos o podiao , e podem fazer;
porque podia ) naturalmente alcançar o conheci.
mento deſta ſciencia , que foy revelada aos Anjos ,
como contra Feyjoo , com authoridade de Santo
Agoſtinho , e de Santo Thomaz diſcorre douta , e
ſubtilmente Enodato no primeiro Dialogo deſta En
næa: infiro cambem , que o Meſtre , que enſinou ao
referido , e incognito Chymico, não era Demonio ,
ſe nao homem , e peritiſſimo Hermetico, Todo o fun
damento, que toma Kircker para affirmar, que els
t Chymico não era homen , ſenão Demonio , he que
perguntandolhe o Hermetico donde era natural , e
aonde tinha conſeguido eſte ſegredo , reſpondera ,
que elle andava peregrinando pelo Mundo, ſem ne
ceſſidade de couſa alguma , animando aos Adeptos
deſeſperados. no exercicio da Arte Magna com al
guma liberalidade , que como fructo colbia da ſua
Arte , para que ſe animaſſem com o ſeu exemplo a
proſeguir naquelle eſtudo. E dizendo iſto , e recu
fando a hoſpedagem da caſa, que o Chymico lhe of
ferecia , ſe recolheo a hum Hoſpicio publico , aonde
Hermetico o nao achou no outro dia , levantando
le de madrugada a vilicallo. E por mayores diligen
cias , que fez , naõ achou naquella Cidade noticia al
guma de tal homem , nem otornou mais a ver. Iſto
porèm heo que os Adeptos fazem , enaó o que obrað
os Demonios ; porque os Demonios, como perten
dem enganar aos homens , tentaó - nos muitas vezes,
è nao coſtumaõ deſiſtir facilmente da tentaçıó , ſe
Deos naó ordena o contrario , e ordinariamente pro
met
i ij
68 PRO LOGO

mertem tudo : Omnia tibi dabo ; mas não dão nada.

E os Hermeticos, que peregrinão pelo Mundo , co


mo Democrito , e Paracelfo , depois de verem huma
Cidade , e averiguarem , quenella hà curioſos, que
pertendem conſeguir a Chryſopera, quando eſtãoja de
caminho para ſe auſentar, buſcaõeſtes Chymicos, para
os admirar , e confundir com ſemelhantes operações,
como aconteceoa Helmonte ; e para não ſerem co
nhecidos , perſeguidos , nem obrigados a revelar
por força o ſegredo da Aurifactoria , recuſaó a ur
bana hofpitalidade, e quando fingem , que vaõ reco
therſe na eſtalagem publica , fahem para fora da Ci
dade , continuando a ſua peregrinação pelo Mundo.
Finalmente para deſmentir o teſtemunho falſo ,
que Geſnero divulgou contra Paracelſo, traduzirey
neſte lugar , como Cicero as orações de Demoſthe
nes , o que contra o erro commum dos Efpiricos Fa
miliares eſcreveo o grande Theologo Feyjoo no ter
ceiro Tomo do Iheatro Critico. Ainda que o nome
de Eſpiritos Familiares, convem com propriedade
aos Duendes , de quem acabamos de tratar , em Hefa
panha ſó ſe ufa deſta voz ( ainda que tambem com
propriedade para ſignificar aquelles Demonios, que
fe diz eſtar ligados por alguma peſſoa determinada ,
a qual ſe ferve delles a feu arbitrio . Deftes nao hà
tantas hiſtorias , como de Duendes ; porque não he
tão facil, que os contrafaça o engano , ou imagine
o erro. A iſto fe accreſcenta , que como ſemelhan
te aſiſtencia de Eſpiritos infernaes não pode fuc
ceder fem pacto expreſſo da peſſoa , a quem aſliſtem ,
qualquer noticia fàlfa , que ſe forje neſta materia ,
feria logo deſcuberta , devendo a Juſtiça entender no
exame , para averiguar , e caſtigar o delicto. Por tan
to ,
G A L E À TO . 69

to , eſta he huma daquellas couſas , que pelo com


mium ſó ſe contaõ de terras diſtantes , ou de tempos
remotos. O vulgo de Heſpanha crè , que he muito
frequente o uſo deſtes Eſpiricos Familiares em ou
tras Nações , em tal forma, que dizem , que os
vendem huns homens a outros ; e alguns accreſcen
táo , que eſta venda ſe faz publicamente ſein nenhum
rebuço , como a de qualquer genero ordinario . No
que ſe vè muito bem , que não há mencira , por monſ
truoſa, que ſeja , que o povo não admitta ſem repu
gnancia.
Omais admiravel he , que homens, que eſtão
fóra da vulgaridade , tambein tenháo dado credito
a eſta ficção. Creſpero, citado pelo Padre Del - Rio,
refere, que os Eſpiritos Familiares ſe acháo venaes
em França , e em Italia ( expreſſað , que ſignifica,
que quem os buſca , os acha , e por conſeguinte , ſe
faz a venda fem muita diſſimulação ) ſe eſte Author
he Pedro Creſpeto , Religioſo Celeſtino , que flo
receo em França no fim do feculo decimo fexto , he
mais de eſtranhar nelle tão extravagante noticia ;
porque foy muito fabio para crella , e muito vir

tuofo para fingilla. Em Heſpanha dizem , que ven


dem os Eſpiritos Familiares em França : em hum Au
thor Francez lí , que os vendem em Alemanha : em
Alemanha aſſentão varios Authores , que eſta ven
da he frequente nas Regiões mais Septentrionacs.
Aſim vão lançando eſta patranha humas Nações a
outras, paraque le verifique o Adagio : Longas vias,
long as mentiras ; porque as grandes mentiras vem
de terras diſtances, e remotas.
Que o Demonio pode ſer ligado pela virtude
de Deos Omnipotente , communicada aos ſeus Mi
nil ,
70 PRO LOGO

niſtros, e Servos , he couſa tão certa , que não tem


duvida. Allim fe lè no livro de Tobias, que o Ar

chanjo S. Rafael ligàra no deſerto do Egypto ao


Demonio Almodeo , e lemos no Apocalypſe , que

hum Anjo prendeo com huma cadeya a Satanàs , en


carcerando - o por mil annos no Abyſmo. Porèm he
falſo , que tenhão eſte poder os conjuros da Arte
Magica .Circulos , Palavras , e Ritos , que carecem
de coda a actividade , e não podemmover a mais le
ve areſta de huma para outra parte , como hão de ter
força, para trazer hum Demonio do Inferno , atallo ,
e ſugeitallo ao arbitrio de hum homem ? O recurſo
he dizer, que em virtude do pacto , que te faz com
hum Demonio de hierarchia , ou ſuperior ordem ,
eſte pelo dominio , que tem ſobre outro inferior, o
ata , e obriga aquella ſervil ſugeição. Eu convenho ,
em que haja eſtá authoridade de huns Demonios los
bre outros, e que Deos lhes permitta o ſeu ulo . Porèm
duvido muito , que o Demonio ſuperior, com quem
ſe fazo pacto , ſeja tão fiel na ſua obſervancia , como
nos luppoem as noticias , que correm dos Efpiritos
Familiares; porque , ſegundo o que ſe diz , eltes
nunca jà mais rompem a ſua prizão, e quem os com
pra , o faz debaixo da fuppolição , que dà o ſeu di 2
nheiro por huma alfaya imperdivel. O Demonio não f
obſervarà pacto algum , le não em tanto , que feja
P
conducente a ſeus depravados deſignius ; e osin
numcraveis circunſtancias , que podem occorrer ,
haverà caſos, em que à ſua malignidade tenha manis
conveniencias quebraro pacto , do que obfervallo..
Como quer que ſeja poſlivel , que o Demo
pio preſte com legalidade eſſe funeſto obſequio aos
homens, não obſtante iſſo , aſſeguramos ſer fabula,
o que
G A L Ε Λ Τ Ο . 71

o que o vulgo crè dos Demonios Familiares das


Nações Eſtrangeiras. Se foſfe tão frequente o ſeu
uſo , muito fe lcria delles nas hiſtorias claſſicas dos
Reynos; porque interviriaó como inſtrumentos nos
fucceſſos de mayor importancia. Sendo vendiveis ,
quem os poderia comprar melhor do que os Princi
pes ? Com hum Familiar , que cada hum tiveſſe a feu
mandado, oh quanto pouparião do que gaſtão em
Poſtas , e do que difpendem em ganhar confidena
tes , para ſaber o que ſe trata nos gabineres de ſeus
inimigos! Saó por ventura todos os Principes táo ti
moraros, que folicitados da ambição , renunciem a
todos osmeyos illiciros de prover ſeus intereſſes ? Al
guns , como Saul a Pythoniſa , conſultarião aosFa
miliares. Sem embargo difto , não ſe encontra nas
Hiſtorias o uſo deſtes Demonios, nem a ſua mais le
ve ſombra , antes ſe vé tudo pelo contrario , pois
Đão ſe le ſucceſſo algum , a que ſe não aſſignem as
cauſas naturaes , e ordinarias. Allim que as narra
ções de Eſpiritos Familiares ſó fe achão no vul
go , ou em algum Author nimiamente credulo , e
facil, que andava recolhendo contos de velhas , pa
ra encher hum livro de fabulolos prodigios. E le .
a voz de todos ( voltemos ſobre Kircker ) he tão
falla, e mentirofa na aſſeveração dos Familiares Efe
piritos, como devemos dar credito a Geſnero àcer.
ca do Eſpirito Familiar , que diz aſliftia a Paracel
1o , ſem mais averiguado fundamento , que tello ou
vido a hum feu Difcipulo : Uti ex ejus Diſcipulo au .
divi? He bem verdade , que o meſmo Paracelſo , co
mo nota Kircker , na prefação ao Paragrano , e em
outras partes das ſuas obras , falla com muita impie
dade, e fuperſtição ;mas como era bum homem tão
ambi
PRO LOGO

ambicioſo de fama , e gloria , que aſpirava à Mo


narchia da Medicina : Ego Monarcha ero, mea erit
Monarchia ; e tão preſumido da ſua grande ſcien
cia , que eſcreveo , que o mais neſcio cabello da fua
cabeça era mais ſabio , que todos os Medicos , e
mais douto que os ſeus Eſcritores, as fivellas dos
ſeus çapatos mais eruditas do que Galeno , e Avi
cena a ſua barba mais experimentada , do que
todas as ſuas Academias : para fazer mais reſpeita
da a ſua peſſoa , e doutrina, não duvidou fallar en
tre os ſeus criados , e eſcrever nas ſuas obras com
ſuperſticioſa jactancia. Homens de boa feição cof
tuma chamar o vulgo aos ſogeitos , que affectáo , co
mo Paracelſo , eſta arrogancia fingida. Porèm como
eſte grandeMedico deixou os pobres por ſeus her
deiros , moſtrou claramente ao Mundo , que fora
peſſoa virtuoſa , e de boa vida , como faó reputados
os charitativos ; porque ordinarianiente cada hum
vive como morre, por acabar como vive .
Agora jà he tempo de abrirmos os olhos , e lo
de fazer melhor conceito dos homens doutos , .co
mo Paracelfo , do que fizerao das ſuas letras Con
ringio , e Geſnero ,ſeguindo a barbaridade dos le
culos paſſados , quando injuſtamenteſe condemnava
em Roma o bom Lavrador Creſino , pelo fortile
gio chamado Scopeliſmo , que conſiſtia em lançır
pedras encantadas nas fazendas alheyas , para elte
silizallas ; porque ſe obſervava, que a ſua herdade ,
Lendo de qualidade inferior, dava melhor fructo ,
do que as viſinhas ; lendo tudo effeito do ſeu tra.
balho, porque culciyava melhor a ſua terra , do
que os outros Lavradores. Jà he tempo de reſti
cuir o credito a Paracello , como a Galeno , repu .
tado
GALE AT O. 73

tado em Roma por Magico , por curar brevemente


com a ſangria huma fluxio , que fem ella não po
de vencer em muito tempo o Medico Eraſiſtrato.
Jà he tempo de perdoar a Paracelſo , como a Joao
Fauſto, reputado por Magico em Pariz , por ven
der naquella Corte algumas Biblias impreſſas , naó
havendo aiada em França noticia da impreſſió. Jà
he tempo de não injuriar a Paracello , como a An
drè Doria, por navegar com vento contrario , com
o qual todos os dias vemos entrar , ou fahir barcos,
e Navios da barra de Lisboa , couſa algum dia
fað admirada, e eſtranhada , que os Marinheiros do
Lagº , mayor no Ducado de Milaó , coftumados a
por -ſe na agoa ſó com bom vento , entre duas eſco
tas, vendo a Andrè Doria , embarcado no meſmo
Lago, fazer caminho com o dico vento , ſe perſuadi
taó, que eſte Principe era feiticeiro , ou magico,
e que os Demonios davao à embarcaçaõ o impulſo,
Ja he tempo de naõ infamar a Paracello , como a
Joao Trithemio , Abbade Benedictino de Spanheim
na Dioceſi de Moguncia , o qual por occulcar a ſua
grande ſabedoria ao vulgo , nos ſeis livros da Po
lygraphia , e com mayor legredo, e mais impene
travel myſterio na Steganographia , uſou de muitos
termos myfteriofos, e com terminação Hebraica, que
os ignorantes, com Poſſevino, entenderaõ ſerem Er
piricos malignos , deſacreditando tanto eſta enge
nhoſa eſcritura ( antiquiſſimo invento de Eneas Ta
ético ) que como ſuſpeita na Fe , mandou o Eleitor
Palatino Federico II. reduzir a cinzas o innocente
original , que tinha na fua Bibliotheca , hoje táo
celebrado no Mundo,depois quea ſeu favor eſcreveo
o Padre Gaſpar Schoc da Companhia de JESUS :
k Ja he
7+ P R O LOGO

Ja he tempo de extinguir as ſuſpeitas contra Para .


celſo , como de moderar as queixas , que os Hefpa
nhões fizerão em Roma contra os Francezes , en
tendendo , que por arte diabolica decifravão os
enigmas dascartas , que ſe eſcrevião de Helpanha
àquelle Reyno , quando ardia no fogo da guerra
no tempo da liga , por ſerem eſcricas com cara- :
cteres voluntarios, em que ſe accreſcentava a pre
caução de variar differentes alfabetos , dentro de
huma meſma carta , couſa certamente impoſſivel
de perceber a quem nao tiveſſe a chave ; e poriſſo
reputada por ſuperior à toda a humana induſtria ;
devendo - fe a declaraçaõ deſta prodigioſa cifra à
rara comprehenſaó , e engenhora lubtileza de Fran
ciſco Vieta, inſigne Mathematico , e inventor da Al
gebra Efpeciofa, o qual era tað raro , e incanſavel,
que paſſava muitos dias , e noites fem comer , nem
dormir , abforto em fubtilillimas eſpeculações . Ja he
tempo finalmente de perdoar a Paracelſo , como ao
famofo Adam Tanero, Cathedratico da Univerſi
dade de Praga, e taó douto , como virtuoſo Jeſui
ta , reputado por teiticeiro , por lhe acharem , depois
de morco , o Microſcopio : ao Papa Sylveſtre II. .
Monge de S. Bento , por ter inventado os Orgãos fot
Hydraulicos com a ſua grande ſciencia Mathemati is
ca ; e aos famoſiflimos varões Miguel Scoro , Ros
gerio Bacon , Boecio Severino , e outros Hermeti
cos, todos reputados por Magicos, por ſerem dou
tos entre os ignorantes , em cujo juizo tudo o que
he raro paffa por Divino, ou diabolico , como Apol.
lodoro , e Plinio julgàrão da Planta Senſitiva , cha
mada tambem Pudica , ou Vergonhofa , porque com

o nome de Æſchinomenen a puzeráo no Catalogo


das
G A L E A TO . 75

das hervas Magicas , ſem mais culpa do que enco


ther as ſuas folhinhas , cozendoas com ſeus ramicos,
quando alguem lhe quer tocar , cornando-as logo á
eſtender, eſtando livre do contacto. Tanto que en
tre' os idiotas apparece hum ſogeito eminente , logo
dizem , que he feiticeiro ; e lem mais delicto , que
a fua virtude, todos o culpző por Magico , ou Ni
gromantico, !

S. VIII .
0

Om pouca , ou nenhuma razão ſe admira o


Padre Kircker de dizer Paracelſo , que tendo
CP
muitos os ſegredos para tranſmutar os Mecaes , ſó os
conhecem elles poucos Hermeticos, a quem Deos al '
lumea
para conſeguirem eſte grande arcano : Arca .
ma plura tranſmutationes exhibentia reperiuntur , & fi
pancis , id eft , folis à Deo illuminatis artis filiis cogni
ta ; porque ſe iſto , diz elle , fora verdade , não era
poſſivel , que deixalle Deos de revelar eſta Arte a
homens Santos , e virtuoſos , prevendo , que nió
havião de abuſar deſtas riquezas : Eft ne poſſibile,

Denim Optimum Maximum hanc Artem tot Sanctis, e


Spiritu Dei plenis horninibus, quos fciebat ea non abu
furos, revelare orniile ? Bem labia Kircker , que a
pobreza he lium dos tres votos da Religião , em que
os homens virtuofos , e Santos ſeguem a Chriſto com
a perfeição Evangelica ; e o meſmo Chriſto no Evan
gelho de S. Mattheus diz , que nao he poſſivel, que
juntamente , e no melmo tempo poſſao os homens
ſervir a Deos, e ao dinheiro : Non poteftis Deo ſer- Matth . 6.24 .
vire , do mammona. Se hà couſa no Mundo , que
pudèra competir no ſenhorio com Deos , como diſ
corre
k ij
76 PRO LOGO

Vieir. Part.2. corre Vieira , he oidolo univerſal do Ouro , e Pra


num.272 . fol.
ta . Muitas Nações há no Mundo , que não conhe
255 .
cem a Deos , nenhuma, que não adore, e obedeça
a eſte idolo : Pecuniæ obediunt omnia. E ainda dos
Ecclefiaft. 1o .
que profeſſað ſervir a Deos , quem hà , que o naó
20 .
ſirva ? Pois aſſim como ninguem pode ſervir a dous
fenhorès : Nemo poteft duobus dominis fervire ; al
fim , diz Chriſto , que nao pode ſervir a Deos , e
mais ao dinheiro . Servir a Deos com o dinheiro , bem
pòde fer , e he bem que teja ; mas ſervir a Deos e

ao dinheiro juntamente, he impollivel.Quando Za


chco ſe reſolveo a ſervir a Chriſto , logo renunciou
o dinheiro : e quando Judas ſe reſolveo a ſervir ao
dinheiro , logo renunciou a Chriſto . Arrependido
o meſmo Judas de ter vendido a ſeu Meſtre, lan
Matth. 27.6. çou os trinta dinheiros no Templo : Projecit eos in
Templum . E os Miniſtros do Templo reſolvèrað ,
que nao ſe podiaó meter na bolça : Non licet cos mit
tere in corbonam . Mofino dinheiro , que nem rouba
do , nem reſtituido , nem no Templo , nem na bol
ça , teve lugar com Deos : e aſſim he todo . Se o Ni
roubais , perdeis a Deos : ſe o reſtituis, perdeis o
dinheiro : ſe quereis fervir a Deos , Deos , codi
nheiro nao cabe no meſmo Templo : fe quereis fer ti
vir ao dinheiro , o dinheiro , e Deos nao cabem na
Matth . 6. 25. meſma bolça : Aut unum odio habebit , & alterum die
liget : aut unum fuftinebit , & alterum contemnet. Ou .
haveis de renunciar o dinheiro , ſe amais , e prezais
a Chriſto , como fez Zacheo ; ou haveis de renun
ciar a Chriſto , ſe amais , e prezais o dinheiro , co-
mo fez Judas. Oh quantos Judas , e quam poucos
Zacheos hà no Mundo ! Se Deos tivera tantos fer

vos , e tao diligentes , como tem o dinheiro , que


bem
G A L E A TO. 17

bem fervido fora ! Mas quantos deſerviços ſe fa


zem a Deos , em ſerviço deſte mão idolo ? O mayor
ſacrilegio de todos , he , que em vez de os homens
ſe lervirem do dinheiro para ſervir a Deos , chegað
a ſe ſervir de Deos , para ſervir ao dinheiro : Ser. Ilai. 43. 24.
vite me fecifti in peccatis tuis. Quantas vezes os bens .
Eccleſiaſticos, que faõ de Deos , os vemos appli
cados, e conſumidos em uſos profanos : e os vaſos
1 do Templo de Jeruſalem , ou levados aos theſouros
de Nabuco , ou ſervindo nas meſas de Balthaſar.
Quando jà mais ſe encontrou Deos com o intereſe
le, que o deſprezado não foffe Deos ? Ou quem ſe
guio os idolos de Ouro de Jeroboam , que não vi
raſſe as coſtas à Arca do Teftamento : O Ouro , que
os Hebreos roubaraó no Egypto , adoràraó -no no
deſerto. E quantos hà, que fazem o meſmo, ſó com
a figura mudada ? Que importa , que nað adoreis
a forma, ſe adorais a materia ? Que importa , que
não adoreis o Bezerro de Ouro , le adorais o Ou
io do Bezerro ? E no meſmo tempo ( como os de
Azoto ) pondes a Deos , e o idolo ſobre o meſmo
alcar, é credes, com affectada hypocrifia , que po
deis fervir juntamente a hum , e a outro ? Se Chrif
to diz , fem exceiçao , que iſto he impeflivel : Ne
mo poteft , non poteftis ; como diz o Padre Kircker ,
que nao he poſſivel, que Deos deixaſſe de revelar
a Arte de fazer Ouro , e Prata a homens Santos ,
e virtuoſos , que fabia nað haviaõ de abuſar do di

nheiro : Ejt ne poſſibile, Deum Optimum Maximum


kamic Artem tot Sanctis, & Spiritu Dei plenis homi
mbus, quos ſciebat ea non abuſuros, revelare omififle ?
He
certo , que Deos ſabe cudo ; e ſabendo muito o

Padre Kircker, nao ſabia , que os homens virtuoſos,


c San
78 P R () LOGO

e Santos naõ haviao de abuſar do dinheiro. Pode


sia haver homens Santos , e vircuotos , que Deos co
nheceſſe haviaõ de uſar bem das riquezas ; porque

as riquezas faõ indifferentes, e ambidextras, e por


ellas como pelas eſcadas, ſobem huns ao Ceo , edeſ
cem outros ao Inferno ; mas ainda que Deos conhe
ee os homens , que podem uſar bem das riquezas,
iſto que de poſlivel pode ſer , de facto he tao dit
ficultoſo
, que mais facilmente entrarà hum cala
bre pelo fundo de huma agulha , do que hum rico
no Reyno do Ceo : Facilius eſt , camelum per fora
men acus tranfire , quàm divitem intrare in Regnum
Cælorum ; porque ainda os homens virtuoſos , co
mo devia ſer Judas , quando Chriſto o elegeo para
o Apoſtolado, com o dinheiro ſe pervertem , e per
- dem pelo dinheiro , como fuccedeo ao meſmo Judas
no Collegio Apoftolico. E paraque os juſtos ſe não
pervertão , e percão , não os quer Deos fazer ricos,
revelandolhes a Chryſopeia.
4
Aſim o entendeo o meſmo Kircker, quando ef
creveo contra Paracelfo eſtas palavras , que prova
das com a doutrina de S. Paulo , precedem imme
diatamente às outras aciina referidas : Tantum ab
effe , ut Deus ad Artem tol ſalanicis illufionibus expo CC
jitam ſupernaturali auxilio concurrere cenfeatur , ut
potius eam expreffis verbis, veluti remis , velifque vla
tandam in facris literisinnuerit : qui divites volunt
fieri,
id eſt , Alchymiſta , incident in multas tentationes , de
laqueos Diaboli. Eſt ne paffivile, Deum Optimum Ma
ximum hanc artem tot Sanétis, & Spiritu Dei plenis
kommbus, quos ſciebat en non abrufurros , revelare omi
Siffe ? A todos os homens dá Deos as riquezas, mas
ordinariamente as teparte com elles conforme a dili

gen
/
G A L Ε Α Τ Ο. 79

gencia, com que cada hum trabalha pelas adquirir.


Sempre Deos ſe houve com os trabalhadores , co
mo com os virtuoſos. Reparte os bens eſpirituais ,
conforme o merecimento da virtude ; e diſtribue os
bens temporais , conforme a diligencia do trabalho.
Sem trabalhar ,ninguem he rico ; e fem merecer , nin
guem he Santo ; e daqui ſe ſegue , que he taó mo
ralmente impoſſivel, que hum rico ſeja Santo fem
merecer, como hum Santo rico ſem trabalhar ; e co
mo
para ſer rico , nao trabalha nenhum Santo , co
mo he logo poſſivel , que revele Deos a Chryſopeia
aos virtuofos , para fazer ricos aos Santos , ſem que
os Santos trabalhem por ſerem ricos ? Eſta parece a
energia das palavras de S. Paulo : Qui divites volunt
fieri. Nao dizem , os que trabalhão tanto , como
querem ſer ricos; ſenão os quedeſejao ſer feitos ri
cos ſem nenhum trabalho : Divites volunt fieri ; e iſto
que ſaó tentações , e laçosdo Diabo : Tentationes , &
laqueos Diaboli, não podem ſer merces , e revelações
de Deos . Porém ajudar Deos a quem trabalha , e dar
ļuz , e auxilios aquem adquire com a ſua induſtria as
riquezas , para comer o pao com o fuor do feu roſto,
como ocomia , e ganhava Paracello , não me parece
couſa , que não poſſa fazerDeos. Santo Alberto Ma
gno , tão grande Theologo , como Chymico, na pre
facção do livrinho de Alchymia , comque coroou as
ſuas doutiſſimas obras , affirma , que depois de per
leverar no eſtudo, efpeculação , e trabalho da Arte
Magna , não pela fua grande fciencia , mas por graça
do Eſpirito Santo deſcobrira a Chryſopeia : Tandem
perfeveravi ſtudendo , meditando, laborando in operi
bus ejufdem , quouſque quod quærebam inveni , non ex
mea fciencia ,ſed ex Spiritus Sanctigratia ; e como nel
i tas
80 PR L O Ġ O

cas palavras profere Santo Alberto Magno , como


Theologo , a meſma propoſição , que condemna o
Padre Kircker em Paracelfo , como impio , não
poſſo entender, como allegando na meſmaobra com
ambos eſtes Authores , le atreveo Kircker a repre
hender em Paracelſo a impiedade, fem cenſurar em
Alberto a Theologia; porque Alberto concorda com
Paracelſo em que depois do eſtudo , e do trabalho :
Studendo , laborando , alcançára o ſegredo da Pedra
Philoſophal, não pela fua propria ſabedoria : Non ex
mea ſcientia, mas por revelação , ou graça de Deos:
--

Ex Spiritus Sanétigratia ; e daqui ſe deve inferir ,


que não pode fer em Paracelſo impiedade a propolis
ção , que em Santo Alberto he Theologia.
Todo o eſcandalo , que neſta propoſição de Pa
racelſo deſcobrio o Padre Kircker , eſtà em que fen
do a Chryfopeia huma Arte cáo util para a vida , a não
revele Deos aos Santos , e virtuolos, ſenão ſó aos
Hermeticos , e Alchymiſtas. Mas cambem ſendo as
ſciencias muito neceſſariaspara ſaber , não as revela
Deos ordinariamente aos virtuoſos , e Santos , ſe não
aos eſtudioſos, e applicados ; porque ainda que Deos
or mais
he muito liberal com os homens , a nenhum p
Santo , e virtuoſo, que ſeja ( nio lhe infundindo , co
mo aos Apoftolos , a ſciencia) concede a ſabedoria
lem eſtudo, nem đà a riqueza fem crabalho . Muito
virtuoſo , e Santo era Adam antes de peccar , e tam
bem depois depenitente, e arrependido da ſua culpa;
porèm Deos não lhe deu as riquezis neceffarias para
Genef. 3. 17 .
3. 17. viver , ſem Adam primeiro trabalhar para comer :In
laboribus comedes , nem lhe concedeo a fciencia do
bem , e do mal , para ſaber , tem que elle a colherre
acuſta da própria vida , comendo do fructo da Arvo :
re da
G A L E A TO . 81

rée da fciencia : Ecce Adam quaſi unus ex nobis factus Genef. 3. 22,
eft , fciens bonum , & malum . Com eſta grande ſcien
cia era Adam quaſi tað ſabio , como era o meſmo
Deos : Adam quaſi unus ex nobis factus eſt ſciens,
e ſendo Senhor de todo o Mundo , com o abſoluto
dominio detodas as riquezas ,, era mais rico do que
todos os homens; mas com toda eſta grande opulencia
não comia hum bocado de pao , para ſuſtentar a vi
da , ſem lhe cuſtar o ſuor do ſeu roſto : In ſudore vul- Geneſ. 3. 19.
tus tui vefceris pane, e' à cuſta da propria vida alcan
çou tão grande fabedoria : De ligno autem fcientia Geneſ. 2. 17.
bom , & mali ne comedas. In quocunque enim die comede
ris ex eo,morte morieris. Tað penſionadas faó as ſcien
cias, que ſe compraó com as proprias vidas; e canto
cultaóeftas vidas a ſuſtentar com as riquezas , que
atèhum bocado de paõ le náo pòde comer, ſem ſega
nhar com o ſuor do roſto proprio ! Não dà ordinaria
mente Deos aos homens os bens deque neceſlitão,
le ellescom a lua propria virtude , e diligencia os não
buſca ).

Na Parabola dos Talentos , diz Chriſto Se


nhor noſſo , que os repartio o Rey a cada hum dos
ſervos, conforme a ſua propria virtude : Unicuique fe- Matth.25.15.
cundum propriam virtutem . Eſte Rey he Deos, que
conforme a virtude, e officio proprio de cada homem
lhe reparte os talentos . Ao Eſtudante dà ſciencias
e applauſos : ao Mercador dà lucros , e ganancias:
ao Soldado dà victorias , e criumphos : ao Navegan
te dà commercios , e riquezas :ao Lavrador dà fru
cos , e cearas ; e ao Santo dà graças , e bemaventu
ranças; e não confunde as bemaventuranças, e gra
çasdo Santo, com as cearas , e fructos do Lavrador :
as riquezas , e commercios do Navegante com os
1 trium
82 P R O L ( GO

triumphos , e victorias do Soldado : as ganancias, e


lucros do Mercador con os applauſos, e ſciencias
do Eſtudante ; por iſlo náo revela aos Santos , e vira
tuoſos a Chryſopeia dos Alchymiſtas, e Hermeticos ;
porque não confunde o officio proprio dos Hermes
ticos, e Alchymiſtas com as virtudes proprias dos
virtuolos , e Santos.

S. IX .

Aő poffo agora deixar de me rir nefte lugar,


nað ſey ſe do zelo , ſe doszelos , com que OP .
N
Kircker eſcreveo contra a Pedra Philofophal, defen
cantando para exterminar eſta Philofophia do Orbe
Literario huma Extravagante do Papa Joao XXII.
aonde Sua Santidade reprova a Chymica , e condem
na os Chryſopeios , não à morte , mas a perpetua
famia. Porém devia advertir o Reverendiflimo Kir
cker , que eſtaExtravagante não foy recebida , e in
corporada no Direito Canonico , nem he infinita, e
geralmente fulminada contra os verdadeiros Herme 1.
ticos, ou Chymicos , fenaó contra os Pſeudochymicos,
e embufteiros , que fazem , e vendem Prata , e Ou
ro falſo , por verdadeiro Ouro , e Prata fina, como
doutiſſimamente reſolve o Sapientiflimo Juriſcon
fulto Arfoncino : Verum fpecialiter , & proprie de ijs
tantum , qui ( ut Textus verba proferam ) aurum , vel
argentum fophiftıca tranſmutatione confingunt. Quare
ad eos , qui non reprobum , & adulterium , fed probum ,
da verim aurum conficiunt , Textus ille non pertinet.
Itaque omnes Doétores tam Civiliſtæ , quàm Canoniſ
td non curarunt illam Extravagantem Pape , ut fi
perius diximus, Nem a Conſticuição do Summo Pon
cifice
G A LE AT 0. 83

cifice Joao XXII . neceſita de expoſiçao ; porque


da meſma Excravagante clara , e expreſamente conſ
ta , que não condemna ſenao aos Pſeudochymicos ,
que falſificao Ouro , e Praca , para enganarem aos
homens com artificio , vendendo -lhes eſtes Mecaes
por verdadeiros : Idemque verbis diſſimulant falfita
tem , ut tandem , quod non eft in rerum natura , effe
verum aurum vel
, argentum ſophiſtica tranſmutatio
ne confingant. Poriſo Joao Pico , Duque de Miran
dula , Conde da Concordia , Principe do Imperio ,

e tao grande Principe , como Sabio , por liçao de


Acurſio , Baldo , Guilherme, e outros Juriſtas , ab
ſolve do crime de fallarios aos verdadeiros artifices
da Chryſopeia ; porque contra elles não fulminou o
Papa eſte Edico : Preſcribitur enim de crimine fal- Joan. Franc.
Pic . Mirand .
fi, at nos de vera loquimur arte , quæ falfitatis nomine.
taxari non poteft . E porque eſtá Arte de fazer Ou-, lib.1.de Auro

to verdadeiro , e puro, naó he prohibida por ne- cap. 3. in fin.


nhum Direito poſitivo , como eſcreve Beyerlinck :
Ars conficiendi eo modo aurile , nullo jure poſitivo ve- Beyerlinck .
tatur , por eſta razaó confiadamente dedicou ao Pa . Tomo 2 .
Thear. Vita
pa Leao X. Joio Aurelio Augurello tres livros ef Human. Ver
critos em verlos Hexametros , em que tracava da Pes
bo Chymiä
dra Philofophal , com o titulo de Chryfopeia, & vel fol. 203.
Lus Aureum , feu Chryſopela Mayor , Mmor ; ſobre
a qual tambem elcreveo em verſo Heroico Luſitano
o famoſo Poeta Bocarro, ſendo gratiſſimos aos Por
tuguezes , e Romanos eſtes Poemas , os quaes não
ſeriaõ tío eſtimados dos Pontifices , e Monarchas , ſe
por elles , ou por alguma Ley Divina , ou humana
foſſem prohibidos.
Nem le deve prohibir huma Arte , da qual ſe
duvidou Santo Thomaz , commentando nos ſeus
lij pri,
81 PRO LOGO

primeiros annos as ſentenças dos Padres , a defendeo


lendo já velho , eſcrevendo a Summa Theologica ,
como melhor que Pedro Gomes , e Joao Lyguro en
tendeo o Principe de Concordia o grande Mirandu
Joan . Franc . lano : Adde, quod quæ juvenis negare vifuseft Thomas ,
Pic. lib. 2. de conſtanter affirmavit longo poſt tempore , hoc eft , dum
Auro cap. 11. Summam conficeret T heologicam , tanquam ultimum
S. Nec. fuarum opinionum teftamentum . E accreſcenta eſte
grande Principe no principio do terceiro livro , que
eſcreveo deſta tranſmutaçaõ dos Metaes em fino Ou
ro , (de que elle foy teſtemunha de viſta ) que depois
do incendio dos livros Chryſophilos, que mandou quei
mar o Emperador Diocleciano , como refere Suydas,
paraque os Egypcios poderoſos com o muito Ouro ,
que fazião com a Chryſopeia , ſe não rebellaſſem con
tra o Imperio Romano , le fazia publicamente tanto
Ouro daquella eſpecie de area dourada, a que os Gre
gos chamáo Chryſamos, que os Ceſaresmandàrão aos
Hermeticos, que do ſeu trabalho pagaſſem tributo ,
como os Mineiros , com a differença porèm , de que
os Mineiros pagaſſem a decima parte do que tiravao
das minas da terra , e os Hermeticos pagaffem poucos
eſcrupulos do Ouro , que fazião com a ſua Philoſo ,
phia , como ainda hoje teſtemunhaõ duas Leys , que ç
debaixo do titulo de Metallariis , ſe pòdem ver no
Codigo Juſtiniano ; donde le ſegue, e conclue, que Q
não podia fer prohibida huma Arte , pelas meſmas
Leys , que a permittiaó , e approvavao.

S. X.

Rgumenta mais o Padre Kirckercontra a Arte


AA Magna , deſacreditando os ſeus Artifices; por
que
G Α Ι Ε Α Τ Ο. 85

que lle chama Magicos, Feiticeiros, Nigromanticos,


Impios , e Atheiſtas. Louvo a piedade com que Kir
cker os cenſura , como Catholico ; mas eſtranho a
Logica com que os impugna, como Dialectico. Joað
Zwelphero , Medico do Emperador Leopoldo I. e
Philolopho excellente , naõ quiz , nem ſe atreveo
( nao ſe atreveo , porque paó quiz ) a inveſtir , e com
26 guerra declarada refutar os argumentos , e aferções
: do Padre Kircker , Varað taõ celebre , que ninguem
o igualla na fama,e no talento ; e por modeftia nað op
poz , mas propoz amigavelmente contra elle a ſua
opiniao: Cujus viri
, ut pote celeberrimi,famaac talentis Zwelfer.
nunquam æquandi, doctiffimas aſſertiones, & argumen- Mantiſ. Spag .
ta, licet aperto marte inceſſere, ac adoriri, neque velim , Part. 1. cap.1,
fol. 324
neque aufim : meam tamen interim non tam opponam
quam proponam opinionem . Porèm chegando a eſte
ponto do Atheiſmo , impiedade, e Nigromancia ,
com que o Reverendiffimo Kircker , ulando da Fi
gura chamada dos Gregos Polyfyndethon injuria , e
afronta a Paracelſo , nað fó defende a eſte grande
Hermetico , mas impugna , ou expugna ao Padre Kir
cker. Por obſequio de Zwelphero nað reſpondo a
Kircker ſobre eſta injuſta cenſura , como em venera
çaó de Lorino deixou A lapide de commentar o Pfal
terio ; porque na diſputa deſte Prologo caminho por
nova eſtrada; e quando entro em varedas jà trilhadas,
fempre me deſvio de dar paſſo ſobre pegada alheya.
Mas como eſtranhey a Kircker a ſua Logica , mof
trarey fó , que melhor argumentára eſte Philoſopho
com eſta , ou ſemelhante Dialectica : os Chymicos
admittem huma ſó Pedra Philofophal com duas cores
differentes, que fað branca , e vermelha, chamadas
Chryſopela , e Argyriopeia , as quaes convertem os
Mc.
86 PRO LOGO

Meraes imperfeitos em Ouro , e Prata , obrando


juntamente dous effeitos contrarios ; porqueo Lapis
endurece os Metaes brandos, que faõo Chumbo , e
o Eſtanho , para os transformar em Prata , e abranda
os Metaes duros , que faõ o Cobre , e o Ferro , pa
ra os tranſmutar em Ouro : he impoſſivel , que a
meſma Pedra faça contrarias operações ; porque ne
nhuma couſa naturalmente produz dous effeitos con
trarios: logo he tað im poſſivel eſta Pedra , como os
ſeus contrarios effeitos. Mas tambem lhe reſpondera,
que a ſoluçao deſte argumento he raõ clara como á
luz do Sol , que abranda a cera , e endurece o barro ;
porque obra em diverſos ſugeitos , e a reſpeito de na:
turezas differences. Com diverſos alimentos duros, e
molles , faz a Natureza, por meyo da nutriçao , a ſubf
tancia do corpo da meſma conſiſtencia, endurecendo
com huma ſó acçao o molie , e abrandando o que he
duro , e lolido; e daqui ſe ſegue , que imitando a Ar.
te taó perfeitamente a Natureza, tendo ilto poflivel
à Natureza , nao fica ſendo impotlivel à meſma Ari
te . Os Philolophos Peripatericos , e todos os ou
tros ſabios , que profeſſað , eenlinaõ a verdade, cla
ramente a eſcrevem nos ſeus livros, e a explicaó a
ſeus Diſcipulos , e por iſſo a pinrao nua: Nuda veritas;
e todos aquelles homens , que occultað o que enli
nað , e eſcondem o que affirmao , profeſTaõ a menci
evengano ; porque como diſſe a Sabedoria Divis
ra ,
na Encarnada, quem obra mal, aborrece a luz , para
nao ſerem arguidas as ſuas obras' : Omnis , qui male
Joan . 3. 20 .
agit , odit lucem , ut non arguantur opera ejus ; os Phia
lofophos Hermeticos aifirmando , e defendendo a
exiſtencia do Lapis , e enſinando aos Diſcipulos a
preparaçaõ da Chryfopera.com Polygraphia encobrem
a Ver
G A L E A T O. 87

a verdade , occultando o que enſinaó , e encobrin


do o que defendem , e affirmao : logo os Philoſo
phos Hermeticos quando eſcrevem , e quanto eſcre
vem da Chryſopeia he engano , e mentira. Mas tam
bem lhe reſpondera , que os Philoſophos Pythago
ricos, que profeſſàrab a verdade, e perſeguirao a
mentira , naõ a explicava ) a feus Diſcipulos , ſenao
por ſymbolos , como tambem fazia ) os Philoſophos
Heracliticios , que foraó muito verdadeiros , enſi
nando a ſeus Diſcipulos a verdade das ſuas É fcho
3
las com enigmas, ſegundo eſcreve o Divino Platao ;
e a todas as peſſoas, que lhes pediaó a explicaçao
deſtes myſterios, a declaraváo com outros enigmas. O
meſmo Plataő , Meſtre de Ariſtoteles , eſcreveo cão
occulta , e enigmaticamente os ſeus dogmas , que
poucos ſabios os entenderão , imitando , como el
creve o grande Hieronymo aos Syros , e Paleſtinos,
que ſe explicavaó por Parabolas. A Sagrada Eſcri
tura , que he Fonte pura de toda a verdade , eſtà

cheya de Parabolas , Enigmas, Allegorias , e Me


taphoras ; e o meſmo Chrifto , em quem , como diz
S. Paulo , eſtáo cſcondidos todos os theſouros da
fciencia , e fabedoria : In quo funt omnes theſauri fa- Ad Colloff.2 .
pientia , & fcientiæ abfconditi , enſinando a verdade 3 .
a ſeus Diſcipulos , é a toda a Igreja Catholica ,
tambem lha declarou por Parabolas : Et ſine parabo- Matth.13:34.
lis non loquebatur eis. E daqui ſe ſegue , quea expli
caçað myſterioſa nað deixa por iffo de ſer muito
verdadeira . Poriflo Ariſtoteles conhecendo , e pra
cticando nos ſeus eſcritos efla verdade, como elcre
veo ao grande Alexandre , confeſſa , que a ignoran
cia de alguns , ou de todos os Philofophos Anti
Hermetitos , corrompeo a ſciencia , e Philoſophia
dos
88 P : R. O L 0 G 0

dos ' Egypcios , por nað entenderem os ſeus myftet


riofos Hieroglyphicos , fingindo fabulas para moſtra
rem os neſcios, que os entendiaó , perdendo a ſua ver
dadeira intelligencia , a ignorance preſumpçaõ deſtes
-fingidos Edipos, onde ſe deve notar , que o Philofo
pho chama fabios aos Authores dos Hieroglyphicos,
e nelcios aos que os nao entenderaõ ; e a eſtes nef
cios , como a inimigos peregrinos dos labios , occul
tao os Hermeticos os chefouros da Chryſopeia , que
brando - lhes a cabeça com os myſterios dos ſeus eni
gmas, para caſtigar a ſua cubiça , e preſumpçað. !
Saõ os Hermeticos com os ſeus enigmaticos'myſ
terios , como os Gryphos animacs de quatro pès ,
com azas , e bico de Ave , coftas de Leao , e cau :
da de Serpente , os quais nos Montes Ripheos , e
Hyperboreos guardao os cheſouros, como tambem
diz Kircker : Ad Rhiphæos quoque montesad Gryphos
Hyperbóreos præftantiſſimi auri cuſtodes, e fað inimi*
Bluteau Vogos dos cavallos, e 'Arimáſpes; e accreſcenta Blureau
cabular. Port. por liçaõ de Solino . , que habiraó eſtes animaes as
Tom . 4. Ver- terras da Scychia abundantes de Ouro , e pedras pre

bo gripho fol. ciofas , e aosEſtrangeiros, como a inimigos, que pre


133.1 tenden roubar eſta riqueza, alfaltað , e deſpedaçað
os Gryphos, como naſcidos para occultarem o Ou
ro , e caftigarem a cubiça' , e avareza dehomens nel
cios ; porque tambem fað os Gryphos, como dizo
referido Author , huma eſpecie de enigmas de palaa
vrasmuciladas , com tranſpofiçao , união , ou ſepa
raçao das 'Tyllabas , que fazem diverſos ſentidos , os
.
quaes ſe daó a adivinhar para exercitar o engenho.
Demaneira , que os Gryphos , e os Hermeticos com
os ſeus enigmas, e myſtérios admirao os engenhos
dos peregrinos ,ou eſtranhos da ſua elchola , eſcon's
dem
G A LE A TO . 89

dem os ſeus theſouros, occultað as pedras precioſas, ?


que fað o Lapos , e Pedra Philoſophal, e fazem guer
ra aos neſcios , que faó como os Cavallos , e Arimalay
pes , que nomeyo da teſta tem hum ló olho , como
final do pouco , que deſcobrem , e aviſtað ; porque
ſe vem mais quatro olhos, que dous , menos aviſta,
e deſcobre que dous , hum ſó olho na teſta ; e com
grande razão os deſpedaçao , quebrando-lhes a ca- i
beça, para caſtigar a cega preſumpça ) , e cobiçados
Arimaſpes, e Cavallos , que ſendo Toupeiras, ſe
atrevem a competir com os Hermeticos ou Gryphos ,
que na ſua vigilancia faó ' Argos , e na perſpicacia
huns Linces.
Os Hermeticos finalmente não podem fazer Ou
ro com a ſua Chryſopeia , nem com a Argyropeia
Prata , tenão imitando com a ſua Arte a Nature .
21, a qual como elles confetao com Geber na Sum
ma, Rhaſis no livro do Perfeito magiſterio , e outros
Corypheos da ſua Eſchola , não pode fazer Ouro ,
ſenão no dilatado , ou quaſi ecerno eſpaço de mil
annos ; os Hermeticos , que não vivem mais de hum
feculo , não podem em táo breve tempo imitar com
a Arte a Natureza , no que ella ſó faz em mil an
nos : logo nio pòdein os Hermeticos com a ſua Chry
Sopeia fazer Prata, nem Ouro ; mas tambem finalmen
te lhe reſpondèra , queem poucos mezes faz a Arte,
o que em mil annos não pode fazer a Natureza , co
mo eſcreve Bernardo Conde de Tréveris : Adeo ut Bern . Com .
hac via per noſtram artem perficiamus aliquot menfibus, March . Tre .
vilan . Part . 3 :
quod ipfa Natura vix mille poſſit annis . Iſto ſe prova
com a experiencia ; porque a Natureza nunca def- S.Imprimis V.
Manget. tom .
troe o Ouro , que desfaz a Arte com Agoa Regia em 2. Bibliothec .
pouco tempo , e com'o Eſpelho Uſtorio em hum inf Chem . f. 139
tan
O
90 PRO LOG

tante ; formando tambem a Arvore de Diana em hum


quarto de hora, conforme moſtrou Homberg em Pa
riz, Corte de França, e transformando os Metaes em
Ouro em hum momento , como em Ouro converteo
Lullio em Londres, Corte de Inglaterra , os ſinos das
ſuas torres , com os quaes reduzidos a dinheiro , nao
Ricardo I. como erradamente , e contra os melhores
Chronologos , eſcreveo Kircker , mas Eduardo VI.
fez cruel guerra aos Francezes, faltando à palavra ,
e promeſta , que fez a Lullio de gaſtar aquelle di
nheiro na guerra contra o Turco . Tambem com di
nheiro feito com muita brevidade de Ouro Chymico,
e verdadeiro , fez Carlos VII . Rey de França, crue
liſſima guerra aos Inglezes , o qual lhe deu Jacobo
Cor Biturienſe , ſegundo refere Claudio Seiffelio na
Hiſtoria de Luiz XII . Rey do meſmo Reyno. E ſe
a Arte naó excedeſſe neſta brevidade à Natureza ,
nao poderia ) os Hermeticos fazer eſte Ouro em tao
pouco tempo , do que ſe nað pòde duvidar , ſem del
terrar primeiro do Mundo a Fé humana , pelo affir
marem aſſim as Hiftorias Claſſicas, e authenticas da
quelles Reynos , e muitas daquellas moedas , que
ainda hoje conſervaó alguns curioſos.

S. XI.

Ntes de concluir o exame da doutrina Kir

A ckeriana , quero referir por epiſodio huma ga


Jante Hiſtoria, para divertimento dos Leitores , pro
va , e confirmaçao do que tenho dito , como tam
bem para folução de todos os mais argumentos. Ef
crevem Joao Zwelfer , e Phelippe Jacob Sachs ,
que Cornelia Martinbo , Lente da Univerſidade
Julia
GAL E A T O. 91

Julia da Cidade de Helmſtad , quiz defender em


acto publico hum celebre tratado , que tinha com
poſto contra a verdadeira exiſtencia da Pedra Phi
lofophal, moſtrando infelizmente com os teguintes
fundamentos , a que reſponde doutiſſimamente Pe
dro Bom , a impoſſibilidade da Chryſopeia : os Chy
micos ignoraó acerta , e determinada quantidade de
qualquer dos elementos nos mixtos , e deſte modo
nao ſabem o modo de os fazer : os Chymicos nað ſó
ignoraó a determinada proporçao dos elementos ,
que entrão na compoſição dos mixtos , e ' o verda
deiro modo da mixtáo , e digeſtão , com que os
faz a Natureza, e não podem com elta ignorancia
imicalla com a ſua Arte : os Chymicos nao conhecem
o inſtrumento , com que a Natureza fabrica os Me
taes , e fem eſte conhecimento naó podem imicalla ,
para fazerem ſemelhantes operações : os Chymicos
ignorão os primeiros principios , que movem a ge
raçað , e introducçao das formas nosmixtos , e não
he poſſivel fazerem outra ſemelhante com eſta ig
norancia : os Chymicos não podem fazer pela Arte,
o que he ſo obra da Natureza; porque a geraçao
natural he principio intrinſeco , e principio extrin
ſeco he a operação da Arte : os Chymicos não po
dem fazer Ouro , nem Prata ; porque he improprio
lugar hum vidro , para dentro nelle ſe fazer a ge
raçao do Meral , que a Natureza ſó faz nas entra
nhas da terra : os Chymicos não imitão , nem podem
imitar com a lua Arte a Natureza na geração dos
Animaes , e na geração dos Mecaes lhe ſuccede tam
bem o meſmo ; porque a geração dos Animaes he
como a lua mixtáo ; a mixtão dos Animaes he mais
facil do que a dos Metaes , por ſe diſſolver com
mij mayor
92 P R O LOG ()

mayor facilidade, e da meſma forte he tambem fam

ciliſſima a ſua geraçao : nao podendo pois a Arte o


mais facil , que he gerar hum Animal vivo , ( ainda
que Paracello diga o contrario ) menos pode fazer o
mais difficil, que hofazer Ouro puro , e Prata fina.
Eſtando porèm o grande Cathedratico reſpon
dendo a todos osargumentos, que ſe lhe oppunhaó
a favor do Lapis , com foluções taó ſophiſticas , co
mo os ſobreditos fundamentos do feu tratado , en
trou na Aula hum feu particular amigo de grande av
thoridade , e reſpeito naquella Cidade, ao qualcon
vidou Cornelio com huma concluſao para que lhe
allifiſfe , e argumentaſfe , com o deſvanecimento
de que o honraſſe naquella funçað literaria , e acae
demica . Era eſte Cavalheiro mayor Chymico , do que
Peripatetico , e mayor practico , do que eſpecula
tivo , ou rhetorico; e para fazer o acto mais plau
fivel , argumentando demonſtrativa , e naõ ſophif
ticamente , com experiencia , e naš com o diſcurſo ,
com verdade , e não com paralogifmo , com obras,
e naó com palavras , mandou trazer à ſua preſen .
ça hum fogareiro com carvões accezos , hum cadi.
nho , e hum pouco de Chumbo , e depois de tudo
muito bem examinado por Martinho , e pelos mais
Academicos, para deſvanecer a ſuſpeita dealgum en
gano , transformou o Chumbo em fino , e puro Ou
ro , à viſta de toda aquella Univerſidade , e dando
huma porçaõ della a Cornelio , para que o exami.
nalle na Copella , lhe diſſe com muita graça , que
refpondefte àquelle argumento , ou diffolveſſe tão
aureo fyllogiſmo : Heus jam tu , mi D. Corneli , fol
ve mihi bune fyllogifmum . Efta demonſtraçao
deixou
a Cornelio muito envergonhado , como affirma o
mer
G A L E A TO . 93

meſmo Zwelfer na fua Mantiffa : Interim rubore, ac


terecundia fuffufus ; porque nao hà couſa mais ver
gonhoſa para hum Sabio prelumido , do que darem
The publicamente hum quinào , a que elle não poſſa
reſponder com diftinções, ou apologias. Agora quero
eu moſtrar a Cornelio o jufto fundamento com que
Ariftoteles reprehende aos homens , que tendo viſ
to pouco , julgao de tudo. Os Juriſconſultos cha
mão incivis aos Juizes , que julgað o pleito , lem
verem primeiro todas as Leys , ou quando menos a
Leytoda. Condemna Seneca aos Miniſtros , que co
mo Claudio Ceſar , decidem as duvidas , ou deman
das , fem , conforme as Leys , ouvirem ambas aspar
tes : Auris una actori, altera reo fervanda. E mere- Text. in L.
cem grande cenſura todos os Philoſophos preſumi. quæ omnia
25.f.de Prog
dos, que fem noticia da Arte Chymica , nem expe
curat .
riencia das ſuas admiraveis operações , negão os pro
digioſos effeitos da Chryſopeia. 2

S. XII .

Rovada , e defendida por eſte modo a transfor


P maçao do Chumbo em Ouro , naó ſó com a
razaó , ſe naõ tambem com a experiencia ; como con
tra a experiencia naš prevalece a razao , ſegundo de
pois deAriftoteles, repete muitas vezes o infigniſſi
mo Heredia : Experimentum quamcunque rationem Heredia Syn
vincit , facilmente ſe reſponderà ao argumento , com tag . Univerf.
que Kircker pertende provar com muitas razões , de febr.malig .
que nao hà alma do Ouro , a qual conforme dizem Difp.3.quælt.
os Chymicos, nao he outra couſa , fenaõ huma onça 3.5. Mihi fol,
de Ouro , reduzida pela Arte Magna a pò , que pe 522 .
za ſó doze grãos , e qualquer graó converte huma
onça
94 P R Ó LOG
O
onça de Metal em huma onça de Ouro. O funda
mento com que Kircker nega eſta converſao , he
porque a materia nao pode receber qualquer forma,
ſena tendo apridað, e diſpoſiçaõ conveniente para a

receber. E como he poſſivel, que eſte po , fórma , ou


alma , naố corporea , mas corpulenta do Ouro , ( a
qual naó pode eſtar ſeparada do corpo ) deixando o
proprio logeito , ſe introduza ( conio da merempfi
coſe, ou tranſmigraçaó da alma racional erradamen
te imaginou Pythagoras ) no Chumbo , Eftanho ,
Cobre , ou no Ferro , que todos tem jà a ſua forma?
Podem por ventura eſtar duas fórmas em hum ſó , e
no meſmo ſugeito ? E ſe menegao eſte abſurdo , di
gao -me, que foy feito da alma do Chumbo : Quid
nam de anima plumbi factum fit ? Nao deſcubrao a
fua ignorancia , recorrendo à ſua anniquilação . E
ſe a forma, que eſtava no pò , fe ſeparou , admitiráo
os Chymicos, que pode ſubliſtir ſem forma hum fo
geito ? Eſte po chamado alma do Ouro , he verda
deiro Ouro , reduzido a pò com corroſivos ; e co
mo conſta de materia , e forma , nað ſe deve cha
mar alma aurifera , fenaó natural , e verdadeiro Qu
ro : Anima auri nequaquam dici poteft , ſed aurum
ic
verum , & naturale .Se eſte pò lançado ſobre qual
quer Meral , o tranſmutaſe em Ouro , por virtude
da ſua aurea alma , nað ſe me darà razao , porque
huns pòs v.g.de loina , lançados ſobre a loſna feca
ca , a nað reverdeçaó , ou os pòs de qualquer ani
mal queimado , não reſuſcitem a todos os animaes
de pois de mortos ? Como he poſlivel, que dem vi
da os Metaes , que nao tem alma : Qui fieripoteſt ,
-ut quod animam non habet , uti funt metalla, vitam
tamen dare poßit ? Parecemc efte argumento do Pan
1 dre
G Α Ι Ε Α Τ Ο. 95

dre Kircker como aquelles , com que Lactancio Fir


miano impugnava antigamente os Antipodas. An
tes de ſe deſcobrirem os Antipodas na America
com apparentes razões provaya Lactancio , que os
naó havia ; mas todas ſe deſvaneçèraõ com o deſ
cobrimento dos Antipodas . Todos achavao anti
gamente razab a Lactancio , quando os impugnava;
e todos hoje ſe rim de Lactancio , quando os im
pugna. Aſſim fuccede ſempre a quem eſcreve contra
aquillo , que nað fabe. Hoje fe poderàõ rir de Kir.
cker , todos os que antigamente celebravað eſte ar
gumento ; porque eſtà jà deſcuberto , que os Me
Caes tem alma , e daó vida . Ignorou Kircker eſta no
vidade da Phyſica; e afſim ſe podia tambem enga
nar neſte argumento ; porque fe funda na aptidao ,
e diſpoſiçao da materia , na duplicaçao , e anniquila
çaó das formas , e finalmente na exiſtencia leparada
do fogeito , que faõ coulas , que hoje vamos ſaben
do , que ignoramos.
Mas para que nao imagine algum Peripatetico ,,
que reſpondo neſta forma , para fugir à difficulda
de, advirto aos que nao forem Philofophos, que no
fyftema Ariſtotelico, em que funda o leu argumen
to o Reverendiſſimo Padre Kircker , todos os cor .
Phyſicos ſe compoem de Materia , Forma, e
União. Por eſta Materia , que ſe chama Materia prie
ma , ſe entende entre os Philofophos hum fogeito
commum de todas as mutações fubftanciaes , o qual
ḥc incorruptivel , e delle ſe formaó , ou fazem os
corpos Phylicos pertencentes ao predicamento da
ſubſtancia. Diffine- ſe por eſte modo nas luas Ef
cholas : Materia prima eſt id , ex quo quidpiam fit,
non per accidens , ſed per ſe , tanquam èprimoſubje:
ete
96 PRO LOGO

Eto. Prova - ſe a lua exiſtencia com a tranſmutaçao


ſubſtancial de qualquer ſogeito , o qual perfevera
ſempre , depois que nella ſe corrompe huma forma ,
e ſobrevem outra de novo , como vemos em hum
pào quando ſe queima ; porque lhe fobrevem de
novo a forma de fogo, depois da corrupçao da foro
ma de pào , havendo no po ſogeito commum pa
ra ambas aquellas formas. Nem le pòde negar fer
o fogeito commum , e o meſmo ; porque morren
do ; ou acabando a forma de hum Cavallo , e fo .
brevindo de novo a forma cadaverica , ficaó no ca
daver os meſmos accidentes , figura ', e quantida .
de : logo tambem fica o meſmo ſogeito . E ſe em
qualquer tranſmutação ſubſtancial nað houvelle
fogeito commum , àcerca do qual fuccedeſſe a cor
rupçaõ da forma , que ſe corrompe , e a geração
da forma, que ſe gera , a forma, que naturalmente
fe gera , ſe crearia , e ſe anniquilaria a que natural
menta le corrompe ; porque a nada fe reduziria a
fórma corrupta , e de nadale crearia a forma gerada .
E conforme a verdadeira Philofophia, naó ha crea c
çao , e anniquilação natural das formas ſubſtanciaes:
Alguns Philofophos com Eſcoto , Henrique ,
Gregorio , e Oviedo , aos quaes parece, que favore
ce a opinião de Santo Agoſtinho, Santo Ambroſio,
e S. João Chryſostomo , admittem naturalmente , e
ſem milagre , a exiſtencia da'materia feparada de com
da a fórına. Nem Ariſtoteles provou com fundamen
to algum a impoflivel exiſtencia da materia , não
turalmente feparada da forma ; e o Padre Arriaga
depois de refutar muito bem cinco razões , com que
ordinariamente ſe prova eſte Dogma Ariſtotelico ;
confeffa , que lhe nao occorre outro fundamentó
deſta
G A "LE AT O. 97

deſta concluſao , fena ) , que eſta exiſtencia repu .


gna tanto à Natureza da materia , como a quantida
de à penetração com outra quantidade. O Padre
Franciſco Soares Luſitano defende , que a materia
nao podeexiſtir ſem fórma ; porque ſem ella morre
ria totalmente deftruhida a Natureza. Porém admit

TI te a natural exiſtencia da forma , ſeparada da nia


teria; porque ſe não ſegue nenhum incommodo à
Natureza na ſeparação , e exiſtencia da forma ſem
fo materia ; havendo grande inconvenience na exiſ
tencia da materia feparada de toda a fórma : Nul- P. Soar . Lu
bım ergo ſequiturnaturæ incommodum ex eo quod for- ſitan.'in Phyl.
Tract. 1. Dile
ma ſepararetur ab omni materia ; maximum vero ex
‫ܕ‬ eo quod materia feparetur ab omni forma. E a razão, put. 2. 5. 4. n .
87.
que dà deſta grande differença he porque a forma
30 he como vida da materia, e quaſi morre , e acaba a
e elateria com a leparação da forma; porém a materia
não he vida da forma, antes a forma vive , e fe con
lerva fer materia . O meſmo Soares com Santo Tho.
maz , Telles , Hurtado , Oviedo , Arriaga , e Soares
Granatenſe , affirma, que eſta materia he da meſma

25. eſpece em todos os compoſtos: Materia , cum hæc P. Soar. Lu


tü omnibus compoſites ſit ejuſdem ſpeciei. E accreſcenta ſitan . in Phyſ.
o Padre Arriaga , a quem leguem muitos Modernos , Tract. 1. Dis
que muito mais perfeita he a materia, que pode re- put.4. Sect.i.
ceber mais formas , do que aquella , que pode re- S. 1.11.221.
ceber muito menos .
Parlando agora
da explicação da materia pri
ma , para a averiguação das formas ſubſtanciaes , be
certo , que antes dos Modernos que as negão , as
le não admittiráo os Philofophos Antigos referidos por
Ariſtoteles , como tambem as impugnão Porcio ,
o
Aphrodiſeo , Philoponio , Galeno , e outros mui
COS
ta
O
R
98 P L O G ()

tos Sabios. A razão com que os Antigos negavão


eſtas formas , he porque ſe foſſe neceſſario admits
tir fórmas ſubſtanciaes , feria para ſalvar asmuta
ções , em que hum pàov.g. ſe muda em fogo ; mas
para ſalvar , ou explicar eſta mudança ' , laõ eſcu
fadas eſtas chamadas formas , porque , como diz

Ariſtotel. 7. o meſmo Ariſtoteles , toda a mutação he de con


Meth.Tx.31 . trario , para contrario ; e a contrariedade, confor
me a boa Philoſophia , não ſe dá nas ſubſtancias ,
dà- le fomente nos accidentes. Eu porém como ve
jo muitas lubſtancias corporcas , diverſas na eſpe .
cie , como ſao o fogo , e hum cavallo , ou quals
quer outra entidade corporea , e eſta tal diverſida .
de eſpecifica não provem ló dos accidentes divers
ſos ; porque eſtes ſó induzem huma accidental dif .
ferença; nem pode reſultar da materia, por ſer eſta
da meſma eſpecie em todos os compoſtos phyſicos :
neceſſariamente devo admittir fórmas ſubſtanciaes,
Diffini - ſe a forma ſubſtancial por eſte modo : For
ma eſt ſubſtantia fimplex , & incomplecta , qua ut
actus conſtituit effentiam ſubſtantia corporeæ, Suppof
ta eſta diffiniçao , dizem os Philoſophos , que mui
fas formas ſubſtanciaes pódem naturalmente infor ,
mar não ſó a meſma materia continua , ſegundo as
ſuas diverſas partes , como vemos em huma vara
em parte verde , e em parte fecca ; porque lendo
a ſua materia total , e continua , na parte fecca
náo he vivente a ſua fòrma , e na parte verde tem
fòrma vivente ; mas tambem a meſma materia , ſe
gundo a meſma parte ; porque no meſmo logeito , e
Iegundo a meſma parte, pòdem naturalmente eſtar
juntas muitas formas accidentaes, como laố Quan
tidade, Frio , Alyura , e outras ſemelhantes e
; da
17 meſ
G A L E A TO.
99

melina forte pòdem tambem naturalmente eſtar jun


tas muitas formas ſubſtanciaes , como vemos no
Ferro abrazado , no qual naturalmente ſe achão ,
juntas a forma de Ferro , e a forma de Fogo.
Com a verdade deſta doutrina, ou com a luz
deſta verdade , ſe defcobre , e le deſterra a falſidade
do argumento do Padre Kircker ; porque ſe todas
as materias de fe
que compoem os corpos phyſicos
fað da meſma eſpecie : Materia , cum hæc in omnibus
compofitis fit ejuſdem fpeciei ; todas tem a meſma capa
cidade, aptidaó , e diſpoſiçaõ , para receber quals
quer forma; e como he mais perfeita a materia , que
mais formas recebe , taó poſſivel he , que o pò , fóra
ma , ou alma do Ouro , ( a qual como fica prova .
do, e logo repetiremos , pode eſtar leparadado coro
po ) deixe o proprio ſogeito , e ſe introduza no
Chumbo , Eſtaoho , Cobre , ou Ferro , tendo todos
a ſua forma, como ſe introduz a forma fubſtancial
do fogo no Ferro metido no lume , deixando a pro
pria materia . Tanto podem eſtar duas formas em
hum ſó , e o meſmo fogeito , que defacto eſtao jun
tas no Ferro ardente , a forma de Ferro , e a forma
de fogo. E ſe no Ferro nao podeſſem eſtar nað ſó
éſtas duas , mas ainda mais formas , nað enſinaria o
grande Arriaga , que he mais perfeita a materia , que
mais formas recebe. Prova- ſe eſta verdade com dous

exemplos verdadeiros, ou com duas experiencias ,


que la demonſtrações innegaveis . Entre todos os
mixtos, nenhuns tem materia mais perfeita , depura
da , e pura, do que o Ouro , e a Prata. A Prata fixa,
he Ouro branco, e com a addição do Enxofre So
lar , fica perfeico Ouro . Com eſpirito de nicro be
foartico , ſe tira a cor amarella ao Ouro , e fica
bran
nij
10 ) PROLOGO

branco como Prata ,. de forte , que jà ſe não diſſolve


com a Agoa Regia , ſenáo com Agoa forte ; mas
pode-ſe tingir outra vez , e transformar em Ouro ,
que ſe diffolverà com Agoa Regia , com a qual o
Ouro lómente ſe diſſolve. , u
De maneira q e eſtas
que
demonſtrações , com que por lição de Etimullero
convence Enodato a Feyjoo , acreditáo a Phyſica
de Ariſtoteles , e a doutrina Peripatetica defende a
Hermetica Philofophia .
Agora reſta dizer ao Reverendiſſimo Padre Kira
cker , aonde eſtà a alma do Chumbo , depois que
na lua materia ſe introduzio a alma , ou forma do
Ouro. Eſtà aquella alma no meſmo lugar onde vay
parar a forma , ou alma de pão , depois que noma 1
deiro , ou cepo , ſe introduzio a alma , ou formade
fogo ; ou tambem onde eſtà a forma, ou alma do
fogo , depois de apagado , ou extincto o incendio ,
em que ardia o pão . Naó temos , Reverendiſlimo
Senhor , nenhuma neceſſidade de recorrer à impor
!

fivel anniquilação , havendo a corrupção da forma,


a que recorrem todos os Philofophos. Nenhum in
conveniente he na Philofophia Ariſtotelica , admit
tir , que a forma, que eſtava no pò do Ouro , ſe
apartou, e reparou do fogeito , fubiſtindo depois
da ſeparação , e apartamento fem logeico huma for
ma ; porque não ſó na Alma Racional , mas em ou
tras formas ſubſtanciaes , admitce Soares eſta fublifa
tencia , ſem incommodo da Natureza : Nullum ergo
fequitur incommodum ex eo, quod formaſeparetur ab
omni materia. E ſe eſte pò finalmente fora verda
deiro Ouro , e não aurifera alma , transformaria o
Ouro verdadeiro , em verdadeiro Ouro , a qual

quer Metal , como faz eſte pó , o que não conſta


por
G A L E A T O. 101

por alguma experiencia , havendo infinitas das tranſ


mutações metallicas, feitas todas pela alma do Ou
fo . E daqui le ſegue fer alma do Ouro , e não Ou
to verdadeiro . Nem o exemplo do pò da loſna , e
do animal morto , e queimado , conclue a favor de
Kircker , contra os Hermeticos , pela grande diffe
rença , que jà moſtrey com palavras do meſmo Kir
cker , havia entre o Vegetavel, e o Metallico ; por

que ainda que os Metaes , e as plantas codos ſejaő


Vegetaveis , os Metaes lao mais folidos , e com
pactos, e poriſfo capazes de ſe lhe extrahir a ſemen
te, e alma, para com ellas fazer as Metallicas tranf
formações , as quaes fe não podem extrahir das
plantas; porque antesda ſua extracção , Ihas cor
rompe aviolencia do fogo.
Táo forte , concludente , e indiſſoluvel pare
ceo o ſobredito argumento aoReverendiſſimo Kir .
cker , que por dar com elle aos Hermeticos por con
vencidos na fua ignorancia , os injuría de neſcios
com.eftas indecentespalavras , que eſcreveo por rea,
mate da victoria , e coroa do imaginado triumpho:
Vides igitur , quam ftolide philofophentur ý , qui talia
ex afinina quadam ignorantia fieri poffe imperitis per
fuadere contendunt. Bem le vè nefta repoſta , que
os Hermeticos filoſofaó confòrme o Syſtema de Ariſ.:
toteles : e le com tudo os Hermeticos fao neſcios
neſte modo de filofophar, tambem os Ariftotelicos
moſtráo grande necedade nafua Philoſophia . Não
parecco ao Padre Kircker afinina a doutrina Chy
mica quando a eſtudava : Ego fane tunc temporis Chy
mia ſtudio intentus ; porque com experiencias redu
zio a practica o ſeu eſtudo : Audierat is de meis cir .
ca hoc ftudium experimentis. E ſe encão lhe não pa
receo
IO2 PRO LI O. GO

receo afinina eſta doutrina', pois a eſtudava , e prač


Eticava ; como agora chama aſinina a huma Phi
lofophia , em que empregou canto eſtudo , e tra
balho ? Por hum de dousmodos , ou por ambos ,
poderia o Padre Kircker julgar , que era alınina
eſta Philoſophia Hermetica: pela razão , ou pela ex
periencia , ou por cudo junto ; e por nenhum def
tes modos o podia julgar : pela experiencia não ;
porque elle não labia com certeza , que fizeſſe com
todo o acerto a operação da Arte Magna , em que
muito bem ſabia , qne baſtava qualquer pequeno er
ro , ou deſcuido para ſer mal ſuccedido ; e pela ra

zão muito menos; porque entendendo antes , que


podia fazer a Chryfopeia , e ſe enganou , como ago
re!
ra ſuppoem ; tambem deve ſuppor agora , que
pode enganar com a meſma razão , com que a im
pugna , entendendo agora o contrario daquillo mel
mo , que jà entendeo ; porque elle não tinha me
lhor razão em hum , do que em outro tempo . Nem
podia fazer melhor juizo ſobre a meſma materia ,
não havendo nenhum motivo , que lobrevieſſe dei
novo , para fundar nelle o ſeu deſengano.
Mas ainda que eu feri ao Reverendiſſimo Kira
cker com a lua meſma eſpada, ou como vulgarmen
te ſe diz pelos meſmos fios , para que nao imaginem CE
algumas peſſoas , que todos os Philoſophos fáo neſ
cios , applicarey concra Kircker humas admiraveis
palavras , que contra Arriaga eſcreveo Soares , am
bos douciſſimos , e grandes Philoſophos da Com
P.Soar. Luſi- panhia de JESUS : Sed unde , quæſo, hoc probat Pa
tan. in Phyfic. ter Arriaga ? Sane id liberè aſſumit. Egoægre fero,
Tract. 1. de
quod aliqui Authores, cum aliisminimè credere velint,
Princip . Difp.
2.9.4.num.85: putent nos illis adeo fácilè credituros ,non alio de titu
lo ,
G Α Σ Ε Α Τ Ο. 103

lo , nifi quod ipſi dicant , cum tamen certim fit non om


nia , quæ ipſi dicunt, effe de fide: querem dizer eſtas
palavras: Mas rogo , que medigão , porque o dele.
jo laber , donde prova iſto o Padre Arriaga ? Na ver
dade , que livremente toma eſta empreza a ſeu car
go . Com difficuldade , e muito contra minha von
tade ſofro , que alguns Authores , que de nenhum
modo querem dar credito a outros , imaginem que
nos muito facilmente os hayemos de crer a elles ,
não por outro titulo , ou motivo , fe não porque el
les o dizem , conſtandonos com tudo certiſſimamen
te, que nem tudo , o que elles dizem , he de Fè.
Ponha agora o Leitor no lugar do Padre Arriaga ,
o nome do Padre Kircker , e ficaràõ deſafrontados
pelo Padre Soares todos os Philoſophos.

S. XIII.

Eſta ſomente provar , e defender contra Kira


R cker a poſlibilidade , e certeza da infinita
multiplicação do Ouro , por virtude da Pedra Phi
lofophal, que he a Pedra Lydia , em que ſe prováo
os engenhos , e Pedra de Eſcandalo de todos os

Antagoniſtas da Chryſopeia. Nenhuma couſa pare


ceo mais incrivel ao Reverendiſſimo Kircker , do
que a virtude multiplicativa do Lapis ; porque con
forme dizem os Hermeticos , ſe todo o mar fora Mer
curio , hum ſó gráo da Chryſopeia o transformaria to
do em Ouro , como neſtes verſos cancou o famolo
Augurello.
undas

Æquoris, argentum ſi vivum tunc foret æquor ,


Omne vel immenfum verti mare poffetin aurum .
Efta
10+ P R O LOGO

Elta verdade enſinaráo os antigos Mythologicos na


Fabu'a de Midas . Por hoſpedar Midas Rey de
Phrygia a Sileno , hum dos Capicães de Bacco, con
feguio deſte Nume a virtude de transformar em Ou
ro tudo quanto cocaſſe com as mãos ; e porqueMi
das ſe vio em perigo de morrer de fome , por ſe lhe
tranſmutarem em Ouro até os alimentos, e bebidas
de que neceſlicava para ſuſtentar a vida , pedio a
Bacco lhe ciraffe das mãos à virtude de transfor
mar , e multiplicar as entidades em Ouro , e por
ordem do meſmo Bacco ſe foy . lavar no Rio Pa
Etolo na Lydia , ao qual communicou eſta aurifera
propriedade , porque logo que com as mãos co
cou às ſuas agoas , começou eſte rio - a criar aurife .
ras areas , depois de transformadas as ſuas agoasem .
correntes de Ouro. Com a meſma certeza cransfor

mariáo as mãos de Midas as agoas do Oceano em


Ouro , com que em Ouro cranlmucàrão as agoas do
Pactolo ;; porque cada hora eſtamos vendo , que

huma pequena porção de fermento , levéda , azéda,


e fermenta huma grande quantidade de maſſa. Hu-,
ma pequena luz ſe multiplica em luzes infinitas ,
quando a huma véla acceza fe applicão outras vé
las . Qualquer gráo de veneno corrompe, e apeſ
ta hum grande corpo. Hum indiviſivel miaſma do
contagio , inficiona a todo o Mundo. Sem reflectir

neltes , e outros exemplos naturaes , infere o Re.


verendiſlimo Kircker , que ſe a Tinctura Univerſal
pcdeſſe fazer eſta extraordinaria converſaó , e mul ,
tiplicaçao do Ouro , que tambem huma ſó gota de
eſpirito de vinho bem alcoolizado , podera tranſ
mutar em generoſo vinho lium grande tonel de
agoa , couſa que até agora não ſe provou com a ex
perien
G A L Ε Α Τ . Ο. 105

periencia , e he repugnante à razão ; por iſſo , diz


Kircker , ninguem poderá deſtruir elta inſtancia :
Sed , & ſi quis vinum fepties cohobatum ad ſummam
fubtilitatem reduceret , inde pariter fequeretur , illud
elixiris vita , vel unicam guttulam integrum aqu.ee
dolium in vinum nobiliſſimu :n tranſmutaturum , quod
& rationi, & experientia repugnat ; neque quiſquam
banc inſtantiam evertere poterit. Mas com licença de
tão grande Philoſopho , e Chymico cão experimen
tado , hà grande diſparidade neſta comparação ; por
que hà grande differença entre o vinho , e os Me
taes , e por conſequencia entre a Tinctura Univer
fal , e o Eſpirito de vinho . Aʼlem de que , o Eſpi
rito de vinho pelas repetidas cohobações , e depu
rações ſempre ſe purifica das ſuas impuridades , e
algumas vezes ſe converte em terra , como com au
thoridade , e experiencia de Mangero fica prova
do ; e a Tinctura Univerſal não ſe depura , antes
cada vez mais ſe aperfeiçoa , atè chegar à ſua inal-,
teravel pureza .

Nem a Chryſopeia ſe faz de Ouro , ou de ou


tros Metaes , ſenão do principio dos Metaes, que
he o Mercurio Philoſophico, ou da Semente do Ouro ;
porque todas as ſementes Vegeraveis produzem in
finitamente outras ſemelhantes ; e não ſe pode ne
gar o meſmo effeito nos ſeminariosmetallicos , que
fað innegaveis , como por lição de Santo Agoſtinho
Ludovic . de
prova doutiſſimamente Ludovico de Comitibus :
Comit. apud
Quod & nobiſcum apertè fenfit Divus Auguftinus ,
Manget . tom .
qui lib. 3. de Trinitate , omnium quippe rerum que cor 2. Bibliothec .
poraliter , viſibiliterque nafcuntur, occulta quædam Chem . lib .3.
feming in iftis corporeis hujus elementis latent ; & lib. Sect. 3 . ſubr.
de Civitate Dei. Infunt in rebus corporeis per omnia 8. . Nos fol
cle- 798 ,
106 PRO LOGO

elementa quædam occultæ ſeminariæ rationes , quibus


cum data fuerit opportunitas temporalis , & caufalis
prorumpunt in ſpecies ſuismodis , finibus. Ilto le con
firma com a grande authoridade de Ariſtoteles ; por
que no livro de Mirabilibus auſcultationibus affirma,
que na Ilha de Chypre ha hum territorio ', onde os
naturaes da terra ſemeão Ferro , dividido em pedas
ços , e com o beneficio da rega produz , e creſe
ce como as plantas , (vejao ſe he Vegetavel) de for
te , que a leu tempo ſe faz colheita de Ferro , cos
mo a fazem os Lavradores em outras terras de tri
go , cevada , e outros fructos. E pelo contrario o
Eſpirito Univerſal prepara -ſe do vinho , e das fuas
fezes , ficando por eſte modo o leu Sal volatil ſem
actividade para transformar em vinho hum tonel de
agoa , como tranſmutão em Ouro , e Prata os ſeus
feminarios a todos os Mecaes im perfeitos, e impu

ros. E para que o Reverendiſlimo Kircker não pre


fuma, que tem convencido aos Hermeticos de nef
cios , e de ignorantes , por affirmarem ſeriamente ,
que hum ſó grão da Tinctura Univerſal pode con
verter em Ouro todo hum Oceano de Mercurio,
lembre-ſe , de que elle , com toda a Eſchola de Ariſ
toteles, admitte augmento ſubſtancial , o qual co
mo ſe vè da ſua difinição , não he outra couſa fe
não hum movimento de menor para mayor fubf
cancia : Eſt motus à minori ad majorem ſubſtantiam ;
o qual movimento he verdadeiramente o effeico
mulciplicativo da Chryſopeia. Até os meninos da
Efchola fabem muito bem , que huma pequena faiſ

. ca de fogo excita muitas vezes hum grande incen


dio , a que os meſmos Philoſophos chamáo agge
was
neração. E daqui ſe moſtra facilmente, como hum
ſ6
G A L E A TO. 107

ló grão da Chryſopeia pode tranſmutar hum Ocea


no de Mercurio em hum Mar de Ouro , e outro
gráo de Argyropela pode transformar hum Mar de
Azougue em hum Oceano de Prata . E porque ?
Porque tambem ſe todo o Mundo fora hum monte
de polvora , huma ſó faiſca de lume o poderia con
verter todo em fogo .
He certo ,que philoſophicamente eſtà prova
da a poſſibilidade da infinita multiplicação do Ou
ro , e Prata, por virtude da Argyropeia , e Chryſo
peia ; mas para que não imagine algum Critico , que
eu não entendi neſte ponto a doutrina dos Herme
ticos , como Zwelfer moſtra , que o Reverendifli
mo Padre Kircker não entendeo a Bernaudo a ref. T
peito deſta multiplicação : Sed ſolum , ut remonftra
rem Bernaudum à R. P. Kirchero indebitè refutatum ,
ac notatum fuiſſe ; cujus mentem , ac fenfum non erat
affecutus ; advirto aos Leitores , que por muitas cx
periencias , que ſe tem feito , cada grão da I inętu
ra Univerſal transforma em fina Prata , e puro Ou
ro dezeſeis mil quatrocentos e ſerenta grãos de ou
tros Metaes , conforme a demonſtração , que ſe pò
de ver em Zwelfer , ainda que neſta circunſtancia
ſe acha grande variedade nos Eſcritores Chryſopeyos,
originada ſem duvida da varia , e differente prepa
ração , que cada hum faz dameſma Tinctura ; por
que no Ouro , Mercurio ', Cobre , Vitriolo , An
timonio , Sal , Enxofre , Pedra hume, Arſenico ,
Salgema, Pedra Iman , Solimão , Tincal , Sal ar
moniaco , Sangue, Mumia , Eſperma, Ovos , Vi
nho ', Ourina , Ferrugem , Sal tartaro , Manna ,
Lunaria, Sangue de Drago , Ceo terrificado , Pu
to da Natureza , e outras coufas creadas, e deſco
o ij nhecis
fio PRO LOGO

com tudo nað elterilizou o ſeu errado juizo , e a fal


ta da ſua viſta a grande fertilidade , que depois
teſtemunhàrao tantosolhos , e explicàraó facilmen
te vulgares entendimentos.
" ! Na expoſiçað do Plalmo ſetenta e hum eſcrea
ve Jacobo ,Biſpo Chriſtopolitano , que a Meſa do
Sol taõ celebrada no Mundo , como eſcrevem He
rodoto , Celio Rhodoginio, Pomponio Mela , S.Hie
ronymo , e outros Authores , he a Zona Torri
da , que fica entre os dous Tropicos de Cancro ,
de Capricornio , pelo dilatado eſpaço de cincoenta
e fete gràos de largura; porque 'na terra ſogeita à
dita Zona, como affirma Bluteau , os frutos naſcem
com mayor abundancia , e perfeição do que em ne
nhuma outra parte do Mundo .
6. Com eſta' fertilidade compete a freſcura. Em
muitas terras , que ficão de baixo da meſma Zona,
recebendo os rayos do Sol perpendiculares , fað taố
frequentes as chuvas , taó numeroſos , dilatados, e
caudaloſos os Rios , que nað ſó temperaó o calor
do Sol , mas como vemos na America , fazem frefu po
co , e delicioſo o Paiz . Iſto ſe experimenta-ſempre
na Aſia ; porque em muitos Reynos della , e parcia
cularmente no de Golcondà , e na Cidade de Goa ,
em que correndo'o Sol o Signo de Tauro , tem fc
bre ſi perpendicularmente eſte Planeta , ſe levan
tao , e le diſſolvem tantos vapores , que quaſi todo
o mez continuað as chuvas; porque da meſma for
te , que chegando a força do calor à parte luperior
do lambique actrahe para fi codo o licor, que fica
va no fundo delle , e o torna a mandar desfeito em
orvalho ; aſſim o Sol feito 'Vertical attrahe a fi os
Vapores , que diſſolvidos em chuvas rega ) , ferti
lizaó ,
G A L E A T O : III

lizaő , e refreſcaó tanto as terras , que em muitos


lugares daquelle paiz , reputado por ardente , hà frio
exceflivo . Na Provincia de Quangſi do Imperio da
China , e perto da Cidade de Toliņ hà hum Mon
te , a que chamaó Han , que na lingoa da terra quer
dizer Frio, porque nelle he o frio exceſivo , ainda
que , como advertio o grande Bluteau , fica debai
xo da Zona Torrida.

Antigamente negavao os mayores Theologos a


exiſtencia dos Antipodas; porque nao eſtava ainda
viſto , e deſcuberco o Novo Mundo ; e não impedia
a ſua douciſſima negação , que os Antipodas exiſtil.
fem , e viveſſem no melmo tempo na ſua America.
O primeiro, que neſte Hemisferio teve alguma idea
dos Antipodas foy Virgilio , Biſpo de Salisburgo,
que no anno de 745. falloy publicamente neſta mae
teria; mas com caó pouca aceitação deſta novidade,
que à inſtancia de Bonifacio, Bifpo de Moguncia ,
perante o Papa Zacharias , foy Virgilio accuſado ,
e finalmente , como referę Blureau , condemnado
por Herege , por dizer que havia Antipodas. Hoje
ſe poderà rir Seneca dos homens , que antigamen
te zombavão dos vaticinios , que elle fazia do Novo
:
Mundo. E como ficario confuſos , envergonha
dos , e convencidos os Lactancios , os Juſtinos, os
Baſilios , os Chryſoſthomos , os Ambroſios , os
Agoſtinhos, os Hilarios , os Procopios , os Theo
phylacos , e os Euchymios , fe no tempo , em que
elles negaváo com grandes argumenços , e ſubtilif
fimos diſcurſos a exiſtencia dos, Antipodas , co
mo com apparentes razões contradizia Cornelio a

Chryſopeia , appareceſſe tambem na ſua prezença hum


Tapuya bucal , que ſem dizer huma ſó palavra ,
lhes
1
112 PROLOGÓ

lhes fizeſſe tapar á boca ; e callar a lingoa , confef


ſando todos no ſeu coração o engano do ſeu en
tendimento . Ninguem preſuma tanto do ſeu diſ
curſo , nem ſe fie tanto da ſua viſta , que entenda,
que não exiſte no Mundo ſenão aquillo , que def
cobre a ſua perfpicacia , e ſe conforma com o ſeu
juizo ; porque naturalmente exiſtem niuitas coulas,
que não alcança ſó o entendimento , nem ſe conhc
cem facilmente eſtando diante dos olhos.
Nenhuma couſa deſcobre mais difficultola .
mente a nofla viſta , nem percebe menos o noſſo en
tendimento, do que os Paradoxos da Phyſica, e da
Mathematica , e ainda que os olhos os não deſcu
brão , nem o entendimento naturalmenteos conhe
ça , ' realmente exiſtem eſtes vinte e dous Parado
xos : o fogo elemental não he quente em ſummo
gráo : o ar antes ſe deve julgar frio , do que calia
do : a agoa, conſiderada conforme a ſua natureza,
antes pede ſer ſolida , do que fluida : ou todas as
qualidades ſao occulcas, ou nenhuma o he : he fal
10 , geralmente fallando , que a vircude unida feja CE
mais forre : ' o Sol , em virtude da ſua propria diſ
poſição intrinfeca , aquenta , e allumea com deſi
gualdade em differentes tempos : o Sol , fazendo
reflexão de corpo concavo , mais aquenta no In
verno , que no Verão , e tanto ma.s , quanto o
tempo eſtiver mais frio : a extenção da chamma, ou
labareda da luz até cima , ou para o ar , em forma

pyramidal, cu conica , le violenta à melína chamma:


he duvidoſo ſe os corpos graves , como pedras ,
fou globos de Chumbo , apartados a huma grande
diſtancia da terra , tornarào a cahir nella : na com
polição de todos os Vegetaveis entra alguma por

çao
Į G Α Ι Ε Α Τ Ο. 113

çao metallica : ſem fundamento , e ainda contra to- ,


da a razao ſe attribue ao Sol a producção do Ouro :
he poſſivel reſtituir naturalmente a viſta a hum ce
go : faó poſſiveis duas linhas, que continuadamen
ce ſe vaó chegando cada vez mais huma à outra ,
e que por mais que ſe prolonguem , nunca cheguem
a tocarſe : duas paredes de hum edificio , le eſtaó
feitas a prumo , nao podem ſer paralellas , ou equi
diſtantes ; porque he preciſo , que diſtem mais hu
ma da outra pela parte ſuperior, que pela inferior:
he impoſſivel ſaber ſe os objectos ſe nos repreſentað
aos olhos conforme a verdadeira grandeza , que tem
em ſi meſmos : nenhum objecto le vè clara , e dif
tintamente , ſe não com hum ſó olho : os dias natu
raes faó deſiguaes entre ſi : ſuppoſta a duraçao do
Mundo , virà tempo em que gele , ou geye pela Cas
nicula : a Terra nao he de figura eſpherica : os cor
pos graves não deſcem por linha recta atè o centro
da Terra : ſe o movimento dos corpos graves fofa
fe uniforme, iſto he , que ſe não aceleraſſe na deſa
cida , huma pedra de moinho , movendo -ſe conti
Ruadamente por eſpaço de trinta mil annos , naã

i baixaria hum dedo : o Sol finalmente ſe vè ſobre o


horizonte attes de naſcer , e depois de ſe pôr.Tu .
do iſto, ſendo viſivel , eſtà occulto aos noſſos olhos
e lendo percepcivel, nað o comprehendem naturals
mente os entendimentos ; porém com a luz , e co
nhecimento da Dioptrica , Statica , Geographia ,
Aſtronomia , Optica , Geometria , e Phyſica os en
tendimentos o percebem , e os olhos o conhecem ;
e daqui le ſegue , que não ſomente exiſtem na rea
lidade muitas couſas , que ſendo viſiveis ſe nao

yiaó , e lendo intelligiveis ſe nao entendião ; maş


tam ,
P
114 P R O. LO G. O

tambem , que ſem eſtudo da Philoſophia Hermetica,


e pratica da Arte Magna , não podem os olhos ver,
nem os entendimentos deſcobrir o myſterioſo ſegre-,
do da Chryſopeia ; porque tanto excedem a eſphera
dos olhos , ea capacidade dos entendimentos osmylar,
terios da Chymica , como os Paradoxos da Phyſica, 2
e Mathematica ; e como ſem eſtas ſciencias os enten :
dimentos , e os olhos eſtáo cegos , tambem ſem Chy
mica nao podem osMorcegos , ou mòrcegos ſerem
Lynces.

S. XV .

Enos difficulta a exiſtencia da Pedra Philos


Mi sono digraudte ,mitencia de Palma de lacom
tificial maravilha ; porque maravilhas mais raras ,
myfterios mais occultos, aſſim criados pela Natu
reza , como feitos pela Arte , eſtáo vendo os noſſos
olhos , explicando os Philoſophos, e referindo os
Hiſtoriadores , os quaes a todos parecerião impoſſi
veis, le os não enxergaſſe a viſta , declaraſie a Phi
loſophia , e publicafle a Hiſtoria. Taes faó a Phe
nix , o Unicornio , a Salamandra , o Baſiliſco , o
Iman , a Nepenthes , a Remora , a Baaras , a Helio ,
tropia, a Turqueza , a Helices , e o Carbunculo . Mas
deixando eſtes grandes prodigios da Natureza , a
que cada hum dará o credito , que lhe parecer , e
diſcorrendo por outras maravilhas naturaes , e do
artificio , que ninguem pòde negar , he certo , que
{ e ellas exiſtem , fendo tao extraordinarias , e porten
tofas , que nao he argumento contra a exiſtencia da
Chryſopeia ſer huma Pedra artificial , e peregrina .
Na China creou a Natureza a famoſa Raiz chama
da
G A L E A TO. 115

da Ginſen , ou Ginſam , tão rara , e admiravel , que


luz de noite, comoEſtrella , e deſapparece de dia , co
mo ſombra , mata de repente a quem a colhe , e di.
lata a vida a quem a toma ; e por ſuas grandes , e
raras virtudes ſe vende na China , e na Europa a
pezo de Ouro . Em varias partes do Mundo pro
duzio a Natureza muitos Phoſphoros , que luzem de
noite , como o Pyrliampo ; mas ainda lao mais brie
lhantes , e raros , os que tem inventado a Chymica .
Luzem de noite, como fogo, queimão como lume,
brilhaõ como diamantes, e vibra ) como rayos. Fa
zem os Hermeticos eſtes Phoſphoros', como a Pedra
Philofophal ; porque para a ſua compoſiçaõ elegem
pedras mineraes , Ourina humana , Sal negro , San .
gue , Terra , Agoa forte , Ouro , e Pedra de Bolos
nha . Saó muito celebrados os Phoſphoros feitos da
Pedra de Bolonha ; porèm excede a eſtes o Ouro
diſſolvido , ſegundo as regras da Arte Magna ; por
que ſe converte em Phoſphoro tao claro , e tão raro ,
que com a luz , que lança , ſe pode facilmente ler;
e eſcrever de noire. João Fernelio, Medico de Henri
que II . Rey de França , moſtrou com admiração da
Corte de Pariz huma pedra , que poſta em lugar eſa
curo , brilhava como luz. No principio deu a enten
der , que lhe viera da India ; porque das couſas , que
vem de longe fe faz melhor conceito , e mayor ef
timação . Paſſado algum tempo , declarou , que era
compoſiçaõ ſua ; e eſtava refoluto a enſinar o ſegre
do della, mas não lhe deu a morte tempo para dar
a luz eſte parto do ſeu grande engenho. Muitos ou
tros Phosphoros inventou a curioſidade dos moder :
nos . O Phoſphoro Hermetico de Balduino , a que
chamaó o Iman da Lua , expoſto ao Sol , ou a hum
pij lume
116 P R O LOGO

lume claro , em hum vaſo de barro , attrahe para ri

a luz , e em lugares eſcuros a eſpalha . Não fallo nos


Phoſphoros fulgurantes de Daniel Crafts , Brandii ,
Homberg , Lemery , e outros Neotericos ; porque
com demonſtrações mais vulgares , e nao menos lu
minoſas , quero moſtrar , que entre nos exiſtem mui
tas couſas, ſem embargo de ſerem admiraveis , e
myſterioſas
.
Nenhum Philoſopho daria credito a quem lhe
diſleſſe , que dentro na agoa , e no meyo da neve ,
ſe accende , e conferva o fogo , e que com a luz
de huma cocha em hum inſtante ſe pode atear no
meſmo Ar hum grande incendio ; e lem embargo do
Ar ſer incapaz de ſe inflammar , e reſiſtir a neve , e
a agoa ao fogo , vemos muitas vezes nelles atea
dos prodigioſos incendios. A Camphora criada pela
Natureza , ou feita pela Arte , mantem , e conſer

xa na agoa , e no meyo da neve hum fogo, que ſe


pão apaga. Procede eſte rariſſimo effeito da ſua fubf.
Iancia ſer ſummamente tenue e pingue , como a
experiencia tem moſtrado ; porque ſe le lançar del
la em buma bacia ſobre agoa ardente , e ambas fer
Yerem até ſua ultima evaporação , dentro em lugar
eſtreito , e bem fechado , entrando alguem neſte lu .
gar com huma cocha acceza , todo eſte Ar cerrado
le converte ſubitamente em fogo , que ſe deſvane .
ce , como relampago , fem fazer damno à caſa , nem
offenſa aos circunſtantes ; porém moſtrando , que
ſe inflamma o Ar , e que dentro na agoa arde o fom
ge . Para cada hum conhecer , que no Ar ſe atea a
fogo , baſta tocar huma pederneira com hum fu
zilde aço ; porque com elte movimento de tal foro
te fe conyerte 9 Ar em fogo , que não torna mais
a les
G A L E A TO . 117

a fer Ar , como dizem os Profophos : Aer cum P. Soar.Luſi


convertitur in ig nem , definit efle aer ; e ſe os noſſos tan . Tract. de
olhos não viráo todos os dias eſta rara, e ſingular gen. & Cor
rupt. Diſp.2.
maravilha , como ſeria poſſivel , que osPeripate. Sect. 1. fol. 6.
ticos creſſem a quem lhes difſeffe , que de hum
ferro fecco , e frio , e de huma pedra fria, e ſecca,
tocados com grande velocidade , hayia de fahir à
viſta dos olhos verdadeiro fogo , accendendo , e
abrazando a Ar , ſem embargo de reſiſtir aſymboli,
camente com a ſua humidade ao incendio ? Pois feos
olhos eſtão vendo , os Philoſophos explicando , e
os Hiſtoriadores referindo eſtas maravilhas cáo ra
ras e myſterioſas , aſſim da Natureza , como da
Arte , das quaes duvidaria o entendimento , ſe as
não vira eſcritas na Hiſtoria , provadas na Philoſo
phia , e patentes à viſta dos olhos ; porque razão o
faro , e myſteriolo da Pedra Philofophal ha de fer ar,
gumento contra a ſua exiſtencia ?

S. XVI .

Orèm jà eſtes Phenomenos da Natureza , e


P da Arte não faó os mais incriveis ; porque em
fim ha peſloas, que teſtemunhão tellos viſto , e pò.
de a fé humana certificar o entendimento dos ho
mens , que os não virão , paraque creya ) a ſua ex .
iſtencia , aſlim como crem , que ha Pariz , Roma,
Vienna , e Conſtantinopla , os que nunca fahirão de
Lisboa. Mas o que de nenhuma ſorte ſe pòde crer ,
be , que haja Pedra Philofophal ; porque entre muitos
homens ainda ſe não vio . Ainda quando ninguem ti
veſſe viſto a Chryſopeia , não argumentava bem con ,
tra a ſua exiſtencia , lo com o fundamento de a não
118 PRO LOGO

ver ; porque muitas couſas criadas naturalmente


exiſtem , e andão diante de noſos olhos , fem que
as vejamos , nem eñtendamos. Fallemos primeiro
com os Philoſophos , e depois fallaremos com to
dos. Contra o celebre Axioma da Phyſica de Ariſ
toteles : Natura non patitur vacuum , deſcobrio o
Padre Valeriano Magni , Capucho Polaco , hum
ſegredo , em que com o pezo do Ar , e por meyo
do Azougue , ſe acha , que ha Vacuo no Mundo .
Antigamente tinha moſtrado Epicuro , que ſem Va
cuo fe não podia explicar o movimento , nem a
rarefacção dos corpos. A machina Pneumatica de
Roberto Boyle he experiencia evidente da exiſ
tencia do Vácuo diante de noſſos olhos ; porque
com ella ſe attrahe o Ar de hum vaſo , de tal for
te , que eſtando dentro delle qualquer animal , com
a falca do Ar logo morre . E ainda que ( abſolu
tamente fallando ) le tenha por certo , que à noſſa
viſta não ha Vacuo ſenſivel, porque não ha eſpa
ço algum , que não tenha huns corpuſculos cáo te .
nues , e cão fubeis , que ſao imperceptiveis ; enten
de - ſe porém , que ha huns pequenos Vacuos inſen
fiveis , e meridos entre as partes dos corpos ; e a
razão em que ſe funda eſta verdade , he , porque não
he poſſivel, que ſem os ditos Vacuos poſſa haver
movimento algum nos corpos . Tudo iſto hà , e não
ſe percebe ; como tambem ſe não comprehende ,
nem fe de cobre o que todos quaſi ſempre eſtamos
obfervando .

Se a hum Peripatetico , e a qualquer outro ho


mem affirmaſſe hum Adepto , que havia no Mundo,
e andava ſempre em noſſa companhia huma vulgar,
e inviſivel entidade , leve , veloz, incorporea , e
fem
G A LĘ AT 0.619

ſem eſpirito , com trinta e tres figuras , com huma


das quaes cahe muitas vezes a plumo do Zenith , ou D.R. Bluteau
ponto mais alto do Ceo , e fem viver , comer , be- Vocab . Por
ber , dormir , nem deſcançar hun inſtante , tem tan- tug. Tom . 8 .
fol. 406.
tas forças , que ſem mãos derruba edificios, arranca
arvores, deſcompoem homens, acouta brutos, edel
barata Exercitos: ſem pés , nem azas , corre todo o
Mundo em hum momento , penetrando todos os
Reynos , inveſtindo brechas, entrando nas Cidades ,
occupando todas as caſas , ſem perdoar às Sagradas,
nem profanas, revolvendo tudo , apagando luzes ,
accendendo fogos , ateando incendios , introduzin
do peſtes, communicando epidemias, extinguindo
contagios, ſeccando a terra , fertilizando os campos,
e deſtruindo as ſearas : ſem embarcaçað navega Rios,
lagoas, e Mares , e paſſeando à tona da agoa , levan
ta as ondas , cava os Mares , ajuda a navegaçao , e
ſobyerte Navios , e Armadas : e ſubindo da terra ao
Ceo , donde muitas vezes tem cahido, tolda os ares ,
eſpalha as nuvens , facilita, ou impede o precipicio
da chuva , e do orvalho : poem ſobre nós, ou apar
ta para região mais diſtante as trovoadas , ajuda o
movimento dos rayos , e he a Authora de todas as
tormentas , e tempeſtades : e nenhum delles adver
siſſe , ou não tiveſſe nunca experimentado , que
couſa era , e os effeitos, que no Mundo caulava o
Vento , que ainda ſerião mayores , pois faria rodar
todo o Globo Terra -quco , ſe o centro da Terra
não reſiſtiſſe com o magnetiſmoao ſeu impulſo , ha
via de imaginar eſte Philoſopho , como tambem
qualquer peſſoa, que eſta nunca viſta entidade era
algum Demonio dos precipitados , o Ente de Ra
Lão dos Dialecticos , a Chymera dos Mythologi
cos,
120 P R OL: 0 G 0

cos , ou a Chryſopeia dos Hermeticos. E porque to


dos os dias eſtamos não vendo , nem entendendo ,
mas experimentando os effeitos deſte rara maravi
lha mais da Omnipotencia , que da Natureza :
Producit ventos de theſauris, não nosadmiráo , nem
paſmáo os ſeus extraordinarios , e incomprehenſi
veis impulſos, a que não dariamos nenhum credito,
fe nos entraſſe eſta noticia ſó pelos ouvidos. Pois le
o Vento , coula cáo vulgar , tão commum , e tão co
nhecida , he ſuperior à viſta mais aguda , e à mais
perſpicaz intelligencia , debalde ſe canção os Phi
loſophos , e os outros homens em eſpecular , e
averiguar outros myſterios , e ſegredos da Nature
za , e da Arte , muito mais aparcados do ſeu co
nhecimento , e comprehenſaõ ; porém não devem
negar a ſua exiſtencia, ainda que, como a do Ven .
to , e a do Vacuo , a não entendão , nem vejáo.

S. XVII.

A’ me nao admiro dos que negão a Pedra Phi.


lofophal, porque a náo virão, nem entenderão ,
JA
fena ) dos que a contradizem , por nað adverti
rem no meſmo, que eſtão vendo. Os Philoſophos
dizem , que huma contraditoria nað cabe na elphe
ra dos poſliveis ; e eu digo , que cabe no circulo de
feus olhos . Vem , e juntamente nað vem ; porque
vem , e não advertein ; e vendo , lem advertirem no
que vem , eſtão vendo , ſem verem os ſeus olhos.
Aſſim vião , e nað vião os Soldados d'ElRey de
Reg . 4. 6. 13 . Syria ao Propheta Eliſeo , os moradores de Sodo
Genel.19 . 11 .
Luc. 25.16 . ma a porta de Lot , e os Diſcipulos a Chriſto no
caminho de Emaùs : elles não vião o que vião ;
por :
GA L Ε
E A
Λ Τ Ο. 121

porque lhes confundio Deos as eſpecies ; e os olhos


fem confuſað , nem variedade das eſpecies , não vem
o que eſtão vendo , só por deſacrenção , e diverti
mento da viſta. Elta he a energia do intuemini ad
vidandum do Propheta Ilaias, e do attendite , é vis Iſai. 41 , 18 .
dete de Hieremias Propheta ; porque muitos olhos Hier. Threr
não vem , por não accenderem , nem olharem para 1.12 .
o meſmo, que eftão vendo. A Nim como ha muitos,
que olhão para cegar , que faõ os que olbão ſem
tento ; alim ha muicos , que vem ſem olhar , por
que vem ſem attenção. Não baſta ver , para ver ;
he neceſſario olhar para o que ſe vè. Não vemos as
couſas , que vemos, porque não olhamos para el
las. Vemollas fem advertencia , e ſem attenção ; e a
meſma deſattenção he a cegueira da viſta.
Sem nenhuma advertencia affirmáo os Philo
fophos , que não ha nenhum corpo leve
, porque
todos com o ſeu pezo bulcão o centro da terra , e
pão podem ſuſpender.fe no Ar, ainda que ſejão tão
leves como huma penna ; e de muitas , e innumeran
veis pennas veſtidos , vemos povoada, e cruzada a
região do Ar , com os corpos das Aves , os quaes
pequenos, e grandes , todos faó graviſſimos. NoAc
ſe ſuſpende o Globo Terraquco , que, ſegundo a opi.
nião de alguns Geometras , tem nove mil legoas de
circuito , e vinte e cinco milhões, ſetecentas , e fe .
tenta e tres mil legoas quadradas.No Ar le fufpen .
dem as Eſpheras , cos Orbes Celeſtes, e toda a gran
de machina do Univerſo . Tudo iſto fað maravilhas
da Omnipotencia Divina , que yè , e não adverte,
nem entende a noſfa Philoſophia. Vemos, que voão
as Aves , e não vemos , nem entendemos como ſe re ,
moncão : vemos ,que ſe elevão nas pennas , e não ver

mos ,
122 PR'O LOĠ Ô

mos , nem attendemos como ſe ſuſpendem nas ažas .


Cada Ave que voa , he hum agradavel eſpectaculo
da viſta, e defattendido enigma dosolhos . Naó aca
bamos de ver , o que ſem attenção vemos voar. Pare
cenos muito facil o meſmo, que para Salamão foy
Proverb. 30. difficil: Tria ſunt difficilia mihi, & quartum penitus
18. 19 .
ignoro : viam Aquæ in Cælo ; porque a ſua adver
tencia reparou com grande attenção na difficuldade
do voo , e a noſſa deſattenção vè remontár huma
Ave , ſem fazer neſta difficuldade nenhum reparo.
Para quem não adverte no que vè , ainda as
couſas mais vulgares ſað enigmas , e myſterios. Quem
crera ances de o ver , e advercir, que era poſlivet
huma Arte , por virtude da qual os olhos ſupprem
com ventageris o natural officio dos olhos ? Huma
Arte , que dà eterna permanencia à volatil inconf
tancia da voz ? Huma Arte , que faz fallar as pedras,
os troncos , as caſcas das arvores , peiles de brutos,
e retalhos de panno de linho : Huma Arte, por quem
he mais cloquente a mão , do que a lingoa ? Hura
Arte , com a qualhum homem , ſem lahir do ſeu apo
fento ', faz'entender os leus penſamentos em todo
o ambico do Mundo ? Huma Arte , pela qual, ſem
fallar con ninguem de perto , fe falla com qualquer
peſſoa deſde Heſpanha à China ? Huma Arte , com
a qual os morcos ſem horror fallão aos vivos , e os
vivos cein noticia de quanto ſabenios morcos ? Hu
ma Arte , por quern ſe pode dizer , que ſe labe tu
do o que le ſabe, pois ſem o ſubſidio dà Eſcritutura,
orgão das ſciencias ,que haveria no Mundo , como
advertio Feyjoo , ſenão ignorancias ? Sem o Leitot
advertit 'no que eſtà vendo , ou no que eſtá lendo ,
he impoſlivel deſcitrar eſte enigma; porém ſe o vit
com
G A L E A T 0; 123

com attenção , he im poſlivel , que o não entenda ,


Com eſta myſterioſa clareza deſcrevem os Herme
ticos a Chryſopeia , mas por falta de advertencia , no
deſcobrem os Leitores o ſegredo ; porque hà hc
mens táo cegos, com os olhos abertos , que neni a fi
proprios ſe conhecem , como experimentàrão mui
tos á cuſta da ſua vida no celebre enigma da Esfinge.
Juno inimiga dos Thebanos ( ſegundo aMytho
logia ) fez naſcer perto da Cidade de Thebas hum
monſtro com roſto , e voz de mulher moça , cor
po de cáo, cauda , e garras de Leão , azas de Aguia ,
é unhas de Harpia . Eſta he a famoſa Esfinge , que
aos paſſageiros propunba queſtões enigmaticas , e
com tanta difficuldade , e tyrannia , que matava aos
que as não ſoltaváo. Com eſte perigo ninguem ſe
atrevia a paſſar à Cidade de Thebas , que tinha
jà os contornos deſertos , e deſpovoados . Conſul
tado o Oraculo , refpondeo , que o unico meyo ,
para ſe livrarem os homens deſta calamidade , era
interpretar o ſentido deſta enigmatica queſtão da
Esfinge : Qual era o Animal , que pela manhãa an
dava com quatro pès , pelo meyo dia com dous , e com
yo , ſe
hum Edicte " La

cou em toda a Grecia , prometteo renunciar a Co


toa , e dar por Eſpoſa a Viuva do dito Layo , cha
mada Jocaſta, ao interprete deſte enigma. Naquel.
le tempo hum Principe moço , chamado Edipo , quc
foy criado na Corte d'ElRey Corintho , ſoltou o
enigma, dizendo , que eſte Animal era o Homem ,
porque na ſua infancia andava de gatinhas , e creſ
cendo a idade , ſe punha em pè , atè que na velhice
anda ,
wij
124 PRO LÖG

andava encoſtado a hum bordáo , que com os pés


era o terceiro arrimo da ſua fraqueza. Vendo a El
finge o ſegredo do ſeu enigma deſcuberto , foy táa
grande a ſua raiva , que ſe deſpenhou da rocha ,
em que vivia , e quebrou a cabeça . Se aos Leito
res da Eſcola Herinetica , ou do Sonho enigmatico
de Enodato , faltar o engenho de Edipo para ve
rem com attenção , e advertencia no enigma def
ta Esfinge, o legredo da Chryſopeia , náo manifeſtem
a ſua grande cegueira , contradizendo o niyfterio ,
que diante dos olhos não penetrío , porque a El
finge Hermetica eſtà ſobre a ſua Pedra , para cattis
gar com a morte a todos os preſumidos, que lem
advertirem no que eſtão vendo , nem ſaberem o que
dizem , pertendem com fem razões derruballa do
feu chrono , e quebrarlhe a cabeça.

S. XVIII.

N finita couſa ſeria , ſe eu neſte lugar houveſſe


de referir todas as maravilhas da Omnipotencia
Divina , todas as obras da Natureza , e todos os in
ventos da Arte , eſcuros por deſconhecidos , e del
tilados , como no Sexto dos Topicos diz Ariſto
teles : Omne quod mfuetuin eſt, obſcurum efi , para moſ,
crar aos Leitores incredelos, que o invento da Chrya
fopeia naõ he o mais admiravel de todos; porque pona
derando as Hiſtorias , encontrarà qualquer peſſoaar
tificios mais estupendos. Ponderando como dous
corpos graves fe fazem leves , e tao ligeiros como o
rayo , quando a polvora , invencada por Bertholda
Sw.rtzio , acceza coin humafailca de fogo , deſpede
O globo de huma grande bomba , ou impelle o cor
po
.
:
.
1

GALE" A T O. 125

po de huma pezadiſſima balla. Ponderando como


de corpos pezados , como troncos , ſe levantão fan

calmas , ou torres de fumo , que voão como nu


vens , e das cinzas ſe faz vidro cranſparente , como
os Ares , que ſem embargo da ſua fragilidade, e du
reza , pela Arte ſe fez , no tempo do Emperador Ti
berio , tão ſolido , e flexivel , como ferro ; e por
que o Artifice fem a cautela dos Hermeticos delco
brio eſte raro , e utiliſlimo ſegredo a hum Empera
dor, (na minha eſtimação ) in ais tyranno do que Nes
ro , perdco a vida nas mãos deſte Barbaro , eo Mun ,
do hum tão grande beneficio da Arte , deixando ,
nos o infortunio deſte engenhoſo , e delgraçado Ar
tifice , com eſte cfcandaloſo exemplo , a importan
te advertencia , para nunca mais le revelarem fe .
melhantes ſegredos a homens ambicioſos, e Tyran
nos, para não morrerem , como Perillo , em pre
mio de liſongearem com o engenhoſo invento do
Touro de metal, à crueldade do Tyranno Dionys
fio . Ponderando o ſegredo do Padre Vicente Coro
neli , que com grande admiração do Mundo con
ferva a polvora dentro de hum ſaco , de forte que
dentro nelle reſiſte ao impeto, e actividade do fo
go, Ponderando o invento da polvora branca , que
náo faz eſtrondo,chamada por eſta cauſa pelos Fran
cezes polvora muda , e polvora ſurda , compoſta
de polvora ordinaria , miſturada com Borax , ou
Chryſocola , Sal Armoniaco , Pedra Calaminar, ou
Toupeiras vivas calcinadas . Ponderando o artificio
do Fogo Grego , que arde , e queima atè dentro no
Mar , augmentando- le cada vez mais com a agoa ,
inimiga dos incendios , e depois de acceſo , le não
apaga , deſprezando toda a induſtria humana , ace
nág .
126 P R O LOGO

não reduzir tudo a cinzas . Ponderando os Efpe


lhos Uſtorios , ou Parabolicos de Archimedes , e
de Proclo , que poſtos em parte donde recebeſſem
os rayos do Sol, queimavão Armadas , e todas as
machinas de guerra , em proporcionada diſtancia ;
como ſe vio nos cercos de Syracuſa , e de Conſtan
tinopla , aonde Archimedes queimou com eſtes El
pelhos as Nàos de Marcelo , e Proclo os Navios de
Vitaliano . Ponderando o novo invento de outros

Eſpelhos Parabolicos , tambem chamados U ſtorios,


que ha poucos annos inventou Monliur Villere , em
cujo foco recebidos os rayos do Sol , queimão no
meſmo inſtante qualquer madeiro , ainda que ſeja
huma arvore verde, como ſe fora ſequillima eſtopa :
derretendo tambem em hum minuto os Meraes, que
menos ſe liquidão : vitrificando em breviſlimo tem
po todas as materias , que o fogo mais activo não
reduz a vidro , e quando vitrifica algum corpo he
em largo eſpaço de tempo : reſolvendo finalmente
o Ouro , e feparandolhe os ſeus principios compo
nentes , que fem o Eſpelho Uſtorio he impollivel
feparar lo com o fogo , nem com outro inſtrumen
to , que nao feja o da Philofophia de Hermes. Pon
derando os Eſpelhos, que no tempo do Emperadoſ
Auguſto inventou Hoſtio , que repreſencavão as
couſas mayores , outras vezes mais pequenas do ſeu
natural: outros, que moſtravioos objectos às aveſ
ſas; outros , com os quaes fe diviſavão as coufas em
duas legoas de diſtancia : outros , que multiplica
vão os objectos, formando de hum ſó homem hum
grande Exercito ; outros , que repreſentavão as fi
guras ſuſpenſas no Ar , entre a viſta dos olhos , e
Qyidro dos Eſpelhos ; e outros, que queimaváo por
dian .
G A L E A TO . 127

diante , e por detraz. Ponderando o Eſpelho da


Torre da Goleca , que eſtà edificada entre o Mac
Mediterraneo , e a lagoa deTunez , em que diſtin
etamente ſe via nos Navios , que entravão no por ..
to , toda a gente , e mercancia , que vinha dentro
nelles. Ponderando o Eſpelho de Henrique Core
nelio Agrippa, no qual eſcrevendo -ſe alguns cara
Eteres com langue , le lião os meſinos eitampados
no corpo da Lua , paſſando -ſe deſte inodo em hum
inſtante aviſos a todo o Mundo .

Ponderando as minas de fogo , que Federico


Jambelo fazia debaixo das agoas de Rios caudalo
fos, e invadiaveis , como o Elcalda em Flandes, com
poſtas de polvora de tão exquiſito artificio , que
concebendo o fogo , que accendiáo huns relogios,
excitavão tão furiofo terremoto , que parecia cahir
o Ceo , tremer a Terra , e voar o Mundo ; porque
diſparando entre relampagos , trovóes , e rayos ,
grande quantidade de pedras de moinho , fepul.
chraès , e rochedos de extraordinaria grandeza , ca.
deyas de ferro , garfos, cutellos , e pellotas , com
outros instrumentos de ferir , e de matar , em que
a dureza do ferro , corra , e penetra mais com a vio .
lencia do fogo , arreburaváo aos ares Caſtellos, Arte ,
Iharias, Navios, Pontes, Armas, Marinheiros, egen
te de guerra, como ſe foſſem folhas de arvores , ou
palhas , e papeis voados da furia de huma grande
tempeſtade, matando com bum ſó ciro mais de oi.
Tecentos homens , não contandos os feridos, e outros
que voavão pelos ares , como ballas diſparadas pe
1a arcèlharia ; paſſando por elevação de huma , a bl
tra Provincia ; arrojando a diſtancia de mil paſſos

“pedras ſepulchraes ,e cravaadoas pela terra dentro


txieng
128 PRÒ LOGO

extendendo - fe tão furioſo terremoto ao circuito de


nove mil paſſos , matando tambem muita gente ſó
com o peſtifero cheiro da polvora , e atormenran
do a todos com o calor exceſlivo dis agoas do Rio
Elcaldı , que fendo mais caudolofo do que o Tis
jo , defronte de Lisboa, eſcaldava como azeite fera
vente. Ponderando os paſſarinhos de pào, que Juan
nelo Turriano, Archimedes do feculo paffado , fazia
Voar na pretença do Emperador Carlos V.os quaes
ſahião de S. Juſte de Placencia , e tornaváo voans
do a recolher ſe no meſmo apoſenco donde tinhão
{ahido . Ponderando como o mefmo Turriano for
mava Exercicos armados de humas figuras de Solda
dos a cavallo , com varios Regimencos de Infantaria,
que tocavão caixas , e clarins , provocando -fe a ba
talha , e peleijando furioſamente entre li , ferindo ,
fe com lanças, eſpadas, e outras armas , para com
eſta marcial , e fingida repreſentação de huma ver ,
dadeira,batalha , divertir ao melino Emperador re
tirado dos Exercitos , e campanhas. Ponderanda
os moinhos de ferro , que fez o melmo Juannelo ,
que fe moviáo per fi meſmos , fendo cão ſubtiz , e
tão pequenos , que os podia levar hum Religioſo
namanga , e com ſerem cão delicados, erão cáo uceis,
que cada hum delles mohia , em hum dia , o trigo
que baſtava para ſuſtentar oito homens. Ponderan

do aquella artificiofa , e admiravel cabeça de pão ,


ferro , ou bronze , que em trinta annos fabricou
com grande crabalho , e mayor engenho, Santo Al
berto Magno , a qual fallava, e reſpondia, como Ora
culo , a quanto lhe perguntaváo , e com tão pri
moroſo artificio , que atemorizando -ſe com as ſuas
Xozes , ou repoſtas Santo Thomaz , a quebrou com
humt
a
G A L Ε Α Τ Ο. 129

hum pão , que acaſo tinha na mão , por entender


fendo rapaz , que o invento de Alberto feu Meſtre
era magico , ou illuſao diabolica . Ponderando a
Eftatua humana , que Reiſelio fez com tal artificio ,
que nella ſe vem as principaes operações da Natu
reza , aſſim na circulação do ſangue, coino em ou
tras funções , por principios da Phylica Hydroſta
tica , com eſperança de lhe dar voz , e movimen
to . Ponderando a ſuſpenſao das Eſtatuas de Arſi
noe , e do cavallo de Bellorophonte , pela virtude
magnetica, dentro no Templo de Serapis , edifica
do na Cidade de Alexandria ; o que tambem inten
tàrão , e nao poderão conſeguir os Mahometanos
em Medina , ncm antigamente em Meca , para ſuf.
penderem no Ar o infame cadaver do falfo Prophe
ta Mafoma . Ponderando a Eſtatua de Venus , que
inventou Dedalo , a qual andava , quando lhe lança
Vaó dentro alguar Mercurio. Ponderando a Eſtacua
de Memnon , Rey dos Thebanos , fabricada com tal
Arte , que fürida na boca com os rayos matucinos do
Sol , foltava vozes harmonicas , que faziáo dos cir
cunitantes Estatuas , movendo-ſe , e pronunciando
Oraculos. Ponderando a Cabeça de Meral , que ha
via antigamente em Tavora , a qual fallava , e moſ
trava com as ſuas vozes todos os Judeos , que en
travað , e fahiaõ naquella terra . Ponderando o Ta
liſman de Cobre , chamado Beelzephon , inventa
do pelos Magos de Pharao , o qual tendo a figura
de Cár , ladrava todas as vezes, que algum Ifraèlica,
com cençaõ de fugir do Egypto , paſſava pelo lu
gar, em que eſte Idolo eſtava collocado, que era mui
to perto do Mar Roxo .
Ponderando a Alamipada da Vida , e da Morte,
r de
130 PRO LOGO

de Erneſto Burgravio , chamada aſlim , porque le


compunha , ou fabricava com tal ſymbolização a hum
homem determinado , que a qualquer diſtancia , fe

podia ſaber por ella a faude , doenças , goſtos, pe


Zares , vida , e morte da peſfoa , a quem reſpeitava,
obſervando - ſe os varios movimentos , cores, inten
faó , e remiſſao da luz , atè a ſua total extinção .
Ponderando com Rogerio Baccon , Religioſo de
fublime engenho , os inventos de grandes Náos, go
vernadas por hum ſó homem , as quaes navegavão
com mayor velocidade, do que outros Navios, ma
reados por muitos Marinheiros. Ponderando os Co
ches ligeiros, movidos ſem cavallos, nem outros ani
maes , que os movão . Ponderando osNavios , que
navegão os ares , voando com azas em lugar de veio
las. Ponderando os inſtrumentos de altura , e lar
gura fó de tres dedos , e ainda mais pequenos , os
quaes levantão , e abaixão os mayores pezos , e po
dem livrar dos carceres a todos os prezos , fazen
doos lubir por cima dos telhados , e pondoosſem mo
leſtia , nem perigo folcos na rua. Ponderando o in
vento com que hum ſó homem , com hum aſſopro ,
arranca do chão a mayor arvore , e aſſoprando poul
cas vezes , pode levantar tão grande tormenta , que
arraze huma Selva, que reliſcia firme à mais furio
fa tempeſtade. Ponderando os inſtrumentos , com
que hum ló homem pode fazer unir comſigo a mil
homens , os mais valentes , por mais que elles force
jem , e reſiſtáo. Ponderando os engenhos de andar
fobre as agoas , fem ir ao fundo, não ſendo a embar
caçio , nem odres de vento , e outros vulgaresmo
dos de navegar , que te não tiverão aparecido aos
goſſos olhos , ſeriáo incriveis aos ouvidos. Ponde
rando
G A L E A T O. 131

rando a Pomba de páo , que inventou Architas Tao


rentino , que voava pelos ares como viva , ſendo hu
maeftatuamorta , fem ter outra alma , que o engenho
de feu Author . Ponderando as ſete Torres de Conſ
tantinopla , que repetiáo , como citharas , as vozes,
que alguem pronunciava ao pé de qualquer dellas.
Ponderando a Pedra Venturina , que por ventura,
ou
acafo (e inventou , cabindo humas limaduras de Co
bre em vidro derrecido , a qual he huma vitrificação ,
ou miſtura de palhinhas de Cobre , lançadas em vi
dro derretido ſobre o fogo ; mas de huma cor táo
honeſtamente dourada , ou ſalpicada de pontinhos
de Ouro , que deu o nome , e não a primazia à Pe
dra Venturina , que com a meſma cor ſe cria natural
mente na Silezia , e em Bohemia . Ponderando o vi
dro , corpo lilo , lucido , e tranſparente feito , pelo
fogo violenciſſimo de reverberação , com calháos
brancos , e luzidios , ou com area branca , e bem la
vada, ou com fal alcalico , ou cinzas de teto , ou
ſolda , o qual excede , e leva a preferencia em al
gumas couſas ao Diamante ; porque o Diamante
pode ſer aberto , furado , e lavrado com outro ,
c ao vidro nenhuma couſa penetra. Ponderando co
mo o vidro he a ulcima obra , a que , por meyo do
fogo pode chegar a Arce , porque todos os Me
taes com a força do fogo ſe convertem em vidro , e
até o meſmo barro , como ſe ve nas celhas , e nos
tijolos , que de muito cozidos fe vitrifição .
Ponderando como com o Helioſcopio , ou
Theleſcopio , que no anno de 1609. inventou o fa
mofo Holandez Jacobo Mecio , natural da Cidade
de Alcmar , ao qual aperfeiçoou pouco tempo de
pois o grande Mathematico Florentino Galileo de
Galis
3 rij
P R () LOGO
132

Galileis , ſe deſcobre a Lua trinta mil leguas dif


tante da Terra , a qual tendo a medida da quaren
teſlima parte doGlobo Terraqueo , e parecendo -nos
huma como cara humana , he hum labyrintho de
yarias, e confuſas figuras , diſtinctas, e ſeparadas
com montes , e valles de grande eminencia , e pro
fundidade : Mercurio o menor de codos os Planetas,
e muitas vezes mais pequeno , que a Terra : Venus
de cor de Cobre , vinte e oito , ou trinta e ſete ve
zes menor que a Terra , manchada , e mudavelco ,
mo a Lua : o Sol diſtante da Terra mais de vinte

e hum milhões, e ſeiſcentas mil leguas Heſpanholas,


em que a incerteza , que pode haver , he ſo de hum ,
ou dous milhões , que vem a ſer o meſmo, que di
zer na terra , que de hum lugar a outro hà ſó adil.
tancia de vinte , ou vinte e duas leguas , que não he
grande engano : com diametro cem vezesmayor que
o diametro da Terra , e com corpo mayor que o
Globo do Mundo hum milhão de vezes. Scgundo
o Padre Kircker , e outros , que com Theleſcopios
obſervaráo a figura do Sol , achåráo nelle eminen
cias com montes , que fazem o ſeu corpo muito
deſigual, e juntamente hunsfogos , que ſe commu
nicão por grandes cavernas , e receptaculos , que
fe fuppoem no interior daquelle Aſtro , com diver
los mares de fogo , repartidos em Rios da meſma
materia luminoſa , e ardente , o que apparecendo
quando o Sol eſtà perto do Horizonte , delapparece
eſtando mais alco ; como tambem ao meyo dia he re
dondo ,ou eſpherico, e ao naſcer,e pôr,parece ellipti
co. Por obſervações novas fe tem viſto o Solcercado
de duas ordens de rayos , e com vinte , ou mais la
Varedas, que o cercão, poſtas porordem , e compal
10 ,
G A L Ε Α Τ Ο ..

fo , como os cravos nas rodas de hum Coche ,


foguetes nas Girandulas de fogo. Por dentro do
diſcotem dezoito Eſtrellas , emuitos boſques, m
tes , e valles , com altas ſerranias, e varias manch

cada huma das quaes he mayor , que toda a Eur


pa , as quaes no meſmo Sol tem movimento , ort
interito , periodos , e revoluções . Eſtas manchas ſao
negras , ou azuis , c outras vezes mais brilhantes do
que o corpo do meſmo Sol , a que os Latinos cha
mao Faculas, que he o meſmo , que pequenas fa
chas de fogo. Eſtas manchas ſe unem , e formaó às
vezes huma grande mancha, e outras vezes huma
mancha grande fe divide , e fórma varias manchas
mais pequenas. Algumas vezes fe diſſipaó as man
chas , outras vezes fe accendem , e convertem emi
Faculas. Muicas vezes ſe tem obſervado cincoenta
manchas juntas , e outras vezes em muitos annos
não apparece nenhuma; porque as manchas dos gran
des nem ſempre fe defcobrem , e quando algumas
vezes fe obſervão não faó perpetuas. As Faculas du
rão mais do que as maculas , e todas circulão no
Sol da parte Oriental para a Occidental , pelo
Hemiſpherio Solar, que eſtà contra a Terra, e dão
ſua volta pelo Hemiſpherio fuperior, tornando da
Occidental para a Oriental , e deſta forte con
parte
cluem eſta circulação em vinte e ſete , ou em vince
e oito dias. Ainda não aſſentàrío os Aſtronomos,
que couſa ſaó eſtas manchas , e eſtas Faculas. Dis
zem alguns, que fað Hlhas errantes, contiguas ao cor
po do Sol, e andão com elle , e revolvendo -ſe foe
bre ſeu proprio eixo no eſpaço de vinte e ſete dias,
acabáo o ſeu gyro. Outros dizem , que as maculas
do Sol lao vapores , ou fuligens , que do Sol fe
Isyan
eos
134 PROLOGO

levantão , e fórmão aquelles corpos opacos , como


nuvens negras , e quando ſe inflammão, le convertem
em Faculas. Outros dizem , que ſao Eſtreilas, ou
Planetas , que à noſſa vifta fe repreſentão embebi- .
dos no Sol , e ſegundo a ſua mayor , ou menor diſ
tancia , mais , ou menos brevemente fazem ao redor
· do Sol o ſeu circular movimento ; e outros dizem
com os Cartheſianos , que as ditas manchas ſao hu
mas codeas , e groſſuras , pela a &tividade da mate
ria ſubtil ſeparadas das partes.craffas , e levadas
a certa diſtancia do corpo Solar. Porém nem eitas
manchas do Sol faó groſſuras , ou codeas da mate
ria ſubtil , como affirmão os Carteſianos ; porque
nos corpos liquidos mais depurados dos corpuſcu
los terreos , que ſao 'infinitamente menos Auidos
· do que a materia etherea., tendo todas as luas par
tes em movimento continuo , no que , ſegundo os
meſmos Philofophos , conſiſte a fluidez , nunca ſe
obſervão eſtas maculas ; nem como no ſeu Ura

nophilo diz o Padre Eftancel , podem eſtas man


chas ſer Planetas , ou Eftrellas ; porque no proprio

diſco Solar , onde parece , que naſcem , ſe deſvane


cem , e acabão : nem ſab fuligens , ou vapores que
ſe levantaó do Sol , e formað aquelles corpos opa
cos ; porque de hum fogo puriffimo , e tað fimples,
que ſem materia , que o ſuſtente , como a lenha ao
fogo , arde ſem diminuiçaó , nem augmento há qua
(i lere mil annos , não ſe pode levantar fumo , ou
exhalaçað , que circule coin eſta ordem , e regulari
dade obſervada , por ter na exhalaçao , e no fumo
tudo deſordem . Nem finalmente podem ſer Ilhaser
rantes ; porque , como fica dito , tumas ſe ajuntão
em huma ſó , e huma ló le divide em muitas , cou
la que
G A L E A TO , 135

fa que repugna tanto às Ilhas do Sol , como às do

Oceano. A'lem de que , o defapparecerem algumas


vezes por muitos annos , convence nað ſerem Ilhas,
vapores , Eſtrellas , nem codeas do Sol ; porque ſe
melhantes entidades coſtumaõ ſer mais perſiſtentes.
No Tom . I. S. 11. num . 44. do meu Syſtema Media
3 10 , que , dividido em dous grandes volumes de fo
lha , compuz fobre o Morbo Hungarico , chamado
vulgarmente Vomitos pretos , acharão os curioſos hu
ma nova opiniaó ſobre a caufa , que dou a eſtas man
chas do Sol, quando não defça (com que tambem
me fatisfaço ) fulminado comoPhaetonte , donde ſu
bio , approvado por todos os Tribunacs , comoMa
nucodiara , que he o celebre Palaro do Sol , cha
mado tambem Ave do Paraiſo , porque ſó para o
Sol fobe voando . A'lem das dicas manchas , ſe tem
deſcuberto como Theleſcopio trinta Satellites ao re
dor do meſmo Sol , que no eſpaço de quinze dias
fazem ſeu gyro , e parecem hora mayores , hora mais
pequenos ; e não falta quem diga com o Padre Hie
ronymo Viral , que Mercurio , Venus , Marte ,
Jupiter , e Saturno ſao Satellites do Sol , e da Lua:
Marte de cor de fogo , com corpo giboſo , e de fie
gura eſpherica , aſpera , e deſigual , comoo Globo
da Terra, com huma mancha negra no meyo , e nas
fuas duas faces , ou hemiſpherios tem humas man
chas diverſas humas das outras , das quaes fe argu

menta , que eſte Planeta fe move no ſeu eixo : Ju


piter com tres faxas , e quatro Satellites , que o cer
cao , ou rodeão . Eſtas faxas , ou bandas ſe deſco
brem com o Theleſcopio hora ena huma parte do
feu diſco , hora em outra , humas vezes duas , e al
gumas vezes tres , como adyercio o Padre Schot , e
dellas
136 PRO LOGO

dellas ſe argumenta , que Jupiter ſe move circular


mente lobre o leu centro. Eſte Planeta padece ſeus
eclipſes cauſados pelo Sol , Lua , e Marte : Satur
no da cor do Chumbo , acompanhado de cinco Satel
lites , com varias Phales , ou apparencias cauſadas
da diverſa ſituação do anel , ou circulo , em que an
da : o nunero de todas as Eftrellas do Ceo , que
na opinião dos Antigos era ſó de mil e vinte e duas,
com o invento do Theleſcopio ſe tem obſervado
completo em huna fó Conſtellação chamada Orion ;
e a cor branca da Via Lattea ſe deſcobre finalmente
com o Tubo Optico , ou Helioſcopio ſer a luz de
hum numero innumeravel de Eſtrellas, humas mayo
res, outras menores , e outras minimas , tao pequeni
nas , queas nao alcança bem a noſſa viſta ; e tað ches:
gadas humas as outras, que ſe confunde a fua luz,
e delta luminoſa confulaó relulta hiun candor , ou
brancura , que aos olhos , que a contenaplaó , parece
leite. Para à viſta faz em certo modo o meſmo ef
fejco hum crivo , ou papel codo furado ,, fuſpenſo
no ar diante de huma parede , ou taboa tinta de pre
to , ou poſto de noite defronte do lume, no qual
de longe fe nað enxergað os furos , ou buraquinhos ,
mas ſó ſe vè huma ſuperficie mais, ou menos bran.
ca , e luminoſa. Ilto nieſmo ſuccede a quem olha pa- ,

ra a Via Lactea , em que ſe bem as Eſtrellas mayo


res le vem diſtinctas das partes do Ceo nað eitrel
ladas , neſta meſma diſtancia as Eſtrellinhas muito .
juntas nað le divilaó claramente , masdeſte aggrega
do reſulca hum como terceiro objecto de partes lu
zentes , e nao luzentes , que manda a cípecie dc hu
ma couſa menos luminoſa , e candida , como he a
eſpecie do leire , que forma a Via Lactea. Ponde
rando
G A L Ε
E Α Τ
T Ο. 137

tando o Binoculo do Padre Rheita , com o qual fe


vè quaſi no Signo de Lea entre a Linha Equino
cial , e o Zodiaco , huma repreſentaçao da Veroni
ca do Senhor ; na conſtellaçaõ de Orion , para a El
trella Polar , huma mão fechada con huma eſpecie
de Caliz ; no Signo de Tauro huma Cruz, das que
chamaó Theutonicas ; no dito Orion huma figura
da Tunica inconfutil do Senhor ; è nas Pleyadas
hum circulo , e nelle hum Menino ; objectos taó
alheyos daquelle lugar , que excederiaõ o credito ,
ſe os nao confirmara a evidencia ; mas parece que
aſſim como quiz Deos , que na terra houveſſe flo .
res , em que ſe repreſentaſſem alguns inſtrumentos
de ſua Sagrada Paixao , como vemos na flor , a que
o Gentio do Braſil chama Maracujà , os Caſtelha
nos Granadilla , e os Italianos Fiore della Paſſione ;
no Ceo houveſſe tambem Eſtrellas , de cuja luz , e
varia diſpoſiçaõ reſultaõ imagens dos martyrios do ,
noſſo Redemptor.
Ponderando mais o Anel de Gyges , que o fa
zia inviſivel. Ponderando o Palladio de Troya , ou
Eſtatua de Pallas, que fazia inexpugnavel elta Ci
dade. Ponderando o Eſcorpiaõ de Bronze , com
que Apollonio Thianeo exterminou todos os Eſcor
piões da Cidade , e territorio de Athenas . Ponde
rando os ſete Aneis, de que Jarchas , famoſo Philoſo
pho da India , fez preſence ao dito Apollonio Thia
neo , que trazendo - os com ſigo , na idade de cem an ,
nos confervava a bizarria , e diſpoſição de huma
Aorente mocidade . Ponderando os Braceletes dos
Zinpangros, moradores da Illa de Niphon , no Ja
pão , que os faziáo invulneraveis. Ponderando o

Anel de Diceo , com que os delinquentes concilia


s vão
738 PRO LOG
LO GO

vão a benevolencia , e amor dos Juizes. Ponderan


do a Moſca de Bronze , feita por Virgilio , que afu
gentava de Napoles todas as moſcas. Ponderando
o Anel , que foy achado na boca de humamulher
humilde , depois de morta , da qual o Emperador
Carlos Magno era com indecencia da Mageftade ,
vilmente namorado. Ponderando as pedras lavradas
com a figura do Eſcaravelho , 'perfeito Hieroglyfico
do Sol , com que os Egypcios alentavão os eſpiri
tos a quem os trazia. Ponderando a Serpente de
Bronze , que na Cidade de Conſtantinopla impedia
a todas as Serpentesa entrada ; até que Mahomet II.
depois de tomada Conſtantinopla , quebrou com
huma frechada os dentes à dita Serpente , e huma
prodigiofa quantidade de Serpentes ſe lançou aos
Cidadãos de Conſtantinopla , ſem porém os pode
rem morder ; porque todas tinhão os dentes quebra
dos, como a de Bronze. Ponderando o Anel de Elea
zaro Judeo , com que na preſença do Emperador 2
Veſpaſiano, e de muitos Officiaes do Romano Ex
ercito , livràra muitos obſeſſos do Demonio , cuja
invenção ſe attribue a Salamão , que enſinava a me
ter no engaſte do Anel certa raiz , que chegada ao
nariz do Ènergumeno, obrigava a fahirdo corpo o
Demonio. Ponderando finalmente a Eſphera de Ar
chimedes , o Palacio de Nero , a Aguia , e Moſca
de Ferro de Joaõ Monrreal , que voarão em Ny.
remberga ; os Microſcopios, Macroſcopios, Lan
ternas Thaumaturgas, Polemoſcopios, Polyhedros,
Termometros, Balanças Philoſophicas, Eſpingar
das de Vento , Orgáos Hydraulicos, e outros in
ventos , que ſe encontrão a cada paſſo nas Hiſtorias.
Porém deſtas ponderações deve o Leitor fua
bio ,
G A L E A TO.
139
bio , e prudente inferir , que ſendo todos, é qual
quer deſtes engenhoſos inventos , artificios mais ra
ros , e admiraveis , que o Lapis Hermetico, que fó
quem negar a Fè, e credito às Hiſtorias , pòde nel
ciamente duvidar da Chryſopeia ; porque duvîda ,
que o engenho humano inventaffe hum legredo mais
facil, do que muitos dos referidos, ſendo tão dif
ficultoſos. Toda a difficuldade , que o entendimen
to incredulo encontra nos effeitos da Pedra Philo
fophal, he converter a enfermidade em ſaude, e craní.
formar o Mercurio em Ouro ; e ſó quem não tiver
entendimento , pode duvidar deſtasduas converſões;
porque como enſina o grande Philoſopho Peripate
cico Franciſco Soares , da ſempre fabia , e eſclareci
da Religião da Companhia de JESUS , tão facil
mente ſe converte o Mercurio em Ouro , como o
Ouro em Mercurio : Ex Mercurio fit aurum , ficut Soar.Lolitan.
ex auro Mercurius ; e para crermos na converſao da Tract.deGen .
moleſtia em faude , não falcão exemplos na Medi- & Corup.diſ
dicina. Bem conheço , que difficulcolamente deve put.4.fect.1.9.
crer o entendimento couſas impoſliveis , principal: 3.num.338.
mente depois que Feyjoo deſterrou o credito dos er
ros communs; mas por iſſo meſmo deve crer na Chry
Sopeia , vendo -a neſte Prologo, e no primeiro Dia.
logo defendida da cenſựra de Kircker , e da criti
ca de Feyjoo , e ſobre tudo provada com demonſ
trações innegaveis , feitas por Authores graviſſimos,
que ſeria, e doutamente eſcreverão do Lapis, con
vencendo com razões , e experiencias ao mais in
credulo entendimento .
E não imagines, Leitor incredulo , ou neſcio ,
que Varões tão ſabios, e tão ferios , como forão en
tre os Alemaeus os Treviſanos, Paracelſos, Alber
sij tos,
PR
140
4

(
)
tos , Alanos , Turneiſſeros , Valentinos , Majeros,
Crolios , Libavios , Harthmanos , Lamſpringos ,
Burcgravios, Ectmulleros , e Cunrados . Entre os
Inglezes os Baccones , Nortões , Ripleos , Maco
lones, Charnochos , Daſtinos, Chauceros , Kel .
leos , Robinſonios, Goweros , Ligdacios, Blum
fieldos, Redemanos , Fludos , e Mouffetos. En
tre os Hollandezes os Helmontes, Hollandos , Dre
belios , Vogelios , Balbianos , e Hoghelandos. En
tre os Francezes , os Flamelos , Beguinos, Chry
fipos , Claveos , Caſtagnios , Callefonios, Fabros,
Poterios, Gohorios, e Eſpagnetos. Entre os Italia
nos os Morienos , Ficinos, Fioravantos, Locatel
los, e Caneparios. Entre os Eſcocezes os Bluche
ros , e Sydonios. Entre os Danos os Severinos , Bor
richios , e Tychos Brahes.Entre os Heſpanhoes
os Arnoldos de Villanova , Raymundos Lullios , e
Pedros Arlenſes : não imagines , que eſtes , e ou
tros Eſcritores, que jà paſſaó de ſeis mit , entre os
quaes foráo inſigniflimos os Clauderos , Mohorf iel
fios , Sendivogios , Sachſios , Helvecios , Beche.
ros, Rupeſciſſas, Heilmanos , Dienheimios , Ulr .
radios , Querceranos , Geberes, Halides , Aſcios ,
e Azothos , não imagines digo , que Varões tão fa
moſos no Orbe Literario , como o grande LINO
NOTA BEM , havião de eſcrever falſidades , pa
ra teli engano , e ſeu deſcredico , ſendo homens , que
o Mundo Racional eſtimou ſempre pelas ſuas hon
radas acções , e venera ainda hoje pelos ſeus eſcri
tos , nos quaes a pezar da morte ſerão eternos. A
eſtes immortaes Propugnadores da Pedra Philofo
phal podèra ajuntar outros muitos defenſores do
Ļapis , como cambem todos aquelles labios , que
com.
G A L Ε Α Τ Ο . 141

compuzerão os Tratados , que ſe intituláo : Tur


ba Philofophorum : Turba dos Philoſophos , de que
ſó te podes rir , le fores Philoſopho dasturbas.
Neſtes riquiſſimos theſouros eſcondidos em me
taphoras , e occultos em allegorias , veřàs ſe fores
Lynce , o que pormais que nelles cavem , não del
cobrem as Toupeiras. Naō te admires , de que os
Sabios eſcondao , como coſtumaõ , a ſciencia : Sa- Proverb. 10.
pientes abſcondunt ſcientiam : paſma ſim , de que nao 14 .
deſcubra a tua inadvertencia , o que nao para todos ,
mas para muitos homens eſtà encuberto debaixo de
huma pequena Pedra. No Mundo hà muitas , e
prodigioſas couſas , de que ainda codos nað temos
perfeita noticia ; porque eſtaó mais eſcondidas de
baixo da lua grandeza, do que a verdade no Poço
de Democrito . Ainda nao ſabemos todos com cer
teza , que Creaturas Maritimas , e Subterraneas ſao
aquellas, de que deu noticia hum Homem Mari
nho no anno de 1619. a dous Miniſtros do Con
ſelho de Chriſtierno IV . Rey de Dinamarca , na
vegando os Mares da Noroega , quando admirados
de o peſcarem com figura humana, reſpondeo com
yoz clara , e dearticulada a hum dos circunſtantes,
que juſtamente le admirava das maravilhas de Deos :
Se tu o ſouberas tao perfeitamente como eu , muito mais D.R. Bluteau
-te admiràras, vendo pelas mais profundas'agoas do Prol. Portug.
Mar , e nas concavidades da Terra , creaturas de Deos, 1. Part . fol.
como eu , em muito mayor numero , do que a gente huo 133 .
mana , que anda pizando a Terra. Huma deltas crea
curas era aquella Ninfa Marina , com cabellos bran
cos , olhos raſgados , e corpo ayrofo , e delicado ,
que perto do Cabo Samo Danico appareceo no tem
5 po de Federico II. Rey de Dinamarca a Eraſmo
Luto,
142 PRO LOGO

Lxto , ſegundo elle refere na ſua Hiſtoria , predi,


zendo - lhe alguns ſucceſſos concernentes àquelle
Reyno , e declarando - lhe, que naquelle Martinha
ſua Máy , Avò , e Biſavó , que viviaó havia muitas
centenas de annos . Huma deſtas creaturas era Oan .

nes, monſtro meyo homem , e meyo peixe , que an.


tigamente foy viſto no Egypto , que ,
ſegundo refere
Bluteau Vo- Blutcau , fabia pela manhá do Mar Vermelho , ean
cabular . Port . dava nos contornos da Cidade de Babylonia , don.
Tom.6 . fol.5. de pela tarde ſe reſtituhia ao Mar , e de dia aos que
o hiaó ouvir , enſinava todo o genero de Sciencias,
e Artes , Agricultura , Architectura , Mathematica ,
Philoſophia natural , e moral , como tambem a Medi
cina ; e legundo refere o meſmo Author, no eſpaço de
quatrocentos annosapparecèraõ quatro Oanres ,que
D.R. Bluteau forao chamados Annedotes. E pode ſer que os las
Vocab. Port. tidos de caens , cantos de gallos, huyvos de lo
Tom . 8. fol. bos , bramidos de couros , balidos de ovelhas, rue
768 . gidos de leões , e outros notaveis aſtrondos , que
em certas partes , e em concavidades de montes ſe
tem ouvido , como gritos horrendos , entre labare
das de fogo do Monte Veſuvio , que no anno de
1682. atroavaó os ares , ſejao vozes , naõ de Demo
Comer. lib.i. nios, como eſcreve Cromero ,ſe naõ de creaturas dels
Polon . pag. conhecidas ; e allim como eſtas creaturas nao ſao ig
485. noradas de todos , ainda que para muitos laŭ occula.
tas : aſſim os cheſouros da Chryſopeia eſtas eſcondi
dos para muitos , mas nao eſtao occultos para todos.
Eftão como os chefouros da terra, encubertos a quem
ignorante os piza , e deſpreza, e nao a quem dili
gente os cava , e buſca ; mas os thefouros por eſcon
didos , e occultos , não fað menos ricos , e precio
ſos. Não depende o ſeu valor da cua avaliação . Tan ,
to
G A LE AT O. 143

to luz o Sol no Zenith , onde o admiras , como em


o Nadir , onde o não contemplas . Como a luz do
Sol , thelouro de luzes , brilha occulta , e deſcuber
( 1 , como em diferentes Hemiſpherios , a ſciencia
dos Hermeticos , a huns manifeſta a Chryſopcia cáo
claramente como a luz do dia , a outros a encobre
nas eſcuras trevas da noite : a huns aclara avilta , a
outros deixa às eſcuras; porém o credito , e eſtima
ção da Pedra Philoſophal não depende do teſtemu
nho de nenhuns olhos ; porque a ſua grande vir
tude não neceſſita de ſer viſta , para ſer eſtimada. A
virtude he o premio de ſi meſma : Ipfa quidem vir- Sil.Ital.lib. 3 .
tus ſibimet pulcherrima merces. E a excellencia da Pes
dra Philofophal he fatisfação de ſi propria . Não dáo
os olhos humanos a bondade à Chryſopeia ; porque
aindaque não ſeja viſta , traz os bens intrinſecamen
te comſigo. Antes de haver eſtes olhos no Mundo , já

Do Mundo havia Luz muito boa : Videt Deuslucem Gencl.1.4 .


quod effet bona ; porque a bondade da Luz não tem
dependencia dos olhos. Com fer tão boa , por fal.
ta de olhos , não era viſta antigamente no Mundo
a excellencia da Luz ; e pornão haver olhos , não he
tambem hoje bem viſta no Mundo a excellencia , e
bondade da Chryſopeia. Se o Mundo hum dia abrira
os olhos , veria ſem nenhuma duvida, o que tem à ſua
viſta. Murmurando o Hypercritico Gracian da gran
de eſtimação , que os homens dáo às pedras precio
ſas, dille profunda, e judicioſamente , que ſe o Mun
do acordaſſe hum dia com juizo , amanheceria muita
gente pobre : mais certo he, que ſe o Mundo acor
dàra hum dia com os olhos abertos, para ver a Pe
dre Philoſophal, que ſe lhe occulca , por olhar para
ella com olhos fechados , que amanhecèra muita
gen
144 PRO LOGO

gente tão rica de Ouro , como abundante de ſaude .


Se o Mundo ſe ve enfermio , e pobre , não ſe quei
xe dos trabalhos , e dos Medicos ; queixe-ſe ſó dos
ſeus olhos : queixe- ſe o Mundo de ſerem os ſeus
olhos tão cegos , que nas ſuas moleſtias nað olhao ſe

nao para os Medicos mais bem viſtos , os quaes por


nao olharem nunca para os livros , e nað apartarem
nunca a viſta dos ſeus intereſſes , deixando a todosos
enfermos com os ſeus achaques , ló o dinheiro , que
Hhes offerecem , não deixão. Com eſtes meſmos olhos
com que o Mundo cegamente elege os Medicos ,
para lhe curar as ſuas enfermidades, julga todas as
virtudes dos Sabios , e benemeritos. Chama hypo
criſia à virtude , covardia ao valor , mentira à ver
dade , ignorancia à ſabedoria , avareza à parcimo
nia , ſoberba ao reſpeito , tyrannia à juſtiça , chy
mera à realidade , e engano à Chryſopeia . O Mundo
juiz cego , he peyor cenſor , que Momo ridicu
lo . Com geſtos affectados em tudo finge defeitos.
No Touro de Neptuno , cenſura ter as pontas na
cabeça , porque ſe as tiveſſe diante dos olhos , daria
as cornadas mais certas : na Caſa de Minerva , cen
fura a immovel conſtancia , porque ſe fora movedi
ca , mudaria a porta aos máos viſinhos ; e no Ho
mem de Vulcano cenſura o peito ſem janella , por
que não ſe lhe podião conhecer os máos intentos.
Para evitar eſtas cenſuras , abrem os Adeptos no pei
to do Homem a janella, para deſcobrirem claramen
te a Momo os ſeus intentos ; porém mudão a por
ta da Caſa de Minerva , para não darem nella entra
da a ridiculos ; porque não acertando com a porta , .
ainda que vejáo a janella , andem tão cegos , como
o Touro.com as pontas diante de seus olhos. Con
kifte
G A L E A TO. 145

fiſte em fim o primor da ſua Philoſophia, em mani


feltar , e encobrir juntamente a verdade , com taó
engenhoſo artificio , que Momoa ſaiba , é a nað en
tenda, que a veja , e ſe lhe eſconda, equivocando
ſempre o apparente com o verdadeiro , e o verda
deiro com o fingido , de forte, que ſendo certo ,
!
e de Fé huinana o que enſina ) , na realidade ſeja
tambem ſonho.
5

S. XIX .
5

Aõ me atrevèra a fallar neſta materia , nem


NAapprovar tað nova , ou paradoxa propoſiçaó ,
ſe me pao houvera de explicar, e defender com hu
ma famoſa Propliecia , e com hum admiravel Hie .
roglyfico ; mas ainda o Hieroglyfico , e a Prophe
cia nað ſeraó couſa minha , fenao do Philoſopho
Hermes , e do Propheta Daniel. Principiemos pela
Prophecia. Eſtando Nabucodonoſor deitado na ſua
cana , começou a conſiderar na poſibilidade dos
fucuros : Tul Rex cogitare cæpiſti in ſtrato tuo , quid Daniel. 2 ,
effet futurum poft hæc; e ſonhando , ou dormindo
The revelou Deos muitos ſegredos , ou myſterios,

que eſtavao occultos , e eſcondidos : Et qui revelat


myfteria , oftendit tibi , quæ ventura ſunt. Todos el
tes myſterios , e ſegredos vio Nabuco deitado , e
ſonhando com huma prodigioſa Eſtatua , compoſta
de Ouro , Prata , Bronze , Ferro , e Barro , a qual
ſendo cao pezada como os meſmos Metaes , de que
ſe compunha , eſtava ſuſpenſa no Ar : Tu Rex vi
debas, & ecce quaſi ſtaria una grandis, ſtatuia illa
magna , e ftatura fublimis fiabat.A todošcſtes Me
gaes , eſtando unidos era hum fó corpo , reduzio a
cin
146 P R O LOGO

cinzis huna ſó Pedra , que fem mãos deſceo de hum


alto monte , e creſcendo tanto ſobre as cinzas da
Eſtatua , que encheo toda a redondeza da Terra :
Abfcifus eſt Lapis de monte ſine manibus : lapis autem
qui percuferat ſtatuam , factus eſt mons magnus , &
implevit univerſam terram . Efta imagem , a que Na
buco muitas vezes chama ſonho , e muito menos ve
zes pratica , tambem delappareceo da fua memoria,
como fogem as palavras da boca de quem falla , e
o ſonho eſquece à lembrança de quem acorda : Som
nium ejus frigit ab eo ferm
: o receſſit à me. Atemoriza
do porèm Nabuco com a novidade do ſonho , e in
citado tambem com a curiolidade da pratica , que
ignorava, e lhe eſquecia , mandou chamar à ſua pre
fença todos os Magos , Augures, Ariolos , e Feiti
ceiros dos Chaldeos; porém todos confeffáráo , que
não podião intrepretar o ſonho , que não ouvirão,
e pediáo a Nabuco , que lhe referiſſe o que ſonhàra ,
.
para elles lhe darem a ſua intelligencia : Dic fom
nium ſervis tuis , & interpretationem ejus indicabimus.
Para livrar a todos eſtes doutiſlimos idiotas da pe
na capital , a que por hum Decreto eſtavão condem
nados , por nað ſaberem interpretar , ou adevinhar
aquelle ſonho , ſe offereceo ( depoisdeorar a Deos)
o Propheta Daniel , que era naquelle tempo o ma
yor fabio do Mundo , ao General das Armas Arioch,
executor da ſentença de morte , para lembrar , e
explicar a Nabuco o ſonho myſterioſo , como
Deos cambem de noite lho tinha revelado : Mihi
quoque non in ſapientia , quæ eſt in me pluſquam in cun
Etis viventibus , Sacramentum hoc revelatum eft , fed
ut interpretatio Regi manifeſta fieret. E declarando
o myſterio a Nabuco , fez logo huma grande Efta
tua
G A L E A TO 147

tua toda de Ouro , que tinha ſeſſenta covados de al


10 , e leis de largo , a qual mandou collocar no cam
po Dura da Provincia de Babylonia , aonde foy viſ
ta , e adorada por todos os Principes , Miniftros,
Sarrapas, Capitães, Tyrannos, Embaixadores , e
outras innumeraveis peſſoas do feu vaftiflimo ſm
perio : Nabucodonofor Rex fecit ſtatuam auream , al
titudine cubitorum ſexaginta , latitudine cubitorum
ſex, é ſtatuit eam in campo Dura Provincia Baby
lonis ; e adverte finalmente o meſmo Propheta Da
niel , que o ſonho do Rey Nabuco era ſonho ver
dadeiro , e digna de toda a fé a ſua interpretaçao :
Verum eft fomnium , & fidelis interpretatio ejus. Ela
he , Leitor , a famoſa hiſtoria da prodigioſa Eſtatua
de Nabuco , que refere o Propheta Daniel no Ca.
pitulo ſegundo da ſua Prophecia , e debaixo deſte
ticulo : Prophetia Danielis ; donde ſe ſegue, que não
lo he hiſtoria do paſſado , mas tambem Prophecia
do futuro ; e deſte modo he verdadeiro ſucceſſo ,
como hiſtoria , e ſonho verdadeiro , como Pro
phecia , ſendo tambem de Fé Divina a certeza in
fallivel da ſua interpretaçað : Verum eft fomnium , &
fidelis interpretatio ejus ; mas como eſte ſucceſſo he
prophetico , e he juntamente hiſtorico , fe pela hil
toria de hum caſo ſuccedido , pela Prophecia de
hum acontecimento ſonhado : Tunc Danieli myſte,
rium per viſionem nocte revelatum eft. Taó certa , e
de Fé , he eſta Prophecia ſonhada, como foy,amely
ma Hiſtoria ſuccedida ; porèm tanto equivoca a pa
lavra Verum a verdade com o ſonho , que ao mel
mo tempo , em que le crè, e ſe eſcreve , que o ſonho
he verdadeiro : Verum eſt fomnium , parece que tani
bem ſe eſcreve , e ſe affirma, que eſta verdade he
cij ſonho :
O GO
148 PR LO

Ton !ı2 : Verum eft fomnium. Com tanto primor eſcre


veo Daniel , com a penna tirada das azas do Eſpi
rito Santo o Enigma da ſua myſterioſa Prophecia ,
que ſendo Prophecia , e Hiſtoria verdadeira , e de
tað infallivel certeza, que he de Fé Divina , tambem
na realidade he ſonho .

S. XX .

Aſſemos agora ao hieroglyfico , ſem apartar


P mos os olhos do prophetico. No Livro Ms!do de
Hermes , que hoje acharàs tambem reſtampado no
fim do primiero Tomo da Bibliotheca Chymica de
Mangeto , em que nað veràs outro titulo , ſe nao
eſte de Livro Mudo, nem leràs cutra doutrina, ſenao
a que mudamente te enſinarem humas figuras bie
roglyficas , quenelle depois deſte titulo eſtaó pri
moroſamente eſtampadas : Mutus liber in quo ta

men tota Philoſophia Hermetica, figuris hieroglificis de u


pingitur , ter optimo maximo Deo mifericordi conſecra
G
tus , foliſque filiis artis dicatus , authore cujus nomen
eſt Altus ; entre as quaes figuras nað há mais precei
tos , nem dogmas , ou documentos, do que eſtas oi
to palavras : Ora, lege, lege, relege, labora, & inve
nies . Veràsna primeira figura deitada, bum homem
conſiderando , e dormindo como Nabuco : Cogitare
Tæpiſti in ſtrato tuo ; e dous Anjos , com duas trombe
tas poſtos em huma eſcada, como revelandolhe do
alto grandes myſterios , ou ſegredos da Pedra Phi
loſophal : Et qui revelat myſteria oftendit tibi ; e na
ultima figura do meſmo livro , acharàs ao meſmo
homem dormindo , e ſonhando com huma grande
Etatua à ſua viſta, a qual eſtà ſuſpenla no Ar , co
mo
G A L E A T O. 149

mo no Ar eſtava ſuſpenſa , a que vio Nabuco lo


nhando : Statua ſublimis ſtabat.Tambem veràs , que
aoscorposmetallicos , compoſtos de Ouro , Prata ,
Bronze , Ferro , e Barro , reduz a cinzas a Pedra dos
Philofophos , tem operaçao, nem força de mãos : La
pis finemanibus, a qual por fazer eſta Obra grande,
creſceo tanto na eſtimação de todos os Sabios , que
he hum alciſſimo , e inacceſivel monte para os ig
norantes . Por eſta cauſa os Poetas fizerão de hum
Monte inacceſivel Emblema da virtude , e da Pe
dra Philoſophal , como eſcreveo Mangeto , na pre
fação do Primeiro Tomo , que compoz da Chryſo
peia : In hujus veritatis emblema virtutis domicilium
à Poetis in rupium quam maxime abruptarıım cacit
mine poſitum fuiſſe. Por iſſo os neſcios não vem cà de
baixo a Pedra Philoſophal, e tó lhes chegaaos ouvi
dos huma confuſa noticia da Chryſopeia , por eſtar
o Lapis divulgado por toda a redondeza da Terra :
Lapis autem , qui percufferat ſtatuam , factus eſt mons
magnus , bo implevit univerſam terram . Sobre eſta .
Tinctura Univerſal tambem ſe falla, como fallou Na
buco na Eſtatua; porque huns dizem , que he ſo
nho: Somnium : e outros affirmão , que tambem he
practica: Sermo; e ou ſeja practica, ( perdoem -me
o equivoco , e amplificaçao do ſignificado ) ou
ſeja ſonho , tambem nodato , e todos os Hermeticos
dizem , que não alcanção a practica , e que o fonho,
e o fono lhes foge : Somnium ejus fugit ab eo , fermo
receffit à me. Não faltão Emperadores , como forão
Caligula I. e Fernando III . a quem não altere , e in
quiete a novidade do ſonho dos Hermeticos , nem
Reys,como Eduardo VI.de Inglaterra ,e Carlos VII.
de França, a quem não iacice a curioſidade de ſaber
o in ,
750 P R O LOGO

o invento dos Adeptos ; porém nenhum dos ſeus


grandes Sabios , ainda que ſejað Magos , Ariolos , e
Feiticeiros como os Chaldeos, podem adevinhartão
grande Enigma , e ſó lhe pedem a noticia do fo
nho , para lhe darem a ſua interpretação : Dic fom
nium ſervis tuus , & interpretationem ejus indicabimus.
Não tira porém a ſua ignorancia , que não haja hum
Raimundo Lullio , cujas obras approvou o Conci
lio Tridentino , e cujas virtudes coroou o marty
rio , o qual não ſó com a ſua grande ſabedoria , em
que excedeo a todos os Sabios do Seculo , em que
florecco , chamado por cão extraordinaria Sciencia
Rayo do Mundo : Mihi quoque non in fapientia , que
eſt in me plufquam in cinétis viventibus ;mas porque
foy Deos ſervido , que elle alcançaſſe a revelação
deſte ſegredo, para ſerviço , e utilidade de Eduar
Theloſon.
do VI . Rey de Inglaterra , famoſo , e zeloſo Con
apud Manget .
Tom . 1. Bi- quiſtador da Terra Santa , a quem o meſmo Lul
blioth. Chem . lio deu feis milhões de Ouro de vinte e quatro
1. lubſ. 1. fol . quilates , do qualmandou lavrar Eſcudetes , Roſas,
ou Moedas , com o titulo de Soberanos , e de No C1
32 .
bile Raymundı , a que Paracelfo chama Roſenobili, e
1
ainda hoje conſerva o nome de Noble em Inglater
ra o Ouro , que Lullio deo a Eduardo , para conci
nuar a conquiſta da Terra Santa , como ſe pòde ver ME

nos Hiſtoriadores daquelle Reyno , e neſtas pala


Ol . Borrich . vras de Olao Borrichio :Quem propterea Lullius pro
apud. Man- pogandæ fidei Chriſtianæ inter Paganos ſolicite intentus,
get . loc. citat.Sex illis millionibus redditum in Terram Sanctam fefti
fol. 34. & 43. nandum animare parabat . Por iſſo a Lullio quadra de
algum modo , com boa venia dospios , e doutos Lei
c
cores : Sacramentum hoc revelatum eft , ut revelatio
Regi manifeſta fieret. E a Eduardo , é nao a Richar
do ,
G A L Ε Α Τ Ο. 151

do , ( como erradamente lhe chama Kincker ) por


fahir a campo contra os Francezes , convertendo
contra elles as armas , que ſe deſtinavaó para a Con
quiſta de Hieruſalem : Arma in Gallos vertit, fazen . Ol . Borrich .
loco cit . 9. 24 .
do dos ſeis milhoens huma poderoſa Armada , que
pela deſpeza com que ſe apreſtou , ſe pode chamar fol.43.
Eſtatua de Ouro , muito groſſa , e muito alta , a qual
viraó entað os Principes de toda a Europa, os Mi
niſtros, Satrapas , Capitaens , Tyrannos , Embaixa
dores , e Vaſſallos de ambas as Coroas Franceza , e
Ingleza : com alguma propriedade applico as pa
lavras, que Daniel eſcreveo de Nabuco , quando de
pois do ſonho , e revelaçaõ do Propheta , mandou
fazer a Eſtatua de Ouro : Rex fecit Statuam auream,
altitudine cubitoram fexaginta , latitudine cubitorium
fex , & ftatuit eam in campo Dura Provincia Babylo
nis . E com fer cao verdadeira eſta famoſa Hiſtoria,
como certificaó depois de muitos Authores Marti- Martin. Del
Rio lib.6 . dif
nho Del-Rio , Religioſo da Companhia de JESUS ,
quiſ . Magic.
Varaó de grandes letras , e muito univerſal nasnoti
cias do Mundo , e o grande , e Sapientiſimo Padre cap.5.
D. Raphael Bluteau , Religiofo Theatino , Varað Bluteau Vo
cab. Portug.
raro em virtudes , e conſumado nas Divinas, e hu
Tom . 6. fol.
manas letras; não faltaõ com tudo outros Elcrito
res com Santo Thomaz , e Athanaſio Kircker , que Div. Thom .
neguem a Pedra Philofophal, ou lhe dem varias inter
2.2 . q. 77 - art .
pretações, eſtando por eſta variedade, e diſcordia 2 .
dos Eſcritores indeciſo até o dia de hoje o Proble
ma da Chryſopeia , como confeſſa o meſmo Kircker:
Lite in hanc uſque diem pendente. Porèm como os Kir
ckeros, e os Thomazes approvão a Chryſopeia , que
condemnío , admittindo não ſó a probabilidade das
tranſmutações , conforme diz Kircker : Quo ad theo
Tham
152 P R O LOGO

riam probabilem tantum effe ; mas eſcrevendo algu ,


mas operações , com que ſe convertem os Metaes
em Ouro , e Prata , e deſcobrindo tambem raros le.

gredos de falſificar eſtes precioſos Mecaes, que o


melmo Kircker deixou fepulcados na urna do fegres
do : Germanus fum , germano pectore veritatem pro
fiteor. Poteram , & ego innumera frib fpecie veri,
tranſmutatoriæ artis arcana adducere, fed abfit ab hilo T
mano pectore tale ſcelus. Concluindo finalmente eſte
ſincero Author , com deciſões Juridico -Canonicas, te
que a Alchimia , que faz verdadeira Prata , e fino
Ouro , de outros quaeſquer Metaes he Arte licita : (
Illa licita eft , que verum , genuinum , e naturale au
rum producit ; porque ſendo o Ouro , e Prara ver .
dadeiros , e puros , como lao eſtes Meraes tirados >

das minas, licitamente ſe podem vender , e com el


les ſe pode tambem licitamente comprar , como por
authoridade do meſmo Sanco Thomaz, Oldrado, An
drada , lſernia , Baldo , Alberto , e outros reſolve
o melmo Kircker : Si aurum Alchymicum à naturalı do
in nullo differat , id vendi, & folvi poffe ;e como o ob
jecto deſta reſoluçað ha de ſer verdadeiro , para naó
ſer eſta queſtað ociofa , bem fe ſegue , que aſlim os
contraditores do Lapis , como os defenſores da
Chryfopeia , approvão o que condemnað , e cenſurao
1
o que louvao ; e deſte modo codos os livros eſcri
tos contra a Chryſopeia , ou em defeza do Lapis, fað
como o Livro Mudo de Hermes ; porque todos bra
dão com o ſilencio , iſto he , dizem , e juntamente

calláo , eſcondem , juntamentemoſtrão , approvão ,


e juntamente negão , manifeſtão , e juntamenre oc
cultão o meſmo myſterio , que affirmão , e fondo
por eſte modo eloquentes , tambem ſao mudos , po
rèm
G A L E À T 0. 153

rèm mudos que falláo , como o Mudo do Evange


lho , com admiração das Turbas : Locutus eft mutus,
& admiratæ ſunt Turbe. Todos encobrem myſte
rioſamente o que dizem , com o meſmo ſilencio com
que fallão ; porque diſcorrendo conforme o ſegre
do das Turbas dos Philoſophos , eſcondem a doutrina,
que enfináo , com admiração dos Philoſophos das
Turbas . Eſcrevem da Chryſopeia , ou contra o Lapis,
com táo primoroſo artificio , e com tão parente myſ
terio , que nos meſmos livros equivocáo o verda
deiro com o ſonhado , para que entendão os Sabios,
que elles tem o ſonho de Hermes por verdadeiro :
Verum eſt fomnium ; e ao meſmo tempo imaginem os
neſcios , que elles reputão o verdadeiro por fonho:
Verum eſt Jomnium . Não podiaó os Adeptos excogi .
tar melhor induſtria , para ſegurarem a opinião entre
os Doutos , e não perderem o credito entre os igno
fantes , do que eſcreverem da Chryſopera , por huns
termos tão enigmaticos , com que evirem a calumnia
dos neſcios, e conſervem a opinião para com os Sa
bios, como fez na ſua Real Allegoria o celebre Herme
tico Merlino , recomendando nella muito aos Adeptos,
que guardaſſem o ſeu Tratado, e declarandolhes, qué
era para os Sabios
le para os neſcios era eſcarnio ,
muy ferio : Cuftodi frater hinc Tractatum , & ferva Allegor.Mero
bené , quia trupha eſt optima inter ſtultos, & non tru- lin . apud
pha inter ſapientes. Com eſtas engenhoſas allegorias , Manger.tom .
2 Bibliothec.
e metaphoras, com eſtes admiraveis enigmás , e myſ
Chem . lib . 3.
cerios , e com eſtes ſubtiliſimos fingimentos, e ver fect 1. fubi .
dades, ſe não approvão a Chryſopeia , tambem não 11. fol. 192.
condemnáo o Lapis ; porque com as meſmas pala
Vras affirmao com toda a verdade , que o ſonho de
Hermes he verdadeiro , mas verdadeiro fonho .
u S. XXI .
154 BRO LOGO

S. XXI.

Razão natural , e politica deſta equivocaçao


A da verdade com o fingimento , do fonhado
com o verdadeiro , e da voz com o ſilencio he , por .
que os Philoſophos Hermeticos, ou Adeptos conhecem
como fabios , e obſervão como prudentes , que feo
perſervativo das moleſtias , o remedio das doenças,
o antidoto das felicidades , a poffe das riquezas , e
o antagoniſta das miſerias he couſa muito conve
niente , e muito honrada , como vem claramente no
que ſonha ) ; tambem he couſa muito ardua , echeya
de grandes difficuldades , conforme conhecem no
que experimentao , ſegundo pondera Mangero , na
prefaçaõ do primeiro Tomo, que eſcreveo da Chry
ſopeia : Ardua etenim res eft, ac difficultatibus plena
F

materie Philofophiæ acquiſitio , ac poflefio. E como


os Hermeticos no ſonho vem ao longe grandes rique.
zas , muitas honras , e as mayores felicidades da vi
da , e com a experiencia deſcobrem ao perto ex
traordinarios trabalhos, intoleraveis infortunios, in
placaveis odios , crueis perſeguições, e eſcandaloſas
invejas, ou nao proſeguem na diligencia de adqui
rir tantas felicidades , ou fingem , que ignorao a
Chryſopeia , que jà cein deſcuberto , por nað padece.
rem tantos perigos, trabalhos , e infortunios. Con .
ſideraõ em ſilencio na Tinctura Univerſal, mas na
certeza do Lapis nað falláo claramente huma pa
lavra : confeſſao com a eſpeculação , que he couſa
poſivel, e negão com a pratica'ter defcriberto ef
ta ventura ; porque em materia tao pericola , eim
portante , os homens, que faó prudentes, conlideraó
e não
G A L E Å TÖ . 155

e não falláo ; porque he diſcrição não fallar no ſe


gredo , e prudencia o conſiderar no myſterio , que
outros virão , e ſonhàráo.
Sonhou Joſeph filho do Patriarcha Jacob dous
admiraveis, e myſterioſos ſonhos :no primeiro vio ,
que atava no campo , na companhia de ſeus irmãos,
huns molhos de crigo , e que os molhos de ſeus ir
máos adoravão o que elle atou o qual eſtando
lançado no chão depois de atado , ficou em pè : Au - Gen. 37.7
dite fomnium menim quod vidi: putabam nos ligare ma
nipulos in agro : & quafi confurgere manipulum meum ,
& ſtare , veſtrofque manipulos circumſtantes adora
re manipulum meum ; e no ſegundo cambeni vio ,
que o Sol, a Lua , e as Eſtrellas , deſcendo do Ceo
à terra a mageſtade luminoſa de ſeus reſplendores ,
proſtrados humildemente por terra , o adoraváo : Vis
di per fomnium quafi Solem , & Lunam , da Stellas
urdecim adorare me. Eſtes ſoráo os dous myſterio
los ſonhos do Patriarcha Joſeph , em que prophe
ticamente vio as adorações , e felicidades , que de
pois poſſuhio , ſendo Viſo -Rey do Egypto , aonde
ſeu Pay, e ſeus onze irmãos de Rubem ate Benjamim ,
ajoelhados por terra o adoràraó , conforme elles ti
nhaõ predito , como duvidando muito tempo antes
do cumprimento deſtas prophecias : Numquid Rex
nofter oris ? Num ego , do mater tua , & fratres tui
adorabimus te fuper terram ? Porèn he couſa digna
de reparo , e tambem de admiração , que tendo Ja

, Joleph ambos Prophetas , nenhum delles fo


cob e
nhaſſe , nem prophetizaſſe os trabalhos , e grandes
difficuldades , que primeiro encontrou Joſeph , do
que fubiſſe por tão perigoſos degràos à ſuprenia Pre
ſidencia do Reyno do Egypto. Nenhum delles vio ,
nem
u ij
156 P R O LOGO

nem por ſonho, que da relação das felicidades fo


nhidas, ſe havia de augmentar a inveja , e odio de
ſeus irmáns : Hæc ergo caufa fomniorum atque fer
monum , invidiæ ; eodii fomitem miniſtravit. Ne
nhum delles vio , que os irmãos lhe havião de ma
chinar a morte , injuriandoo com o nome de ſonha
dor, e prendendoo em o carcere de huma ciſterna :
Ecce foinniator venit : venite occidamus eum , do mie
tamus in ciſternam veterem . Nenhum delles vio , que
deſpojado da tunica , o havião de vender ſeus ir
mãos aos Iſmaelitas : Nudaverunt eum tunica , tala
ri , d polymita, vendiderunt eum Ilmaelitis. Nenhum
delles finalmente vio os falſos teſtemunhos , que no
Egypto levantaria a mulher de Putifar aos juſtos,
e honeſtos procedimentos de Joſeph , os quaes ſens
do as mais raras virtudes de hum mancebo cáo bel.
lo como Adonis : Erat autem Joſeph pulchra facie,.
& decorus aſpectu , foráo caſtigados com a prizão , 1
...

como le forko os ſenſuaes delictos de Tiberio : Trac


diditque Joſeph in carcerem ; o ſó o Patriarcha Ja CO
cob , como Varão experimentado nas perſeguições
de Elal , nas peregrinações daMeſopotamia ,e nos
enganos de Labam , conſiderava como prudente ,
mas juntamente callava o myfterio daquelles ſonhos:
Pater vero rem tacitus confiderabat. Os Prophetas
chamão - ſe na Eſcritura Videntes ; porque vião os
futuros : pois ſe todosaquelles trabalhos de Joſeph 1
erão futuros , comoas ſonhadas felicidades, porque
os não virão eſtes dous Prophetas , que no tempo
futuro tanto vião ? Porque nos fonhos não havia
nenhuns trabalhos , nem perigos , que ſe viſiem
:

nem previſſem . Os perigos, e trabalhos , que tam


bem acontecerão, encontraráo -ſe na dilação do cum
pri
G A LE AT 0. 157

primento das prophecias, como couſa ſeparada , e


diſtincta dellas . Como as propliecias ſe cumpriráo
mais tarde , vierão os trabalhos mais cedo ; e não
poderão os olhos propheticos ver ao longe , para
onde ſó olhavão , os ſucceſſos , que por eſtarem
mais proximos, não viáo . Eſta parece , que era a ma
teria , em que Jacob tão mudamente conſiderava ;
porque ſe lembrava da vilao , que tinha viſto em
Bethel , antigamente chamada Luza, quando Deos,
e os Anjos lhe apparecerão naquella myſteriola el
cada, eſtando elle deitado , e dormindo ao pè della,
com a cabeça reclinada ſobre as pedras : Tulit de lapi
dibus
, qui jacebant, & fupponenscapitiſuo, dormivit in
eodem loco. Lembrava-le de que entre tantas felicida
des prometidas por Deos quando dormia, encontra
ra depois de acordar com os trabalhos , que por eſta
rem muico perto, o obrigarão a exclamar com grande
temor , e muito tempo antes de os padecer : Quam
terribilis eft locus iſte ! Mas cambem ſe lembrava Ja
cob, de que deſvanecido aquelle remor, e receyo , das
muitas pedras de que fizera o encoſto , para ſobre el .
Je deſcançar, e dormir , le fizera milagroſamente hu- .
ma ſó Pedra , depois de acordar daquelle prodigioſo ,
ſono : Lapis iſte, quem erexi in titulum , vocabitur Doo ;
mus Dei, como por lição da Glofa dos Hebreos efni.
creve o Bilpo Cacharienſe, affirmando ,queas pedras
de que Jacob fizera o reclinatorio , ou traveſſeiro
pa
ra dormir , fóráo tres realmente diſtintas , que todas
ſe uniráo em huma ſó Pedra : Tres enim fuerunt lapi. Paul. Brut.
des, quos Jacob fuppofuit capiti ſuo,
& mane excitatus Epiſcop: Cr
à Samno, ipforum trium unione falta, unum tantum tharienf. lib.
contr . Juscos
lapidem invenit ; circunſtancia admiravel, que tam
bem ſc acha na Pedra Philofophal, lymbolo da San- cap.2 .
riflina
158 PRO LOGO

tiſſima Trindade , e da unidade de Deos , que nas


tres pedras diſtinctas, e cm huma ſó pedra unidas ,
fe figurava : Lapidem Philofophorum eje trinum &
Faber apud unum , & fymbolum habere divinitatis , quod eſt trsa
Mang. Tom . num do inum ; e como Jacob tinha experimentado,
1. Bibliothec .
que ſem embargo dos trabalhos de caõ comprida jor
Chem . lib . 1. nada, dos amorofos deſvelos , que padecèra por
Sect. 3. Subl. amor da'fua amada , e fermoſa Rachel , emfim a
2. cap . 7. fol.
pezar de Labam volcara muito rico para a meſma pa
295
tria donde fahira encoſtado ſomente a hum cajado :
1
In baculo meo tranſivi Jordanem iftum : & nunc cum
duabus turmis regredior : eſta miſtura de trabalhos
com felicidades , de peregrinações com deſcanços ,
e de riquezas com pobrezas , fe por huma parte lhe
emmudecia a lingoa , por outra lhe deſvelava a con
ſideração : Rem tacitus conſiderabat. Conhecia Jacob,
como Proheca , que Joſeph conſeguiria muitas feli
cidades no comprimento dos ſonhos , e previa , co
mo prudente , e experimentado , que antes de ſe
cumprirem as prophecias , padeceria grandes traba
lhos, principalmente tendo dentro de caſa , em ca
da irmão hum inimigo : Oderant eum , nec poterant
ei quidquam pacifice loqui; e como tinha por certos
os trabalhos , e por infalliveis as felicidades dos fo
phos , como Propheta emmudecia , e como prudente
conſiderava : Rem tacitus conſiderabat : conſiderava '
em que o ſonho era cerco , e tambem emmudecia a
viſta do que ſe lhe repreſentava trabalholo ; porèm
ſem embargo dos trabalhos , ſempre conſiderava nos
fonhos , mas taõ callado , que nem huma ſó palavra .
dizia : Rem tacitus confiderabat ; porque em materia
de canta imporcancia , a prudencia he conſiderar, e
a diſcrição emmudecer ; porque com o ſilencio ſe
occul
G A LE AT
T 0 . 159

occulta o ſegredo, e com a conſideração ſe alcança


o myſterio .
Por eſta razaó , Leicor , conſiderão os Hermeti
cos , e emmudecem os Adeptos ; porque como pru

dentes, vem a perſeguição dos trabalhos, e como


fabios , prevem a felicidade dos ſonhos ; e como
antes das ſuas felicidades ſonbadas , vem as perſe.
guições verdadeiras , fallao como le foráo mudos ;
e conſideráo muito callados : Rem tacitus conſidera
bat. Para os Hermeticos , que deſcobrem a Chryfopria,
todos os tempos faõ comoaquelles tão calamicofos,
ein que , como diz Tacito , o meſmo crime comerá
tia a voz , que o ſilencio : Crimen in ſilentio, crimen
in voce. Por iſſo Enodato , que fignifica couſa de
clarada , neſta Ennda , que vem a ſer omeſmo , qure
applicação do entendimento , intelligencia, ou nou
ticia , quando reſponde a Enodio , que valo meſmo,
que couſa encontradiça , e que ſempre eſtá no cami
nho , conſidera profundamente no ſonho dos Her
meticos , e no modo de o reduzir a practica não
diz palavra , que ſe não ignore , e entenda, ou ref
ponde a Enodio por caes allegorias , e metaphoras ,
que por fallar ſempre por enigmas parece mudo ,
e como Jacob conlidera callado : Rem tacitus con
fiderabat ; mas ſempre com cão entendida clareza
que lendo a lua doutrina cirada da Turba dos Philo.
Sophos, he confuſao dos Philoſophos das Turbas ; por
que confunde a ignorancia eſcondendo a fciencia :
Sapientes abſcondunt ſcientiam : os autem ftulti confis- Proverb. 10 :
fioni proximum eft. Imita Enodato ao Patriarcha Ja . 14.
cob , não fó porque diſcorre callado ; mas porque
depois de achar a Pedra Philofophal , feita , como
edificio de muicas pedras , e deſcuberta depois de
acor
160 PRO LOGO

acordar do ſonho , tão enigmatico , e myſterioſo ,


como ſe vè no Terceiro Dialogo , ainda que nelle
fe lhe promette com tantas riquezas o Imperio Unt
verfal de todo o Mundo : Dilataberis ad Occidentem ,
& Orientem , & Septemtrionem , & Meridiem , con
tentou - ſe com alcançar a protecção de Deos , na pe
regrinação deſta vida , e a deſejada reſtituição à
cala de ſeu Pay , ſem outras riquezas mais do que
pão para comer, e pano para veſtir : Si fuerit Deus
mecum , & cuftodierit me in via per quam ego ambu
lo , & dederit mihi panem ad vefcendum , reverfuſque
fuero profpere ad domum patris mer : erit mihi Domi
nus in Deum . E ſempre terà Enodato que gratificar
a Deos, pelo livrar, como a Jacob, dos enganos,
e perſeguições de Labam , conſeguindo depois do
caſamento de Lia , o Matrimonio de Rachel , per
tendido , e conſeguido com deſvelos , e trabalhos,
como ſuccede a todos os Hermeticos , ſegundo el
Mang. Tom . creve Mangeto : Sicque hujus artis amafis frequena
1. Bibliothec. ter accidat, utpoft multos ſudores,& ardores, profor
Chem . in
moſa quam expeétabant Rachele', in lippam incidant
præfaction . Leam ; donec reſumptislaboribus, refatigatiſque ſubin
de furnis , ac valis, fcopum exoptatum ,
ac magnis pres
cibus, orando ſcilicet, & laborando , exquiſitum tana
dem attigant. Heverdade , que para Enodato, eto
dos os mais Hermeticos conſeguirem eſta grande fe
licidade , encontraráo primeiro grandes difficulda
des , que vencèraó com inexplicavel trabalho , co
mo ſuccedeo a Jacob , antes de fe defpotar com
Rachel , e a Joſeph antes de fer Viſo -Rey do Egy
pto ; mas ainda na pertenção de negocios de menor
importancia , e na diligencia de conſeguir couſas
de pouça utilidade , experimentáo os homens gran
des
☺ A L E A T 0. 161

des trabalhos , e padecem intoleraveis fadigas , en


contrando a cada paſſo mayores obſtaculos, e às
vezes invenciveis difficuldades; e nenhum filho de
Adam foy até agora tão mimoſo da ventura , cu
tão favorecido da fortuna , que comeſſe hum {ó bo
cado de pão , ſem que primeiro o ganhaſſe , como
feu pay , com o fuor do feu roſto. E fe os homens

tanto ſuaā , e trabalhão para viverem , esterem com


que viváo : em nenhuma Arte devem trabalhar , e
Luar mais, do que no eſtudo da Chymica , e no def
cobrimento da Chryſopeia ; porque ſabendo a Phi
lofophia Hermetica , e deſcobrindo a Pedra Philofo
phal , teráo hum remedio univerſal para viverem ,
e hum theſouro perpetuo para ſuſtentar a vida.
Na prefação do primeiro Tomo da Bibliotheca
Chymica chamaMangeto à Chryſopeia Medicina Uni
verſaliſſima contra todas as enfermidades do cor
po humano , ainda que ſejao achaques deploradil
ſimos : Hæc eft noftra Medicina Univerſaliſſima, con
tra omnes humani corporisetiam deploratiſſimos mor
bos. Não ſe admirem agora os Medicos Galeniſtas,
de que o Lapis, ſendo hum ſó remedio , tenha cáo .
varias, e extraordinarias virtudes, que cure todas
as doenças , e multiplique as riquezas , quando a fa
moſa Planta , ou Electuario , a que Galeno chama
Enopia , e Homero dà o nome de Nepenthes , tem
mais , e mayores virtudes , para evitar moleſtias ,
Yencer enfermidades , e augmentar os theſourcs ;
porque o Lapis deſterra ſomente a pobreza com Pra
ta , e Ouro , e extermina a doença do corpo com a
medicina da Arte , mas não evita as paixões da al
ma , nem remedea as enfermidades do animo; porém
a Nepenthes, como eſcreve Feyjoo , desfaz a triſteza,
evita
162 PRO LOGO

evita as dores , emenda os contratempos , remedea


os diſgoſtos, e alegra a meſma alma . Por iſſo uzava
frequentemente deſta planta a famoſa , e fermoſa
Helena , como remedio ſeguro de todas as ſuas pe
nas. Não imagine o Leytor , que a Chyſopeia he táo
fabuloſa , como Feyjoo preſume fer a Nepenthes ;
porque ainda que Homero falla cão ambiguamen
te deſta planta , que não concordáo por eſta cauſa
os Authores, em que a Nepenthesleja ſubſtantivo, ou
epitheto ; como tambem não averiguão ſe he licor,
çumo de hierva , ou qualquer compoſição em fór
ma de Electuario : codos convem concordemence
em que Helena com ſua propria mão ( conforme o
coſtume dos Egypcios ) offereceo a Nepenthes a
Telemacho , e Piliftrato , hoſpedes de feu marido
Meneláo , para antidoto de todas as ſuas penas ; por
que prendendo brandamente os ſentidos , e fuffca
cando no coração as dores , não deixa romper pe
los olhos as lagrimas , nem lahir pela boca os :ſuſpio
ros . Nenhuma paixão afflige o animo , para que a
Nepenthes não ſeja alivio ; porque extingue no co
2 ração os diſgoſtos, riſca da memoria os aggravos ,
e extermina da alma os ſentiinentos. Ainda na au
zencia dos amigos , c.parentes , em que lao excel
ſivas as ſaudades , ou na morte dos pays , e dos fi
lhos , aonde os prantos ſao mais enternecidos, en
xuga nos olhos as lagrimas , e apaga a Nepenthes a
lembrança. Plinio chama Helenio å Nepenthes , af
firmando , que deſterra do coração a triſteza. Theo
phraſto , e Juliano Martyr , referidos por Bluteau,
fazem menção da Nepenthes , chamada Enopia por
Galeno ; e Diodoro Siculo eſcreve , que no tempo
de Auguſto , quando elle cambem florecia , vinha
eſta

1
G A L E A TO.. 163

eſta planta de Thebas do Egypto , para regallo da


Corte Romana , onde era muito eſtimada , como
antidoto certo da triſteza , alivio das penas , exter
minio das lagrimas , a
' ntagoniſta dos ſentimentos ;
refugio das ſaudades, eſquecimento das magoas , é
remedio unico da melancholia. E com eſtas táoadı
miraveis , e eſtupendas virtudes excede incomparai
velmente a Nepenthes à Chryſopeia ; porque evican
1 do doenças do corpo , e curando principalmente as
enfermidades do animo, ſerà para o Medico , que a

receitar, hum riquiſſimo theſouro , e para o enfer


mo , que a beber univerſaliſlimo remedio.
Eta virtude univerſal para todos , e para tudo ,
que os Hiſtoriadores referem da Nepenthes , e os
Hermeticos affirmão da Chryſopeia , com virtudes de
transformar as entidades em Ouro , de augmentar
as riquezas , evitar moleſtias , e curar enfermidades
não poderáő negar alguns Medicos da noſſa Corte,
que applicão o Leite com as mefmas propriedades ,
como remedio univerſal para tudo , e para todos .
He o Leice entre eftes Phyſicos, como o Univer
fal Communiſſimo entre os Logicos; porque fendo
huma ſó , e commum natureza , com todas as natus .
rezas em particular ſe conforma. Abſtrahido o Lei
te de todos os animaes , applica-ſe a todos os hom)
mens ; e conheço Medicos de bom predicamento ,
que com a actual predicação deſte Univerſal Com
muniſſimo transformão os homens em animaes ; por->
que ordenão aos enfermos , que continuem a tomar
Leite até que imitem a voz dos Onccrôtalos. Por
eſta diſcreta expreſſaó , com que por modeſtia ocas
cultey a propria Onomatopeia , de que em bom por
tuguezuzão eſtes Medicos, admittem elles no Leite,
OS
xij
164 PRO LOGO

os principaes effeitos da Chryſopeia ; porque con


feflao'a transformação, que faz de entidades , e a ef
ficacia com que cura codas as doenças , ſem pode.
rem negar , que lhes rende tambem muito dinheiro .
E fe eſtes Medicos forão agora deſterrados de Lif
bɔa , como diz Plinio , que jà forão outros ſeme
lhantes exterminados antigamente de Roma, com
o Leite fó venceriao os Cortezãos não ſó as en

fermidades do corpo , como ſe fora a Chryſopeia ;


mas tambem as paixões do animo , conforme fica
provado da Nepenthes. Os Abienos povos da Scy
thia , diz Bluteau , que vivião ſó de Leite , e erão
muito caftos ;, e por lição de Plinio eſcreve o mel
mo Author , que os Archades logravao boš faude
ſem terem Medicos; porque comavao na Primavera
Leite de Vaca , que he a ſubftancia , ou quinta eſſen
cia das melhores ervas do campo. Faz Plutarcho
honradamençaõ de Sofaltres , que todo o tempo da
ſua vida , naố comeo , nem bebeo outra couſa fe nao
Leite , e com elle, fem Medicina, logrou boa daude.
A ’ viſta deſtes exemplos, e de tanta quantidade de
Leice, como ſe bebe , e come neſta Corte , digao -me.
agora os Medicos de quem fallo , porque nao ha ne
nhum Sofaftres em Lisboa ? Qual he a razaó , por
que os Portuguezes tomando canto Leite , não lo
gráo tão boa laude como os Archades, nem ſao cáo
caftos como os Abienos ? Como contra a experien..
cia não hà razão , coda a culpa tem a Medicina .
Nem falta no Leite a virtude de transformar alo
gumas entidades em fino Ouro , como tenho dito
do Lapis ': antes em muitas auriferas tranſmutações
excede o ' Leite à Chryſopeia ; porque atè converte
em Ouro coulas , que como o Ar não tem nenhu
ma
G A L E A TO 165

mi entidade. Fingirão os Poetas , que a Deoſa Jus,


no mulher de Jupiter, depois de ter dado hum dia
de mamar a Hercules , apertando com a mão os pei
tos, burrifára com o Leitedelles ao Ceo , que logo
appareceo cingido daquelle candido circulo chama
do Via Lactea , que he huma Zona de neve pelponca
da de Eſtrellas , grandes, e pequenasmoedasde Ou
ro , em que ſe transformou a parte do Firmamento ,
aonde com o ſeu Leitefez a projecçao eſte Nume fa
buloſo ; e com o invento do Theleſcopio ſe rem oba
ſervado ſem fingimento que a candura da Via Lactea
procede da confuza luz de hum innumeravel numero
de Eſtrellas humas mayores , outras menores , e ou
tras minimas , e tão pequeninas , que ainda com o
Oculo de ver ao longe as não alcança bem a noſſa viſa
ta ; mas por eſtarem tão chegadas humas a outras ,
que parecem unidas , ſe confunde a ſua luz , e deri
ta luminoza contuza ) refulta hum candor , que aos
olhos, que a contemplað , ſendo na realidade Eftrel.
las , le repreſenta huma eſtrada corrente de Leite ,
por onde conforme dizem os Poetas , fobem os
homens ao Ceo , principalmente os Heroes, e Va
rões illuſtres por ſuas heroicas virtudes, como Her
cules por valor , Alexandrepor conquiſtas , Scipião,
por facanhas , Celar por victorias , e as Deidades
de inferior hierarchia , quando fao chamadas ao
Conſiſtorio , quefaz o fabuloſo Jupiter no Olyin .
po. Porèm ſem fabula , nem fingimento poetico ,
antes com toda a certeza , e verdade ſobem por ou
tra Via Lačlea ao Ceo , muitas Deidades , e a mayor

parte dos homens , aflim plebeos, como Heroes,


que os Medicos encaminhao por eſta' eſtrada Real,
feita nað ſá do Leite , que lahe de peitos apertados
com
166 PRO L'OGO

com a mão , como os de Juno ; mas tambem das


juntas dos Medicos , que le fazem com grande del
peza dos que gemem , e ſó com utilidade dos que
receitão , para nellas proporem com as ſuas pala
vras os remedios dos apertos, que dentro no pei
to padecem os enfermos ; en cujas conferencias a
união deſtes Medicos, como Eſtrellas grandes , pe
quenas , e miniinas , com luz confuza da ſciencia
Medica , aos quaes fora muito conveniente reconhe
cer tambem com Oculos de ver ao longe , e não com
os olhos ao perto , propoem aparentemente aos
olhos a candura do Leite, que penetrada por den L

ro , não vem a ſer outra couſa , fe não moedas de


Ouro, como Eſtrellas, em que todoseſtes Medicos,
como bons Hermeticos , transformáo as ſuas palavras
( que não tem entidade , como o Ar de que fað for
madas ) não pela ſua ſciencia , mas pela virtude do
Leite. De maneira , que Juno derramando o Leite
pelo Ceo , transformou a parte do Firmamento on
de cahio em Eſtrellas , como moedas de Ouro ; e
os Medicos votando em Leite , tranſmutão com el
le as palavras 'em moedas de Ouro , como Eſtrellas.
Não equiparo, nem comparo o Leite com a Chrya
Yopeia , para que eſtes Medicos approvem a minha
Pedra Philofophal , obrigados com o panegyrico
que tambem lhe faço ao Leite :fiz fomente eſte pa
rallelo , paraque o exemplo do Leite confirme a
yerdade da Pedra Philofophal ; mas como o Leite em
fer Panacea , que he o meſmo , que Medicina Une
verſal , he tão ſemelhante à Chryſopeia , juſto he
que como o Lapis ouça a fua juſta ceñiſura , no mel
mo lugar onde ouvio o ſeu elogio. Aflim conio os
homens doutos não condemnão , nem approvão a
Chiyo
G A L Ε Α Τ Ο, 167

Chryſopeia com grande admiração das Turbas dos


Philoſophos : tambem eu para hir coherente faço o
meſmo com o Leite ; porque, imitando ao grande
Vieira , não approyo , nem condemno , admiro -me
com as turbas .

2 Porèm como o meu intento he fazer a Pedra .


Philofophal, e enſinar a codos o methodo de prepa

rar a Chryſopeia , concluo eſte Prologo , como Eno- i


dato os Dialogos, deſcobrindo aosMedicos nova - i
tos, e aos Hermeticos principiantes eſte tão util myf
terio, E principiando pelos Medicos , que pela Via .
Lattea buſcáo a Chryſopeia , como os Argonautas.
pelo Mar o Velocino , advirto a todos , que ſe as.
tormentas lhes impedirem a viagem , ſerenàrão feliz
mente as tempeſtades lançando nas ondas do Mar
a Via Laitea . Eſcreve Atheneo , que antigamente .
nas tormentas offerecião os navegantes Leite de mu
lher novamente cazada a Eolo Rey dos Ventos,
e com eſte facrificio applacado Eolo tocava logo á
recolher , e deixando o Mar quieto , le retirava com
os turbulentos eſquadrões para o ſeu cavernoſo
Imperio. Com ſemelhante religioſa fuperftição dia

ge zem , que eſcapara Jalon do naufragio , navegan


.

nenhuma ſuperſtição , com eſta induſtrioſa politi


Oy
ca , applacaràó os Medicos as tempeſtades , que o
vento da preſumpção coſtuma levantar nas jun
tas, as quaes locega promptamente a Via Laćtea;
72
porque em ſe votando em Leite , Mar leite fica lo
goo Mar bravo , e todos os Medicos deſcobrem os
e
1 theſouros, que eſtaõ eſcondidos nas areas; Qui inun . Deut . 33. 18.
dationem maris quafi lac fugent , & thefauros abſcon
2 ditos arenarum . Os Medicos preſumidos , que ca
mi
168 PRO LOGO

minhaó pela Via Lactea , ſem lançarem Leice no


Mar tempeſtuoſo,cahem fulminados, como Phaeton
te , e morrem afogados no Rio Pò ; ou ficão como
Eſtrellas nebulolas na Via Lactea aonde não luzem
muito , ſendo brilhantes Eſtrellas ; porque a união de
Eſtrellas muico pequenas lhes eclipſaõ os luzimen
tos ;,porém os Medicos, que da Via Lactea ſerena
remo Mar bravo, convertendo em Mar branco , o Mar
negro , beberàõoMar negro como Leite : Inundatio

nem maris quaſi lac ſugent ; e deſta forte deſcobri.


rão os thefouros eſcondidosnas areas : Et thefauros
abfconditos arenarum . Os Tufõesdos argumentos , as
ondas das difficuldades , que podem comer Navios
de alto bordo , com a meſma facilidade com que no
Leice vocarem ,beberaó como ſe fora Leite :Inundatio
nem maris quaſi lac fugent ; e osthelouros, que eſtão
táo guardados , como ſe eſtiveráo nas areas eſcon
0

didos, forveraó juntamente com as ondas : Et the


fauros abfconditos arenarum . Em huma palavra , en
golirão de bum ſorvo as ondas , e os theſouros ,
com a meſma facilidade , com que ſe bebe hum pu
Caro de agoa , ou ſe vota hoje em hum copo de Leite.
Os Hermeticos finalmente , que não penetrarem
o ſonho enigmatico de Enodato , por lhes faltar a '
Omniſciencia para alcançarem o ſegredo da Chry
Sopeia , com a chave da virtude abrirao facilmente
elte theſouro. Para deſcobrir a Pedra Philofophal he
muito neceſſaria a virtude , porque ſó com a virtu
de , confórme enſina o Padre Hieremias Drexellio

Drex . Tom . da Companhia de JESUS , conſeguem todos os


4. de Salom. homens a Pedra Philoſophal: Chymiaeft inter Chriſ
cap. 18. 9.V. tianos admirabiliſſima , quæ ex omni ferro , ex omni
num . 12.fol. plumbo', ex omni metallo aurum purilimum eliquare.
897 : novit .
G A L E A TO 169

novit. Artıs iſtius princeps document im hoc eſt : E qua


vis re , quantumvis mala , quantum peſſima, bonum
quid eliciendum . Hanc artem exacte callent , qui ferio
virtuti ſtudent.Hec lucroſiſima Chriftianorum eftChy
mia . Non imperite dixit Plinius : Librorum nullustam
malus eft , quin ex eo boni aliquid diſcas ; Quer dizer,
que entre os Chriſtáos ha huma admirabiliſlima
Chymica , a qual de todo o Ferro , detodo o Chum
bo , e de todo o Metal ſabe tirar puriſſimo Ouro . El.
te he o principal documento deſta Arte : De qualquer
couſa , por mà , e peſſima , que ſeja , ſe ha de tirar al
gum bem . Entendem perfeitamente eſta Arte to .
dos aquelles , que ſeriamente ſe applicão à virtude ;
porque como peritamente diſle Plinio , nao ha Livro
tao mào , em queſe nað aprenda alguma couſa boa :
Librorum nullus tammaluseft , quin ex eo boni aliquid
difcas. Eſta ſerà a principal utilidade , que acharàs
neſte meu Livro . O prudente de todas as couſas màs
tira bens ; porque a prudencia he a verdadeira Vara
de Mercurio , que melhor , que as mãos de Midas
com o ſeu toque tudo converte em Ouro : Hæc eft
Mercurij Virgulahac
, quidquid attigeris,aurum erit,
continua o Padre Drexellio, Chymia Chriſtiana quid
quid ufpiam malorum eft , virtutibus diverſis in fuum
transfert commodum . Induſtrius pater familias vere
agrum ſtercorans : male naribus , inquit , fed bene ar
vis : fatet , fed lætificat. Com differentes exercicios
virtuoſos transforma a Chymica dos Chriſtãos to
dos os males em grandes conveniencias; aflim co
mo o pay de familias do trabalhº , e máo cheiro ,
com que eſterca , e lavra os campos , tira para li
muicas utilidades, que vem a ſer o meſmo , conforme
conclue Drexellio , que do Chumbo tirar Ouro :
y Quod
170 PRO LOGO

Quod prorſus aliud non eſt, quam è plumbo purum


putum eliquare aurum . Com ſemelhantes virtudes
conſeguem os homens laborioſos o deſejado arca
no da Chryſopeia .O Lavrador tira Ouro da terra ,
que cultiva : o Eſtudante tira Ouro dos livros , por
onde eſtuda : o Mercador cira Ouro dos contratos ,
em que entra ; o Official tira Ouro das obras , em
que trabalha : o Medico cira Ouro dos remedios,
que receita : 0 Letrado tira Ouro das partes , que
aconſelha : O Muſico tira Ouro das operas, que
canta : 0 Boticario tira Ouro dos remedios , que
prepara : o Peſcador cira Ouro da induſtria , com
que peſca : 0 Caminheiro tira Ouro da brevidade ,
com que anda : 0 Bfcrivað tira Ouro da velocida.
de, com que eſcreve : o Caçador tira Ouro da fa
diga , com que caça ; e o Author de livros tira Ou:
ro daquelles volumes , que imprime , quando os
não dà , e os vende. Para tirar Ouro do meu tra
balho , compuz, e imprimi eſta Ennaa : ainda que
ſeja livro mào , eſpero , que todos achemos nelle al
gum bem : Librorum nullus tam malus eſt , quin ex
po boni aliquid difcas. Os curioſos , que penetrarem
os myſterios , e deſcobrirem os enigmas da Pedra
Philofophal, acharàő neſte livro hum theſouro ; e eu

em Ouro transformarey juntamente as ſuas folhas ,


fe as vender , quando divulgar eſtes volumes . Não
diſtingue Salamað o tempo de eſpalhar as pedras ,
do
tempo de colher o fruto do que divulga ; por
que junta , e ata o tempo de colher , com o tem
Ecclel.3.5. po de eſpalhar: Tempus spargendi lapides , & tem
pus colligendı. Vou divulgando , e eſpalhando eſtas
Pedras Philofophaes, e ao meſmo tempo hey de nir
colhendo . Sem que me compres com o teu dinhei
ro el,
G A L Ε Α Τ Ο: 170

fo eftes Dialogos , nað tenho tençao de que os leas ;


porque nað ſó quero , que comprando eſta obra ,
confeſſes , que deſcobri a Chryſopeia ; mas para que
fe ce rires de mim , depois de me ter cuſtado tanto
eſtudo , tanto trabalho , e tanto dinheiro a com
poliçaó, e a impreſſao deſte Tomo, ſeja tambem el
fe riſo à tua cuſta.

Para evitar eſte riſo , nað queria Enodato im


primir eſtes Dialogos da Pedra Philofophal , antes de
fahir a luz com dous Volumes de folha , com o titulo
de Syftema Medico Galeno-Chymico , eſcritos ſobre o
Morbo Hungarico , que he o ſummo grão das febres
ardentes , complicadas com o funeſto fympthoma
dos Vomitos atrabiliarios , que no anno de 1723. in. )
feſtàrão as Cidades de Lisboa Oriental , e Occiden
tal, chamados vulgarmente neſta Corte Vomitos pre
105 , dos quaes Volumes conſagrou a Primeira parte

a Noſſo Senhor JESU Chriſto , Rey dosReys , o


Senhor dos Senliores , e myſterioſamente dedicou
a Parte ſegunda , que conſta de cinco livros , ao nu - i
mero quinario do Auguftiffimo Senhor D. Joao V.
Rey de Portugal , como tambem intentava eſtam
par primeiro dous Tomos de oitavo , com o titulo
de Viera abbreviado , offerecidos ao Sereniffimo Se
nhor D. Jofeph , Principe do Braſil, Noſſo Senhor;
e finalmente pretendia dar ao Prèlo tres Volumesi
de folha com o titulo de Polymathia Medica Hermeti
Co -Galenica , em que compendiou toda a doutrina das
Efcholas Medicas antigas , e modernas , dedicados
20 Excellentiſſimo Senhor D. Gabriel de Alencaft

tro VIII. Duque de Aveiro; porque lhe parecia mais


acercado imitar a Santo Alberto Magno , que im
primio no fim das ſuas douciſſimas obras, que le com-
yij poem
172 PRO LOGO

poem de XXI. grandes Tomos de folha, o féu lia


vrinho de Alchimia , em que enſina a fazer a Pedra
Philofophal , como ſe eſte tratado fora a coroa dos
ſeus trabalhos literarios , e o fructo daquella Arvo
re da ſciencia , ou o fim dos ſeus eſtudos. Mas com
eſte meſmo exemplo fe animou Enodato para ſahip
a publico com a ſua Ennaa , ou applicaçao do en
tendimento ſobre a Pedra Philofophal, primeiro do
que com as obras referidas , e outras , que viràā nale
cendo a ſeu tempo , ſe antes do parco nao malograr
algum deſcontentamento os fetos, que jà nað ſao
informes 'embriões , por ferem os deſgoſtos as cauſas
de abortarem os entendimentos , depois de terem
concebido admiraveis , e fermoſas ideas ; porque ſem
embargo de eſtarem approvados os ditos Volumes
por todos os Tribunaes com honradiflimos elogio's ,
que lhes fizeraõ os ſeus doutiſlimos Cenſores, é con
ſeguirem depois a ventura de poderem apparecer no
Orbe Literario com beneplacito dos ſeus Auguftif
fimos Protectores , por ſe não poderem imprimir.com
a meſma diligencia, e brevidade , com que fe com
puzerão', ſerà credito agora para Enodató , jà que
nao pode igualar a Santo Alberto Magno na ſcien
cia , excedello ao menos na ordem , e modo de im
primir as ſuas obras , principiando a impreſſao dos .
leus eſcritos, por onde acabou de eſtampar os ſeus
Volumes.o grande Meſtre de Santo Thomaz de
Aquino , Santo Alberto Magno .
Tambem não faràs callar a Enodato , fe te ria
res comoZoilo , ſem o juiza de Ariftarcho , de coma
por em Dialogo , eſcrevendo elle da Pedra Philofo.
phal, porque em Dialogo eſcrevèraó quaſi todos os
Hermeticos, que tratàrao da Chryſopeia, como podes
ver
G A L E A T .0.. 173

ver na Bibliotheca Chymica do grande Medico Man


geto . Pretenderaõ eltes Philofophos (Medicos qua
li codos ) imitar a E Rey Salamaó , que por modo de
Dialogo , ſegundo diz Andricomio , compozo Can - Chriſtian .
ticum Canticorum , em que docemente canta , não o : Andricom .
ſonhado epithalamio do Sol , e da Lua, conformie Chronic .
erradamente imaginàrao os Alchimiſtas, prelumin . An . 2930 .
do temerariamente , que neſte Cantico eſcrevera o
melmo Salamað os ſegredos da Chryſopeia , mas ou
tro verdadeiro , e myſterioſo epithalamio para de
clarar, e explicar o incomprehenſivelamor de Chri
fto , é da Igreja Catholica ſua Eſpola , movendo
com maravilhoſa graça , e doçura a qualquer alma .
perfeita , e pura , a unirſe , e abraçarle intimamente ,
com Deos. Porèm ſem imitarem caó fabia , Regio,
e antiquiſſimo Dialogiſta, entre os Gregos Plataó ,
Alexamenes, e Luciano , e entre os Latinos S.Grea:
gorio Magno , e o Papa Zacharias lað honradiſfia,
mos exemplares , a quem depois imitàrao outros fa
mofos Elcritores , que em differentesmaterias eſcrea
verao em Dialogo ; e por te nað enfadar repetindo
os nomes' dos mais celebres Dialogiſtas modernos ,
entre os quaes tem o primeiro , e lupremo lugar o
Principe D. Joao Manoel, filho do Infante D.Ma.
noel, e neto doSanto Rey D.Fernando, Author da
quelle livro ,ou milagre de agudeza,em que faó Inter
locutores o Conde Lucanor , e o ſeu Conſelheiro
Petronio , baſtava que o Principe dos.Prègadores , o
grande Padre Antonio Vieira prometteſſe no Prolos
go dosſeus Sermóes hum livro , que tinha ideado com
Otitulo de Prègador , e Ouvinte Chriſtao, em que por
modo de Dialogo enſinaria ( como Apoſtolo doutris
nando ),as verdadeiras regras, com que o genio , e
o ens
O
174 PROLOG

o engenho illuſtraria a meſma Arte Oratoria. Mas


nao me lað neceſſarios tantos exemplares humanos,
tendo eu hum exemplo Divino , para com o primei
ro livro doMundo elogiar os Dialogos, principal
mente ſendo Hermeticos , e ſeguindo , ou imitando
os Adeptos a eſte Divino exemplar , nunca devem
emmudecer, poſto que os Myſochymicos nunca dei
xem de fe fir .

Eſta grande machina do Univerſo , conforme


D. Baſil. Ho- diz S. Baſilio , he hum livro eſcrito com letras , pa
mil.11.inHe- ra publicar a gloria de Deos, que o compoz: Univer.
xam . Jahæc mundi molesperinde eft ac liberliteris exaratus pa
conteftans , ac deprædicans gloriam Dei. Das mãos
lam
de Deos (ſegundo a ponderaçao , e amplificaçao do
grande Bluteau ) fabio eſte Mundo como hum livro ,
dividido em quatro partes , que fað os quatro Ele
mentos , e diftincto em muitos generos , e eſpecies
de viventes, ſenſitivos, vegetativos, e racionaes, co
mo em differentes capitulos, e paragrafos , e cheyo .
de tantos caracteres , quantas faó as creaturas , que
dentro nelle ſe encerraó. Neſte myſterioſo livro os
Montes, as Baleas, e os Elephantes faó as letras ca.
bidolas : as correntes dos Rios , e as eſtradas faó as
regras : as valas dos campos, e os atalhos das eſtra
das as entrelinhas : nas areas , nos moſquitos , e nas
formigas le figurao os pontos , e as virgulas : nos are
cos celeſtes, que de tempo em tempo apparecem , fe
repreſenta os parenteſes, ou claufulas da paz , que
Deos antigamente fez com os homens : as prayas do
Mar ſaõ as margens , as Ilhas faó as cotas : as charne
cas , e os defertos faó os vãos , ou efpaços em que na
da eſtà eſcrito , e as horas dos dias faó o numero das
folhas : a Arvore da Sciencia he a doutrina , a Arvore :
da
G Α Ι Ε Α Τ Ο. 175

da Vida a utilidade , o Paraiſo ſao as flores, as fon


tes a recreaçað , eo Mar a profundidade: os Monſtros
faõ as erratas ( da Natureza, e nao do Author della)
e as producções mais perfeitas ſao as emendas : 0 tem
po , que tudo deſcobre , he o index das materias , e
das couſasmais notaveis : o homem he o Leitor , e a
morte o fim . Eſte livro ſempre aberto à curioſidade
dos noſſos engenhos : Mundum tradidit difputatiom Eccleſ. 3. 13 .
eorum , eſtà envolto em ſi meſmo, forrado com as Ef
pheras , e cuberto , ou encadernado com os Ceos ,
que ſao como pelles, ou pergaminhos: Extendens Cé . Pfalm.103.2.
lum ficut pellem , os quaes ſe eſtendem para o cubrir ;
ou encadernar. O sol , e a Lua fao como duas cha

pas, ou brochas , que tem mão nelle com o vigor


das fuas influencias . Fórma a Via Lactea huma fila .
grana de Prata para o adorno , e as Eſtrellas parecem
preguinhos de Ouro em paſta azul, cravados com
imperceptivel artificio , e com eſtes eſplendidos ata
vios , ſó o Ceo podia dignamente veſtir o livro , de
que Deos he o Author .
Neſte grande, e antiquiſſimo Volumetodos os
Ceos fazem, ou compoem hum ſó livro , como diſſe
Conplicabuntur ficut liber Cali ; e a empreza , Ifai. 34 :
Ifaias :
ou affumpco deſte livro heapregoar dialogiſticamen
te a gloria de Deos , e publicar as obras das ſuasmãos,
ſegundo cantou David : Cæli enarrant gloriam Dei , Plam . 18. 2.
& opera manuum ejus annuntiat firmamentum ; porque
alternando com a ſua perpetua revoluçao as luzes, e
as lombras , e fazendo com as ſombras a noite , ecom
as luzes o dia , por modo de Dialogo a cada palavra
com que pergunta o dia , reſponde com grande ſcien
eia a noite : Dies dieieructat verbum , & nox noćti in- Ibid . 3 .
dicat fcientiam .Para deſterrar o Dialogiſmo , em que
OS
176 PROLOGO GALEATO .

os homens fallað fó comſigo , converſaū , como intero


locutores , o dia com a noite , com vozes , praticas , e
Ibid. 4. palavras , que todos ouvem : Non ſunt loquelle , ne
que ſerenones, quorum non audiantur voces eorum ;mas
como ſe praticàrab a reſpeito da Chryſopeia, reſponde
a noite muito eſcuro , ao que pergunta o dia muito
claro. O dia tudo doura com a luz do Sol , e com ef
ta Tinctura Univerſal , ou Tinctura de Ouro moſtra
claramente , que em Ouro transforma até os acciden
tes das cores, quehe a mayor difficuldade , queos An
tichymicos encontrão naPhiloſophia dos Hermeticos ;
e a noite em cada Eſtrella moſtra multiplicada a luz
do Sol em infinitos globos de Ouro ; e deſta forte
provao no ſeu Dialogo a noite , e o dia , que exiſte
no Mando a Chryſopeia, e a infinita multiplicaçao
do Ouro. E por mais que a Aurora , metida , ou en
tremetida entre o dia ,e a noite , ſe ria todas as ' ma.
drugadas , chorando ao meſmo tempo ver -le ſem
tanta luz , que poſſa competir com a claridade do
dia , e com a ſciencia da noite , nem por iſſo 9
Ceo le calla.

LI
CORE.CO

ooters
Hun ne

LICENCAS
DO

SANTO OFFICIO.

Approvação do Reverendiſimo P. M. D. Antonio Caes


tano de Souſa, Clerigo Regular, Qualificador do San
to Officio, e Academico da Academia Real da Hif
Eoria Portugueza.

EMINENTISSIMO SENHOR :

I o Livro intitulado Ennaa , on Applicação do


V Entendimento, fobre a Pedra Philoſophal, ou
tranſmutaçao dos Metaes, &c. Author o Doutor
Anſelmo Caetano Munhòs de Avreu Gulmao e
Caſtello Branco. Efte Tratado he muy curioſo , e de
muy particular eltudo , a que bem quadra o titulo
de Applicaçao do Entendimento ; porque aqui ſó obra
a eſpeculaçao , pois a pratica deſta ſciencia nao he
mais que trabalho ſem utilidade , e por iſſo os ſe
quazes deſta Arte a perſuadem por termos eſcon
didos, e impenetraveis , por palavras enigmaticas ,
por orações cheyas de allegorias , raó difficeis de en
tender , como de conſeguir a tranſmuraçao dos Me
taes viz em Prata , e Ouro .
Z Efta
Eſta ſciencia, a que dzo'nome de Alchimia , a que
ſe attribue fabuloſo , e antiquiſſimo principio , rem
cançado muitos , e grandes engenhos na ſua practi
ca , e em
que ſe tem eſcrito diverſos Tratados por
homens doucos , a que a ambicioſa ancia de conle
guir o invento da Pedra Philofophal levou infru
etiferamente o tempo , e a alguns os cabedaes.
E querendo os que ſegueni elta Eſchola fortif
car a ſua opiniaó , moſtrando a grandeza deſta Arte,
a imaginaõ practicadanos primeiros ſeculos do Mun
do . Naó duvido, que tao antiga he nos homensa ava
reza ! Purèm os fundamentos de que ſe valem nao
ſao , os que quadraõ a Alchimia , por ſer bem diffe
rente a tranſmutaçao dos Metaes em Prata , e Ouro.
Alguns entendèraó , que tivera principio eſte
invento em Cham filho de Noè , primeiro Rey do
Egypto , e que delle aprenderaó eſta Arte os Egy
pcios ; porém era outra a Arre de fundir Ouro , e

Prata , que os Egypciosuzàrab . Suidas refere , que


o Emperador Diocleciano no fim do terceiro fecu
lo fizera ajuntar os manuſcritos dos Egypcios, que
tratavão da materia de fundir Ouro , e Prata , e os
fizera queimar , para os livrar deſta forte de conſu
mirem as ſuas fazendas. Nem aquella Arte de fundic
o Ouro , e Prata era a Pedra Philofophal; porque
ſe o fora, nað era grande o ſegredo , pois era com
mum em todo o Egypto.
Nað falta , quem diz , que Salama) a exercitou ,
pela grande copia de ouro , que deſpendeo , queren
do eſteja incluida nos livros apocrifos deſte Rey , a
que daó o nome de Clavicula , augmentando -ſe em
outros tanto eſte delirio , que impiamente ouzarað
dizer , que o livro Cantica Canticorum era hum
Epi
Epithalamio do Sol, e da Lua, em que Salamão ef
crevera os ſegredosdaAlchimia , o que he ridiculo ,
ainda que nað ſouberamos , que de Ophir o tranſ
portou com naó pouco trabalho. 1

Deſta forte com extravagantes imaginaçoens, e


paradoxos querem acreditar
eſta Arte os ſeus Pro
feffores, numerando fingidos ſucceſſos acontecidos
em diverſos tempos , e lugares. O que he certo he ,
que ſe não acha Author algum , que fallaſſe na Alchi
mia antes da vinda de Chriſto , e ainda muito de
pois. De Julio Firmico celebre Aſtronomo, que vi
veo no quarto ſeculo , affirmaó, que conhecera a Al
chymia ; porém havendo , quem examinalle os ſeus
originaes na Bibliotheca Vaticana , le lhe nao acha
talpalavra , de que ſe infere , lha enxerirao os novos
Alchymiſtas, para authorizarem eſta Arte, a qual
nuo he tað antiga, como querem perfuadir.
De mais, que Geber grande Philoſopho , que
viveo no fim do oitavo leculo, ou no principio do
nono , que os Mouros tem por principal Author
deſta Arte , como eſcreve Leao Africano , onde na
ſua deſcripçao da Africa diz , que em a Cidade de
Fèz era tað ſeguida, que nella havia hum grandif
ſimo numero de Alchymiſtas , os quaes intitulavað
a Geber Rey , con tanto reſpeito , que leguem com
ſuperſtiçaõ a ſua doucrina;ſendo como huma eſpe
cie de Seica a tal Eſcola , como de gente barbara , e
falta de Fè , como foy o meſmo Geber, que dizem
ter naſcido Grego , e de profiſaó Chriſtaó , de que
apoſtatara por ſeguir a Mafoma : outros o fazem
natural da Cidade de Sevilha , c originario de Ara.
bes , que muitos tem por inventores da Alchymia,
Mas ſeja, quem foſſeo inventor da Alchymia, a ef
te
zij
te propoſito referirey, o que diſſe hum Author Fiană
cez de bom humor , e com ſingular reflexão , que ha
via quatro couſas , ſobre que os Philoſophos , e Ma
thematicos trabalhaváo bavia tanto tempo , ſem que
tiraſlem proveito , ou as eſtabeleceſſem em practica.
A primeira he a Quadratura do circulo : a ſegunda hu
ma machina , que tiveſſe hum Movimento perpetuo : a
terceira huma Alampada inextinguivel, pelo myo de

hum tal oleo , e de humatorcida , que nao ſe conſu


miſſe ; e a quarta a Pedra Philofophal , ou a Arte de
fazer Ouro , ePrata pela tranſmutaçao dos Metaes.
Nað ha duvida, que Arnoldo de Villanova ,
Raymundo Lullo , Joao Azoth , Paracelſo , e ou
tros homens grandes , de que tambem faz mençao
eſte Tratado , ſeguirao , e oſtentàrað a parte da tranſ
mutaçao dos Meraes na Alchymia , de quem muitos
affirmao conſeguirao o effeito da Pedra Philofophal,
aſſeverando , que na liçaõ dos ſeus livros a acharà
aquelle, que com applicaçað por elles eſtudar. Com
tudo eſta materia paſſa por inveroſimel em Autho
res de grande nota , pois em o diſcurſo de caó larga
lerie de annos nunca appareceo a utilidade deſte
eſtudo ; muitos fim empobrecèraó com o ſeſtro de
acertar pela Alchymia a Pedra Philofophal ; mas nao
le ſabe , que nenhum deſtes operarios ſe fizeſſe tao
poderoſo , como devera , tendo dentro da fua caſa
huma inexhauſta mina de Ouro , e Prata , que naó
tinha fim nas fornalhas das ſuas fabricas; pois con
forme a ſua doutrina , pela tranſmutaçao dos viz
Metaes, podiaó ter immenſa abundancia de Ouro ,
e de Prara , e por eſte ſegredo , ſe augmentar por
hum ſó homem huma Monarchia à mayor felicida
1
de . E que nao houvelle hum deſtes, que alcancàrao o
ſegre .
7 ſegredo da Pedra Philofophal , que tiveſſe hum ef
pirito heroico , de ſe fazer celebre no Mundo pela
riqueza , e fer por ella inftrumento da gloria da ſua
Patria , e da ſua Naçao ? Porèm como no Reynado
de Luiz o Grande de França favorecedor das Scien

2 cias , e das Artes , e larguillimo remunerador dos eſ


tudos, ſe lhe nað mánifeſtou , havendo no meſmo
tempo, quem eſcreveo , e imprimio , como foy oce
lebre Coſmopolita, de quem ſe contaó tantas cous ,
fas ; muito menos me perſuadirey , a que o tenhaõ
conſeguido alguns , que ſe diz o acharað , para
viverem taó parcamente , andando ſempre como fu
gitivos de hum lugar para outro , fem habitaçao
certa , como te refere, o que he incrivel .
A inda luppoſto o referido , não poſſo deixar de
dizer , que eſta (ciencia he portentofa , ' ainda nað
conſeguida a utilidade , que fe perfuade; e que ef
te Tratado he muy curiofo , e que tem hum excel
lente methodo ; e que aſſim como em diverſas lin
goas ſe tem impreſſo outros deſte affumpro , Voffa
Eminencia lhe deve dar a licença , que ſeu Author
pede para o imprimir ; 'porque ainda que ſe naó tire
mais , do que inftruir a idea com efpeculações ſem
proveito ; he huma demonſtraçao da litteratura do
Author , com que quer encaminhar aos curioſos a
Philofophia experimental , paraque applicando-ſe
a eſtudos grandes, e dificeis em proveito da Patria,
lhe poſſað ſer tað uceis , como o fað as ſuas letras
medicas neſta Corte , nað ſendo ſó eſtas as ſuasme
lhores partes ; porque na Republica das letras tem

elle hum grande lugar. Eſte he o meu parecer. Lif


boa Occidental na Cala de Noſſa Senhora da Divi.
na Providencia 9 . de Fevereiro de 1730 .

D. Antonio Caetano de Souſa , C.R. Apa


Approvação do M.R.P. M. Fr: Joao Baptiſta Troiano,
Meſtre jubiladona Sagrada Theologia, Prior do Con
vento de Noſſa Senhora do Carmo de Lisboa Occie
dental, Deffinidor perpetuo da ſua Provincia, e quas
lificador do Santo Officio.

EMINENTISSIMO SENHOR .

Livro intitulado Ennaa , 011 Applicação do Ena


O tendimento ſobre a Pedra Philoſophal , ou tranſ
mutação dos Meraes eſcrito pelo Doutor Anſel-,
mo Caetano Munhòs de Avreu Guſmão e Caſtello
Branco , li com ſumma curioſidade , e attençað ; e
he obra de grande engenho , e de particular eltudo ,
na qualo Author dà teſtemunho do amor , que tem
a Naçao , pois a quiz acreditar com eſta obra , foa
bre cuja materia nao ſabemos eſcreveſſe Author Pore
tuguez , ſendo tantos os Eſtranhos , que della tra
tàrao. Se he , ou nað he poſſivel a tranſmutaçao dos
Metaes viz em Ouro , ou Prata por força da Arte,
ou ſe ſe pòdem reduzir a praxe os dictames deſta
Philoſophia , nao me toca a ſua averiguaçað , ex
primente-o , o que tiver curioſidade , e ſciencia ,
que a mim ſóme toca o exame, pelo que reſpeica a
Fè , e bons coſtumes , no que em nada pecca a di
ta obra . Em cujos termos julgo , ſe lhe deve conce
der ao Author a licença , que pede . Carmo de Lil .
bna Occidental 1. de Março de 1730.

Fr. Joao Baptiſta Troiano.

Viſtas
Iſtas as informações , pode-ſe imprimir a En .
V næs , ou Applicação do Entendimento, ſobre a
Pedra Philofophal , que compoz o Doutor Anfelmo
Caetano Munhòs deAvreu Guſmaõe Caftello Bran
co ; e depois de impreſſa cornarà , para ſe conferir,
e dar licença , que corra , ſem a qual nao correrà
Lisboa Occidental 6. de Março de 1730.

Fr. R , Lancaſtro. Cunha. Teixeyre.


Sylva, - Soares,

శం , 10 0 0 0 0 0 00

DO ORDINARIO .

Approvação doM.R.P. M.Manoel Monteyro da Con.


gregaçao do Oratorio , Doutor na Sagrada T beolo
: gia , é Miſſionaria Apoftolico. ... in

ILLUSTRISSIMO SENHOR :

1o Livro intitulado Eman ', compoſto pelo


Doutor Anſelmo Caetano Munhos de Avreu
Gulma ) é Caſtello Branco , e a lição de obra cáo
erudita me confirmou o penſamenco , em que eu ef
tava, que em tão grave Doutor não era poſlivel def.
cobrir , que cenſurar , como a ſemelhante intento ef
creveo Calliodoro : Neque enim fas erat , ut quod Caffiod. Ep.
tantus Doctor produxerat, noſtra fententia in eo aliquid 22 .
corrigendum inveniret. O titulo de Ennæa , que quer
dizer Applicaçao do Entendimento, bem dà a conhecer
odo
o do Author , moſtrando - o tambem applicado , co
mo ſolido profundo , e diſcurſivo.
A materia he quaſi tao antiga como o meſmo
Mundo ; porque Author houve , que nao conten
te com dar a eſta Arte o naſcimento em Miſraim

filho de Cham , primeiro Rey Egypcio , a fez in


fuza em Adaó , primeiro Pay doUniverſo. E com
eſta antiga proſapia acreditou a Chryſopeia em hum
livro , que intitula : Gloria Mundi , alias Paradiſe
Tabula . O certo he , que ainda que a ſua antigui
dade nað ſeja tanta , he muita ; porque Hermano
In Proleg. ad BoheraaveMedico inſigne affirma, que jà da Chry
Inft. Alchem .
* Sopela apontou alguma couſa Eneas Gallero , quc
foreceo no quinto feculo , deſde o qual foy ſem
pre em augmento , creſcendo com os annos os Pro
feſſores Chryſopeios , fem embargo , que em todos
os tempos teve eſta Arte impugnadores accerrimos,
negandolhe huns a poſſibilidade , e outros a exiſ
tencia ; por cuja cauſa ſe empenhàraõ em defender
huma , e outra muytos Philoſophos, e muitos Chy.
micos , fundados nos principios Ariſtotelicos, e Car
theſianos , entre os quaes faó lem controverſia inſi
gniſſimos Joao de la Fontaine , Nicolào Flamello ,
Henrique Madathano, Arnaldo de Villanova, Joaó
Federico Helvecio , Raymundo Lullio , Bernardo
Treviſano , Theophraſto Paracelſo , e Theophilo,
que traduzindo o tratado de Alchymia de Erinéo
Philaleta confirma com a doutrina do Doutor Ane
Div . Thom . gelico a verdadeira exiſtencia da Aurifactoria , ac
2.2.9.77.n.2 . creſcentando , que diz o Santo ,que o verdadeiro
Ouro , que por eſta Arte le fizer , ſe pòde licita
mente vender, que val o meſmo , que aſſentar por

certo , que por eſta Arte ſe pode fazer Ouro ; pois


fe
fe affim o naő aſſentàra , eſcuſado fora reſolver á
queſtao da venda , porque ſeria de filbjecto non ſi!p
ponente , como lhe chamaõ os Philosophos , e noca
o Author com agudeza bem advertida, ;
Em fim eſta tranſmutaçao Hermetica , e eſta Ar
te Eſpagyrica tem ſido delvellado emprego de tan
cos engenhos , e curioſo affumpto de tantos livros ,
que na Bibliotheca Chymica ſe contaó mais de qua
tro mil Authores jà impreſſos, lendo talvez mais de
outros tantos , os que tem accreſcido depois , que
ſe deo à eſtampa a referida Bibliotheca. Porém entre
todos pode ter o melhor lugar eſte , que agora le
pretende imprimir ; porque entre os que vio Theo
baldo Hoghelande , que foraó mais de cem , como Theob . Hog.
elle diz , no que compoz , nenhum achou , que com hel. de Diflic .
clireza traráſſe eſta materia , porque todos a envol- Alchem .
vem em tað enigmaticos termos, que nem mii Edi
pos podem decifrallos. E eſta circunſtancia he , a que
fingularmente acredita ao Author de tað implicada
obra , explicar- le de tal maneira , que nao ſe pode,
rà achar, quem deixe de a perceber. Nem be nuit
to , que ſeja canta a ſua clareza , pois he proprio dos
grandes Doutores ſerem luzes : Luminis nomine Do. Pier. Valer.
Vcrb . Lu
clores appellarunt , diſſe Pierio Valeriano .
Mas ſe por eſte principio ſe faz entre todos uni, men .
.co , nao o he menos por erudito , ſubril, grave , clo
quente , e copiolo : os ſeus conceitos , e os ſeus
diſcurſus fað taõbem fundados, e taó perſuaſivos ,
que a vontade goſtoſa ſe lhes inclina , e centendi,
mento rendido os abraça .; porque a erudiçaõ lagra
da , é profana faz duplicada , nas ſuave força : ' e
ſendo eſte livro taõ lingular na clareza , con que

ſe explica , na energia , com que perſuade , na for


2a ça
ça com que convence ; e no eſtylo , e methodo
com que eſtà compoſto , atè ſe ſingulariſa em fer o
primeiro deſta materia na lingoa Portugueza , cir
cunſtancias , que baſtando divididas para o fazerem
raro , todas juntas o conſtituem maravilhoſo , co
mo a ſemelhante intento dille Calliodoro : Habent

hec figillatim diſtributa præconium , conjuncta mt


raculum . E quando nað baſtàra , para acreditar de
verdadeiro eſte Syſtema, a copia de Authores, com
que ſe corrobora , e a mulcidaõ de exemplos , com
que ſe confirma, a meſma contextura do Livro he
evidente prova da verdadeira exiſtencia da Chryſo
peia , ou Aurifaćtoria ; porque ſe eſta ( como querera
muitos ) tem o Vitriolo por materia , eſte , que tam
bem o he da tinta , com que ſe eſcreveo a obra , fou
be o Author converter em tantos bocados de ouro ,
quantos ſao os periodos dos ſeus Dialogos. Nem hé
muito, que ſeja de ouro o eſtylo deſte Tratado, por
que eſte he do Author o éſtylo proprio, ou eſcreven .
do, ou fallando , ou na converſaçao , ou na diſputa;
lendo ſempre tað aurea a ſua eloquencia', que ſe pò
de com verdade dizer della aquillo , que da de Het
cules ſe fingia , pois quando diſcorre com fraze tað
corrente , como com cadèas de ouro prende, a quem
O Oliye .
Finalmente neſte Livro fe verà o principio cer
to ; porque o ſeu Author obra com tanto acerto na
Arte da Medicina , que profeſſa ; pois quem ſabe
deſcobrir a Pedra Philofophal , que he Medicina uni
verſaliſima, naõ póde deixarde ſer ſingular na Me
dicina. Aflim o tem moſtrado a experiencia , achando
os enfermos na ſua practica canta utilidade para di
latar a vida , quanta os fãos na ſua cheorica para
bcm
bem empregalla. Pelo que me parece a obra mui
2 to digna de fahir à luz publica . Voffa Illuftriſlima
mandarà , o que for lervido. Congregaçao do Ora;
torio 14. de junho de 1730,

Manoel Monteiro,

Ifta a informaçao, pode-ſe imprimir o Livro ,


de que le trata , e depois de impreſſo corne
V
para le conferir , e dar licença para que corra . Liſ.

boa Occidental 15. de Junho de 1730 .

Gouvea,

aa ij DO
DO PAÇO .

Approvação do Reverendiſſimo Padre D. Raphaël


Bluteau , Doutor na Sagrada Theologia , Prègador
da Rainha de Grão Bretanha Henriqueta Maria de
Françá , Qualificador do Santo Officio no Sagrado
Tribunal da Inquiſição de Lasboa , e Academico da
Academia Real. 3
in

SEN HO R.

lo titulo da obra , a que feu Author , o Doutor


Anſelmo Caetano Munhos de Avreu Gurmao e
Caſtello Branco , quer dar a luz , com grande rå
zzo , e com diſcreta novidade lhe chama Ennea ,
vocabulo Grego , compoſto dapropoliçaõ En , e do
nome
nome Noos , ou Nous , palavras , que valem o mel- Amalth . lau
mo, que Applicação do Entendimento ,ſegundo o ſen- rent.
tido, que Authores de Vocabularios lhe dao , e neſte
papel he parto da perſpicaz intelligencia , e agudiſ-,
limo juizo do ſeu Author.
Todas as obras bem governadas neceſſitao de
applicaçaó intellectual , principalmente livros de
materiascontroverſas , porque da variedade das no
ticias , e oppoſiçaó dos juizos reſultað opiniões
taõ contrarias , que a verdade combatida , e vacil
lante neo ſabe, que partido ha de tomar para o acerto,
Na minha opiniao abaixo das queſtões ſobre
pontos, e artigos de Fè , nas Efcholas , e Acade
mias ha muitas materias dignas da Applicação do
Entendimento humano , e ainda que intrincadas , e
difficulcozas de averiguar , merecedoras da inveſti
gaçao dos eſpeculativos , como entre outras, a exiſ
tencia do Fenix , a que com verſos hexametras deſ
creveo Claudiano com tanta miudeza , como ſe o
tivera criado em caſa ; e a Quadratura do Circulo ,
que no teu Tractado de Mathematicis complementis,
o Cardeal Cutano reprelenta , ou pretende demoſ
trar como invento da ſua iciencia eminentiflima.
Na poſibilidade da Pedra Philofophal ſe divi
dirao engenhos ſubtiliſimos com tao douta , ainda
que diverſa applicaçao , que para muitos deixarão
a queſtao indeciſa. Na minha opinião fc ſe pode
rað ajuntar os Authores , que neſta materia cfcre
-vèrão pro , e contra ,, taó grande ſeria o numero dos

-que affirmão a exiſtencia da dita Pedra ( que po


- rèm não he Pedra ) como o dos que a negáo .
::: Hum dos mais communs argumentos , com que
os Anti-Chymicos , ou Anti- Lullos querem provar ,
que
que não ha', nem houve tal Pedra no Mundo , he
que não conſta claramente , que houveſſe Profeſſo
res conhecidos , e authenticos deſta admiravel cranf
mutação de Metaes impuros em Ouro . Mas contra
eſta objecção , quem havia de ſer tão imprudente ,
e inimigo de ſi meſmo, que ſe quizeſſe declarar pe
rito , e Meſtre em humaArte, em que qualquer Mo
narcha havia de folgar de ſer diſcipulo , e aprendiz,
não ſó para ter em caſa huma mina aurifera para
todo o genero de emprezas , mas tambem hum ali
xipharmaco contra toda a forte de doenças.
Todo o homem poſſuidor de táo raro theſouro
ſe veria quaſi obrigado a viver deſconhecido , e an :
dar por eſte Mundo ſempre peregrino , como fe
conta do Coſmopolita , e de Federico Gualdo, do
qual ſe diz em hum livrinho , impreſſo em Colo
nia anno de 1694. que chegando a faber", que em
Veneza , onde reſidia, a gente tinha fundamento para
crer , que por virtude da Chryſopeia - elle paſſava de
trezentos annos, Inſalutato hoſpite deſappareceo com
o receio , de que o Senado com premios , ou amea
ços o obrigalle a manifeſtar o ſegredo de tão dura
vel conſervação , como ſuccedeo a Raymundo Lul
lo , a quem Duarte III. Rey de Inglaterra teve pre
ſo em huma torre de Londres, da qual ſahio para en
praça publica converter em Ouro buns finos da di

ta Cidade , com condição , que o dito Rey ſe vale


ria daquelle Ouro para a guerra contra os Turcos,
ao que o dico Rey falcou , e'moveo guerra a Fran
ça , e o dinheiro da dica tranſmutação foy chama
do Nobile Raymundi , como ainda hoje fe vè em al
gumas moedas , que os curioſos conſerváo ; e ſeme
não engano , ainda hoje em Inglaterra chamada No
ble .
ble. Em França , ouvi dizer , que do grande cona
curlo da gente , que em Londres acudio a ver a con
verſaó dos finos em Ouro , o dico Raymundo del,
tramente eſcapulio , e feito Religiofo de S. Fran .
ciſco , paſſou a prègar a Fè em Africa , onde na ida
de de oitenta annos os Mouros o apedrejàrão. O
ſeu corpo foy trasladado a Malhorca , onde o San
to Varão he venerado como Martyr. Em Autho
res Latinos conſta o ſeu elogio deſtas trez palavras
Chymie , & Medicinæ peritiſimus.
Tambem correo perigo de ſer apanhado o famo
fo Alchimiſta Nicolao Flamel , porque o Rey de
França Carlos VII. ouvindo os grandes gaſtos do
dito Flamel na fundação de quatorze Igrejas , e ou
tros tantos Hoſpitaes , mandou ( pelo que eſcreve
Borel ) a hum Meſtre de Requetes , chamado Cramoi
fy , que comaſſe conhecimento dos meyos , com que
ajuntara cabedaes para taó exorbitantes diſpendios.
Mas ao dito Miniſtro tapou Flamel a boca com hum
vidro cheyo de pòs , a que os da Arte chamão de
Projecção , e ſervem para purificar Metaes , e con
vertelos em ouro vivo ,e accreſcentar a opulencia .
Por não ficar victima da ambição dos Potentados
nenhum dos Philofophos Hermeticos, Eſpagyricos , e
curiofos da mayor , e melhor Arte do Mundo, com
homens poderoſos fe facilita ; mete -ſe nas ſuas con
chas , anda peregrino , ou vive ſolitario ; mas con
tente ; porque com dinheiro para o neceſſario , e
medicamento para doenças; e ſe lhe fora poſlivel,
ſe fizera inviſivel a ſi meſmo.
Parece , que a eſte genero de felicidade aſpira
raó os Irmãos chamados daRoſa Cruz . Ha huns an
nos , que em Alemanha ſe erigio com eſte titulo hu
ma
ma Irmandade de Philoſophos, que tambem ſe chama:
vaõ os Inviſíveis , eelles o eraó de ſorte , que com in
violavel fidelidade obſervavao as Leys , e Regras
da fua inſtituiçao ; carreavaó -ſe com enigmas , e fe
preſavaõ de ſaber ſegredos , ainda mais notaveis ,
que o da Pedra Philofophal ; porém a fua inviſibili..
dade era o ſeu mayor myſterio ; porque com ella
não ficavaõ expoſtos à perigoſa curioſidade dos
Grandes , mas com o tempo ſe veyo a conhecer ,
que a mayor parte dos Arcanos , que elles attribu
hia ) ao ſeu grande eſtudo , e penetraçao do eſpiri
to , eraõ chymera de fabulofa jactancia.
Eu aqui
nao faço mençaõ delles , ſenao para confirmar o
prudente recato , com que devem viver os que tive
rem a fortuna de conſeguir algum notavel deſcobri
mento em Arte , ou Sciencia , porque neceſſitão de
outro anel , como o de Gyges , para ſe fazerem in
viſiveis, em quanto houver Magnates no Mundo.
A reputaçao deſta caó recondita Sciencia mui
tas vezes prejudica muito a vaidade , dos que com ra
zoens ſophiſticas, experiencias apparentes , e apo
cryphas tradiçoens , quizeraõ certificar a fua exif
tencia . A eſtes apaixonados padrinhos do Lapis re
nho às vezes ouvido provas ,que até na Sagrada Ef
cricura'- pareciao ſolidarnente fundadas. He verda
de , que no livro quarto de Efdras Capitulo oitavo
verſiculo ſegundo , que ſe acha no fim da Biblia , diz
o Texto : Dabit tibiterram multam magis , unde fiaf
fietile ; parvum autem pulverem , unde aurim fit ; e
com errada expoſiçaõ querem , que neſtas palavras
ſe declarem os pontos principaes da Pedra Philofo
phal , a ſaber a tranſmutação em ouro neſtas qua
tro : Terram unde aurum fit; e a multiplicaçao do
mer
meſmo Ouro neſtas ſeis : Parvum autem pulverem ,
inde anrum fit ; mas no dito lugar taó fóra cità o
dito Efdras de fallar em Alchymiſtas, que o ſeu in
tento he tratar dos caſtigos , que Deos dà aos pec
cadores impenitentes , e dos premios , com que ha
de remunerar os juſtos.
Com eſta advertencia nao pretendo deſtruir os
fundamentos , que a douta , e ſubtiliſſima eſpecula
ção do Author deſte opuſculo , aſſenta a poſſibili
dade , e certeza da Pedra Philofophal; porque o ſeu
fim he querer , que faiba o Mundo , que tambem
em Portugal ha engenhos capazes para penetrar nos
Arcanos da mais occulta Philoſophia ; e aos valſal.
los de Voſſa Mageſtade nað he totalmente infruc.
tuoſo eſte eſtudo ; porque na pratica das ſuas ope
raçoens , muitas vezes ſuccede , que trabalhando
inutilmente no que ſe buſca , ſahem felices abortos,
quero dizer , effeitos não eſperados das materias ,
e dos modos com que ſe obra ; e neſte caſo eſta En
næa do Author não ſomente ſeria Applicação do En
tendimento , mas effeito , e fructo de huma laborio .
fa eſpeculação , e de huma docil credulidade.
Muitas outras utilidades tacitamente pedem , que
Voſfa Mageftade permitta , que eſte opuſculo laya
a luz ; porque ſuppoſto no exercicio deſta Arte ,
empobreceraõ alguns , que eſperavaó enriquecer , a
muitos outros fuccedeo o contrario . De mais do
que , por fortuitos dezaſtres nao perdem as Artes o
credito. Quantos Aſtrologos com falſas prediçoens
fizeraõ mentir as Eſtrellas ? E das regras da meto
poſcopia , quantas vezes injuſtamente ſe queixarão
os Phyſionomiſtas ? Como ſe em todos os roſtos ſe
obrigara a natureza a pintar fortnnas, ou infortunios.
bb A iſto
A iſto ſe accreſcenta , que a Chryſopeia nað he
Sciencia para todos ; para muitos he, e lempre fe
rà enigma ; porém das noticis , que neſta obra a
todos poderão ſer variamente proveitoſas : aos Her
meticos ", porque os confirma na ſua profiſſao ; aos
Anti -Hermeticos, porque os inſtrue , e deſengana ;
aos Rhetoricos , porque com grande elegancia , e
muita erudiçað o Author le explica ; aos Philofo
phos , porque repreſenta poſlivel a tranſmutacao
de hum Metal , em outro ; aos Theologos , porque
na eſphera da Natureza a obra parece milagre , e
demonſtraçaõ da omnipotencia Divina ; aos Monar
chas, pode encher , e rechear os ſeus theſouros; aos
.Pobres, porque com ricas eſmolas a caridade os po
derà cirar de lazeira ; e finalmente ao Author , por
que pela impreſſao deſtas folhas communica a fua
patria a inteligencia de huma obra , que pede mui.
ta Applicação do Entendimento , chamada de ſeuspro
feſſores Obra Magna , e que pelo beneplacito de
Voſſa Mageſtade , ſerà Obra Maxima, Obra fum
ma , e ainda que pequena muito precioſa , porque
auriferaria , e tao Aurea , que fem minas dà Ouro ,
e com pòs o multiplica . Lisboa Occidental Cara
dos Clerigos Regulares de N. Senhora da Divina

Providencia 29. de Julho de 1732 .

D. Raphaël Bluteau .C.R.

Que
Ue ſe poſſa imprimir , ' viſtas as licenças do
Sanco Officio , e Ordinario , e depois de im

prello tornarà à Meſa , para ſe conferir, e taxar ,


que ſem iſſo não correrà. Lisboa Occidental 30.
de Julho de 1732 .

Pereira. Teixeira. Bonicho. Rego.

Scà confórme com o ſeu Original. Lisboa Occidental


Е. na Caſa de N.Senhora da Divina Providencia 24. dc
Março de 1733 .

D.Antonio Caetano de Souza.C.R .

Ifto eſtar conforme com o Original pòde correr . Lil.


V boaOccidental24. de Março de 1733 .

Fr. Alencaſtro. Cunha. Teixeira . Sylva. Soares.

Iſto eſtar confóme com o Original pòde corre.Lisbox


V Occidental 27. de Março de 1733.

Gouvea.

Axañ eſte Livro em 1000. rèis em papel,para que


T poſta correr. Lisboa Occidental 28. de Março de
1733 .
Pereira. Teixeira, Rego

bb ij INDI.
beto.sk UOSTEN
on

INDICE

DO

CAPITULO ,

INTRODUCCAÒ , E PARAGRAFO ,
Que ſe contém no Dialogos , de que
conſta a

PRIMEIRA PARTE

DESTA .

Ε Ν Ν Ε Α .

DIALOGO PRIMEIRO .

APITULO UNICO . Da origem , antigur


dade , e excellencia da Arte Magna ; e dosſeus

dous mayores myſterios , que ſão a Chryſopeia,


e Argyropeia , com que os Hermeticos evitað
todas as enfermidades, curao todas as doenças,
dilatað muitotempo as vidas, e transformao em
Prao
Prata , e Ouro todos os Metals. pag. 1 .
S. I. Introducçaõ do primeiro Dialogo. pag. I.

S. II. Da origem , etymologia , e antiguidadeda Chy .


mica . Pag.6 .
S. III. Proſeguendo a meſma materia da -ſe noticia de
Hermes. pag. 20 .

S. IV . Da excellencia , e myſterios da Arte Magna .


pag . 23
$ . V. Da Chryſopeia dos Hebreos . pag. 35 .
S. VI . Da Arte Magna de Salamao . pag 41 .
S. VII. Refponde- ſe a humaobjecçao. pag . 56 ,
S. VIII. Da Chryfopeia dos Philoſophos , é Medicos
provada com a expedição dos Argonautas.
pag . 85.
§. IX. Da Chryſopeia dos Romanos', Arabes, e de
Nações do Mundo , provada com authoridade
dos ſeus Hiſtoriadores , Medicos, Philofophos ,
Juriſconſultas , e Theologos. pag. 112 .
S. X. Prova-ſe a exiſtencia daChryſopeia -com ex
' . emplos fuccedidos em varios Reinos. pag. 140.
S. XI. Elogio dos Hermeticos peregrinos. pag. 157 .
S. XII. Refutao -ſe finalmente todos os mais argumen
tés , que contra a Chryfopeia oppoem o Reve.
rendiffimo Feyjoo no féu Theatro Critico .
pag . 171 .

1
E,

SUP :
SUPPLEMENTO DO SUPPLEMENTO .

O fim da undecima pagina do Supplemento


deſta obra ficou truncado o paragrafo que
.
N
principia : Nem ſe pode impugnar Logicamente eſta
transformaçaõ dos Sinos em Ouro , br . Por iſſo ſe
imprimio diminuto , ou informe eſte fyllogiſmo :
Nenhuma couſa omittida por todos os contemporaneos
Eſcrittores be verdadeira ; a transformaçaõ dos Sinos
de Londres em Ouro feita por Raymundo Lullio he
couſa omittıda por todos os Authores , ou Eſcrittores
contemporaneos : Logo a transformação dos Sinos em
Ouro , feita em Londres por Raymundo Lullio, nað he
verdadeira
E à vilta do Amannuenſe deixar no tinteiro
fyllabas, palavras , regras , periodos , e diſcurſos
inteiros, nao ſe admire o Leytordouto de que troa
caſſe dipthongos , como ſe ve nos titulos, e em va
rias partes delta obra , aonde por ficar o dipthon
go de c trocado por dipthongo de Ⓡe_vemos erra
damente eſcrico Ennea em lugar de Enncea , qus
he a palavra grega que ſignifica Applicação do Ene
tendimento. Finalmente na Approvaçao de D. Rafael
Bluteau faltað quatro palavras , que agora vaó eſcri
tas em grifo unidas com as precedentes. Na ſegunda
regra do paragrafo antepenultimo ſe deve ler : fun
damnentos, em que , &c. Na terceira regra do para
grafo ulcimo ſe deve ler : neſta obra ſe encerrað , & c.
E depois da palavra Mönarchas falta porque , que
ju'tumente devo reſtituir a eſte diſcurſo por gratiti
cució di honra , que o Autor me faz com eſte elogia

SUP:
SUPPLEMENTO
0 DE ALGUNS DISCURSOS DESTA ENNÆA ,

e que da Eft ampa fahiraõ defectuoſos , e imperfeitos ; porque


• Amannenſe quando copiou o ſeu original omitio algu
mas addicçõens marginaes, que o Author tinha
eſcrito nos ſeuslugares para complemento
deſta obra .
S. I.
Odos os Authores de livros, que ſahem er
rados do Prèlo , coſtumaõ dar neſte lugar
T huma ſatisfaçaõ aos Leitores , culpando ao
Impreſſor , e ao Corrector como cumplices nas ſuas
erratas. Porém ainda que no Prologo eſtà eſcrito a
folhas 48.regra 25. conſiderarey em lugar de condem
narey , a folhas 8.do primeiro Dialogo regra 15. Zo
fino em lugar de Zozimo, a folhas 166. regra 18. xas
em lugar de fixas , a folhas 168. regra ultima, Car
moiſy, em lugar de Cramoiſy, e em outras paginas, e re
gras ſe achao outras muitas imperfeiçoens, que o Lei
tor perdoarà , c emmendarà , quando as for encon
trando : nað me queixo deſtas venialidades vendo ,
que ſao poucos os paragrafos , em que nað faltem pa.
lavras, oraçoens , Texcos, authoridades , e às vezes
foluçoens , e argumentos , de que ſe compoem dif
curſos-inteiros. Mas como eſta Ennea nos Criticos ,
e nos eſcrupuloſos acharà muitos inimigos, nao he
juſto , que ſaya deſarmada ao dezafio. Como para
conſeguir a ſua empreza intenta provar , que Feyjoo
não he Critico , e perſuade , que Salamað foy Her
metico , não eſcrevo neſte Supplemento lenao o que
omitio o Amannuenſe , reſpectivo a eſte aſſumpco.
S. II.
Primeiramente na regra 12. da 10. pagina falta
neſte diſcurſo , o que agora vay eſcrito em grifo , en
tre
tre as palavras , que vão copiadas de redondo : mais
facilmente eſcurecem as ſuas luzes do que extinguem
as luzes perpetuas ; porque como diz S. Paulo aos Re
manos , não tem defeza alguma 0Juiz , que julgando a
outro homem , na ſua propria ſentençaſecondemna , fa
zendo incoherentemente o meſino, que em outra pessoa

cenfura : Propter quod inexcufabilis es , o homo, omnis,


Ad Rom.2. 1. qui judicas. In quo enim judicas alterum te ipſum con
demnas : eadem enim agis, quæ judicas. Primeiramen
te para extinguir eſtas luzes , &c . E na meſma pa
gina na regra 23. ſe havia de eſcrever : feguio a nar
ração ſó de Ariſtobulo , Hiſtoriador Grego , condem
nando-ſe inexcuſavelmente por cenſurar em Liceto aquil
lo meſmo, que approva em Arriano ; porque ambos ef
tes Authores fao
unicas , e ſingulares teſtemunhas dofa
Eto , ou do fucceffo , que affirmaõ : In quo enim judicas
alterum te ipfum condemnas. Para eú agora condem
nar a Feyjoo com o ſeu proprio juizo , e ſem nenhuma
eſcuza , nem defeza pergunto , e reſponda Feyjoo , ou
alguem por elle : e porque não merece tanto credito
h

Liceto , & c. No fim da pagina 14. do primeiro Dia


logo falta eſte paragrafo inteiro. Como Feyjoo crè as
authoridades de tað graves , e doutos Eſcritores entre
os quaes tem o primeiro , e principal lugar Santo Agof
tinho, oilça agora a ſua incredulidade a prejudicial con
ſequencia, que ſe ſegue a qualquer incredulo da humana
authoridade, fundando- ſe para ſua mayor confuſao na
doutrina do meſmo Santo . Todo o homem , diz Agora
tinho , que nega a fé , e duvida o credito à authoridade

humana fica obrigado a confeſſar , que não ſabe de quem


he filho , porque ſendo certo , que qualquer homem deve
a noticia , e conhecimento de quem be ſeu payſo à confif
fão , é authoridade de fua mãy ; e não conhece quem be
fua
ſuamãy fenaõ pelajauthoridade, e teſtemunho das par..
teiras, amas , e criadas, que lhe all Nirao ao parto :
duvidando o filho incredulo do teſtemuinho das partel
ras , e negando o credito às criadas, e amas a reſpei
to de ſua may; e nao crendo a confiſað , e authoridade
materna a reſpeito de ſeu pay , por ſerem eſtes teſtemu.
nihos humas aſſeverações fi:ndadas em authoridade, e
fé humana , nao ſabe , nem pòde ſaber o incredulo , de
quem be filho; por quenegada a humana authoridade

daquellas teſtemunhas ( que certificað fer o filho na ſua


prezença naſcido , e não roubado, ou trocado por ou

iro ) não poderà por outro modo averiguar , quem forao


feus verdadeiros pays; e com tudo he tao crivel, e ref
peitada a authoridade humana , que não se podendo ave
riguar , nem ſaber por outromodoeſta verdade , a crem
firmiſimamente os homens, ſem nenhuma duvida, fun
dados ſó na authoridade daquellas tað pouco authori
Div.Aug. lib.
Sadas peſſoas : Non enim ratione ullo pacto fciri po- de Utilitat.
teft : fed interpoſita matris authoritate de patre cre, credend, cap.
ditur : de ipſa vero matre plerumque nec matri, led II .
obſtetricibus , nutricibus , famulis. Nam cui furárifi
Jius poteft , aliuſque fupponi , nonne poteft dece
pta decipere ? Credimus tamen , & fine ulla dubi
iatione credimus , quod fcire non poſſe confitemur.
E daqui ſe ſegueagora , que aſſim como, quem nega a hu
mana authoridade, nao podeJaber,de quem befilho; tam
bem todo o homem , que neſta duvida affirma com to
da a certeza , quem he feu pay , nao pode ſem inexcu
favel contradicção negar a fé , eautboridade humana;
e como Feyjoo ſem ter outros fundamentos , que os aci.
ma referidos , affirma no ſeu Theatro Critico fer fi- Feyjoo Tom .
Iho ſem nenhuma duvida ) do Señor Don Antonio 4.Diſcurſ.14.
Feijoo Montenegro , deve tambem confeſar , que nao 5.2.3.num.85.
CC pode fol.412 .
pode negar ſem manifeſta contradicção da ſua propria
doutrina o grande, e reſpeitado credito dos antigos Ef
critores, e a fé da bumana anıthoridade ; e por conſe
quencia a exiſtencia das Luzes perpetuas , que com
ella ſem mais outro algum fundamento hoje ſe provao .
Na pagina 15. regra 7. omittio o Amanuenſe a

Feyjoo Tom . fegunda parte deſta oraçao : ( e com muita eſpecialida


de Santo Agoſtinho, Luiz Vizes, e Martin Del
4. Diſcurſ.14 .
$ 22.num.69.Rio , que o meſmo Feyjoo com grande contradicçãõ elo
78. 82. fol. gia. ) Na pagina 16. regra 28. falrao neſtas orações
405. 410 . as palavras, que vaõ em grifo : Ficão ſendo fem ra 1
411 . zões, para impugnar as luzes : In quo enim judicas
alterum , te ipſum condemnas , porque com inexcufa
vel , e manifeſta contradicçaõ impugna a meſma doutri
na , que defende : Eadem enim agis , quæ judicas ; e
quando as luzes eſtejao bem impugnadas ficaõ as glo
rias ( de Heſpanha ) mal defendidas. No fim deſte
paragrafo falta a leguinte concluſaố deſte diſcurſo .
A eſte propoſito me lembra, que perguntado o grande
!
Philofophó Ariſtoteles , que conſa lucravaõ os mentiro
ſos com os ſeus enganos Reſpondeo, como refere Laer
CIO , que conſeguiao , nao ſerem cridos, quando algumas
Laert.lib.5. vezés fallavað verdade': Ut cum veta dixerinr ,non
illis credatur. Os Canoniſtas , e os Legiſtasnaõ daõ cré
dito a teſtemunhas varias , e inconſtantes ; porque os
homens ( como Feyjoo ) inconſtantes , e varios no que re
ferem , or querem enganar a outros , 01 fallað fern confi
derar , o que dizem , e de qualquer deſtes dous modos ,
fica ſendoindigno de fé , e crédito tudo , quantoſemelhan
tes homens atfirmao. E no paragrafo ſeguinte faltao
na 6.regra eitas palavras:Sempre a incorruptibilidade
dos corpos , que com ellas ſe achàrao inteiros, e ſem
nenhuma corrupçaó (como naturalmenteſuccede a todos
Os cao
os cadaveres de Spitzberga, e aos defuntos ſepultadosno
Cemeterio dos Padres Franciſcanos de Toloja ) prova a
grande antiguidade da Chymica .
Para que fiquejunto em hum lagar, o que diſperſo
por muitas parces impugna a Feijoo , perverto neſte
Supplemento aordem , com que o eſcrevo nos Dialo
gos. A folhas 139. do primeiro Dialogo falta na 8. re
gra:Defendeo o contrario ſendo velho (comoſendo ve
iho ſe retratouSantoAgoſtinho,do que eſcrevèo
ſendo man
cebo) eſcrevendo a Summa Theologica.E na regra 14 :
dameſmapagin . ſe ſegue depois da palavra Teſtamen
tum : Imitarão eſtes dous grandes Doutores ao Doutor
dasGentes S. Paulo , que ſe apartou ſendo Varao, do que
tinha falado ,ſabido, é excogitado, quando era mancebo:
Cum eſſem parvulus ,loquebar ut parvzilies , ſapiebam Ad Corinth.
ut parvulus, cogitabam ut parvulus : Quando autem 13.11 .
fačtus ſum vir , evaciavi,que erant parvuli ; e bem
pode ſer , que o motivo de ſeguir depois o Doutor
Angelico opiniao contraria & c.
Todo o ſeguinte difcurlo falca na pagina 188. en
tre as duas palavras Enodato , e agora , com que
principia o paragrafo, devendo começar deſte modo :
EÑOD ATO . Com varias ſoluções ſe pòde reſpon
der , ou com muitas reſpoſtas ſe deve diſolver eſte negati
vo , e infeliz argumento. Chamo infeliz ao argumen
tonegativo, ou de authoridade negada , porque não pro
vando nunca o que intenta , como com a doutrina de Ari
ſtoteles moſtrað todos os Logicos : Ex puris negativis
nihil colligi, hemuitofamiliar aos Hereges, conforme
por liçaõ de Chriſtovao Gileſcreve o grande Cenfor da
Academia Real da Hiſtoria Portugueza , o Illuftrif
ſimo Senhor D. Manoel Caetano de Souza , tað illus
tre pelo ſeu eſclarecido ſangue , como pelas filas incom
cc ij para
Souſa Expe- paravers letras, e univerſaliſimas noticias : Quod eſt
dit . Hifpan. Hæreticis familiare. Funda-ſe eſte argumento na omil

Sanét. Jacob. ſao , ou no ſilencio dos Authores contemporaneos , ou dos


Tom.1. Part. Hiſtoriadores, que florecerað pouco tempo depois dofuc
2.Sect.6. Af- jo
ce das meſmas couſas, que nao eſcrever ao ; ea eſtas
ſert.44. num .noticias recebidas por tradições verdadeiras , que baſtão

838. fol . 379. para provar a verdade , ſegundo eſcreve S. JoãoChry


S. Chryloft. ſoſtomo : Lift traditio ? Nihil quæras amplius, ou por
Homil . 4 . in outros modos bem averiguadas impugnað ( à imitaçao
2. Thellalo. dos Hereges ) alguns Eſcritores ignorantes com o ſilen
nic . cio , e omiſſão dos contemporaneos Hiſtoriadores ; por
que naopodendo contradizer , o que pretendem impugnar,
recorrem ao negativo na falta do poſitivo argumento.
Como não podem eſtes Adverſarios arguir com autho
ð
ridade megante , argumenta infelizmente com authori
dade negada ; é deſta forte nao ſohe falſo eſte argumen
to , mas erroneo , como diz o mayor Critico do Mundo
Pagi in Cri- Antonio Pagi : Argumentum negativum , omni alia
tic . Hiſtor. probatione denudatum , fallax , & errori obno
Chronolog. xium . Poriſſo nað ſó osPhiloſophos , ſenao tambem os
. Santos Padres, e osHiſtoriadores Ecclefiafticos , e Pro
Annal . Eccl .
Cæfar.Baron: Fanos refutàraó eſte argumento , para exterminarem de
Tom . 1. Sz. Republica das Letras eſtapeſte do Orbe Literario , co
cul.2.ad Ann . mo ſe pode ver em Ceſar Baronio , Natal Alexandre ,
Chriſti. 147 Jacobo Saliano , Theophilo Raynaldo , Joao Columbo ,

9.15 Pedro da Fonſeca , Ignacio Laubruſel , Joao Cabaſſu


cio , Nicolao Harpersfeldio , Joao Pineda , Franciſco
Turriano, Guillielmo Beveregio, Affonſo Toſtado, Luiz
Tena, Chriſtovao Gil, Affonſo Salmeirao , J. Maximo ,
Santo Agoſtinho , e o Doutor Maximo S. Hieronymo ,
aos quaes cita , e ſegue Souſa ſenao maximo , em tudo
grande. Earazao, porque o argumento negativo he fal
So, e erroneo , he , porque entre a couſa ſuccedida , ea Ef
critura
critura, em que ſe le , 011 podia ler eſte ſucceſſo,nað ſedà ,
nem ſe pòde naturalmente dar conexão neceſſaria ; por
que ſempre a couſa verdadeira ſuccedeprimeiro, do que ſe
eſcreva- na Hiſtoria ; e muitas vezes eſcrevem os Hidio
riadores, comoſuccedidas , couſas que nunca ſuccederaó.
Algumas vezes ſe perdem os eſcritos, em que ſe relatað
couſas fuccedidas, como acconteceo ( ſegundo diz Nicolao
Serario ) aos vinte Livros do Teſtamento Velho , e a 04
t1 os muitos volumes da Hiſtoria profana ; e outras mui
tas vezes deixao os Authores de eſcrever couſas ſuccedi
das no ſeu tempo , ſem por iſſo ficarem falſas ; porque o
ſilencio, de quem não eſcreve , e fecalla, não pode deſtruir
a eſſencia da acção obrada, e fuccedida.
Muitas couſas cremos de Fé , que ſucceder ao antes ,
e depois da vinda de Chriſto , ſem que eſtejao eſcritas
em ambos os Teſtamentos. Faz S. Judas Apoſtolo men .
çao de huma diſputa , que o Archanjo S. Miguel teve
com o Demonio no tempo do Teſtamento Velho, a ref
peito do corpo de Moyſes : Cum Michaël Archange- Sanct.Jud.
Ius cum Diabolo diſputans altercaretur de Moy- Apoítol . Ep.
fi corpore ; e no Velho Teſtamento ſe nað acha eſcrita Catholica v.
eſta diſputa, como no valle de Moab re naõ deſcobre o 9 .
corpo de Moyfés. Mas deſte ſilencio ſe não pode, nem
deve inferir , que não houve naquelle tempo eft z diſpu
ta ; porém devemos entender como adverte Lorino , que
S. Judas vio eſta diſputa em algnm livro , que ao de
pois com outros ſe perdeo , ou que o Apoſtolo eſcreveo ,
o que ſabia por bem averiguada tradição. Não eſcre
- veo S. João Evangeliſta no ſeu Evangelho muitos , e
muito verdadeiros milagres , que na prezença de ſeus
Diſcipulos obrou Chriſto : Mulca quidem , & alia ſigna Joann . cap.
fecit JESUS in conſpectu Dilcipulorum ſuorum , 20. verf. 30.
1
quæ non funt fcripta in Libro hoc ; e com tudo nãó & 31 .
tira
tra o ſilencio do Evangeliſta a lé deftes occultos , enão
oferitos milagres. Com ejte ſilencio calão os Evangelif
tas o dia em que naſceo Chriflo : com ejie ſilencio ca
lão os nomes , e as dignidades dos Magos: com eſte fi
lencio calão ós Pays da Virgem MARIA , • Senhora
Noſſa : com eſte ſilencio calão o Naſcimento , Morte ,
Refurreição , e Afumpção da meſma Senhora ; e com
eſte ſilencio calão outras muitas couſas , que notarão
Saliano , Raymundo , Souſa , e outros Eſcritores ; mas
Salian . Tom . tambem nòs nos devemos calar , ſem deixar de as crer;
5. Annal. Ve porque como diz o Apoſtolo S. Paulo ( affirmando de
ter . Teftam .
ad Annum . Fr, como de outra peſſoa, que ouvira no Empyreo pala
vras, que tambem não eſcreveo ) ha couſas em que não
3609,0:2. he licito fallar : Audivit arcana verba , quæ non licet
Tom.9. homini loqui ; porque como ſão altos , e incomprehen
Tract. de fiveis os jirizos de Deos , ninguem os pode comprehen
Sáct . Latron . der , confórme diz o Apoſtolo eſcrevendo aos Romanos:
cap. 8. n. 19. Incomprehenfibilia funt judicia ejus ; E quando não ſó
SouzaExped. em ambos os Teſtamentos Velho , e Novo ; mas nos mef
Hilp.S.Jacob mos Actos dos Apoftolos , nos Concilios, e no Martyro
. logio Romano ſe não acháõ algumas noticias pertencentes
2.Sect.6 .Part
Tom.1.
Al
à Hiſtoria Ecclefiaftica , que maravilha he não appare
ſert.44. num .
606. & fe cerem em 01: tros Hiſtoriadores as meſmas , e outrasHif

quent. foli . torias ? Que maravilha he não eſcreverem Philo , e fo


407 . feph ambos Judeos a prodigioſa Hiſtoria de Job ? Que
Ad Corinth . maravilha he nao eſcrever Joſeph as acçoens de muitos
12.4 . Pontifices Hebreos ? Que maravilha he não eſerever yo
Ad Roman . Jeph muta parte da Hiſtoria de Samuel? Que maravi
11.33 . Iha he nao eſcrever Joſeph quaſi toda a Hiſtoria do fe
gundo livro dos Machabeos ? Que maravilha he nað ef
crever Joſeph da Piſcina , taö celebre pelos ſeusmilagres ?
E que maravilha henaõ eſcrever Joſeph outras muitas
couſas, que omittio , ſendo tað notaveis, e por iſomuito
nota
Hotadas por Toledo, e Saliano, as qilaes cremos de Fe ,

poſto que omittidas por hum taŭ grande Hiſtoriader ?


Por eſtas razoens ſe deve deſprezar o arguimento ne
gativo ( Clava Herculca de Launoo, Hercules conmo .
diano ) como falſo , inepto , e ſem concludencia , legando
contra Joað Launoio feru infeliz Protector moſtra foað
-Baptiſta Tiers. He verdade , qire Launoio foy konem
eruditiſſimo; mas como em trinta e ſeis dos ſetenta volu
mes , que eſcrevèomais para deſtruir , do que para edifi
car , cubio orayo fulminado no Vaticano contra os ſeushe
reticos erros , eſcritos a favor de Lutheranos , Calvini .
tas , e Proteſtantes , inimigos declarados da Fé Catholi
ca , contra a qualſe armaraõ com eſte negativo argumen
to , para negarem o Purgatorio , e outras couſas , que
nos enſina a Fé , e tirarem o credito , e certeza a todas as
Hiſtorias Eccleſiaſticas, e Civis. Naõpoſſo deixar delà
mentar com palavras do eſclarecido Souza , que ſe atre
veſle hum Catholico, Religioſo , e Meſtre em Theologia,
à imitaçaõ dos Hereges , a commetter eſte erro particu
lar , querendo defterrar , como Critico , erros communs :
Sed quod fanguineis lacrimis deplorandum eſt , quod Souz
a loc .
etiam Catholici nonnulli , ut notat idem Fleures , ut
cit.num.9722
videantur docti, peſima Hæreticorum æmulatione fo
l.434.
in huncerrorem crahuntur. Naš advertio , que admit
tida a falſidade do argumento negativo , ou da authori
dade negada , como ſe foſſe verdadeiro argumento , se ſe

guem graviflimos.inconv ? Segue- ſe , que toda a


enientes
Hiſtoria do Teftamento Velho, que naū eſtà eſcrita nos Li.
vros Canonicos , be ſuſpeita , e fica ſendo inutil a liçaõ
de Joſeph , Saliano , Tornielo , Spondano , Natal Ale
xaudre , e de outros Hiſtoriadores , porque todos eſore
veraios ſucceſſos , que naõ lera " na Biblia , referindo -os
por lıçaž; e authoridade de Hiſtoriadores mais moder
nos,
nos , do que os meſmos fuccellos , que muitos annos de

poisde ſuccedidos hiſtoriàräõ. Segue-se, que a mayor


parte da Hifioria Ecclefiaftica , e Civil nao merece Fé,
nem credito : fogue-ſe, que fað falſas as tradições , os
milagres, as reliquias, e as virtudes dos Santos, como
Sabia , e Catholicamente lamenta , e chora Joao Baptif
ta Tiers : fogue- ſe , que ſedete negar o credito aos Criti.
cos , que ſe eſmeraraõ em apurar noticias, deſcobrir ver
dades , e deſterrar mentiras, como forao Tillemoncio ,
Baillet , Dupin , Natal Alexandre, e o meſmo Feyjoo;
por quetodos eſtes Criticos eſcrevera) coufas , que ſe
nað achaõ em outros Authores contemporanecs.
Reſtringir a authoridade dos Eſcritores fomente aos
que ſao contemporaneos, ou quaficoetaneos da couſare
ferida, e que naő ſejać pofteriores duzentos annos he
couſa voluntaria , extravagancia , ou fingimento lau
niano para exterminar a Fé humana do Mundo, eſta
belecida na authoridade dos Hiſtoriadores , que derav
a conhecer o Mundo ao meſmo Mundo. Para humano
ticia merecer credito de fé natural, e humana, baſta ſó a
humana authoridade de Author verdadeiro , que com
a ſuaverdade certifica oſucceſſo ,ſem que ſeja neceſſaria
a exiſtencia de teſtemunhas oculares, ou contemporaneas,
do que entao ſuccedeo.
Com eſta authoridade ſó , cremos o que na Cidade de
Dros eſcreveo por liçaõ de Varro Santo Agoſtinho ,ſendo
couſas antiquiſſimas eſcritas muito tempo depois por hum
Author , que naõ exiſte. Aflim cremos tambem a Dio
genes Laercio , e a outros Authores, que eſcreveraõ an .
tiguidades, que nao teſtemunhàraố ; porque aspodiao
participar de outros , que ſeperderaõ , e nao ſe podem
convencer de falſas.
Finalmente, ou o argumento negativo prova , ou nao
pro
prova o intento : ſe naõ prova , naõ conclue, e fica fen
do inutil ; e ſe prova o intento , tanto fere aos que ne
gaõ, como aos que afirmaš v.g.a exiſtencia da Chry :
Topeia , e muito mais aos que negaz transformar Ray
mundo Lullio com a Pedra Philofophal os Sinos de
Londres em Ouro ; porque ſe nað ſe pode affirmar , que
Raymundo Lullio fizeſſe aquella famoſa transforma
çaó por nai haver Author q
, ue affirmativamente cer
tifique eſte ſucceſſo antes deRoberto Conftantino , coma
fe poderà provar , que elle não tranformou os Sinos em
Ouro , não havendo tambem Author contemporaneo ,
que negue eſta transformação ?
E ainda qne fe achaſſe Author antigo , que nezaſe,
ou contradiſeſe a transformação , que Lullio fez dos
Sinos em Ouro, nem por iſſo feaffirmaria ſer falfa aquel
la tranſmutação , ſem o meſmo Author provar contra
os ſeus defenſores , que a tranſmutação dos Sinos em
Ouro , feita pela Chryſopeia era operação impoſſível;
e como nem entao , nem agora ſe lhe nega a poſſibilida
de , ſegundo confeſſa Feyjoo , tambem ſe lhena; pode ne
gar o ſucceſſo, fundado em tradiçoens, e no teſtemunho
de Authores tão ferios, e verdadeiros.
Nem ſepòdeimpugnar Logicamente eſta transforma
çaõ dos Smos em Ouro com o argumento negativo , ſenao
reduzido a eſtes dous Syllogiſmos , em que a concluſão do
primeiro feito em Darii he ajirmativa ,e a conſequencia
doſegundo formado em Ferio he negativa : Toda a cou
Ja que
, os Eſcritores contemporaneos nao eſcrevèrað he
falfa ; a transformação dos Sinos de Londres em Ouro,
festa por Raymundo Lullio , nao ſe eſcrevèo pelos Au
thores contemporaneos : logo a transformação dos Sinos
em Ouro feita por Lullio hefalſa .Nenhuma couſa omit
tida por todos os contemporaneos Eſcritores he verdadei
dd rai
ra ; e ambas as conſequencias, ou conclufoens deſtes dous
fyllogifiros faõ falſas por reſpeito da falſidade dasſuas
premiſſas, pois nao ſe pode agora provar a ſita verda
de . As confequencias devem contei -fe nos antecedentes,
o q !!e ſe não pode dar no noſſo caſo. A nað exiſtencia da
transformaçao dos Sinos de Londres em Ouro,feita por.
Rayınıındo Lullio , nað ſe contèm na não exiſtencia da
eſcritura coetanea ;porque bem podia Raymundio Lab
lio transformar os Sinos de Londres em Ouro , e não ef
crever ninguem eſta transformação , no meſmo tempo em
gue elle aviſta de toda a Corte a fez com a Chryſopeia.
E deſte diſcurſo ſeſegue , que ſea tranſmutação dos Sinos
em Ouro não eſtà hoje eferitaem Authores daquelle tem
po , he, porque elles a nao eſcreverdő , 04 ſe perderao ( co
mo Feyjoo affirma dos Hiſtoriadores de Bernardo delčar
pio ) e naõ ſépode,nem deve inferir deſte ſilencio , que nao
fez Lullio eſta transformaçao, porque nao houve quem
a eſcreveo.
Para Feyjoo conſeguir o ſeu intento devia moſtrar ,
ou provar em primeiro lugar ,que os Authores , que pre
cederão a Roberto Conſtantino tiverao inteira , e perfei
ta noticia de todos os fucceſſos : em ſegundo , que elles
.
quando eſcreverao ſe tinhão lembrado de tudo quanto
ſouberão : em terceiro, que elles quizeraõ eſcrever tudo
quanto lhe lembrava : em quarto , quie elles eſcrever ao
Souza Expe- quanto quizerao : em quinto , que tudo quanto eſcreve 1
dit. Hiſpanic. rao chegou ao tempo preſente : em ſexto que elle tem lido
Tom . 2. Syn- tudo quanto eſcreveraõ os Antigos ; e em ſeptimo lugar,
tagi . dc sra que elle tem na ſuamemoria , quanto tem lido em ſua via

vill. authorit. da ; porque em faltando alguma deſtas fete circunftan


Breviar . Ro.
cias , coino affirma ogrande Souſa , fica fendo inutiliffi
man . Apend.
12.Sect. 3.Al. mo o negativo argumento ; mas porque non omnes ca
. piunt verbum iftud, agora baſta dizervos, &c.
ſert.3 . numer
No
2820. f. 1219. '.
i No fim da pazina 107. falta eſta concluſao da
quelle diſcurſo . Contra ejłe , e outros ſirdos clama El.
Rey Salamai no Capitulo exio da Sabedoria, pedindo aos
Reys , como fuizes da Terra , e Miniſtros do Reyno do
fupremo Monarcha de todos os Reys , e Emperadores do
Mundo : Rex Regum , & Dominus Dominantium ,
9:42 oução, e entendao ,que Deos, Altiſſimo Senhor , lhes
deo o poder , e a virtude com que reynão, egoverna ) : Au
dite ergo Reges , & intelligite, difcire judices finium
terræ : Præbete aures vos , qui continetis multitudi
nes , & placetis vobis in turbis nationem : Quoniam
data eſt a Domino poreſtas vobis , & virtus ab Altiſli.
mo : Quoniain cum eſſetis miniſtri regni illius ; e ſe
Deos poem nos lugares os Miniſtros , que , coino Reys, háð
de governar o ſeu Reyno : Per me Reges regnant; ne
nhum Miniſtra poderà con dinheiro comprar o ſeu deſpa
cho, nem confer:varſeno Throno, ainda quepoſſua muito
Ouro ſe Deos o quizer depor do Solio .
Finalmente deixando outras couſasmenos impor
tantes , que poderàó fahir a luz , ſe eſta obra de tors
nar a imprimir falta na pagina 206. todo efte diſcur
fo , que entra no fim da 24. regra . Ainda ſou mais
pobre do que eſte ſabio Rey ; e nenhum homem , poſto
que ſeja hum Rey ſabio , pode fazer Otiro com a Arce
. Chymica, fenio for muito rico. De Salamãofapientif
Jimo Rey deIfraeleſcreve Pineda, que não fazia Ouro
pela Chymica para ſer rico , ſenão porque era riquiſſi.
mo ; e como os pobres ( comoeu ) nao tem riquezas para
uſar deſia Arte, nað lhes he licito trabalhar nella , porque
nao tem cahedaes para obrarem ſynceramente como de Pineda de
vem : Si vera eſt Alchymiæ ars auri faciendi ( nam ve- Reb . Salom :
ram elle nunc non ftacuo ) veroſimile eft illam ali- lib.4.cap.21 .
quando Salomonem excoluiſſe , non quidem tam ut fol.239.
locu.
ddij
locuples fieret , quam quia locuples erat : quippe ars
ea illicita pauperibus , ut quæ fine magno fumptu
exerceri non poflit. Nao aproveita o ſegredoda Chiry
ſopeia aos pobres Adeptos , ſendo aos poderoſos Magna
Bluteau Vo.
cabul, Port. tes , que ſendo ricos lhes roubao eſte arcano. Os Herme
Tom . 2. do ticos pobres ſao como a Cabra ſilveſtre chamada Orix,
Suppl.fol.94. porque na bexiga, que tem oculta ſe acha hum licor de

tao prodigioſa virtude, que huma ſo goia baſta para ex


tinguir a ſéde por muitos annos aos homens mais fequio
fos ; mas não lhe approveita a ella eſte preſervativo ;
porque enganada com as negaças da agoa de que ſempre
neceſſita , vem a cahır nas mãos dos Caçadores, que as
prendem , e matao , para ſe aproveitar dolicor , que tem
occulto. S. III.

Para evitar eſcrupulos de impertinentes, ou imper


tinencias dos eſcrupuloſos imprimo tambem neſte
Supplemento asmargens , que ficara ) no original de
fronte daquelles lugares , em que diſcorro acerca da
Chryſopeia de Salamaõ. Na regra 4. que eſtà a folhas
42. fe devia eſcrever por eſte modo aquelle troncado
diſcurſo. Foy Salamað o mais ſabio , e o mais rico homem ,
que houve no Mundo ;porque ninguem oexcedeo na rique.
za, nem igualoil na Sabedoria . A eſte Monarcha diſſe

Deos, que lhe infundırıa taõgrande Sciencia, que nem an


tes,nem depois haveria no Mundo quem o igualaſena Sa
Reg 3. cap.3 . bedoria : Deditibi cor ſapiens , & intelligens in tantum ,
12 .
ut nullus ante te fimilis tui fuerit, nec poft te turrectu
rus ſit; e da ſua riqueza diz o meſmo Rey , que era taó
grande que com a ſua opulencia excedeo a todos os homens,
Ec clefiatt. 2. 91?e o precederaõ em tempo na Corte de Hierufalem : Et
9. Supergreſſus ſum opibus omnes , qui ante me fuerung
in Hieruſalem . E deſta forte era Salamað tao rico como
ſabio ; porque igualava a ſuaſciencia à ſuaextraordina
ria
ars
ria riqueza , e nao havia diſtinção , nem differença en
tu
tre a riqneza, e a ſabedoria ,ſegundo confeſa o meſmo
To Rey , difinindo- ſe com as meſmas expreſſoens tão ſabio ,
como rico : Ecce magnus effectus & præceſſi omnes Ecclefiaft .
fapientia , qui fuerunt ante me in Hierufalem . O Pa- cap . 1. 16.
dre Hieremias Drexellio & c. e na pagina 49. ſe devia
eſcrever na regra 22. por eſte modo o diſcurſo : Só a
Chymica he finalmente a ſciencia , com que Salamao podia
adquirir tantas riquezas, pois ajudado, e ſoccorrido com
a ſabedoriapodia alcançar o ſegredo e
, practicar a opera
ção da Chryſopeia , como eſcreve Pineda : Itaque ſa
Pincda'lib . 4.
pientiæ præfidio Salomon percalluit Pyrotechniam ,
de Rob . Sa
ac Chryſopeiam : Incrivel couſa parece& c. Na regra lom.
cap.21.
23. que eſta a folhas 58.ficou diminuto eſte diſcurſo : fol.239
Com eſte exceſſo de ſciencia revelada não podia dei
xar de ſaber Salamao a Philofophia Hermetica , que

por eſtudo , e fubcil eſpeculaçao o grande Triſme


giſto tinha adquirido . Se os Égypcios , Difcipulos de
Hermes, poſſuhirao aquella Arte de os fazer ricos , he
impoſſivel ( como inferé Pineda ) que a nao ſoubeſſe Sa
lamão , praticandoa com grande perfeçað , e mayor
acerta,Iqueos mais inſignes Chymicos : Ergo fic Ægy , Pineda lib.4 .
ptij artem detefcendi tenebant non potuit non percal, de Reb. Sa
luiſſe Salomonem eandem , ac longe perfectiorem . He a lom . cap. 21 ,
Philofophia Hermetica Sciencia , e Arte natural & c. fol.238.
e no fim deſte diſcurſo falta na 3. regra da pagina 59 .
a ſeguinte authoridade do Padre Pineda : e entre as
outras Artes a Arte Magna , com a qual ſegundo Pine Pineda lib.4 .
da , parece , que Salamað adquiriotantas riquezas :Sed de Reb . Sa
ut ad Alchymiæ , quæ Phyſicæ pars quædam eft, ar- lom .
cap . 21,
tem redeamus , probari fane videtur Salomonem ejus fol. 238.
artis beneficio & præſidio locupletari potuiſſe : Pri
mo quod proculdubio univerſa naturalis Philoſophia
Salon
Salomoni perſpectiſfima, atque exploratiſlima iuit,
Philofopho nimirum abfolutiflimo. Porèm & c.
Na regra 16. que eſtà a folhas 63. le devia eſcre
ver aquelle diſcurſo por eſte modo: Ainda que duvi
dais a practicava Salamað ? E para que vos naõ fique
ella duvida, ouvi agora ao meſino Salamaõ confeſſando,
que para ſer tað rico, naõ ſóeſtudava, e excogitava todos
os modos , ou meyos de juntar muita Prata , e grande
copia de Ouro , mas tambem trabalhava de forte , que
para adquirir tantas, e taõ immenſas riquezas com a
fola induſtria, lhe cuſtava eſta grande opulencia o fuor
de ſeu roſto ; e que por conſiderar pofſuhrria os ſeus pre
cioſos thefouros , em que tinha junto paraſi muita Pra
Ecclcfiait.
ta ', e muito Ouro : Coacervavimihiargentum , & au
cap.28 .
rum , hum herdeiro , que ellenaā ſabia ſe por ventitra ſex
ria fabio , ou neſcio , porém que.jà conhecia muito bem ,
que havia de ſer Senhor do queelle tinha grangeado com
grande trabalho, com muito ſuor , e com incanſavel fas
diga : fereſolvera em fim a deſcancar renunciando para
Eccleſiaſt. ſempre trabclbar mais debaixodo Sol : Rurſus derelta
cap.2 . verſ. tus fum omnem induſtriam meam , qua ſub fole ftu
18.19.20. diofiflime laboravi , habiturus hæredem poſt me ,
quem ignoro , utrum ſapiens, an ſtultus futurus fit,
& dominabitur in laboribus meis , quibus defudavi ,
& ſolicitus fui , & eft quidquam tam vanuin ? Unde
ceſlavi, renunciavitque cor meum ulcra laborare ſub

fole ; e ſe ElRey Salamað para ſer taðrico , que amona


toaffé Ouro, e Prata trabalhava com tanta fadiga , e
con taö grandetrabalho , quefuava: In laboribusmeis
: . ! quibus defudavi; nað fó eſtudava omeyo trabalhando:
Studiofiflime laboravi; mas tambem practicava o mo
do , conforme praftica) com o fuor do ſeu roſto todos os
Profeffores da Arte Magna.
Na
Na regra 2. que fica na pagina 70. falca o que ſe le
gue depois deſtas duas palavras Latinas : Mater eft.
Por iſſo ElRey Salumaõ chaina bemaventurado a todo
o homem , quie deſcobre eſta ſciencia , tendo juntainente
prudencia para ſaber ufar della : Beatus homo , qui in- Proverb . cap .

venit fapientiam , & qui afluit prudentia ; porquecom 3.13 .


aſabedoria faz melhor negocio do que poſſuindo a Pra
ta , e o Ouro dos maisſubidos quilates , fructo puriſſimo
deſta ſciencia , a qual he mais precioſa do que todas as ri
quezas : Melior acquifitio ejusnegociacione argenti ,
& auri primi , & puriſſimi fructus ejus : Pretiofioreſt
cunctis opibus. Com eſta ſciencia ſenaõ podem compa
rar quentas coifas neſte Mundo fedezejaõ : Et omnia
quæ defiderantur huic non valent comparari ; porque
tem na mão direita o remedio com que dilata a vida :
Longitudo dierum in dextra ejus ; e na mão eſquerda
es meyos mais effectivos para fazer os homens ricos , e
gloriofos : Et in finiftra illius divitiæ , & gloria . Todas
as vias , qu eſtradas por onde caminha eſta ſciencia ( co
mo peregrina ) para conſeguir o fim pretendido, fað hona
radas , honeſtas , e pacificas : Viæ ejus viæ pulchræ ,
& omnes femitæ illius pacificæ ; para todos os ho
mens, que venturoſamente a conſeguem he huma Arvo
re da vida : Lignum vitæ eſt his, qui aprehenderint
eam ; e com ella todo o Sabio que a poſſue fica bemaven
turado : Et qui tenuerit cam , beatus ; e daqui infiro
eu agora , que ſe com ſciencia , em que ſe achaõ os effei
tos da Chryſopeia , podem ſer bemaventurados os ho
mens , nao ſe pode condemnar affirmar eu , que Salamão
ſoube , e pračticou a Arre Magna ; porque entre os epi
thetos de Salamão o de Chymico , ou de Hermetice
fica ( endo dos mais honeſtos , virtuoſos , e honrados. No
Padre Hieremias Drexellio & c.E na regra 22.da meſ
ma
ma pagina ſe devia eſcrever depois deſtas duas pala .
vras: Viæ ejus vie pulchræ. Por iſſo o Padre Joağ Pi.
neda depois dediſputar problematicamente a queſtão, em
forão producto, ou
que ventila ſeas riquezasde Salama@
augmento daArteChymica , deixando a queſtão indeci

ſa , permite liberdade a quem a quizer para ſeguir , que


Salamão ſe fez muito rico com a induſtria da Arte Chy
Pineda de mica : Quæ afferebantur in favorem Alchymiz Sa.
Reb . Salom , lomonicæ ejuſmodi ſunt, ut volentem poſlint in eam
lib . 4. cap.21. ſententiam allicere. E ſeiſtohe verdade facilmente por
fol . 239 .
ſo dizer , quepela Arte Magna fazia Salamaõ os ſeiſcen
centos e fesenta e ſeis talentos deOuro & c.E no fim da 4
regra , que eſtà na pagina 74. falcao eſtas palavras :
Eſta prova ſe coſtuma fazer em Ouro Chymico ,
Proverb.cap. að :
por meyo do fogo , como diz o meſmo Rey Sálam
17: 3. & cap. Igne probatur argentum ,& aurum camino. Quo
27.21 .
modo probatur in conflatorio argentum , & in for
nace aurum ; porque ſó eſte Ouro Chryſopeio neceſſita

de fe examinar no enſayo, e na copella para fe ver ſe


ſofre o exame do fogo.

EN
Pag . I

ki siste
Uvo

ENNÆA ,
OU APPLICAÇ A Ở

DO ENTENDIMENTO ,
SOBRE A

PEDRA PHILOSOHAL

DIALOGO PRIMEIRO.
CAPITULO UNICO .
Da origem , antiguidade , e excellencia da Arte Magna ; e dos
ſeus dous mayores myſterios, que faõ a Chryſopeia , e Ar
gyropeia , com que os Hermeticos evitað todas as enfer
midades , curaõ todas as doenças , dilataõ muito tempo as
vidat, e transformaõ em Prata , e Ouro todos os Metaes .

S. 1.
INTRODUCÇA .
ENODIO . ST A tarde , que
não empregais no
eſtudo , nem no jo
go , na caça , nem
E
na peſca , que fað
os quatro diverti
mentos com que
honeſtamente paſſais o tempo das Ferias , quando
vindes da Univerſidade de Coimbra deſcançar al
A guns
2 Ennea , cui Applicação do Entendimento ,

guns dias na voſſa Patria, poderemos gaſtar no paſ


leyo pelas margens dos Rios Arunca , e Anços , ou
aſſentados na ſua Ponte , converſando em huma fa
moſa queſtao da mais occulta Philofophia .
ENODATO . Náo he a Ponte de Soure Aca
demia de Platão , nem Lyceo de Ariſtoteles , em ;

que ſe polaó diſputar pontos Philofophicos; por


que alguns Eſcudeiros deſta Villa vem todas as tar
des fazer no meyo deſta Ponte dos Ajnos ridiculo
Outeiro de parvoices , em lugar do antigo Oriteiro
de Baixo, laudofo Theatro , em que os antigos Phi
loſophos , Theologos, Juriſconſultos, Medicos ,
e outros Sabios deſta Villa diſputavaó todas as tar
des, com tanta erudiçao , que podiaó competir as
Ruas converſações eruditas com as Conferencias dif
cretas , que em Lisboa faziao outros Academicos
todos os Domingos de noite no Muſeo do Conde
da Ericeira ; e nao me parece acertado diſcorrer
em Philoſophia na Paleſtra , onde agora quem não
ſabe, murmura de quem eſtuda : na Aula , onde ſe
averigua , o que ſe não ſabe : no Tribunal , onde
fe julga , o que ſe nað entende : no Conſiſtorio ,,
onde ſe reprova , o que ſe admira : 110 Mirante ,
onde te nota , o que palla ; e na Balança ſem fiel ,
onde ſe avalia , o que ſe nað pèza ; porque con .
vèm muito à minha repucaçao , que os noſſos diſ
curſos ſejao ſomente julgados por homens Sabios ,
e Prudentes , como faó os Meſtres , e Doutores das
Univerſidades do Mundo , e todos os Varões eru
Bluteai Va dicos, que pela ſua Philologia merecèraó o nome
. Por- de Academicos , como forão, ſegundo refere Blu
cabular
tug. e Latin: teau , os Generoſos de Lisboa : os Fantaſticos de Ro
Tom . 1. fol. ma : os Ociofos de Bolonba : os Adormecidos de
60. Geno
Sobre a Pedra Philofophal. Dialog.I.cap.unic.G.I. 3

Genova : os Olympicos de Vicencia : os Eſcondidos


de Milað : os Ardentes de Napoles : os Eſcuros
de Luca ; e os Obſtinados de Viterbo ; e nað ſejáo
ouvidos pelos meus Patricios , que hoje ſó podemos
chamar Academicos , por ſerem na ſatyra obſtina
dos , na explicaçao eſcuros , na emulaçao ardentes,
na cenſura eſcondidos , na ligeireza olympicos , no
eſtudo adormecidos , na converſaçao ociofos , na
erudiçað fantaſticos, e em nada generoſos.
ENODIO . Por alguns dos voſſos Patricios ſe
pode dizer agora fallay no ruim , e olhay para a por
ta ; porque jà o Ranchinho vem paſſeando , e paf
ſando da porta do voſſo pateo , e ſubindo a Cou
raça da Ponte para virem tomar aſſento ao pé def
ta Cruz , aonde aſlifto há muitos annos , paradef

ta acalaya lograr a delicioſa viſta deſtes campos ,


que poderao competir com os Elyſios, ſe os Agri
cultores deſte fertiliſſimo Paiz ſe aproveitàrao das
agoas deſtes Rios ; e para também de caminho
aprender dos peregrinos , que continuamente paf
faó por eſtas quatro eſtradas , que em forma da
meſma Cruz ſe ajuntaõ no alto deſta Ponte , aon
de por quatro vias me chegað todas as horas no
ticias das quatro partes do Mundo ; e como vòs ,
Senhor Enodaro , tambem hoje aquichegaſtes , def
culpay a confiança , com que vos ſahi ao encon
tro ; pretendendo que me deſſeis alguma luz da
Chryſopeia .
ÉNODATO . Jà , Senhor Enodio , vos terà
moſtrado a experiencia , que neſte lugar ſe mente
por officio , e ſe murmura por coſtume; principal
mente dos homens eruditos , aquem ſempre picaố
os moradores deſta terra , como picàrað as letras ,
Aij que
to
4. Ennæa , qu ' Applicação do Entendimen ,

que eſtavaõ eſculpidas na Tarja daquellas Armas ,


para com eterna ingratidao riſcarem a memoria de
imun Miniftro , que lhe fez taõ immortal beneficio ;
podendo- fe duvidar neſta acçaõ infame , fe a exe
cucou o odio , que tinha ) ao Doutor Bernardino
Arnaut Machado, como Superintendente deſta Pon
te , ou como lugeito de letras ; porque as letras em
toda a parte onde apparecem , faó ultrajadas , e
perſeguidas. A meſmamão , que as organiza ,as cor
ta : a melma, que as fórma , as raſga :a meſma, que
as defende , as talha : a meſma , que as eſmalta , as
cobre : a meſma que as eſcreve , as riſca : a mela
ma , que as entalha, as pica ; e a meſma, que nos
Epitaphios as eſculpe , com os proprios pès as pi
za ; e com eſte deſengano , tenho juſto receyo ,
de que paſſeando os meus Patricios por eſta Pon
te , quando logo nao tomem ( como coſtumaõ )
aſſento ao pé da Cruz , e nos obrigue a ſua com

panhia a nað fallar da Pedra Philofophal , vão de


paſſagem murmurando das noſſas letras, como blaſ
femaváo os Principes dos Sacerdotes, Eſcribas , e
os homens Anciãos de Hierulalem , e todos os que
paſſavío à viſta da Cruz no Monte Calvario ; por
eſtava crucificada nella a Sabedoria Encarna ,
que
da com as letras ſobre a cabeça : Impoſuerunt fuper
Matth . cap. caput ejus caufam ipfius fcriptam : Prætereuntes au
27.n.37 tein blasphemabant eum ; e tudo iſto evitaremos ,
reſervando para outra tarde a ſatisfaçao da voſſa
douta curioſidade'; porque algumas vezes o jogo
lhes embaraça o paſleyo , e ficaõ murmurando nos
poyais da Praça , no Alpendre da Igreja , e nos de
gràos do Pelourinho , que fað os outros tres famo
los meocideiros deſta Villa.
ENO
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.G.I. 5
ENODIO . Mais acertado nie parece , que va

mos fallando na poſibilidade , e exiſtencia do La


pis ; porque com eſta Pedra os lançaremos fóra deſte
Jugar , com tanta certeza , como a Pedra Iman at
trahe para ſi o ferro ; porque a Pedra Philofophal he
a Pedra Lydia , em que ſe provão os engenhos , e
nenhum dos homens quejá vem chegando , ha de
querer , que lhe examinem publicamente os quila
tes do ſeu juizo .
ENODATO. Eftimo mais o voſſo arbitrio , do
que a occaſiáo , que me offerece a voſſa curioſida
de ; porque eu fujo quanto poſſo de fallar publi
camente na Chryſopeia , principalmente diante de
ignorantes ; porém alguma couſa direy , ou alguma
noticia vos darey da Pedra Philofophal, fe o voſſo
arbitrio for tão effectivo , para affugentar eſtes
murmuradores , com palavras fubtilmente proferi
das , como foy o dedo da meſma Sabedoria para
exterminar da fua preſença aos ſeus perfeguidores
com palavras myfterioſamente eſcritas , porque
vendo todos nellas publicos os ſeus defeitos , ve
lhos, e maneebos todos defapparecèraõ .
ENODIO . Como nos ouvirão fallar baixo , deſ
tinhamos nego
confiarão , ou por entenderem que
cio de ſegredo , foráo tomar aſſento no fim deffa
Couraça , que fica contra o Sul , por ſer a mais di
vertida com a paſſagem das moças de cantaro , a
quem dizem graças taó freſcas , e tað frias como
agoa .
ENODATO . Porém algumas vezes coſtumão
eſtas criadas de ſoldada , com as ſuas repoſtas ruf
ticas , deſpicar- ſe de tal forte , que lhes fazem dar
o vào pela barba ; porque a huns deſſes Cavalhe
ros
6 Ennæa, oul Applicação do Entendimento ,

ros , que ahi vedes , diſſe em huma occaſião huma


deſſas mulheres , com tanta facilidade, coino quem
bebe hum pucaro de agoa , que eſtavao perto dos
lugares , que ſó merecia ), pela ſua ſabedoria , e
virtude , apontando com o dedo para o meyo cir
culo , que cerca o canto da meſma Couraça , ao la
do direito de quem deſce , e para a caſa , que dà
nome ao Olival , que fica no fim da Ponte.
ENODIO . Pois como eſtað jà aſſentados , e di
vertidos , liberdade , e tempo vos deixão para me
dizeres em primeiro lugar ſe a Chymica he Scien
cia , ou Arte , e porque razão lhe derão os Autho ,
res Hermeticos Varios nomes .

$. II .

Da origem , etymologia , e antiguidade da Chymica.

ENODATO . Omo ainda ſe nað averiguou


ſe a palavra Chymia , ou Che
mia , he Grega , Arabica ', ou Egypcia , como ef
creve o doutiſſimo , e vaftiflimo Medico Daniel
Sennert. tom . Sennerto : Verum cum non dum fatis conftet , an vox
1. de Chym . hæc Græca , vel Arabica , aut Ægyptia ſit , confor
cum Ariſto
me as etymologias donde a derivaváo , The varia
tel . & Galen .
conf. ac diff. rão o nome , e a ſignificaçao ; porque lhe chama
cap. 1. de nat. rão Chymia por derreter , e fundir os metaes du
Chym . fol. ros
ros ,, que
que ſe tirao das entranhas da terra : Chemia ,
180 . porque conforme refere Plutarcho , com eſte no
me coſtumavað os Sacerdotes nomear o Egypto ,
ou porque no Egypto havia huma antiga Cidade
nos Campos de Thebas , chamada Chemmis, ſegun
do lemos em Herodoto , que cambem na ſua Eu
terpe
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.S.I. 7

terpe deſcreve amplamente huma Ilha do Egypto ,


com o meſmo nome de Chemmis , a qual na opi
niaó de ſeus moradores ſe ſuſtenta na agoa , donde
querem derivar Chemia como Arte do Egypto ,
aonde a Chymica principiou , ou quando menos flo
receó muitos annos. Tambem lhe chama) Alchy
mia , de Alchymo Artifice , ou inventor deſta Arte.
Alguns lhe chamáo Alchemia ; porque derrete os
Says , ou Archymia , como pareceo a Celio Rho
1 digino . Paracelſo em tudo extravagante , e myſterio
fo lhe chamou Eſpagyria ; e outros lhe derað o no
me de Alkimia , ou Alchymia , porque com o arti
go Al accreſcentàrão eſta palavra os Arabes , Sec
tarios inſignes do Philoſopho Hermes .
Quando a Chymica diſcorre , chama- ſe Philoſo
phia Hermetica ; porque Hermes foy o primeiro
Author , que eſcrevèo deſta Sciencia na famoſa
Tabula Smarag dına ; e quando obra , he Arte , e
entað ſe chama Obra grande , Arte do perfeito Ma
gifterio , Arte do Magiſterio grande , Magiſterio de
Sabios , Arte Magna , e Arte Hermetica, por ref
peito de Hermes ſeu inventor , e por ſer a mais
perfeita Arte , que ſe pode inventar , para imitar
com as ſuas operações as obras da Natureza. Al
gumas vezes ſe chama tambem Pyrothenia , por ſer
Arte , em que nada ſe obra ſem fogo ; porém co
mo hoje he mais conhecido o nome de Chymica ,
por elle ſe explicaõ quaſi todos os Philofophos , e
Medicos Hermeticos.

ENODIO . Como pode ſer Hermes o Antelig .


nano deſta Philofophia , e Medicina , affirmando
Coringio , que eſtà ſcientifica Arte principiou no
tempo do Emperador Conſtantino Magno ?
ENO
8 ‘ Ennåa , ou Applicação do Entendimento ,

ENODATO . Nem Coringio ſe quiz cançar


em averiguar a origem da Chymnica , nem por el
crever com grande furor contra ella , tem autho
ridade alguma neſta materia. Mayor credito deve
mos dar a Julio Firmico , celebre Aſtronomo do
terceiro ſeculo , que eſcreveo no tempo do mel
mo Emperador pelos annos de Chriſto 320.0 qual
no Livro terceiro ingenuamente confeſſa , que a
Chymica era tão antiga , que jà os antiquiflimos Al
trologos faziao della menção nos ſeus prognoſticos,
como expreſſamente ſe vè neſtas formais palavras:
Si Saturni bæc domus fuerit , ſcientiam Alchymia das
bit : Si ſolis , providentiam in quadrupedibus ; e ain
da hoje ſe conſervão na Livraria dos Reys de Fran
ça os manuſcritos Gregos de Zofino Philofopho
Alexandrino , de Iſaac Monacho , e de Blemidas
antiquiflimos Chymicos, como refere Roberto Val
lenſe , eſcrevendo da verdade , e antiguidade da
Chymica. Joao Franciſco Pico , Senhor de Miran

dula , Conde , e Principe da Concordia, no Ca


pitulo I. do Livro II . de Auro , affirma com a lie
ção de varios Authores Gregos , e Latinos, que a
Chymica principiara pouco tempo antes da guerra
de Troya : Ego vero quantum à Gracis , Latiniſ
que Authoribus colligerepotui , comperio artem anti
quiſimam quidem , fed paulo ante Troyanum bellum .
E bem ſabereis vos como táo douto , e bom Chro
nologo , quefóra dos Livros Sagrados , não temos
nenhumas noticias do Mundo , ſe naó da guerra de
Troya por diante, por ſer Eſcuro o tempo , que a
precedeo , e tão Fabuloſo o tempo em que ſuccedeo
eſta
guerra , que ordinariamente lhe chamão os Eru
dicos o Paiz das Fabulas.
Con
Sobre a Pedra Philofophal. Dialog.I.cap.unic.S.2. 9

Confirma a grande antiguidade da Chymica a


Luz, que foy achada no ſepulchro de Maximo Oly
bio , antiquiffimo Cidadaó de Padua , pelos annos
de 1500. collocada entre duas Phialas de Ouro ,
e Prata , que continhaõ dous puriſſimos licores ,
que lerviaõ de ſuſtento à chamma , os quaes eraõ ..

de Ouro , e Prata , diffolutos com alto magiſterio


em hum licor ſubciliſimo ; e eſta Luz ſem contro- ,
verſia he invento da Arte Chymica , como tereis
viſto em Pedro Apiano , Hermolao Barbaro , Luiz
Vives , e Joað Langio. Finalmente na Tabula Sma
ragdına, que ſe achou depois do Diluvio no Valle
de Hebron , ou que tirou Sara do ſepulchro de
Hermes , achareis em treze regras comprehendida,
como em treze dogmas , toda a Arte Magna ; e ca
da letra defta Tabula he huma teſtemunha da an

tiguidade da Chymica , do que ninguem duvidou


até agora ; porque codos affirmão ſer obra de Her
mes.
ENODIO . Duas grandes duvidas ſe me offe
recem ſobre eſtas ultimas duas provas , com que

confirmais a antiguidade da Chymica. Funda- ſe a


primeira na univerſalidade , e tranſcendencia das
palavras de Hermes ; e a ſegunda na duvidoſa no
ticia das Luzes perpetuas. Principiemos pelas Luzes,
e depois fallaremos nas palavras. Antes que fahiſſe
a luz o quarto Tomo do Theatro Critico , vino ſeu
Original , que em confiança me moſtraráõ em Ma
drid , no Moſteiro de Noſſa Senhora de Monlerra
te muito bem refutadas as Alampadasinextingui
veis , nað ſó a de Olybio , em que fallaſtes mas
a de Tullia , ou Tulliola filha de Cicero ; e nao

provais , nem confirmais bem com eſtas noticias


B o vol
10. Enn & a , ou Applicação do Entendimento ,

oʻvoffo aſſumpto , lendo taõ duvidoſos os ſeus fun .


damentos.
ENODATO . Alguma noticia tenho dos ar
gumentos , com que o doutiſimo Feyjoo repro
va a opinia) commum das Luzes perpetuas , fem
advertir, que fað inextinguiveis luzes os ſeus dif ,
curſos eruditos para deſterrar do Orbe Literario
as fombras dos erros communs. Porém não poſſo
deixar de notar em algumas das ſuas Criſės ma
nifeſtas contradicções da ſua meſma doutrina , que :
mais facilmente eſcurecem as ſuas Luzes , do que
excinguem as Luzes perpetuas. Primeiramente pa
Vide Feyjoo ra extinguir eſtas Luzes nega o credito a Fortu
Theatr. Crie nio Liceto por ſer o unico Author , que dà noticia
tic . Tom . 4. da confervaçaõ das Phialas , e Alampadas intac- ,
Diſcurſ. 3. S.
tas , em poder de Franciſco Maturancio as quaes
9. num . 26 . eſtimava
tanto , que na carta , que eſcreveo a feu
fol. 56 .
amigo Alpheno , diz , que nao daria eſte precio
ſo monumento por mil eſcudos de ouro . E nas
Feyjoo Tom . Glorias de Heſpanha cre firmemente o meſmo Fey
. joo o fingular teſtemunho de Arriano , porque
4. Diſcurſ
13.8.18.n.62 . na Hiſtoria de Alexandre Magno feguio a nar
fol.351.
raçað ſó de Ariftobulo Hiſtoriador Grego. E por
que nao merece tanto credito Liceto a reſpeito de

FeyjorTom . Maturancio , como elle tambem quer que mereçaó


13.5.18.n.60. D. Rodrigo , e D. Lucas acerca de Bernardo del
Carpio , ſendo.eſtes dous Hiſtoriadores tao apai
fol. 350 .
xonados pelas Glorias de Heſpanha , como Liceto
podia ſer pela exiſtencia das Luzes perpetuas ? Por
Feyjoo Tom . que razao ſao mais verdadeicos Philippe de Comi
4. Biſcurf.8. nes , Joað de Mariana , e Henrique Catharino , do
5. 44. n . 102. que fortunio Liceto , ſe todos elles fallað ; como
fol. 221 . confeſſa Feyjoo , a favor do partido , que ſegui
rão ?
Sobré a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.2. II

rao ? Só no caſo , em que a opiniao do povo lhe Feyjoo Tom .


ſeja prejudicial, conclue Feyjoo , ſe deve refutar, 4. Diſcuri.
ou apeallo della ; mas nao havendo eſte prejuizo , 13.9.20.n.75.
nem ſe podendo ayeriguar a verdade , nað ſe deve fol. 358 .
perturbar o Povo da poffe , em que eſtà , nem pri
var do direito adquirido a qualquer noticia , que
fomenta a ſua devaçao , ou entretem a ſua vaida
de. Diga-me agora eſte Hypercritico , ou algum
ſeu apaixonado , que prejuizo ſe ſegue de crer o
Povo , que houve antigamente Luzes perpetuias ?
Acholhe muita graça em negar as Luzes ſepulchrais Feyjoo Tom .
do Territorio de Viterbo , porque jà nao exiſtem ; 4. Diſcurſ. 3 .
e como quer ſua Reverendiſſima , que agora de- 5.9. num . 28 .
mos credito à exiſtencia antiga dos inſtrumentos fol. 56.
muſicos , de que trata o feu Calmet, e elle tanco ce- Feyjoo Tom .
lebra , ſe eſtes, e os Orgãos Hydraulicos, que mui- 4. Diſcurſ.
12. 8. 13. n .
to elogia , tambem delapparecèrao ? De qualquer
34. fol.297.
daquellas Luzes , diz Feyjoo , que ſe conſervaffe Feyjoo Tom ,
o licor , e a mecha , ainda que ao abrir o ſepul. 4. Dilcurf. 3.
chro ſe apagalle , poderia accenderſe de novo , e 8.9 . num . 28.
duraria hoje aceza : Naš adverte , que nao ſe po fol. 56 .
dia outra vez accender a Luz , que o meſmo ar Feyjoo Tom .
apagava , e deſtruhia ? O ſegredo conſiſtia em ar , 4 Diſcurt . 3 .
der fechada , e por iſſo ſe extinguia depois de S. 2. num . 3 .
fol.45.
aberta. Nao ſe podia tornar a accender , porque
ſe nað ſabia tornar a fechar. Porque ſe nao eſcre
ve agora compendioſamente com as abbreviaturas,
ou notas de Ennio ? Porque, como confeſſa Fey- Feyjoo Tom .
joo , não ſe pode agora alcançar o myſterio : Pois 4. Diſcurſ .
era he tambem . a razao , porque ſe naõ accen-, 12.9.25.n.7ı,

dia) , e conſervavaộ as Luzes perpetuas ao abrir fol.z14.


dos ſepulchros; porque jà entao ſe ignorava o le
gredo. Perdeo-fe eſta Arte , aſſim como ſe acabou / >
B ij o ar
12 Emea , on Applicaçao do Entendimento ,

o artificio dos antigos Muſicos , que Feyjoo tan


Feyjoo Tom .
to louva , e exalta ſobre os modernos. Jà emmude
4
12. 9. 12. n . cèraõ as voze; daquelle: inftrumentos, que tocados
31. fol. 295. por Antigenidas em tom de genio marcial enfureciao
ao grande Alexandre , fazendo - o levantar da me
ſa , e tomar nas mãos as armas : Já ſe não ouve o
contraponto de Timotheo , que variando o tom ,
enfurecia , ou ſuſpendia o furor ao meſmo Alexan
dre : Jà o tempo quebrou a frauta , em que tangen
do Empedocles huma cançaõ ſuaviffima, deteve a
hum furioſo mancebo , que jà com a eſpada nua
queria matar hum inimigo : Jà ſe deſtemperou a
Lyra , ou ſe romperaõ as cordas daquella Viola , em
que tocando Terpandro apaziguou huma ſediçao
em Lacedemonia : Jà ſenão vè, nem aindaſombr.
daquella facilidade , com que os mais primorofos
Mulicos da Grecia , jà irritavao , jà temperavao as
Feyjoo Tom .
paixões , jà accendiaó , jà calmavao os affectos dos
4. Difcurf.
12.5.12.n.31 . ouvintes : Pois tambem jà ſe nað vè nem fombra das
fol. 295
Luzes perpetuas ; porque como aquelles Muſicos ,
morrèrao tambem os Chymicos , que as accendiao.
O mais que agora fazem os mayores engenhos mo
dernos , he deſenterrarem os mortos , para lhes
apagarem as luzes.
A que propoſito , perguntara eu a Feyjoo , ha
Feyjoo Tom . via de fallar Cicero na ſepultura da filha , ſe nas
4. Diſcurt.
cartas eſcritas Actico , como Feyjoo adverte
3.9. 9. num.
proteſta ,, que he muito do ſeu defagrado o chei
27.fol.56. Ci.
ro horrivel de fepulchro. Bom alivio ſeria para
cero magoado , e faudoſo , cſcrever com a penna o
nome, do que lhe enternecia o coraçao , e offendia ‘o
nariz. Tað digna de memoria era á Luz ſepulchral,
como a fepultura de Tullia nas obras , ou nas car
tas
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic. 9.2. 13

tas de Cicero ; e taõ deſneceſſario era dizer o pay ,


que accendera a Luz no ſepulchro de Tullia , como
que ſepultara a filha ; e ainda naõ vi exornar ne .
nhuma Oraçao Funebre com as luzes da Eça , ſe
naó com as virtudes do morto . Nao ſe lhe faz.o
elogio com as luzes , que no fepulchro ſe eſcon
dem , fena ) com as obras , que na ſepultura ſe nao
enterrao , e na terra ſe naõ occultaó.

F nalmente o argumento geral contra as Luzes


perpetuas , que Feyjoo tira da experiencia do fo
go conſumir a materia em que arde ; tambem tem
contra fi a experiencia de nao conſumir eſta mate
ria n quellas Luzes , que ſe achàraó no fepulchro
de Olybio , Tulliola, Palante , e de outras peſſoas,
como teſtemunhaõ àlem dos referidos Authores Gui
do Pancirollo , Henrique Salmuth , Mercurio Ita
lico , Bernardo Celio , Baptiſta Porta , Martim del
Rio , Bernardo Scardeono , cuja authoridade fa .
porece o grande Lume da Igreja Santo Agoſtinho ,
Teferido , e ſeguido pelo Padre Franciſco Soares
P. Frác. Soar.
da Companhia de JESUS na averiguaçao deſte Luſ. Tom . 2 .
artificial meteoro , que com o Padre delRio con- Tra& .de Me
feffa ſer invento Chymico : Mihi quidem dubium teor. Sect. 4.
non eft , liquorem illum Olybii Maximi, cujus benefi- 8. 1. fol. 367 .
cio lucerna multis fæculis conſervata fuit ardens , chy
micum fuiffe. Nenhum credito dà Feyjoo à Philo
fophia, eſtando em contrario a experiencia ; porque Feyjoo Tom ,
la experiencia es , como hemos dicho, el unico conducto 3. Diſcurt.12
para faberalgo de la natur aleza. Pero el Philoſ opho $ 33;num.S;
fol . 326 .
que fabe ? Duda r de todo , y nada mas ; e quer ago
ra eſquecido deſta fura maxima recebida de todos
os Philofophos, que contra a experiencia , prova
da com tantas authoridades , prevaleça ſó a ſua Phi
lofo .
14 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

loſophia , com dudar de todo, y nada mas !


Nenhum credito dà Feyjoo ao grande numero
Feyjoo Tom .
4. Diſcurf. 3 de Eſcritores , que affirmaõ haver antigamente Lue
g . 13. num . zes perpetuas ; porque „ Un entendimiento humilde
37. fol. 63 . „ y vulgar , llegando a ſaber que ſon muchos los
Authores ( como de hecho llegaràn oy à cen
tenares ) donde ſe halla eſcrita la noticia de las
Lamparas inextinguibles de los ſepulcros de Pa .
» lante , de MaximoOlybio , y de Tulia , aqui pa
„ ra , porque o le faltan los principios neceſſarios
„ para examinar la veriſimilitud del hecho , ò a un
„ que los tenga , no ſabe uſar de ellos. Lá multi
tud de Autores tomada a vulto es para el regla

,, infalible , y tratarà de imprudente , y temerario


a qualquiera , que dude , ò contradiga aquellas
do
noticias. Pero un hombre diſcreto , y dota
, de la inſtruccion , y talentos neceſarios, nota
» ra lo primero las dificultades inſuperables, que
la phyſica , aſli theorica , como experimental,
» repreſenta en la exiſtencia , y aun en la poſſi
bilidad de dichas Lamparas. Notara lo ſegun
do , que en los antigos Eſcritores no ſe halla
» fombra , ni veftigio de eſtas Luces fèpulcrales
» inextinguibles. Notara lo tercero , las contradi
ciones de los Autores , que las affirman , en
7 quanto al tiempo , y otras circunſtancias. No
„ tara lo quarto , que ninguno de los Autores ,
„ que las affirman , y defienden , dice haverſe hal
„ lado preſente al deſcobrimiento de alguno de
aquellos ſepulcros. De todas eſtas oblervacio
„ nes prudentemente concluirà , que la eſpecie de
las Lamparas inextinguibles es uno de los mu ,
chos monſtros, que engendra el embufte , y ali
menta la credulidad . Po
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.S.2. 15
Porém ainda que Santo Agoſtinho , o Padre

Soares , e muitos dos referidos Authores não forão


homens de entendimiento humilde, y vulgar , nem
falcos dos principios neceſarios para examinar la te
riſimilitud del hecho, e todos ſabião muito bem uſar
de ellos ; porque qualquer delles , ( e com muica eſ
pecialidade Santo Agoſtinho ) foy un hombre diſ
creto , y dotado de la inſtruccion y
, talentos neceffarios,
para philoſophicamente examinar melhor do que
Feyjoo eſta verdade : com tudo , para que eſte pre
ſumido Hombre diſcreto não imagine , que para lhe
reſponder offereço ſó a difficuldade por ſolução
da fua duvida , notarà tambem ſobre o primeiro
las dificuldades inſuperables , que lhe repreſenta Ma
ñer en la exiſtencia , y aun en la posſibilidad , de tu
do quanto eſcreveo no ſeu Theatro Critico para deſ
terrar erros communs. Notarà ſobre o ſegundo , que
ſuccedeo às Luzes perpetuas o meſmo , que aconte
ceo aos Famoſiſſimos Guerreros poco , ò nada inferio
res ao Cid , y Bernardo del Carpio , de quem ho- Feyjoo Tom
je não hà noticia , porfe haver fepultado la memo .4. Diſcurſ.
ria de ellos,
y deſus hazañas, por faltar Autores, 56.57.
& 58 .
quelas comunicaſſen ; e para não faltar circunſtancia, fol .348. &
em que eſtes artificiaes Meteoros ſe não pareçaõ 349 .
dealgum modo com tão famofos Heroes , es lo mas
lamentable, que haya oy Autores , que quieran borrar
la memoria de algunos pocos , que por dicha eſpecial fe
eximieron de aquel comun olvido. Notarà ſobre o ter
ceiro , que nega Feyjoo aquellas Luzes , como Fer
reras a Bernardo del Carpio finmas motivo , que hal
lar mefcladas algunas fabulas en las hazañas de eſte
Heroe, y algunas contradiciones en las varias noti
cias , que nos han quedado de el. Debiliſimo fundamen
to ,
16 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

to por cierto : pues con el miſmo ſe poderia negar la


exiſtencia de caſi quantoshombres illuftres tuvo la anti
guedad . Quien ha havido, en cuyas acciones, y circunſ
tancias concuerden , ſin deſcrepancia alguna, todos los
Feyjoo Tom . Autores ? Notarà finalmente ſobre o quarto , que
4. Diſcurſ.13. não ſerà motivo eſte baſtante,para diſſentir poſitivamen
5.18.num.62. te à quanto hallamos eſcrito das Luzes perpetuas, co
fol. 351 . mo de aquel Heroe Ålexandro ; porque aunque ningu
no de ellos ( Plutarco, Arriano , 2 quinto Curcio ) fue
teſtigo de ſus hazañas, ni alcanzò a los que lo fueron ,
fé debe crer , que las participaron de otros eſcritos an
teriores, que oy no exiſten . E agora eſtimo muito o
ter viſto , e notado eſtas tað notaveis , e não ley ſe
notadas contradicções do Reverendiſſimo Padre
Feyjoo , com que elle pretende ( eſquecido do que
eſcreveo ) defender no meſmo. Tomo com os mef
mos , e identicos fundamentos humas concluſões

contrarias; porque com eſtas contradições me li


vro dos voſſos , e reſpondo aos ſeus argumentos.
'
Naó pòde Feyjoo apagar as Luzes perpetuas , fem
eclypſar juntamente as Glorias de Heſpanha ; por
que com as meſmas razões com que pretende ela
giar Heſpanha , com a fama dos ſeus antigos, mas
não fabulofos Heroes, intenta tambem extinguir, com
mo fabuloſas, as antigas Luzes perpetuas; enao pò .
de apagar as Luzes, lem eſcurecer tambem as Glorias ;
porque as razões, com que defende as Glorias , ficão
fendo ſem razões para impugnaras Luzes ; e quan
do as Luzes eſtejao bem impugnadas , ficão as Glorias
maldefendidas ; mas como intereſſa mais nas Glorias
de Heſpanha , do que no eclypſe das Luzes , eſtia.
marà agora, que ſem embargo das ſuas objecções le
efa
conſervem accezas as Luzes perpetuas, para que
tes
Sobre & Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unit.S.2. 17

tes argumentos páð deixem as Glorias de Heſpa


wha eclypadas.
Agora me haveis de conceder , que ſe duvidais
das Luzes inextinguiveis, que ſempre a incorrupti
bilidade dos corpos , que com ellas ſe acharaó in
teiros , e ſem nenhuma corrupçao , prova a gran
de antiguidade da Chymica ; porque eſta Arte com
o eſpirico de vinho bem retificado conſerva in
corrupto dentro de hum vidro qualquer, animal
morto. Niſto me ha de conceder Feyjoo , que ex- Feyjoo Tom .
4.Diſcurl.13 .
cediaõ jà os Chymicos antigos aos modernos , por 12.9.25.num .
ſer re fervado ſó à veneravel antiguidade o ſegre 65.fol.311
.
do , com que os Egypcios embalſamava ) os corpos,
para preſervallos da corrupçaõ. Era aquella con
feiçað , ou Mumia Egypciaca , como diz Feyjoo ,
de muito mayor efficacia , do que as que agora te
uſao ; porque o effeito das modernas apenas che
ga a dous , ou tres ſeculos; e o das antigas durava
por milhares de annos. Os deſcendentes dos anti
gos moradores da Ilha de Tenarîfe , chamados
Guanchas , ou Guanchios , guardaó , ſegundo refe- 'Bluteau Vo
re Bluteau , com grande veneraçao os cadaveres cab. Tom.8.
de leus mayores, tao perfeitamente embalſamados, fol. 91.
que eſtao freſcos, e inteiros; vem - ſe em differen
tes concavidades huns em pé , outros deitados ſo
bre taboas de certo pao incorruptivel ; tem os olhos
fechados , bem arreigados ainda os cabellos , ore
lhas , nariz , dentes , beiços , e barba no ſeu eſta
do natural , algumas rugas na pelle , e ſó a cor
nað he como a da gente viva. O ſegredo , conclue
o melmo Auchor , deſte admiravelbalſamo ſe per
deo com a morte das peſſoas da familia , que uni
camente o cinha. Porillo nenhuma comparaçaó tem
C o ef
18 . Ennda , ou Applicação do Entendimento ,

o eſpirito de vinho , que preparað agora os Chya


micos modernos , com o licor , que faziaõ os Hero
meticos do Egypto , entre os quaes era ſabido o
invento da Chryſopeia , e Argiropeia. Com eſte li
cor ſe confervou inteiro , e incorrupto o cadaver de
Tullia filha de Cicero ; porque como eſcreve Mer
curio Italico referido pelo Padre Soares, deſcobrin
do - ſe o ſeu cadaver no Pontificado de Paulo III.
1500. annos depois da ſua morte , eſtava depoſita
do em huma caixa de marmore , nadando em hum
admiravel oleo , que conſervava o corpo inteiro ,
o roſto illeſo , fermofiſlimo , e com as cores , e alen
tos de vivo , os cabellos louros , acados , e entranſ,
ſados com hum circulo de ouro , e aos ſeus pès
eſtava ardendo a Luz inextinguivel , que o ar apa
gou de huma vez para ſempre , como a morte ti
nha eclyplado aquella fermoſura por toda a eterni
dade , onde eſtarà ſem fim às eſcuras, por lhe fal
tar como a Gentia a Luz perpetua.
ENODIO . Quando o voſſo diſcurſo não pro
ve a verdade das Luzes inextinguiveis , ſempre moſ
tra com evidencia a antiguidade da Chymica ; por
que com as Mumias , e balſamos conſervavað os
Hermeticos antigos os cadaveres incorruptos. Porém
ainda me fica o eſcrupulo , de que nao fallao na
Chymica as palavras de Hermes. Sað taố univer
fais , e tranſcendentes as palavras deſte Philofopho,
que tanto ſervem para os Chymicos , como para os
Lavradores , e com eſta univerſalidade desfavorece
muito o Protho-Chymico aos Hermeticos. E quan
do eſta Tabula fora folido fundamento da ſua doutri
na ; não falta quem negue , ou duvide , que eſta obra
ſeja de Hermes, porque ſe nao acha nos ſeus Livros.
ENO
Sobre a Pedra Philofopbal.Dialog.I.cap.unic.S.2. 19

'. ENODATO . Facilmente vos moſtraria , que


as palavras de Hermes ſe entendem eſpecialmen
te da Chymica , e não da Agricultura , ſe eſſa fora
a minha empreza , ou o fim da voſſa curioſidade ;
porque mandaria vir da minha Livraria , que eſtá
tão perto como vedes, os doutiſſimos Commenta
rios de Kriegſmano , e de Dorneo , ou a Paraphra
ſe da Tabula Smaragdına , e com elles deſvaneceria
logo a voſſa duvida a reſpeito da materia , que nel
la eſcreveo enigmaticamente o meſmo Hermes.
Nem atè agora conſta com certeza , que Hermes
não eſcreveſſe a Tabula Smaragdina nas ſuas obras;
porque nellas faltað muitos livros, e alguns que ſe
divulgarao em ſeu nome , não fað ſeus ; ſendo mui
to provavel , que nað vulgarizaſſe nos livros os
ſeus mayores ſegredos , como advertio o meſmo
Sennerto : Nam fecretiora non ſemper cum reliquis
edi folent ; poriſſo podeis crer com toda a certeza ,
que a Tabula Smaragdina he a Pedra Lydia de tc
das as opiniões , e dogmas Chymicos , e que ſað fal
los , e contrarios da Univerſal Medicina , todos os
dictames, que com ella não concordão ,conforme
dizo meſmo Author : Quod falfa fintea , & ab uni
verſali medicina aliena , qua cum Tabula Smarag dina
non conveniunt. E daqui infere ſabiamente Santo Al
berto Magno , que Hermes foy a raiz donde brotou
a Chymica ; e accreſcento eu , que a ſua Pedra Phi
lofophal he a baſe folida , em que ſe ſuſtenta o
edificio da Philofophia Hermetica , a qual ſe para al
guns homens he Pedra de Siſypho , ou Pedra de
Eſcandalo , ou Pedra Reprovada pelos edificado
res , por fim como eſta ultima Pedra he coroa dos
homens fabios , e entendidos. Eſta hea razão , por
Cij quc
20 Ennea , oui Applicação do Entendimento ,

que o Inſigniſſimo, e Excellenciſlimo Conde da


Ericeira D. Franciſco Xavier de Menezes chamour
em huma occaſiao na minha prezenla à Pedra Phi
Lofophal Sebaſtianiſmo da Philofophia ; porque todos
os homens de grande juizo fao Chryfopeios , aſ
ſim como os Heroes de grande entendimento Lao
Sebaſtianiſtas.

6. III .

Proſeguindo a meſma materia , da-ſe noticia de


Hermes.

ENODIO . Staõ diſcretamente comparados


E os Sebaſtianiſtas , com os Her
meticos ; porque tanta duvida tem a exiſtencia do

Lapis , como a do Senhor Rey D. Sebaſtiao ; por


que ambos eſtao encubertos. Porém deixando ago
ra o Sebaſtianiſmo, em que nao tenho duvida , di
zey -me , quem foy eſte Hermes tão celebrado no
Mundo, que chegou a eſcrever trinta e ſeis mil,
quinhentos e vinte cinco livros, como li na Ora
çaõ Dedicatoria , feita à Livraria do Illuftrifſimo ,
e Reverendiſſimo Arcebiſpo de Lisboa D. Luiz de
Soula , por D. Raphael Bluteau , a quem por ter
eſcrito tantos , e caó doutos volumes , podemos
chamar Hermes Catholico ?
ENODATO . Hermes Triſmegilto foy hum
grande Philoſopho , e Medico do Egypto , de eter
na fama , e incomparavel fabedoria ; porquechegou
a ſaber as tres partes da Philoſophia do Mundo ,
como elle eſcreveo no numero duodecimo da ſua

Tabula Smaradigna ' : Itaque vocatus fum. Hermes


Trifa
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.S.3 . 25

Triſmegiſtus habens tres partes Philoſophie totius


Mundi ; e declara a Paraphrafe da meſma Tabula ,
que Hermes ſoubera as tres partes de toda a ſcien
cia, e Philofophia do Univerſo : Et propter hoc
Hermetis Triſmegyti nomine me appellarunt : cum ha
beam partes tres fapientiæ , & Philofophia Univerſi
mundi. Baſtava para credito da fua grande fabedo
ria conhecer como tão famolo Theologo , con
forme lhe chamão Alapide , e Vieira , que o mef. Alapide in
mo Univerſo era hum Livro compoſto por Deos : Proem . & en
Univerſum eft liber Divinitatis. Os Phenicios lhe cha : com . S. Scri
màrão Tauto : os Egypcios Toyth , ou Touth : os ptur.Tom l. I.
S..n..fo ...
Gregos Hermes ; e os Latinos Mercurio ; porém af Vieira Tom .
ſim os Latinos, como os Gregos lhe puzerað o 5.num.9.fol
...
cognome de Triſmegiſto , que he o mefmo , que trez 9.
vezes grande, ou trez vezes Meſtre ; porque Her

mes Triſmegiſto foy fummo Sacerdote , Philoſopho ,


e Rey , ou Rey ,Sacerdote , e Propheta , que fao

as tres partes da Sabedoria do Mundo , que he oli


vro da Divindade, ſegundo eſcreve o meſmo Senners
to : Unus Triſmegiſtus eſt ,five quod fummusSacerdos,
Philofophus , & Rex ,ſen ut aliis placet Rex , Sacer :
dos, & Propheta effet ; quod communi Græcorum
& Latinorum more fummeexcellentes ter , quater que
maxime, da beate appellantur. Foy Hermes difcipu
lo de Noacho , Meſtre de Camephon , Legislador,
e Meſtre de todas as Sciencias do Egypto , como
refere Cicero , as quaes ſegundo eſcreve Beroſo , ti
nha Abraham communicado aos Sacerdotes Egyp
cios; porque antes do grande Patriarcha entrar no
Egypto , ignoravao codos a ſciencia dos Aſtros , dos
Numeros , e outras muitas. Floreceo eſte grande Phi
loſopho no tempo de Ius , e de Olyris , como ſe co
lhe
22 Ennæa , oui Applicação do Entendimento ;

The do que eſcreveo Diodoro Siculo no primeiro Li


vro , que vem a ſer 2000. annos depois da criaçao do
Mundo. Ainda que muitos Authores concordao , em

que Hermes compoz trinta e ſeis mil quinhentos, e


vince e cinco Livros , os principaes forão , comodiz
Clemente Alexandrino , trinta e ſeis de Philofophia,
e feis de Medicina , aos quaes ajuntarão outros Ef
critores varios volumes , divulgados debaixo do
nome de Hermes , querendo antes perder a gloria
de Authores, do que ver ſem eftimaçao os ſeus li
Vros . A eſtas injurias chama diſcretamente o gran
de Vieira as mais intoleraveis ; porque ſe lhe de
ve o agradecimento. Por eſtas letras , e muitas vira
tudes moraes
e heroicas , com barbara, e fuperf.
ticioſa idolatria adorarão os Egypcios a Hermes
depois damorte , como ſeu verdadeiro Deos da Sa
bedoria. Tao antigo he no Mundo o coſtume
barbaro de adorarem os homens aos Sabios por
Deoſes das Sciencias , não em quanto vivos , fe
não depois de morcos.
: ENODIO . Só hum Philoſopho tað fabio , que
ſoube as tres partes da Philoſophia do Univerſo ,
podia eſcrever tantos livros , e inventar huma Ar
te , ſobre que ſe tem eſcrito Livrarias. Agora eſti
marey ſaber de vòs , fe com ella poſſuhirão os Egyp
cios grandes remedios para conſervar a faude, e di
Jatar a vida , como tambem myſteriofos arcanos pa
fao os
ra adquirir , e augmentar as riquezas , que
dous principaes effeitos da Chryſopeia.

S. IV.
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.$.4. 23

S. IV .

Da excellencia , e myfterios da Arte Magna.

ENODATO . Odos ſabemos , que no Egyp

ENODATOT to chegou a Medicina à fua


mayor perfeiçao , e pela faude , que logravão os mo
radores daquelle Reyno , vivião muito , e multipli
cavão com tanto exceffo , que para extinguir a ge
raçaõ dos Hebreos , ordenou Pharaò às parteiras
Egyptanas, que nos partos lhes matafſem os filhos
varões; e porque eſtas mulheres por temor de Deos
deſprezarað o Real Decreto , mandou o Tyranno
lançar os Innocentes no Rio : Quidquid maſculini Exod.1. 22 :
fexus natam fuerit , in flumen projicité ; fendo eſte
Barbaro tão ſemelhante a Herodes perſeguidor
tambem dos meſmos Innocentes , que entre o Her ?
rodes de Memphis , e o Pharao de Hierufalom
não houve mais differença , que affogar Herodes
os Innocentes da Paleſtina em ſangue , e Pharaò
em agoa os Innocentes do Egypto ,mas por juſto .
caſtigo de Deos morrèrao depois, Pharaò no mar .....
Vermelho, como affogado em ſangue, e Herodes
na Redinha affogado em agoa ; porque ainda hoje
là ſe conſerva ſepultado no Rio ..
E ſobre a boa ſaude, e larga vida dosEgypcios,
que devião abaixo de Deos à Medicina Hermeti
ca, ninguem ignora , que Hermes Triſmegiſto in
Ventou no Egypto os Hierogliphicos , como el
creve Plata ) , os quaes ſó os Philofophos, e Sacer
dotes mais Sabios entendia ) , e interpretavaó. De

baixo do veo daquelles enigmas, e myftecios , the


dei
14 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

deixou Hermes em teſtamento , ou herança , aquel

la recondita , e precioſa ſabedoria , que foy o Po


toſi, donde tiraraó os Egypcios tantas riquezas ,
como forão neceffarias para edificar as Pyramides,
Obeliſcos , Labyrinthos , e ſoberbos Palacios , que
forað maravilhas do Mundo , os quaes edificios
pyramidaes eraõ de tað ſegura architectura , que os
naõ arruinou , nem deftruhio o dilatado eſpaço de
trinta ſeculos. Das Pyramides , que ainda hoje ſe
conferva ) tres legoas do Graó Cayro , as mayores
ſaõ tres , que ſegundo a tradiçaõ daquelles Povos,
foraõ edificadas por ordem de Pharaò , perſegui
dor dos Ifraëlitas : a primeira para ſua propria ſee
pulcura . a ſegunda para ſua mulher ; e a terceira
‫܂ ܥ܀‬ para ſua filha ; porém nao logrou Pharao o deſcan
ço que eſperava , porque no mar Vermelho deraó as
ondas a eſte Tyranno huma fluctuante fepultura .
Na fabrica da mayor deſtas Pyramides trabalha
raõ ' inutilmente vinte annos , crezentos, e ſetenta
'mil homens, que fó em alhos, e cebollas , de que
goſtao muito os Egypcios , gaſtarað mil e oito
.centos talentos , que importaó em dous milhões
de ouro ; porque nem Pharaò nem ſua mulher ,
nem ſua filha , ou peſſoa alguma , lograraő a vai
de de ſerem os ſeus cadaveres fepultados neſte ſo
berbo Mauſoleo. Thevenot , que vio , e medio el

ta prodigioſa Pyramide , diz , que he quadrilate


ra , e por onde começa a fahir da terra , tem mil
e duzentos e ſeſſenta paſſos de circuito. Todas as
pedras de que ſe compoem , tem tres pès de alco ,
e cinco , ou feis de comprido , e cada pedra deſtas
forma hum degrào facado , que por todos faó du
zentos e oito d
, eſde o alicerce até o remate , que
pare
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I
. cap.i.nic. $ .4 . 25

parecendo cà debaixo agudo, tem no alto hum pla


no de pedra , em que pòdem caber quarenta peiloas.
Neſta Pyramide hà huma camera , em que eſtà huin
tumulo vazio, feito de huma pedra inteiriça , e feme
Jhante a porfido ; mas quando nelle eſtiveraó de
poſitadas as cinzas de Pharao , ou de algum outro
Monarcha , ſempre eſtaria vazio o ſepulchro ; por
que nenhum lugar occupa depois da morte a vai
dade . He porèrn digno de reparo , que ſendo as
Pyramides do Egypto huma das ſete Maravilhas do
Mundo , ſejaó hoje de todas ellas a unica , que poſ
ta em pè hà mais de tres mil annos , triumpha , e
triumpharà por muytos feculos de todas as injurias
do tempo ; porque como as Pyramides entre os
Egypcios erað o ſymbolo da vida humana , que da
baze da infancia ſempre ſe vão attenuando até o
ultimo ponto , que he a morre , por cuja razão
ainda hoje ſe levancao Pyramides nos Mauſoleos,
para ſignificar a continua extenuaçao da vida , e
no Egypto forað edificadas as Pyramides com Ou
ro feito pela Arte Chymica , ainda hoje eſtà apre
goando com mudas vozes, e lingoas de pedra aquel
te fymbolico pregoeiro de marmore , que a Chryſo
peia de Hermes , ſena ) eterniza , dilata tanto a vi
da , como as ſuas Pyramides , ſem faltar nunca di
nheiro a quem poſſuir eſte arcano , para fazer aquel
Jas , e outrasmayores maravilhas ; ſendo a mais plau
fivel de codas , acharem -le depois de tão dilatado
tempo os Mauſoleos , e tumulos dos Hermeticos ,
tao de neceſſarios , como vazios . Tanto viviao , e
táo opulentos eraõ os Egypcios poluidores da Chry
fopeia , que ainda no tempo do Emperador Diocle
'ciano , como refere Suidas , era cao certa , e conſ
tante
26 Ennud , 01 Applıcaçaõ do Estendimento ,

tante a fama do muito Ouro , que pela Chymica ſe


fazia no Egypto , que por temer Diocleciano a
ſublevaçao de hum Povo taðrico , e vigorolo , lhe
mandou queimar os livros, que tratavaó da Chry
Topeia, para evitar com eſte incendio a duraçao , e
rebeliaó de taó poderoſos , e robuſtos vaſſallos.
ENODIO . Todos os Tyrannos faó ambicio .
fos da vida , e da riqueza ; e principiando pela ri
queza : Marco Antonio , eſtando na Alia , poz duas
decimas no efpaço de hum anno , a cuja exorbitan
cia reſpondeo o Povo , que eſtimavaõ muito , que
elle tiveſſe authoridade para em hum anno dupli
car a obrigaçao de lhe pagarem duas vezes tribu
tos dos fructos da terra ; porque tambem devia mof
trar primeiro o novo poder, que tinha para fazer
dous Eftios, e dous Outonos dentro do meſmo an
no , de que elles muito neceſſitavao para fazerem

duas colheitas , e duas vindimas , tað neceſſarias,


para ſuſtentarem a vida , e pagarem os tributos aon
de reynava ) Tyrannos, como Agamemnon , a quem
Achiles com juſta razaõ chamava devorador do
Povo , os quaes de hum ſó beneficio , que cada an
no lhe fazia a Natureza , queriaó dous agradeci
mentos . Não ha nenhum Tyranno , que nao imi
te o fabuloſo Caronte , que contentando -ſe no prin
cipio com hnm ſó Obolo , depois pedio dous , e fi
nalmente quiz tres ; porque todos poem tributos
para tempo determinado , e nað fó ſe perpetuao , mas
ordinariamente ſe augmentaó , e multiplicaõ , ain
da que os Eftios , e os Outonos ſe nao duplicaó , e
os fructos por andarem as terras cançadas, ſe attenua ).
Quanto ao deſejo de viver , e de dilatar a vida,
temos hum admiravel exemplo em hum dos Dio
aylios C
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.9.4 . 27

nyſios Tyrannos, a quem ſerviaõ de Barbeiros fuas


filhas em quanto forao pequenas ; porque depois
de ſerem grandes, nao queria que uſaſſem de nava
lha , ou da teſoura , e ſó com hum tiçaõ permit
tia que lhe chamuſcaſſem os cabellos da cabeça , e
com caſcas de nozes accezas os da barba ; e à viſta
do referido , nao podia a tyrannia de Diocleciano
deixar de estimar muito huma Arte , que lhe po

dia dilatar a vida , como a duraçaõ das Pyramides


do Egypto , e augmentar as riquezas, como por ſua
mão fazia Mydas; por iſſo entendo que o motivo
de tað barbaro incendio ſeria experimentar Dio
cleciano , que com a Chryſopeia ſenað augmentava
a riqueza, nem ſe dilatava avida.
ENODATO . O Emperador Diocleciano , co
mo cruel perſeguidor da Igreja Catholica , ainda
que eſtimava muito a conveniencia , e ſaude pro
pria , tambem deſejava deſtruir a vida , e utilida
de alheya , como teſtemunhao tantos Martyres
que barbaramente condennou à morte. E como o
amor proprio lhe promettia larga vida , e nao tinha
conio Emperador neceſſidade do Ouro , e Prata do
Egypto , nem os Hermeticos lhe pagariaõ tributo
daquella Prata , e Ouro , que fabricavab occulta
mente pela Arte : para evitar eſtes roubos , ea guer
ra , que lhe faziao com as ſuas riquezas , mandou
Diocleciano buſcar, e queimar no Egypto todos os
livros Chryſopbilos, paraque ignorando os Egypcios
aquella Sciencia , nað viveſlem tantos annos, nem
poſſuiſſem grandes thelouros. Nem ſe pòde pre
ſumir , que o incendio das Livrarias Chymicas foy
ordenadopara caſtigar o enganodos Hermeticos, af

firmando Suidas , que o Emperadoras mandàra.quei


mar ,
Dij
28 Emæa , ou Applicação do Entendimento ,

mar, por temer a guerra prefente , e a ſublevaçao


futura dos poderolos , e riquiſſimos Egypeios:
Chemia eft auri , & argenti confectio: cujus libros Dio
clecianus conquiſitoscremavit , propterea quòd Ægyp
tij res novas adverſus illum molliti fuerant, quos
du
ruter , atque hoftiliter tractavit : eodemque tempore
libros de Chemia auri, a argenti ab antiquis ſcriptos
conquiſivit , atque incendit : ne deinceps CÆgyptij ar .
te illa divitias compararent , neu pecuniarum abundan
tia confiſi, deinceps adverfús Romanos rebellarent. Re
petivos as formaes palavras de Suidas , paraque vif
leis , que a Chymica de que falla , era Arte nao de
fundir mas de fazer Ouro , e Prata : Chemia ejt
auri, & argenti confectio ; e como com eſſas excelli
vas riquezas eraõ os Egypcios muito poderoſos ,
nao por compaixao do feu trabalho , e diſpendio da
ſua fazenda ; mas enfurecido , e eſcándalizado Dio
cleciano do que machinàrað , e poderiaó novamen
te intentar contra elle , e contra o Imperio Romano ,
lhes mandou queimar os livros Hermeticos,para ſecar,
e eſterilizar com as labaredas de fogo as Arvores da
Sciencia , que no Egypto produziað fructos de
Prata , e Ouro : Libros de Chemia auri , do argenti
ab antiquis ſcriptos conquiſivit, atque incendit. Dema
neira , que tão longe eſtà de provar o incendio a
falſidade da Chryſopera , que antes he hum arguiden
to , que a todas as luzes acredita a ſua verdade.
ENODIO. Como ninguem duvidou até agora
da verdade de Suidas , nað me atrevo a negarlhe o
eredico , ainda a reſpeito do que diz da Chryſopeia.
Porèn nao poſſo entender como convertia ) os
Egypcios huma fubftancia em outra , transforman
do os metaes viz em Prata , e Quro .
ENOS
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.9.4. 29

ENODATO. Bem fabeis vos como bom Phi


lofopho , que da potencia para o acto nað val o
argumento , que conclue do acto para a potencia ;
porque ſenaó he o que pode ſer , pode muito bem
ſer o que jà he ; e daqui ſe ſegue com evidencia ,
que ſe os Égypcios faziao Ouro , c Praca pela Chy
mica , como vos confeſſais, crendo a Suidas , que
o podiaó fazer , transformando huma em outra fubi
tancia , e tranſmutando os metaes viz em Prata ,
e Ou.0 ; porque do acto para a potencia val o ar
gumento. E atè para eſtas transformações favore
cia muito a Natureza daquelle Paiz à induſtria
da Arte Magna ; porque como por liçao de Ibra
him efcreve no ſeu Vocabulario o grande Bluteau ,
as meſmas terras do Egypto cada tres mezes ſe crania
formaó . Tres mezes do anno faó brancas , e rel
plandecentes , como Perolas : outros tres mezes
fao negras como Almiſcar : outros tres fað ver

des , como Eſmeraldas : e outros tres. ſao amarellas,


como Alambre , que he huma cor , que eſtà mui
to perto de ſer de Ouro ; e com a meſma agoa do
rio Nilo fe transformaõ em doces os limões aze
dos. Mas ſe eſtas experiencias , noticias , e razões
vos nao convencem o entendimento , para ererdes
na tranſmutaçaõ das ſubſtancias , e na transforma
çaõ dos metaes , ouvi agora o mayor exemplo , que
de pode achar neſta materia , fuccedido ha muitos
ſeculos no Egypto , como qual as converſões com
infalliyet certeza ſe provao .

No Paço , e na preſença de Pharaò , Rey do


Egypto , converteo o Summo Sacerdote Aarami
lagroſamente em Serpente'a Vara de feu irmão
Moyſés: Verfa eft in Colubrum ; e ſendo logo cha- Exod . 7. 10 .
mados
30 Ennea , 011 Applicação do Entendimento ,

mados por ordem do meſmo Rey todos os Sabios,


e Feiticeiros do Egypto , para competirem à ſua
viſta com os Hebreos , converteraó tambem os Ma
gos as ſuas Varas em Serpentes , nað fó por força
de encantos , como Feiticeiros ; mas tambem de al
Exod.7.11.
guns ſegredos Egypciacos , como Hermeticos : Vo
cavit Pharaò fapientes , & maleficos : & fecerunt etiam
apſi per incantationes Ægyptiacas , arcana que
dam fimili ter . Proj ec er un tque finguli virgas ſuas ,quæ

verſe ſunt in dracones. Alguns Expolitores , como


Niſſeno , Juftino , Ruperto , e Tertulliano enten
deraó , que as Serpentes dos Magos forað fantaſti

cas ; mas Santo Agoſtinho , Theodoreto , Lyra ,


Abulenſe , Caetano , e outros com o Padre Cora
nelio Alapide affirmao , que forað verdadeiras Ser
pentes : Veros hos Magorum fuiſſe dracones. Naó con
cordaó tambem os Expoſitores no modo , porque
os Magos fizeraõ eſta admiravel converſaó. Encen
deo Caetano , que por arte do Demonio converte
rao os Magos as duas Varas em Serpentes; porque
ulando de couſas naturaes , e efficaciſſimas, podia
o Diabo fazer eſta converſao . E deixando agora
em filencio a opinia . de Calvino , que nao deve
ſer ouvida , como propoſiçaõ de hum Hereſiarcha
blafphemo , tambem ſe nao pode ſuſtentar a do Padre
Alapide ; porque ſegue que os Demonios trouxe
raõ de outra parte as Serpentes , e com a ſubtile
za , e brevidade , com que fingem os prodigios , as
puzeraõ no meſmo lugar , donde repencina, e im
perceptivelmente tiràrað as Varas: Dico ergo dæmories
aliunde hos dracones adduxiſſe , eofque virgis ſubito ,
.
& imperceptibiliter ſubduetis , earum loco fubſtituiſſe.
Porèm eſta expoſiçaõ nao concorda com o ſentido
literal

:
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog .I.cap.unic.S.4 . 31

literal do Texto , nem com a doutrina ,'que o meſmo


Alapide deixou eſcrita neſte lugar ; porque o Tex
to Sagrado diz expreſſamente , que as varas dos
Magos ſe convertèraó em Serpentes, ſendo os mel
mos Magos Ipſi, e nao outros , os Authores deſta
converſao , que elles fizerað por força de encantos
Egypciacos , e obra dos ſegredos da ſua Arte : Et
fecerunt etiam ipſi per incantationes Ægyptiacas,
arcana quædam fimiliter. Projecerunt que ſinguli vir
gas ſuas, quæ verſæ funt in dracones ; e accreſcenta.
que a Vara de Aarão , que era a meſma de Moylés,
como diz Alapide : Eadem virga nunc Moſis, nunc
Aaronis, nunc Dei dicitur , engulira as meſmas va
ras dos Magos : Devoravit virga Aaron virgas.
eorum ; o que nao diria , fe fofſem Serpentes , pof
tas pelo Demonio no lugar donde tinha tirado as
Varas ; porque uſando a Eſcrittura com verdade
da figura chamada Metonymia a reſpeito do nome ,
que dà à Vara de Moylés , não poderia com ver
dadeira translaçað affirmar , que as Varas dos Ma
gos forað devoradas pela Vara de Aarão : Devora :
vit virga Aaron virgas eorum ; porque as Serpen
tes conduzidas àquelle lugar pelo Demonio , nao
erao , nem cinha ſido Varas dos Magos ; porém
ſendo Varas convertidas em Serpentes , e não Ser

pentes em lugar de Varas , podia o Sagrado Texto


dizer , ſem fàltar à verdade , que a Vara de Moy
ſés , nao pela Serpente que era , fenaó pela Vara que
fora , engulira as Varas dos Magos , não porque
nelle tempo foſſem ainda Varas , mas porque ante
cedentemente o tinhaó ſido , como com authorida
de de Philo Hebreo , Santo Agoſtinho , Profpero,
Ambrofio , e . Caetano commenta Cornelio Alapio
de
32 Ennen , 011 Applicação do Entendimento ,

de : Virga , id eſt Serpens , in quem virga erat conver


ſa , devoravit virgas, id eſt Serpentes , five dracones,
in quos virgæ eorum erant converſa. No prodigioſo
ſucceſſo , pois , deſta converſaõ, ſe deve agora no
tar , que os Feiticeiros, e os Sabios , que na Verſao
de Onkelos , e conforme o Texto Hebreo ſao Ma
gos , todos forao chamados ao Paço , para que os
Magos , como Boticarios, e Chymicos na verlaó dos
Setenca : Sophiſtas , Pharmacos , com os ſegre
dos da ſua Arte : Arcana quædam ; e os Feiticeiros
com os encantos do Egypto ; Incantationes cEgyp
tiacas , fizeſſem huma converſað , em que a Arte Ma
gica dos Feiticeiros , e a Arte Magna dos Sabios ,
compeciliem com a Omnipotencia Divina ; porque
eráo cáo poderoſos os ſegredos daquelles Sabios,
como os encantos daquelles Feiticeiros, em fazer
transformações prodigioſas, por ſerem peritos nos
ſegredos da Chymica , a que o Padre Alapide chama
com razão. Arte admiravel : Sapientes hic vocantur
rerum arcanarum , vel artis admirabilis periti. Porſe
rem eſtes homens tão peritos na Arte de transformar
as ſubſtancias por meyo de certos ſegredos: Arca
na quædam , foráo igualmente chamados ao Paço ,
e introduzidos com os Feiticeiros, a competir com
Moyſes, e Aarão ; porque pelo conhecimento , e
experiencia , que Pharaò tinha da Magica dos Frei
ciceiros , e da Sabedoria dos Hermeticos , tanto el .
perava a victoria da efficacia dos ſegredos , como
da força dos encantos. Em quanto Deos permittio,
e não impedio a força dos encantos , e a efficacia
dos ſegredos , para ſer mais illuftre a ſua victoria ,
como notou o Padre Alapide : Hinc patet , quod
Deus permiferit Magos tam mira operari , eo fine ut
illus
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog 1.cap.unic.$.4. 33

illuſtrior foret vittoria ſua; convertiað os Magos ,


e os Magicos humas Varas mortas em Serpentes
vivas , da meſma forte que em Serpente convertèo
Aaraó a Vara de Moyfés : Verſa eſt in colubrum :
fimiliter verſæ ſunt in dracones. É fe os ſegredos dos
Sabios Hermeticos do Egypto : Arcana , erão tão
poderoſos , que convertião humas Varas mortas
em huns Dragões , ou Serpentes vivas : Dracones ,
como transformavão em Dragões as meſmas Varas
os Feiticeiros do Egypto com os ſeus encantos :
Incantationes ; e iſto com tanta propriedade , que
a converſao das Varas em Dragões tinha toda a
femelhança , com a que Aarão tambem fez da Va
ra de Moyſes em Serpente : Similiter ; mas ſó com
a differença , de que os Magos transformaraó as ſuas
Varas em Dragões, fazendo com ellas a projecção,
que do Texto não conſta , que Aarão fizeſſe com a
Vara de Moyſes: Projecerunt que finguli Virgasſuas:
Bem ſe ſegue, que com os pòs chamados de pro
jecção converterião eſtes Magos com mayor facili
dade o Dragão vivo do Mercurio em huma Vara
de Ouro , aſſim como em Ouro convertia , quan
to tocava a famoſa Vara de Mercurio.
.
ENODIO . Toda a fé devo dar a hum exem
plo , provado com hum Texto de Fè , ainda que
não fica ſendo de Fè , mas engenhoſo diſcurſo a
confequencia , que vòs ſubtilmente delle inferis ;
por iſſo eſtimàra ouvir algum exemplo natural , fuc
cedido fóra do Egypto ; e provado não ſó com a
razão , mas tambem com a experiencia.
ENODATO . Não permittem as leys da cons
Verſação reſponder ſempre com dilatados diſcur
los a huma breve pergunta ; mas le yòs deſejais
E ver
34 ; Ennza , ou Applicação do Entendimento ,

Ver eſta materia diſputada com todo o rigor Phi


lofophico , aqui tendes huma Critica , que eu fiz
concra o Reverendiſſimo Padre Athanaſio Kircker,
e com ella me parece , que ficareis de todo fatis
feito . Porèm ſem agora me valer do que nella táo
diffuſamente tenho eſcrito , direy o meſmo com
menos palavras. He tão certa eſta verdade da tranſ
mutação dos metaes em Ouro puro , e fina Prata,
por virtude da Argyropeia , e Chryſopeia , que o
grande Medico Daniel Sennerto a prova com ex ,
periencia : Et fi vero ea plurimis impoſſibilis videa
tur : teſtatar tamen contrarium experientia ; e depois
de referir os exemplos de Arnoldo de Villanova ,
Raymundo Lullio , Traviſano , Paracelſo , Sydos
nio , Boethio , Kelleo , Hoghelando , Libavio , Di
nheim , Bernaudo , Penoto , Zwingero , e de ou
tros Hermeticos , que fizeraõ verdadeiro Ouro pea
la Chymica , refuta doutiſſimamente a opinião con
traria. Não diz , que a forma do Ferro fé conver
te em forma de Cobre , nem a do Chumbo em Ou
ro ; porèm affirma, e defende , que le introduz a
forma do Ouro , faltando a forma do Chumbo , o
a do Cobre , morrendo a forma do Ferro : Forma
quidem ferri in formam cupri , & plumbi in aurum
non vertitur ; féd forma férri, decedente forma cupri;
o formaplumbi, decedente auri forma, introducitur.
Prova Sennerto eſta lua doutrina , não ſó com a ex
periencia de humas agoas , que ha no Monte Car
patho, junto de hum Lugar do Reyno de Hungria
chamado Smolnicio , que convertem o Ferro em Co
bre : com as agoas artificialmente vitrioladas , que
deixão no Ferro bum pò vermelho , o qual depois
de fundido , fica Cobre perfeitiſſimo : e com o ſe
27
gredo
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.5.4 . 35

gredo de Rhenano , que transforma o Mercurio em


Chumbo ; mas tambem com os alimentos , que faó
eſpecies perfeitas, e de formas diverſas , fem em
bargo da qualdiverſidade, e perteição , ſe conver
tem em chylo , em fangue , em carne, em membranas ,
em nervos , e em oſſos, tendo todas eſtas entidades
differentes formas. E ſe a Natureza , e a Arte fazem
eſtas converſões, porque não farà a Chryſopeia, in
vento da Arte imitadora da Natureza , outras mui
tas tranſmutações ', principalmente ſendo fymbo
licas ?
ENODATO . Não tenho outra duvida con .

tra eſta voſſa Philoſophia , ſenão , que não ha


ſe
vendo neſte Mundo ſegredo tão occulto , que
não revele , ficaſſe impenetravel eſte ſegredo Egyp
cio a todas as Nações circumviſinhas, e com ma
yor admiração aos Hebreos , vivendo tantos annos
captivos no Egypto ; e como não conſta , que os
filhos de Iſraël ſoubeſſem a Chymica , nem fizeſſem
Ouro , ou Prata pela Arte Magna , daqui infiro eu,
que nunca no Egypto ſe obrou couſa alguma com

a Chryſopeia.

S. V.

Da Chryſopeia dos Hebreos.

ENODATO . Gora eftimo muito não vos


ter repetido a Etymologia ,
que o grande Blureau eſcreveo da palavra Alqui
mia , para com ella vós provar , que os Hebreos
aprenderão a Chymica no captiveiro do Egypto.
Alquimia , ou Alchimia , dizelle, deriva- ſe , ou de
Alchi
E ij
36 Enuda , oui Applicação do Entendimento ,

Alchimo, que ſegundo Libavio , fazia Ouro falſo ;


ou de Chime, ou de Cheme, que conforme Salma
zio , foy o inventor deſta Arte , ou ſe derive do ar
tigo Al, e de Cham , filho de Noè , a quem alguns
Chymicos fazem inventor da Arte Chymica , e ac
creſcentão , que Moyſes, e lua irmáa Maria com
puzerão Livros deſta Arte ; tanto aſſim , que em
hum dos ſeis volumes do Theatro Chymico ſe acha
hum pequeno Tratado attribubido
à dita Maria ir
máa de Moyſes. Outros ſeguindo a opinião de Vof
ſio , derivað Alquimia do artigo Al, e do Grego Chi
miſtos ; mas ſegundo Bochardo , a Etymologia mais
provavel, he , a que ſe funda na palavra Arabica
Chema , que val o meſmo , que occulcar , e de Che
ma , ſe tem feito Chemia , e accreſcentandolhe o ar
tigo Al, fica Alchemia , que quer dizer Arte occul
ta , e eſta he propriamente a de converter qualquer
metal em Ouro ; que ſe ha tal Arte no Mundo , he
na realidade cáo occulta , que ou todos a ignoráo ,
ou nenhum dos que a ſabe , a manifeſta. Segundo os
Mahometanos , conclue Bluteau , o inventor da Al
quimia , ou Chymica foy Corè , a que elles chamão
Kiroun , ou Caroun , ao qual com Dathan , e Abi
ron engulio a terra , e na opinião de alguns , de
Moyfes aprendeo Corè eſta Arte.
Favorece eſta opinião o Sagrado Texto ; por
que lemos nos Actos dos Apoftolos, que Moyſes
fora erudito na Sabedoria dos Egypcios, e podero
Act. 7.22 .
to nas palavras , e nas ſuas obras : Et eruditus eft
Moyſes in omni Sapientia Ægyptiorum , & erat po
tens in verbis, & in operibus fuis. Eſta Sciencia , co
mo declarou Clemente Alexandrino por liçaõ de
Philo Hebreo , foy Grammatica , Arithmetica , Geo

metria,
SobreaPediaPhiloſophal.Dralog.I.cap.unic.S.5. 37

metria , Poeſia , Muſica, Mathematica , Medicina,


e a Philofophia Hermetica , eſcrita myſterioſamen
te nos ſeus Hieroglificos : Philofophiam, quam in li- Clem . Ale
teris oſtendunt hieroglificis; por iſſo Moyſés foy tão xandrin.
inſigne , e tão poderoſo Chymico nas operações dos Strom . lib. I.
i
Egypcios : In operibus ſuis, que com a ſua grande
Sciencia , e com a actividade do fogo , inſtrumen
to principal dos Hermeticos , reduzio à pò ſubtil
o Bezerro de Ouro , que pela Arte fundio tambem
Aarão : Formavit opere fuforio ; ficando eſte pò de Exod. 32.4 : 9
Ouro cão diſſoluvel , que o beberão desfeito em
agoa os filhos de Iſraël : Arripiensque vitulum ,
quem fecerant , combuſfit, do contrivit uſque ad pul
verem , quem fparfit in aquam , & dedit ex eo potum
filiis Ifrael. He certo , que eſta diſſolução de Ou
ro naturalmente le não podia fazer ſem o Eſpelho
Uſtorio , ou Parabolico , ou grande Sciencia Chy
mica ; porque hoje nenhum Artifice pòde queimar
Ouro , e reduzillo a pò ſubtil , que ſe poſſa diſſol
ver , lem ir ao fundo , a que o Texto Sagrado com
grande energía chama eſpalhar na agoa : Sparſit in
aquam ; ſenão uſando do referido Eſpelho , que ha
poucos annos inventou Monſieur Vilhete , ou che
gando a deſcobrir como Moyſes o fegredo da Arte
Magna, ſem o qual por nenhum modo ſe pòde quei
mar , e pulverizar o Ouro , como diz Sennerto : Di
citur quidem , ( Exod.32.v.20. ) ipſum vitulum illum
ab Aarone conflatum igne combuſliſſe, & in pulverem
contriviſſe, ac in aquam projeciffe ; quod ſine Chymico
artificio faétum non eſſe nonnulliftatuunt : cum aurum
per ſe nullo modo comburi, & in pulverem redigi poſſit;
eninguem farà Ouro potavel, de ſorte que ſe diſſol- ,

Ya , e não và ao fundo , mas fique como eſpalhado no


licor ,
ão ento
38 Ennæa , ovi Applicaç do Entendim ,

licor para ſe beber em agoa : Sparſit in aquam ,


dedit ex eo potum , ſe não for tão perico , como foy
antigamente Moyſes nas obras , e operações dos
Egypcios : In operibus ſuis ; porque o Ouro potavel,
que no ſeculo paſſado fez pela Chymica o inlig
niſlimo Schrodero , aindaque não deſcia ao fundo,
não ſe encorporava , ou eſpalhava , mas nadava á
Schroder.lib. cona da agoa : Sed do mihi fors favit , ut olet! m ru
fol. bicundiſſimum aquæ ſupernatans , ex auro elicuerimus;
3.cap.19.
261. & 266. e como Moyſes pela Arte Hermetica fez , ou deſ
fez Ouro , que em agoa ſe eſpalhava , encorpo
rava , e bebia , às obras da ſua Arte : Operibusfuis ,
devemos attribuir eſta admiravel diſſoluçaó, e não
aos milagrés da Onnipotencia Divina , os quaes
Deos , como enſinao os Theologos , não coſtuma
fazer ſem neceſſidade. Por eſta razão não conſta
do Sagrado Texto , que a diſſolução do Ouro fof
fe milagroſa como declara, que foy prodigioſa a
converſa ) da Vara em Serpente : Verſa eſt in Co
lubrum ; dizendo expreſſamente, que Moyfés quei
mara , & pizara : Combuifit, & contrivit , ou como
lè o Texto Hebreo, moera , e reduzira a tenuiſſimo
pò o Bezerro de Ouro : Moluit uſque ad tenuta
tem ; porque moer , e pizar depois de queimar o
Ouro , para com o inſtrumento do fogo , e obra
, ais pa
de mãos o reduzir a pò , e forma potavel m
rece obra da Arte , do que milagre da Omnipo
tencia.
Commentando eſte lugar o doutilſimo Padre
Cornelio Alapide , e não vendo neſta operaçao
nenhuma circunſtancia , por onde entendeſſe, que
era milagroſa , reconhecendo como ſabio a gran
ſe
de difficuldade de fazer Ouro em carvão , para
moer ,
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.9.5. 39

moer , e desfazer em pó , que ſe podeſfe beber em


agoa , attribuhio eſte prodigiofo effeito à virtude ,
ou miſtura de certas hervas, com que Moyfes fun
dio no fogo o Bezerro de Ouro , para mais facil
mente o fazer em carvab , e desfazer em pò : Con
jecit vitulum in ignem , certis admiſtis herbis , ut lie
quaretur in maſſam , & quafi in carbonem redigere
tur : Moſes carbonem illum , vel maſſam igne extrac
tam contudit , do contrivit in minutum pulverem .
Notay vòs agora eſta expreſſao do Padre Alapide :
Maſam igne extra &tam ; porque conformandoſe
com o ſentido liceral do Texto , nað ſó confeſſa ,
que Moyſés fizera eſta operaçao com o fogo , mas
declara , que do fogo fahira o Ouro em forma de
extracto : Maffam igne extractam ; e os extractos
principalmente dos metaes , ninguem ignora , que
fao operações da Chymica. He certo , que Moy
fés fez eſta diſſolução do Ouro ; e tambem he
certo , que ſó pela Sciencia Hermetica o podia dif
folver, nao fazendo eſta obra por milagre ; e co
mo nað le deve admittir milagre entre os naturaes
inſtrumentos de fundir , e triturar , que conforme.

diz o Texto , e ſabem os Hermeticos , pòdem cal


çinar , e pulverizar o Ouro , neceſſariamente ha
vemos de admitir , que pela Sciencia Hermetica

reduzio Moyſés a pò o Bezerro de Ouro .


He porèm verdade , que depois que os Iſraë
ļitas beberaõ aquelle Ouro desfeito em agoa , fuc
cedeo no Deſerto hum grande prodigio , ſegundo
affirmaó os Doutores Hebreos na Gloſta ordinaria

delte Texto , como ſe pòde ver em Nicolao de


Lyra, o qual foy fem duvida effeito milagrofo da
Omnipotencia de Deos ; porque os innocentes.
acha
çãö do Entendimento ,
40 Ennæa , ou Applica

acharão a bebida doce , e não lhe fez nenhum dam.


no ; excitando pelo contrario dores , e intumeſcen
cia aos Idolatras , aos quaes tingio tambem a bir
ba com a cor do meſmo Ouro ; e por eſtes prodi
giofos ſinaes foraõ conhecidos os delinquentes ;
degollados à eſpada pelos Levitas , capitaneados por
Moyſes. E daqui fe ſegue , que ſendo a labedoria
de Moyſes cao grande ,
que do feu eſpirito , ou ta
lento tirou Deos , a que repartio por Serenta Va
rões para ſaberem governar o Povo Hebreo : Au

Numer . 11 . ferens de Spiritu , qui erat in Noyfe, & dans ſeptua


25 . ginta viris ; ainda era mayor eſta ſua ſciencia , aju
dada com os milagroſos ſoccorros da Omnipoten
cia Divina , que Deos lhe communicou , quando lhe
mandou empunhar a prodigioſa Vara , cujos mila
Exod . 4. 17. gres aſſombràrão o Egypto : Virgam quoque banc

ſume in manu tua , in qua facturus es ſigna. E não me


digais agora , que ainda que Moyfes fabia a Phi
lofophia Hermetica , não tinha no Deſerto os inf
trumentos neceſſários para fazer operações Chy
micas ; porque do lagrado Texto conſta expreſia
mente , que no Deſerto fizera Moyſes por man
Numer . 21.9 . dado de Deos a Serpente de Metal: Fecit ergo Moy

fen Serpentem æneum ; como tambem o Candelabro ,


Propiciatorio , Cherubins, Coroas , Campainhas,
Thuribulos, Phialas , Alampadas , Vaſos , e outras
couſas de Ouro , para ſerviço do Santuario ; e no
meſmo Deſerto formou Aarão o Bezerro de Ouro ,
pela Arte , que não ignoravão os Hebreos ., antes
que Deos revelaſſe a Beſeleel a Sciencia neceſſaria

para excogitar, e fazer todas as obras de Ouro , que


foflem neceſarias para o Tabernaculo , e Santuario .
Finalmente náo lo no Tbeatro Chymico fe affirma,
que
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.emic.S.5. 41

. que Maria irmãa de Moyſes foubera , e eſcrevera


da Arte Magna ; mas tambem Iſaac Caufałono
1 certifica , que naLivraria d’EJRey de França fe
le acha hum Livro da Chryſopeia , com o titulo de Ars:
Sacra', eſcrito por eſta Propheciza , no qual ella
cita , e louva muito a Hermes , donde ſe colhe
com certeza , que de Hermes aprenderað os Egyp
cios a Philoſophia Chymica , e que dos Egypcios
paſſou aos Hebreos a noticia , e Sciencia da Arte
Magna.
ENODIO . Nao convence o voſſo diſcurſo
o meu entendimento , porque me lembro dos exor
bicantes tributos , que Salamaó , e Roboao ſeu
ambicioſo filho , lançàraó , ou impozeraó ao Povo
de Iſraël, e de Judà , os quaes, de tal forte vexa
raó os ſeus vaſſallos, que por nao poderem ſofrer
jugo tað pezado , acclamarao a Jeroboa por feui
Rey , negando a Roboað a obediencia ; % que nao
fuccederia na Paleſtina , ſe entre os Hebreos fepra
ticaſſe a Arte Magna ; porque nem os Reys lança
riaó tao grandes tributos ſobre o Povo , nem os
ſeus vaſallos ſe : rebellariaó contra elles , por nao
terem dinheiro com que os pagår.

. 1
S. S. ...
VI
icono ,
<
o Da Arte Magna de Salamað aust

ENODATO. Unea leſtes em Seneca , que

NIAlexandre 'Maſno defejàra


mais , depois de ferSenhor de tudo : Inventusiet,
qui aliquid concupifceret poft omnia ? Pois tambem San
lamao , depois de poſſuir muito , poderia querer
F mais,
4.2 Ennæa, on Applicação do Entendimento ,
mais ; porque os homens ambicioſos , e ricos fað
como oshydropicos , a quem nað ſatisfaz a ſede to .
da a agoa do Rio da Prata , nem todas as coiren .
tes do Ouro . Foy Salamað o mais fabio , e o mais
rico homem , que houve no Mundo ; porque nin
guem o excedeo na riqueza , nem igualou na fabe
doria: Dedi tubi cor fapiens , & intelligens in tantum ,
14 nullus ante te fimilis tui fuerit , nec poſt te furne
cturus fit. O. Padre Hieremias Drexellio , da Com
panhia de JESUS , fazendo a conta às groſſas ren
das: de Salamao , aindaque aslimita a leflenta mi
lhões daQuro', nåõrduvidoueſcreyer, 'que nenhum
Reey you Emperadomylexceptuando o da China ,
tove , ou tem de renda tanto dinheiro e o Padie

Athanafio Kircker , da meſma Companhia , averi


guandomelhor o que poſtuhia Salamaā , redûz to
da a quancia a oitocentos e ſeſſenta e douş milhões
de Ouro. Ponderando omeſmo. Drexel'io a grans
de opulencia deſte Monarcha , diſſe com muita ca
zao , que ſendo riquiſimos os Cyros , os Sardana.
palos , os Darios, e os Creflos , podiaó eſtes Reys
Drexell. tom . pedir elmola a porta de Salamaði : Cyras, Sarda
4. cap. 5. de napalos , Darios , Creſos , fuiſſe divites non nega
Salomon.9.1. mus , fed poterant hi Reges mendicare ad fores Salo
verſ. Lyſan- monis . Com eſtas riquezas edificou Salamaó o Tem
der fol.871. plo em Hierufalem , que foy a obra mais ſumptuo
fa e magnifica ', que vio le admirou yo Mundo ,
em que gaſtou , fegundo refere o Abbade Fleuri na
Hiſtoria dos Ifraëlitas , cento e oito mil talentos de
Quro , e hum milhaó , e dez mil talentos de Prata ,
como conſta do Paralipomenon , os quaes reduzidos
amoeda Franceza, fazem o computo de mil, feifcen
fos, e ſeſſenta e noye milhões , ſeiſcentas fellenta e
oita
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog. I.cap.unic .$ .6. 43
Ó oito mil libras , e alguma couſa mais , que nað ſe
ria pouco ; porque cada libra de França , le mie nao
engano , laó dous toftões da nola moeda. Com ef
tas riquezas , nao, lo fez o Altar , Mela , dez Can
dalabros grandes, dez mil Candelabros pequenos ,
.
dez mil Meſas pequenas, e outras muitas couſas de
Ouro , e cubrio o Oraculo de Ouro, o Altar do Ora
culo , os Cherubios , o pavimento , e tudo o mais ,
que hayia po Templo : Operuit que omnia laminis Reg. 3.6.35.
aureis ; mas dey liberalmente para ſerviço do cyl
to Divino grande quantidade de Ouro , e Prata;
porque conforme eſcreve Joſepho , havia no Tem
plo de Ouro lavrado , e mociſto , oitenta mil Cali
ces , ou copos grandes , cem mil Ambolas , oiten
os
ta mil Prat , ſeſenta

bulos , vintę mil Jarros , vinte mil trombetas, vin


te mil medidas , dez mil Caſtiçaes , c duas vezes
outra canta Prata ; e por todos eraõ os vaſos de Ou
ro quatro centos e vinte mil , aindaque Vilhalpan
do augmenta eſte numero a ſeiſcentos e ſeſſentamil;
mas de qualquer modo , que le faça eſta conta ,
.nao tem hoje tanto Ouro:toda a Europa , e toda a
Ala , como diz o Padre Drexellio '; Omnis Euro. Drexel. tom .

pa , 6. Alia , banc auri molem hodie non repreſentet. 4. cap. 19. de


Com eſtas riquezas edificou Palacio na Corte, Ca- Salom. fol.
881 .
fas de prazer ', e de recreaçaõ no monte Libano ,
aonde nað fallando no delicioſo , havia tanto Ou
ro , que nao ſó a baixella , e ſerviço do Paço , e

do Retiros eſcudos, e lanças erao de Ouro puril


ſimo; mas por ſer tanca a Prata , como eraõ as pes!
dras , naộ tinha eſtimaçaó , nem valor na Caſa
‫ هه‬,‫ و‬e
no reynado de Salamaó : Non erat argentum , nec Reg . 10. 21 .
alicujus pretij,putabatur in diebus Salomonis. Fecit- 27.
Fij que
44 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

que ut tanta eſſet abundantia argenti in Hierufalem ,


quanta de lapidum : com eſtas riquezas tinha tao
grande Eſtado , que ſó as Damas , 6lhas de Prin
cipes , e Monarchas , que tinha o nome , e eſta
do de Rainhas , erað fetecentas , e com trezentas,
que tambem eraó mulheres de Salamaó , mas de in
Reg. 3. 11.3 . ferior hierarchia , faziao rodas o numero de mil : Fue
runtque ei uxores quaſi Reginæ feptingenta , & con
cubine trecenta . Aſſim expoem eſte Texto o Padre
Alapide , apartandofe'da intelligencia que S. Hie
ronymo dà ao nome de concubinas : Reginæ vocan
tur primarie uxores , quæ Reguim , a Principum
erant filtæ , ideoque regio cultu ,do nomine utebantur :
concubinæ erant ſecundaria uxores , utpote plebeia .
Drexell. tom . O Padre Drexelio , fazendo com grande modera
4. cap. 3. de çaõ a conta ao numero das Donas , Damas , Ayas,
Salomon. fol. e outras criadas', que haviaõ de fervir no Paço a
904 eſtas mil Rainhas , e aſſignando a cada huma das
ſetecentas Rainhas teis criadas , e eres a qualquer
das trezentas Concubinas , diz , que por todas f .
ziaõ o numero de cinco mil , e quatrocentas mulhe
ses , limitado numero de peſſoas , aonde fem dia
vida ſeria muito mayor o fauſto , e a pompa . Sala
maó , que tudo iſto vio , porque o tinha dentro
..
em caſa , nað fe atreveo a fazerlhe a conta , diz

Cantic.6.7 . fómente que nao tinhao numero : Adoleſcentularum


non eſt numerus. Os coches de Eſtado , que ſerviað
a Salamañ , e a toda a Familia Real , e os que el
tavao prevenidos para a guerra , eraõ doze mil : Et
Paralip. 2.9: Currúum , equitumque duodecim millia : os cavallos,
25.
repartidos por quatro mil Cavallariças, eraõ qua
renta mil , que ſerviaó para tirar pelos coches,

carroças , e carros deſtinados para o ſerviço do


Tem
om

Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.6. 45

Templo , e da Caſa Real: Et habebat Salomon qua- Reg - 3.4.26 .


draginta millia præſepia equorum currilium ; hoc eft ,
babuit 40 . millia equorum in præfepius , commenta
,e
prova o Padre Alapide com as palavras do Parali
pomenon : Habuit quoque Salomon quadraginta
mil. Paralip. 2.9.
.
lia eqnorum in ftabulis ; e os cavallos da Peffoa Real, 25.
e outros de manejo , e cavallaria , eraõ doze mil :
Et duodecim millia equeftrium .Por eſte modo , expli- Reg: 3.4.26 .
ca eſtes termos o melmo Alapide : Curriles equi vo
cantur , qui currus trahunt , equeſtres qui equitem fuf
tinent ; eo numero dos Miniſtros, Officiaes , e cria
dos , que fervia ) a Salamaó , com canta ordem , gran
deza , e mageftade , era taó extraordinario , que
admirou , e paſmou a Rainha Sabà. Todas eſtas ,
e outras muitas riquezas , que Salamaõ pofſuhia ,
-deveis agora
agora notar
notar , que nað eraó rendas do ſeu
Reyno , como ſe vio por experiencia nos ſeus an
-teceſſores , e ſucceffores , nem as conquiſtou pelas
armas , como adquirio muicas ſeu pay David , nem
as tirava de feus vaffallos com tributos exorbitan
tes , nem as roubava aos eſtrangeiros com violen
tas oppreſſões ; porque nem elles tinha ) tanto Ou
ro , para fazerem a Salamaõ tað rico ; e conſta cer
tamente , que eſte Monarcha nað ulou deſtes me
yos para fer opulentiſſimo, como eſcreve o Padre
Drexellio : Subjectos fibi populos Rex Salomon exac
tionibus non exauſit , non opprefit , non vi blanda ſpo
liavit. Omnes fub illo Habrei fuerant opulenti, quif- Drexell. tom .
que fub fua ficu , dw.vite , ſuaque forte vivebat con- 4. cap . 6. de
tentiſſimus , ſed nec exteris gentibus , & alienigenis Salomon,s. .
erat gravis. Tað longe eftava Salamaó deempobre- vert. Ita, fol .
872.
cer os ſeus vaſſallos , para com a ſua pobreza ſe fa
Zer rico , como fazem muitos , impondolhes intole
raveis
46 Ennæa, ou Applicaçãõ do Entendimento ,

raveis tribučos , que mandava abrir os ſeus theſou


ros , e repartir o que eſtava nelles , por todos os
ſeus vaſallos, para que codos negociaſſem com a
fazenda Real , e nao foſſem pobres, conforme diz
Drexell. tom . o meſmo Author : Aperuit Salomon æraria , eaque
4.cap.7.de Sa- in fuos cives potiſſimum deplevit , deditque cauſam
loinon . $. I.
fol. 87+. regias opes lucrifaciendi. E como nem dos vallallos,
nem dos eſtranhos , nem dos rendimencos do ſeu
proprio Reyno , tirava Salamað tað inmenſas ci
quezas , como ſe vio nos ſeus anteceſſores , e fuc,
ceſſores, que exceptuando David , codos os mais
foraó pobres , nað aos rendimentos do Reyno ,
mas à grande ſabedoria de Salama) devemos acari
buir tao extraordinaria riqueza ; porque a opulen
cia de Salamao , nao lendo renda do leu Reyno ,
tributo do ſeu Povo , nem defpojo do ſeu inimi
go , ſó podia , nað ſendo milagre , fer prodigio
naturalmente obrado pela ſua incomparavel fabe
doria.
: No. Capitulo terceiro do terceiro Livro dos
Reys , tereis lido muitas vezes , que Salamaó pe
dio a Deos, naõ riquezas , mas docilidade para go
vernar o ſeu Povo : Dabis ergo fervo tuo cor docile , ut
populum tuum judicare poffit; e offerecendo Deos a
Salamaõ quanto elle lhe pediſſe, e quizeſſe : Poſtula
quod vis , ut dem tibi ; nao pedio muitos dias de
vida , nem riquezas : Non petiſti tibi dies multos,
nec divitias ; porém aſſim as riquezas , como a fa
bedoria , concedeo liberalmente Deos a Salamao :
Paralip . 2. 1. Sapientia , & fcientia data funt tibi : divitias autem ,
& fubftantiam , & gloriam dabo tibi . Mas he dig
no de reparo , que tendo Deos taó liberal , e of
ferecendo a Salamaộ tudo quanto elle quizeſſe , e
pedil
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unic.S.6. 47

pediſſe , dandolhe de preſente tanta ſabedoria, e


fciencia : Sapientia , da fcientia data ſunt tibi, as ri
quezas nað lhas deo logo , prometteo fim , que
Thas daria no tempo futuro ; Divitias autem tiba
dabo. Fallando porèm Salamaõ deſtas riquezas , e
ſciencias , que recebeo da maó de Deos , confeſſa ,
que do Ceo lhe viera tudo igualmente com a fa
bedoria :: Veřerunt autem mihi: omnia bona pariter Sap. 7.11.
cum - ılla . Bem vejo , que eſtað oppoftos entre fi
eſtes dous Textos , e que nao pode haver mayor
difficuldade. Se Deos deo ſó a ſabedoria , e pro
metteo de dar a Salamaõ a riqueza , como diz Sa
lamaó , que tudo lhę viera igualmente com a fabe
doria ? Porque tendolhe Deos infundido a ſciencia
deſta Acvore , por mercè tambem de Deos colheo
logo Salamaó o fruto da riqueza ; porque como
diz o meſmo Salamaó , a ſabedoria he máy de to
dos eſtes bens : Quoniam horum omnium mater eft. Sap.7.12 .
Os bens de que neſte lugar falla: Salamaó , fað no
meadamente Ouro , comparado com area e Pra

ta , comparada com a terra : Invocavi, a venit in Sap.cap. 7:7 .


me fpiritus fapientiæ : prepoſui illam regnis, & fedi- 8.9 .
bus , do divitias nihil effe duši in comparatione illius.
Nec comparavi illt lapidem pretioſum : quoniam omne
agrum in comparatione illius , arena eſt exigua , e
tanquam lutum aftimabitur argentum in conſpectu il
lius. E com eſte eſpirito de ſçiencia adquirio Sa
lamað tanta Prata , como as pedras , que ſaõ for
madas do lodo da terra : Tanquam lutum æftimabi
tur argentum , e tanto Ouro com as areas : Omne
aurum in comparatione illius arena ; porque todas
eſtas riquezas , ou todos eſtes bens eraó frutos
daquella Arvore da ſciencia , com que nao teni
com•
48 Ennæa , 011 Applicaçao do Entendimento ,

comparaçaõ algumá nem a meſma PEDRA PRE

CIOSA : Nec comparavi illi lapidem pretiofum ; e fo


raó como filhos, ou parros da ſua grande ſabedo- >
rias porque a ſabedoria he a verdadeira máy de to
dos eſtes bens : Quoniam horum omnium mater eft ;
poriffo como máy precedeo aos filhos , e como ar
vore aos frutos ; porque na ordem natural da pro
ducçao dos frutos, e da geraçao dos filhos , a máy
vem primeiro , que os filhos , e a arvore , que os ?
frutos ; porèm como a arvore naõ produz em hum
inſtante os frutos , nem a máy gera em hum mo
mento os filhos , mas paulatinamente os vað ge
rando , e produzindo , aſſim , diz - Alapide , foy
dando Deos pouco a pouco o muito , que elle
Padr. Alapid. diz tinha dado a Salamao : Sed & hæc , quæ non
comm . in lib .
poftulaſti, dedi, id eft, dare decrevi, & illico fenfim
3.Reg.cap.3. dabo tibi, divitias fcilicet & gloriam . Tudo iſto dilo
verſ. 13. tol.
ſe com grande energia o meſmo Salamaó , expli
115
cando-ſemyfteriofa , e profundamente em buma pa
lavra : Venerunt autem mihi omnia bona pariter cum
illa ; porque o adverbio pariter tanto ſignifica jun
tamente , como igualmente ; e igualmente com a
ſabedoria deo a liberalidade de Deos a Salama
as riquezas, que juntamente com a ſciencia lhe ci
nha dado, e promettido; porque conforme a igual
dade daſciencia , adquirio Salamaó a riqueza.
Todos os bens, que poſſuem os homens, fab
mercès de Deos ; é todos alcançao eſtas mercès ,
como frutos da ſua propria ſabedoria , e confor
me a igualdade , ou perfeiçaõ da fua fciencia , co
mo diz o meſmo Salamaó , que fuccede ao Lavra
dor fabio , o qual conforme a ſabedoria com que
cultiva , colhe da ſeara , o que perde o ignorante,
por
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.S.6. 49

por não faber fazer a tempo a lavoura : Qui con- Proverb.10.


gregat in meſe, filius ſapiens eft : qui autem ſtertit 5.
aſtate , filius confufionis ; e aſſim como o Lavrador
colhe frutos da terra . conforme a induſtria com
que cultiva : o Piloto tira utilidades do mar , con
forme a ſciencia com que navega : 0 Soldado ad
.
quire riquezas na guerra , conforme o ardil com
que peleja : 0 Sabio deſcobre cheſouros nos livros,
conforme a diligencia com que eſtuda : 0 Medico
ganha com os remedios., conforme o acerto com
que receica : 0 mecanico grangea conforme a def
treza com que trabalha ; e até o pobre junta com
os rogos , conforme a laſtima com que pede. O Pa
dre Hieremias Drexellio inferio deſtas palavras ,que
Salamão tomou tambem para ſi o conſelho que deo
a outros ; porque ſe valeo da ſua grande labedoria ,
para juntar tão immenfas riquezas : Quod aliis Drexell. tom.
fuafit Salomon , hoc ipfe praftitit , opes immenfas acer- 4.cap.4.deSa
vavit , in quo maximum ei adjumentum fuit ſapientia ; lom : fol. 868 ,
e eſta Sabedoria prudentemente devemos crer , que
não foy outra ſenaõ a Philoſophia Hermetica ; por
que ſó a Chymica he a ſciencia , com que Salamañ
podia adquirir cantas riquezas. Incrivel couſa pa
rece, que foſſe Chymico El Rey Salamão ; mas eſta
meſma incredulidade he o mayor fundamento para
crermos , que por ſer induſtrioſo Alchimiſta , foy
riquiſſimo Monarcha .
Herdou ElRey Salamaó nos theſouros d'ElRey
David caudaloſas fontes de Ouro , e com poſſuir

tão immenſas riquezas , pondera o Padre Drexel


lio , que deſenterroumuitos theſouros , augmentan
do os deſcubertos , deſcobrindo outros de novo , ac

creſcentando os recebidos, ampliando os modera


G dos,
50 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

dos , e propagando com induſtria , e ſciencia incris


Drexell. tom . vel , es que lhe forão entregues : Itaque Rex Salo
4. cap. 5. de mm auri fontes à patre David relictos reperit ,
Salomon. $ .1 . plures effodit : inventis addidit , nova invenit , auxit
fol. 871 .
accepta , ampliavit modica , commiſſa ſibipropagarit in.
duftria , do Sapientia incredibili ; mas ſe todos cremos
de Fè , que Deos infundio em Salamão tão grande
ſabedoria : Dedi tibl cor fapiens , d intelligens ; co
mo pode ſer incrivel a ſabedoria induſtriofa d'El
Rey Salamão : Induſtria , d ſapientia Incredibili?
He por ventura incrivel , o que crè a noſſa Fè ?
Não. Pois como pode ſer incrivel a ſabedoria , que
a Fè nos enſina a crer ? Porque neſta ſabedoria , que
cremos , ha outra ſciencia incrivel. E que incrivel
fciencia he eſta , que ſe acha na ſabedoria de Sala
mão , em que cremos ? He a Philoſophia Hermetica
junta com a ſua extraordinaria Philoſophia. Ainda
que todos crem , que Salamão teve ſabedoria reve .
lada , ninguem crè que foube , nem praticou a fcien
cia Chymica ; porque nað he de Fé , que foſſe Her .
metico o meſmo Salamão , que de Fè cremos , que
foy Sabio ; e deſta forte a reſpeito fó da Chymica fi..
ca ſendo incrivel a ſua ſciencia , ſendo de Fè a ſua
ſabedoria. Porém a fabedoria com que Salamão in.
duſtrioſamente adquirio tantas riquezas pela Alki
mia , por nað fer de Fè , fica fendo como fciencia
incrivel : Sapientia incredibili. Os meſmos homens,
que crerem , que Salamão teve eſta incrivel fcien
cia , facilmente me concederàā , que foy Hermeti
80 ; e os que o nao crem , devem confeſſar neceſſa

riamente , que foy Chymico ; porque não tendo Sa


Jamão , como Rey de Iſraël , e filho de David que
fendo Monarcha do meſmo Reyno , era pobre : Pau

per
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog .I.cap.unic.§.6. 57

per fum ego , ) outros megos para juntar tão im- Pfalm . 87.v.
menſas riquezas , ſenão a ſua induſtria , ajudada.com 16 .
a ſua grande ſciencia : Opes immenſas acervavit , in
quo maximum ei adjumentum funt fapuntia ; e lendo
efta fciencia , ' não a que devemos crer de Fe , le
não a que por falta de Fè he fabedoria ; e induſtria
incrivel : Induſtria , & fapientia incredibili : 0 meſ
mo ſerà não crerem os homens , que teve Salamað
a ſabedoria Hermetica , que ficarem obrigados a dar
credito a quem affirmar , que foy Chymica ; porque
eſta crença he conſequencia da incredulidade. Por

iſſo tanto que Salamão perdeo a fciencia Hermeti


ca , ou humana, como elle meſmo confeſſa : Sultif
fimus fum virorum , & fapientia hominum non eſt me
Cum ; e dizem concordemente Santo Agoſtinho ,
S. Bernardo , S. Gregorio , e mais clara', e breve
mente que todos Santo Ambroſio : Salomon ſapien . Div.Ambroſ.
finepoſſedit : tambem Apol.2. pro
tiam nec in principio , nec in
David. c . 6.c
com a ſabedoria perdeo'os meyos de adquirir pela
Alkimia tantas riquezas ;porque poffuhindo então, 7.
como os ſeus anteceſores , e ſucceſſores , ſó eíle
pouco , que rendia o Reyno de Iſraël , e vexando
os Povos com intoleraveis, e exorbitantes tributos,
( unica fciencia dos Reys ignorantes ) não fó não
era rico , mas era pobre , como refere Drexellio :
Salomon ' tot annuorum millionum dives , nihilominus
depauperatus est , chegando pela ſua grande pobrede
za a tal miſeria , que aquelle riquiſlimo Monarcha,
a cuja porta podião vir pedir eſmola os Cyros , os
Sardanapalos, os Darios , e os Creſos, que forão
os Reys mais opulentosdo Mundo ;-andava pelas
portas encoſtado a hum pão , e pedinde eſmola,
conforme por liçao , e tradiçao dosHebreos , con
Gij clue
52 Ennæa , on Applicação do Entendimento ,

clue Drexellio : Opinantur Salomonem ad incitas re


dactum , d baculo nixum mendicaſſe. Ainda com
Poemas Dramaticos ſenaó repreſentou nos Thea
tros do Mundo cataſtrophe mais certa , nem mais
laſtimoſa , do que eſta tragedia , que permitió a
Providencia Divina repreſentaſe na Corte de Hie
rufalem , náo menos que Salamaó , ſubindo , e def
cendo ſempre na roda da Fortuna .
Era Salamao aquelle bello mancebo , que na
infancia foy educado com os mayores deſvellos, e
alliſtido com mayor cuidado , do que nenhum Prin
1
cepe do Mundo. Tinha o cabello moderadamente
crelpo , e de cor de ouro fino : os olhos eraó ef
plendidos , e formoſos , com que a todos via com
agradavel , e locegado aſpecto : em hum roſto can
dido , e rubicundo , tinha as faces foridas, como
afſucenas miſturadas com roſas , e os labios tenues,
e brandos , e tão rubicundos,como os Lyrios de
Syria, ; fahia da ſua bocca hum alento de fuaviſſimo
cheiro , final de que os dentes eraõ muito alvos , e
limpos : os braços eraõ bem formados , e ayrofos,
e com humas mãos delicadas , mácias , e, tambem
feitas , como ſe foſſem torneadas; porque os dedos

erão compridos, e delgados : o peito era tað ,alvo


como marfim , e a cintura delicada com gentil pro ,
porção : as pernas erão como columnas de candi.
dillimo marmore , e com pès que pareciaõ bazes de
uro , com excellente medida proporcionados : era
a eſtatura de todo o corpo direita , grave , e mageſ
coſa ; a voz clara , e ſuaviſſima. Com eſta gentile
za era Salamão mais gentil homem , que nenhuma
Dama , e com ſer cáo bello , era muy ſabio , e ſum
mamente diſcreto , ſem embargo de fer rico . Ef
te he
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.6. 53

te he o retrato , que do original dos Cantares

copiarão Pineda , Saliano , e Alapide ; mas toda Alapide cóm .


aquella riqueza gaſtou a vaidade , toda aquella dif. in lib . 3. Reg.
crição emmudeceo a laſcivia , toda aquella ſciencia cap . 11. verf.
enfatuou a idolatria , toda aquella gentileza afeou 43.fol.166.
!
o tempo , e toda aquella bizarria eclipſou a morte ;
porque delappareceo a ſua ſabedoria , deſappareceo
a ſua fancidade, deſappareceo a ſua potencia , deſap
pareceo a ſua felicidade , deſappareceo a ſua glo
ria , deſappareceo a ſua ſaude, deſappareceo a fua
vida , e tambem deſappareceo de forte a alma de
Salamão , que não ſabemos certamente aonde ap
pareceo : Evanuit enim , diz Alapide , ejus ſapien
tia , evanuit ejus fanétitas , evanuit ejus potentia , eva
nuit ejus felicitas , & gloria , evanuit denique fani
tas , vita præfens , utinam non æterna. Efte tao
incerto voo , com que de entre tantas pompas fa
bio do Mundo a alma de Salamañ , me faz lembrar,
e repetir agora para voſſo divertimento o Apotheo
fis, que era aquella pompa vă das ſuperſticiofas ce
rimonias,com que os Emperadores, e Varões illuſtres
erão collocados entre as falſas Deidades dosAntigos.
Morto o Emperador , toda a Cidade ſe veſ
tia de luto , e depois de acabados os Funeraes com
muita magnificencia , ſe deitava em hum leito de
marfim huma figura de cera , que ſe parecia com
o Emperador, a qual pelo eſpaço de fete dias era
viſitada pelos principaes Cavalheros , e Damas Ro
manas , aſſiſtida juntamente de muitos Medicos,
que de dia em dia hiáo encarecendo a enfermidade
do Emperador , que por eſtar jà fóra das ſuas mãos ,
e livre de tomar os ſeus remedios, não tinha o pe
rigo , que lhe prognoſticavão ; porém como ſe ti
nha
54. Ennæå , ou Applicaçao doEntendimento ,

nha auſentado para o outro Mundo , dentro de fe


te dias o hiao diſpondo , para no fim do ſereno o
matarem em eſtatua. No oitavo dia finalmente vi

nhaó ao Paço todos os Senadores, e Cavalheros


Romanos , e levavao o leito com a dita figura
dentro atè a collocarem na praça , aonde havia
( hum magnifico eſtrado com outro leito , em que
deicavaõ a figura de cera . A eſte eſpectaculo aſlif
-tia o novo Emperador com os Pontifices, Magil
trados , e Damas Romanas , e depois de humapom
pofa Prociſſað até o campo de Marte fóra da Ci
dade de Roma , ſubia o Emperador na Tribuna ( a
que chamaváo das Arengas ) e nella fazia o Elogio
do defunto , e logo entregavað os Senadores eſte
ſegundo leito nas mãos dos Pontifices, que o col
docuvão no ſegundo andar de huma machina pyra
midal, em que depois de varias carreiras dos Ca
valheros Romanos , da Infantaria , e de muitos co
ches , guiados por cocheiros veſtidos de purpura ,
o Emperador com hum branda ) pegava o fogo
na Pyramide, e depois de acceza , le foltava de
mais alto della huma Aguia , a qual eſpantada das
labaredas da machina ardente ſe remontava às nu

vens , e ſegundo a opiniao do vulgo , arrebatava


ao Ceo a alma do Emperador defunto. Aſſim cre
raó os Romanos , que ſubirao ao Ceo as almas de
Romulo , Julio Ceſar , e do Emperador Claudio,
do que ſe ri Seneca com muita ſendo Gen
graça ,
tio ; porque he muito para rir qualquer Philofo .
pho , mas para chorar todo o Chriſtão , ver que de
entre tantas pompas , com que os grandes vivem ,
e morrem , fahem as fuas almas voando no fim da

vida , e quando o Povo imagina , que ſobem ao


.Ceo ,
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unic.9.6 . 55

Ceo , como Aguias remontadas, ſabe Deos para


onde voão.
Neſta duvida eſtà tambem a falvaçao daquelle
Monarcha de Iſraël, não ſó idolatra , mas idolatra
do Adonis da Corte da Paleſtina , e deſpenhado

Phaetonte do mais elevado Solio da Fortuna . Foy


no principio da ſua vida admirado pela Sabedoria,
logo invejado pela opulencia , depois aborrecido pe
·la ambição , e finalmente ultrajado pela pobreza. Na
morte , e fóra jà da juriſdição da Fortuna , anda Sa
lamao , como os que no Theatro do Mundo ainda
ſobem , deſcem , e poucos vezes paraó , impelidos
com o movimento ſempre inquieto da ſua roda in
conſtante. Eſte he o indeciſo problema das contro
verſias dos Santos Padres , e das diſpucas dos Dou
tores Catholicos. Huns o ſalváo , outros o conden

nao , e outros o duvida ). Os Proſperos , Cypria


nos , Gregorios, Agoſtinhos , Chryfoftomos , Ter
tulianos , Iſidoros , Bedas , Lyras , Abulenſes , Vey
gas , Pereiras , e Bellarminos o precipitão , e me
tem no profundo do abyſmo. Os Hieronymos , Am
broſios , Cyrillos, Thaumaturgos, Rupertos, Pi
nedas , Salianos , Sanches , Barradas, Baccharios , Pi
nedas, Del-Rios, e Drexellios , o levantað , e col
locão no Empyreo ; e os Hugos , Panormitanos , Fe
yardencios , Pamelics, Lorinos , Vieiras , e Alapi
des nem reſolvem ', que ſubio ao Ceo , nem affirmão ,
que deſceo ao Inferno . Huma das razões , porque
Deos quiz foſſe tao duvidoſa , e incerta a ſalvaçao
de Salaina) , foy como diſcorre o Padre Alapide , pa
raque hum ſanto temor penetraſſe a todos os homens,
e os enſinaſſe. a fugir das delicias , e pompas, do
Mundo, quali perigoſos attractivos, que com cari
cias
56. Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

Padr.Alapide cias perſuadem o peccado: Haminibus incertam , &


comm.in Ec- dubiam Salomonis falutem voluit eſſe Deus , ut omni
clef.
cap. 47; bus metum incuteret , doceretque frigere mundi delicias,
verf
. 32. fol. o pompas , quaſi periculoſas', & ad peccatum illices.
976. & 977
E por efta meſma razao me parece , que deixa a El
critura caó incerco , e duvidolo o modo , com que
Salamão adquirio com a ſua grande fciencia tanta
riqueza ; porque naõ quiz Deos, que deſcuberto o .
ſegredo , arruinalle aos homens , como a Salamað ;
a opulencia; mas aflim como he problema a ſalva
çao de Salamao , pode cambem ſer queſtað o modo
porque foy rico. E da meſma forte , que ha Expo
licores que dizem , que Salamão ſe ſalvou , outros
que ſe perdeo , e outros que o duvidaó : pode ha
ver outros , que affirmem , que as riquezas de Sala
mío eraõ rendas do ſeu Reyno , outros queaſſentem
eraó beneficios de Deos , e outros que digaó que
erao utilidades da ſua Chymica.

S. VII .

Refponde - ſe a huma objecçao.

ENODIO .
S diſcurto , com que pretendeis pro
var , que Salamao adquirio tanta riquezas pela fua
grande ſabedoria , vòs nao podeis negar , que a
mayor parte deffe Ouro , e Prata , que elle poſſu
hio , vinha de Tharſis , e de Ophir , aonde eſte
Monarcha o mandava buſcar , e conduzir a Hie
ruſalem nas fuas Armadas , como expreſſamente
conſta do Sagrado Texto . Primeiramente em A fion
gaber, perto de Ailath , nas prayas do mar Roxo ,
que
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.9.7. 57

que fica na Provincia chamada antigamente Idu


mea , mandou Salamaó fazer huma poderoſa Arma
da, a qual com Pilotos Tyrios , e Phenicios , val
fallos de Hiram Rey de Tyro , e com os criados , e
Soldados de Salamão,partio para Ophir, donde trou
xe para Salamaõ quatrocentos e vinte talentos deOu
ro : Miſitque Hiram in claſſe illa fervos ſuosviros nau
Reg : 3. cap.9.
ticos , & gnaros maris , cum fervis Salomonis : qui cum verl. 27.28.
veniſſent in Ophir , fumptum inde aurum quadrigento
Fum viginti talentorum , detrilerunt ad Regem Salomo
nem . Nos annos ſeguintes continuàraó eſtasexpe
dições de Idumea para Ophir , com tað feliz fuccef
fo , que cada anno traziao as Frotas para Salamaó
feiscentos e ſeſſenta e leis talentos de Ouro, que im- Vieira Tom .
portavaó , ſegundo a conta do Padre Vieira , oito 4. num . 449 .
milhões menos oito mil cruzados da noſſa moeda : fol. 419 .
Erat autem pondus auri , quod afferebatur Salomoni. Reg. 3. cap .
per annos ſingulos , fexcentorum fexaginta fex talento- 10. veri:14 .
rum auri. È ſem fazermos agora mençaó do Ouro,
que os Reys da Arabia , e os Principes da terra ,
mandavao por regalo a ElRey Salamao , nem tam
bem do que importava a negociaçao de ſeus Mi
niftros, e rendiaõ os tributos, e direitos Reaes , por
que tambem a Eſcritura o não declara : Excepto eo, Reg . 3. cap.
quod afferebant viri , qui ſuper vectigalia erant, & ne- 10. verſ. 15
gotiatores, univerſique fcruta vendentes , & omnes Re
ges Arabie , Ducesque ierra : cinha de renda cada .
anno EIRey Salamão tó na Frota oito milhões da
moeda Franceza , que fað vinte e quatro milhões de
Florins , conforme a conta do Padre Alapide : Que Alapid . cóm .
faciunt oéto milliones aureorum coronatorum Francico- in lib.3.Reg.
rum ;exceptisocto eorundem millionibus: jam octo mil- cap. 10.verſ.
liones coronatorum Francicorum faciunt 24. milliones 14. fol . 157 .
H flog
to
a cação do Entendimen
58 Ennæ , 011 Appli ,

florenorum Belgicorum . E com hum teſtemunho tão


verdadeiro , como he o da Eſcritura , e com tað effe
etivos meyos de adquirir riquezas, quaes faõ os direi
tos Reaes , tributos , regalos, e Frotas taõ importan
tes , eſcuſais de recorrer à Sabedoria de Salamão ,
para dahi inferirdes com pouco , ou nenhum fun
damento , que eſte grande Monarcha fazia muito
Ouro , e Prata pela Chymica , a qual'vos concedo
que não ignorava Salamão , ſendo tao ſabio , e flow
recendo depois de Hermes Triſmegiſtro ſeu inven
tor , que he o primeiro , a quem diz o Padre Ala
pide, que excedeo na Sabedoria : Ut nullus ante te

fi-nilis tui fuerit : Salomon ergo fapientia fuperavit non


Alapide cóm . tantum Triſmegiſtum , Orpheum , Homerum , Plato
in lib. 3. Reg. nem , Solonem , Lycurgum , Ariſtotelem , omnesque Gre
cap . 3. verf .
12.fol.115. corum , Ægyptiorum , Chananæorum & c. Sapientes ,
utpote quorum ſapientia fuerit ſtudio acquiſita , cum
Salomoni
fueritàDeo immediatè infuſa;
fed etiam Abra
ham , Moyſen , Davidem , Adamum faltem poft lapfum ;
porque com eſte exceſſo de fciencia revelada nao

podia deixar de ſaber a Philofophia Hermetica , que


por eſtudo , e grande eſpeculaçao o grande Trilme
giſto tinha adquirido. He a Philoſophia Hermeti
ca ſciencia , e Arce natural; e como Deos revelou ,
e infundio em Salamão o conhecimento de todas as
Artes naturaes , e de todas as ſciencias , como dif.
Padr . Alapide corre o meſmo Alapide : Omnesque ſcientias , & ar.
comm . in lib . tes naturales , tambem The infundio a Philofophia
3.Reg. cap : 3. de Hermes ; porque não ha mayor razao para di
verſ, 12. fol. zer Alapide, que Deos infundio em Salamað no
115 .. meadamente a Éthica , Politica, Phyſica, Medicina,
Logica , Rhetorica , Poeſia , Mathematica , e Ara
chitectonica , que não a tenha tambem eu à ſombra
da
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.9.7. 19

da ſua authoridade , para affirmar, que entre as de


mais ſciencias Ihe revelou a Philoſophia Hermetica ,
e entre as outras Artes a Arte Magna ; porém não
he poſlivel , que practicaſſe eſta Arte hum Monar
cha como Salamáo.
ENODATO . Não vos pareça , quepor acre

ditar a Chymica levantarey algum falſo teſtemunho


contra a verdade infallivel da Sagrada Eſcritura.
Conforme o ſentido literal do Texto Sagrado, pof
juhio Salamaõ toda eſſa extraordinaria riqueza; mas
não he contra o ſentido , e verdade da meſma Ef
critura , ponderar agora para provar o meu aſſump
to , que nem os anteceſores , nem os ſucceſſores de
Salamzo forað tað ricos como elle ; porque nað fal
Jando nos anteceſſores, que forao Saul , e David ;
porque David confefra
que era pobre: Pauper fum
ego , e Saul todos ſabemos que náo foy rico : he
certo , que ainda os mais opulentos fucceffores de
Salamão eráo cáo pobres , que nao tinbão nos ſeus
theſouros duzentos mil cruzados , que ſe achaó
juntos na caſa de qualquer homem de negocio. In
vadindo Sennacherib, Rey dos Aſſyrios, oReyno de
Judà , e conquiſtandolhe todas as Cidades, temen
do o Santo Rey Ezechias, que Sennacherib cercaſ
ſe , e conquiſtaſſe tambem a Corte de Hieruſalem ,
( como ſuccederia depois , fe Deos nað ſoccorreſſe
aquella Cidade , e ao leu Rey , mandando de noi
te hum Anjo em ſua defeza , o qual matou cento e
oitenta e cinco mil Affyrios , deixando com vida a
Sennacherib para ſua mayor confuſao ) e com os
ſeus Vaſſallos o levaſſe cativo , como pouco tem
po antes tinha ſuccedido aos Iſraëlitas, que todos
foraó tranſmigrados aos Affyrios , depois da con
Hij quiſta
60 Ennæa , 01 Applicação do Entendimento,

quiſta de Samaria , mandou a Lachiz os ſeus Em


baixadores , para que Sennacherib ſe retiraſſe com
algum tributo , que lhe impuzeſe ; e para Ezechias .
pagar trezentos talentos de Prara , e crinta talentos
de Ouro , ( que ſegundo o mayor valor dos Talen
tos , que faó ſeiſcentos cruzados da noſſa moeda,
erão cento , e noventa e oito mil cruzados , ) foy
neceffario exhaurir Ezechias os feus thelouros , e

defpojar o Templo de Hieruſalem , para pagar o


tributo impoſto por Sennacherib : Deditque Eze
Reg.4.18. chias omne argentum , quod repertum fuerat in domo
15. 16 . Domini , & in thefauris Regis. In tempore illo confre
git Ezechias valvas Templı Domini, & laminas auri,
quas ipfe affixerat , & dedit eas Regi Affyriorum .
Naó era Ezechias dos mais pobres , ſenaó dos mais
opulentos Reys de Judà , como ſe prova da vaida
de , e jactancia , com que alguns annos depois def
te ſucceſſo , moſtrou a Baladan , Embaixador de Be
rodach , Rey de Babylonia , os ſeus precioſos, e ri
cos thefouros : Nihil eft , quod non monſtraverım eis
Reg . 4. 20 .
in theſauris mers. Tanto Ouro , e tanta Praca havia
15.
neftes thefouros , que diz o Texto Sagrado , que
Ezechias era muito muito rico : Furt autem Eze
Paralip.2.32.-chias dives, & inclytus valdè. E com tudo era tað
27 limitado o ſeu cabedal , que para pagar cento e
noventa e oito mil cruzados a Sennacherib , foy
-neceffario darlhe toda a Prata , que havia no Tem
plo , e nos thelouros Reaes , a qual por nao chegar
å quantia de quaſi duzentos mil cruzados, a com
pletou Ezechias com algum Ouro do pouco , que
jà neffe tempo havia no Templo de Salamaó : Om
ne argentum , quod repertum fuerat in domo Domini, do
in theſaurus Regis : & laminas auri, quas ipfe affixe
rat ,
$
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.7. 61

rat , & dedit eas Regi Aſyriorum . E como Ezechias


tao prezado de rico, nað tinha nos ſeus cheſouros
duzentos mil cruzados, que tem em ſua caſa qual
quer homem de negocio ; e valiað fó cinco lanças
de Ouro , das duzentas , que Salamaó por magni
ficencia , e oſtentaçao da ſua riqueza mandou la
„ Vrar ; ou os trezentos eſcudos de Ouro de figura de
meya Lua , que com as lanças ſerviaõ de ornato
da ſua caſa de armas : Fecit igitur Rex Salomon dum
centas haſtas aureas de ſumma ſexcentorum aureorum ,
qui in fingulis haſtıs expendebantur : trecenta quoque
ſcuta aurea trecentorum aureorum , quibus tegeban
tur fingula ſcuta : poſuit que ea Rex in armamentario ,
quod erat conſitum nemore ; porque os escudos pe
zavao todos , como diz Alapide, fetecentas e cin
coenta libras de Ouro ; e cada huma das lanças vin
te e finco libras , que importaõ em muito dinheiro :
bem provado eſtà , que ainda os Reys mais opu
lentos de Hieruſalem , naó eraõ tao ricos como Sa
lamaõ ; porque mais valiaó as vaidades de Salamaó ,
que as jactancias de Ezechias.
Porèm do Sagrado Texto ſe colhe, que toda>
eſta grande riqueza de Salamaó , foy effeito da ſua
fabedoria , e nao fruto do ſeu Reyno ; porque em
quanto Salamao nað ſe valeo da fua ( ciencia , para
ſer rico , era mais pobre do que Ezechias. Ezechias
ainda que pobre , remio , ou comprou a Cidade de
Hierufalem a Sennacherib ſeu inimigo por duzen
tos mil cruzados ; porque dandolhe eſte dinheiro ,
evicou ,, que
que elle lha tomaſfe : e Salamað
por nao
ter dinheiro , entregou a Hiram ſeu amigo vinte Ci
+dades , para lhe pagar o proprio , e juros do que
lhe devia .Tunc dedit Salomon Hiram viginti Oppida Reg.3.cap.g.
in verf.is.
62 Ennæa, on Applicaçaõ do Entendimento ,

in terra Galilæe. Tað grande era o empenho de Sala


maö , que deſempenhandole com vinte Cidades ,

nað le deo Hiram por ſatisfeito ; porque fahindo de


Tyro para tomar poſſe dellas , nað lhe agradaraó ,
e publicamente ſe queixou do ſeu amigo : Non pla
cuerunt ei , & ait : Hæccine ſunt civitates , quas de
diſti mihi, frater ? Nao alienou Salamañ para ſem
Coroa de Ifraël, porque
pre eſtas vinte Cidades da
faria huma grande injuria aos ſeus vallallos, porſer
humà acçao indigna da ſua honra , e contra a Ley
de Deos , como reſolve Alapide ; porèm eſte gran
de Expoſitor com Abulenſe , Serario , Saliano , e
outros, diz que lhas conſignou para pagamento do
que lhe cinha empreſtado a razao de juro , atè fe
pagar do principal, e redditos , ou para lograr ſó em
ſua vida o uſo fruto : Quare non tradidit Hiramoab
folutum plenum que earum dominium , fed tantum ufum
fructum , ut ſcilicet Hiram ex eis redditus & jura ,que
Salomon percipere folebat ,reciperet , donec expenfas fuas
pro Salomone factas compenſaret ; vel certe uſque ad vin
tam. E jà huma divida provada com huma eſcritura
taó authentica , como a Eſcritura Sagrada , he ar
gumento infalivel da grande pobreza de Salamaó. Sa
Jamaó , e Ezechias ambos eraó pobres , e qualquer
delles podia dizer com David , que tambem confef
ſa , que era pobre: Infirmata eft in paupertate virtus
mea ; mas Salamað era mais pobre , porque eſtava em
penhado. De maneira , que Salamaốempenhou vince
Cidades por toda a vida de Hiram ſeu amigo , e Eze
chias nem huma ſó Cidade quiz entregar a ſeu inimi
go por huma hora; porque ainda que pobre, tinha di- i
nheiro para ſe remir; e Salamaộ por ſer pobriſlimo,
nao pode deixar de ſe empenhar. Mas como Hombre
pobre
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.7. 63
pobre todo es traças , ainda que Deos o ajudava , e pa

rece que a Providencia Divina fazia com que lhe


chove Teo Ouro em caſa; com tudo por liçaõ de Pi
neda, e Vilhalpando diz Alapide , que com a ſua gran
de Sabedoria excogitava Salamað mil modos de ajun
tar Ouro , e Prata : Ex his omnibus patet , quanta & Alapide cóm .
quam immenſæ fuerint opes Salomonis ; Deus enim in in lib.3. Reg.
finum ejus aurum , & argentum undequaque congere- cap . 1o. vert.
re videbatur : & ipfe fua fapientia mille modos illud co- 15.9. Ex fol.
gerendi excogitabat ; e como Salamaõ excogitava mil 158 .
modos de ajuntar Prata , e Ouro com a lua Sciencia ,
porque nao feria hum modo deſtes , o melhor modo
de todos, que era valerſe Salamað da Arte Magnd,
eda Sciencia , ou Philoſophia Hermetica , que vòs me
concedeis , que fabia , ainda que duvidais , que a pra
ticava Salamað ? Sem embargo de que o P. Alapide
nosdiga ,que chovia a Salamaõo Ouro em cala , nað
era Deos ſó o Author deſta chuva , era tambem Sam
lamað ajudado da Sciencia , que Deos lhe tinha in
fundido'; porque chuva de Ouro , fem que os ho
mens ponhaõ da fua parte a diligencia para o adqui
rir , ou a ſciencia para o fazer , he fabula do Deos
Jupiter , é naó Providencia do Deos verdadeiro ;
poriſſo chovia Ouro em caſa de Salamaố , porque 2
tinha fciencia para o alcançar , e juizo para o con
ſeguir ; e ſe os homens tiveraõ juizo , e ſciencia, cam
bem lhes havia de chover Ouro do Ceo'; porque pa

ra quando algum dia chegar o juizo aos homens , eſtà


no Ceo muito Ouro , donde cahirà como chuva .
* Entre a grande variedade de chuvas , que tem
deſcido do Ceo , ſendo tað prodigioſas como a de
fogó ſobre as Cidades de Sodoma , e Gomorrha :

Igitur Dominus pluit fuper Sodomam , & Gomorrham Geneſ.19.24.


ſul
64 Ennea , on Applicação do Entendimento ,

fulphur, & ignem : a chuva de Mannà ſobre os arra


Pfalm.77.24. yais dos Hebreos : Et pluit illis Manna ad manducan
drım : a chuva de pedras , que affollou o Egypto :
Exod . 9.23 . Pluitque Dominus grandinem ſuper terram Egyp
ti : a chuva de laços ſobre os peccadores : Pluet
Pfalm.10.7. laqueos ſuper peccatores ; e a chuva de ſangue , e
de outras couſas raras , como chuva de Boys, con
forme por liçaõ de Alberto Magno eſcreve o Pa.

Alapide cóm . dre Alapide : Sic art Albertus Magnus aliquando bo


in Exod . cap. ves pluille : nenhuma ſerà mais admiravel , nem mais
7. S.Dico fe- admirada dos homens , do que a chuva de Ouro ,
cundo fol. que deſcerà do Ceo , donde atè agora nað cahio
391 , tao preciofa chuva . E quando verao os homens
chuva tað aurea ? No dia em que os homens ſe vi
rem com o juizo ; porque o juizo farà cahir do Ceo
as Eſtrellas : Stella de Calo cadent ; e em cada Ef.
P.Soar.Luſ. trella delceràdo Ceo huma gota de Ouro : In die
tom.2 . Tract .
deCæloDilp: judicii aftra igne deftruentur , & diffolvenda ſunt,
L. fect . 2.95 diz o Padre Soares; e accreſcenta , quod potiffimum
num .86.tol. credo de Stellis fixis , affiguntur enim corpore folido fir
285. & loc. mamenti , ut clavi aurei in rota . Naõ deixa de cho
cit. S: 7.num . ver Ouro do Ceo , porque là o nao haja ; deixa
36. fol. 277. de chover, porque o noſſo juizo nao chega : nað
deixa de cahir , porque nao poſſa defcer; deixa de
baixar , porque o noſſo juizo nao acaba de o trazer.
O Sol he hum oceano de Ouro liquido como agoa ;
Idem P.Soar. conforme diz o meſmo Soares : Fatendum eſt Solem
Lul.loc.cit.s.
effe corpus fluidum , conſtans maſſa fluida per modum
7.num.35.
auri liquati motu ferventis , ac undantis. O Padre
sAthanaſio Kircker , e Raphael Averla obſervaraó ,
que o Sol era como metai derretido , e fervente ; e
o Padre Scheinero depois de chamar ao Sol hum 1

mar Oceano de fogo lempre inquieto , e agitado :


Solen
og.I.cap.unit.S.7
Sobrea Pedra Philofophal.Dial . 65

Solem tanquam mare fluctibusafperum , ad inſtar Occa


ni cujuſdam ignei perpetuo motu , e agitatione ver
ſatum ; deciara com authoridade de Simao Mario ,
que o metal liquido , de que coníta o Oceano do
Sol , naó he outro fenaõ Quro : Corpus. Solis fer
vere non aliter , ac aurum in fornace liquefactum ; e
ſe o corpo do Sol he juntamente mar de fogo , e
Oceano de Ouro : Solem tanguam mare , ad inftar
Oceani cujufdam ignes , non aliter, ac aurum ; e as
Quro
fe haõ de diſſolver com o fogo , para cabirem co
mo chuva do Ceo : Stelle de Çælo cadent ; in die Ju
diçu aftrá igne deſtruentur, & diſolvenda ſunt, ut dla
vi aurei, havendo no Ceo jà o fogo, e o Ouro
no Sol , e nas Eſtrellas , donde pode , e há de vir
chuya çaõ admiravel, e copiola , como os chuvei
ros de agoa do Oceano , toda eſta dilaçao da chu
va de Ouro naſce da falta do juizo , como ſe vio
em Salamaó , que com o ſeu juizo le fez rico , e
ſem entendimento foy pobre .
Em quanto Salamao colhia os frutos da terra ,
cobrava os tributos dos Povos , e recebia os pre
ſentes dos amigos , era þum Rey taó pobre , como
os outros ; porèm tanto que excogitou com a ſua
extraordinaria ſciencia , e grande juizo aquelles mil
modos de fazer , e ajuntar Ouro ; Ipfe ſua ſapientia
mille modos illud congerendi excogitabat , logo do
Ceo
parece , que lhe chovia copioſo Quro, e Pra.
ta : Deus enim in finum ejus aurum , & argentum
undequaque congerere videbatur ; porque tantos mi
Thões , que lhe entravao todos os anngs em caſa ,
no pezo cerco , e invariavel de feiſcentos e ſeſſen
1a e ſeiş talentos de Quro , labele que lhe vinhao
I de
66. " " Emmæa , ou Applicação do Entendimiento

de alguma parte : Afferebatur Salomoni ; mas não


eſtà averiguado o lugar donde eſte Ouro vinha.
Exceptua a Eſcritura deſte pezo todo o Ouro , que
rendió a Salamað os cributos, direitos, negocios,

e preſentes :Excepto eo quod afferebant viri, quiſui


per vectigalia erant , ea negotiatores univerſi ſcruti
vendentes , omnes Reges Arabic , duceſque terræ.
E feita eſta excepçaó , aindaque o Padre Alapide
preſume , que vinha de Tharſis , ou de Ophir ,
nao aſſenta donde era trazido , dando por certo ,

que nao era renda dos tributos : Erat autem pondus


auri, quod afferebatur Salomoni, ex Ophir , Tharſis ,
- aliunde quam ex tributis , hæc enim mox excipiun
tur, per annos ſingulos fexcentorum fexaginta fex ta
lentorum auri ; mas porque fenaó pode averiguar
donde vinha eſte Ouro , eſtà averiguado que vinha
como do Ceo , trazido aos thefouros de Salamão
pelo ſeu juizo .
Nem obſta a preſumpçað , que teve Alapide de
vir eſte Ouro de Ophir , é de Tharſis; porque ef
te Ouro vinha todos os annos a Salamão : Affere
batur Salommi fer annos fingulos ; e o que vinha de
Tharſis , chegava huma ſó vez de trez em trez annos:
Reg.4.10.22 . Semel per tres annos ibat in Tharſis differens inde aut
de trez
rúm , & argentum ; e tanta differença vay
annos a hum , como vay do Ouro de Tharſis ao
Ouro que Salamão fazia com o ſeu juizo. Nem a

Eſcritura declara que eſte Ouro vieſſe deOphir,


como refere, que de Ophir craziaõ a Salamão qua
tro centos e vinte talentos de Ouro , como ſe lè no
Capitulo nono do terceiro Livro dos Reys : Qui
cum veniſſent in Ophirfumptum inde aurum ,quadri
gentorum viginti talentorum , detulerunt ad Regem Sa
lomon
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.9.7. 67 ,

lomonem ; declarando tambem , que em huma oc


caliað veyo a Frota de Ophir ſem Ouro , e carre

gada ſó de madeira, fem trazer outra couſa de ef


timaçao mais do que algumas pedras precioſas : Sed
e claſſis Hiram , que portabat aurum de Ophir , at
tulit de Ophir lignia thyma multa nimis , & gemmas
pretiofas ; eporque a Frora não trouxe Ouro algum ,
como.coſtumava, offereceo a RainhaSabà a EiRey
Salamão cento e vince talentos de Ouro , de que
faz a Eſcritura expreſa mençaõ : Dedit ergo Regi Reg.3.10 10 .
centum viginti talenta ayri ; mas porque fazendo a
Eſcritura tao miudas , e expreſſas declarações don
de vinha, e quando faltava a Salamaño Ouro , nað
diz donde vinhaó os ſeiſcentos e ſeſſenta e ſeis ta
Jentos , que todos os annos eraõ trazidos a Salamañ ,
moftra que tinha algum ' myſterio eſte ſegredo, ou

o ſegredo deſte Ouro myſterioſo.


Alguns Chymicos affirma ) , que as immenſas
riquezas de Salamað erað effeitos , ou productos
da Arte Magna , como eſcreye Sennerto : Quidam
Chymici afferunt, eum immenfas illas , quibus abun
dabat opes, Arte Chymica acquiſiville. Eu nao digo
tanto , porque vejo na Eſcritura , que fem o arcih .
cio da Chymica , tinha Salamað muito Ouro , e
Prara de renda ; porém os ſeiſcentos e ſeſlenta e
feis talentos de Ouro , que na Eſcritura nao vejo
donde vinhaó , poſſo entender , que os fazia Sala
maó com a Cbryfopeia , inventada pela ſua grande fa.
bedoria ; porque fallando elle deſta ſciencia, pare
ce , que le deſcreve como hum grande Adepto fa
vorecido de Deos : Antecedebat me ifta fapientia , do Sap.7. 12. 13,

ignorabam, quoniam horum omnium mater eft : quam 14.


fine fiétione didici, & fineinvidia communico , & ho
lij neſta
68 Ennäa , ou Applicação do Entendimento ,

neſtatem illius non abſcondo. Infinitus enim theſaurus


eſt hominibus , quo qui ufi funt , participes fačti funt
amicitiæ Dei, propter diſciplina dona commendati . Ef
ta ſabedoria , diz Salamañ , hia diante de mim , e
nao ſabia eu , que ella era máy de todos eſtesbens,
que vinhaõ a fer canta quantidade de Ouro , como
area miuda , e tanta abundancia de Prata , como a
mefina terra: Omne aurum in comparatione illius, arena
eſt exigua , & tanquam lutum eſtimabitur argentum .
Élta fciencia aprendi fem as ficções , e fingimentos ,
como os Hermeticos a eſcrevem , e enfinaõ : Quam
fine fictione didici ; e da mefma forte a communico
à codos ſem a inveja , que obriga aos Chymicos a
occulcalla : Et ſine invidia communico ; porque nao
eſcondo huma Iciencia tað honeſta : Et honeftatem
illius non abfcondo : he finalmente eſta fciencia hum
thelouro infinito para os homens : Infinitus enim
theſaurus eft hominibus ; e todos os que ufaõ deſte
thelouro : Quo qui ufi funt, merecem muitos louvo
res : Commendati, por ſe fazerem participantes da
amizade de Deos : Participes facti ſunt amicitia Dei,
por caufa de todos os bens , e dadivas da fuä vir

tuofa diſciplina : Propter diſciplina dona ; ę fendo


eſta arte tað honeſta , cáo louvavel , e tað louvada
por Salamaó , por ſerem os teus artifices amigos de
Deos , era digniſſima de que elle a exercicaiſe ; e
nenhum abfurdo tenho commettido em dizer , que
efte Monarcha entendeo , e practicou a Chymica ,
como diz Sennerto : An autem in fpecie Chymicam
calluerit , vel excoluerit , fine abſurditate
quidem af
firmari poteft. Ninguem davida, que Salamaõ edi
ficou , ou inſtituhio no Monte Sion , que eſtava
dentro em Hierufalem , huma Elcola , ou Acade
mia ,
Sobre a PedraPhilofophal. Dialog.I.cap.unic.9.7. 69

mia , ( como o noſſo Salama ) Portuguez em Lif


boa ) em que elle meſmo enſinava, conforme eſcre
ve o Padre Alapide : pfe ædificavit Scholam , fire Alap. comma ,
Academiam in Monte Sion in qua ipfe docebat ;e neſu in lib. 3. Reg.
ta Academia enſinon , diz Alapide , a Phyſica , e a cap. 4. verf.
ſciencia das couſas naturaes , particularmente aos 33. S. Hing
feus, e publicamente a todos : Hinc patet Salomo: fol.821.
nem tum privatim ſuos , tum publicè omnes docuiſſe
Phyficam , foientiam rerum naturalium ; e deſta
fonte beberaõ a doutrina os Pythagoras , os Socra
tes , os Platões , e os Ariſtoteles, como teſtemunhað
Euſebio Cefarienſe , Santo Ambrofio , Clemente
Alexandrino , e outros ; e accreſcenta o Abulenſe
referido pelo meſmo Alapide , que fora Providen
cia de Deos , que as poſtillas , que dictou , e os li
vros que eſcreveo , acabarfem queimados pelos
Chaldeos, ſegundo diz a Gloffa , ou por'mandado
de Ezechias , conforme eſcrevem Glycas , e Euſe.
bio ; porque continha couſas nimiamente curioſas,
ou que nos nað mereciamos faber : Dei Providentia
eos interýlfe , eo quod nimis curioſa continerent , vel
quod non tanta ſcientiarum luce , quam ipſe per reves
lationem acceperat , indigni effemus ; e pouca duvida
tem , que ſó podiaõ fer Chymicos os livros , qué
continhao couſas nimiamente curioſas : Nimis cue

rioſa : porque a Chymica he a quinta eſſencia da cu


rioſidade ; e bem pòde fer , que principiando Sala
maõ a exercitár por curioſidadea Chymica , conti
nuaffe eſte exercicio por negocio ; porque como el
le meſmo diz , por nao ter experimentado ainda'a
ſua utilidade , tendo aquella ſciencia ignoravá , que
ella era máy de todos aquelles bens , que jà tenho
dito , eraõ infinitaPrata, e Ouro : Antecedebat me ifto
fapienai
70 Ennæa, ou Applicação do Entendimento ,

Sapientia , & ignorabam quoniam horum omnium ma


ter eft. No Padre Hieremias Drexellio achareis va
rios epithetos honorificos de Salamaó , como Sala ,
maó Modeſto , Economo , Architecto, Induſtriofo,
Rico ·, Riquiſſimo , Liberal , Caritativo , Clea

mente , Magnifico , Magnificentiflimo, Juſto, Juſ.


ciflimo , Sabio , Sapientiflimo , Pio , Pillimo , e
Drexel. Tom . finalmente Omnilcio ; porém yolcando logo a Sce
4.fol.899. na , vereis no meſmo Author , como no meſmo chea
tro , a Salamað Negociador , Inconſtante , Prodigo ...
Avarento , Deshoneſto , Luxuriofo , Ingrato , Sor
berbo , Imprudente , Facuo , Idolatra , Magico,
Mclancolico , Pobre , Enfermo , laglorioſo , e
ulcimamente Morto. E ſe o Padre DrexeMio , ſendo
hum Religioſo daCompanhia de JESUS cao pio ,
e taó douto , naõduvidou chamar, a Salamað In .
duQrioſo , e Negociador , bem poſſo chamarlhe tam .
bem Chymico , e dizer , que negociava com a indul
tria da Arte Magna ; porque mais decente he para
Salamað o epitheto de Hermetico , que de Magi
Co , porque lendo illicita a Arte Magica , he mui
to licita a Arte Magna. E ſe iſto he verdade, fa
cilmente poſſo dizer , que pela Arte Magna fazia
Salamao os ſeiſcentos e ſeſſenta e ſeis calentos de
Ouro , que politica, e occultamente manda va tras
zer de fora à Corte de Hieruſalem : Afferebatur ,
para encubrir com aquelle pouco Ouro ao Mundo ;
o ſegredo , e artificio com que no ſeu Palacio em ma
yor quantidade o fabricava; porque eſtes caleiros,
que faziaó oiço milhões da moeda Franceza , ain
da com o de mais , que Salamað tiba de renda,
naš baltavaó para ſuſtentar a ſua familia , e cavá
Ibariça, quanto mais para murar , edificar Cidades ,
e fa
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog .I.cap.unic.9.7 : 71

e fazer Frotas ; e outros grandezas de Monarcha .


Prova - fe eſta conjectura do numero certo dos
melmos talentos, que todos os annos lhe traziao ;
efte Ouro fora effeito do commercio , pa
porque fe
reas de Feudatarios , ou de outras rendas, que ex
clue expreſſamente a Efcritura , kumas vezes feria
mais , outras vezes menos , e poucas vezes ſe lhe
pagaria no meſmo pezo ; porque nos effeitos das.
rendas , dos commercios , e das pareas nunca ha in
fallivel certeza . Hum anno fe rebella hum Feuda

tario : outro anno ſe perde hum Navio ; e outro


anno foge hum Rendeiro. Pelo contrario picable
os Rendeiros, e crefcem as Commendas : coma - ſe
aos inimigos algum Navio , e augmenta - ſe o com
mercio ; e ha melhores novidades , e fobem os ar
fendamentos das prebendas ; e tudo iſto altera os
rendimentos de hum Reyno ; mas nao fe obſerva ef
ta alteração nos talentos. E agora deveis notar , que
-repetindo o Paralipomenon a meſma Hiſtoria dos
Livros dos Reys , e às vezes com alguma varieda
de , nunca varea no pezo , e numero deſtes talentos.
Por não fahirmos do noſſo diſcurſo , fe ve ifto no
emprego dos cavallos , que ferviaõ a Salamão ; por
que dizendo o Livro dos Reys , que os cavallos dos
coches eraó quarenta mil : Quadrag inta millia pre
fepia equorum eurrillium , hoc eft, habebat , commen
ta Alapide , 40. millua equorum in præſepiis ; o Para
- lipomenon diz , que erão doze mil oś cavallos dos
coches : Et curruum , equitumque duodecim millia ;
e declarando o Livro dos Reys , que os doze mil
cavallos eraõ ſó decavallaria , e de manejo : Et duo
decim millia equeſtrium ; conſta do Paralipomenon ,
iffo
que os cavallos , que serviáo montados , que para
eftae
72 Ennea , on Applicação do Entendimento ,

eſtaváo penſados nas cavalhariças, erão os quaren


ta mil : Habuit Salomon quadraginta millia equorum
in ftabulis ; na relação que faz dos Talentos , que
vinhao nas Frotas , tambem não concorda cocala
mente com o Livro dos Reys ; porque neſte ſe lè,
que eráo quatrocentos e vinte : Quadrigentorum via
ginti talentorum ; eſcrevendo o Paralipomenon , que
eráo quatrocentos e cincoenta : Quadraginta quin
que talenta ; ſendo mayor a diſcrepancia em dizer,
que a Frota , que viera de Ophir , trouxera Ouro :
Attulerunt aurum de Opbir ; quando do Livro dos
Reys le pòde inferir , que viera ſem elle , como
parece exprime a palavra Portabat , que quer di
zer crazia , e não trouxe; e o que affirma trouxe a
Frota , forão ſó madeiras , e pedras finas : Attulit ex
Ophir ligna , gemmas pretioſas , porém fallando
nos referidos calencos , concorda lem diſcrepancia ,
em que erão , feiſcentos e ſeſſenta e ſeis , e que co
dos os annos vinhão , ou erão trážidos a Salamão ;
Erat autem pondus auri, quod afferebatur Salomoni
per ſing ulos annos fexcenta fexaginta fex talenta auri;
e eſta concordancia de Texcos , igualdade de pezos,
e identidade de expreſſoens : Afferebatur Salomoni
per fingulos annos , lao humas circunſtancias , que le
não podião achar, ſenao em Ouro feito pela Chy
mica, e mandado por Salamão para fora , para lhe
ſer trazido no meſmo pezo : Afferebatur ; porque
deſte modo evitava , que lhe roubaſſem alguma par
te deſte Quro , e occultava ao Mundo , que a lua
ſciencia era a mina inexhaurivel , donde cirava o die
nheiro para cão exorbicantes diſpendios.
Confirma eſte penſamento ter eu huma Biblia ,
( que moſtrarey ſe a quizerdes ver ) aonde eſtà el
crito
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.1.cap.unic.6.7. 73

eſcrito eſte Texto com eſta formalidade : Erat au- Paralip.lib.z.


tem pondus puri, quod afferebatur Salomoni per ſingulos cap.9.13.
annos, ſexcenta fexaginta ſex talenta auri; o que ſe naó
fora erro da Impreſſao , como tenho por certo ; pora

que nao achey eſte Texto eſcrito por eſte modo


em outras Biblias, ( poſto que nao vimuitas ) moſ
trava , que eſte Ouro por fer puro , não era como
aquelle que coſtuma vir das minas com muita terra,
e outras impuridades ; porém como o Impreſſor em
lugar de hum A poz hum P , quando havia de eſcre
ver auri, eſcreveo puri , e do Ouro ordinario fez
Ouro puro ; e eu ſó por purificareſte Ouro , e mof,
trar que pela Chymica alcançou tanta pureza , naõ
quero viciar a Eſcritura. Porèm fem me valer def .
te Texto adulterado moſtrarey , que eſte Ouro era
puriſſimo , e de mais quilates do que o Ouro de
Tharſis , e de Ophir ; porque referindo o Parali
po menon as obras , que Salamao mandou fazer def
te Ouro , e de outro , que lhe mandavao os Reys
da Arabia , Satrapas , Legados, e Negociadores , diz
que as lanças erao de Ouro : Haftas aureas : os ef
cudos de Ouro : Scuta aurea : o eſcabello do ſo
.lio de Ouro : Scabellum aureum : e a baixella da

mela de Ouro : Vafa convivi Regis erant aurea ; mas


declara, que o Ouro de Throno era limpiſlimo :
Auro mundiffimo : e o Ouro da baixella do Libano
puriſſimo : Auropuriſſimo. Com eſta meſma diſtin
çao de Ouro , refere a Hiſtoria Sagrada no Livro
dos Reys as obras de Salamão ; porque diz , que a
fua
copa era de Ouro : Omnia vaſa quibus potabat
Rex Salomon , erant aurea ; e a baixella do Libano
de Ouro puriflimo : Univerſa ſupellex domus ſaltus
Libani de auro puriſſimo: o Throno veſtido de Ouro
K de
74. Ennea , ou Applicaçao do Entendimento ;

de cor mais aurea : Auro fulvo nimis; e entre tanta


variedade de quilates , tambem faz mençao de Ou
ro provado : Et trecentas peltas ex auro probato ; e
eſta prova fó ſe coſtuma fazer em Ouro Chymico ;
porque lo cite neceffira de fe examinar no Enſayo ,
e na Copella , para ſe ver ſe ſofre o exame: 8 da
qui ſe ſegue , que no exame da Copella , e do Ena
ſayo , provou tað bem eſte Ouro , que fe fizerão del
le eſcudos, como de Ouro provádo : Peltas ex au
to probato ; e nenhum Ouro , que vinha a Salamaó
na Frota , de preſente , ou do negocio , chegava aos
quilates deſte Ouro ; porque a Eſcritura quando
o nomea ſimplezmente , lhe chamaOuro , como ve
mos no que vinhade Tharſis, e de Ophir : In Ophir
fumptum inde aurum , Aurum de Ophir ; Attulerunt
aurum de Ophir ; In Tharſis, deferens inde aurum ; e
no que deo a Salamão a Rainha Sabà : Talenta auri;
Talenta auri ; não vindo a ElRey Salamão outro
Ouro nos regalos., Frotas, e tributos , fenað Ouro
ordinario , a quechamamos Ouro da Ley ; e fazendo
obras de Ouro finiſſimo , limpiſlimo , e puriflimo ,
alguma deſculpa teve o Impreſſor ( fallo ſinceramen
te a verdade ) em eſcrever puri em lugar de auri;
fazendo por inadvertencia , o que de propofito fez
o Padre Alapide , trasladando Seruta vendentes , em
lugar de Scuta véndentes ; ' o que vos advirto não
para ſuſtentar como acerto o erro do Impreſſor , mas
para que fe acaſo fizeſtes reparo em vos reperir
eſtas palavras ſeguindo a ſua verſaó , não me cha
meis temerario .
Finalmente corrobora eſte diſcurſo , acabar
com a vida de Salamað o comercio de Tharſis , e de
Ophir, ou para dizermelhor, acabar com a ſcien
cia
Sobre a Pedra Philoſophål.Dialog : 1.cap.unic.$.7: 75.

cia de Salamað éſte utiliſſimo comercio ; porque


lo vendo - le ette Monarcha muito opulento , e com
e meyos tað effectivospara ſer tað rico , entregou -ſe
ao galanteyo das Damas , às delicias da Corte , aos
regalos da meſa , aos divertimentos do Libano ,
e aos encantos do Amor , e aſſim como Eva per
deo a Adam , diz Santo Agoſtinho referido por :
Alapide, perderaõ a Salamao aquellas milmulhe- Alapide com .
res entre Rainhas , e concubinas , baltando me. in lib. 3. Reg.
nor , e ſingular numero para cauzar aquelle eſtra- cap. 11. tolh .
162.
go ; porque a Sichem perdeo Dina , a Sanlaó per
deo Dalila , a David perdeo Berfabè , e a Holo-,
ferres perdeo Judith . Adorava Salamao os Idolos ;
porque os adoravao as fuas. Adorações. Adoravit
ea autem , diz Alapide , non quod in eis aliquid inefje
divinitatis cenferet , ſed ut ſuis concubinis morem ge
reret ; por iſſo deo primeiro culto a Venus , Deoſa
do Amor , do que a outros Idolos : Colebat Salomon
Aſtarthen ': Hæc, commenta Alapide , erat. Venus ;
mas ainda que a cauſa proxima da fua perdição fos
raó as mulheres , cambem concorrerað para cauſar
a lua ruina a nimia proſperidade, a muita opulen
cia, as demafiadas delicias, e os extraordinarios appe.
tites, que o dementara) ; porque as mulheres fazem
apoſtatar os Sabios : Cauſa tanti lapfus, diz o mef
mo Expoſitor , fuit nimia Salomonis proſperitas., opua
lentia , delicia , & libidines. Proxima caufa fuere uxa
res , quas ardentiſfimè amabat : he enim eum demen
tarı!nt juxta illud : Vinum , & mulieres faciunt apoſ
tatare ſapientes ; e como Salamão com o juizo per
deo a ſciencia , tambem perdeo a riqueza. Nunca
mais tornaraõ as Frocas a Tharfis , nem foraó a Ophir;

porque era grande a deſpeza , e pouca a utilidade


do
Kij
76 " Ennea , die Applicação do Entendimento ,

do comércio , como moſtrarað os ſucceſſores de Sa

lamão , que nao ſeguirao o ſeu exemplo , ſendo Ro


boað , e Jeroboaó ambos muito ambicioſos. Naó ef
tava Ophir , nem Tharſis taó longe de Hierufalem ,
que não podeſſem os Reys de Judà , e de Iſraël.
mandar aquellas Provincias as ſuas Frotas , como fa
ziaó Hira ) , e Salamão , e intentaráo Ochozias, e
Joſaphat, ſe Deos por caſtigo não derrotara aquel
Paralip.2.20. Ia poderoſa Armada .: Contritæque funt naves , nec
37. potuerunt ire in Tharſis ; mas ſó a Salamáo , e não a
outros Monarchas convinha aquelle cão celebrado
comercio ; porque delle lhe vinha baſtante Ouro
para fazer a Chryſopeia , ou Tinctura Phyloſophica ,
que o faz , e multiplica com grande exceffo. He o
principio Mercurial puro o fundamento da Tinttu
ra , e o Ouro natural o fermento da Chryſopeia ;
porque eſte fermento determina o indeterminado ,
e bem digeſto enxofre metallico fixo daquelle fun
damento , para fazer, aperfeicoar , e multiplicar o
Ouro Chryfophilo , conforme enſina o grande Me
M.Ettmuller dico Ettmúltero : Fundamentum totius Tincturæ Phi
Tom . 3. Col. lofophicæ eft principium Mercuriale purum , vel bus
leg .Pharm.in mida , vel fiecam
forma, fulphure metallico fixo, ex fe
Schræd. Mi.
adbuc indeterminatos probe digefto , probe impregnan .
cap. dum , c plufquam faturandum. His profrumento de
10. de .Metal:
neralog

fol.257 terminante auram addendum , ut fiat aurum pluſquam


perfectum . Ex his paratus pulvis omnibus metallis fa
cillime ob ftuxum mercurialem copiofum fe infinuat , bo
ratione adjuncti fulphuris tingentis eorum mercurium
por ficit , & in aurum figit ; porém como nenhum dos
Reys de Judà , e de Ifraël fabia fazer eſta Tinetu
ra , para multiplicar Ouro com a Chryfopeia , con
forme fazia ElRey Salamão , porillo ficando Ophir
na
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog. I.cap.unic.9.7. 77

på India Oriental entre o Rio Ganges , e Malaca ,


com as Ilhas de Java , e Samatra , e os Reynos de
Siam , Pegu , e Bengala , nenhum delles , mas ſó Sa
lamão fuitentou aquelle comercio ; porque com el
le adquiria Ouro para augmentar a lua opulencia,
e outras muitas riquezas , e curioſidades , que fer
viaõ de recreaçao a hum Monarcha opulentiſſimo ,
que fazia melhor negocio com a ſua Chymica , do
que com a ſua Frota.
ENODIO. Facilmente deixaria paſſar ſem
mayor exame o voſſo diſcurſo , ſenão tivera contra
ſ huma fortiſſima inſtancia. Tambem a Eſcritura
nao
ao declara , que foſſe puriflimo o Ouro dos feif
centos e ſeſſenta e ſeis Talentos : diz ló que vi
nha Ouro naquelle pezo : Pondus auri ; e como el
ta expreſſað he como as outras , com que falla no
Ouro , que vinha de Tharſis, e de Ophir , nao ten
des nenhum fundamento para dizer , que nos Epi
theros do Ouro ſe devem averiguar os ſeus qui
laces. E ainda que o Texto Sagrado nao faça ex
preſa mençaõ da Prata , que Salamão tinha de ren
da , nem diga clara , e certamente o pezo , e valor
da que The mandaváo , ou traziaõ de fóra , com tu

do affirma , que era tanta como as pedras de Hie


ruſalem : Abundantia argenti in Hierufalem , quan
ta do lapidum ; e por eſte meſmo modo podia fer
tambem muito o Ouro , aindaque não conſte da Ef
critura o valor, e o pezo , nem as terras donde era
mandado , ou trazido a Salamão .
ENOBATO . Ella voſſa inſtancia ſerà agora a
mayor , e melhor prova , para confirmar com ella
quanto tenho dito ; porque ſe a Prata naõ tinha
-valor , preço , nem eſtimaçao na Corte de Hieru
ſalem ,
*
78 Ennea , ou Applicação do Entendimento,

falem , ninguem a traria de fóra por hegocio ; eda


qui reſultou nað le ſervir com ella ElRey Salamaó ,
ou nao haver Praca no ſeu Reynado : Non erat ar
gentum , nec alicujus pretij putabatur in diebus Salo
monis ; e com eſſa pouca , qne com algum Ouro
vinha cada triennio de Tharſis : Deferens inde au
rum , fez Salamaó por grandeza , que houveſſe tans
ta abundancia de Prata em Hierufalem , como erao
as pedras daquella grande Metropole : Fecitque ut.
tanta eſſet abundantia argenti in Hierufalem , quanta
& lapidum ; porque com aquella pouca Prata por
meyo da Argyropeia , que he o Eſpirito da Lia ,
fez Salamaõ tanta abundancia de Prata : Fecit. Nem
em Hieruſalem podia haver canta Prata , ſenað fa
zendoa hermeticamente El Rey Salamao ; porque

das minas , e dos theſouros de todo o Mundo ſe


nao pode ajuntar Prata , que iguale o numero , pe
zo , e medida de todas as pedras, que naquelle tem
po havia em huma Cidade caó populofa , como foy
antigamente a Corte de Hieruſalem ; porque era
huma das mayores Metropoles do Mundo , a quem
por ſua potencia , e grandeza chama Hieremias Se
Hierem . nhora das gentes , e Princeza das Provincias : Do
Thren . I. mina gentium : Princeps Provinciarum . Porèm pela
Chymica, e pela virtude multiplicativa da Argyro
peia , a qualde huma parte faz mil , e de doze partes
cem milhões de milhões , creſcendo , e multiplican
doſe por elte'modo cada vez mais , como eſcreve o
Padre Kircker , até nao ter nenhum fim , nem li
mite : bem podia ElRey Salamað fazer tanta quan
tidade de Prata , que igualalle a medida , pezo , e
numero de todas as pedras da Corte de Hieruſalem :
Fecitque,ut tanta effet abundantia argenti in Hierufa
lem ,
Sobre à PedraPhilofophal. Dialog.I.cap.unic. $. 7. 19

lem , quanta & lapidum ; e como na Eſcritura Sa


grada nao hà hyperboles , nem encarecimentos,
como em hum dos ſeus Sermões diz o grande Pa
dre Vieira , aindaque muitos Doutores digao o con
trario ' ; e tudo quanto ſe lè na Eſcritura , heverda
de , ſem encarecimento , nem engano ; fendo cer
to , que em em Hieruſalem havia tanta Prata como
as pedras de tres ordensde muros , que a cercavaó ,
das Torres que a defendiað , dos Palacios que a
ennobreciaó , das caſas, que a povoavaó , das calça
das que a ſeguravað , e finalmente do meſmo Tem
plo , que era a obra mais magnifica do Mundo : nao
havendo antes , nem depois de Salama ) tanta Pra
ta , nao digo eu para fazer humaCidade pequena ,
fenaõ huma Villa , ou huma Ponte como eſta ; e
faltando logo no tempo de Jeroboa ) , e de Eze
chias , para dar a Sennacherib trezentos talentos de
Prata , vendo -ſe por eſta pobreza obrigado a deſpojar
o Templo da que tinha , a qual no tempo de Sala
mað haveria com mayor abundancia em caſa de qual
quer morador de Hierufalem , como do Ouro de
Tharſis, e de Ophir affirma Drexellio : Ophireium , Drexel. Tom .
da I barſicum aurum domos omnium inaurabat ; com 4. n . 6. de Sa
grande fundamento fe pòde concluir eſte diſcurſo, lom . 8. 1. fol.
attribuindo eſta grande quantidade de Prata à ſcien- 873 .
cia Hermetica , e à vaidade , ou jactancia de Sala
maó ; porque até pelas ruas de Hieruſalem man
dou fazer poyaes de Prata , conforme por liçaõ de
Pedro Comeſtor eſcreve Drexellio , os quaes fer
viaõ para os meſmos uſos , que os de pedra, e cal
Drexel.Tom.
tem entre nós : Petrus Comeſtor afſerit Salomonis & vo 4.cap.7.de Sa
Jerofolymis pro domorum foribus plurima argentea fe- lom. §. 1. fol.
dilia , qualia nos è ligno aut faxohabemus, equos af- 874.
cenju
80 Enned , ou Applicação do Entendimento ,

cenſuris commoda ; ' e aflim havia de fer; porque fe


entre nos hà tanta cal, e tanta pedra, como era a
Prata em Hieruſalem , por iſſo là ſe faziao de Pra
ta os poyaes , como nos cà fazemos de pedra. Mas
comoa eſta abundancia de Prata , que havia em Hie
ruſalem , igualava a quantidade de Ouro , que na
Paralip. 2. 1. meſma Corte havia : Præbuitque Rex argentum do
05: aurum in Hierufalem quaſi lapides ; tambem podia
Salamaó fazer poyaes de Ouro , como os fazia de
Praca ; porque le por eſtas pedras ſe podeſſem en
tender as Pedras Philoſophaes , chamadas tambem
Tinctura de Ouro , que Gregorio Niſſeno referido
por Drexellio , diz , que tiverao naquelle tempo
na ſabedoria de Salamað os moradores de Hierula .
Drexcl. tom . lem : Habuerunt , inquit, Tincturam Aurei , tanta
4. de Salom . ſeria , como a abundancia deſtas pedras , a de Prata ,
cap. 2. 8.2.fol. e de Ouro ; porque ſeria a quantidade do Ouro , e
882 . Praca proporcionada ao numero deſtas auriferas Pen
dras. Finalmente quanto ao Ouro dos Talentos ,
yos não podeis negar , que era dos meſmos quilates,
que tinha o puriſſimo Ouro da baixella do Retiro
do Libano , e o Ouro limpiſlimo do Throno , que
delle ſe fizera) ; porque falla a Eſcritura neſtas
obras , como feitas deſte Ouro , ſem que no Livro
dos Reys , e no ſegundo do Paralipomenon haja ya .
riedade em referir cudo junto , e ao meſmo tempo ,
para moſtrar , que era da meſma materia.

ENODIO. Como El Rey Salamaó foy caó ſao


bio , tão grande Medico , e cáo inſigne Chymico , que
eſcreveo oito mil Livros , em alguns dos quaes tra ,
Reg.3.cap.4. tou das virtudes das plantas , dos animaes , das aves ,
33 : das ferpentes , e dos peixes, he muito provavel, que
eſcrevendo tão valta , e curioſamente da Medicina,
tratar
+
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.9.7 . 81

trátaſle tambech da Chymica , por ſer a parte mais


util , e perfeita da Arte Medica , e a quem devis
a mayor parte das ſuas riquezas ; e como alguns li
vros de Salamaó eftað encorporados na Biblia , e
tem como Canonicos os quatro ſentidos da Eſcrię
tura Sagrada Myftico , Anagogico , Allegorico , e
Tropologico , delejo faber ſe ao menos allegorica
mence fallaõ da Chryſopeia.
ENODATO . He cao certo , que Salamaõ el.
creveo de Medicina , como duvidoſo , que tambem
tratafſe da Chymica ; porém nao falcaó Authores ,
que digao tratou tambem Salamaõ deſta materia,
e com muita eſpecialidade da Chryfopeia na fua tao
celebrad ,
preſumir , que nos livros Canonicos, e particular
mente nos Canticos , que ainda hoje exiſtem , e cre.
mos de Fè , eſteja occulto o artificio Hermetico ,
como fe pode ver neftas palavras de Sennerto : Ris
diculum verò eft , quod quidam in Cantico Cantico
rum artificium Chymicum latere exiſtimant , per
Sponfum Regem five
, Aurum , per Sponſam Reginam ,
five Argentum , quæ duo in Arte conjungantur ; ſe
que amplexentur , intelligendum cenfent ; & camdi,
citur : Nigra fum ,fed formoſa , caput corvi intelligen
dum putant , quod foris nigrum fit, intus autem ſum
mis divitiis plenum ": per turturis collum , varietatem
çolorum , & pavonis caudam explicant : per hyemem ,
tempus putrefactionis : per imbrem , imbibitionem : per
Flores , & Rojas albas, du rubras, colorem aureum ,
& album in lapide; per amiffionem Dilecti, auri oc
enltationem , intelligi oprantur. E ainda nos livros
terceiro , e quarto de Eſdras , que por nað ferem
Canonicos, andaó no fim daBiblia , lenaõ deve af
firmag
82 Ennad , on Applicaçao do Entendimento,

firmar eſteja eſcrita a Arte Magna , como errada


ė temerariamente entenderað alguns Chymicos
applicando à traſmutaçao dos metaes , e à mulci
plicação do Ouro feita pela Chryſopeia , eſtas pala
vras do Capitulo oitavo do Livro terceiro :Quos
modo autem interrogabis terram , & dicet tibi , quos
niam dabit terram multam magis unde fiat fictile, par.
vum autem pulverem unde aurum fit ;porque comer
rada expoſição explicao dos myſterios Chymicos, o
que ſe deve entender dos caſtigos , que darà Deos
aos péccadores impenitentes , e dos premios com que
remunerarà os juſtos , como declara o meſmo Èf.
1
dras: Multi quidem creati fünt , pauciautem falvabuna
tur. E porque eſta differença de predeſtinados , e de
preceitos, tambem em certo modo fe acha nos Hera
meticos , que pretendem deſcobrir , e alcançar o ſe.
gredo do Lapis ; porque os que não conſeguem ef
ta Pedra , laó deſgraçados , e os que a achão, fað
Venturoſos : comparemolos agora aos Hebreos , que
fahindo tantos mil do Egypto , ſó dous entràrao na
Terra de Promiffaó , figura da Patria dos Predefti
nados , aonde Moyſés lhe deſcreve. nas delicias , e
abundancias do Paiz os meſmos effeitos , que os

Adeptos venturolos achão em todas as terras' nias


ſuas Pedras Philoſophaes ; porque comem o pão ſem
penuria , logrão de tudo muita abundancia ; as ſúas

pedras faó de ferro , e nos montes deſtas pedras,


como os Hebreos nos da terra da prometida Pat
Deuter. 8.9 . leſtina , cavão os precioſos metaes : Ubi abſque ul.
la penuria comedes panem tuum , durerum omnium
abundantia perfrueris : cujns lapides ferrum funt ,eo
de montibus ejus æris, metalla fodiuntur: Porèm coi
mo a Pedra Philofophal he como aquella, a que Job
cha ,
sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.$.7. 83

chama pedra de eſcuridade : Lapidem quoque cali- Job. 28.3.


ginis ; nos Livros de Salamão vos moſtrarey ſem
obfcuridade alguma eſta pedra. Deſcreve Salamão
a Sabedoria no Capitulo oitavo dos ſeus Prover
bics, e como ſe fallara a ſurdos diz , ou brada af
ſim : Nunquid non sapientia clamitat , & prudentia
dat vocem fuam ? Por ventura não eſtà bradando a
Sabedoria , e a prudencia dando vozes ? E que diz
a prudencia com tantas vozes , e a ſabedoria com
caes clamores ? Entendey , parvoinhos pequeninos a
aſtucia , e vòs neſcios tende advertencia : Intelligite
parvuli aftutiam , do inſipientes animadvertite : ouvi
porque falley de couſasmuito grandes : Audite , quc
niam derebus magnis locuta fum . Recebey a minha dif
ciplina, e não dinheiro : recolhey antes a doutrina ,
do que o Ouro ; porque he melhor a ſabedoria do
que todas as couſas preciofiflimas :Accipite difcipinam
meam , e non pecuniam : 'doctrinam magis quam au
rum eligite ; melior eft enim Sapientia cunctis pretioſi
mis . Tudo quanto vos podereis delejar , não tem
comparaçao com a ſabedoria : Omne deſiderabile ei
non poteſt comparari. Ainda he melhoro meu fructo ,
do que o Ouro, é do que a PEDRA preciofa , e
as mais gerações faó mais excellentes, do que a Pra
ta mais ſelecta : Melior eft enim fructus auro , & la
pide precioſo , da genimina mea argento electo.Para
fazer a todos os meus amantes muito ricos e lhe

encher os ſeus thelouros , ando com muita juſtiça


pelos caminhos , ſem me apartar da mediania , co
mo do meyo , em que o juizo me moſtra conſiſte a

virtude : In vies juſtitiæ ambulo , & in medio ſemi


tarum judicii , ut diligentés me , & thefauros eorum
repleam ; porém neſta peregrinaçao ando como ju
Lij gando,
84 Erinæa, od Applicação do Entendimento,

gando , e brincando com os homens, em caja com


panhia acho as minhas delicias : Ludersin Orbe tera
rarum : & deliciæ meæ , effe cum filiis hominum ; por
iſſo peregrino em toda a redondeza da terra : In
Orbe terrarum ; e . para que todos ſejáo bemaven
carados, oução agora o que lhes digo , porque ſe
obſervarem os meus preceitos, nenhuns homensfe.
rão precitos : Nunc ergo filij audite me : Beati, qui
cuſtodiunt vias meas. Eſtá he a verdadeira Pedra
Philofophal, que ſe acha defcripta nos livros Sagras
dos, a qual a todosfaz venturoſos, e ricos ; porque
codos os homens , que obſervarem os fobreditos
preceitos , e louberem ſervir a Deos, alcançarào
as riquezas , que com a ſabedoria , deo taó liberal,
mente Deos a Salamaó .
ENODIO , Como vos por authoridade de San
to Ambroſio , Clemente Alexandrino , Eufebio ,
outros Eſcritores referidos , e ſeguidos por Alam
pide , dizeis , que da Academia de Salamaó , co
mo de pura fonte de ſabedoria , beberaõ a doutri.
os Socrares, os Platões , os Ariſ .
na os Pythagoras ,
toteles, e outros Philoſophos antigos ; e no Egyp
to eſtudou Moyſés a Chymica , do qual paſſou aos
Hebreos , ſendo eſtes tantas vezes cativos, e tranſ
migrados a varias Nações do Mundo ; aon de para
viverem ſem os deſcommodos de cativeiro , e a
pobreza do deftereo , lhes feria neceſſario fazer Ous
ro , e Prata pela Arte Magna ; e podendo alguns
daquelles , e outros fabios entrar no Egypto , e ob ,
fervar , e ſaber com alguma induſtria os preceitos ,
e myſterios da Philoſophia de Hermes , eſcritos pu ,
blicamente nos ſeus Hieroglificos ,nað ſey como
dos Egypcios, dos Hebreos, ou de Salamað naa
paſſou
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.Iicap.unic :9.7 . 85

paſſou a todos Mundo ', ou quando menos a al,


guns Varões labios a noticia da Cbryfopeia,?

S. VIII...

Da Chryſopeia dos Philofophos , e Medicos , prova


da com a expedição dosArgonautas.
26.02 FTC " 1937
ENODATO . S Hebreos ſempre foraó hoa
mens neſcios , e ignoradtes
09
como lhes chamou leu Meſtre o Propheta Moyfés:
Popule ftulte do infipiens ; e a comprehenfao da Ar, Deut 32.6.
te Magna nað he para ignorantes , nem para neſcios,
poriſfo os Hebreos a nao- fouberaó , ném practica
raó nas Provincias onde eſtiveraó cativos. Porém
os Gregos , que foraó homens de grande engenho ;
perſpicacia , e Sabedoria , coma teſtemunhao os
Platões , Hypocratés , Ariſtoteles , Democritos ;'
e outros Oraculos da ſua Athenas e de todas as

Academias do Mundo ,, fazendo algumas jornadas


ao Egypto ; conyerſando na Çorte deMemphis
com os Sacerdotes de Vulcano , è ; obſervando as
repoſtas myſterioſas, dos mais agudos Interpretes
dos Hieroglicos de Hermes , aonde fe confervava
occulto o ſegredo da Chryſopeia , alcançaraó o mylo
terio , e revelação da Pedra Philofophal , de que en
tre os Hebregs ſe perdeo a noticia com os Livros
de Salamao, Osprimeiros , que perceberaõ jeſou
beraó, efta: Philoſophia Hermetica , foraó Orpheo ,
Democrito , e Homero , os quaes tornando para
a ſua Patria , eſcreverað enigmaticamente da Chryo
fopeia , como ſe pode ver pa hiſtoria dos Pomos
das Helperides , e de Hercules, das Maçãas de
Ouro
86 - Emed ;"on Applicdção do Entendimente , "

Ouro de Hippomenes , e Athalantha, nos dentes de


Cadmo , olhos de Argos, e ramo deOuro , e com
muita propriedade, e mayor clareza na famoſa hil
toria dos Argonauças , que navegaraó a Colchos
para conquiſtarem o Vellocino.
ENODIO . Peço -vos , que me conteis aomee
nos, eſta jornada dos Argonautas à Ilha de Colchos,
para ver como na Conquiſta do Vello de Ouro fé
deſcreve a Chryfopeia ." ??
- ENODATO . Efcrève Ovidio nas ſuasMeta
morpholes , que Achamas , Rey de Thebas , cafára

10ů com Nephele , fabia ', e fermoſa Senhora , de quera


nafcerað hym filho chamado Phryxo , e huma fie
Iha chamada Helle. Por morte , ou auſencia de
Nephiele , que enloqueceo , e ſe meteo pelos ma
sos , caſou ſegunda vez Athamas com Ino , a qual
como Madraſta lhe aborrecia os filhos , e pertendia
tambem ", que o pay lhe tiveſſe grande odio. Pero
ſeguio efta crueliflima mulheraos innocentes Prin
cipes , com deſattenções , e deſprezos , mortifica
ções , e tormentos , deſejandolhes ſempre a morte ,
e machinando tirarlles a vida, paraque ſeus filhos
Learcho ,lo Palemo fuccedeſſem naquelle Reyno
Para lhes formar culpa , e dar o merecido caſtigo ,
eſterilizou occultamente os frutos , para que não
produziſſem outros as ſearas ; e quando jà em co
do'o Reyno era publica a queixa ,e univerſal o
clamordos vaſſallos, afflictos com a eſterilidade que
vião , e temeroſos da fome , que eſperavão , ſem
faberem , nem preſumirem a cauſa de tað novo , e
niūnca viſto fucceffo :: foy eſta induſtrioſa Mulher
com fingida picdade , e manifeſta hypoerefia ao
Templo , aonde compromeſſas , e dadivas-foboro
nou
Sobre a PedraPhilofaphal. Dialog I.capunic.9.8. 87

nou os Sacerdotes , paraque publicaſſem , que os


Deoſes lhe revelàraõ , ſerem os peccados enormes
de Phryxo , e de Helle a verdadeira cauſa daquel
le caſtigo , e feria ) origem de futuiças calamidades.
4 " Huns dizem , que Phryxo , e Helle temendo
a niorte ou algum grande trabalho , fugirao de
caſa de ſeu pay , montados no Carneiro do Vello
fatal; mas a opiniaó mais ſeguida , he , que Atha
mas aſſuſtado , e temeroſo das calamidades , e caſti
gos , que promettiaó as reveladas. prophecias , pa
ra evitar os eſtragos futuros , deſterrou com gran
de ſentimento a ſeus filhos , os quạes por ſerem de
tenra , e - florente idade , e creados no Paço com o
mimo, e regalo de Principes ., padecèrao grandes
perigos na jornada, e muitos trabalhos 'na peregri.
naçao das terras alheyas; porque paffáraó Charne ,
cas deſertas , fubiraó Montes inacceſiveis , corta
raó Serras muito alperas , deſcèraó Valles muito
fundos, penetràrao Boſques muito eſcuros , entra
raó em Selvas ſem caminho , caminbaraó por EN
tradas ſem ſahida', até que porMontes fragoſos ,'
Terrás agreftres, Campinas incultas ,se por dilatom.
dos , e deſconhecidos Caminhos chegàraó y como
refere Hygino , à Corte de Cretheo , Rey dos Jol.
cos na Theffalia ; que era ſéu tio
* , Paffadosios primeiros dias, induzio Demodece ,
mulher de Cretheo , ao Princepe Phryxo , para co
metter comella o incestuofo adulterio ,crimede que

· to arguhid vendo- ſe deſprezada ; e dando Cretheo


credito à falfa accuſadora , determinou matar a ſeu
ſobrinho . Neſte tempo foy confultado o Oraculo :
para fe fabér delle omodo de remedcar a fome , que
hia deftruhindo o Reyno dos Jolcos. Reſpondego
Oras
88. Emea , on Applicação do Entendimento,

Oracule , que fem o ſangue de dous Principes fe


nao aplacaria a ira dos Deoſes ; e como na Corte
naõ havia outros ſerao Phryxo , e Helle , forað am
bos deſtinados para vi& imas. Eſtando ambos jà com
as cabeças debaixo do cutello , apparecco no meyo
do Templo huma branca nuvem , da qual ſahio hum
Carneiro, que tomando - os ſobre ſi,os levou às prayas
do mar", aonde lhes appareceo fua máy Nephele ri
camente veſtida, como parece,que apparecerião de
pois de mortas todas as māys ſe poderáo , para con
folarém neſte Mundo com a ſua viſta , aos ſeus fi.

lhos peregrinos , e perſeguidos.


Fallou - lhes tão amorofa, e docemente como
máy , conſolando -os.com a ſua prelença , para ali
vio da ſua grande ſaudade , e dandolhes para reme
dio da fua pobreza , e foccorro da ſua neceſſidade,
hum Carneiro , que tinha Vello de Ouro ; como
qual viviriað ricos , e abundantes , e paſſariaó fea
guramente o mar , com condiçao , que nao volta
riao para traz o roſto, quando montados no Care
neiro de Ouro foſſem navegando como em hum
Delphim por cima das ondas; porque ſe fizeflem o
contrario , ficariaó como Icaro affogados , e ſumer
gidos nas agoas , como ſuccedeo à fermoſa Prina
ceza Helle , que toda tremula à viſta do mar , e
atemorizada com o ruido das ondas , ſe deixou cao
hir , e morreo affogada , deixando com o ſeu nauza
'fragio , e com o ſeu nome famofiffimo o Helefpona
to. Porèm Phryxo embarcado , ou montado no ſeu
Carneiro , fem voltar para traz o roſto , por naa
ver tað funeſto , e tragico precipicio , chegou fe
lizmente à Ilhade Colchos , aonde o Carneiro def
pia muiças vezes o Vello de Ouro , e veſtia outco de
novos
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.§.8 . 89

novo, o qual por ſer tað rico , e precioſo,fra de


grande valor , te eſtimaça ) , e Phryxo o trazia no
rebanho d'El Rey Etha, que ſe criava em hum vi
Veiro de Veados , Cabras, e outros animaes dedi
cados a Marte , e guardados por hum Dragao com
azas. Por eſta cauia conſagrou Phryxo a Jupiter,
ou como outros querem , ao Deos Marte , aquelle
aurifero Carneiro , o qual deſceo alegremente do
Ceo à terra , para receber da maõ de Phryxo tað
rica offerta , que depois foy collocada finalmente
no Ceo entre os doze Signos do Zodiaco . Mas an
tes que Marte ſubiſſe de Colchos ao Olympo , e
collocaſſe no Zodiaco o Vellocino, deixou o Care
neiro de Ouro no Templo , e pendente de huma
Arvore , que os moradores de Colchos tambem lhe
conſagràraó. Guardavao eſta Arvore , e Vellecino de

Ouro, nao ſó aſperos, e inacceſiveis montes, boſ


ques ſombrios , e valles frondoſos , onde eſte gran
de cheſouro eſtava eſcondido , e occulco ; mas tam
bem hum Dragaõ de tres linguas , com tres ordens
de dentes , e duas azas , que era tað vigilante, que
nunca dormia , e lançava pela boca eſpantolas la
baredas de fogo. Acompanhavao a eſte horrivel
Dragao dous bravos , e ferociſſimos Touros , que
tinhaó pontas de ferro , e pès de alambre , os quaes
tambem lançavaõ pelas ventas do nariz vorazes
chammas de fogo , com que abrazavaó a todos os
homens , que intentavaó roubar o Vollecino ; mas
e
ſem embargo de ſer tað difficultoſa a empreza ,
ta ) arriſcada eſta aventura , eſtava determinado pe
lo Deos Marte , qne venceria os Touros , e doma
ria o Dragaó , quem emprendeſſe felizmente eſta
Conquiſta , e levalle o Vellocino de Colchos.
M Reyna .
6‫ܘ‬ Ennæa, ou Applicação do Entendimento,

Kaynava naquelle tempo neſt: Ilha Etha , pay


da fabia Medea , tao peregrina na belleza , é taš
rara na fermoſura , como douta , e ſingular na Ar
te Magua ; e dominava) toda a Grecia os dous ir
mãos Pelia , e Efon. Teve Efon hum filho chama
do Jalao , a quem aborrecia feu tio Pelia , ( vicio ,
que ordinariamente ſe acha nos Tios, ) ſem mais cau
ſa , do que fer Jaſaó mancebo de excellentes vir
tudes moraes , e heroicas , muito valeroſo , dif
creto , fabio , generoſo , e de gentil preſença. Pa
ra lhe tirar a vida por tað honrados delictos , o per
ſuadio feu Tio Pelia , a que foſſe à Ilha deColchos
na companhia de Hercules, Theſeo , e de outros
valeroſiſſimos Heroes , para conquiſtar o Vellocie
no de Ouro , que era a mais arriſcada , rica , e glo
rioſa empreza daquelle tempo. Embarcados os fa .
moſillimos Argonautas em huma Náo , que lhe deo
o Nome , tomandoo ella tambem de Argos feu Au
thor , e do Cavallo Pegaſo , chamando-ſe por eſ
ta cauſa Nao Argos , e Pegalia , navegàrab com
grande trabalho pelo mar Pontico , até chegarem à
Corte de Phineo , Rey de Peonia , que era jà mui
to velho , enfermo , fraco , e cego , o qual os hof
pedou com muita grandeza , magnificencia , e re
galo dentro no ſeu meſmo Palacio.
Eſtando os Argonautas aſſentados à meſa , ſe lhe
queixou Phineo das ſuas enfermidades , e depois
de ouvir o ſeu voto , ſe queixou muito mais das
Harpias Aëllo , Ocyperè , e Celleno , a que Ho
mero chama Podarga , que eraõ humas aves de ra
pina , com cara de mulher , boca amarella , corpo
de Abutre , pès , e braços humanos , e unhas agu
das , como monſtros ; porque com grande atrevi
men
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unic.5.6. 91

mento , e deſartezia contaminavao , escabavað


quantos manjates ſe punhaõ na mela ao vemo doen
je , e cego Phineo . Ouvidă a queixa de leza Ma
geſtade , e padecendo tambem Jaſað , e ſeus com
panheiros a meſma injuria , le levantàraõ logo to
dos da mėſa , e acompanhado Jalað fó de Hercu
les , com animo de matar as Harpias , as inveſtirao
com as eſpadas nuas ; mas ellas metendo a mão às
azas , evitàraó a morte propria , fugindo velozmen
te pelos ares , como ligeiriſlimas aves. Porèm Jafað
as mandou ſeguir , e perſeguir por Zetheo , e Ca
lais , filhos ambos do vento Boreas ; porque como
filhos de tal pay naſcèra com azas , e com ellas
forað voando como Açores , em leguimento das fu
gitivas para lhe tirarem a vida . Mas neſte aperto ,
e grande afflicçaõ das Harpias lhes valeo o Deos Ju
piter , pedindo com palavras brandas , e amoroſas
aos ſeus velozes perſeguidores, que nao maraſſem ,
nem perſeguiſfem aquellas aves ; porque erað os
cães , que comiaó os oſos , e migalhas , quando
cahiao das meſas dos Deoſes.

Deixadas por reſpeito de Jupiter as Harpias , e


deſpedidos d'El Rey Phineo , continuàrað os Ar
gonautas a ſua derrota , furcando mares deſconhe
cidos , e nunca dantes navegados , atè que final
mente aporràraó , e derao fundo na Ilha de Col
chos . Forað nella bem recebidos , e hoſpedados
magnifica, e generoſamente por ElRey Echa , pay
da fabia , e fermoſiſſima Medèa , que amou extre
moſa , e finillimamente a Jalao ; e deſpoſando-ſe
occulcamente com elle , lhe revelou , e deſcobrio
os mayores ſegredos , para poder ſem perigo , nem
mais armas , do que hum fceptro de marfim , em
Mij pren
92 Enned, ou Applicação do Entendimento ,

prender, e conſeguir a conquiſta do Vellocino de


Curo.Ho dia aſſinalado , concorriso muita gente
a ver o ſucceſſo daquella arriſcada ,' e duvidola te
meridade de Jalað , o qual com o ſceptro de mar
fim na mão foy caminhando por huma eſtrada ,
que ficava no meyo de todas as peſſoas, que o viaõ,
e admiravao . Tanto que Jaſao deo os primeiros
paſſos neſte caminho , logo lhe fahiraõ ao encontro
os bravos , e ferozes Touros , lançando tanto fogo
pelas ventas do nariz , e pela boca , que parecião
animados Ethnas , e Veſuvios , e com as labaredas
queimarão as hervas do campo , e abrazarað as ar
vores até as raizes ; e cavando com as mãos na tere
ra , e fazendo com os movimentos do corpo Varias
figuras, mudanças, e alterações inveſtirao intre
pida , e furioſamente a Jaſao , o qual com grande
esforço , e valor lhes rebateo a furia , e prenden
do- os , os vencèo , domou , e ſobjugou , de tal for .
te, que com grande facilidade , e mayor admiraçao
dos que viaó eſta peleja , os meteo no jugo , e com
elles lavrou a terra , em que femeou os dentes de
huma Serpente , que elle primeiro matou , e deſta
fementeira naſcérað logo homens armados , que tam
bem inveſtirão com grande furia , e impeto a Jalao ,
para darem a morte , a quem deviaó a vida.
Porém a Princeza Medea , como ſabia , e peri
ta na Magica , os encantou com as ſuas artes ; e or
denou a ſeu eſpoſo Jalaõ , que no meyo delles lan
çaffe huma PEDÅ A , a qual entre eſtes homens
armados excitou tão grande diſcordia , que pelei
jando todos furioſamente entre ſi, todos finalmen
te morrèraõ na batalha . Applaudido , e acclamado
Jalaó por vencedor , celebrarað os Gregos com

grans

.
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.7.cap.unic. 67: 93

grandes feſtas eſta vitoria , animando - o com eſtes


cbfequios , para com o vencimento do Dragão al
cançar o ultimo triumpho . Troſeguio Jaſaõ a em
preza ; porém como o Dragað era animal muito fe
roz , e horrivel , tanto pelas ſuas invenciveis forças,
grandeza do corpo , e formidavel aſpecto , como
por ter em trez ordens de dentes , e trez linguas ,
multiplicadas armas para ſe defender , e devorar a
todos os ſeus inimigos ; e vomitando continuamen
te labaredas de fogo , que tudo abrazava , paſſan
do os dias com tanto cuidado , e as noites com tal
deſvelo , que nunca dormia , para melhor guardar
o theſouro dedicado a Marte : foy neceſſario , que
Medèa o encantaſſe pela Arte , para que dormin
do ſe deſcuidaffe , e com o deſcuido permittifſe a
Jafað conſeguir com eſta induſtria , o que ſem ella
era impoſſível ao ſeu grande valor. Encantado em
fim
por Medea , adormeceo o Dragão , cerrou os
olhos , fechou os dentes , encolheo as azas , e apa
gou o fogo , e pode Jaſao colher ſeguramente da
quella Arvore o precioſo Vellocino de Ouro , que
nella eſtava pendente havia muitos annos , e com
elle trouxe as auriferas maçãas , que a meſma Ar
vore produzia com a virtude do Vellocino.
Concluida eſta empreza com tanta ventura , e

credito de Jaſao, paſſou eſte victorioſo Heroe hum


dia no Palacio d'ElRey Etha , aonde foy compri
mentado por toda a Corte , com admiraçaõ de mui
tos , e inveja de todos . Seguio -ſe a eſte politico ob
ſequio hum magnifico banquete , em que competio
o regalo com abundancia , e a magnificencia Real
com o aceyo . Tanto que entrou a noite , princi
piou hum baile , em que dançàra ) com maſcara as
1 Damas,
94. Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

Damas e os Cavalheros, e ajudadds deſte disfarce


fugirao seguramente do Paço Medea e Jaſaõ , por
que a malcara lhes occultava o roſto , e a noite o re
tiro. Para Medèa evitar , que a ſeguiſſe ſeu pay
Etha , foy dilacerando a ſeu irmaó Abfyrto , e lan
çando os membros deſpedaçados pela eſtrada por
onde fugia ; porque ſuſpendia os paſſos o magoado
pay , fepultando os membros do innocente filho.
Chegando os fugitivos a Grecia , achàraó a Eſon,
pay de Jaraó , deitado na cama , como doente , en
trevado , como velho , e ſem remedio , como de
crepito. Porém Medèa rogada por Jaſaó , reſtitu
hio naõ ſó a faude , mas tambem a mocidade a Eſon ,
de tal forte , que de velho decrepito , o transfor ,
mou em florido mancebo .

Eſta, e outras iguaes maravilhas obrou Medea,


com hum particular remedio , cuja receita ſe pòde
ver em Ovidio , o qual Medèa principiou a pre
parar em occaſiaõ de Lua cheya , em noite clara ,
e de Ceo eſtrellado , com folhas de humas hervas ,
raizes de outras , enxofre , pedras do Oriente , e
da praya do mar , partes de animaes , eſcamas do
Dragað , e com o rocio do Ceo ; e com eſta myf
terioſa preparaçao , e efficaciſlimos ingredientes ,
compoz hum Antidoto univerſal para evitar as mo
leſtias , curar as enfermidades , e renovar a velhi
ce , ou converter a idade decrepita , na mais flori
da idade ; porque ſó as hervas tinhaš taó grande
virtude de tranſmucar, e transformar as entidades ,
èá
que faziaó novos os Dragões velhos ,, que Med
trazia no ſeu coche. E o meſmo remedio era tao
activo neſta ſua operaçaó , que o pão de Oliveira ,
com que Medea o mexeo , ſendo leco como hum
páo,
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog:1.cap.unic.$ 7.95

lo pào , logo reverdeceo de repente , veſtindo- ſe de


folhas , e produzindo muito fructo ; e ate os pin
gos , ou gotas , que do remedio cahirão caſualmen
re na terra ſeca , a fecundaraõ de forte , que logo
ſe cubrio de verdes hervas, que repentinamente flo
recèrao , e de que Medèa colheo por fructo huma
perpetua , e voluntaria peregrinação pelo Mundo ,
donde paſados alguns annos deſappareceo.
Antes que paile do ſentido literal deſta hiſto ,

ria à explicação da ſua allegoria , é moralidade ,


deveis primeiro advertir , que legundo a diviſaõ de
Varro , dividem os Chronologicos o tempo em trez
tempos , que vem a ſer tempo eſcuro , tempo fabus

loſo , e tempo hiſtorico : o tempo eſcuro , he to .


do o que correo de Adam até o Diluvio de Ogi
ges ; chama-ſe eſcuro , e incerto , porque pela li
çaõ de Hiſtoriadores profanos , nao ſe ſabe o que
ſe tem paſlado no Mundo no dilatado eſpaço de
vinte e dous feculos : o tempo fabuloſo começou
deſde o Diluvio , e durou atè as Olympiadas ; cha
ma- ſe todo eſte tempo fabulofo , porque entre al
gumas verdades ( como logo veremos ) miſturarab
os Hiſtoriadores cantas fabulas , que tirarað o cre
dito às ſuas hiſtorias ': e o tempo hiſtorico come
ça das Olympiadas , e continuarà até o fim do tem
chama-ſe tempo hiſtorico porque depois das
po ;
Olympiadas , começou a luzir na hiſtoria a verda
dade das couſas paſſadas. Porém como no tempo
fabulofo andava a verdade junta com a fabula , he

neceſſario , que agora façamos eſta diſtincçao com


alguns exemplos , para com elles explicarmos a ex
pedição dos Argonautas .
Na Philoſophia Secreta de Moya tereis lido ,
que
96 Ennea, ou Applicação do Entendimento ,

Moya Philol. que hi Fabulas Mychologicas , Apologicas , Mile


Secreta lib .1. fias, e Genealogicas : e cada huma deſtas quatro
cap . 1. e 2. in eſpecies de Fabulas temi cinco ſentidos , Literal,
princ. Allegorico , Anagogico , Tropologico , e Natural:
o Natural , declara as obras da Natureza : o Tro

pologico , emenda os maos coſtumes : 0 Anagogi


co , guia o entendimento à contemplaçaõ de couſas
Divinas : 0 Allegorico , diz huma couſa , e ſignifi
ca outra ; e o que a letra propria , e immediatamen
te ſignifica , he o ſentido Literal, chamado Hiſtoa
rico, ou Parabolico . Tudo iſto ſe vè neſte exem
plo : Hercules filho de Jupiter , como fingem os
Poetas, concluidos os ſeus trabalhos , ſubio victo
rioſo ao Ceo. No ſentido literal , ſe entende eſta
hiſtoria , como diz a letra : no ſentido Allegorico ,
por Hercules ſe entende a virtude collocada no
Ceo , victorioſa de todos os vicios : no ſentido Ana
gogico , por Hercules ſe entende a Alma ſubida ao
Ceo, deſprezando os bensda terra : no ſentido Tro
pologico , por Hercules ſe entende hum Varaó for
te, habituado em virtudes , e bons coſtumes ; e no
ſentido natural por Hercules ſe entende o Sol , e
pelos ſeus doże trabalhos, ou façanhas os doze Sig.
nos do Zodiaco , os quaes elle vence com trabalho ,
porque os corre todos dentro de hum anno. Neſtes
Vieir. Tom . ſentidos diz o Padre Vieira , que paſſarão as Fabu
5. n. 11. fol. las , não em ſi meſmas , mas naquelles caſos, e cou

10. ſas , que derão occaſiao a fe fingirem . Na ſeca uni


verſal, que abrazou todo o Mundo , paſſou a Fa
inun
bula de Phaetonte : no Diluvio particular , que
dou grande parte delle , paſſou a Fabula de Deu
calion : no eſtudo com que ElRey Athlante con
templaya o curſo , e movimento das Eſtrellas , pal
fou
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unic. 8. 97

le fou a Fabula de trazer o Ceo aos hombro : na efe


TO peculaçao coftinua de todas as noires , com quelin
dimion obfervava os effeitos do Planeta mais vi
El : finho à terra , paſidui ' a . Fabula dos ſeus amores
com a Lua ; e porque tambem os noſos vicios , a
noſſa fraca virtude , e a noſſa meſma vida paffa
como Fabula : o amor , e complacencia de nós
meſmos paſſou na Fabula de Narcilo : ' a riqueza
Sem juizo , na Fabula de Midas ' : a cubiça inſacia
vel , na Fabula de Tantalo ; a inveja do bem alheyo ;
na Fabulas ; e Abutre de Ticio : à inconſtancia da
Fortuna mais alca ' , na Fabula ', ' e roda de Ixion :
o perigo de acercar com o meyo da virtude, enao
declinar aos vicios dos extremos , na Fabula de
Scilla, e Caribdes : e finalmente a certeza da mor ,
se , e a incerteza da vida , pendente ſempre de hum
fio , paſſou , e eſtà continuamente paſſando na Fa .
bula das Parcás. Alimenvolverao , e miſturarao os
Sabios daquelle tempo ,o que ha com o que nao
hà gi e'o certo com o fabuloſo , para que nem o .
louvor nos deſvaheça , nem a calumnia nos deſa
nime ; propondo , como diz Plataó , aos meninos
Aa curioſidade deſtas Hiſtorias , os ſegredos das
doutrinas , pa
ra
e fizeſſem diligencia por deſcobrirem os feus myſ
terios ; evitando tambem , que os ſeus ſegredos fof .
ſem publicos a todos ; porque da mefma force , que
o vinho , ou qualquer licor perde a fua doçura , c
ſuavidade poſto em mãos vaſos : aflim as couſas
divinas da Philoſophia , compoſtas de modo que
ſejao vulgares , e labidas até dos ruſticos , le cor
rompem , e perdem muito da ſua eſtimaçaõ ; como
perderia todo o preço a Chryſopeia , le nao eſtive
N ra
o
ação ent
ea ic endim
98 finn , ou Appl do Ent ,

ra tao culta , como agora ouvireis no myſterio .


1o Vellociño de Colchos.

Toda a ſabedoria , e diſcurſo ſcientifico , ſao


como Phryxo , e Helle , filhos primogenitos do
entendimento , e da memoria , como de Athamas
e de Nephele ; porque por Nephele , primeira mu
lher de Achamas , ſe entende a freſca memoria da
idade de Varao , em que o entendimento , como
Athamas , tem vigor, e actividade para fazer con .
ceber a memoria os partos , e producções da ſua
grande fecundidade. Na morte , ou auſencia da
memoria , que ſempre ſe aparta , enfatua , ou morre
primeiro , que o entendimento , fað o diſcurſo , e
fabedoria perleguidos da ignorancia , ſua madraſta,
com quem o entendimento humano celebra ſeguns
dos deſpoſorios na velhice , a qual como Ino , allu ,
cina o entendimento com enganos , para que abor
reça o diſcurſo , e ſabedoria , è fuccedao em teu lue
gar , como Learcho , e Palemon , a facuidade , e o
eſquecimento . Eſteriliza a ignorancia , occulcamen
te com a ſua infecundidade , todos os fructos , e
producções do juizo ; porque ninguem he taó nef
cio , que queira moſtrar a ſua necedade em pu
blico ; e conjurando -ſe contra a ſabedoria , e diſ
curlo , lhe levanta falſos teſtemunhos , ajudando
ſe da voz de todo o Povo , que ordinariamente
murmura , ſem ſaber a razaó , porque condemna .

Para perſuadir o ſeu fingimento, corrompe os fu


geitos de mayor caracter , os quaes ſobornados pe
Ja ignorancia , fallao tao confiadamente contra a
ſabedoria , e contra o diſcurſo alheyo , como ſe ti
veraó revelações do Ceo ; arrojando - ſe o ſeu atre
vimento a canto , que tambem fazem contra elles ſuas
pro
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog. I.cap.unica.8. 99

profecias , para que o meſmo entendimento que os


gerou , atemofizado com as preſentes , çfarurascen
ſuras , os extermine como erros ,masainda que eſta
he a opinião mais ſeguida, não he pouco provavel,
que o diſcurſo , e à fabedoria voluntariamente fa
hiffem de caſa de ſeu pay , com temor da morte ,
ou de outros trabalhos , e montados no Carneiro
.
do Vello de Ouro ; porque eſte metal metido em
bolças de pelle de carneira , faz ſahir a ſabedoria ,
co diſcurſo fóra dos racionaes dictames do entene ,
dimento , quando o reſpeito , a neceſſidade , e ou
tros motivos corrompem o animo dos Varões ſabios.
Correm eſtes de terrados , ou fugitivos peregrinos
por montes , e valles de eſcuras , egrandes difficul.
dades , paſſando por terras deſertas , e incultas ,
que faó os nefcios, e ignorantes , quelhes nao fa
zem companhia ;entrando em felvas ſem caminho,
e eſtradas ſem ſahida ; porque apartada a ſabedoria ,
e ſeparado o diſcurſo do entendimento , nem acer
tað com o caminho da verdade , nem ainda pelas
eſtradas de opiniões ſeguidas achað fahida ; mas
allim peregrinando pelas difficuldades vem a def
cobrir em Crecheo o conhecimento de muitas cou.
ſas ignoradas , o qual he como tio do diſcurſo , o
da labedoria , por ſer irmao do entendimento .
Provoca a ſemelhança , como Demodece , ao
diſcurſo , como a Phryxo , para que ſe conforme
com ella ; e porque o diſcurſo ſe nað deixa enga
nar da apparencia , e perſevera conſtante no que diſ
corre , ſe vè muitas vezes arguido , e arriſcado ,
porque os Oraculos do Mundo para remedearem a
fome, naš reparaó em tirarem a fama; mas Vendo
ſe os doutos neſtes perigos, e com o cutello da fo
nie
Nij
100nnæa , 01! Applicação do Entendimento,

me na warganta , com a eſpeculaçao tao clara ,


ſubtil din huma branca nuvem , fe livraó de to ,
dos eſtes travulhosmanparados
, principalmente de
algum Protector, que os favorece , e ſuſtenta. Com
os primeiros beneficios da fortuna , eſtando para ſe
engolfar no mar deſte Mundo logo lhes apparece
Nephele , porque aos venturolos ſempre lhes rę .
ſuſcitao os pays, porque a inveja lhos deſenterra; ·
mas como os felices devem aos pays o naſcimento,
tambem delles com o ſer , participao as fortunas ;
por iſſo em Nephele ſua máy , que por ſer memo
ria reſuſcitada , he experiencia muito util , achao
os conſelhos , e os theſouros na intelligencia do
Vellocino de Colchos , o qual he o livro Mudo de
Hermes , que a experiencia , e a memoria ofterećem
ao fabio , para paſſar o valle de lagrimas deſta ca.
lamitoſa vida , mar , em que naufragað os que vol1
tað atraz o roſto , e navegaõ com vento em popa,
todos os que proſeguem a ſua derrota , com huma
virtuoſa diligencia , como enſina Santo Alberto
Magno no quarto preceito , que deve obſervar. 9
Hermetico para conſeguir a Chryſopeia : Quartum
eft, ut Artifex hujus artis fit fedulus, & frequens cir .
¢ a operationcs, c non fit tædiofiis , fed perſeveret uf
que in finein. As Academias , e Tribunaes faõ a ver ,
dadeira Ilha de Colchos , aondeos Lentes , e os Mi
niſtros , nas honras , e nas riquezas , colhem os pre
cioſos fructos do Vello de Ouro ; porque os Eſtu
dantes , e os Pretendentes de qualquer Reyno, que
fao o Gado do Viveiro Real , defpem todos os ans
nos a pelle, como o Carneiro de Phryxo , para ſul,
tentarem os Miniftros , e os Lentes ; e quando os
Lentes virtuoſos , e Sabios , e os Miniſtros rectos ,
e dous
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.g. 101

e doutos, nao foſquiao , nem esfollaó eſtas cielhas,


conſervaó o Hellocino da ſua alma , marts puro , e

preciolo do qưe o Ouro , para o offerecerem a Deos


no fim da vida. Para ſalvar , e collocar no Ceo as
almas dos homens Sábios , como as Virgens pru
dentes , deſceo Deos do Ceo à terrra : Qui propter
nos homines , & propter noftram ſalutem deſcendit de
Calis ; e fallando o Propheta David deita deſcida
de Deos , diz , que deſceria como chuva para o
Vello : Deſcendet ſicut pluvia in Vellus ; è como ſó Plalm . 71. 6,
as virtudes ſobem com a alma ao Ceo , e ficaó as
riquezas na terra , para commodo dos que vivem
po Mundo ; eſtas deixa Deos aos homens, penden
tes na Arvore da ſciencia , que eſtà no Templo de
Minerva, occulco entre osmontes das Livrarias, e
os boſques ſempre frondoſos , com as perpetuas
folhas dos livros; mas aſſim como no Paraiſo poz
Deos hum Cherubim , com humaeſpada de fogo
para guardar a Arvore da Vida , deixou por de
fenſores da Arvore da . Vida e da ſciencia , os
Touros , e o Dragao , que faó o Mercurio , eo
Fogo , aos quaes ſo Jaſaõ , que he o Medico dou
, judado deMedea , que he a Arte Medica , fa
to a
be domar , e vencer ; e com eſta victoria , colhe
o Vellocino, e maçãas de Ouro por triumpho.
- ;: Emprendem os Medicos mais peritos eſta uti
Liſlima aventura , como ſe lè nas ſuas doutiſlimas
obras , e embarcados na famoſa nào Argos, que he
a ſua doutillima, e ſubtiliflima eſpeculaçao, mais
vigilante do que Argos , que tinha cem olhos , e
nunca dormia, e mais veloz do que o Pegaſo , que
voava com ligeiriſlimas azas , arribaõ na peregrina
çaó deſta vida, e navegaçao do mar , ou valle de
ļagri
102 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

lagrine's em o Reyno de Peonia , je tomão porto


na Corte de Phineo , velho , enferro , cego , e fra
co , como hồinem e
, cercado de Harpias, que o
comem , e roubao como a Rey , porque os Medi
cos peregrinando pelo Mundo, e navegando neſte
mar de miſerias , arribaõ no Reyno da natureza hu
mana ; e na Corte do homem , que he a cabeça , cof
tumáo ſer bem recebidos . Não tem o homem ou
tro motivo , para fazer dos Medicos tanta eſtima
ção , ſenão mecerſelhe na cabeça, que a Medicina
de velho o farà mancebo , de enfermo fadio , de
cego lynce , e de fraco valente . Com a famoſa
Chryfopeia não ha duvida , que podem os Medicos
curar a Phineo , como com ella remedeou Medea
a Eſon ; porque ſó a Pedra Philofophal he a Univer
ſal Medicina , que pode reſtaurar forças perdidas ,
emendar cegueiras , vencer enfermidades, e reno
var velhices. Porém em quanto os Medicos não
deſcobrem a Ilha de Colchos nem conquiſtao
aquella Univerſal Medicina , ou o Vellocino deOuro ;
compadecidos de Phineo , em lugar deſte remedio,
lhe daõ hum faudavel , e leguriſſimo conſelho. El
tà o homem , ſendo tao grande peſſoa como Phi.
nco , muito doente , e opprimidiflimo com grandes
enfermidades, que depois de o privar da viſta , lhe
querem tirar a vida ; e ſe por huma parte os affili
gem as moleſtias , por outra o perleguem as Har
pias , que faó os Medicos idiocas , e comedores, que
andao voando de huma terra para outra , os quaes
por terem bocas de fome , nunca ſe fartað , e como
aves da rapina , cudo aquillo em que poem a maó,
leva ) nas unhas ; porque Harpia ſe deriva da pa
lavra Grega Arpazein , que quer dizer Roubar ; e
ques nág
Sobre aPedraPhilofophal. Drálog.I.cap.unic.5.103
&

naó ha duvida , que eſtes idiotas Eſtrangeirs faó


huns Ladrões oubadores : receicao , pa receber:
tomaó o pulſo , para tomar : evacuao a vea da ar
ca , para ſe encher : fazem juntas , para ajuntar ; e
atè para tirar , tiráo novas indicações ; porque ain
daque ao doente com tantos remedios ſucceda mal ,
como elles os vendem , fempre ficão bem . Cada ac
cidente , que ſobrevem ao enfermo, he novofymp
thoma para roubo do doente , e utilidade do Medi
ÇO ; porque tanco ganha , e leva o Medico , quanto
dà , e gaſta o enfermo. E para que Phineo conheça,
e evite eſtes gaſtos , e aquelles ganhos, ou as utili
faz a
dades de qualquer Medico , e os roubos que
todo o doente lhe perguntáo os Argonautas :

Toma o Medico Aëllo o regallo , e o dinheiro, ſem


curar a V. M. da fraqueza ? E 'refponde Phinco :
Sim toma : Toma o Medico Ocyperé o premio , e
o prezente , ſem remedear a enfermidade ? Sim to
• ma : Tuma o Medico Celleno a joya , e o ſeu or

denado , naõ vendo V. M. o que lhe dà, por eſtar


cada vez mais cego ? Sim toma. Pois , Senhor , nað
Seja cego , dizem a Phineo os Argonautas , jà que
não pode ver , o que faz, e o que lhe fazem , ouo
que lhe nao fazem , veja ao menos a ſua propria ce
gueira ; porque he a unica couſa que pode ver com
os olhos cegos , e fechados. Quanto menos vè por
eſtar cego , tanto melhor pòde ver que o naš curaó,

e o que experimentar nos achaques da viſta , lhe


ſuccederà tambem nas enfermidades do corpo ; por
que ſe o Medico lhe leva dinheiro , ou qualquer
outro premio , deixando no corpo a enfermidade ,
e nos olhos acegueira , he huma Harpia , que o rou
ba , e hum fim coma , que faz mais perigoza a ſua
doen
104 Ennæa, ou’Applicação do Entendimento ; )

doeną. Com eſte conſelho tað faydavel , e quaſi


taó efficaz como a Chryſopeia , para xterminar eſtes
perigoſos fint tomas, que ordinariamente ſobrevem
às enfermidades da velhice , abrem os Argonautas
os olhos a Phineo ; e porque jà vè o ſeu engano ,
não pode , nem quer ver na ſua preſença taes Har
pias ; porque o comeny, e não deixão comer os be
nemericos. Como os Argonautas não podem comer
com a perfeguiçaõ de cantas , e caes Harpias , mof
trão com razões taõ claras, e nuas como a verdade,
e tão agudas como eſpadas , que merecem caftiga
das com grande ſeveridade ; porém ellasmetem nef
tas occafioens a mão às azas , não para tirarem del
Las huma penna , e ſe defenderém com hama apo
logia; mas para voarem tão alto como as remonta
a preſumpçað , e fugirem com o corpo aos argu-:
mentos, os quaes ſempre as váo perſeguindo ; porn
que as palavras com que os animáo os arguentes,
como formadas do ar , parecem Zetheo , e Calais:
filhos do Vento . Sem embargo deſta perſeguição ,
ſempre as Harpias ſe conſerváo com o favor de al
gum Magnate , ao qual porque as ajuda a viver , po
dem chamar Juvans Pater , como a Jupiter, e não
fe envergonháo de amparar huns monſtros, que pa
recem mulheres , e não fað homens , aindaque tem
cara de gente , e roſto de donzellas ; porque na
realidade faõ cáes tão vorazes como Abutres , os
quaes lhe gratificão eſte beneficio , comendo -os em
vida com as receitas , e até com as certidões depois
da morte .
Chegando porèm à Ilha de Colchos, aonde os
Sabios como Jalað ſao eſtimados , e honrados dos
Monarchas como ElRey Etha , com o favor de Me
dea,
1

Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.S. 105

dea , que he a Arte Medica , alcançaõ facilonte o


§ ſegredo Herm tuo , com que emprende a con
. quiſta do Velločino, caminhando com que pelo meyos
j em que conſiſte a virtude , ſem mais armas , nem
outro inſtrumento , que a ſua penna , a qual he o
fceptro de marfim , que domina ſobre osEmperado
res , como diz Plinio : Medicina una artium Impera- Plin . lib . 24 ,
toribus quoque imperat ; porque com ella receitað a cap. 1 ,
materia do Lapis, e com a lua grande fabedoria do
mao o fogo , que he tað feroz como hum braviſlimo
Touro , fazendo - o trabalhar conforme elles querem ,
por muitas differenças de graos , que repreſentaó
varias figuras. Tanto que nos vaſos , aonde fazem
as ſuas fermentações, lançaõ as particulas mercu
riaes , que faõ os dentes do Dragað mortificado ,
ou morto , ſe excita huma violenta , e horrenda
evoluçao , donde ſe levantað corpuſculos aculea
dos , com figura de homens armados , que ferem
com as ſuas pontas , e inveſtem com os ſeus bicos
ao Medico Chymico , como he Jaſao. Mas lançan
dolhe elle por conſelho da ſua Arte Medica , ou
Efpola Medea , huma pedra , que he a Pedra Phi
lofophal , precipita ; e fuſpende logo a evoluçao ;
porque os eſpiculos le rompem , e quebraó , e fi
cao totalmente mortos todos os corpuſculos, que
pareciaõ ' homens armados. Paſſando o Médico
adiante com a ſciencia , ou encantos da ſua Medea ,
que he a Medicina , fixa o Mercurio vivo , que
he o Dragao vigilante , de tantas virtudes , e pro
priedades, como publica a experiencia , com tan
tas ordens de dentes , e multidaó de linguas , quan
tas faõ as ſuas melhores preparações , o qualdepois

de encantado , e adormecido pelo ſegredo de Me


dea ,
106 enned, on Applicaçao do Entendimennto,

dea , rixa colher a Jafa6 o Vellocine , e os fructos


de Ourom Arvore da ſciencia , para ſer tambem
Arvore da vida , porque he huma Aurea Medicina .
Rodogin.lib. Aflim explica depois de Celio Rodogino , efta , ' e '
7.cap.2 . outras allegorias o doutiſſimoMedico Daniel Sen
nerco : Proxima antiquitate eſt expeditio Argonauti
ca , quam quidem pro Chymia allegare velle , nugas ef
ſe indignas , quarum tantum mentio fiat , cenſet Eraſ
tus. Verum non folum Chymici, fed & alij Scriptores ,
Sennert . loc. eam de Chymia explicant. Refert enim Šuidas , Au
cit. cap. 3: Ş. reum Vellus, quod Jaſon , da Argonautæ , Pontico
Proxima fol.
mari in Colchiden profečti,unàcum Medea Regis Æl.
185.
tæ filia rapuerint , non fuiffe ejuſmodi , quale Poete
fabulantur , fed librum in membranis ſcriptum , qui
continebat artem , quâ Aurum fieri pofſit ... Et fi verò
nonnulli Šuide contradicant , atque alij de pelle Aries
tis fabuloſi ,fuper quo fit vecta Helle Phryxiforor ,ex
ponant : alijde Phrala Aurea , in cujus médio ageus fue:
ritſculptus : alij Aureum Vellus ob charitatem : alig
ob colorem dictum putent : tamen valde abſurdum eſt
tot Heroas pro Arietis naturali pelle cujuſcunque etiam
coloris, vel pretij , aut aurea Phiala , aut re ſimili ,
tantam expeditionemſuſcepiſſe , & tanta periculafu
billle: Ea fabularum expoſitio magis commoda eft ; que
veritatt, live in rebus naturalibus , five in politicis
magis quadrat. Cum ergo do Medea , & Fafonis
vox Medicum fignificet , e Medea ſene&tutem paren
tis medicinâ Philoſophicâ depuliſſe dicatur ; ſi reliqua
etiam erdem rei commodè applicari poſſint , nulla cauſa
eft , cur Suida expoſitionem rejiciamus. Quadrant au
tem omnia aptiſſimè. Nam Draco ille vigil eft Mercu
rius , quem fopire difficilimum , huic Aurum , quod

Phaſis.19. Colchidem detulit, cuftodiendum traditur.


Matea
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.co 107

Materia iſta inéluditur Templo Martis , ideſt: Atha


nori ſive Fornici Philoſophorum ; cuſtoday.nt. Tax
ri ignem fpirantes, calor nimiradus adhibia
tus ; Draconis dentes, qui in exercitum evadunt , do
fe mutuis vulneribusconficiunt , eſt pugna materie van
fi fuo incluſa , donec ad unitatem redigatur. Ita tan
dem arte Medea Jafon Draconem fopit , id eft , vola
tile figit , do ex veneno utilem , aureamque medicinam
parit . Neſte meſmo ſentido explica o grande Pico
de Mirandula no lugar citado a jornada dos Argo
-nautas , affirmando , que eſtes Heroes foraố à filia
de Colchos na demanda de huma pelle de Carnei
ro , em que eſtava eſcrita a Arte aurifactoria, ain
da que Varro , e Eftrabo attribuem eſta derrota a
reſpeito de outras invenções , ou ſegredos de co
lher Ouro nos rios ; porèm Caliſthenes Olynthio,
diſcipulo , e parente de Ariſtoteles eſcreve , quie
as grandes riquezas de Atreo , e 'de Pelope forað
de metaes riquiſſimos , fabricados pelos di&tames
enigmaticamente eſcritos no Vellocino de Colchos.
Os Eſcritores antigos , que ſoubèrao iſto melhor
que os modernos , por viverem em idade mais pro
xima àquelles tempos , controvertem fomente ſe
era membrana , ou Vellocino aquelle myſterioſo lis
vro , em que eſtava eſcrito o ſegredo Hermetico ;
porque Charax , Apollonio , e Euſtathio, antiquiſe
ſimos Authores Gregos, affirmaó , que era membra
na ; mas os Eſcritores Tragicos , e Comicos , af
fim Gregos , como Latinos, de quem faz mençaó
Marco Tulio Cicero , diſſera ) , que era hum Cor ..
* deiro , a que Seneca chama Carneiro . De maneira ,
que os fabios daquelle tempo por varios , e elegan
tiflimos modos eſcrevèraó allegorica , e enigmaria
Oij Camese
108 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

camere da verdadeira Philofophia Hermetica , coo


mo a elimizou Hermes nos ſeus Hierogliphicos ; mas
he tal olegadagenticio , emyfterio , com que os
fabios Hermeticos fallað na Pedra Philofophal, que
fendo a Chryſopeia de Colchos verdade hiſtorica pa
ra os entendidos , ſempre para os ignorantes he
fabula .
Conſeguindo finalmente os Philofophos Chy
micos o Vellocino de Ouro , ou Medicina aurea : Aur
reamque Medicinam , fað muito eſtimados nos Pac
lacios dos Monarchas , como Etha , e comprimen
tados de toda a ſua Corte ; porèm como advertem ,
que todos os que celebrao as fuas acções , fallað
com o fingimento , dos que com maſcaras na cara
disfarçaõ a peſſoa , volcaó de Colchos para a ſua
patria, acompanhados da ſua Medea , ou Arte Me

dica , fugindo das honras fingidas , e das per


ſeguições verdadeiras , com que os Monarchas
como Etha , os deſejao ter nos ſeus Palacios
porque naquella noite , em que eſtao mais deſ

cuidados , com algum divertimento , os deixaó , .


ſe retirao ; e para que de nenhum modo os ſigað;
Juſpendem os paſſos com que os procuraő , pondo
lhes diante dos olhos os ſucceſſos deſgraçados, e
funeſtos , como a morte de Abfyrto , aqual repre
ſentað ſó para Ihes fugirem . Mas chegando a ſua
caſa , e achando na cama os velhos pays , decrepi
tos e entrevados , como Eſon , diminuindo- lhes
naõ os annos , ſenaó os achaques, com a ſua Pedra
Philofophal de velhos os transformaõ em mancebos ,
por ſer eſte o principal effeito da Chriſopeia , a qual
por obrar caes maravilhas , he tao perſeguida, que
os Medicos que a poſſuem , nao uſao della ſenao
em
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.2.cap.iınic. Se . 109

em ſua caſa , occultandoa atè aos ſeus criads, pa


rentes , hente a
deſcobrem , para nað revela Similar do com que
ſe prepara , perigrinao ſempre pelo Mundo , como
Medea , Democrito, e Paracello , atè deſapparecerem
aos olhos dos ſeus perſeguidores , primeiro na vida,
e depois na morte , ſepulcando comſigo o myſterio,
como fez tambem Hermes à ſua Fabula Smaragdina,
para nað fer jà mais viſto , nem deſcuberto , ſenaó
por alguma prudentiſſima peſſoa , como Sara , e por
iſſo fica eſte arcano reputado no Mundo por fa
bulofo .

ENODIO . He grande , mas boa eſſa hiſtoria


dos Argonautas; e por ſer tao antiga , e myfterio
fa a ſua allegoria , fundou nella a Ordem Militar
dos Cavalleiros do Tuſao Philippe III..Conde de
Flandes, e Duque de Borgonha , cognominado o
Bom , no dia do ſeu recebimento com a Sereniſſi
ma Princeza Dona Iſabel, filha do Auguftiflimo Se
nhor D. Joaó I. Rey de Portugal ; e nao pode dei
xar de ter algum myfterio eſta Inſignia do Vello
cino de Ouro pofta publicamente em ſtao grande dia
ſobre o peito dos mayores Senhores da Europa.
ENODATO . Inſtitubio eſte Principe a Or
dem Militar do Tuſað no anno de 1429. na Cidade
de Bruges da Provincia de Flandes , para com eſta
honra animar os Cavalheros a expor generofamente a
vida em defenſa da Igreja Catholica , à imitaçaõ dos
Argonautas, que tambem arriſcàrab a vida na Con
quiſta do Vello fatal , ou Vellocino de Ouro. Tra.
zem eſtes Senhores huma grande cadea em hum col
lar de aneis , entreſachados , ou alternados com
pederneiras , que lançað fogo . Era eſtas pedernei
ras
110 Ennea , 011 Applicação do Entendimento ,

ras ase Armas dos Duques deBorgonha, e nas chant


mas , quadellas ſahem , ſe ſignifica o valor , e ovi
gor , com que os alleiros haó de inveſtir o ini
migo ; porque tem eſte mote por empreza : Ante
ferit , quam flamma micet. Do collar pende hum
Carneiro ſemelhante àquelle , do qual trouxe Ja
fað o Vellocino de Colchos. Os Reys Catholicos
de Heſpanha pelo direito , que tem ao Ducado de
Borgonha, faó os grandes Meſtres deſta Ordem ,
chamada dos Latinos : Equitum velleris aurei Ordo;
como ſe diſſeraó Ordem do Vellocino de Ouro, a quem
os Grammaticos chama) Vellus aureum ; porèm ſe
vòz bem advertis na Inſignia deſta Ordem , achareis
pedras , fogo , e o Vellocino, ou Carneiro de Ou
ro, e juntamente grande quantidade de Ouro no
collar , e na cadea ; porque as pedras, ſymbolos
da Pedra Philofophal, com o fogo , e com o Vel
locino , fazem , e multiplicaõ ö Ouro ; e com
eſta Inſignia poſta publicamente ſobre peitos caố
nobres , quiz moſtrar Philippe ao Mundo , que
era muito verdadeira hiſtoria a imaginada faa
bula dos Argonautas ; porque na inſtituiçaõ deſta
Bluteau Vo- Ordem fez , como diz Bluteau , honrada memoria
cabul . Port. e de hum myſterio da Chymica , ou Chryſopeia. Na
Latin. tom.8 . opiniao de alguns Eſcritores inſtiruhio o Duque de
verbo Vello Borgonha a Ordem do Tuſaó , cuja inſignia he hu
fol. 308 .
ma pelle de Carneiro com ſua láa , em memoria
ſegundo refere o melmo Author , de huma notavel
ganancia , que tivera o Duque no commercio das
láas; porém a magnificencia com que a Sereniſſima
Senhora Dona Iſabel ſe preparou para calar com
cao grande Principe , lembraria a eſte Senhora
multiplicaçao do Ouro , que antigamente fazia Ja
lao
Sobrea PedraPbiloſophal.Dialog.I.cap.unic .S.& III

ſao com o Vellocino, que devia à Princeza Redea ,


porque a grandeza , e liberalidade com que osMó
narchas Portuguezes coſtumao dotar e preparar
ſuas filhas quando as caſaõ com Principes Eſtran
geiros , naó parece effeito da opulencia dos Poto .
fis , e dos ſeus riquiſimos theſouros , ſena) do Vela
locino , que os Argonautas Luſitanos deſcobriraó ,
e conquiſtarao na Alia , e America. Alim o vimos
agora (por naõ referir exemplos antigos ) no feli
ciſſimo deſpolorio da Sereniſſima, e Auguſtiſlima
Princeza a Senhora Dona Maria , filha primogenita
do muito Alco , e muito Poderoſo , e ſempre Invi
eto , e Magnifico Senhor D. JOAM V. Auguftif
ſimo Rey de Portugal, com o Sereniſlimo Senhor
D. Fernando , Principe das Aſturias , com quem
paſſou deſte Reyno ao de Caſtella todo o Ouro
da America, e toda a pedraria da Aſia ; e nao fal
lando no Real apparato , e pompoſiſlimo luzimento
das Mageftades , e Altezas Luſitanas, que ſe aviſ ..
tàraó com as Altezas , e Mageftades Catholicas ,
para fazerem o Real troco de Auguſtiſſimas Prin
cezas; porque nao cabe na expreſſao da lingua mais
eloquente a narração da pompa, e magnificencia,que
excedeo os limites da Real grandeza : he certo ,
que nella occaſiaõ vio Heſpanha nas margens do rio
Caya os mayores effeitos da Chryſopeia ; porque
admirou os Portuguezes , que ſempre para ella fo
raõ naquelle lugar Soldados de ferro , transforma
dos em Eſtatuas de Ouro , e convertidos em Ca
vallos de Ouros , os brutos , que ſempre temeo co
mo Cavallos de eſpadas.

ENODIO . A Philofophia Hermetica, confor


me vos cendes provado , naſceo no Egypto , donde
paſſou
112 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

paſſou para a Grecia ; e ſuccedendo no Imperio


aos ſabios regos os ambicioſos Romanos , com
mayor razao ucviau eltes emprender o eſtudo da
Chryſopera , do que a conquiſta do Mundo ; por
que com o Lapis mais ricos , e poderoſos feriaa
pelas letras, do que forað pelas armas, por ſer a
Pedra ( Lapis) arma caó forte, e invencivel, que der
ruba por terra Gigantes deferro , para dar victorias
a Saul por máos do Paſtor David , e arruina Eſtatuas
de Ouro , à viſta de Nabuco , e com ella os Im
perios de todo o Mundo , entrando tambem nef
ta cataſtrophe o Imperio Romano , conforme le
mos em Daniel ; e como nos Romanos Hiſtoria
dores nað acho noticia da Chroſopela , infiro , que
tambem elles a nao acharaó entre os Gregos.

S. IX .

Da Chryſopeia dos Romanos , Arabes , e de outras


Nações do Mundo, provada com authoridade dos
ſeus Hiſtoriadores , Medicos , Philoſophos ,
Juriſconſultos, e Theologos.

ENO DATO . Inda que os Romanos naã


averiguaraó , nem deſco
A
brirao os ſegredos , que eſtavað tað occulcos entre
os Gregos , como eſtiveraó eſcondidos entre os
Egypcios : nað ſe pòde negar , que tiveraõ alguma
luz , ou noticia da Chryſopeia ; porque de Cayo
Caligula Emperador dos Romanos affirma Plinio,
que fizera excellente Ouro com eſta Arte Aurifa
Etoria ; porém como de grande quantidade de Ou
ropimenta tirou ſó quatorze libras de Ouro , que
nao
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog. I.cap.unic.8 .n. 113
sic dað ſatisfizèra
tro algum ſua avareza
o a ſucceſ
de ſeus , neminua
ſores cont elle ,rem ou
2 ope
etiam una ra- C. Plin . Na
raçað daChryfopeia : Auri fairentury
tio ex auripigmento: invitaverat que fpes Caium Prin- tural. Hiſtor.
cipem avidiſſimum auri , quamobrem juffit excaqui lib . 33.cap.4.
. magnum pondus : & planè fecit aurum excellens, fed num . 10. fol.
ita parviponderis , ut detrimentum ſentiret , illud 580.
. propter avaritiam expertus', quanquam auripigmenti
Libre XIIII. permutarentur , nec poſtea tentatum ab
ullo eſt. Era Caligula hum bruto feroz , ſem enten
dimento , nem juizo ; porque com a bebida de hum
Philtro o fez Cefonia fua mulher louco , e furioſo.
Sendo alto , e corpulento , tinha o corpo disforme,
é o roſto muito feyo ; e prezava-ſe tanto de cauſar
terror com a ſua viſta , que no eſpelho eſtudava a
poftura, com que ficava de mais horrivel aſpecto.
Foy o primeiro homem , que aceitou entre varios
epithecos, que lhe chamaſſem Senhor , titulo , que
Tiberio tinha recuſado com modeſtia . Entre outras
loucuras intentou fazer -te Deos ; e nas Eſtatuas de
Jupiter, e de outros Numes Gentilicos , que ſegun
do Plinio , tinhao cabeças poſtiças , mandava pôr
7
huma , que ſe pareceffe com a ſua , e ſeria melhor
fer a ſua propria , cortada do ſeu peſcoço , e poſta
ſobre qualquer daquelles troncos não ſó por de
fejar ,, que o Povo Romano tiveſſe hum ſó pelcof
‫را‬
ſo para o degollar com hum ſó golpe ; mas por
que era tað grande a ſua loucura , quemandou edi
ficar para ſi Templos , em que collocou huma El

tatua , que o repreſentava , a qual todos os dias


apparecia por induſtria de Caligula veſtida com a
meſma gala , qué trazia o Emperador , e tambem
por ordem ſua lhe faziao facrificios os Sacerdotes.
P Namo
114 mnæa , ou Applicação do Entendimento ,

Namo vaaLua, Como hum Galan a húa Dama.Con .


verſava de Jupiter ao ouvido , e fingia que lhe
reſpondia eng applicando o duvido à bocą
de Jupiter , que ſem eſta cautela guardaria ſegre.
do , como eſtatua morta , e muda. Com eſte bom .
entendimento murmurava de Seneca , e ultrajava
Homero , Virgilio , e Tito Livio ; e ſendo tao pro
digo , como fatuo , era tað avarento , como doudo ;
porque aos convidados mandava offerecer paó,
fruta , e outros manjares de Ouro fino ; e ao mel
mo tempo lançava a todos os vaſſallos , e a todos
os officios , e empregos exorbitantes tributos , em
que entravaš os pleitos, mulheres publicas , e ma
riolas; porque das cargas de huns, e dos encargos
de outros tirava dinheiro , ſobre que ſe deitava com
grande contentamento . E à viſta deſta a vareza nao
me admira , que o nað ſatisfizeſſem quatorze libras
de Ouro , que fez com a primeira operaçao da Chrya
Sopeia , ſendo tað fino , e excellente : Fecit aurum
e
excellens , ſenaộ que ſendo hum louco furioſo
ſem juizo , tiveſſe curioſidade para mandar traba
lhar em huma Arte , a qual deſprezao os neſcios ,
Div . Albert. como diz Santo Alberto Magno : Stulti enim eam
. defpiciunt , e ſó eſtimaš os Monarchas de gran
Magn. Libel
de Alchimia de entendimento ; e porque eſta nobre potencia da
no
in præfact. g . alma nao exercitava as ſuas funções racionaes
Cum . fol.i. io
Imper de quaſi todos os ſucceſſores de Caligula ,
nenhum daquelles Emperadores tentou , inquirio ,
nem experimentou , o que podia fazer a Pedra Phi
fe
lofophal: Nec poftea tentatum ab ullo eft ; porque
elles tiverað juizo , vendo que ſe transformarao qua
torze libras de Ouropimenta em excellentiſlimo
Ouro : Quamquam auripigmenti Libre XIIII, per
muta
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.$ . 115

mutarentur ; haviaó de continuar eſta operaçao ,


atè tirarem utilidade , para ſatisfazer a ambiçaõ ,
que foy o unito detrimentos que ella ſentio a
grande avareza de Caligula : Ut detrimentum fen
3 tiret , illud propter avaritiam expertus. De maneira,
que ſe naó fora raó grande efta avareza , nað ſe
sia fenſivel o detrimento ; porque todo o detri
mento deſta transformação eſteve naš da parte do
Ouro , ſenão do avarento : Illuid propter avaritiam
expertus. Se Caligula nað fora táo ambicioſo , com
eſta Chryſopeia ſe faria muito rico ; porque como
diſſe Epicuro , não eſtà o ſegredo da Pedra Philo
Sophal em accreſcentar a riqueza , ſenão em dimi
nuir a cubiça : Non in augendo opes , ſed minuendo Epicuro re
cupiditates. Com eſta maxima de Epicuro acharia , ferent. Stob.
Nero mais ricos os ſeus erarios , do que com o de- apud. P.Dre
xel. Tom . 4 .
fejado theſouro da Rainha Dido , mas porque era
cap.5 . de Sa.
hum louco ambicioſo , zombou a fortuna de Nero, lom .s.1. fol.

como diz Tacito: Illufit dehinc Neroni fortuna per va- 871.
nitatem ipfius. Tinha fonhado Cefelio Baſſo , Car
Tacit . Annal.
thaginez de entendimento confuſo, e apprehenſivo, lib . 16.
que em huma fua herdade havia hum riquiſſimo
theſouro , ſepultado em huma profunda cova , o
qual era ſem duvida o erario da Rainha Dido ; e
vindo a Roma , repreſentou a Nero eſta grande uti
lidade em audiencia publica . Divulgou -ſe , e cele
brou - ſe logo em Roma com Poemas , e Panegyri
cos a felicidade do Emperador , o qual era o mayor
pregoeiro da ſua fonhada ventura. Sem mais ave
riguação mandou logo buſcar aquellas riquezas em
huma eſquadra de Galeras ; e neſta expedição , e
em outras publicas neceſſidades , gaſtou prodiga
mente o que tinha nos ſeus thelouros ; e ſobre a
Pij con
116 Ennea , ou Applicação do Entendimento,

conſign cão da riqueza ſonhada, empreſtarão a Ne


ro o muito inheiro que pedia , de tal forte , que
a eſperança Vis uds Tuas particulares riquezas, foy
huma das mayores cauſas da pobreza publica , em
que então ſe vio a Corte Romana ; porque o che..
fouro , e a cova cudo foy ſonho. E porque a Nes
ro fuccedeo tão mal com o thelouro de Dido , pro
mercido no ſonho de Ceſelio , nem elle , nem outro
algum dos Emperadores , que lhe ſuccedèrão , imi

tàrão o exemplo de Caligula ; porque como ig .


norantes , não fizerão a eſtimação , que merecia o
myſterioſo ſonho dos Adeptos.
Mas o que deſprezarão antigamente os Empe
radores de Roma , eſtimão hoje os Doges da Re
publica de Veneza ; porque poſſuem os Venezia
nos àlem do ſeu cão celebrado cheſouro , outro mui
to mais rico , e precioſo na Chryſopeia , como com
as vozes da Fama publica o douco Medico Gabriei
Clauder.tract Claudero : Inveterata eft apud plures opinio Sereniſ
de Tinct.uni-fimam Rempublicam Venetam calluere , & pofſidere
verſ.n. VIII . Chryſopeiam ; nem a Sereniſſima Republica Vene
ziana poderia ſuſtentar a guerra contra o Turco , e
fazer-le tað reſpeitada entre os Monarchas , e Prín
cepes do Mundo , fe pelas ſuas ruas naõ corrèrao
juntamente as agoas do mar , e as do rio Pactolo ,
tao celebrado dos Poetas pelas ſuas areas de Ou
ro . Nao quero dizer, que o Pactolo , rio da Lydia
na Aſia menor , banha a Cidade de Veneza , como .
a Sardis , antiga Cidade da meſma Lydia , donde
ſe vem meter no rio Hermes ; mas que de Hermes
vem o Pactolo , que em Veneza nao tem ſó areas
fenao tambem correntes de Ouro. Por cer areas de

Ouro chama Plinio Hiſtoriador Chryſorrhoas ao Pa


Etolo
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.Si r17

& olo da Lydia ; e Chryſopeia chamo eu acte adolo


de Veneza , por ter correntes , e areasytOuro .
ENODIO. Sendo Hermes a fonte donde core?
re Ouro potavel para o theſouro de Veneza , tam
bem nella podem beber eſte precioſo licor todas as
Nações do Mundo ; porque a doutrina deſte Phis
loſopho he taó publica , como a agoa do rio do
meſmo nome ; e ſendo naturalmente mais infofri
vel a ſede, do que a fome; obrigando aos homens
a fome do Ouro a commetter os mayores exceſſos:
Quid non mortalia pectora cogis auri Jacra fames : he
certo , que a ſede do Ouro lhe farà obrar mayores
temeridades; e com tudo vejo , que bebem , e goſ
taó mais homeas do licor da Fonte Arcada , do que

do Ouro potavel do rio Hermes ; porque nað he


taó univerſal entre as Nações do Mundo a Chry.
Sopeia , como o vinho.
ENODATÓ. Bem poderá ſer , que por bebes
rem tanto vinho , nao poſlao os homens provar
das agoas do rio Hermes ; porque nao hao de uſar
de muita potagem os Hermeticos, que quizerem fa
zer a Chryſopeia , como na prefaçaõ ao livrinho da
Alchimia eſcreveo Santo Alberto Magno : Vidi doo
alios bonum principium habentes, fed propter nimiam
potationem , alias vanitates opus facere non vale
bant. E a razao diſto he , porque a nimia bebida
nað ſó he contraria da obra , mas fe he de vinho,
perturba o entendimento , e nao pode o juizo per
turbado entender , ainda que ouça , nem ver, ain
da que veja a correnre do rio Hermes. He eſte rio

myſterioſo , como o rio Alpheo , que humas vezes


caminha deſcuberto , e outras fe occulca por de

baixo da terra , e correndo ſempre , paſſa do Pe


lopo
118, næd, on Applicação doEntendimento,

loponel da Grecia atraveſſando o mar, para fe unir


com as agents de Arethuſa , Fonte de Sicilia , em
que atransformou a Deoſa Diana , quando era
Nympha de Elide ; e deſte modo diſcorre Hermes
na lua Philoſophia, ora deſcuberto , ora occulto ,
paraque o vejão , e não vejáo , e ouvindo -o tambem ,
o não entendão , conforme diſſe de ſi meſmo como
Hermetico Santo Alberto Magno : Ego minimus
Philoſophorum intendo fcribere focijs , & amicis meis
veram artem , levem & infallibilem : ita tamen ut.
videntes non videant ; & audientes non intelligant ;
uſando deſta induſtria para paſſar correndo ſempre
o mar deſte Mundo , e unirſe ſó com o Philoſopho,
cujo entendimento ſeja fonte de agoa de clara , e
pura doutrina , o qual ſaiba como Arethuſa por ex
periencia propria , que couſa ſao transformações,
e não ſeja copo ,
‫ و‬ou vaſo de vinho com vario , e
temulento diſcurſo , que ſó entenda por beber def
te licor com grande exceſſo : Propter nimiam pota
tionem , que todas as converſões da Arte magna
1aó como as transformações fabuloſas.
Hum deſtes entendidos foy o famoſo Almar
çor , o qual, como refere Albufarajo , Hiſtoriador
Arabico , mandou ajuntar na ſua Bibliocheca , e
traduzir, na ſua lingua as Obras dos Philoſophos
Chaldeos, Egypcios, Gregos, e Latinos, por lhes
conftar, que nellas le podia deſcobrir mais Ouro ,
do que nas minas de todo o Oriente. Neſtes obras
o deſcobrio com os ſeus eſtudos o grande Geber,
Rey dos Arabes ; e neſta fonte bebèraó a ſua dou-,
trina muitos Philoſophos da Arabia . Todas eſtas
obras ajuntou Arisleo , divulgandoas depois da ſua
collecçaõ com o titulo de Turba Philoſophorum , em
que
Sobre a PedraPhiloſophal.Didog.I.cap.unic.9.5 . 119

que ſe achao com admiraçao de todos os byxbios os


verdadeiros principios , e os mais famuos funda:
mentos deſta utiliſlima ſciencia ; porque Bernardo,
Conde de . Treveris , confeffa , que depois de tra
balhar inutilmente na Obra grande , paſſados mui:
tos annos , deſcobrio hum riquiflimo cheſouro , e
hum remedio 'univerſaliſſimo , caminhando pela
verdadeira eſtrada , que lhe moſtràra Parmenides
na Turba ; porque na Chryſopeia tinha hum antido
to univerſal para evitar doenças, curar enfermida
des , dilatar as vidas , e transformar em Prata , e
Ouro todos os metáes ; e como entre os Arabes
era muito fabida eſta Philoſophia , e bem practicada
eſta Arte ; e com os Mouros pafſáraõ alguns Herme
ticos a Heſpanha , no tempo em que a conquiſtàrab ,
e dominàrão os Mahometanos , dilatando muitos
deſtes Philoſophos as vidas com a Chryſopeia, e ajun
tando com ella as riquezas extraordinarias , que
dava) a outras peſſoas por ſua morte , derao occa
fiao ao antigo rumor , è fama conſtante dos Mous
ros encantados. Iſto de prova com o que fobre ef
ta.materia deixàraó eſcrito Geber , Rhaſis, e Avi
cena , os quaes affirmað , que entre os Soldados
Sarracenos andavað muitos Philofophos , e Medicos
Adeptos, que obrava ) com o Lapis eſtupendas ma
ravilhas , as quaes attribuhiáo os homens fynceros
daquelle tempo aos encantos daArte Mágica , fen
do verdadeiros , e naturaes effeitos da Arte Magna ;
porque não vemos hoje , que os Magicos vivão
muito tempo , nem poſluað muito dinheiro , tendo
os Hermeticos grandes theſouros , e vivendo mui
tos feculos, conforme crè o vulgo dos Mouros en
cantados. ::
ENO
120 Annæa , oi. Applicação do Entendimento ,

EN ODIO . Sempre me pareceo muito difficul


tolo , e que impoſſivel , que a Pedra Philofophal
cure repentin ... todas as doenças, preſerve de
todas as enfermidades , transforme em Prata , e
Ouro todos os metaes , e prolonge de tal forte as
vidas , que converta os velhos decrepitos em flo
ridos mancebos ; porque nem dos Mouros encan .
tados publica tão raro prodigio a neſcia credulida ,

de do povo.
ENODATO . Para fallar neſta materia com
mayor fundamento , e confiança , quero primeiro
repetir a diffiniçao , que o Padre Kircker eſcreveo
da Pedra Philofophal : LapusPhilofophorum , diz elle,
definitur ab Alchymicis , magnum in arte myſterium
& univerſalis medicina , quæ non modo corpus huma
num validum in ſuo vigore confervat , lafum que prif
tine ſanitati reſtituit , ſed etiam metalla imperfecta de
purando , decoquendo , nativum calorem miniftrando ad
ſummum finem , quem natura intendit , brevi tempo
ris fpatio in purum aurum , argentumque tranſmutat,
. He pois a Pedra Philoſo
in infinitum multiplicabile
phal aquelle grande Myſterio , ou ſegredo da Arte
Chymica, o qual como Univerſal medicina ,não fó
conſerva o corpo humano com perfeita faude, e
grande vigor, e o reſtitue à ſua antiga faude quan
do eſtà doente ; mas tambem pormeyo da depura
çaõ , e coſimento , tranſmuta em Prata, e Ouro in
finitamente multiplicavel a qualquer metal imper
feito. Comparando Santo Alberto Magno as impu
ridades dos métaes com as enfermidades dos ho
mens , diz , que aflim como da materia feminal pu
ra por corrupçao da madre materna , ſe gera hum
menino enfermo, e leproſo ; tambem por corrupçao
da
Sobrea Pedra Pahilofophal.Dialog .I.cap.unic.g. 121

da terra ſe produz o metal impuro , e comsiepro


fo , aindaque ſeja purillima a materia formal da fua
producçaõ ; por iſſo Ariſtoteles chama ao chumbo
Ouro leproſo : Plıumbum eſt aurum leprofum ; e def
ta lepra, ou impuridade , como de qualquer doen
ça , ſe pòdem curar os metaes com as ſuas medici
nas , que por meyo da Arte , conforme diſcorre Al
berto , os purificáo , e livrão da corrupçaõ : Unde Div. Albert.
nullo modo dubitandum eft, quin metalla corrupta poſ- Magn . Tom .
fint reduci ad fanitatem per medicinas fuas . Éta 21. libel.de
Alckim . fol.
doutrina admitre Miguel Eccmullero confeſſando
3
que a Pedra Philofophal he Medicina para abrir , e
purificar os metaes de todas as ſuas impuridades
morbificas , até os reſtituir a tao perfeita ſaude ,
que da idade de ferro paſſem para a idade de Ouro;
mas nega que a Chryſopeia ſeja antidoto, para con
ſervar a faude , e dilatar a vida dos homens , por
ſe ter obſervado , conforme notou Helmonte , que
nað vivem muito os Hermeticos , como ſe vio em
Paracelſo , que morreo aos quarenta e cinco annos
da ſua idade : Nam Lapis Philoſophicus eſt tantum Ettumuller.
Medicina ad metalla aperienda , eorumque imperfe- Tom . 3.Col
étionem morbofam corrigendam , & eadem ad perfe- leg.Pharm.in
Schræd. Mis
{tionis ſanitatem deducenda : unde falfum eft , quod
debeat etiam ad confervandum corpus adhiberi : & re- neralogiecap :
Etè dicit Helmontius, quod Profeſſores hujus Lapidis fol.257.
non ſint longævi, quod & indučtione exemplorum pro
bari poffet , ſicut etiam Paracelſus anno 45. ætatis
mortuus; mas como Eccumulero,e Helmonte nao tem
Outro fundamento para negarem , que a Chryſopeia
conſerve a faude , e dilace a vida humana , ſenaő

a morte de Paracelſo ; ſempre ſe deve ſeguir a opi


niaõ de todos os Hermeticos , que ſeguem o con
tra
122 Ennea, 011 Applicação do Entendimenntó ,

trario.b vaſtiſſimo Medico Daniel Sennerto, Mel


tre de toanos Philoſophos , Medicos , e Chymi
cos , tað longuelta de entender , que a Chryſopeia
cura ſó as enfermidades dos metaes , e nao as dos
homens, que ſegue com muitos Hermeticos ſer mais
efficaz a Pedra Philofophal para remediar as doen
Sennert. loc. ças dos corpos humanos , que as dos metalicos : Taa
fol . 181 . men nonnulli ſtatuunt , ſcopum præcipuum hujus artis
non eſſe auri !m conficere , fed fanitatem corporis human ,
conſervare, Lapidem que, quem appellant,Philoſophi
cum , non folum metalla imperfecta , fed & corpus hic
manum perficere , atque hunc finem potius , quàm auto
rificium Spectari. Nem obſta o exemplo da morte
anticipada de Paracelſo para ſe entender , que os
Hermeticos nað dilatað muitos annos a vida com a
Chryſopeia ; porque conſta certamente , que Paracel
ſo morreo com veneno, como diz Oſuvaldo Crolio ,
quelle derað os ſeusinimigos em occaſiaó , que elle
nao pode tomar por antidoro a ſua Pedra Philoſophal ;
e à viſta do que affirmão todos os Philoſophos , ſó
poderà ) negar eſtes effeitos do Lapis os homens,
que forem ignorantes ; porque conforme diz San
to Alberto Magno , nao tem eſta Philoſophia outros
contradictores, ſenað os que a naõ entendem , nem
conhecem as naturezas dos metaes : Volunt ergo qui
dam contradicere , & quamplures , do maximè illi ,
qui non intelligunt aliquid de arte , nec metallorum
naturas agnofcunt. Nað vos encandalizeis defla cen
fura , que nað faço contra os voſſos duvidoſos re
paros ; porque muito bem conheço , que ſe nað
fois Hermetico , delejais alcançar os myfterios da
noſſa Philofophia ; mas he juſto , fe diga iſto por
respeito de alguns idiotas , muito preſumidos do
ſeu
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.1.cap.unic..: 125
% feu entendimento , e ſummamente deſvanegdos da

tua ſabedoria , os quaes ſem.caudarer nada , pre


fumem faber tudo , imaginando sempre , que os
03 homens , que eſtudaõ muito , labem pouco , OU

os que eſtudaõ mais , ſabem menos .


ENODIO . Ainda que eu não creyo no en
canto dos Mouros , nem nas virtudes , que os Her
meticos attribuem ao Lapis , deſejo com iudo ſaber,
que effeicos obra , e o methodo com que ſe appli
ca , para ver ſe com a Chryſopeia podiaŭ viver os
Mouros encantados , e ſe podem os homens evitar
as doenças , curar as enfermidades , e dilatar por
muitos ſeculos a vida .

ENODATO . Se vós quereis faber as virtu


des do Lapis , vede a Gabriel Claudero , David Lag
neo , Libavio , Paracelſo , e a Bechero , os quaes
affirma ) com experiencia o effeito de preſervar de
moleſtias , conſervar a ſaude , e de curar todas as
doenças procedidas de qualquer cauſa , ou ſeja o
accido , ou o alkali preternaturalizados, como ef
creve Claudero : Noſtra vero tinctura modo extra
Claud. Tract.
ordinario operans, ſanat morbos omnes , quales quales de Tinct .

ý ſint, à quacunque etiam caufa, five ab alkali , live Univerf. n. 1 .


ab accido præternaturaliter ſé habente orto . Porèm s. Nomen .
ninguem deſcreve melhor , nem com mayor clare
za as virtudes da Chryſopeia , do que Arnoldo de
Villanova , cujas palavras tranſcreveo Richardo
Anglico no Capitulo XIV . do ſeu livrinho intitu

lado Correctorio, às quaes ajuntarey as que Mange


to trasladou da Tumba de Semiramis , que podereis
ver no Segundo Tomo da lua Bibliotheca Chymi
ca ; porque enſipað o methodo practico de appli
car o Lapis ; -mas para vos livrar deſſe trabalho , vo
Qij las
124 Ennæa ou Applicação do Entendimento ,

las que agora repetir: Ad omnem ægritudinem cum


juslibet gem is expellendam ; & nominanter has aſig
navit virtutes de jene facitjuvenem , á ſenem re
viviſcere facit naturam , conſervat ſamitatem , robo
rat infirmitatem , omnem corporis expellit ægritudi.
nem venenum declinat à corde , arterias humectat ;
lividam immunditiem à pulmone diſſolvit , vulnera .
tum conſolidat, ſanguinem mundificat , lapidem frana
git , contenta in ſpiritualibus purgat , ſi caput rheue
maticum eſt , purgat à fluxu , ſtomachum in calore nae
turali confortat.Et li agritudo fuerit unius menfis,
ſanat eam in uno die , vel hora : ſi agritudo fuerit
unius anni, ſanat eam in octo diebus : fi verò morbus
fuerit antiquus , longo tempore, eum alijs medicinis in
Curabilis, ſanat eum in dimidio menſe . O felix ſcientia
cum ſciente ! Quare non immerito hæc medicina ſuper
omnes alias medicinas eft quærenda, quia qui habet
eam , incomparabilem habet theſaurum , & in ſalubri
conſtellatione natuseft , in hoc fæculo dives, divitiis in
. Doſis ile
finitis fuper Reges, & Principes hujus fæculi
lius oji granum j ad y juxta atatem , da vires ægri
in hänftiilo vini calidi , vel cochleare' uno quintæ ef
fentiæ ejufdem diffoluta , ça tertio quoque die exhib
ta . In morbis externis , vulneribus, ulceribus cachoetz
cis, phagadenicis , fijiulis , gangrena , cancro, & c.
quotidie , vel alternis diebus granum unum exhibetur
in vmo. Pars vero externe affecta vino, in quo portio

sioſtri lapidis foluta fit, lavatur, vel fi neceſitas exi


gat per ſymphonem injicitur , ſuperpoſita plumbi lami
na , á ligatura conveniente. Com o Lapis , e com
eſte methodo qualquer homem poderà ſer taó gran
de Medico , como ſem a Chryfopeia foy Duarte de
Brito , famoſiſſimo Medico de Buarcos ; porque
Cura.
Sobre a PediaPhiloſophal.Dialog. I.cap.unic ... 12:5

curava tað felizmente aos enfermos com ciencia


Medica , como ſe obrara pradinios a Pedra

Philoſophal. Para ler Eſculapio , nað Ine faltava ſenaõ


reſuſcitar mortos , como a Hippolito ; e eſta he
a unica couſa , que nao pode tambem fazer a Chry
Sopeia ; mas conſervar a vida muitos ſeculos , fem
que ſeja neceſſario comer , beber , nem ainda reſ
pirar, como ſuccedia aos Mouros encantados , he
couſa tao antiga, que jà Empedocles , celebre Phi
lofopho Grego , deu a Pauſanias, ſegundo refere
Bluteau , ou The deſcobrio hum medicamento , com Bluteau $u
o qual podia huma peſſoa eſtar o eſpaço de trin- plement . ao
ta dias ſem aliniento , bebida, pulſo , nem reſpira- Vocab. Tom .
1. Verbo Apng
çað ; e nao podia ſer outro eſte ſegredo , ſenao a
fol.57:
Pedra Philoſophal, preparada com ſumma perfeiçao.
Agora conhecereis vos , que por ignorancia dos
Medicos não fez ſempre a Medicina naturaes mila
gres , e admiraveis prodigios ; por iſſo todo o def
velo dos Medicos he deſcobrir a Pedra Philofophal,
como eſcreve o meſmo Claudero na Bibliotheca

Chymica de Mangeto : Immediatè quidem hæc pre


cipuè competit Medicis, para com eſte remedio cura
rem todas as enfermidades , e occultarem as ſuas
grandes ignorancias. Porèm por mais que os Me
dicos ' as eſcondaõ , os feus erros as deſcobrem . He
certo , que Deos creou na terra os medicamentos :

Altiſſimus creavit de terra medicamenta ; e tambem Eccleſ.38.4.


he certo , que todas as couſas , que Deos creou , ſao
muito boas : Viditque Deus cuncta quæ fecerat , la Genef. 1.31 .
erant valdè bona : logo ſe os remedios naõ obraó
bem , não he por ſerem màos , porque ſao mais que
bons : Valdè bona he ſim , porque os Medicos nað
{ að bons , e alguns faõ peflimos.
ENO
126. Ennea , où Applicação doEntendimento ,
EKODIO . Senhor Enodato , aqui ninguem

nos ouveku mñ sreyo nos Medicos, nem nos


Chymicos ; porque de huns , e outros le pòde di
Tacit. lib. 1. zer , como dos Aſtrologos murmura Tacito : Genus
Hiſtor. bominum potentibus infidum , fperantibus fallax , quod

in civitate noſtra do vetabitur femper , di retinebitur;


e le vos quereis perſuadir-me, para que creya a ex
iſtencia do Lapis,
moſtray -me eſta verdade provada
com algum ſucceſſo natural , ou provay eſte myſte
rio Hermetico com outros Eſcritores , que ſe forem
deſintereſſados , e de grande authoridade, refolvo
me a ſeguir a Philoſophia de Hermes ; principal
mente ſe vir , que fað naturae; os effeitos do Lapis,
porque entað fica mais crivel , que poſſao os Chy
micos imitar a Natureza com a ſua Arte .
ENODATO . Nunca leſtesem Humero , Pli
nio , Galeno , Diodoro Siculo , Juliano Martyr , e
outros Eſcritores modernos , que a planta chama
da Nepenthes alegra a alma , deſterra a melancolia,
affugenta as moleſtias, remedea os deſgoſtos, ſen
do por eſte modo efficaciſlimo antidoto de todos
os contratempos ? Pois ſe huma planta tem tais
virtudes naturais como ſe pode duvidar na

Chryfopeia , ſendo compoſta de materia , que tem


Johan.Nihof.mayores virtudes ? Em prova deſta verdade vos
in deſcrip. Si- contarey huma notuvel hiſtoria. Como a Arte Man
nnæ fol. 295. gna voou pelo Mundo , tambem paſſou da Euro
Olear . in In . à China , como affirma ) Nihofio , Oleario , e
ра
tin. Perſic . Eraſmo Franciſco , aonde foy muito eſtimada dos
Eraſın.Franc
Ceſares daquelle Imperio. A hum deſtes Monar
in Exter . Art.
chas perſuadiraó os Hermeticos , que ſe tomaſſe o
& Mor. ſpec.
lib . 1. Hiftor. Lapis , ou bebeſſe ſempre por hum copo de Ouro
26. fol . 98. Chymico , nað havia de morrer, como ſuccede aos
outros
27 Sobre a PedraPhilofophal. Dralog.I.cap.inic.S . 127

que eſta he huma das principes virtus.es da Chry


fopeia , e com ella nao falta quem preſuma , como
eſcreve Beyerlinck , que os primeiros , e antiquif
fimos Patriarchas do Mundo dilataraõ muitos fecu

los a vida : Qui inter elias vires etiam vitæ propa . Beyerlinck.
gationem tribuunt , primos Patres illius beneficio lon- Theatr . Vitæ
gavos extitiſſe ſuſpicartur
. E por iſſo eſtes copos de Human . To
Ouro Chryſophılo eraõ muitos raros , e tað eftima- mo 2. Verb.
Chymia folh ,
dos entre os antigos Monarchas da Perſia , que tra 204.
zendo Efdras de Babylonia para Hieruſalem gran
de numero de vaſos de Ouro , e Prata , que ElRey
Artaxerxes , os Principes , e outros Magnates da
quelle Imperio offerecèrað para ſerviço do Tem
plo , ſó dous eraõ de hum metal optimo dos mef
mos quilates , eſplendor , e fermoſura do Ouro :
Vala æris fulgentis optımi duo , pulchra ut aurum . Efdr. lib .
Por couſa rara fazem os Hiſtoriadores mençaõ de cap . 8. v.25:
alguns deſtes vaſos , que ſe achàraó entre os co
pos de Ouro d'ElRey Dario , que do Ouro natu
ral ſe nað diſtinguiao ſenaõ pelo cheiro , confora
me por liçaõ de Ariſtoteles refere Daniel Sennerto :
Inter Dari pocula quædam fuiffe, quæ , niſi olfatus Sennert. loc.
judicio ab auro diftare non cognoſcerentur ; e nao hà cit.cap. 3. fol.
duvida , em que eſte accidente do cheiro he ver . 186 .
dadeira prova de ſerem eſtes copos de Dario feitos
de Ouro Hermetico ; porque Chriſtova Pariſienſe
referido por Beyerlinck affirma , que achando - ſe
hum
nos alicerſes , que ſe abrirao em Roma para
edificio , hum vaſo de vidro bem tapado , metido
dentro de outro de chumbo , que eſtiveraõ debai
xo da terra 884. annos , o Ouro Chymico, que ef
tava dentro encerrado , ao abrir da Redoma, paſ
mou
128 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

mou a todos os circunſtantes com hum cheiro laa


Beyerlinck. viſlimo: Edgerta tanta fuit odoris fragrantia ut quot
Theatr. Vitæ quot aderant , effecti ſintveluti ſtupidiC
. om eſtas ra
Human . To- zões , e experiencias fe animou o Emperador da
mo 2. Verb. China a viver tanto tempo , quanto o ſeu deſejo ,
Chymia fol.
e a Philoſophia Hermetica lhe promettia; e bebendo
205 :
em cada copo de agoa muitas eſperanças de fer im
mortal , no fim da vida o deſenganou amorte. Che
gado o tempo de pagar o tributo da natureza
chamou eſte Emperador o Conſelho de Eſtado
para determinar o que mandava fazer depois da
ſua morte . E como na vida tinha eſperado ſer im
mortal por beneficio da Chryfopeia, arguiraó os Con
ſelheiros a louca eſperança do ſeu Emperador, com
o deſengano , que jà todos conhecia) , e o meſmo
Monarcha confeſſava. Porém o Ceſar Hiaovo rel
pondeo àquella cenſura com a verdade: Senaõ fuy
immortal , diſſe , nao acabo ao menos como os outros
o aos Hermeticos viver mui
homens , porque dev
to , fem moleſtias , que he o mais que pode fazer
Clauder . loc. 2 arte Chymica : Per hanc hoc uniciim obtinu , ut
cit.n. XIII . S. canitiem hance meam obtinuerim , fine morborum in
Aleud . num . fultibus, & ab ægritudine præfervatus, artem enim
Alchymicam in hoc multum præftare , nullus dubito.
Immortalitatem autem conciliare cuidam neutiquam
valet. E iſto he verdadeiramente , o que os Herme
ticos cambem lhe prometteraõ ; porque nao lhe fe
guráraõ a immortalidade , ſenaó , que nao morre
ria como os outros homens ; e deſte modo ſe veri
ficou a ſua promeſa, por acabar Ceſar Hiaovo a
vida , depois de lograr boa faude , e em larga , ou
dilatada duraçaõ de annos , coula , que nao ſuccede

aos outros homens ; porque vivem pouco tempo ,


e pes
Sobre a PedráPhilofophal. Dialog.I.cap.unic.S.98 129

e padecem muitas enfermidades antes da morte.


ENODIO . Eu bem ley , que ainda ts Autho.
res mais eſcrupulofos , que negão ritanſinucaçao
dos metaes , concedem , que a Pedra Philoſophal
he huma univerſal medicina , como li ha pouco tem
po no grande Medico Quercetano : Aurum enim
Philoſophorum , feu Lapis , nihil aliud eft ,
quam quae
dam arte compilata medicina temperata. E atè u Pa
dre Athanaſio Kircker , acerrimo inimigo dos Her
meticos , ſe nega'os effeitos da Chryſopeia , em tranſ
mutar os meraes , e multiplicar o Ouro , e Prata ,
confeſſa ingenuamente , que Raymundo Lullio nao
fez outra couſa , ſenaó deſcrever debaixo da meta
phora de Cælum Philofophorum huma Panacea , que
cura todas as doenças, preſervando de todas as mo
leftias, e prolongando os annos da vida ; e como
eſte he tambem hum dos effeitos , que os Herme
ticos attribuem à ſua Pedra Philofophal , e Kircker
as contradiz a reſpeito da tranſmutação , e mul
tiplicaçao do Ouro , e Prata ; fe elles ſe enganao
nas multiplicações , e tranſmutações, fica cambem
muito duvidoſa a verdade a reſpeito da Panacea ;
porque conforme os Philoſophos , e Juriſconſul
tos , quem em tudo nað he verdadeiro , ſempre le
repuca mentiroſo. E neſtes termos ſe vos me naó
convenceres com outra Philoſophia , e conforme a
direito , provando a tranſmutaçao dos mecaes com
os ſeus Textos , ſempre duvidarey deſta univerlal
medicina.
ENODATO . Nað podia a voſſa incredulis
dade appellar para Tribunais mais contencioſos ,
do que faó os da Juriſprudencia , e da Philoſophia;
porque entre os Philoſophos nao tem fim -as opi
R niões ,
130 ) Ennea, ou Applicação do Entendimento ,

niões , e entre os Juriſconſultos nao acabaõ as con


tendas ; mas como quereis , que vos convença com
Juriſconſultos , ernilolophos, ouvi as ſuas autho .
ridades : entre os Gregos Suidas Philoſopho e
Hiſtoriador de grande nome, fallando da Chymica ,
diz , que he huma Arte com que ſe faz Ouro , e
Prata : Chemia eft auri , d argenti confectio ; e ex

plicando a jornada de Jalaõ pelo Mar Pontico à


İlha de Colchos, para com os Argonautas conquiſe
tar o Vellocino de Ouro , affirma , que o Vellocino
era hum livro Chymico , ou Hermetico, que enſina
va a fazer a Chryſopeia : Vellus aureum , quod Ja
fon per Mare Ponticum cum Argonautis in Colchidem
trajiciens accepit , & Medeam Æetæ Regis filiam :
hoc autem non ut poeticè dicitur , ſed liber eratin pelo
libus conscriptus , continens quomodo per Chemiam au
rum conficeretur ; e paſſando dos Gregos para os
Philofophos Latinos, e deixando a grande autho
ridade de Plinio , que jà fica referida , notay humas
palavras de Cardano, fallando da tranſmutaçao dos
Cardano de metaes : Quod tamen permutari metalla poſſunt , mul
ſubtil, lib. 6. tis vifum eft , ob experimentum aris jain ſuperius ad
ductum : quod videtur affecutus Pharmacopola ille
Treviſanus , qui coram Principe, & fapientıbus Reis
publica Venetæ , argentum vivum inaurum commu
tavit . Aindaque tenho repetido huma famoſa au
thoridade do grande Philofopho , e Medico Mi
guel Etcumullero , em que enſina a preparaçao , e
confeſſa a operaçao da Chryſopeia , nao quero ago
ra deixar em ſilencio a concluſao , que no feculo
paſſado defendeo publicamente na Univerſidade de
Leipſic , a qual ainda hoje ſe conſerva por eſte mo
do nas ſuas obras: Epimetron unicum de Chryſopeia ,
Argyropeia , vulgo De
Sobre aPedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unic.S.97 131

Detranſmutatione metallorum in aurum & argentum .

Tranſmutatio omnium metaliurhima actu atque Ettumuller.


formaliter neque Aurum neque Argentum (unt in 2e- Tom . 1.Diſp.
rum , naturale, omnia examina S. R. Imperii ferens, 5. Differt, de
& ad fummum perfectionis gradum exaltatum , Aul Relpirat, hul
rum atque Argentum , qualem veri ADEPTÍ Phi. man.fol. 645 .

lofophi in Scriptis fuisper Lapidem Philoſophorum


fic diétum præftandam perhibent , eſt Ars antiquiſſima,
veraciſſima , Natur & legibus penitiſimè conformis ,

inaſtimabilis, atque digniſima. Nec vereor ultrò pol


liceri, me cuilibet prudentı veritatiſque unice amanti,
five docto, five literarum ignaro, cui Ars illa imposſi
bilis viſa fuerit, fi ingenuo animo ulteriorem harum re
rum diſcurſum privatim defideret , folidis è Natura de
promptis fundamentis & rationibus Artis hujus poſſi
bilitatem eatenus demonſtraturum , ac probaturum , ut
non folum di & tis facile fidem habeat , ſed do ipfemet
Sponte fateatur , ſe pretiofam hanc Artem credere pos
fibilem , eam que in DEI Ter Opt. M. ac Sapientiſi
mi Operibus naturalibus firmiter ac clarè fundatam
cernere. Sedula nanque rerum naturalium perſcruta
tione , indefeſo que ſtudio atque labore , in nobiliſima
Philoſopbia Phyſico- Chymica , Lapidis Philofopho
rum , ſeu Tindturæ Aurificæ Argentificæquè , nec
non ſtupendorum ejuseffectuum in Opere Tranſmutatio
nis metallorum , poffibilitatem , ac fundamentum clarè
perſpexi hactenus , idque cuilibet à Partium ſtudio
prorſus alieno veritatiſque cupido explicare pronitto,
ne tantum Natura & Artis Myſterium , in quo fum .
mi Creatoris Omnipotentia ac Sapientia , nec non totius
fere Nature jucundißimus generationis curſus ceu in
Speculo Compendio vè cernitur in poſterum impoſſibile
Rij men .
132 ) Ennæa, ou Applıcaçao do Entendimento,

mendaxque , uti hactenus à multis Oforibus imperite


factum seputetur. Omnia in Gloriam Dei . Nað vos
quero nom allegar muitos Philoſophos El
trangeiros , porque lhe naõ dareis credito. Baſta ,
que confeſſe eſta verdade o mayor contradictor da
Chryſopela o Padre Athanaſio Kircker. Eſcreve ef
te grande Philoſopho , que calcinando - ſe na ſua
prelença hum pouco de tartaro a fogo reverberado,
apparecèra no fundo do Cadinho hum globo de
Ouro , e Prata , que pezou tres onças , o qual no
enſayo da capella deu duas onças de Prata , e hu
ma onça de Ouro. E affirma cambem , que de va
rias.hervas ſe tirara muito Ouro na Hungria ; co
mo tambem enſina nos seus Arcanos o modo de ti

rar huma oitava de Ouro de huma onça de Prata ,


e demultiplicar a Prata de tal forte , que de tres
onças ſe faça hum arratel , e deſte le formem qua
tro , e dos quatro oito , dos oito dezeſeis , e dos
dezéſeis huma arroba , é continuando a operaçao ,
abatendo as deſpezas, e cirando materia para nova
multiplicaçao , ainda fica lucro , que pode ſuſten
tar a vida a hum homem , que com eſta induſtria
ſouber , e quizer viver. Finalmente no terceiro Ar
cano propoem o modo de augmentar tambem o
Ouro , de forte , que poſſa ſofrer codo o exame.
Porém o que mais me admira , he , que referindo
eſte Padre , que na preſença de hum Chymico ſeu
conhecido fizera hum Peregrino a Tinctura Univer
fal , a qual lançada em pò ſobre trezentas libras,
ou arrateis de Mercurio , o convertera todo em Ou
ro mais fino , e mais excellente do que o natural,
como ſe conheceo no Enſayo : Quæ in pulverem
redacta , & fupra 300. libras Hydrargiri projecta ,
illud
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S;9 . 133

illud in obrifum , & nobiliſſimum .Aurum , multo na


turali excellentius , nobiliuſque convertit , quod apud
Jl Aurifices optimi, & perfe &tifokeza (ubi
se examen
3 ret : queira provar com eſta hiſtoria , que o Pere
grino era o Demonio , por ſer hum lugeito deſco
nhecido , e nao ſe achar outra vez depois de buf
cado , como ſe foraó Diabos todos os homens gran
des, que andað incognitos pelo Mundo , e paſſaó
de humas para outras terras lem ſerem viſtos.
Mas nao ponderemos as palavras de outro Ju
riſconſulto , fenaõ as de Oldrado ; a quem pudera
ajuntar outros muitos , o que nao faço por vos nað
enfadar com authoridades Latinas : In contrarium Oldrad . conf.

videtur quod ifti, qui Stano, vel Plumbo , vel alio vi- 74. de Sortil.
li metallo producunt Ayirum , vel Argent1.m., dum ta-n . 1 .
men hoc non faciant per Artem Magicam , vel aliam le. Vid . Panor :
gibus odioſam , ut dicit lex C. de T heſauir. L. 1. lib. X. mit . fuper c.
non ſuntreprehendendi, ſed potius laudandi . Iſti funt ex tuarum de
Sotr . extr . Jo
metallarii , qui labore proprio ſibi, & Reipub.com ,
moda comparant. C. de métall. L. 1. lib. XI. & ju- hani Andr .in
ra propter publicam utilitatem , qua ex eorum offi- cul.tit.de cri
cio videtur reſultare favent eis . Nam poffunt invi- min . fall. An
to Domino ingredi fundum alienum ad metallum in- dr. Iſern .in
quirendum C. de metal. L. 2. & C.quofdam . Et ibi no Tit.feud.quæ
quod alias non liceret de' acquir. rer. domin. Nec ipſi funt. Regal.

dicunt inam (peciem mutari in alteram ( ut eis impo- Bald. Peruſ.


ritur') quia hoc non eſt poſſibile , fed dicunt quod ex in codem tit.
ſuid . n . 5.Fa.
una ſpecie metalli , ( ſčilicet Stano , ) poteft alia ſpecies
bian.deMont. ..
metalli, ( ſcilicet Aurum ) produci. Nec hoc eſt incon in Tract . de
veniens. Nam & videmus, quod quandoque ex re mor
empt . & ven
tua prodacitur viva : ut videmus in vermibus, ex pit. quæſt. 5.
quibus producitur fericum , & aliis pluribus. Et ex n . 7. Alberi
herba producitur vitrum : multo magis ex metallis , in cus'deRof.in
qui.
134 Ennæa, 01 ApplicaçãodoEntendimento,

Diction. verb quibus eſt maior convenientia , di fimilitudo. Nam ( 11t


Alchym . Al- ipſi tradit) & habetur in libro de proprietatibus rez
. rum in C. de ea, omnia metalla procedunt ex
tus Brun. in eodem principio fcil .ex Sulphure , & Argento vivo.
Tract.augm . Sed ex virtute elementorum quædam habent maiorem
& dimin.mo

net. in 1.præ- influentiam in uno loco, quam in alio , in una mine


fup.n.13. & ra fit Stanum , in alia Aurum , & fic de aliis. Cum
14Guid. Pap. ergo Ars imitetur naturam ut ff .de adopt. L.ſi adop
in fingul.388 tio , non videntur iſti Alchymiſti peccare , fi per virtu
§. dehis. Joh . tem iftam , qua eſt in herbis , vel lapidibus , vel ele
de Platea in l . mentis volunt d? Stano facere Argentum . Nam cum
1.c.ad R.c.de fint quafi ex eodem prmcipio , & fimilia in habentibus
argent; pret: Symbolum , facilior eſt tranfitus, & c. Eſte Jurifcon
quod theſ. in : Tulto não ſó decide o pleito como Juriſperito , mas
fert.lib.io.Et
tambem diſcorre na materia como Hermetico , não .
alij.
deixando replica contra o ſeu diſcurſo , nem em
bargos para a ſua ſentença.
ENODIO . Só me fica hum eſcrupulo neſta
materia, de que me nao poderàó livrar ſenaõ al
guns Theologos; por iſſo deſejo muito , que com
authoridade dos mayores Meſtres da Sagrada Theo
logia proveis ao menos a poſſibilidade , quando
t
nao moſtreis a exiſtencia da Chryſopeia .
ENODATO . Naó he'a poſſibilidade, ou exiſ
tencia da Pedra. Philofophal ponto Theologico , que
fe pofſa provar com Textos Sagrados , ou com as
razões altiſſimas com que fobre os Myſterios ſobre
naturaes , e Divinos diſcorre a Theologia : he ſim
enigma Philoſophico , em que ainda os mayores
-Theologos fallað allumeados ſó com a luz da Phi

lofophia. Mas para que vejais , que a Philofophia


Hermetica não he contraria , e oppoſta à verdadei
ra , e Catholica Theologia ,ouvias authoridades de
San
Sobre.aPedra Philofophal. Dralog.I.cap.imic.S.9 . 137

Santo Thomaz de Aquino , Meſtre de Theologos,


e Anjo das Eſcolas Theologicas, e as de Santo Al
berto Magno, Meſtre do meſmo samis Thomaz , No.
fim das obras de Santo Alberto , que hoje ſe achaõ
na Collecçao de vince e hum Tomos de folha , em
que o Santo moſtrou fer tað grande Philofopho ,
Theologo , Expoſitor, e Pregador, que mereceo,
e conſeguio a antonomaſia de Magno, ſe vè hum li
vrinho de Alchymia , no qual enlina a fazer a Pedra
Philoſophal; porque não ſó achou , que era poſſivel .
a tranimutaçao dos metaes em Ouro , e Prata : In- Div. Albert,
veni elle posſibilern tranſmutationem in Solem , & m Magn. Tom .
Lunam ; mas certifica , que a fizera ; porque tinha 21. libel .de
viſto com os olhos o melmo que publicava com Alchym . fol,
1.
a lingoa : Quod fcimusloquimur, & quod vidimus, tef
tamir ; e as razões , ou experiencias em que ſe.
funda para Philoſophicamente provar , e defender
a Chryſopeia, fað eltas: lendo o Arſenico vermelho,
pela ſublimaçað ſe faz branco , e negro pelo coſi.
mento . O Cobre recebe a cor citrina com a Pedra
Callaminar. Pelo colimento fica o Eſtanho de cor
de Ouro. Com a induſtria da Arte ſe transforma o
Ferro em Mercurio . A agoa liquida ſe congela no
Inverno com o frio , e fica em forma de cryſtal , e
o caramello criſtalino como vidro com o calor do
Sol ſe derrete , e fica liquido como agoa ; e aſſim ,
conclue o grande Alberto , ſuccede ao Mercurio
com o Enxofre. Humas vezes ſe diſolve , outras ſe
congela , tomando differentes cores da Tintura uni,
verſal, como hoje experimencamos na preparaçað,
do Sorvete , e da Gelea coagulada com diverſas
cores ; porque a diverſidade das cores , e das conſ
ſiſtencias aſlim na agoa , como nosMetaes, por ſe
rem
136 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

rem accidentes , facilmente ſe perdem , e adquirem


de novo : Metalla
differunt inter ſe accidentali forma
tantum , non eyallat : ergo poſſibilis eft fpoliatio acci
dentium in metallis. E para que os Peripateticos não
duvidem , nem contradigão eſta Philoſophia , ref
ponde neſta fórma às objecções , que lhe fazem
com a doutrina de Ariſtoteles : Cum objiciunt Arif
totelis verba dicentis.: ſciant Artifices Alchymiæ re

rum ſpecies permutari non posſe : refpondendum , hoc


dixiſſe de ipfis, qui credunt , & volunt metalla adhuc
corrupta transfubftantiare : quod fine dubio vix fieri
poteft
. Audiant ergo verba Åriſtotelis quæ fequuntur:
quod experientia deſtruit formam fpecierum , & maxi
mè in metallis : hoc eft verum quando aliquod me
tallum eſt calcinatum . Ariſtoteles dicit , non credo quod
metalla poſſint transſubſtantiarı , niſi reducantur ad
primam materiam , id eſt, mindifcentur à corruptione
ſua per ignis aduftionem ; e deſte modo , aindaque o
diſcurſo deSanto Alberto he puramenre Philoſophi
co , e nelle diſcorre o Santo como Hermetico , não
ſe pode negar , que falla como Theologo ; porque
em lugar de converter , e tranſmutar , diz transfubf
tanciar , que he termo Theologico , mas para que
fique ſatisfeito o voſſo deſejo , e deſvanecido o vol.
fo eſcrupulo , ouvi agora a Santo Thomaz como
Div. Thom . Theologo , e Philofopho : Metallorum propinqua
in lib . Ariſto- materia funt Sulphur , & Argentum vivum ſicut Al
tel . Meteor.3. chymiſtě dicunt ; ita quod in locis lapidoſis terre per
ad finem . virtutem mineralem generantur diverſa metalla , fe
cundum diverſam commixtionem eorum : Unde etiam
ipſi Alchymiſte per artem Alchemia , ſed tamen dif
ficilem propter occultas operationes virtutiscæleftis, quæ
mineralis dicitur , quæ ex eo quod :funt occultæ = 10
bis
Sobre a Pedra Bhilofophal.Dialog.I.cap ,unic.8.9. 737

71 bis imitari poſſunt per predicta principia , vel per


3 principiata ab ipſis, faciunt aliquando veram genera
tionem metallorum . Atèaqui diſcorny Sanco Tho
maz como Philofopho natural , agora falla como ..
Theologo ' moral : Si autem per Alchymiam fieret vc. Div . Thom )
Fum aurum , non eſſet illicitum ipſum pro vero: vende- 2. 2. quæſt,
re , quia nihil prohibet artem uti aliquibus naturalibus 77. art. 2.
cauſis , ad producendos veros , & naturales effectus,
facut Auguſtinus dicit lib. 3. de Trinits cap. 8. de his,
quæ arte Dæmonum fiunt. E eſta ražao do Santo
deſtroe totalmente a illaçað , que das ſuas palavras .
infere o doutiſſimo Fcyjoo ; porque eſcrevendo Feyjoo Thea

contra Pedra Philofophal conclue o seu diſcurſo tro Crit.tom .


deste mode : Cità tembien ,a favor de la Chryſopeia ,3. diſcurſ. 8 .
a Santo Ihimas 2.2. quæft. 77. arta 2 : eb Author, de S.9 n.46. fole
un papel Anonymo ; que é imprimidos nas ha ; pe- 178.
3: 0 alli el Santo no determina coſa alguna , folo has
bla condicionalmente , diciendo , que Ji tos Alquimiſtas
hicieſſen verdadero oro , poderian venderle como tal :
Si autem per Alchimiam fieret Veruin aurum , non
efferyillicitum ipſum pro vero vendere . Antes bien la
condicional ſi fieret, parece que ſupone,que effectivamen
te no ſe hace. E he certo , que ſe nað podę inferiri
tal illaçao , dizendo o Santo Doutor , que nadapro- .
hibe à Arte Chymica , para que uſando de algumas
caufas naturaes; naộ poffa produzir verdadeiros ,
e naturaes effeitos , como por authoridade de Santo
Agoftinho affirma de todas as couſas , que ſe pò ..
dem fazer pela Arte Magica : Quia nihil prohibet.
artem nti aliquibus naturalibus.caufis ad producendos
veros, e naturales effectus, ficut Argieftinus dicit
dë. his , quæ arte Damonum fiunt. E ſe conforme a
doutrina do mefma . Doucor Angelico a Chryſopeja

S he
>
738 Ennæa , on Applicação doEntondimento ,

he difficultoſa , masnað he impollivel aos homens,


por ſer muito facil aos Anjos, e Demonios , pelo
conhecimento , que tem das operações da natureza:

Div . Thom . Alchimia quamvis fit difficilis , non tamen eſt impoſſi
apud P. Kir- bilis , quod & nos dicimus, ſaltem Angelis, aut Deo
cker. loc. cit . monibus notam , qui foli norunt occultas natur & ſemi
cap.2.n.2.5. tas , juxta quas perfecte operari poffunt: daqui ſe fe
Si.
gue , que ſe a arte podenaturalmente fazer, o que
le faz por arte do Demonio , conforme diz Agof
tinho : Sicut Auguſtinusdicit de his , qua arte Demo
num fiunt ; podendo o Demonio fazer a Chryſopeia;
como diz Thomaz , tambem a pode fazer a Arte
Chrymica , aqual nao tem nenhum impedimento ,
para por meyo de couſas naturaes obrar verdadei
ros , naturaes effeitos. Demaneira , que entendeo
Feyjoo , qne fe nao fazia Quro verdadeiro com a
Chryſopeia , por dizer Santo Thomaz , que fe fe fi .
zeſſe fi fieret, ſeria entao licito o vendello , inferin
do mal, que por fallar condicionalmente affirmava
o Santo , que ſe nao fazia , quando o Doutor Ana
gelico , pela excellente razao , que depois da con
dicional deu para ſe poder fazer Ouro , moſtra de .
fender a opiniaõ dos que affirmað , que ſe pode
fazer , e de facto ſe faz natural, e verdadeiro Ouro
com a Chryfopeia. Nem obſta , que Santo Thomaz
pareça dizer o contrario neſtas palavras , que ſe pò.
Div. Thom . dem ver no ſegundo das lentenças : Poteſt quidem
2. fent.dift. 7. ars virtute naturalium agentium aliquas formas ſubf
quæſt. 3. art. tantiales inducere in materiam ; funt tamen quædam
forme , quas nullo modo ars poteft efficere, quod pro .
pria attiva, di paffiva principia earumnonpoteſt in
venire, & adhibere , fed bene aliquid fimile illis effi
cere , ſicuti Alchymiſta faciunt aliquid fimile auro,
T440s
Sobre a Pedra Rhilofophal.Dialog .I.cap.unic.8.9. 139

13 quantum ad accidentia exteriora , fed tamen non fa


ciunt verum aurum , quia forma ſubſtantialis auri
non eſt per calorem ignis, quo uitiniti Alchymiſta ,
Sed per calorem Solis in loco determinato , ubi viget
virtus mineralis ; porque as eſcreveo o Doutor An
2 gelico nos ſeus primeiros annos , commentando as
ſentenças dos Padres , e defendeo o contrario ſen
do velho , eſcrevendo a Summa Theologica , como
ultimo teſtamento das fuas opiniões, ſegundo diz o
grande Mirandulano : Adde quod quæ juvenis nega- Joan . Franc:
re vifus eft Thomas , conftanter affirmavit longo poſt Pic. lib . 2. de
tempore, hoc eft , dum Summam conficeret Theologi-. Auro cap. 12,
cam ,tanquam ultimam ſuarum opinionum teftamen- S. Nec.
tum . E bem pòde fer , que o motivo de ſeguir de
pois opiniao contraria , foffe o meſmo fundamento ,
porque Feyjoo achou pouco efficaz a tua razao ,
como ſe pode ver nas ſuas formais palavras: Es Feyjoo Thea
verdad quelaraſon del Santo no meparece mui efficaz; tr. Crit.Tom .
pues se funda en que la forma ſubſtancial del oro no ſe 3. diſcurſ. 8.
hace por el calor del fuego, ſino por eldel Sol ; y en las s.9.num . 45;
fol.178.
Paradoxas Phyſicas hemos moſtrado lo contrario ; ef
to es , que la formacion del oro no ſe debe al calor del
Sol, ſiendo impoſſible, que eſte penetre à la profundi
dad de las mineras, ſino al del fuegoſubterraneo. Por

iſſo o grande Theologo Kircker depois de refe


rir a dita authoridade de Santo. Thomaz reſolve
com o meſmo Santo , e outros Doutores de grande
authoridade , que com o verdadeiro Ouro Chymi
co licitamente ſe pode comprar , e vender , e nao
com Ouro falſo : Si aurum Alchymicum à naturalı
in nullo differat , id vendi, & folvi poffe : ſecus , mi
nime licere ; donde ſe ſegue confeſſarem eltes Theo
logos , que os Chymicos fazem verdadeiro Ouro ;
Sij por :
746 Ennæd , 011 Applićaçağ'dóÉntendimento ,

porque ſe elles o naó fizeraõ , ccioſidade feria


eſcreverem taó graves Doutores eſta ſua reſoluçao ;
porque diſputavao inutilmente a queſtao da com
pra , e venda.
ENODIO . Nao vos quero pôr mais duvidas ,

porque tenho a certeza , de que reſpondereis, e


desfareis a todas. Nem ellas ſe me offerecem pelo

que reſpeita à authoridade de homens taõ graves ,


e tað doutos , que affirmaõ a certeza , ou exiſten
cia da Pedra Philofophal ; porém quero ſaber de vòs,
ſe com effeito ſe executou alguma vez eſta obra
1
tað grande,

S. X :

Prova- ſe a exiſtencia da Chryſopeia com exemplos ſucs


cedidos em vários Reynos.

ENODATO . A ' ouviſtes , que o Padre Kira


cker eſcreveo alguns ſegredos
J
de fazer Ouro , e ſe ajantares a
eſte grande Eſcritor Eſperlingio , Bartholino Flud
dio , Salmuth , Marcino ', Grems, Eſchrodero ,
Claudero ' , Borello , Hunrath , Helmonte, Zwel
fero , Tachenio, Bechero , Biſtio , Kunkelio , Mis
chael , Balduino , Mangeto , Pico , D'elRio , e
outros Authores , nas ſuas hiſtorias, achareis abona
dos teſtemunhos, para vos certificarem , que por
muitas vezes ſe fez na Europa Ouro pela Chymi
ca. Mas porque a liçaó dos livros: he muito boa ,
para quando nos recolhermos às noſſas Livrarias , é
para algumas peſſoas he mais divertida a conver
Taçao de quem os leu ; quero agora contarvos al
gumas
1
Sobrea PedraPhilofophal.Dialog. I.cap.unic.S. 10.141

gumas hiſtorias, que nelles tenho muitas vezes li


do. Eſcreve Joao Federico Helveris , inſigne Me- Helvet. vi
dico do feculo paſſado , que aſiſtindo na Cidade tul . Aur.cap.
de Haya , o vilitara hum Peregrino , pobre , e hu =' 3. fol.18 .
mildemente veſtido', natural da Hollanda Septem
trional, o qual lhe dera hum pouco de pò de tað
excellente virtude , que lançado em chumbo fun
dido o transformára em Ouro fino . Semelhante a
eſta , conta Helmonte outra famoſa hiſtoria , de
outro Peregrino , que depois de tranſmutar em
Ouro o Mercurio , lhe moſtrou tanta quantidade
de pò , que podia converter duſentas mil libras de
Mercurio em finiſlimo Ouro . Bem notorio he no
Mundo!, que Raymundo Lullio fizera hermetica
mente ſeis milhõesde Ouro, que deu a Eduardo VI .
Rey de Inglaterra , para continuar a conquiſta da
Paleſtina , os quaes elle gaſtou na guerra de Fran
ça , como podeis ver em Roberto Conſtantino ,
Marrim d'elRio , Chriſtovao Soares de Figueiroa ,
D. Rafael Blureau , e outros muitos Eſcritores;
e declara Cambdeno nas ſuas Reliquias Romanas, Cambden:
que deſte Ouro mandara fazer ElRey de Inglater- fol. 172 .
ra humas moedas chamadas Roſas nobres, cuja figu
rá explica Seldeno', que tinha de huma parte huma Selden. lib .
Rofa , e da outra hum Navio , com eſta inſcrip- Mar. clauſ. 2
çað : Jefus autem tranſibat per medium eorum . Naš cap.25.
fe pode duvidar da certeza deſta hiſtoria; porque
a contað , e juſtificao Authores muito graves , e .
verdadeiros , ſendo alguns Inglezes , que devem
faber com certeza o que ſuccedeo no feự pro
prio Reyno.
Porèm antes, que apartemos a memoria de In
glacerra, vos quero contar o que ſuccedeo em Gal
S lesz
142 Ennæs ou Applicação do Entendimento,

les , Provincia daquelle Reyno. Refere Daniel


Jorge Morhofio, Authordaquelle celebre livro inti
tulado : Polyhiſtor literarius Philofophicus, & Pra
Eticus, no paragrafo decimo terceiro da tranſmu
taçaõ dos metaes , que no tempo em que Inglater
ra negou a devida obediencia ao Summo Pontifi
ce , enfurecendo - ſe o Povo contra as Imagens , e
Reliquias Sagradas, fabendo por tradições, quena
fepultura de hum antigo Biſpo da Provincia de
Waliam eſtavao encerradas muitas riquezas , abri
raó o lepulchro, no qual ſe achou ſomente hum livro
manuſcrico , que na lingoa antiga tratava da Chry.
Jopeia , e duas bolas de marfim . E vendo o Povo
ignorante deſvanecida a ſua eſperança , quebrou
huma daquellas bolas , ou globos, eſpalhando jun ,
tamente pelo chao a mayor parte do pò vermelho
que continha , deixando ficar,alli os pedaços, ou
fragmentos da bola quebrada , com a outra que
eſtava inteira , e o livro da Chryſopeia. Tudo iſto
guardou hum homem humilde , e de baixa fortuna ,
e o vendeo por huma libra Efterlina a Eduardo Ké
leo , homem intelligente da lingoa antiga, o qual
com Joao Dè, Theologo da Corte de Londres, pala
ſou a Alemanha, e Bohemia , e na preſença do Ema
perador Rodolpho II.e de outros Senhores , tranſ,
3

mutàrao na Cidade de Praga com o pò verme


lho o Chumbo em Ouro , e com o branco tranſ
formárað o Chumbo em Prata. E no Palacio de
Thaddeo Haggecio converteo huma libra de Mere
curio em hum arratel de Ouro com huma ſó god
ta da Tmtura Philoſophica , a qual, conforme diz
1
Sennerto , ficava como hum Rubim em cima do
Mercurio em Ouro convertido , ou transformado ,
com
Pedrathon
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.unic.S.10. 143

hel
com que ſe podia tornar a fazer a meſma transmu
taçao de Metal em Ouro : Et Eduardus Kelleius
Anglus Pragæ in ædibus I haddæi Haggecii librarum
unam argenti vivi unica gutulâ licoris rubicundiffi.
mi in aurum convertit, do ita quidem , ut adhuc vi
dere fit ſignum illius liquoris fupra Mercurium- in
aurum converfum inftarrubini hærentis , ut ex illo
31 reſiduo tantundem Auri fieri poffit . Efte meſmo li
vro traduzido depois na lingoa Latina fe impri
mio em nome de Kelleo . Confirma- ſe eſta hiſtoria

com a grande authoridade de Elias Ashmol , que


achareis no Theatro Chymico Inglez , e nas nos
tas ao livro de Eduardo Kelleo.
Finalmente como a fama da Chryſopeia moveo
a cubiça de Caligula , para Chymicamente fazer
Ouro , tambem incitou a curioſidade de Fernan
do III. que lhe ſuccedeo no Imperio Romano,
para experimentar fe era verdade , o que a fama
pivulgara em todo o Mundo ; e porque no tempo
em que o Padre Athanaſio Kircker ſe applicava ao
eſtudo da Chymica , como elle confeſſa : Ego fane
tunc temporis Chymia ſtudio intentus, ſe eſpalhou ,
ou divulgou o rumor , de que o Emperador tinha
alcançado o ſegredo , que a muitos Monarchas
fempre eſteve occulto , eſcreveo o dito Padre ao
Auguſtiſlimo Senhor Fernando III. por via do
- Muito Reverendo PadreGans,Confeſſor daMageſ
tade Ceſarea, para que , ſegundo elle diz, com hum
fim , ou nað , o deſenganalſe acerca deſte enigma ;
e a repoſta do Emperador foy eſta , que ſe pode
ver no meſmo. Kircker : Experimentum , quod in
noſtra praſentia de Artis Magne arcano fieri juli.
mus, curioſum quidem fuiffe ; ſed quod Imperatoriam
Maies
144. Ennæa , on Applicação do Entlndimento,

Maieſtatem locupletare poſſet , minime invenimus


Imo , ne tertiam gıdem expenfarum'partem , quibus
experimentum facíum fuerat , recuperare non valuiſſe;
hisce conftare voluimus
. E daqui infere o Padre Kira
cker , que pela Arte Magna le naó pode tranſmu
tar nenhum mecal em Ouro , nem tirar utilidade
alguma da Chryſopeia ; porém eſta illaçaó Kirche
riana impugnafe.com facilidade ; porque a opera
çaõ , que ſe fez diante do Emperador', foy.aquel
la , de cujo Ouro lavrara ) os Chymicos varias moes
das ' , de que faz mençaó o meſmo Kircker : Ad
conteſtandam veritatem complur a varijs infigmta hre
rogliphicis fymbolis aurea numifmata Caları inſcripta
ad perennein repertæ artis memoriam publicæ luci plais
fu incredibili , verius non credibili , tradiderunt. E
nað duvido , que a operaçao foſſe curioſa , e ſem
a utilidade , que podeffe fazer rico kum Empera
dor ; mas como o Ceſar confeſſa , que foy curio .
fa, em algum excellence artificio cahe eſte elogio
Celareo ; e bem le vè , que lendo as moedas de
Ouro : Aurea nutzismata , que quando a tranſmu
taçaõ do Metal nao foſſe muito util, ſempre ſe pro
va , que foy verdadeira ; porque erao de Ouro as
moedas.
nar agora muito melhor ao Padre :
. Para-impug
Kircker, quero cambem cenſurar'de paſſagem huns

Teyjoo Thea- grandes deſcuidos do Reverendiſſimo Feyjoo , em ."


tro Crit. To- que cahio por falta de viſta , e fraqueza da memo
Difc
ria. No celebre Diſeurſo , que eſcreveo contra a Pes
8. $ .6 . num .
. dra Philofophal, pertende refutar a Joaó Zwelphes
31.c32. fol
171 . , por affirmar na fua Mantiſſa Eſpagirica , que o
ro '
Emperador Fernando III. eſtando na Cidade de
Praga , Cortedo Reyno de Boemia , fizera posſua
pros
Sobre Pedraf hilofophal.
aPedraðilefopbal
Sobre a . Dialog.I.cap.unic.S.10.14

propria mao de tres libras de Azougue dous arr?


teis e meyo de Ouro puro , com hum ſó grab c
Tej Tinitura dos Philofophos , imputando falfamente
efte grande Medico , declarar , ou dizer , que o
Emperador daquelle oro embiò al Padre Kircker
que eſtava en Roma , unas monedas, para que las exa
minaſſe; y haviendolas paſſado por todas las pruebas,
balla que era oro como el natural ; e eſte deſcuido

não pode ter outra deſculpa ſenao a falta de viſta;


porque referindo Zwelphero a transformaçao do
Mercurio em Ouro , do qual o Ceſar mandou fa
zer huma ſó , e unica moeda , que guardava em hu
ma gaveta , dentro no ſeu gabinete , nað ſe vè nel
le huma ſó palavra , que falle nas moedas remetti
das a Kircker , e examinadas por elle em Roma.
Contra eſta aſſerſTaó , que nao vio , argumenta def
te modo com a hiſtoria de que ſe eſqueceo : Seame
licito contradecir a Zuvelphero ſobre eſte hecho , porque
meacuerdo mui bien de haver leído en el Mundo Sub .
terraneo del Padre Kirquer ', que haviendole llegado a
efte dočto Jeſuita , eſtando em Roma, la noticia deque
el Emperador Fernando havia hecho oro artificial, le
efcribió a aquel Principe , de quien era muy eſtimado ,
perguntandole ſi era verdad ,y el Emperador , cuya
carta pone alli à la letra el Padre Kirquer , le reſpon
diò , que no havia tal coſa. El teſtimonio del Padre
Kirquer en eſta materia es de mui ſuperior aprecio al
de Zuvelphero. I valga la verdad : ſi aquel Empe
rador huvieſſe logrado eſte ſecreto , le haria heredita
rio en ſu Auguſta familia , para bien de ella , y de la
Chriſtandad . Como , pues , los tres Emperadores, que
le ſucedieron , ſe valieron de los miſmos medios , que
los demas Principes , para ocurrir a ſus, urgencias , y
T alge
146 Ennæa, ou «Applicação do Entekdimento,

algunas vezes por falta de oro , aſſi ellos , como ſus


vaſſallos, ſe vieron en no pequeños ahogos ? Antes que
refponda a eſta pērgunta, vos quero advertir, que
fendo taó differente a noticia que elcreveo o Em
perador , da que repetio o Critico Feyjoo , deve
mos crer firmemente , que ſe elle ſe lembrava muy
bien de haver leido , era fó de que lera en el Mundo
Subterraneo del Padre Kirquer ; mas não do que el
Emperador Fernando havia hecho ; porque dizendo
a Mageſtade Cefarea , que a experiencia era curio
ſa : Experimentum curioſum ; e affirmando Kircker,
que as moedas deſta operaçaó eraõ de Ouro : A4
rea numiſmata ; ſó por eſquecimento do que tinha
lido, podia dizer Feyjoo , que perguntando Kircker
a verdade ao Emperador le reſpondió, que no havia
tal coſa . E paraque Feyjoo nao imagine , que el teſti
monio del Padre Kırguer en eſta materia es de muy
Superior aprecio al de Zuvelphero ; deve notar , que
a moeda de que falla Zwelphero , he muito diffe
rente das moedas , de que faz mençaõo Padre Kire
cker ; porque eſte Padre trata de muitas moedas no
plural : Numiſmata ; e Zwelphero eſcreveo de hu
ma ſó moeda no ſingular : Eſt numiſma : Eſta moe
da era de Ouro puro , e nao Sophiftico , feito de
Mercurio , com hun fo grao da I inętura univerſal,
naõ por outras mãos , ſenaó pelas do metmo Empe
rador , que para averiguar a verdade fez peſſoal
mente a projecçaõ : Eſtnumiſmapurifimo Auro con
ex Mercurio
flatum , minine ſophiſtico , quod arte
vivo , per projectionem unius grani Tincture , ipſe :
Ferdinandus III. tranſmutavit ; e as outras moedas
eraó do Ouro , que na fua preſença mandou fazer o
Ceſar por mãos alheyas : Experimentum , quod in nof
tra
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.Ş.10.147

tra præfentia de Arte Magne arcano fieri jufimus.


Netta operaçao fezo Emperador grandes deſpezas;
que e na projecçao nað gaſtou nada ; porque Richchau
fen, animado pela curioſidade do Emperador, lhe of
fereceo liberal ,
e gracioſamente hum ſó grao da
Tinctura ; e a Chryſopeia com que mandou fazer o
Ouro das moedas , mandou- a fazer à ſua caſta. Dela
tas moedas teve ló noticia o Padre Kircker , eſtando
auſente em Roma ; e a moeda teve - a Zwelphero
nas luas mãos , eſtando na Corte de Vienna . Fi
nalmente Zwelphero vio a moeda com os ſeus olhos ;
e a Kircker entrou a noticia das moedas pelos ouvi
dos ; e o teftemunho de ouvida tem menos credi.
to do que o de viſta.

Aqui nao quero eu agora diſputar ſe merecem


mayor fé o odio , e a paixao , com que Kircker ef
creveo contra a Chryſopera , ou a ſynceridade com
que Zwelphero a defende; poque o meſmo Feijoo
jà deo a ſentença a favor de Zwelphero , quando nas
Reflexões ſobre a hiſtoria advertio que ſobre todo, Feyjoo Thea
importa penetrar bien la indole del Autor. Hai algu- tro Critico
nos, que mueſtran tan vivamente el caracter de fince- Tom.4 . Dif
curi . 8. 9.44 .
ros, Ÿ hombres de verdad , que ſe hacen creer , aun
num.102.fol,
quando hablan a favor del partido que ſeguieron . Ef 22
1.
ta ſynceridade me concederà o meſmo Feyjoo , con
felfándo , que para lograr eſte conocimiento , es menes
ter ſingular perfpicacia ; porque aunque ſe dice , que
en los eſcritos ſe eſtampa el genio de los Autores, aun
es mas facil ocultarle hypocritamente con la pluma ,
que con la lengua ; e nem com a lingoa , nem com
a penna occultou Kircker ' o furor , com que cen
dura aos Hermeticos; moſtrando- le Zwelphero de
maſiadamente modeſto na ſua apologetica defeza.
Tij Po
148 Ennæa , 011 Applicação do Entendimento ,
Porena para que
para que le averigue , y valga la verdad :
faiba Feyjco , que Fernando III. nao chegou a pof.
ſuir o ſegredo de fazer a Pedra Philojophal , ainda
que teve na ſua mao a Chryſopeia ; porque Rich
thauſen nao offereceo a eſte Monarcha ſenaó hum
ſo grao da Tinctura Philoſophica para com elle con
verter em Ouro pouca quantidade de Mercurio .
Eſta que parece avareza , foy admiravel , e myſte .
rioſa politica de Richthaulen ; porque chuvas de
Ouro faõ liberalidades , e larguezas ſó dos Deoſes
fabulofos ; e nao dadivas , nem beneficios dos Hera
meticos verdadeiros ; e ainda alim com fer fabuloſa
a chuva de Ouro , andou Jupiter muito moderado
neſta precioſa profuſa) ; porque fingio a Fabula , o
meſmo que ſuccede na Natureza. Nao cahe depan
cada, e de huma ſó vez toda a agoa da chuva ; mas
gota , e gota naturalmente ſe diſtribue ; e por eſte
modo deu Richthauſen nao toda a Chryſopera , le
naó hum ſó graõ do Lapis ao Ceſar. Com eſta Tin 1
čtura transformou o Emperador por ſya mao as tres
libras de Mercurio em dous arrateis e meyo de Ou
ro ; porque nao fez a tempo a Projecçao , que te a
fizera antes do Mercurio evaporar com o fogo ,
converteria em Ouro toda a quantidade doMercu
rio ; e para teſtemunho , e memoria deſta verdade ,
de todo aquelle pezo de Ouro mandou lavrar hu
ma ſó , e unica moeda , da qual fazia tanta eſtima
çao , que nao quiz guardalla no ſeu magnificothe
ſouro , eſtando eſte opulentiſſimo Erario dentro no
que tinha dentro
Paço , fechou - a em humagaveta ,
no feu Gabinete , como eſcreve Zwelphero : Unde
Ferdinandus III. hoc Numiſma in tantum redamavit,
ut illud confueto Aula magnifico theſauro adjungi paf:

Jus
Sobre a Pedra Pluilofophal.Dialog.I.cap.unic.$. 10.149

fres non fuerit , ſed fecretiſſimo , & concla -cis foli ſeri.
niolo incluferit , nullo aut paucis arbitris. No tempo ,
em que floreceo o Auguſtiſſimo, e invicto Empera:
dor Leopoldo I teve Zwelphero em feu poder eſta
moeda , a qual confórme elle , e outros muitos Au.
thores mais antigos a deſcrevem , he de figura cip
cular , tao groffa como hum dedo , e damedida da
palma de huma mao. Tem no meyo a figura dehum
Mancebo nù , è de corpo inteiro , coroado em cir:
culo com os rayos do Sol, fuſtentando com a mað
direita a Cythara, ou Lyra de Apollo voltada para
cima , tendo na mao eſquerda virada para baixo a
ſerpentifera Vara , ou caduceo de Mercurio , e fir :
mando os pés ſobre as ſuas'azar Ao redor da ca
beça em forma de meyo circulo eſtà eſta letra : Di
Tina Metamorphoſis ; cerca -o da cintura para bai.
xo eſtà inſcripçaó : Exhibita Praga XV . Jan. A.
M.DC.XLVIII. in Præſentia Sac. Caf. Majeſt :Ferdia ..v
kandi HI, E na outra face eſtañ escritas eſtas pala. i
vras : Raris hæc it hominibus nota eft ars , ita raro
in lucem prodit. Laudetur Deus in aeternum , qui para
tem infinitæ fuæ fcientia abjeétiffimis fuis creaturis
communicat. E accreſcenta o meſmo Zwelphero , que
elle tinhacomo theſouro preciolo duasonças de Ou
ro feito de Mercurio pelo meſmo Richthauſen , com
quem tivera grande amiſade ; mas declara , que era
cerco , e conſtante , que Richthaufen , a quem o
Emperador fez Barao com o titulo de Senhor.de
Chaos , nað fizera a Tinctura , com que fe fez a tranſ
formaçao do Mercurio em Ouro , por le averiguar
que outra peſſoa lha dera , ou poroutro modolhe Zwelpher. in
viera à mað : Quem deinde ad Baronis faftigium eve- Mantiff.Spag
Xit propemodum Sacra Majeſtas, & Domini de Chaos Part. i.cap. 7 .
fol. 329
tits

1
150 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

titulo infignivit. Dictum Dominum de Chaos Tinctu .


ram non ipſum ellaboraſſe; ſed aliunde accepiſe con
tat. E daqui infiro eu contra Feyjoo , que nao con
cradiz licitamente a Zwelphero com o exame das
moedas , em que elle nað falla , confundindoas ,
e crocandoas com a moeda, que lo deſcreve , da
qual naó teve noticia o Padre Kircker ; porque ha
tanta differença entre efta, e as outras moedas, quan :
ca vay de huma a muitas , do ſilencio de Zwelphe
ro , á voz com que Feyjoo as publica , e de huma
1
tranſmutaçaõ util, a huma transformaçaõ fem uti
lidade. Porèm ainda que Richchaufen naó dera a
Chryſopeia ao Emperador, para transformar por ſua
mão , e com grande utilidade o Mercurio em Ouro ,
do qualmandou fazer para teſtemunha eſta moeda;
baſtava qualquer das outras para provar a verdade,
Bluteau Vo . e utilidade do Lapis ; porque, ſegundo diſcorreo
cabul. Tom . grande Bluteau , he a moeda a verdadeira Pedra
, que converte a terra , em Ouro ; por
5.fol.533;
que faz do pequeno grande ; doplebeyo , nobre ; do
fervo , Senhor; do befta , homem ; e do feyo , gen
til homem . Na fome a moeda he manjar ; no frio ,
roupa ; no deſerto , cafa ; na doença , remedio ; no
deſemparo , abrigo ; e em todas as faltas , tudo.
Para conſeguir , e deixar na fua Auguſtiſlima
Cafx eſte utiliflimo arcano , fez o Emperador mui
tas mercès , e grandes honras a Richthauſen , co
nhecendo muito bem , que eſte homem nao tinha
nierecimenico para fer caó bem deſpachado ; mas
com efta liberalidade, imaginava como bom politi
co , que moveria o verdadeiro Author da Chryſopeia ,
para que ſe lle deſcobrille , e ſe vieffe offerecer pa

ra o ſervir , tentando - o com a ambicioſa elperança


de
7
Sobre a Pedra Philofophal. Dialog.I.cap.unic.$. 10.151

de femelhantes honras , ou de mayores fortunas;


naó advertindo o Ceſar , que aſſim como quent (le
Con
gundo dizem ) traz comſigo a Pedra Antaglifo ,de na
das da ſe admira : tambem quem poſſue a Pedra Philo
fophal , de nenhuma couſa neceſſita; porque o La
pis he huma univerſal Medecina , fuperior a todas,
Medicinas , que ſendo inferiores imperao , como
diz Plinio , ſobre todos os Reys , e Emperadores:
Medecina una' Artium Imperatoribus quoque imperat; Plin .lib. 24.
e alem das ſuas grandes virtudes medecinaes', he cap. 1 .
hum thelouro opulentiſſimo, mayor queo de todos
os Principes, e Reys do Mundo, conforme eſcre.
ve o referido Richardo Anglico : Hæc Medicina ſi!
per omnes alias Medicorum medicinas eft quærenda ,
quia qui habet eam , incomparabilem habet theſaurum ,
& in falubri conſtellatione natus eft , in hoc fæculo di
ves , divitis infinitis ſuper Reges , do Principes ; e
como a Pedra Philoſophal faz os Monarchas depen
dentes dos Hermeticos , e os Hermeticos indepen .
dentes dos Monarchas , mais facilmente le verao os
Monarchas por falta de faude ', e de dinheiro pe
dindo à porta dos Hermeticos , do que os Hermeti
cos ſervindo em caſa dos Monarchas ; porque lobe
jando - lhes o dinheiro , e nað lhes faltando a fau .
de, de que os Magnates quaſi ſempre tem falta ,
mais tem que dar , do que pedir os Adeptos aos Podes
rofos. Por iſſo nenhum deltes Philofophos quer fer
vir a grandes Senhores , por lhes nao ſer neceſſario ,
e por naõ perderem a liberdade no ſeu ſerviço ,
que he a unica couſa , como com diſcreta parano
mafia adverte Santo Alberto Magno , que os Her Div . Albert.
meticos podem tirar da ſua eſculada fervidao : Co. Magn. Tom .
21. libel . de
gitabunt perpetuo te habere , nec permittent te habire ;
Alckim.fol.i .
e com
152. Ennea , ou Applicação doEntendimento ,,

e com eſte temor , e independencia nað le deſco ,


briria , nem offereceria ao EmperadorFernando III.
o verdadeiro Author da Chryſopeia, ſe neſſe tempo ef
sivera vivo ; porque repetindo , e fazendo o que en
ſinão eſtas palavras de Paracelſo: Alterius non fit , qui
fuus effe poteft, occultaria o ſegredo para conſervar
a liberdade, que val mais que tudo quanto fem ella
podem dar as Mageſtades ; e ſe neceſſario fora ain
da , faria mayores exceſſos para nao morrer cativo ,
1
Creou Deos ao homem com a liberdade eſpiri
tual da vontade , ou livre alvedrio , que nao podem
violentar os Divinos Decretos , as influencias dos
Altros , nem os ameaços dos Tyrannos. O corpo
humano pelo contrario he ſugeito a todo o genero
de cativeiros. Forma -le na prizao do ventre mater
no ; apenas naſcido , fica envolto , e prezo nas fa
xas , e opprimido toda a vida com a pezada carga
das ſuas neceſlidades, appetites, e dos cargos das
honras , acaba finalmente no cativeiro da fepulcu
ra , que nao cem reſgate. Porém ainda allim no me
yo de todas as penſões , e prizões da vida , logra o
homem no ſeu crato huma certa liberdade , da qual
ninguem ſe quer privar , por nað viver violentado.
Atè os animaes, as feras , e os mais viz iolettos
1
procurao defender , e conſervar a liberdade , que
Ihes deu , a natureza. Finalmente -os Elementos,
aindaque inſenliveis , ſe esforçaõ para vencer os
obſtaculos , que os cativaó : voar à o fogo hum mon
te , por nao ficar conſtipado na mina : indignada do

freya de hum dique, tresbordarà a agoa, e alaga 1


"! rà ſựma Provincia : impaciente da claufura de lu
gares ſubterraneos abalarà o Ar hum Reyno , e com
horriveis cremores abrirà a Cidades inteiras pro
fundas
Sobre a Pedrà Philoſophal.Dralog.I.cap.unic.g. 10. 13 }
;! fundas fepulçuras ; náð he logo maravilha ” , que
façað, os homens tantos extremos para conſervarem
a liberdade propria do ſeu eſtado. Diogenes , aquel
le famoſo deſprezador de quanto cubica a ambiçao
dos homens, para fe ver livre das fugeições der
te Mundo , le revolvia no feu dolio como Planeta
de differente esfera y é rendo valor para recufar á
OL graça de Alexandre , nao teve animo-para ſé fugei
*12 car ao jugo da Corte. Como Diogenes defprefador
das grandezas , e prbmerfas de Alexandre, recuſaria
o Author da Chryfopeia , fe neſſe tempo , conforme
eſcreve Mangero ' , 'nao fóra morto ,todos os pre- Manget. Bi
mios , e mercès do Emperador Fernando ; e defte bliot . Che
modo ( como fazem todos os Hermeticos) ſe deſpa- mic . Tom . 2.
charia melhor por ſi meſmo , comando antes o Chaos
por refugio , para nað ler conhecido , do que por
titulo para viver honrado , e morrer cativo ; c
como eſte Hermetico ſe nao delcobrio em vida ao
Cerar , naõ deixou aos ſeus Auguſtiſſimos fucceffo .
ses o fegredo para fe livrarem das moleſtias que ſen
tirao, e das neceſſidades , que padeceráő ; mas poz
diante dos olhos de todo o Mundo a verdadeira
prova da Pedra Philoſophal , porèm de tal forte
deſcuberta, que ficou ao meſmo tempo eſcondida
na obſcuridade do confuſo Chaos.
- ENODIO . Naõ he crivel , que os Alquimiſtas,
Vallallos de Monarchas poderoſos , e vigilantes , lhes
poſlao occultar o ſegredo da Chryſopera ; porque
quando como ſoberanos com eſtrondofos premios
os nað perſuadao para lhes franquearem as portas
de bronze , cerradas com ferrolhos , e fechaduras
de ferro , para lhe darem os theſouros eſcondidos,
e revelarem oś arcanos dos ſegredos , como pro
U fecio :
154 Ennea, ou Applicação do Entendimennto ,

Ifai. 45. 2. 3. feticamente prometteo Iſaias a ElRey Cyro : Pora


tas æreas conteram , & vectes ferreos confringam ,
& dabo tibi theſauros abfconditos , da arcana ſecre
torum ; he certo , que com a trovoada dos amea .
ços , e com os rayos dos caſtigos , fulminados da
altiſſima regiao de ſeus elevados Solios , obriga
Vieir . tom. 4. raó a fahir daconcavidade dos Chaos , ( como an
num.435.fol. tigamente fuccedia na Luſitania com os trovões , e
rayos , que cahiaõ do Ceo ſobre o Promontorio Sa.
406
cro ) todo o Quro , e Prata eſcondidos , e junta ,
I
mente o ſegredo defabricar eſtes precioſos metaes.
ENODATO . No ſegundo Tomo da ſua Mu
ſurgia traz o Padre Kircker huma eſtampa da cala
de prazer dos Condes de Simoneta ', diſtante hu
ma legoa da Cidade de Milao , na qual hà huim
Echo artificioſo , que repete nað ſete vezes ( como
o do Portico Olympiaco ) mas vinte e quatro hu• •
ma ſyllaba , ou palavra. Procede eſta repetiçaõ de
vozes da natural diſpoſiçað das concavidades , que
daquelle Chaos reflectem as vozes , como os eſpe
lhos os objectes. Porém , como adverte o grande
Bluteau Vo- Bluteau no feu Vocabulario , tem -ſe obſervado ,
cab . Tom . 3. que o Echo , que tað pomptualmente repere refle
Verbo Eco tindo oeſtrondo
, ou a voz ,nunca jà ma is reſpon
fol.9 .
de às trovoadas ; porque aos ameaços do Ceo ; pala
ma , é empudece a terra. Para fazer.Ouro , e Pra
ta deve a Arte imitar a natureza ; e como a na .
tureza emmudecem tambem os. Artifices Hermeticos;
quando dos elevados thronos dos Supremos Mo,
narchas fe fulminao ' , como irayos', os Decretos )
entre as trovoadas de rigoroſos ameaços ; paraque
atemorizados com a tormenta Ihes deſcubraó como
a Cyro os theſouros eſcondidos , e lhe revelem os
arca
Sobrea Pedra Philofophal.Dialog.7.cap.unic.$.10.155
. arcanos dos ſegredos : Theſauros abfconditos , & ar.
cana ſecretorum . Porèm fechando- ſe com portas de
bronze , e encerrando - ſe com ferrolhos, e fechadu
: Portas æreas, &
ras de ferro' večtesferreos, para me
1 lhor reſiſtirem à tempeſtade , artificialmente mul
tiplica ) a Prata , e o Ouro , como os Echos as ſuas
vozes ; mas tao occulta , e myſterioſamente , co
mo le formað , e repetem as vozes no profundo das
concavidades , de que os Monarchas nao cem ou .
fra noticia , mais do que aquella , que no tempo ſe .
reno levaõ aos ſeus ouvidos os Echos.
ENODIO . Lembrame, que li no Criticon de
Lourenço Gracian , que ſempre o longe fora o
afylo do fabuloſo , por iſſo he bem recebido ada
gio entre os Portuguezes: Longas vias, long asmen ,
tiras ; e por eſtas razões me nað deſengano com
hiſtorias fuccedidas em terras tao diſtantes , fe as

nao confirmares com alguma tranſmutaçao ſuccedi


da hà pouco tempo dentro no noſſo Reyno , pa.
raque averiguando - ſe a verdade , lhe polla dar to
do o credito .
ENODATO . Mais barato mo fazeis do que

eu cuidava; porque entendi me pedieis alguma bar


ra de Ouro , ou Prata , para me dares credito à mi
nha cuſta. Porém como fois curioſo fem ambiçaõ,
e determinais ir a Lisboa ver a Prociſlao do Cor

po de Deos , (que excede na ſua pompa à magnifi


cencia dos triumphos deRoma Gentilica , e na ſua
riqueza, ę mageftade, à meſma Prociſſaó , que nef
ſe dia ſe faz com menor opulencia , e oſtentaçao
em Roma Catholica ; porque o noſſo Auguſtiſſimo
Monarcha o Sereniſſimo Senhor D. JOAM V.em
todas as fuas acções Catholicas , ou politicas , co
U ij mo
56 Enned , ou Applicação do Entendimento,

o quinta eſſencia das Mageſtades , excede a to


is as grandezas do Mundo politico , e Chriſtao , )
ocuray na Fundiçaõ a Manoel da Rocha, Relo
o - yro d'El Rey , que he curiofillimo de varias ars
tes , é muito applicado ao eſtudo ', e exercicio da
Chymica , e pedilhe , que vos moſtre huma barra
de Prata , feita de Mercurio com a Chryſopela , e
à fua viſta ficareis deſenganado. Naó fez eſte ho .
mem efta Prara , mas como andava trabalhando no
deſcobrimento da Chryſopeia , quando morava ha me
nos de vinte annos na Pichelaria , imaginando , que
ſe fechaſſe o Mercurio de forte , que nao podelle
evaporar , e o cozeſſe depois ao fogo , ſe fixaria
per ſi meſmo, em que conſiſte a eſſencia do Ouro :
Com eſte penſamento meteo quantidade de Azou
gue dentro no cano de humaelpingarda, apertan
do -o , e capando -o com huma juſta , e ſegura tarra
xa; Porèm tanto que o Mercurio aqueceo , e le ra
refez , ou volatilizou com o calor do fogo , em que 1
o meteo , nao cabendo no vao do caro , o rompeo
com eſtrondoſo eſtampido , arrojando furioſa ,e
violentamente o ferro , dividido em pedaços , pa
ra muitas , e differentes partes com evidentiſſimo
perigo do operario . Aſultou -le a viſinhança com
a novidade de tað éxtraordinario eſtrondo , e acu
dindo os oficiaes e Mereadores das lojas viſinhas,
e outras muitas peſſoas , que lniaó paſſando neſſe
tempo pela rua , para averiguarem a cauſa daquel
le nunca antes ouvido eſtàlo , diante de todos con
tou , ou confeſſou 6 Relogeyro , o que tinha inten
tado , e lhe cinha ſuccedido . Achou -ſe tambem nef
te concurſo hum Eſtrangeiro , e informado da cu
rioſidade de Manoel da Rocha , lhe diſſe na lin
goa
10.157
3 Sobré a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.
ta
goa Portugueza mal pronunciada , que ſe queria
) fixar o Mercurio , não havia de ſer à Virga ferrea ,
ou à força de braço , ſenao de engenho. E para
moſtrar a ſua ſciencia , e habilidade, lhe mandou
lançar hum pouco de Mercurio em hum cadinho ,
e tanto que o azougue começou a fumear no fogo,
lançoulhe em cima huma porção muito pequena de
pò branco, e apertando o fogo , dahi a pouco tem
po não ſubio fumo do Mercurio , porque eſtava
transformado eń fina Prata , que eſte homem ain
da conſerva , para moſtrar a todos os curioſos.
ENODIO . Sempre reparey muito , ( por ſer
digno de reparo , ) em que os Authores deſtas ma
ravilhoſas transformações foſſem ordinariamente
huns homens pobres , peregrinos , humildes , e deſ
conhecidus ; os quaes he certo , que tendo meyos
tað effectivos para ſerem riquiſimos, eſcuſavao de
andar mal veſtidos, e fugitivos pelo Mundo , vi
vendo miſeravelmente com os diſcommodos de hu
ma perpetua perigrinaçao ; e deveis , Senhor Eno
daco , fatisfazer a eſte meu reparo , ſe quereis per
ſuadirme a certeza da Chryſopeia ; porque eu não
creyo facilmente , o que o entendimento me repre ,
Lenta tao difficultoſo .

S. XI.

Elogio dos Hermeticos peregrinos.

ENODATO . U , Senhor Enodio , nao eſtou

vos con
Vencer o entendimento incredulo , para confeſſares
a verdade do Lapis ; porque a ſua certeza indepen
de
158 Ennaa , ou Applicação do Entendimento ,

de da voſſa crença , e confiſia) . Mas porque nao


imagineis , que a pobreza , bumildade , deſconhe
cimento , e peregrinaçao dos Adeptos he argumen ,
tos efficaz contra a exiſtencia da Chryſopeia , vos
quero dizer , ou declarar como peregrinàraó , e
veſtirao pobre , e humildemente os dous grandes
Hermeticos Democrito , e Paracelſo . He certo ,

que Paracello deſcobrio , e poſſuhio huma celeſte


medicina , e hum inexhaurivel theſouro na Pedra
Philoſophal , como elle confeſſa no feu Manual,
tratando deſta Pedra : Lapis nofter eft cæleftis medi,
cina , do plufquam perfecta, quia illa omnes abftergis
metallorum fordes. Nem ſe pode duvidar , que el.
le poſfuhiffe a Chryſopeia , publicando-o a voz de
todo o Mundo , como eſcreve Zwelphero no capi
tulo primeiro da primeira parte da ſua Mantiſa Spa
gyrica : Et vero poffidiſſe Theophrafium Paracelſum
Lapidem auriferum , orbis clamitat , & ad nos vocem
reflectunt Magni Rudolphi Auſtriaci tempora , quibus
boc indubitatum apud omnes percrebuit. Ifto meſmo
confeſlao , e certificaó cs Medicos ; e Cirurgiões,
que nas ſuas peregrinações o acompanhàraó , como
fe pode ver em Oporino, Meandro , Libavio , e ou
tros . E como Paracelſo tudo obrava com extrava
gancia , e galantaria , em huma occatiað fez publi
camente a tranſmutaçao do Mercurio em Ouro na
Praça de Bafilea , aonde o examinou hum Ourives ,
e achando - o verdadeiro , lho pagou todo por moe
da do Rhim . Por efte modo era riquiffimo Para
celſo , porque os enfermos , que curava com o La
pis , lhe davao grandes premios, e quando lhe fal
caſem com o devido agradecimento a tao grande
beneficio , na ſua Chryſopeia tinha ſempre hum opu .
lentit.
* Sobrea Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.S.11.159
Care lentiſſimo theſouro. Por iſſo era tað liberal , que
paſſava a prodigo ; porque a todos os neceſitados
dava dinheiro , ſuſtentava à lua cuſta todos os pal
fageiros , que na ſua peregrinaçao encontrava nos
Hofpicios , ou nas eſtradas. Todos os mezes ſeveſ
tia , e dava os veſtidos ainda novos aos pobres , mas
exceſſivamente ſordidos , poraffectar eſte deſaceyo ,
para veſtir como peregrino. Chegando algumas ve
zes por cauſa das ſuas peregrinações , e prodigali
!
dades a verle totalmente deſtituhido de dinheiro ,
no dia ſeguinte eſtava abundantiſſimamente provi
do , como eſcreve Oporino , que o acompanhou ,
e ſervio alguns annos nas ſuas peregrinações : Pea
cuniæ erat prodigus profufor , ac ea fape diſtitutus ,
ut ne obulum qu dem er ſupereſe ſcirem : craftıno ftatim
die rurfum crumenam ſe habere bene inſtructam often
debat , ut non raro miratus fuerim , unde ei fuiſſet
fuppeditata. Singulis feremenfibus veftem novan ſibi
fie
ri curabat , da priorem cuivis obvio donabat , fed ita
confpurcatam , ut ego nunquam mihi dari petierim ,
neque ultro oblatam , ut geftarem , recepturus fuerim .
Antes de proſeguir a hiſtoria de Paracello , quero
reſponder a huma duvida , que contra os meyos.
de fazer Ouro com o Lapis , lhe põem o Padre
Feyjoo. Pero de donde ſabemos., (diz ) que Paracelſo
no tenia aquellas monedas eſcondidas , para oftentarlas
a ſu tiempo a Oporino , para hacerle creer , que poſſe
hia elſecreto dela Piedra Philofobal , como quiſo has
cerlo crer a todo el Mundo ? Porèm eſtimàra , que
Sua Reverendiſſima me diſſera , donde colhe que
Paracelſo eſcondia o dinheiro , paraque apparecen
do com elle , le perſuadiſle Oporino , que o fazia
com o Lapis.? E como nað havia de crer Oporino,
eo
160 Ennea , ou "Applicação do Entendimento ,

e o Mundo , que Paracelſo tinha a Chryſopeia , ſe


elle nao tinha outros bens , e vivendo ſempre pe
regrino , era tað rico , e taó grandioſo ? He certo ,
que Oporino como domeſtico Diſcipulo , e criado
de Paracelſo , ſabia donde lhe vinha o dinheiro com
que ſe ſuſtentava , e confeffa , que algumas vezes
ſe admirava de lhe ver a bolça cheya , ſem ſaber
donde lhe vinha : Ut non raro miratus fuerim , une
de ei fuiſſet ſuppeditata ; e eu também me admiro ,
de que admittindo Feyjoo o.provimento da bolça ,
creia , que Paracello tinha tanto dinheiro , e di
nheiro para tanto , occulto , e eſcondido, fem nos
deſcobrir o modo de o adquirir , para o eſconder !
Eftes , e outros femelhantes , faõ os fundamentos,
com que Feyjoo impugna a exiſtencia do Lapis ; c
por ſerem eſtalos de funda , fem pedra, ou ciros
de artelharia , fem bala , em que tudo he eſtron
do , e fumo , nað me canço em convencellos.
Com a referida extravagancia , pois , correo Pa
racelſo a mayor, e a melhor parte do Mundo ; por
que naſcendo em Helvecia no anno de 1493. paf
fou inſtruido nas fciencias , e letras humanas a Ara
bia , aonde, e nas Provincias circumvilinhas , af
fiftio dez annos , como eſcreve Bekero . Paſſado ef
te tempo veyo peregrinando por varias Provincias,
como laõ a Hungria , Croacia , Illyrico , Tranſil.
vania , Alemanha, Auſtria , Polonia, França , In
glaterra , Hefpanha , Portugal, Italia , Valachia ,
Succia , Flandes , Dania , e outras Provincias aon
de havia Univerſidades , para ouvir ſeus Meſtres,
e para lhes dar alguma luz da Philoſophia Hermeti
ca , que eſtudou na Arabia , como podeis ver na
liçao dos ſeus livros , e mais breve , e fuccintamen
te na
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog'.I.cap.unic.$. 11. 161

te na relaçao , que das ſuas peregrinações fez o dou


tiflimo Sennerto. Obrava em Paracello o Ouro da
Corto Pedra Philoſophal o meſmo effeito , que ſe obſerva
no Ouro da Pedra Helites ; porque eſta Pedra cem
huma mancha de Ouro , que ſeguindo o movimen
to do Sol , todos os dias faz o ſeu gyro do Orien
te para o Occidente , como por lição de Cardano
refere Bluteau , affirmando poſſuir o Papa Clemen- Bluteau Vo
te VII . eſta Pedra Solar; e com eſte movimento per cabul. Toin .
petuo correo Paracelſo o Mundo ; porque parece 7.fol.697.
natureza do Ouro deftas myſterioſas Pedras, nao
ter como o Sol nenhum focego. He a Pedra Helites
fymbolo da Pedra Philofophal; porque le vè nella
o Ouro , em que a Natureza transformou a Pedra.
Porèm tambem o Ouro da Helites he Hieroglyphi
co de Paracelſo ; porque na companhia da Pedra
Philofophal nað teve nenhum deſcanço . Chegana
do finalmente a Salisburg , onde a inveja de ſeus
emulos lhe anticipou a morte , tirandolhe a vida
com veneno , aos quarenta e ſete , ou quarenta e
oito annos da ſua idade , ſegundo eſcreve Crolio ,
teſtou de todos os ſeus bens, inſtituhindo por ſeus
univerſaes herdeiros aos pobres, como conſta do
teſtemunho authentico do Sereniffimo Principe , e
Illuſtriſſimo Arcebiſpo daquella Metropoli, que ain
da hoje ſe lè na Igreja de S.Sebaſtiao neſte immor
tal Epitaphio : Conditur hic Philippus I heophraſtus in
fignis Medicina Doctor , qui dira illa vulnera , lepram ,
podagram , hydropiſin , aliaque infanabilia corporis
contagia , mirifica arte ſuſtulit : ac bona ſua in paupe
res diſtribuenda , collocanda que bunoravit. Anno 1541.
die 24. Septembr. vitam cum morte mutavit. As enfer
midades , que coſumaya curar o grande Philippe
X Theos
1
162 Ennea , ou Applicaçãõ do Entendimento ,

Theophraſto Bombaſto de Hohenhaim Paracelio ,


com o ſeu Lapus , ſao gallico , lepra , hydropeſia ,
colica , apoplexia , gota coral, hypochondria , got
ta , cancro , gangrena , phthiſica, peſte, empyema,
chagas, fiſtulas , e todas as outras moleſtias , e en
fermidades interiores, que por deſprezarem outros
remedios , ſe reputáo incuraveis , como conſta do
referido Epitaphio , e do teſtemunho dos Eſcri
tores ſeus contemporaneos. Aqui tendes, Senhor
Enodio , hum peregrino deſconhecido por todas as
Provincias por onde viajava , com veſtido de po
bre , e de humilde paſſageiro ; mas taó rico , que
a codos dava dinheiro , e ſuſtento , e a muicos o
veſtido , e ſe naš galtàra os ſeus bens , como o ſeu
genio , é curioſidade quizeraó , podera eſtabelecer ,
e deixar no Mundo huma cala tað rica , como a
Chryſopeia , e tað perduravel como a ſua fama. Po
rem deixando as ſuas riquezas aos pobres , ſe nað
fundau huma caſa illuſtre , e opulenta na terra ,
onde tudo he terra , ou nada, melhor, emais Chriſ.
ráamente obrou para fi , enchefourando os ſeus bens
no Ceo , para os lograr como piamente podemos
crer , por toda a eternidade ; porque como a vida
boa he precurſora de boa morte, é a boa morte he
echo da boa vida , quem acaba a vida como Chrif
cao, he moralmente certo , que ſe ſalva , como
Catholico.
Tanıbem he certo , que Democrito foy tað ri
co , e abundante dos bens da fortuna, que ſeu pay
hofpedou em ſua caſa a Xerxes com todo o ſeu
grande exercito, como eſcreve Sennerto : Fuit etiam
ditiffimus, cum pater ejus Xerxem Regem , & ut non
nulli referunt, cum exercitu decies centonum millium ,
hofpi
Sobre a Pedrà Philofophal. Dialog.I.cap.unic.$.11. 163

hoſpicio exceperit ; e com toda eſta grande riqueza


eſtudou com os Magos , e Chaldeos, que Xerxes
lhe deixou para ſeus Meſtres , como refere Dioge
nes Laercio na ſua vida. Depois que Democrito
fe inſtruhio na Philoſophia , que os Chaldeos , e
Magos lhe enſinarao , paſſou ao Egypto , para ef,
tudar a que là enſinavao os Sacerdotes de Vulcano;
e do Egypto paſſou peregrinando à Perſia , .com
deſejo de ouvir outra vez os Chaldeos ; e movido
com a fama dos Gymnofophiſtas , chegou à India ,
donde voltou pela Ethiopia muito fabio , e ſenhor
de grandes fegredos , como diz o meſmo Senner
to : In quibus locis procul dubio arcaniſſima quæque
didicit. A principal ſciencia de Democrito foy à
Philofophia Hermetica', ou Arte Chymica, ſegundo
affirma o meſmo Author : Referunt & inter Chymi
cos Democritum , quem inſignem Philofophum fuiffe
certum eſt. E do meſmo Philofopho Democrito el
creve o Grande Joao Franciſco Pico Mirandulano
no ſegundo capitulo , do Livro II. de Auro, que fo
ra o Principe da Chymica entre os Gregos , a qual
eſte Philoſopho eſtudou no Egypto , Perfia , e na
India : Pariterque comperi Democritum apud Græcos
Principem Chemiæfacultatis in Oriente verfatum , ab
Ægyptiis, à Perſis , ab Indis multa didiciſſe. E quem
viffe a eſte grande Chymico , ou Adepto peregri
nando de terra em terra , com o pobre trato de Phi
lofopho , e de peregrino , e ouviſſe que fazia algu
mas maravilhas , curando varias enfermidades , c
fazendo com a ſua grande fciencia muitos prodi
gios , como inſigniſſimo Hermetico , imaginaria ,
que as ſuas artes erað induſtrias para viver , ou
para enganar os Magnates, com o intento de rece
X ij ber
164 Ennea ,;ou Applicação do Entendimento ,

ber delles algum beneficio , ou premio , para fa


zer a ſua fortuna ; couſa , que nao podia pertender
bum Chymico tað rico como herdeiro de hum
pay , que hoſpedou em ſua caſa ao Monarcha mais
opulento , e o Exercito mais numeroſo , que vio
o Mundo ; porque conſtava de cinco mil Nàos , e
de cinco milhões de combatentes , como podeis vec
no Sermaó da primeira Dominga do Advento , que
anda na quinta parte do grande Vieira . E le do
trato humilde , vida peregrina , e ſciencia Herme
tica , ſe fizeſſe argumento contra a ſua riqueza , e
Philoſophia , perſuadindo -ſe alguem pelo que viað
os olhos , que era pobre , e ignorante Democrito ,
he certo , que ſe enganava , como com outros ſe
melhantes Adeptos muitos homens ſe enganaó .
Eſta era na minha eſtimaçaó a verdadeira cau
la do ſeu perpetuo riſo ; porque nao podia Demo
crito deixar de ſe rir continuamente de muitos ho
mens ignorantes, e preſumidos de labios , que jul
gaó as realidades pelas apparencias , as ſubſtan
cias pelos accidentes , os talentos pelos veſtidos ,
ou entendimentos pelas caras , e os interiores , pe
lo que vem os olhos ; porque como eſte Philofo

pho cinha viſto grande parte da terra , e alcançado


os mayores ſegredos com a ſua extraordinaria fa
bedoria , conhecia com toda a evidencia , que na
dilarada esfera do Mundo , ainda entre os que el
cudao , e ſabem alguma coufa , fað infinitos os col
los. Pode haver mayor fatuidade , do que julgar
pelo goſto proprio a felicidade alheya , quando
a felicidade humana con Gifte em concordar a vida

com o genio , como eſcreve Bacon , varaó mayor ,


que todos os que produzio Inglaterra : Felices die
xerim ,
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog . I.cap.unic.Ş.11.165

xerim , quorum indoles naturalis cum vitæ ſuæ genere


congruit ? Dos vagabundos com capa de Peregri
nos , diſſe Henrique Cornelio Agrippa no ſeu li
vro da vaidade das ſciencias , que nað trocariao a
ſua vida pela dos Magnates . Eſta ſentença appro
va o douciſlimo Feyjoo , porque a ſegue no ſeu
Theatro Critico , tratando da humildade , e alta for
tuna. O goſto he vida ; e a vida goſtoſa , diz Gra
cian , he a verdadeira felicidade. Por iſſo alguns
Chymicos como Paracello , e Democrito , eſtimað
mais a ſua peregrinaçaó com (aude , e com dinhei
ro , pará verem as Cortes , e grandezas do Mun
do, do que o deſcanço com que vivem muitos las
bios ſem dinheiro , nem ſaude , fechados , ou ca
tivos na voluntaria prizao da ſua Livraria , aonde
os ſeus eſtudos fem experiencia laó dignos do ri
ſo de Democrito.

A ſabedoria, como vinda do Ceo , anda neſte glo


bo terreſtre peregrina ; nað he facilachalla ſena
peregrinando ; errando por eſte Mundo , fe apren
de a naó comerter erros. Paſſadas , que ſe daó pe
regrinando, faõ degraos para a caſa do deſengano.
Das ſuas fontes ſahem os rios muito pequenos, creſ
cem correndo , e levað mares ao mar. Homens ,
que da ſua terra nað lahem , lao navios , que aca
baó no eſtaleiro ; porèm ſahindo , faó como os va
pores, que na terra erað lodo, e aparcados della ,
le fazem Eſtrellas. Servelhe a Patria de Horizonte

em que naſcem , e a peregrinação de Hemiſpherio


em que brilhaố . Que nome teriaõ hoje no Mundo
os Socrates , os Pythagoras, os Placões, e outros
ſabios da antiguidade, ſe a modo de cepos, ou tron
cos, que aonde naſcem , lançaõ raizes , e no ſeu pro
prio
166 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

prio chao apodrecem , ficàra ) comoarvores enter


rados na terra onde naſcérað , e nao buſcàrað fóra
da Patria as noticias , que lhes faltavao ? Os ſabios
peregrinos , faõ como as fontes, que correndo pe
la terra por veas de Prata , e Ouro , Eſmeraldas ,
e Saphiras , Diamantes , e Pedras finas, tomaó , e
levaõ comſigo as virtudes das ſuas precioſas quali
dades . Zombe embora Plutarcho dos que louvaó a
peregrinaçað , e diga que le parecem com os que'jul
gao as Eſtrellas errantes mais nobres, e felices que
as fixas ; porque no exemplo das Eſtrellas devem
aprender todos os ſabios , que ſendo Eſtrellas : Qui
adjuſtitiam erudiunt multos quaſi Stalla in perpetuas
eternitates ; ſempre devem peregrinar como as Ef
trellas , que cada dia correm o Mundo , e nem no
meſmo Firmamento tem firmeza ; porque ſe tem
obſervado, que nem as Eſtrellas do firmamento ſao
Xas.
ENODIO . Naš poſſo ſofrera injuria , que in
juſtamente fazeis a muitos ſabios , como errado jui
zo , que de todos fazia Democrito ; porque eſte
Philofopho foy hum homem doudo , como os Ab
deritas ſeus naturaes eſcreveraó a Hippocrates , cha
mando - o , ou rogando- o por huma embaixada , pa
ra que ſe dignalle de hir curar aquelle maniaco .
1 ENODATO . Agora me quero eu rir tambem
de vos ; porque me pareceis verdadeiramente louco.
Não leftes nunca em Laercio , que ouvindo Hip
pocrates a embaixada dos Abderitas, refpondera,
que fe a enfermidade foſſe outra , elle hiria logo cu
rar a Democrito ; porém que retirar- fe das gentes,
para hir viver nos defertos , o que elles reputavão
por doudice , mais era para invejar , que para cul
Tar ;
Sobre a Pedra Philofophal .Dialog.I.cap.unic.S.II. 167.

rar ; porqué nunca Democrito eſtivera mais ſizu ,

12 do , nem tivera o juizo mais fam , do que quando


fugia dos homens, para viver deſterrado , e pere
grino : Habere in eo magis , quod fufpiciat , quam
quod ſanet : illud Schema vitæ eſe Jartam , tutam .
que animé ſanitatem : nulloque modo melius fibi con
ſuli contra peſtilentem hominum airam , quam reci
piendo fe in tuta ſolitudinum loca. Chegando em
fim Hippocrates à prefença de Democrito , achou
que nao eſtava louco , fenao muito prudente , e
muito fabio , aindaquetao mal reputado pelos idio
tas , como o Supremo Dictador da Medicina re
fere na carta , que eſcreveo a Dionyfio , dando - lhe
conta da embaixada , e relatandolhe a doudice da
Philoſopho : Ego vero neque morbum ipſum effe pula
to , fed immodicam doctrinam , qua re vera non eſt
immodica , fed ab idiotis putatur. E na carta , que
tambem eſcreveo a Damageto , confeſſa Hippocra
tes , que tað fóra eſtava Democrito de ſer doudo,
que antes era o homem mais ſabio do ſeu tempo ,
o qual com a ſua doutrina o enſinara , e por elle
communicàra a todos os homens a ſua grande ſcien
cia : Non inſanit Democritus, ſed ſuper omnia ſapit,
nos fapientiores efficit , do per nos omnes homines. E
daqui podereis entender , como faõ falſos os juizos
dos homens naturaes da terra , onde naſcem os Phi
lofophos como Democrito ; porque fað tað nefcios ,
que depois que eſtes ſabios alcançaõ os mayores
ſegredos das ſciencias , e artes , peregrinando pelo
Mundo natural , ou pelo Orbe literario , quando
no leu retiro , e peregrinaçao lhes fazem algum ob
fequio , publicamente lhes chamaõ doudos. Porèm

conſolao - le neſtas injurias com o verdadeiro jui


ZO ,
168 Emaa , ou Applicação do Entendimento ,

zo , que da ſua peregrinaçaó , e ſciencia fazem


os honiens doutos como Hippocrates ; porque exa
minando- lhes a labedoria , e avaliando prudente
mente o ſeu retiro , invejað , e louvao o ſeu gran
de entendimento .
ENODIO. He muito antigo , e muito verda
deiro , que ninguem he Propheta ſem honra , fe .
naõ dentro na ſua Patria ; e agora vejo , que tam
bem injuſtamente a perdem os peregrinos fóra del
la ; porque deſconhecidos os ſeus entendimentos,
faó reputados por fatuos , ſendo verdadeiramente
os homens mais entendidos . Porém como o deſco
nhecimento da ſua grande ſciencia he occaſiaõ do
jeu deſprezo , nað me parece que os Hermeticos le
raó injuriados na fua Patria ; porque o conheci
mento da ſua admiravel fabedoria lhes legura to
das as eſtimações. He certo , que ſe em qualquer
terra houveſſe hum Adepto conhecido , o qual em
prégaſſe a ſua Arte em ſerviço , e utilidade da Pa
tria , todos os ſeus Patricios lhe levantariao huma
eſtatua publica , para eterno teſtemunho do ſeu
agradecimento , e padrao immortal da ſua fama. 1
Por iſſo cenfuro aos Hermeticos viverem peregri
nos,por terras alheyas , ou encobrirem a ſua gran
de ſabedoria , vivendo na fua Patria .
ENODATO . Facilmente vereis o erro do voſſo diſcurſo no
claro eſpelho da experiencia . Na Corte de Pariz
floreceo na Philofophia , Mathematica , Poeſia , Pin
tura , e na Chymica , o famoſo Hermético Nicolao
Flamel ; e ouvindo Carlos VII . Rey de França ,
que com grandes diſpendios fundava , e dotava qua
torze Igrejas , e outros tantos Hoſpiraes , mandou
por hum Meſtre de Requetes chamado Carmoily,
ſeguns
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.$.11.169

EM ſegundo eſcreve Borel , averiguar osmeyospor onde


de Flamelajuntàra mais de dous milhões , com que
lo não fó (fundou , mas docou com grandes rendas os

>
ditos Hoſpitaes , e Igrejas : a tefte Miniſtro def
cobrio Flamel , que ajuntara todas aquellas rique
-zas , com a virtude admiravel dal Pedra Philofophal,
que The moſtroa dentro em humi vidro. E ſem em
(bargo de que o certifica a Real Academia de Fran
iça , como ſe lè a folhas dużeatas ; e ' dozę do ſeu
famoſo Diccionario , não falcáo Arbores, France
zes , a quem fegue o doutiſſimo Feyjoo, que allir
-mem o contrario , levantando em lugar de Edatna
publica , para honra , e fama de Flamel, lium fallo
teſtemunho à fua peſſoa , para fua infamia , e der
honra ; porque eſcrevem , qne tendo Flamel mane
jo nas fianças, ganhou tão groſſo cabedal com rou
bos , e extorções , eſpecialmente ſobre os Judeos
daquelle Reyno , fingindo , que tinha adquirido
aquelle dinheiro com a fua Chryſopeia , para com ef.
ta induſtria evitar o caſtigo , que merecia , por fa
zer tão exorbitantes latrocinios. Eiſaqui os pane

gyricos , com que coſtumão elogiar os Patricios aos


Hermeticos , e os Padrões , ou Eftatuas , que lhes
levantao , por empregarem taó util , e virtuofa
mente a ſua Arte , em beneficio da Patria ; e da
Naçao . Porém eu eftimàra , que os Francezes , ou
-Feyjoo , me concordaſſem a piedade , e virtude ,
com que Flamel fundava , e docava tancas Igrejas, e
-Hoſpitaes , com o vicio , e peccado de roubar para
obras tao ſantas o dinheiro . E como ſonberað mais
tarde os Authores Francezes , o que nao pode ave .
riguar logo ElRey de França ? He certo, que fe Fla
mel tiveſſe manejo em fianças, naõ feria noyo para
Y Cars
170 ! Ennæa , ori Applicação do En ! cudimento ,

Carlos VII. a ſua grande opulencia; novidade ſe


ria para a Mageftade Chriſtianiſſima, naõ ſer rico
Flamel , podendo fer Ladrao. Nao poſſo porèm
deixar decondemnar agora outra grande incohe
Theatr. Cri-- rencia, com que Feyjoo nega , ou duvida o credi
tric. Tom . 4: ,to aos Authores Francezes , acerca das ſuas cradi
Diſcurſ. 13
n.66.fol.354 ções, ſobre a vinda do Areopagita a Pariz : Laza
ro , Marcha , e Maria a Marſèlha : 0 Anjo trazendo
do Empyreo as tres Liſes aó Rey Clodoveo ca
-Pomba , que trouxe do Ceo a Santa Ambula , ou
-Redoma de Rems', cheya de hum preciofo balſa
mo , com que ferungem os Reys de França : a fun
daçað da Monarchia Franceza em Faramundo ; e
-a intituiçaõ da iley Salica ; dandolhe o meſmo Fey
-joo tanto crédito na tradiçaõ dos roubos, e extor
ſóes de Flamel. Nað ley como concorda crer , e
< juntamente nað crer das tradições dos meſmos Au
( thores Francezes ? )
ENODIO . Todos os Philofophos tem ſuas
-paixões como homens ; e nao podereis agora ne
gar , que tendo vos tað grande venerador de Fey
joo , ſó porque elle eſcreveo com demafiada paixao
contra o Lapis , o impugnais. 'tambem como apai
-Xonado . Porém jà que o contradizeis com tanto .
fundamento em alguns pontos da fua doutrina , de
I veis por credito volto , e da Philofopbia Hermetica
refutar todos os feas argunentos , e desfazer a in
conſequarcia , com que elle , impugnando a Pedra
s.Philofopbal, argue tað forte, e efficazmente aos Her
meticos ,' que cotalmente os deixa convencidos. 1 ,
999 ) !. 62 let
<
+ ; !:: > ? -,201nis
Cours
S. XIL
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.12. 171

0 S. XII. .
n
Refutao -ſe finalmente todos os mais argumentos , que
contra a Chryſopeia oppoem o Reverendiſſimo" ?
s
: Feyjoo no ſeu Theatro Critico.
.)

ENODA Unca a paixao me cegou o


entend
TO . N imento para deixar de

conhecer , c amar a verdade depois de deſcuberta;


mas ſempre me eſcandalizou ver a imagem da men
tira , collocada no chrono da verdade, e derruband
do até agora a verdade, a eſtatua da mentira , con
mo ao Idolo Dagon lançou por terra no primeiro
encontro a Arca do Teſtamento , neſte ſegundo ,
e ultimo combate cahirà a mentira do altar à viſ

ta da pureza da verdade, e com a cabeça , e mãos!


cortadas ficard , como o Idolo , fóra do Templo
da fama, donde eſtava tão idolatrada. ' :
E principiando pelos quatro principaes argu
mentos : , funda -ſe o primeiro ſobre a ignorancia ,
que hà dos principios Chymicos ; e de premiſſas de
ignorancia, nað pòde Feyjoo inferir , ou tirar con Feyjoo Thea.
cluſaó de ſciencia. Nem , como enſina Daniel Sen- tr.Crit.Tom .
nerto , pertence ao Chymico diſputar de principios : 3. Dilcurf, 8.
Sed ſciendum , de principiis diſputare non effe Chyma- num
162.. 12 , foli
4 i'
ci qua Chymicus ; e neſtes termos , deixando agora o
Sennert. loci
que como Medico , e Philoſophomepertencia ,
cit. cap.i. fol.
mos ſomente ao que importa. Funda -ſe o ſegundo
181 .
em que nenhum Chymico introduz o Sal na compoſi
çaõ dos metaes , nem do Ouro feitos pela Arte Mag
nas porque tem fazerem os Hermeticos expreffa meng
çaõ do Sal , fallao ſomente no Enxofre , e noMercus
Yij rio ;
272 Eimea , du .Applicação do Entendimenta ,. ?

rio ; e lendo o Salo elemento preciſamente necellario


para a compoſiçaó dos mixcos , por dar todo o pe
zo , е firmeza aos corpos , com muito mayor razao
deve, entrar na compoſiçao do Ouro ; porque he
mixco de mayor peza , e firmeza do que nenhum

dos outros metaes. Porèm Sendivogio no leu Tra


tado do Enxofre deſcreve a grande pendencia , que
com o Enxofre teve o Sal em huma fonte , ou per
to della , ſahindo o Enxofre ferido do Sal , e cora
rendo das feridas leite em lugar de ſangue , do
qual naſceo , ou manou hum Rio caudaloſo , em cua
jas agoas ſe ſumergio Diana , e querendo falvalla
é Sol naquelle naufragio , Diana: afogou comſigo
ao Sol , ficando ambos ſepultados nas agoas , atè
finalmente reſuſcitaraó . E o famoſo Medico
que
d'ElRey de França Pedro Joao Fabro fe confeſſa
fer preciſo o Sal para a compoliçaó dos mixtos, e
accreſcenta , que ſem elle ſe naó pode obrar cou
ſa alguma na.Obra Grande : Undefine fale nil in ar
te noftra efficere poffumus ; tambem declara , que os
Chymicos naó fallað no Sal , por ſer myſterios
fo , e neceffario o ſeu grande , e importante filena
cio ; porque ſendo o Sal , a chave da Arte , o mef
mo feria fallarem nelle , que entregarem a codos as
Petr.Joah.Fa- chaves dos ſeus the ſouros , e ſegredos : Ratio au .
br. apud Mág. tem qua ad tale ſilentium ſunt moti, fortaſſe eft , quia
Tomo 1: Bi- ipfi noluerunt clavein artis patefacere ; sal enim nof
blioth. Chem trum eft vera clavis artis , & abfque illo , nec Sub

lib . 1. fe t.3. phur, nec Mercurius in lucem patefieri posſunt


. Por
fubfect. I.cap. No os Hermeticos fallað ſempre myſterioſa , e enig,
10.fol.296. maticamente na explicaçað dos metaes , e dos ſeus
phenomenos 3 porque confeſſando que os corpos
metallicos conſtao de Sal , Enxofre , e Mercurio ,
паб
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.$.12. 173

0 nað entendem por eſtes tres principios os corpos


vulgares do meſmo nome , fenao outras fubſtan
cias ſemelhantes a elles ; e para occultarem mais
à intelligencia da ſua Philoſophia , attribuem aos
: metaes Corpo , Alma , .e Eſpirito , entendendo pelo
Eſpirito o Mercurio , pela Alma o Enxofre , e pelo
Corpo o Sal , como ſe pode ver no Collegio Chy
mico do grande Ertumullero : Chymici , ut exactius Ettmuller.
metalla eorumque phenomena explicent , docent, quod Tom . 1.Col
illa conſtent ex Mercurio , Sulphure & Sale ; quæ do- leg. Chymic.
Etrina eſt antiquiffima , dojam olim à Raymundo Metal. in ge
Lullio recepta .Intelligenda vero
per hæc tria principia fol.377.
Sal, Sulphur , & Mercurium , non vulgaria illa cor
pora ; ſed utres clarior fiat , per Sulphur intelligen
da venit fubftantia acıdo-pinguis , à qua metalla faci
lem habent ignitionem & excandefcentiam . Per Mer
curium bumiditas radicalis metalli, feu principium ta
le ,à quo habent facilem fuſibilitatem . Nomine falis
fubf
tantia metalli fixior fere de natura alcaliúm ( quia
abſorbet acidum ) ligans Sulphur do Mercurium , do
cum ijs in fubftantiam metallicam fatiſcens... Convea
nit hæc explicatio cum illo Chymicorum , quando ni
mirum metallis corpus, animam , & fpiritum tribuere,
per corpus intelligendoSal, per animam Sulphur , per
Spiritum Mercurium , qui extrema quaſi conglutinet
atque confirmet , conftringatque. E à viſta do que ef
crevem Ectmullero , Fabro , e Sendivogio , clara
mente ſe ſegue do argumento de Feyjoo , que el
le nao entendeo , ou nao leo muitos Authores Her
meticos ; e nao pode ſer argumento contra a ſua
myſterioſa Philoſophia , a pouca noticia de Fey
joo por falta de eſtudo, ou de intelligencia. Funda
fe. o terceiro , em que o Enxofre , e o Mercurio dos
mes
174 Ernæa , 01 Applicação do Entendimento ,

mecaes nað ſaó homogeneos , como ſe vè neſtes


meſmos principios , tirados por deftillaçao das
plantas ; e da meſma forte , que as plantas faõ dis
verſas entre fi , lao tambem entre ſi differentes os
metaes. E fendo naturalmente impoſſivel fazer hus
ma planta dos principios de outra planta ; tambem
ferà impoſlivel fazer hum metal dos principios de
outro mecal . Eſta paridade porèmi naõ eſtà tambem
ajuſtada como Feyjoo entendeo ; porque as plan ,
tas ſao tao differentes entre fi , como os ſeus prin :
cipios , cuja diverfidade ſe conhece na differença
dos fructos , e dos ſeus ſabores , como tambem nas
diverſos virtudes medicinaes ', que ſegundo neſte
argumento pondera Feyjoo , nos ditos principios le
experimencao. Mas na eſſencia , e na raiz todos os
metaes fað o meſmo , e tem tanta conveniencia ,
que ſó differem entre fi pelos accidentes , e matu .
rações , originado tudo da pureza , bondade , c
miltura dos ſeus principios , de que reſulca facilmen
te a ſua traſmutaçao, como diſcorre o referido Et,
Ettmuller . tumulero : In radice ergo , e eſſentia omnino inter
Tom . 3.Col- ſe conveniunt metalla , maturitate vero , aliiſque.accia
leg. Pharm . dentibus, faltem differunt , quæ ex principiorum com
cap.10.Mine- ponentium puritate , & bonitate, horumque varie pro
ral. fol. 265. portionata miſcella originem ducunt ; unde , & mur
tho tranſmutabulia exiſtunt. E ſendo eſta ſoluçað tað
Aatural , e verdadeira , para com fubtiliflimas inf-,
tancias acreditar o ſeu engenho , fuppõem o Reveri
rendiffimo Feyjoo , que ,, los Alquimiſtas diran , que
cada planta'es un mixto perfecto de por fi, pris ,
,, mariamente intentado por la naturaleza , como :
los de mas contenidos debajo del miſmo genero ;
‫ڈو‬
» pero no aſli- los,metales , en quienes la natureza
ſiem .
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.S .12. 175

3 ſiempre intenta la producion del oro , y los de


ig mas metales ſe comparan a el , como lo imper
fecto a lo perfecto dentro de la miſma eſpecie ;
os por ello entran en ellos los miſmos principios ,
» que componen , ô eſtan deſtinados a componer
el oro ; pero muchas vezes no arriba la natura
leza a la perfecion de la obra , ò por las impul
ridades de la Matriz , ò porque los principios
y no eſtan combinados en la proporcion de canci
dad debida à cada uno , ò por otro eſtorvo . Pero
todo eſto ſe dice voluntariamente , y fuera de
59 toda probabilidad . Si el intento de la naturaleza
fueffe folo formar el oro , y la diſtincion de los
mecales à el fueſſe la que hay de lo imperfecto
S3 à lo perfecto dentro de la milma eſpecie , en las
miſmas mineras del oro la milma vena , que ul

s timamente, en fuerza de mayor decocion , ò de


puracion , viene a ſer de oro , ſe veria antes en
el eſtado de plomo , eſtaño , hierro , cobre , y
» plata : afli como porque la naturaleza intenta el
arbol en ſu debida magnitud , ſe vè antes ir gra
dualmente paſſando por menores dimenſiones , y
9 porque intenta el fruto maduro , y ſazonado ,
ſe vè antes en differentes grados de verde , y de
, fabrido. Y eſta paridad le ballarà ſer muy ajuſ
* tada, li le hace reflexion a que los Alquimiſtas
llaman maturacion aquella ultima per fecion , que
* los principios metalicos logran en el oro . Na
hallandoſe , pues , eſto en la experiencia , es cla
os ro , que los demás mecales ſon mixtos perfe
etos , adequadamente diſtintos del oro , y. inten,
cados , como èl, primariamente porla naturaleza.
Porém a eſta inſtancia ſe relponde , que todo eſto se
dice
176 Ennaa , on Applicação do Entendimento ;

dice voluntariamente , y fuera de toda probabilidad ;


porque os metaes imperfeitos tem mais ſemelhança
com os corpos enfermos , como diz Santo Alberto
Magno , do que com o augmento das plantas , e
a verdura dos fructos , conforme diſcorre Feyjoe
neſta inſtancia , que vem a ſer a meſma differença,
que elle afligna entre o perfeito , e o imperfeito ; e
allim como nem todos os corpos naſcem doentes ,
nað faó tambem todos os metaes enfermos, ou ime
perfeitos no feu naſcimento ; por iſſo nasminas nað
apparecem ſempre os metaes como os fructos das
arvores primeiro verdes , e depois maduros , ou
fazonados; mas quando ficaõ no eſtado deChume
bo ; Eſtanho , Ferro , Cobre , e Praca , por ferem
eſtas enfermidades taó grandes , que as nao pode
vencer ſó a natureza , por ſerem contrahidas nos
principios da geraçao, vence-as admiravelmente a
Arte Magna com á fua Univerſal Medicina , o que
naó pode fazer a Chryſopeia nos fructos das arvo
res , que intempeſtivamente cahem da planta , e
por outros varios modos adoecem , e fe malograð ;
porque entre os fructos , e os meraes, ou entre as
enfermidades dos metaes , e os achaques dos frue
Etos ha huma differença taó grande , que ſerve de
diſparidade ao parallelo , que Feyjoo prefumio ef.
tiva bem ajuſtado. E paraque a experiencia ;" de
que eſte Author nað tem noticia , confirme a
que tento dito , ouçamos outra vez a Etrmulleroy
que com excellentes razões , e experiencias explic
Cando-ſe metaphoricamente pela maturaçao desme..
taes , moſtra como fazonandofe , ficaố transformare
dos : Cum itaque met alla'ın radice conveniant ,
non nifi grado de perfectione differant , facile patet,
quid
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog. I.cap.unic.Ş.12.177

quid de tranſmutatione metallorum fit ftatuendum .


Nempe non repugnat , metalla imperfectiora , ignobi
liora, & immaturiora, ad maiorem gradum perfectionis,
3,0 nobilitatis , & maturationis , perduci posſe. Notum enim

?
eft , quod Saturnus mutetur in Solem , tefte Helmontio;
aliaque metalla in Solem tranſeant , teſte experientia,
Res” certa eſt. Non enim differunt formaliter , fed
tantum maturitate ; inde ſi maturationis debitum ac
quirunt gradum , abeunt in verum aurum . Ita Luna
Ji perfe&tius figatur , evadit in aurum ſaltem ut eidem
deficiat tin &tura , quam mutuatur à Venere, cum hæc
de enteSolis participet. Huc quadrant verſiculi illi Ba.
filii Valentini :

Intus fum cæruleus & albus ; Ettumuller .


Quando conſequor pretium fixum . Tom . 1. Cole
Venus me veſtit ſubito , leg . Chymic.
lečtion. 33
Veſte purpurea , da coccinea .
fol- 377
Toda a tranſmutaçao dos metaes depende do ſeu
Enxofre , que mais , ou menos puro , em todos he
o meſmo. Daqui vem ſer o Enxofre o ſugeito das
transformações , que dà , e recebe as tindturas. A
Prata fixa, he Ouro branco , e com a addiçao do
Enxofre Solar , fica perfeito Ouro. Com Eſpirito
de nitro beſoartico , le tira a cor amarella ao Ou
ro , e fica branco como Prata , de forte , que jà ſe
nao diſſolve com Agua Regia , fenaó com Agua .
Forte , mas pode -ſe tingir
tingir outra vez , e transfor,
niar em Ouro, que ſe diſſolverà ſó com Agua Regia.
Funda- fe finalmente o quarto , em que admi

tindo , que do Ouro ſe pode extrahir a tinctura


propria , chamada Mercurio , ou Enxofre , he fal
fo , que neſta tinctura reſida a virtude feminal , e
Z. activa
178 Ennæi, ou Applicação do Entendimennto ,

activa do Ouro ; porque nem o Enxofre , nemo


Mercurio do Ouro , juntos , cu divididos , faó o
C agente , mediante o qual a natureza fazo Ouro : lo
go naó relide nelles à virtude activa do Ouro ; e
a razão diſto he ; porque a Arte nao tem activie
dade , nem pòde produzir agente algum , mas ſo
applica aquelle meſmo , de que ula a natureza. A
natureza para aproducçao do Ouro nao uſa do En
xofre , nem do Mercurio antes de lograr aquella
perfeita depuraçao , ou maturaçaó , que tem quan
do conspoem eſte metal , nem dipois qu : a logra.
Depois do logro nao ; porque quando o Enxofre , e
o Mercurio chegað á ſua perfeita depuraçao , jà o
Ouro eſtà forınado , nao ſendo outra couſa o Ou-

ro , conforme os Alchymiſtas, que hum mixtocom


poſto de Mercurio , é Enxofre depurados : e depois
do logro muito menos ; porque os principios me
tallicos no eſtado de imperfeiçao naš podem p.o
duzir a mayor perfeiçaõ metallica , qual he à do
Ouro. Bem moſtrou Feyjoo neſte argumento ,que
profeſſava pobreza ; porque do Ouro nao poſſue
fenaõ humas remoras , e fallas noticias, e dos me:
taes nao tem verdadeiro conhecimento . Entendeo ;
Fcyjoo Thea. que de hum Vapor Audiſimo ſe forman tambien los
ir.Crit. Tom . Bronces ; ſendo os Bronzes artefactos compoſtos de
3.Difcurf.13. Eſtanho, e Cobre , e nao productos de vaporesy
9:21.num.84. por iſſo lhe nego o antecedente do ſeu enchimema,
fol. 324
e a razaõ em que le funda ; porque a natureza natu ,
cria
rada , não te como'a Natureza naturante , que
as couſas de nada ; e de nada formaria o Ouro , ſe
naõulaffe do Enxofre , e do Mercurio ; porque
fendo eſtes os principios, de que ſe compoem eſte
metal , como dizem todos os Philoſophos : Hina
dicunt
i

Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.$.12. 179

o dicunt Philoſophi, quod aurum nihil fit , quam puriſ- Ettmuller.


fimus Mercurius coagulatus à fixiflimo Sulphure ; ſe Tom . 3.Cola
). a natureza em nenhum tempo fe valle delles , e no leg. Pharm .
Ouro ſe naõ achað outros, nað ſe ſerve de ne- cap. 10. , de
nhuns principios para a ſua producçaõ ; e alim Auro.
. , fol.
obra a natureza na creaçao do Ouro , como obrou
o Author della na creaçaõ du Mundo , fazendo
creaturas de nada , couſa , que ſó deſcubro'na ſub
rileza deſte argumenco . Quando o Enxofre , eo Mera
curio chegao à fua perfeita depuraçao , diz Feyjoo ,
jà o Ouro eſtà formado : ora ſeja aſlim ; mas eſſa he
a obra da natureza , depurar perfeitamente os prina
cipios, para delles formar perfeitiſſimos mixtos . E
le os principios no eſtado da imperfeiçao , como
diz lieyjoo ", nao podem produzir a mayor perfei
çaõ metallica , qual he a do Ouro , para iſſo he ;
que os aperfeiçoa a natureza , fixando o Enxofre , e
coagullando o Mercurio . E ſe os Hermeticos dizem ,
que o Mercurio heamateria do Lapis , ſaiba Feyjoo ,
que fallao do Mercurio Philoſophico , e nao do Mera
curio do Ouro; porque o Ouro tem pouco uſo na Al
chymia , e erraõ gravemente todos os Alchymiſtas,que
do Ouro pertendem fazer , ou entendem , que ſe faz
a Pedra Philofophal, a qual ſe deve procurar na raiz
dosmetaes, e nao em os metaes perfeitos , como enſi
na Miguel Ettmullero : In Alchymia quoque eft paulo
ciſſimi uſus , ut ideo gravius errent , qui ex Auri cor . Ettmuller.
pore metallico lapidem Philofophorum elaborare conteni. Tom . 1. Col
dunt ; qui tamen non ex metállis perfectis , ſed ex radi- leg. Chymic.
ce potrus metallorum eſt quærendus. Mercurius Philo: kčt.38.de So,
le fol.393:
fophorum eft decantatiſſima illa materia prolapidePhis
lofophorum . Hic Mercurius Philoſophorum ex nullo
perfectometallo elaboratur , fed proximè ex ente metala
Zij lorum
180 Ennæa , 01 Applicação do Entendimento ,
Ettmuller . lorum primo , feu ex radice metallorum producitur.

Tom . 1. Col. Porém ſempre do Ouro ſe tira o fermento da Chry


Teg Chymic. Sopeia , para que faça o Ouro mais perfeito, ſegun
Ject. 31. de do adverte o meſmo Author : His pro fermento de .
Mercur . fol.
terminante aurum addendum , ait fiat aurium plufquam
373 ;
perfectum ; e por eſte modo ó fazia taó puro El
Rey Salamao , tirando o fermento Chryfophilo do
Ouro de Tharſis , e de Ophir , que excedia nos
quilates ao Ouro de Hungria, que abaixo do Chy
mico le o mais puro , e excellente de todos.
ENODIO . Ainda que reſpondeftes engenho
fa , e doutamente a eſtes quatro argumentos , te
nho por certo , que ſe Feyjoo ouvira agora as voſo
fas ſoluções , as impugnaria com a meſma facilida
de com que ſe livra da contradicção , de que o ar,
da Appellação ſobrea Pedra Philoſophal,
gue o Author
por ter dito Feyjoo em huma parte , que es poſſible
la produccion artificial del oro , y en otra , que es im
poſible ; porque conforme reſponde Feyjoo , não
hà contradicção en decir al principio , que es poſible
Feyjoo Tom . abſolutamente la produccion artificial del oro, y probar
4. Diſcurſ.12. deſpues , que es impoſſible por los medios, por donde la
fol15.nu
$ . intentan los Alquimiſtas ; que vem a fer o meſmo,
.299 ;m.39
que dizer, que es abſolutamente poſſible, que un hom
re buele , Y añader deſpues , que es impoſſible , que
buele con alas de plomo.
ENODATO . Com eſſa diſtincção não falva
Feyjoo a inconſequencia ; porque admittindo pof
fivel a producção artificial do Ouro , neceſſaria
mente ha de conceder a ſua poſſibilidade pelos me
yos, ou Arte , com que os fabios Alquimiſtas, por
muitos , e differentes modos , como ſemos em Pi
co , e Cauſino , intentaó , e conſeguem a Chryſopeia,
eAra
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.S.12.181

e Argyropeia , que he a famoſa Arte Magna de fa .


To zer Prata , e Ouro ; ainda que alguns màos artifi
ſem diſcredito da Alchimia nao ſaibao dif,
ces ,
por os,meyos ,methodo , ou Arte para conſeguir
o fim da Obragrande ; como ſuccede a muitos Dia
lecticos imperitos , ſem diſcredito da Logica , nao ,
fazerem hum ſylogiſmo perfeito , inferindo recta
mente a conſequencia das premiſas , por paõ fa
berem diſpor os meyos ; porque ha outros Philo
ſophos Peripateticos taó inſignes neſte artificio ,
como Ariſtoteles; e nao falcao Philofophos Hermes
ticos, tað ſabios na operaçao da Chryfopeia , como
Hermes. Agora vereis claramente a ſua contradicçao.
Louva Feyjoo a Theophilo traductor de Æirineo
Philaleta , e confeſſa , que Philoſofa mui bien fobre la Feyjoo Tom .
poſſibilidad del oro artificial, explica oportunamente, 3. Diſcurf.8 .
como el arte puedehacer las obras de la naturaleza ; lo $. 1. num . 3 .
fol . 198 .
qual confifte , en que uſa de los ſugetos , y agentes natu
iales, de modo , que la naturaleza, pone la actividad ,
I folo curren por cuenta del arte la direccion , j'aplica
cion : logo cambem confeſſa , que Theophilo , lendo
Alchimiſta, com os meyos de que ufa, e pelos me
yos com que intenta , pode fazer Ouro artificial;
porque ſuppone los principios- Chymicos , y los aplıca Feyjoo Tom.
muy racional, y methodicamente a ſu intento ; e por eſ- 3. Diſcurſ. 8.
S. 1. num . 3:
te modo , ou meyo , tendo negado , que os Chimi- fol.158.
ÇOS com os meyos , com que intentað fazer o Lapis,
poſao fazer a Chryſopeia , não ſó confeſſa que Theos
philo , mas que todos os mais Alquimiſtas , que
obraó o meſmo , podem fazer taó facilmente Ou.
ro pela Arte Magna , como nega aos homens voar
com azas de chumbo . Concede a poſſibilidade da
tranſmutacao dos metaes , conyencido con la famoſa
expert
182 Ernæa , ou Applicação do Entendimento ,

experiencia de la tranſmutacion del hierro en cobre pon


medio de la Piedra Lipis , ò vitriolo azul ; porque
comprueba eſpecioſamente la poſſibilidad de la tranſmu
tacion metalica. E como eſte meyo de fazer a tranſ.
mutaçaõ dos metaes , he hum de los medios por don
de la intentan los Alquimiſtas , ſegue -ſe com eviden
cia , que com os meſmos meyos diz
, contradictoria
mente Feyjoo , ler poſlivel , e impoſſivel a tranf.
formaçao dos metaes.
Nao deſtroe tambem Feyjoo com razao algu
ma a famoſa experiencia do Ferro transformado em
Cobre ; antes confeſa , que ſi en las experiencias, que
propone el traductor de Philaleta en orden a la tran
mutacion del hierro; eſtaño , y plomo en cobre , no ay al
guna fallencia , ſu argumento no desca de hacer hará
monia. Quando ſe argumenta com demonſtraçao
fundada em experiencia , nað ſe duvida, averigua
fe , fe he falla , deſacredira -ſe ; ſendo verdadeira,
naõ fe porfia , nem fe teima. Como pois diz Fey
joo , que no nos conſta , ſi lo que reſulta de la opera
cion en dicha experiencia , es verdadero cobre , o ſolam
mente el hierro depurado de algunas partes mas grosſe
ras, con lo qual adquiere aquella feinejanza de cobre ?
A eſta duvida refpondo com Sennerto , impugnan
do em proprios termos a Nicolao Guiberto . Ten
do Sennerco moſtrado , que no Monte Carpatho
de Hungria, e na Joffaria havia humas fontes, que
com as ſuas agoas transformað o Ferro em Cobre,
como de outras do Monte Cunticenfe o affirmað
tambem Joao Mattheus , e Lazaro Eslero , accref
centa , que o meſmo effeito faz a Arte Chymica com
Sennert. loc . as agoas Vitrioladas ! Neque hoc faltem aquæ natu :
cit , cap.3. fol , rales præftant , fed & Arte idem fieri poteft. Ferro
82 . enim
[ Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I.cap.uuic.Ş.12.183
_ enim in aquam vitriolatam conjecto,pulvis rubens adę
hæreſcit , quiigne fuſus cuprum euadit ... Et prope
terea laborat Nic. Guibertus , Lotharingus Medicus,
qui nihilominùs iſta in dubium vocare , & tot exper
rientiis tota Europa notiffimis convictus ,, etiam de
tranſmutatione Ferri in cuprum ſcribere,aj:det: Id apud
aliquos femidoctos ( tales fcilicet fint , si Gaberto
credinitis , Aricola , Wernerus, Natheſius, eu alii )
fideni inveniffe : miſtionem quidem eſſe & tempe.
Faturam fatis exactam , quæ dederit mendacio lo
.cum non eſſe formæ mutationem . Qui fi ad exd
men judicij & rationis prius hoc revocaſſent, lon
ge aliter lenkiſſent. Quafi per totum Imperium Rc
manum , fide publica , omniumque artificum . Dor
cim ftarum confenfu non eſſet notiſſimum ,cuprum illud
,
genuinum effe , imò eo quod multis in locis è terra
effoditur , præſtantius. Et Guiberto , neſcio quas ra
tiunculas in contrarium afferenti , plufquam tot arti.

ficium cenfuræ , & non unius ſæculi experientia , fideli


babendum , & umbratilis ad pulpitum ſpeculatio ex
perientie tot artificum præferenda ſit . Homine imper
rito nihil eft ineptius ! Eſtando eſta tranſmutaçao do
Ferro em Cobre , e a do Mercurio em Chumbo ,
provada com a experiencia, como ſe pode ver em
Joao Rhenano , allegado por Sennerto , nað ley
para que diſputa , ou duvida Feyjoo fobre couſas
labidas, e averiguadas por todos , ſenaó para moly
trar , que ignora o que todos ſabem , ou que pa
dece, aquella enfermidade ; que Ariſtoteles chama
fraqueza do entendimento : Quærere rationes , & Ariftotel. 8.
1 demitterefenfus wnfirmitasquædam mentis; e com de Phyſic,
bilidade na cabeça he temeridade muito arriſcada
0 entrar em defafio com a Pedra Philofophal ; porque
1 o Las
184 Ennaa , on Applicação do Enteudimento ,

öl
Lapis lança por terra ainda aos mais fortes gigan :
tes , ferindo -os mortalmente na cabeça ; e ſe a ca
beça he de () uro , tocandolhe a Pedra no Ferro ,
e barro dos pès , facilmente a reduz a poucas cin
zas. Se o Ferro , Eſtanho , e Chumbo artificial
mente ſe convertem em Cobre , tendo a materia
dos metaes a meſma do Ouro , como diz Santo Al
berto Magno : Metalla differunt inter fe accidentali
forma tantum , non effentiali, no que concordað tca
dos os Philofophos Chymicos , que razao tem Feyjoo
para negar , ou duvidar le poſſaố transformar tam
bem em Ouro pela induſtria da Arte ?
Nem Feyjoo pòde negar, que os Alquimiſtas
poſſaõ applicar o agente a materia proxima para for
mar o Ouro , confeſſando, que puede el arteaplicar
aquel agente ,ſea el que fuere, que tiene actividad para
formar eloro , à aquellamateria proxima de que ſe for
ma el oro ; porque a Arte nað he outra couſa , le
nað o methodo acertado , e ſcientifico , com que
obraõ perfeitamente os Artifices; e admiromede que
perguntando Feyjoo admirado , que repugnancia je
puede ſeñalar para que la diligencia del hombre los conos
ca, y aplique ? Depois lhe aſſigne por repugnancia
humas azas de chumbo , para lhe abater os voos,
Se os homens podem conhecer , e applicar o agente,
como duvida , que o appliquem , e conheçað , ſu
pondo o agente viſivel ,e com exiſtencia? E ainda
que diga , que confieſan los miſmos Alquimiſtas, el
arte no tiene actividad , ne puede produfiragentealgu
no, fi folo aplicar aquel miſmo de que uſa la natura
leza : o meſmo Feyjoo confeſſa , que a Arte com
os ſeus inſtrumentos tem actividade para produ
fir novas ſubſtancias , que nao exiſtiaõ , comovſe
e
.
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.Ş.12.185

ar vè no exemplo do vidro tirado das cinzas , ou da


terra pela actividade do fogo: x fe ſe nota la grande
0, actividad , que tiene el fuego ( inſtrumento daArte )
para induzir nueva textura, aun en las partes infern
4 ſibles de los cuerpos , que reſuelve, ſe hallarà fumma
mente verifimil , que de fu accion reſulten nuevas fubf

tancias, que no exiftian en el cuerpo diſuelto. Como


pòde logo o fogo com o inſtrumento da Arte , ou
à Arte com o inftrumento do fogo produzir novas
ſubſtancias , fenaõ produz nenhum agente ? Nao
entendo eſta Philofophia. Sem fogo não ſe faz vi
dro : he o vidro engenhofa producçao do fogo ,
que entre as fuas luzes gerou o agente de taó clara
producçao . Pcdendo pois do meſmo modo produ
zir a Arte o agente do Ouro , e applicallo à ſua ma
teria proxima os Alquimiftas , naõ fey como lhe ne
ga Feyjoo fazer Quró, fe elle meſmo tudo ifto jà tem
concedido ? Se eſte elevadiſfimo engenho , figuren
do el camino medio , entre Philofophos, e Alquimif
tas ,
voa feguro como Dedalo , abata algumas vezes
mais os voos , e naó forme com a ſua penna azas de
chumbo , para fe nao precipitar como Icaro.
Nega o argumento , ou Aquilles dos Chymi
GOS , fundado em varias hiſtorias de transformações
de metal em Ouro ; porque nenhum dos Authores,
que daõetta noticia , foy teftemunha de vifta de taó
admiravel operação ; contradizendo -le nas Glorias
de Heſpanha , quando pertende defender a exiſten- Feyjoo Tom .
cia de Bernardo del Carpio , ſem embargo de que 4.Difcurf.13 .
não ha Hiftoriador , que teſtemunhaffe de viſta as S.18.num.cz.
fuas proezas ; mas deixando agora o argumento da e63 . fol. 351
contradicçao , de que ſe nao pode livrar, moſtre
mos a Feyjoo os ſeus deſcuidos. Primeiramente
Аа Santo
186 Ennæi, on Applicaçao do Entendimennto,

Santo Alberto Magno he teſtemunha de palavra , e


, ( do
vidimus, teftamur; e Joao Scoto , Doutor Subtil, af
firma, que teve nas mãos a Chryſopeia , como ſe po
de ver em Beyerlinck Verbo Chymia , aonde me ad
miro'o'naó viſſe Feyjoo , vendo no Theatro da vida
humana algumas couſas com que perrende impug
nar a Pedra Philofophal: Ut illum non fomnialle , fed
manibus tractaje filijfcientiæ firmiter credant. Como
fe Etćoto previra , que Feyjoo depois de eſcreveč
contra a Chryſopera com o fundamento de que nin
guem avio , nað fó diz , que a teve nas mãos, mas
declara , que a vio , como quem por não eſtar dor
mindo , e ſonhando , tinha os olhos abertos , defter
rando com eſta declaraçaõ as inſtancias , que eſte
grande Critico lhe podia oppor com a doutrina do
ſeu doutiſſimo diſcurſo intitulado Scepticiſmo Phi.
lofophico. Sobre a grande authoridade de Alberto
Magno , e do ſubtiliflimo Eſcoto , entre agora a de
Joao Pico Mirandulano , aquelle homem grande en
tre os mayores , que já Heſpanha nio pòde invejar a
Italia , por ter , como eſcreve Feyjoo , criado o ſeu
Abulenfe , o qual teſtifica , que na fua preſença fi
zera muitas vezes , e por muitos modos Ouro , o

Prata huin ſeu amigo , que ainda era vivo no tem


Mirand, op . po em que eſcrevia : Vivit ad hanc diem vir mihi
aur.lib.3 . cap. notus, & amicus,quiplus fexagies Suismanibus ex re
bus metallicis aurum , & argentum confecit me pre
ſente, nec una tantum via , ſed multis id eft affequutus.
E no feu Diccionario'tambem affirma Luiz More
ry , que Joao Andrè vio em Roma fazer Ouro a
Arnaldo de Villanova , como ſe vè neſtas palavras :
Morery L.A. Le premier etablit ce qu il avance fur la tranſmutas
cione
fol. 305.
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.12.187

e cion metallique, que Jean Andre dit , il luy vit faire


a Rome. Finalmente em Sennerto acharà Feyjoo as
teſtemunbas ſeguintes , que todas faõ , como de,
clara o meſmo Author , nao ſó de ouvida , fenao
de viſta : Fide digni teſtes, non aurati folum , fed do
oculati confirmant, & eloquuntur : Anſelmo Boe
cio , Medico Ceſareo , Duarte Kelleo , Alexan,
dre Sidonio Scoto , André Liyavio , Wolfango
Denheim , Nicolao Bernaudo, Bernardo Penoto ,
Hoghelande , Wengero , e outros muitos , que re
fere , e deixa por antigos, e conhecidos ; e quan
do nao houvera eſtas reſtemunhas taõ calificadas ,
baſtava affirmar Theophilo , aquem nao contradiz,
Feyjoo , que vira em Bruſelas transformar os Me
taes em Ouro ao Conde Rocheri, e ao Duque de
Baviera Maximiliano Emmanuel , Governador dos
Paizes Baixos.

ENODIO . Nao poſſo replicar contra o tel


temunho de cantas , e tað grandes peſſoas ; e mui
to menos contra o que referis do Conde Roche

ri', e do Duque de Baviera ; porque Feyjoo o nað


impugna ; mas ſe elle aqui eſtivera , naő fe daria,
por convencido com á authoridade de Pico Miran .
dulano , por occultar o nome do ſeu amigo , que
tantas vezes , e por tantos modos fazia Ouro com
a Arte
ENODATO . Antes eſta authoridade de Mi
randulano para, ninguem tem mais força , do que
para Feyjoo ; porque na ſegunda parte das Glorias Feyjoo Tom .
de Heſpanha , tambem naõ nomea , mas inculca hum 4.Difc .14.n.
84.fol.412.
grande ſugeico da lua Religiaó , que canoniza por
milagre de toda a erudiçaó , e raro exemplo damo
deftia; e com tudo pertende , que lhe demos mui
Aaij to
788 Ernæa , on Applicação do Entendimento,

to credito ſobre a fua palavra , obrigando - ſe por


eſtemodo tambem a crer a Mirandulano , ao menos
por cortezia , quando nað ſeja por neceſidade ; por
que nao hà mayor razao para crermos a Feyjoo , e
nao crer elle a Pico .
• ENODIO . Fique a repoſta della inſtancia ef
condida no meſmo ſilencio , em que tambem eſtaó
occultos os nomes de dous homens tao grandes , e
tao aureos , hum na riqueza , outro na ſabedoria ;
e vede, que haveis de reſponder ao argumento com
que impugna Feyjoo a tranſmutaçao dos Metaes
em Ouro , feita por Raymundo Lullio na Corte
de Londres , por fe nao achar eſta noticia em Au
thor primordial, ſenaó em Roberto Conſtantino ,
Medico Francez , que floreceo dous ſeculos depois
de Lullio.
ENODATO . Agora baſta dizer-vos, que de
Feyjoo Tom . ve Feyjoo dar canro credico a Roberto Conſtanti
4. Diſcurl.13. no no que efcreve de Raymundo Lullio como
, per
I
6:18.num.6o. tende , que demos a D. Rodrigo , e a D. Lucas no
fol.350
que contarao de Bernardo del Carpio ; porque to
dos eſtes Eſcritores igualmente , como elle diz ;
eſcreveraõ muitos feculos depois , que viveraó
aquelles Heroes, contradizendo a ſua narraçaõ o fi
lencio de todos os Hiftoriadores , que osprecedè
raõ ; e contradizendo -le muito mais Feyjoo neſte :
argumento , porque o repura por forte contra a
Chryſopeia de Lullio , e por debil contra a exiſten
cia de Bernardo; e não pode ſem contradiccaó ad
miccir o debil , co forte no meſmo argumento ; por .
que ſao contradicorios , como o fim , e o nao , le taó
oppoſtos , como a luz , e a ſombra , o dia , e a noi
fe, o verdadeiro , e o falſo. Porém nao pode negac
Feyjoo
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog. I.capunic. . 12. 189

Feyjoo , que neſta igualdade, mayor certeza hano


3 que refere Conſtantino de Raymundo , do que no
. Tuccello , que eſcrevem os Hiſtoriadores de Ber
nardo ; porque Raymundo , como confeſſa Feyido,
eſcreveo da Chryſopeia , affirmando , que ſabia a Ar
te Magna , conforme vio Feyjoo em fragmentos
30 da ſua obra ; -e de Bernardo nao vio ninguem a eſ:
pada , nem temos ao menos troncadas as imagina
1
das relações , que nelle faláraó .
ENODIO. Eſſes fragmentos da obra de Lula
lio , diz Feyjoo , que nada provao , em quanto naó
conftar, que alguem guiado por aquellas ſuas info
trucções fizer Ouro o que nunca jà mais ſucces
derà .
ENODATO . Menos prova Feyjóo com a ſua
prophecia , nað ſendo propheca ; e com o ſeu dif
curfo nað ſendo concludente : 'como fe ha de

aprender a fazer Ouro por huma obra troncada ,


aonde podem falcar os principaes preceitos da Arte ;
e os principaes ſegredos da Chryſopeia - ? Se lendo
Feyjoo obras inteiras de outros Hermeticos, confef
fa , que as naó entendco ; como he poſſivel enten
der as que eſtao imperfeitas ? Aʼlem de que , ſe os
homens, que eſtudarem por eſta obra , nað enten
derem o artificio Hermetico , como pode a ignoran
eia de quem eſtuda , é nao entende ; provar tam
bem a ignorancia de quem eſcreveo ? Muitas ' cou
fas forað antigamente verdadeiras , ainda que hoje
fe não ſaibaó , nem entendab . Jà fe nað ſabe eſcre- Feyjoo Tom .
ver compendiofo , como no cempo de Ennio : ja 4.Dſcurſ.12.
fe naó tocaó os inſtrumentos , como no tempo de 9:
fo12.num.31
l.295 ,
Alexandre ; e já ſe nao preparaó Mumias , como
no tempo dos Égypcios. Serà bena inferir daqui,
que
190 Ennæa , 01 Applicaçãě do Entendimento ,

que nunca houve eſas Mumias no Egypto ; taes


inſtrumentos no tempo de Alexandre ; nem a ef
critura compendiola no tempo de Ennio , que o
meſmo Feyjqo tanto exalta ?
ENODIO . Como o voſſo intento he condem
nar em Feyjoo o meſmo , que elle argue aos Her ,
meticos , paraque ferido pelus melmos fios faça
pazes com os contrarios , ou fique duvidoſa a vi.
ctoria ,pareceme , que naó rebatereis eſte gol,
Alquimiſtas ſem reparo.
pe , com que elle fere aos
» De Arnaldo de Villanova , diz Feyjoo , refieren
algunos Juriſconſultos, citados por Beyerlink en
el Theatro de la vida humana , y por el Padre
Delrio en las Diſquiliciones Magicas, que por
el Arte Alquimico hizo algunas varillas de oro ,
» las quales publicamente offereció en Roma à co
do examen. Pero como es creible , que fiendo
tan publico el hecho , el Sunimo Pontifice, que
1
„ reinaba entonces , no ſe aprovechaſſe , fiendole
tan facil , de la habilidad de Arnaldo en bene
» ficio de la Igleſia , juntando para ella immenſos
teſoros ? En conciencia debia hacerlo , y pues
sy no lo hizo , es claro , que no dio Arnaldo las

» mueſtras , que ſe dice de ſu habilidad , y que


los Jurifconfultos que ſe citan , no tuvieron otro
» teſtimonio del hecho , que alguna hablillä yul.
» gar.
ENODATO . Nao me admiro de vòs me op
pores eſſa duvida , fenaõ de que Feyjoo fizeſte
? contra a Chryſopeia tao infeliz argumento ! Como
he tambem crivel , que prevaleça a ſua preſump
çaõ contra o teſtemunho de cancos Juriſconſultos ?
Como averiguou ette Critico tao carde, o que tan
tos
Sobrea PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.uinic.S .12. 191

tos homens fabios , e prudentes nao poderao in


dagar mais cedo ? He melhor o leu diſcurſo , do Fcyjon Tom
.
que o juizo dos outros Sað por ventura mais pru- 4.D.com.13.
dentes, ou mais verdadeiros Arriano , Quinto Cur- num . 62. fol.
fio , Plutarcho , e outros Hiſtoriadores de Ale- 351 .
xandre Magno , ou D. Rodrigo , e D. Lucas no
que dizem de Bernardo del Carpio , do qué tan

tos , e tað ſabios Juriſconſultos no que affirmaó de


Arnaldo de Villanova? Para vos conhecerdes o poul
co fundamento , com que Feyjoo argumenta contra
á Chryſopeia de Arnaldo, vedeo Diccionario de Mos Morery L. A.
rery , e achareis, que eſte grande Medico tenendo fol . 305.
fer prezo em França por ordem do Papa Clemen
te V. pot caufa de alguns erros , que tinha comercia
do ſobre pontos de Religiao , fugio de Pariz para
Sicilia, aonde foy belu recebido , e muito eſtimado
d'EIRey Federico de Aragao, que é amparou , e re
colheo no ſeu Palacio , e paſados algúns annos , o
mandou a França , para curar o melmo Pontifice,
eſtando muito doente , e na viagem naufragou na
Coſta de Genova , antes da morte do Papa . Por réf
peito de Phelippe IV . Rey de França, trasladoù
Clemente Via Cadeira de S. Pedro de Romapara
Avishaó ', e não eſteve em Roma no tempo , em
que Arnaldo expoz as varas de Ouro a publico exa
me
. Neino Papacom as diſcordias , queentað tevé
eon ElRey de França , fobre a eleiçao do Empera
dor Henrique VII. e com os cuidados de convocar
Concilio para Viena de França , teve deſcanſo pa
Ta averiguar pelos cres Cardeaes, que de Avinhao
mandou para Governadores de Roma , o que neſta
grande Cidade obrou Arnaldo de Vilanova ; e
ainda que tiveſſe eſta noticia , eraõ 'taó grandes
OS
192 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

os bandos, tað erueis as guerras , e taó eſcandalo ,


fas as tyrannias ,entre os Guelphos ; e Gebelinos ,
que não podia o Pontifice mandar prender eſte ho ,
mem na Italia , nem ainda dentro da meſmaRoma;
nað ſó porque o amparava , e defendia ElRey de
Sicilia , mas porque ao meſmo Emperador Henri.
que VII . armado , e acompanhado de hum exerci,
to , nao obedecia ) os moradores de fta grande Me.
tropoli , por eſtar a mayor parte dos Romanos , aju .
dados de Roberto Rey de Napoles , e dos Urfinos
is ... , armados , e divididos em eſquadrões , e ſephores
das mayores fortalezas da Cidade, de tal forte ,
.
que em quanto o Emperador eſteve em Roma, to
dos os dias houye batalhas , e mortes pelas ruas , e
Praças da Cabeça do Mundo , de que reſultou nao
ſe poder coroar Henrique VII. na Igreja de S. Pes
dro , comoera coftume, e ver-fe obrigadoa receber
Coroa ImperialemS. Jozo de Latrano. Pelo que
indignado contra Roberto , ocitou, e privou por hu
ma fentença do Reyno de Napoles , a qual annul
lou logoo Papa ,por ler aquelle Reyno feudacario
do à Igreja , e paſſados poucos dias morrèraó pri
meiro Henrique em Icalia , e Clemente em França. '
fice cuidaria em
.Vede vos agora , como o Ponti
mandar prender a Arnaldo , para o obrigar a re.
velļar o ſegredo , ou para fazer Ouro em benefi.
cio da Igreja , eſtando elle fugido de França , e
amparado na Italia com a protecçao d’EIRey de Si
cilia , que naquelle tempo era caõ poderoſo , que
a inſtancia do Emperador , por ter contratado ca
far fua filha com hum filho de Federico , moveo
guerra com huma poderoſa Armada contra Rober

to , ajudado pelo meſmo Emperador, que peſfoal


mente
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog. 1.cap.unic.S.12.193

mente márchava por terra com o ſeu exercito para


Napoles ; e na jornada o matàraó com veneno, que
lhe derao em huma particula , ſem nenhum temor
das ſuas armas . E dous annos antes daexaltaçao de
Clemente V. ao Pontificado , tendo o Papa Bonifa
cio VIII.grandes diſcordiascom Phelippe IV . Rey
de França , que por eſtas differenças lhe prendeo
hum Biſpo feu Nuncio , ou Embaixador , convo
cou Bonifacio hum Concilio , para proceder contra
Phelippe , e privallo do Reyno , como fez por ſen
tença , dando eſta Monarchia ao Emperador Albert
to I, o qual por ter jà naquelle tempo caſado feu
filho Rodulpho com Dona Branca , filha do Rey
Chriſtianiffimo , recuſou politicamente eſta ardua
empreza. Porèm creſcendo os motivos do odio , e
inimiſade entre o Rey , e o Papa, paſſou a tanto
exceſſo a ira de Phelippe, que mandou prender o
Pontifice eſtando na Cidade de Agnania , por hum
atrevido Romano do bando Gebelino , chamado
Sarra , que depois de prezo , intentava levallo a
França , e ſe o não levou a Pariz , toda a vida o
teve dentro em Roma na prizaó , em que morreo ,
parece , que em caſtigo de ter feito o meſmo a feu
anteceſſor o Santo Pontifice Celeſtino V. depois
de lhe perſuadir , que renunciaſſe o Pontificado.
E à viſta deſtes tragicos ſucceſſos , nað eſtavao
aquelles calamitofos tempos muito propicios para
,
os Pontifices mandarem prender fugitivos de Fran
ça a Italia , nem a Roma ; quando em Roma, e na
İtalia, deſobedecia ) , e matavað os Emperadores,

20 e fem relpeito prendiao , e deixavão morrer en


carcerados os Pontifices.
A’lem deſtas razões politicas , que houve para
Bb não
194 Enda, 0: 4 ;p ?:cação do Entendimento ,

não conſeguir Clemente V. o ſegredo da Chryfo


peia , faiba Feyjoo , que a conſervaçaó , e augmen
da Igreja Catholica Romana não depende da
riqueza da Terra , ſenao da providencia do Ceo .
He a Igreja Catholica hum eſpiritual edificio ,
fundado por Chriſto em huma ſó , e unica Pedra ,
que he Pedro , e não admitte para a fua conſerva.
faó , nem a Pedra Philofophal , a uniao da Igreja
Romana , que exclue depois de Pedro , e ſeus fuc
ceffores, todas as outras pedras. E ſe nao , vamos
à experiencia. No Padre Kircker terà lido liey.
joo , que alguns Chymicos imputarað ao Papa
Joað XXII . que com a Chryfopeia ajuntàra gran
des theſouros ; e confeſſa com Platina , que eſte
Pontifice ajuntàra grande quantidade de Ouro :
Certe Platina in ejus vita poſt mortem ingentem auri
copiam apud eum inventam eſſe. E o meſmo Kircker
vio hum livro eſcrito na lingoa Franceza com el.
te titulo : L'art tranſmutatoire du Pape Jean XXII.
de ce nom , em que , ſegundo elle eſcreve , le trata
do modo , e razaó , com que por beneficio da Arte
Magna , fez o Papa Ouro natural, e verdadeiro
no Teu Palacio de Ayinhao. Agora pergunto : E
que fez eſte Papa com tanto dinheiro Chymico em
ucilidade da Igreja ? Quanto mais gloriofo foy ſem
a riqu: Za da Chryſopeia hum Benedicto I. chamado
por ſua grande charidade pay dos pobres ? Quan
to mais famoſo foy hum Pelagio II . que fez o ſeu
Palacio Hoſpital da pobreza ? Quanto mais ucil
foy à Igreja hum Alexandre V. que coſtumava dizer
aos ſeus amigos , fuy Biſpo rico , Cardeal pobre ,
e Papa mendicante : Como eſtariaó ſeguros os thee
louros da Igreja , ſe no Pontificado de Clemen
te V.
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap ,unic.$.12.193

tė V. ou de ſeus ſucceſſores , houveſſe em França,


ou na Italia
naó digo as perſeguições antigas ,
3 fenao as que ſofreo o Papa Eſtevão III . as prizóes,
que macaráo ao Pontifice Benedicto V.os perigos;
que ameaçarão a Innocencio IV . os atrevimentos ,
que arraſtaráo pelas ruas , e depois prendera ) a
Gregorio VII. nem os inimigos , que obrigaraó a
1 fugir de Roma a Alexandre III . mas os ambicioſos
intentos de Ceſar Borja , mais que do Papa Alexan
dre VI . que ſe não ſatisfaziaõ ſenão com eſcanda
lolos roubos , que intentavão executar com tantas
mortes ? As Chaves da Igreja Romana , que deo
Chriſto a S. Pedro , e a ſeus ſucceſſores , faõ cha
ves do Reyno do Ceo : Claves Regni Calorum ; e
com Chaves do Reyno do Ceo não quer Chriſ
to , que os ſeus Vigarios fechem theſouros da tero
ra .
ENODIO . Facilmente desfizeſtes a objec
çao , que Julio Ceſar Scaligero oppoz contra Hie
ronymo Cardano ; referindo elle , que o Boticario
de Treviſo convertera Mercurio em Ouro na pre
ſença de Andrè Gricci, Doge, ou Duque de Vene
za , e dos principaes Patricios daquella famoſa Re
publica ; porque, como diz Feyjoo , he o meſmo
argumento , que elle tambem forma contra Arnal
do de Villanova , fundando-ſe em que ſe iſto foſſe
verdade, o Senado Veneziano ſe tivera fervido da
quelle Boticario , para enriquecer com immenſos
thelouros a Republica de Veneza. E como Fey.
joo deſpreza as ſoluções , que o Padre DelRio dà.
a eſte argumento , por faber com certeza , que o
Senado fe não aproveitou da Chryſopeia ; porque
fe poſſuira eſte ſegredo, eſtaria Veneza Senhora
Bb ij nao
196.- Ennea , ou " Applicação do Entendimento ,

nað ſó do Imperio Othomano ', mas tambem do


Mundo todo , como ſe farà, conclue o meſmo Au
thor , qualquer Republica, que poſſa augmentar os
ſeus theſouros ſem limite.
ENODATO . Não diſcorre Feyjoo neſte ar
gumento como Theologo , nem ainda comoPolitie
co ; porque nao adverte , que ſendo os Emperado
res Romanos os mais ricos Monarchas do Mundo,
elles com as ſuas riquezas, não conquiſtáraó, an
tes perderáo totalmente o ſeu Imperio , que com
Feyjoo Tom . a ſua pobreza , eſcreve o meſmo Feyjoo, adquirio
4. Difc. 13. S.
a Republica Romana. Em femelhantes principios
8. n . 29 fol.
eſtabelecerão os Turcos o Imperio Ochomano.
333
Nem a Republica de Veneza , e os mayores Rey .
nos , e Imperios do Mundo , tiveraó outros funda
mentos mais illuftres. Principiando todos com ba
talhas , e com roubos, eſtað fundados nas riquezas,
que conquiſtarão , ou roubarao com as armas, e
não nas terras vencidas , ou compradas com dinhei
1
ro . Não me moſtrarà Feyjoo algum Imperio com
prado , ou adquirido com Ouro: eu ſim lhe mof
trarey , que o dinheiro , e o Odro arruinou gran

Reg . 4. 20. des


des Reyn os , e Imperios. Salamão Rey de Iſraël
Reynos
com os ſeus theſouros ſem limite , não conquiſtou
nem hum ſó palmo de terra , fóra dos limites do
feu Reyno ; e perdeo ElRey Ezequias o Reyno de
Judà, por moſtrar os ſeus theſouros a Baladan, Em
baixador de Berodach Rey de Babylonia . Com o
muito dinheiro , que Duarte IV . Rey de Inglaterra
deo ao Emperador Adulpho I. para o ajudar peſ
ſoalmente a conquiſtar o Reyno de França , não
conquiſtou França , e foy cauſa de perder o Impe
rio Adulpho ; porque offendidos os Eleitores , e
outros
Sobrea PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S.12. 197

outros Principes de Alemanha , de que Adulpho


ſendo Emperador , aceitaſſe ſoldo d'El Rey de In
3 glaterra , e nað falta quem eſcreva , que deſcon
tentes de naõ repartir com elles o Ouro , com que
comprou o Condado de Miſna ao Landgrave de
Turingia , o privarao da dignidade Imperial, ele
gendo a Alberto I. que não ſó lhe ſuccedeo no Im
perio , mas tambem lhe tirou a vida com a ponta
da eſpada , encontrando - ſe com elle , e ferindo- o
mortalmente no roſto , na memoravel batalha de
Wormes, junto da Cidade de Spira. Eſcriven al
ginos , accreſcenta Pedro Mexia no fim da vida de

Adulpho, que eſtando en eſte trance, le dixo el Duque


Alberto en alta boz , aqui perdereis el Imperio Adul
pho ; y que reſpondió el , ejo Alberto eſtá en la mano
de Dios. Naquelle conflicto podèra o Emperador
Adulpho provar a ſua propoliçaõ com a Oraçao ,
que na Seſta Feira da Paixão conta a Santa Igreja
de Roma , pedindo tambem com ella a Deos , que
puzeſſe benignamente os olhos no Romano Imperio :
Omnipotens fempiterne Deus, in cujus manu ſunt om- Orat. 8. Fer.
nium poteftates, & omnium jura regrorum : refpicead VI. in Parafc,
Romanum benignus Imperium . Eſta Oração não vio,
nem ouvio o Reverendiſlimo Feyjoo , ou porque
não ſabe rezar ſenão pelo feu Breviario , ou por

que a paixão com que eſcreveo contra a Chryſopeia,


aflim como lhe cegou os olhos para a não ver no
Millal, tambem lhe enſurdeceo os ouvidos para a
não ouvir na Miſſa da Seſta Feira da Paixão ; por
que ſó eſtando ſurdo , e cego , podia deixar de ver,
ou de ouvir , que a mão Omnipotente de Deos , he
a que dà , ou tira os Reynos, e os Imperios.
A Nabuchodonoſor , primeiro Emperador dos
Aſfy
198 Ennæa, 01 Applicação do Entendimennto ,

Aſſyrios , ou Chaldeos , deo ó Altiſſimo Deos o


Reyno , a magnificencia , a gloria , e a honra , co
mo a ſeu filho Balthalar diſſe o Propheta Daniel :
Dan.5.18. O Rex , Deus Altiffimus, regnum & magnificentiam ,
gloriam , & honorem dedit Nabucodonofor patri tuo ;
e ao meſmo Nabuco tirou Deos o Reyno , conver
tendo - o por tempo de lete annos em bruto , para

que eſte ſoberbo Emperador ſoubeſſe , que o Ex


celſo Rey de todos os Reys, e Monarchas do Mun
do , dominava ſobre os Reynos, e Imperios huma
Dan . 4. 29 . nos os quaes dà a quem elle quer : Donec ſcias,
quod dominetur Excelſus in regno hominum , & cui
cumque voluerit , det illud. Foy Nabuchodonofor
Monarcha táo rico , que fez huma Eſtatua de Ou
ro de altura de leſſenta covados , e leis delargura:
Nabucodonofor Rex fecit ftatuam auream , altitudine:
Dan. 3.1.
cubitorum ſexaginta , latitudine cubitorum fex ; e com
todo eſte Ouro não ſe pode conſervar no throno ,
quando Deos o depoz do Solio , para caſtigar o ſeu
Dan.5.20 . elevado coraçað , e o ſeu eſpirito Toberbo : Depoſi
tus eft de folio regni fui. Porque como enſina a Fe ,
i e diz o meſmo Propheta , naố hà quem reſiſta à
Dan.4.32 . mão de Deos : Non eſt qui refiftat manui ejus. Ar
ſim o experimentou Balthaſar , quando tres dedos .
de huma mão mandada por Deos, eſcrevèrao na
parede do ſeu Palacio a ſentença , que o privou
da vida , e do Reyno , que Deos lhe tirou , em
caſtigo do ſacrilegio commercido , por beber com os
ſeus convidados pelos vaſos ſagrados do Templo
de Hierulalem , para dar o meſmo Reyno a Dario
Dan. 5.5.24 . Rey dos Perſas, e Medos : Apparuerunt digiti , qua
fi manus hominisfcribentis .. ab eo miſſus eſtarticulus 1
28. 30 .
manus , quæ fcripfit hoc : Diviſum eſt regnum tuum ,
. Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.S. 12. 199

20 & datum eft Medis , & Perſis. Eadem nocte inter


fectus eſt Balthaſſar rex Chaldaus. Et Darius Medus
Succeſſit in Regnum . Por eſta razao confeſſou Cyro
3 no principio daquelle Decreto , em que deo liber
dade aos Iſraëlitas tranſmigrados , e cativos em
Babylonia , que Dcos lhe dera todos osReynos da
37 terra : Hæc dicit Cyrus rex Perſarum : Omnia regra
terræ dedit mihi Dominus Deus Cæli ; e à imitação
de Cyro confeſfaó tambem eſta verdade aquelles
Monarchas, que no principio dos ſeus Decretos pu
blicao ſerem Reys por graça de Deos.
Com a experiencia de tirar Deos a Saulo
Reyno de Ifraël , para o dar a David , eſcre
veo profeticamente eſte grande Rey , que os Mo
narchas > e Reys da terra , que dominàraó o
Mundo , nao conquiſtàrab os Reynos , e os Impe
rios com o ſeu braço , e com a ſua eſpada , ſenao
com o braço invencivel , e com a mão direita de
Pfalm . 43.4 .
Deos : Nec enim in gladio ſuo pofſiderunt terram ,
brachium eorum non ſalvavit eos , fed dextra tua ,
& brachium tuum . Todos os Reys, Monarchas ,
e Emperadores Catholicos , allumeados com a luz
da Fè , crerào firmemente eſta verdade ; porque
ainda ſem Fè lhe deo credito o mayor Empera
dor do Mundo fendo Gentio. De Alexandre
Magno vencedor de Dario , conta Joſepho , que Joſeph . Anti
. entrando em Hierufalem , fahio ao receber fóra do quit.lib.11.c.
Templo o Summo Sacerdote Jaddo , reveſtido nos 8.
ornamentos Pontificaes , e que Alexandre vendo -o,
ſe lançàra a ſeus pès, e o adorara ; e perguntado Alapid apud
Vieyr.Hifto .
pela cauſa de tað defuſada reverencia , tað alhea de ria Futur.c.6 .
Jua grandeza , e Mageftade , reſpondeo , que elle num .67. fol.
não adorara aquelle homem , ſenão nelle a Deos ; 72.
por

1
200 Ennea ou Applicação do Entendimento ,

porque reconhecera, que aquelle era o habito , o


ornato , e a repreſentaçao , em que Deos lhe cinha
apparecido em Dio Cidade de Macedonia ; e exhor
tando -o , a que emprendeſe a Conquiſta da Perlia,
que naquelle tempo meditava , lhe ſegurára a vic
toria. O Senhor dos exercitos , que tinha revela
do os quatro Imperios Mundo a Daniel , deo os
triunfos ao grande Alexandre ; porque o ſeu po
der , e limitado apparato de guerra , era deſigual a
tão immenſa empreza. O Exercito com que Ale
xandre ſahio de Macedonia , como refere Plutara
cho , e o prova com graves Authores , que tambem
ſegue Vieira , ainda não chegava ao numero de qua
renta mil homens , os baſtimentos erão ſó para trin
ta dias , e não paſſavão de quarenta e dous mil cru
zados da noſſa moeda os ſetenta calentos de () u
ro , que levava para eſtipendios. Como era polli
vel , que tão pouco dinheiro , e raó pequeno ex
çrcito baſtaſſe para caố grande conquiſta , ſe a
mão inviſivel de Deos não puzera na cabeça de .
Alexandre Magno a Coroa do Imperio dos Gre
gos ? Na vida deJulio Ceſar, Emperador dos Ro
manos , que ſuccedeo na Monarchia univerſal do
Mexia Hiſt. Imperio dos Gregos , pondera Pedro Mexia , que
Imp.fol . 16. conquiſtou mais terras com as armas , vencendo cin
coenta batalhas , do que caminharia no meſmo tem
po outro qualquer homem fazendo pacificamente
as jornadas ; porque tambem a Ceſar tinha Deos
promectido nas prophecias de Daniel o Imperio dos
Romanos. Não conquiſtou Ceſar o Imperio Ro
mano com a ſua riqueza , nem com a tua eſpada ;
deulho a mão de Deos, como vemos nas Prophe
cias.
Levan
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.$.12.201

Levantou Deos no Mundo à Hieremias por


. feu Miniſtro , e a commiſao , e officio , que lhe
deu , foy efta : Ecce conftitui te hodie fuper gentes , e Hierom.1.1o .
fuper regna , ut erellas, a deſtruas , a diſſipes , så
ædifices , a plantes. Hoje te ponho , e conſticuo fo
bre as Gentes , e ſobre os Reynos, para que arran
Ś ques , deſtruas , e diſlipes a huns, plantes, e edi.
fiques a outros. Naš quer dizer Deos , como diſ
corre Vieira , que Hieremias hade arruinar , ou Vieir. Hilto
edificar Reynos com a eſpada ; mas que os hade ria do Futur.
arruinar, ou edificar com as ſuas prophecias , pro- cap.8.n. 118 .
fetizando a huns ſua exaltaçaó , e a outros ſua def- fol.118 .
truiçaõ , e ruina. Se as prophecias reſolutanente
dizem , que os Reynos ſe hao de perder ', ou ar A
ruinar , aparelhem -le tem remedio para a ſua ruina;
e ſe dizem , que ſe haõ de eſtabelecer , e exaltar ,
creað ſein duvida ſua conſervaçao , e augmento :
Ecce conſtitui te fuper gentes , d . ſuper regna. Eſtao
os Prophetas , e as prophecias ſobre as gentes , e
fobre os Reynos ', ou como Aſtros benignos , que
influem , e promettem ſuas felicidades , ou como
Cometas triſtes , e funeſtos, que influem , e amea
çáó ſuas ruinas.Levantem pois os Reys , e os Rey
nos os olhos , olhem para eſſes finaes do Ceo , e
fe os virem Eſtrellas , eſperem ; fe os virem Come
tas , temao. Mas porque muitos Reys eſperaõ don
de devia temer , por iſſo erraó e fe deſpenhao ,
e ſe perdem , e perecem muitos . Se Achab Rey de
Ifraël témera como devia cemer , a prophecia de
Micheas , deſiſtira da conquiſta de Ramoth Galaad
em que tað teimoſamente inſiſtia : mas porque quiz
antes eſperar, como nao devera , nas promeſas, e
liſonjas yáas de ſeus 'aduladores, em hom dia per
Сс deo
202 Ennaa , ou Applicação do Entendimento,

deo a batalha , a conquiſta , a coroa , a vida. Nao


podem as armas , e as riquezas dar a victoria a El
Rcy Achab , quando nas prophecias eſtà ſegura Ra.
moth .
Hierem . cap.
Clamava a prophecia de Hieremias ao Rey , e
2.1 .& 22: per Principes de Hierufalem , que ſe accommodaſſem
totum & cap. com Nabuchodonofor , contra o qual nað podiao
34.
prevalecer ; mas porque ElRey Sedecias , fiado na
potencia de ſuas armas, quiz antes experimentar a
fortuna da guerra , que vir a honeſtos partidoscom
os Affyrios , prevalecèraó eſtes emfim , como o
Propheta tinha prometido ; e o Rey conheceo tar
de a teméridade do ſeu conleiho. Que differente
foy o de Cyro , prudente , e famoſo Rey de Ba
Eldr.i.cap.1 . bylonia ! Entendeo eſte meſmo excellence Princi
pe, pela meſma prophecia de Hieremias , e pelas
de outros Prophetas , que o cativeiro , e logeiçao
dos Ifraëlitas , que elle tinha debaixo de ſeu Im
perio , naó queria Deos , que duraſſe mais de ſefa

Hierem .29. fenta annos; ecanto que eſtes fe acabaraó ( ſen


10 .
do Gentio Idolárri ) ſem partido , ſem intereſſe ,
ſem obrigaçaó , nem reconhecimento , os reſtitubio
todos livres à ſua Patria . Contentou - le o Gentio,
com o que Deos ſe contentava , e nao quiz perpe
tuar a fervidaó , quando Deos cinba limitado an
nos ao caſtigo : creo as prophecias fem ſerem ſuas,
ou de ſeus Oraculos, ſenaõ dos meſmos Ifraëlitas
porque tendoas experimentado verdadeiras na ſen
tença do cativeiro , fora cobiça , e nað razao tellas

por falſas na promeſſa da liberdade. Agora pergun


càra eu a Feyjoo , ſe he poſſivel , à viſta deſtes ex
emplos, que os Venezianos com a ſua Chryſopeia,
poſlao conquiſtar o Imperio Ochomano , e o Mun
do
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.S. 12. 203

16 do todo , derrogando os decretos abſolutos da Pro


videncia ? Boecio , aquem ſegue Santo Thomaz ,
7. e com elle commummente os Theologos, definindo
a Providencia , diz , que he a ſerie de codas as cou .
ſas ; e ſuas causas ordenadas na Mente Divina , e
encadeadai , e ligadas entre ſi , com huns nos ma-,
ravilhozos, e fecretos, que ninguem pode deſacar:
Providentia eft feries cauſarum , rerumque in mente
Dei, quæ omnia fuisnečtit ordinibus, miris, ar &tif
que , ſed arcanis modis ; e Cornelio commentando
o melmo Boecio , ainda o declara com mayor ex
preſſab : Deusper congruos Providentiæ fuæ modos ,
qulos in theſauris fapientiæ ſua reconditos habet , facit
ut omnes rerum , temporumque ſucceſſus invicem appo
fitè nectantur , 'ac velut anſulæ fibi invicem inferan
tur, & catenam elegantem efficiant. De ſorte , que
os ſucceſſos dos tempos , e das couſas , aindaque
pareçao diverſos , e encontrados, eſtao na Mente
Divina , e na ſua Providencia ordenados , e aca
dos entre ſi de tal modo , que como aneis , ou fu ,
ziz enlaçados huns nos outros compoem huma uni
forme, e elegante cadea . Eſta cadea prendeo a Jo
feph , p ra do carcere ſubir a reynar no Egypto ;
eſta cadea prendeo a Joaquim , e a Sedecias , pa
ra tirar a eſtes dous Monarchas o Reyno de Judà:
eſta cadea prendeo ao Emperador Henrique IV ,
para lheſucceder no Imperio Henrique V.e eſta ca
dea finalmente prendeo outros Monarchas para do
Throno deſcerem aos carceres , ou dos carceres fu ,
birem ao Solio . Nao acho nas hiſtorias exemplos,
de que as Eſpadas , ou osOuros , rompellem , nem
corrompeſſem os aneis , e fuziz da cadea da Pro
videncia. Leyo porèm , que ſó com a mão de Deos
fe
Сcij
204 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

ſe abre , e fecha o circulo deſta cadea . Com a mão


inviſivel de Deos , e nao com as mãos de Eſpadas,
ou de Ouros fe conquiſtaó os Reynos, e ſe con
fervaó os Imperios. Por iſſo Eduardo VI . Rey de
Inglaterra pintou ao globo do Mundo no ar , pen
dente fó de huma cadea de Ouro , cujo remate fuf
rentava huma mão , que fahia do Ceo com eſte
Epigrafe : Nihil ſine Deo. Nada pòde o Ouro ſem
a mão de Deos. Com cadeas de Ouro naó pren
dem os Monarchas o Mundo , cativa ) os ſeus pro
prios Imperios . Conforme as relações de varios
Bluteau Vo. Authores , que fegue Bluteau no ſeu Vocabulario ,
cab . Tom . 6. todas as meſas , bofetes , baxellas , vaſos de coli
fol.150. nha , e outros moveis da Caſa Real dos Incas do
Peru eraõ de Ouro . Nasantecamaras havia Eſtatuas
de Ouro , tamanhas como gigantes , e figuras de
Ouro , em que ſe repreſentavaó ao vivo todo o
genero de animaes, aves , hervas , arvores , e pei
xes , que naſcem , e fe criaó naquelle Imperio. Ti
nhao huma caſa de prazer , em que com mais of
tenraçao da arte , que afronta da natureza , todas
ás flores , e plantas eraõ de Ouro, ou Prata moci
ça . As portas dos Templos eraõ cubertas de laminas,
ě chapas de Prata , entrefachadas de eſmeraldas.
Por falta de cal , as pedras dos edificios eſtavað lia
das com Ouro , e Prata fundidos , e miſturados
com Cobre , e Chumbo. Na Cidade de Panchel
ma a pedra grande , que ſervia de concha na fon
te publica , era de Ouro , e pezava vinte e quatro
mil marcos ; e havia caſas cubertasde laminas de
Ouro taõ groſſas , que doze homens juntos nao
podiao abalar huma dellas. No meyo de tantas ri
quezas , notou o grande Bluteau , nao podiao fal
tar
's

Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic.9.12 .205

2 tar prizóes à liberdade do animo , e demonſtrações


do cativeiro. Havia huma cadea de Ouro do com
primento de trezentos , e cincoenta paſſos, e com fu
ziz todos da groſſura de hum punho , aqual duzentos
homens dos mais robuſtos nao podíað levantar da
terra . Quando la chegarao os Caſtelhanos, foyer
ta cadea lançada em huma lagoa , e deſde entað
naó foy pollivel achalla , nem tambem a liberdade
perdida ; porque vivendo os Principes Incas , ou
Ingas por mais de ſeiſcentos annos, ricos , e livres ,
no anno de 1524. affogàraõ com aquella cadea a
Sua riquezi, liberdade , e o meſmo Imperio. Para
fe re! gatar, ofereceo Atabalippa vinte e fere milhões
de Ouro , e para os Indios recuperarem a ſua li
berdade offerecèrað vinte e hum milhões ; e ſem
embargó dos Caſtelhanos lhe tomarem ſetenta mi
lhões de Ouro , e outros tantos de joyas , os In
dios ficara ) cativos , e o Emperador Atabalippa ,
ou Atahualpa violentamente morro , depois de pre
zo . Com todas eſtas , e outras muitas riquezas nao
pode Hefpanha conquiſtar França , e no meſnio
tempo perdeo Flandes , e Portugal , é pouco lhe
faltou para nað ficar cativa, quando com a felicilli

ma acclamaçao do Auguftiſlimo Senhor D. Joao IV ,


reſtauramos a noſſa liberdade. Nao hà riqueza , que
como Ouro fulminante , nað arruine com mayor
eſtrondo , é mais eſtrago , do que a polvora , a
Naçao , que a poſſue. Morrèraõ degollados vin
te e tres mil Hebreos , que no deſerco adorarað o
Ouro de ſuas joyas na imagem bruta de hum Bezer
. ro ; e fendolhes o Ouro do Egypto tað inucil co- Bluteau Vo
mo o de Midas , lhes conduzio caſtigos como o de cab. Tom . 6 .
Toloſa. Na meſma França com muitas mãos el- fol.153.
gri
206. Ennæa , 01 Applicação do Entendimento ,

grimindo, ou jugando Eſpadas, e diſpendendo Ou


ros àsmíos cheyas , batalhou , ou jugou Luiz XIV .
com todos os Monarchas , e Principes da Europa;
e no fim de tantas guerras , negociações, e conquií.
tas , acabou o jogo marcial , e politico , perdendo

quaſi tudo quanto tinha ganhado , mecendo-ſe para


ſempre na baralha .
ENODIO. Baralliemos nós agora os argu
mentos de Feyjoo , e mudemos tambem de naipe,
pondo na meſa em lugar dehum Rey bellicolo'de
França , outro Rey Sabio de Caſtella. Que dizeis
ao exemplo d'ElRey D. Affonſo X. ou V. chama
do o Sabio , ou Aſtrologo , que viveo pobre, por
fuindo a Pedra Philofophal, com que elle augmen

tava as ſuas riquezas , conforme eſcreve no feu Tra


tado Del Theforo ? E náo he poſſivel, como argue
Feyjoo , que fazendo Ouro com a Chryſopera, vi
veſſe pobre.
ENODATO . Confeffo - vos ingenuamente ,
que não ley refponder bem a eſſe argumento, fun
dando-ſe mais na minha pobreza, do que na d'El
Rey D. Affonſo o Sabio , porque dizendo eu , co
noelle , que ſey fazer Ouro com a Pedra Philoſo
phal , ainda ſou mais pobre , do que eſte Sabio Rey
.
Porèm deveis advertir , que bem pode hum Her
metigo fer pobre , ſem diſcredito da Arte Magna, por
não valer eſta Arte aos meſmos pobres , aindaque
fejão labios; porque , conforme diz Santo Alberto
Magno ,para crabalhar com eſta Arte , fað neceſ
Div. Albert. Sarios, a qualquer Artifice cabedaes para te poder
ſuſtentar ao menos dous annos : Unde'pauperibus
Magn. libel.
de Alchim.in rion valet ars ifta, quia ad minus valet habere expen.
præf.fol.2, fas duobus annis. É como ſe ha de luftentar hum po
bre
-
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.i.nic.Ş.12. 207

bre dous annos , e comprar o neceſſario para tra


balhar na Obra Grande , faltandolhe o preciſo para
viver dous dias ? Todas as aves naſcem para voar,

e nenhuma voa ſem lhe naſcerem , e creicerem pri


meiro as azas . Sem grandes , e creſcidas azas co
mo hade voar hum pobre ſabio ? Que importa , que
hum pobre ſaiba voar , le não tem azas para ſubir ?:
Sem o favor da riqueza , toda a ſabedoria de hum
pobre he ignorancia. Ainda que hum Hermetico fai
ba muito , ſendo pobré , diz Santo Alberto Magno ,
todo o ſeu ſaber he o meſmo , que nada :

Cum lobor; in damno eft , creſcit mortalis egeſtas, Div . Albert.

Alulta licet ſapias , reſine , nullus eris. Magn . libel.


de Alchim , in

Hum Philoſopho Hermetica pobre , he como præfat. fol. 2 .


aquelle pobre labio , que nos ſeus Emblemas del
.creve Andrè Alciato.com as azas na mão eſquer
da , e huma pedra na mão direita ; porque quando
com o engenho aligero pode voar ſobre as mais al
tas torres, a pedra , ou a pobreza não o deixa le
vantar do chão :

Dextra tenet Lapidem , manus altera fuftinet alas: And . Alciat.


Embl . 121 .
Ut meplumalevat , fic grave mergit onus.
Ingenio poteram ſuperas volıtare per arces ,
Me niſi paupertas invida deprimeret.

Sem riqueza , ou ſem azas , a meſma Pedra Phi


lofophal he pobreza. Não pode voar o engenho ten
do huma mão a Pedra , e outra as ažas . Para unir
as azas com a Pedra Philofophal intento como indut
trioſo Hermetico conyerter em Ouro , e Prata o vi:
- triolo
208 Eimsa , on Applicação do Entendimento ,

triolo da tinta com que eſcrevo , porque ſe impri


mir , e vender as obras , que tenho compoſto, com
as riquezas terey azas ; e quando algum inimigo
mas corte , como os cabellos a Sanſao , creſcerão
com o tempo para fua ruina , e caſtigo. Não me
cortarà a fortuna , quem preſumir , que reprime
os meus voos, cortando -me agora as azas, porque ſe
as minhas obras chegarem às mãos de feus Augut
tiſſimos Protectores, faraó prodigios, e darað fru
to depois de cortadas , ſervindo fo o corte de
preſagio de obrarem eſtas maravilhas. Nunca faria
táo prodigiofos milagres a Vara de Moyſes, fenao
chegára à ſua mão depois de cortada; mas o ferro ,
que a ſeparou do tronco , quando parece , que a
fazia eſteril, a diſpoz para dar fructo , e fazer mi
lagres eſtupendos. He mais fecunda a vide depois
de cortada : o golpe do Agricultor he para a vide
grande beneficio . Com os golpes do ferro eſcreve
melhor a penna depois de bem aparada. Com a pen
na aparada na mão tenho moſtrado a fecundia , que
excede a fecundidade da vide , ainda que não igua.
la o prodigiofo da vara ; e fe como a Vara de Mer
curio transformar em Ouro , o que tem eſcrito a mi
nha penna , eſta Pedra Philofophal me darà azas para
voar pelo Orbe Literario com outras Obras. Não vos
pareçaõ apocrifas eſtas Obras, que não vedes, como
ſe pode facilmente dizer do Tractado Del Theforo,
que Feyjoo confeſſa, que não vio ; porquebrevemen
te vera o Mundo , o que já virão , e approvarão os
mayores fabios deſte Reyno. Mas aindaque vos con
ceda'
, que El Rey D. Aftonfo eſcreveo , que fazia
Ouro com a Pedra Philofophal, bem o podia fazer
com a Chryfopeia , e não ſer rico , como de ſi confef
، vio
lou
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog. I.cap.unic.S.12. 209

fou ao Reverendiflimo Padre Kirckero Emperador


Fernando III.como já contra Feyjoo deixo pondera
do.Ambos eſtes grandes Monarchas , ou Emperado
res , fizerão Ouro comoLapis ; mas nem Fernando
Sabia o ſegredo, nem D. Affonfo alcançaria o myſ
terio , como ignoravão o Conde Rocheri, e o Du
que de Baviera o enigma do Adepto , aquem diz
Feyjoo , que tirou Rocheri a vida, e a Chryſopeia ,
para fazer Ouro .
ENODIO. Como nós eſtamos fós , não vos
eſcandalizeis , le em nome de Feyjoo duvidar em
fegredo do ceſtemunho deſſes dous Emperadores
de Alemanha, entre os quaes contao alguns Hiſto
riadores a El Rey D. Affonſo ; porque como Sa
bios , podião jactarle do que não labiao , para ma
yor credito da ſua ſabedoria.
ENODATO. Agora quero eu romper o ſi
lencio , e levantar a voz, de forte , que me ouça o
Reverendiflimo Feyjoo , aindaque de cáo longe ,
porque não duvido me dè ouvidos hum grande
oraculo de Oviedo . He poſſivel , Reverendiſlimo
Padre , que ſe atreva a incredulidade de Enodio , a
duvidar da verdade dos Soberanos , lendo - ſe ainda
hoje nos feus eſcritos , não ſe podendo duvidar
do credito de D. Lucas , e de D. Rodrigo , pelo
que ouvirão , ou leráo de Bernardo del Carpio , no
filencio dos Hiſtoriadores ? Se Voſa Reverendiſ- Feyjoo Tom .
fima diz , que o argumento de Ferreras não prova 4.Difcurf.13 .
Aada , por ſe fundar ſó , em que não hà Auchores S.18.num.59.
coetaneos, ou immediatamente poſteriores a Bernar - e 60. fol. 350.
do del Carpio , que fallem neſtė Heroe : como quer
agora , que eſte argumento prove tudo , por não
haver , como imagina , Authores , que viſſem fazer
Dd Ouro
212 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

cuñana ; porque eſta Senhora , como Vorla Reve


rendiflima pode ver no Capitulo quinto do Conde
Lucanor , era tað extremoſamente credula , que ante .
punha as extravagancias de ſeu marido à evidencia da
viſta , e aos dictames do ſeu proprio entendimen
to ? Finalmente , como ſe atreveo Volta Reveren
diſſima a reprehender os Hermeticos , por intenta
rem codos conſeguir o ſegredo da Pedra Philoſophal;
porque faó rariflimos os que a achão ; fem tambem
ter condemnado , no ſeu Theatro Critico , como er
ro commum , os famoſos Jogos Olympicos , aonde
correndo todos os homens do Mundo , hum ſó con

Ad Cor. 1.c. ſeguia a victoria , e a coroa : Nefcitis quod iiqui in


9.24 ſtadio currunt , omnes quidem currunt , fed unus af
cipit bravium ? E com tudo propoem o Apoftolo
1 S. Paulo eſte ſingular exemplo aos Corinthios para

os animar , ou exhortar a que lucrem a bemaven


turança . Mayor erro era correr o Mundo todo nos
Jogos Olympicos, aonde hum ſó homem ganhava
huma coroa de Louro , do que diſcorrer a Eſchola
Hermetica ſobre a Pedra Philofophal , ainda que hum
fó Chymico, ou rariſſimos , alcanção o ſegredo de
fazer Ouro . Não ſe pode logo condemnar a Eſcho
la de Hermes , ſem primeiro condemnar os Jogos
Olympicos , que S. Paulo louva canto , que ſem em
bargo de terem naſcido entre os Gentios , os pro
poem por exemplo aos Chriſtãos. Mas para con
demnar eſtes Jogos , he neceſſario cenſurar o Mun
do todo ; e para convencer os Hermeticos, cambem
he neceſſario vencer a todo o Mundo.
Porèm como eu não goſto de fallar com quem
me naó ouve , e de arguir a quem me nað reſpon .
de , concluamos ultimamente eſta Criſe , desfazen
do
5 Sobre a PedraPhiloſophal. Dialog.I.cap.unic. .12.211

fentencea com a meſma rectida) , e igualdade de


juſtiça as cauſas deſtes dous Bernardos ? Comocon
demna Voľa Reverendiſſima no melmo Tribunal ,
ou Theatro Critico a Beyerlink , negandolhe o cre
dito , por allegar ſó a Guilherme Aragofio a favor
da Chryſopeia ; e approva a verdade de Beyerlink ,
por eſcrever contra a Chryſopeia , por teſtemunho
fó de Hieremias Medero ? Porque razão não crè
Vofla Reverendiſſima o teſtemunho do Padre Mar
tinho DelRio , quando affirma, que os Hermeticos
fizerão verdadeiro Ouro em Veneza : e crè o tel.

temunho do Padre Gaſpar Scoto , quando refere ;


que os Alquimiſtas fizerão Ouro falſo em Bruxel
las ? Qual he o fundamento, que Voffa Reverendif
fima tem para crer a Herman Boerhave , e não crer
a Bernardo Treviſano ſobre a antiguidade da Chy
mica , le elles ſendo fós , e contrarios nas ſuas opi.
niõens, Boerhave não he Evangeliſta ? Como não
tem os Authores Chymicos o meſmo evidente direi
to , para que preſumamos todos , que faó verdadei
ros : dando -o, e concedendo - o Voffa Reverendifa

fima com a meſma razão , e juſtiça aos ſeus Hiſto


riadores ? Como ſendo Voſſa Reverendiflima Len

te de Theologia, admitte a doutrina de Pythagorasa


reſpeito da Merempfycoſe , ou tranſmigraçao das
Almas , animando a Hiſtoria ſuccedida no Palacio
de Erneſto, Marquez de Bade , com o meſmo eſpiri
to ‫ا‬,‫ ر‬ou alma , com que no Capitulo oitavo do Con .
de Lucanor ſe anima o meſmo Chifte , ſegundo Vof
ſa Reverendiſſima tambem lhe chama , por fer hu
:
ma agudeza fingida pelo grande engenho do Sere
niſſimo Principe D. Joao , que ſó referido por D.
Alvarfañes , terà crido pela Senhora Dona Vaf
Ddij
2/2 Ennea , on Applicação doEntendimento ,

cuñana ; porque eſta Senhora , como Voffa Reve


rendiflima pode ver no Capitulo quinto do Conde
Lycanor, era tað extremoſamente credula, que ante
punha as extravagancias de ſeu marido à evidencia da
viſta , e aos dictames do ſeu proprio entendimen
to ? Finalmente , como ſe atreveo Voffa Reveren
diſlima a reprehender os Hermeticos , por intenta
rem codos conſeguir o ſegredo da Pedra Philoſophal;
porque faó rariſlimos os que a acháo ; ſem tambem

ter condemnado , no ſeu Theatro Critico , como er


ro commum , os famoſos Jogos Olympicos, aonde
correndo todos os homens do Mundo , hum ſó con
Ad Cor. 1.c. ſeguia a victɔria , e a coroa : Neſcitis quod ii qui in
ſtadio currunt , omnes quidem currunt , fed unus ac
9.24
cipit bravium ? E com tudo propoem o Apoſtolo
1 S. Paulo eſte ſingular exemplo aos Corinthios para
os animar , ou exhortar a que lucrem a bemaven
turança. Mayor erro era correr o Mundo todo nos
Jogos Olympicos, aonde hum ſó homem ganhava
huma coroa de Louro , do que difcorrer a Eſchola
Hermetica ſobre a Pedra Philoſophal, ainda que hum
ſó Chymico, ou rariſſimos , alcanção o ſegredo de
fazer Ouro . Não ſe pode logo condemnar a Eſcho
la de Hermes , ſem primeiro condemnar os Jogos
Olympicos , que S. Paulo louva tanto , que fem em
bargo de terem naſcido entre os Gentios , os pro
poem por exemplo aos Chriſtãos. Mas para con
demnar eſtes Jogos, he neceſſario cenſurar o Mun
do todo ; e para convencer os Hermeticos , cambem
he neceſſario vencer a todo o Mundo.
Porèm como eu não goſto de fallar com quem
me nað ouve , e de arguir a quem me nað reſpon
de , concluamos ultimamente eſta Criſe , desfazen
do
Dialog.I.cap.unic.Ş.12.213
Sobre a PedraPhilofophal .

do a inconſequencia , com que elle argue finalmen


te aos Hermeticos , contradizendo - ſe com as luasmel
Fcyjon Tom
mas palavras. „ Pero la in conſequencia mas viſible,
,
„ y juntamente mas ridicula, ( dizelle ) que noto 3.time come.
99 en los Eſcritores de Alquimia, e; la ſiguiente : tic Discurt's .
Todos, ò caſi todos los Autores Chriſtianos, que 8. nu 4
9 . m . 3.
han escrito ſobre ella , dan por precepto indiſ. fol.177.

penſable , que el que fc haya de aplicar a eſta


, arte , ſea buen Chriſtiano , devoto , humilde , de
intencion recta , de conſcienciapura ; y aſſientan,
„ que ſin eſſa ineſcuſable circunſtancia , nunca lle
„ garà a aleanzarſe el gran ſecreto de la Piedra
,, Philoſophal. Por otra parte confeſſan , que eſte
ſecreto ſe communicò de los Arabes a los Lati.

„ nos , y los Autores primordiales , ò Princepes


„ que alegan , todos lon canalla Sarracenica , y
Mahometanica : Geber , Rallis, Avicena , Haly,

Calid , Jalich , Bendegid , Bolzain , Albugazal.


De eſtos comaron codo lo que eſcribieron , Lul
‫ رؤ‬lio , Villanova , Paracelſo ,Baſilio Valentino , el
Treviſano ,Morieno , Roſino , y los de mas Éu:
,, . ropeos , celebrando à aquellos por Adeptos in
ſignes, eſpecialmente a Geber, que lleva la van
ý; dera delante de codos. Conciertenme eſtas medi
das . Dicennos que es neceſſaria , para lograr la
» Chryſopeia, la pratica del Evangelio , y al mil
‫ وو‬mo tiempo nos proponen como los mayores Mael
tros del Arte , a los Sectarios del Alcoran. Paſſe .
mos agora do argumento à ſoluçao , e do terceiro ao
primeiro Tomo do Theatro Critico, aonde Feyjoo
conta a ſeguinte Hiſtoria .
9 ) Mahomet Alibeg , Mayordomo Mayorde
„ ElRey de Perſia , al principio de el ſiglo paſſa

do,
214 Ennæa , 011 Applicação do Entendimento ,

„ do , ſubio a tan elevado pueſto deſte el humilde


eyjoo Thea- » eſtado de pobre Paſtorcillo. Un dia , que aquel
tr . Crit.Tom . „ Rey andaba a caza , le encontrò cañendo la flau
1. Dilcurf. 4. ,, ta , y guardando cabras en el monte . Por diver
.9.6. n.21 . toi. fion le hizo algunas perguntas ; y prendadode
‫رز‬
88 .
‫رو‬ la vivacidad , y agudeza con que reſpondió el
niño , ſe le llevo conſigo a Palacio: dondeavien .
do mandado inſtruirle , la rectitud de ſu cora
ng zon , y la claridad de ſu ingenio , ganaron la in.
clinacion de ElRey , de modo , que elevandole
promptamente de cargo en cargo , vipo a colo
carle en el que ya diximos de Mayordomo Ma
yor . Su integridad inflexible al atractivo de los
» preſentes ( coſa muy rara entre los Mahometa
» nos ) concicaron contra el poderoſos inimigos;
» pero ſin atrever - ſe a intentar hoftilidad alguna,
„ por verle tan dueño de el animo de el Soberano:
hafta
que muerto eſte, y entrando el ſucceſſor,
i que era joven , le fugirieron , que Mahomet avia
» ulurpado al erario Real grandes teſoros. Orde
‫ وز‬nole el Principe, que dentro de quince dias dieſe
òs quentas . A que Mahomet intrepido reſpondió ,
„ que no era meneſter eſſa dilacion ; y que ſi Su
, Mageftad fueffe ſervido de ir immediatamente
» , con èl à caſa de el Teforero , alli fe las daria.
39 Fuè ElRey , ſegúido de los acuſadores ; pero
ſe halhò todo en tan bello orden , y con tanta
is exactitud ajuſtada la quenta de los caudales en
los libros , que nadie tuvo que decir. De alli de
paſſo à la caſa de el miſmo Mahomet , donde
„ EIRey admirò la moderacion , que avia en alhajas,
» y adornos. Pero obſervando uno de los inimigos
de el'valido la puerta de un quarto cerrada, y
» guar :
Sobrea PedraPhiloſophal.Dialog.I.cap.unic.$.12.219
21
guarnecida con tres cadenas fuertes , ſe lo adver
2 ciò alRey , el qual le preguntò : que tenia cer.
rado en aquelle quarto Señor , ( refpondió
»
‫و‬ ‫ر‬ Ma ho me t ,
: ) aqu i gu ar do lo que es mio. Todo lo
» que haſta aora ſe ha viſto , es de Vueſtra Mage
sy ſtad : diciendo eſto , abriò la puerta. Entrò ElRey
en el
quarto , y bolviendo a todas partes los ojos
no vio otracouſa , ſino lasalhayas ſeguintes , pen
diente cada una de un clavo en las paredes : una
zamarra , una alforja , un cayado paftoril, y una
,, Aauta . Aconito las miraba EIRey , quando po
niendo -le de rodillas delante de elMahomet , le
‫در‬
dixo : Señor , eſte es el habito , y eſtos los bie
nes , que yo tenia , quando el padre de V. Ma
„ geſtad me rraxo a la Corte. Eſto es lo que en
conces tenia , y eſto lo que aora tengo. Solo ef
to conoſco por mio . Y pues lo es , ſuplico con
el
mayor rendimiento a V. Mageſtad me permita
gozarlo , bolviendo al monte , de donde me çra
xo mi fortuna. Aqui no pudiendo contener EIRey
js las lagrimas , le echò los brazos al generoſo va
lido ; y no contento con eſta demonſtracion , deſ

pojando fe promptamente de ſus Reales habitos,


fe los hizo veſtir a Mahomet : lo que en Perſia
„ ſe eſtima por la fupremahonra , que ElRey pue
de hazer a un Vaſſallo . De eſte ſucceſſo reſultó,
se que Mahomet logrò deſpues conſtantes la con
„ fiança , y cariño de el Principe toda ſu vida. Que
„ laſtima , que eſte deſinteres , eſta elevacion de
animo , eſta rectitud , eſta moderacion , eſtuvieſ
ſen depoſitadas en un Infiel? Eftà muyto clara,
e viſivel eſta contradição. Nega Feyjoo no tercei
ro Tomo do Theatro Critico , que os Mahometanos
ſejaó
216 Ennea, 011 Applicaçao do Entendimento ,

fejao virtuoſos ; e no Tomo primeiro do meſmo


Theatro conta eſtas virtudes de hum Mouro ? Pois
fe efte Mouro tinha eſtas virtudes moraes , e he
roicas ; porque nao teriaó as meſmas , e outras ma
yores os outros Mahometanos ? Ha-le de negar a
huns por Mahomecanos o meſmo que ſe louva , e
admira em outros ſendo Sarracenos ? Nao me lem

bra em que lugar do Theatro Critico diz Feyjoo,


que no Alcoraó de Mafoma ſe prohibem alguns
vicios , prohibidos tambem no Evangelho de Chril
to ; porque prohibe o furto , o homicidio , o adul
terio , e outros ſemelhantes peccados : obſervao os
Mahometanos muitas vezes eſtes preceitos, e naó
ha duvida, que em deixar de peccar , obraó bem ,
fazendo virtudes moraes , ſemelhantes às virtudes
Chriftáas. E ſe obrað virtuoſamente os Turcos , dei
xando de fazer mal , ainda procedem melhor fa
zendo bem . Entre todas as Nações Barbaras, e In

fieis , nenhuma he mais liberal com os pobres , do


que a dos Turcos , porque lhes dão huma grande
parte de ſeus bens, a que chamão Zaca , para com
ella ſe ſuſtentarem , como entre os Chriſtáos ſe ali.
mentað os pobres com a eſmola. No Alcoraő, co
Bluteau Vo- mo eſcreve Bluteau , nað eftà expreffo o quanto
cab . Tom . 8. cada hum ha de dar , mas ſegundo os Doutores da
fol. 625 Ley , cada Muſulmaó ( que reſponde ao que entre
nos ſe chama Fiel ) eſtà obrigado a dar a decima
parte das ſuas rendas. Outros de mais larga opi
niao dizem , que baſta a quadrageſima, ou quin
quageſima parte; e outros mais accommodados de
terminaõeſta eſmola , ou Zaca a hum por cento . Por
eſte bem , que os Turcos fazem aos pobres, quan
do não ſeja pelos males , que deixão de fazer ao
pro.
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.I.cap.unic. S.12.217

m ximo , lhes pòde Deos fazer muitas mercès , e dar


Old Ihes muitas riquezas , como diz o Padre Drexellio ,
76 que deu , ou moſtrou Deos hum cheſouro eſcondi
do ao Emperador Tiberio , por ſer liberal com a
1 pobreza ; Certè Tiberius Imperator ob admirabilem Drex. Tom .
in egenos liberalitatem in Suomet palatio copioſum au- 4.cap.6.dcSa
s'um jam olim fepultum eraut , Deo monftrante abdie lom : 9.1.verf.
tum ærarium ; porque ainda que a liberalidade de Ita fol.872.
Tiberio, e dos Turcos não ſeja entre elles verda
deira virtude , como entre os Chriftkos he a Cha
ridade ; com tudo merecem tanto os Infieis por lin
beraes, que por eſta piedade com que ſuſtentað os
pobres , lhes pode Deos fazer muitos beneficios ; e
poſto que ſejao infieis , lhes da liberalmente as ri
quezas .
Infieis eraõ as Parteiras do Egypto , e deſpre
zando por temor de Deos os Decretos de Pharaò
não ciraráo a vida aos meninos Hebreos , merecen
do tanto com eſta piedade , que Deos lhes fez mui
tas mercès , e lhes edificou , ou eſtabeleceo as ſuas
caſas : Timuerunt autem obftetrices Deum , & non Exod. 1. 13 :
fecerunt juxta præceptum régis Ægypti, ſed conſer- 20.21,
vabant mares . Bene ergo fecit Deus obſtetricibus. Et
quia timuerunt obſtetrices Deum , ædificavit eis domos.
Commentando eſte lugar o Eminentiſlimo Cardeal
Hugo , entendeo , que Deos premiou taõ liberalmen
te as Parceiras Égyptanas pela compaixaó , que
tiverão , e pela piedade com que perdoarão aos He
breos innocentes : Pietas in eis remunerata eft ; por
que ainda que eſta piedade, e compaixão era vire

tude de perſoas infieis, não deixou Deos a ſua vir


Cude ſem premio , aindaque lhe cirava a infidelida
de a mayor , e melhor parte do merecimento . He
Ee Deos
218 Ennaa , ou Applicação do Entendimento ,
Deos tão bom remunerador das virtudes , que ain
da aos infieis faz beneficios , quando fazem acções,
que parecem , ou fað virtuoſas. E le as Parteiras il
fieis, mas tementes a Deos , e virtuoſamente com
padecidas da innocencia dos meninos dà o meſmo
Deos tantas riquezas , como deixaria de dar aos
Turcos muitos bens, compadecendo -ſe elles tam
bem da neceſlidade dos pobres ? Se tambem Deos
em premio deſtas , ou de outras virtudes deſcobrio ,
ou permittio , que deſcobriſſem a Chryſopeia os.Tur
cos, mais ſegurão os Catholicos o deſcobrimento
do Lapis , fendo conforme à perfeição Evangelica,
conſumados em todas as virtudes ; porque em hum
fugeito de virtudes aſſenta bem deſcobrirlhe Deos

a Pedra Philofophal , como ſobre huma pedra tem


o ſeu affenro a virtude . Pincàrão os Antigos a vir
tude , conforme diz Bluteau , com femblante de 1
Matrona grave , e modeſta, veſtida de branco , e
com trage ſimplez , fentada em huma Pedra qua
drada, circunſtancias que manifeſtaráo ſeu candor,
fimplicidade , e conſtancia , com que ſe alcança
virtuoſamente a Pedra Philoſophal , a qual to nos
virtuoſos tem bom aſſento :
Ah fim , que me eſquecia : a hiſtoria de Mac
homet , lembroume a de Fr. Theodorico . , E por
Vicir . 3. Part. que era homem ( fao palavras formaes do Padre
Serm.do Bom Vieira ) de grande intelligencia, e induſtria, com
Ladrao . S. 12 .
„ meteolhe o Emperador Carlos IV . algumas ne
num.441 . fol. , gociações de importancia , em que elle ſe apro
349
veitou de maneira , que competia em riquezas
99 com os grandes Senhores. Advertido o Empe
» rador , mandou - o chamar à ſua preſença , e dif
ſe - lhe , que ſe aparelhalle para dar contas . Que
faria

۲r
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.I.cap.unic.S. 12. 219

faria o pobre , ou rico Monge ? Reſpondeo ſem


fe aſſuſtar , que jà eſtava aparelhado , quena
, quelle meſmo ponto as daria , e diſſe aſſim : Eu,
‫ رو‬Cefar , entrey : no ſerviço de Volla Mageſtade
com efte habito , e dez , ou doze toftões na bol
„ ça , da eſmola das minhas Miffas : deixe- me Vof
fa Mageftade o meu habito , e os meus toftões ;
e tudo o mais , que poſſuo, mandeo Vofía Ma
geftade receber , que he fet , e tenho dado.con
tas. Com tanta facilidade como iſto fez a ſua
,, reſtituição o Monge : e elle ficou guardando os
ſeus votos , e o Emperador a ſua fazenda. Com
paremos agora Theodorico ſendo Chriſtão , e Re
ligioſo , com Mahomet ſendo infiel , e Mahome
tano : Theodorico ſeguindo o Evangelho , e não
obſervando a ſua doutrina , furtou ; e Mahometob
fervando o Alcorão , não furtava : Theodorico ref
tituhio obrigado da neceſidade ; e Mahomet não
teve neceflidade de reſtituir : Theodorico deu mà

conta de li , mas deu boas contas ao Emperador ;


e Mahomet tinha as contas tão bem ajuſtadas , que
o teve o Rey em boa conta : Theodorico poſſuin
do a fazenda do Emperador não guardava os ſeus
votos ; e Mahomet porque não quiz poſſuir a fa
zenda do Rey , guardava os ſeus traſtes : Theodo
rico porque roubou a fazenda do Emperador, ficou
deſpido das negociações , e deſpedido do Real ſer
viço ; e Mahonet porque não furtou a fazenda do
Rey, ficou veſtido com a ſua purpura , e conſerva
do no ſeu emprego : Theodorico finalmente ſent
do Religioſo , vivia com tanta pompa como ſe
foſſe Mordonio Môr do Emperador , e Mahomet
ſendo infiel, e Mordomo Môr do Rey, vivia com
Еe ij amoa
220 Emea , ou Applicação do Entendimento ,

a modeſtia de Religiofo. Muito excedeo àquelle


mào Religioſo nas virtudes moraes , eſte bom Ma
hometano. O Catholico pela Fè, que profeſſa, ex .
cede na virtude ao Infiel ; porèm he peyor do que
o Infiel , e nega a Fè , ſe não faz a ſua obrigaçao
Ad Timoth . o Catholico : Si quis autem ſuorum , & maxime do
s. 8 , mefticorum curam non habet , fidem negava , do eft
infideli deterior. Tal foy Theodorico , em compa
paração de Mahomet , porque faltando às obriga
ções de Catholico , era peyor do que hum Turco ;
e não cumprindo os votos de Religioſo , era peyor
do que hạm Mouro. Grande vergonha he neſte pa
ralello e neſtas antitheſes , ficar peyor que hum

Turco hum Chriſtão , que hum Mouro , hum Re


ligiofo , e que hum Mahometano , hum Monge.
ENODIO . Como Feyjoo vos não pode ou
vir , náo vos deve reſponder ; nem me parece , que
Vos reſponderà quando vos ouça ; não porque as
yoſſas ſoluções não padeção inſtancia , nem os voſ
los argumentos não tenhão repofta , mas porque
no Prologo da ſua Iluſtracion Apologetica al prime
10 , y ſegundo Tomo del Theatro Critico diz , que ſe
pão canlara en mas reſpueſtas ni al Señor Máñer , ni
à otro alguno ; e ficando indeciſa eſta queſtão , fe .

rà eterno problema para Applicaçaõ do entendimento


fobre a Pedra Philoſophal, que vos defendeis de tal
forte, que me perſuadiſtes a leguir a Philoſophia de
Hermes, no que não fe oppoem ao Evangelho. Por
iſſo vos peço finalmente , que me digais as quali
dades, que deve ter o Philoſopho , de que mate
ria ſe fabrica o Lapis , e fe eſta he o Mercurio ,
que couſa he o Mercurio Philoſophico , e a ſua di
geſtáo .
ENO:
Sobre a Pedra Philoſophal. Dialog.I.cap.unic.S.12 . 221

le ENODATO . Naš poſſo diſcorrer fobre ma


teria tão delicada , ſenão com o eſtylo , e ſegredo
Hermetico ; e como o Sol , feito cadaver de Ouro
ſe vay fepultar em hum tumulo de Praca , faó ho
ras de me retirar com eſtes Cavalheros , e à manháa
de tarde nos juntaremos neſte lugar , e vos direy o
que tanto deſejais faber , ſe o tempo com a ſua va
riedade o não impedir , porque a perturbaçaõ dos
ares nos ameaça com huma grande rempeftade ,
em que as nuvens ſerão o luto , a chuva as la
grimas , e o vento o pranto , em que o Ceo cho
rarà , e lamentarà a morte , e occaſo do Sol.

FINI S.

:
)

i
LISBOA OCCIDENTAL :

Na Nova Officina

DE MAURICIO VICENTE DE ALMEIDA ,

morador ao Arco das Pedras Negras,

M. DCC . XXXII .

Coin todas as licenças neceſſarias.



EN N Æ A ,

OU

APPLICAÇAO DO ENTENDIMENTO

SOBRE A

PEDRA PHILOSOPHAL .
!

1
1
E N N Æ A ,
OU

APPLICAÇA DO ENTENDIMENTO
SOBRE A

PEDRA PHILOSOPHAL .
PROVADA, E D E FENDIDA
Com os meſmos argumentos com que os Reverendiſſimos Padres
Athanaſio Kircker no ſeu Mundo Subterraneo, e Fr.Bento Hicro
nymo Feyjoo no ſeu Theatro Critico, concedendo a poſſibili
dade, negaó, e impugnaó a exiſtencia deſte raro , è gran
de myſterio da Arte Magna.

PARTE SEG UND A.


OFFERECID A
AO EXCELLENTISSIMO SENHOR

FRANCISCO DE SOUSA
DA SYLVA ALCOFORADO REBELLO .
POR

ANSELMO CAETANO MUNHO'S


DE AVREU GUSMAð E CASTELLO BRANCO) ,
Doutor na Univerſida de Coimbra , Familiar do Santo Officio, Medico do Ex
cellentiſſimo Senhor Duque de Aveiro , e natural da antiquiſſima Vila
la de Soure ,

LISBOA OCCIDENTAL :
Na Nova OfficinadeMAURICIO VICENTE DE ALMEIDA ,
morador ao Arco das Pedras Negras.

M. DCC . XXXIII.
Com todas as licenças neceffarias, e Privilegio Real.
!
2
EXCELLENTISSIMO SENHOR.

NTRE as grandes calamidades


dosſecuilospaſſados contaõ os Eru
ditos a irreparavel perda dos muitos volumes , que por
falta do Prélo acabàraõ conſummidos pela veracidade do
Siij tein
tempo ; e entre as infelicidades do ſeculo preſente numè
raõos Doutos a compoſição de muitos livros, que con
tinuamente ſahem a luz por meyo da eſtampa ;
porque
tao pernicioſos ſão alguns livros modernos na Republi
ca das letras , como ſerias convenientes muitos volumes 1
antigos no Orbe Literario. Mas aſſim como a formoſu
ra do Mundo natural ſe compoem da variedade de
creaturas , fazendo no grande" Theatro do Univerſo,
com igual proporçaõ a ſua figura as Formigasna Terra,
em que paſſeao os Elephantes, as Fanecas no Mar , em
que nadaõ as Baleas, as Moſcas no Ar , em que vodo as
Aguias os Cometas nas Espheras , em que gyráð os

Planetas; e as Eſtrellas menoresno Firmamento, em


que circulaõ os mayores Aftros: tambem com eſta meſma
differença compoém o Orbe Literario os volumes dos ho
mens ſabros , e os livros dos homens neſcios , andando
na Republica das Letras os idiotas de companhia com
os Doutos , e os diſcretos acompanbados dos ignorantes;
porque neſte grande I beatro do Univerſo todos os Ef
crittores parecemſabios ; nað tendo alguns Authores de
homens doutos mais do que a ſemelhança de homens,
Na myſterioſa Carroça deEzechiel andava o How
mem de companhia com o Leaó , Boy , e Aguia ; e ſen .
do a Agua huma ave, o Boy hum animal, e o Liao
do
huma fera, todos eſtes animaes tinha ) a ſemelhança
- Ezech . 1.5 . Homem : Similitudo hominis in eis . Por eſta Carro
ça enygmatica entende o Padre Alapide o Theatro do
Univerſo compoſto nað ſó do Ceo , mas tambem de to
dos os quatro Elementos , e de todas as mais creaturas,
Cornel. Ali- a que Deos preſide, como Superior, e Creador de todas
pide coment. as couſas : Currus hic eft Cælum , & Univerfum ,
in Ezech . C. cui Deus præſidet . Rurſum quadriga hæc habens fa
1. fol. 9 +5. & cies quatuor animalium , hoc ipfo repræſentat Mun
dum
953 .
dum ſublunarem , qui ex quatuor elementis conſ
tat. Hinc enim currus ſignificabat totum Univer
fum , omneſque creaturas , quibus præſidet Deus
creacor. Pois ſe eſta myſterioſa , e enygmatica Carroça
he ſymbolo do Theatro do Mundo natural , do Orbe
Literario , e de toda eſta grande machina do Univerſo,
aonde o Homem , o Leao , o Boy , e a Aguia ſao ani
maes tao differentes nas eſpecies , como os quatro Ele
mentos nas naturezas , como pode neſta oppoſição , e
contrariedade dos quatro animais haver analogia , e ſe
melhança com o Homem : Similitudo hominis in eis ?
Facilmente podem os animais participar da ſemelhança
do Homem , fazendo cada hum o que eſtà na ſua mão,
ou tomando na mão a penna para eſcrever como o Ho
mem : Et manus hominis ſub pennis eorum . Com a Ezech . 1.8 .
penna na mão moſtra os Homens , que nao ſao animaes;
e os animaes , tomando na mão a penna , e fazendo o
que eſtà na ſua mão, participao da femelhança de Ho
mens : Similitudo hominis in eis . Aſim como no Or
be Literario ha Homens , que com a penna na mão pa
recem Aguias , tambem as Aguias", os Leões , é os
Boys, ſendo huns animais , tomando nas mãos as pen
nas, parecem na Republica das letras grandes Homens:
Similitudo hominis in eis. Cada anımal daquella Car,
roga , ſendo hum fó individuo , tinha quatro faces :
Quatuor facies uni; e cada huma deſtas faces eſtava
dividida em muitas partes, em tal forma , que qual
quer daquelles animais tinha deſeſeis partes , ou faces,
como por liçaõ do Chaldeo efcreve o Padre Alapide :
Quodque animal fuiſſe quadripartitum , & unicui
que parti quatuor fuiſſe facies : itaque quodque ani
mal habuifle fedecim facies ; e deſte modo qualquer
daquelles animaes parecia hum grandeHomem de letras;
9
por
porque apparècia noOrbe Literario dividido em quatro
partes , e multiplicado em muitos volumes , para voar
nas azas da fama , formadas das
ſuas pennas , por
todas as quatro partes do Mundo : Et facies ,& pen
nas per quatuor partes habebant. De maneira , que
fao hoje tantos os livros , e correm , ou voað no Orbe
Literario tað multiplicados , e numeroſos os volumes
dos Homens ſabios, é dos animaes , queparecem Homens,
que na Republica das letras ſe equivocao com os Homens
os animaes ; porque nao ſó competem entre ſi na igual
dade, e numero dos Tomos , mas na ſemelhança da doua
frina, e das humanidades : Similitudo hominis in eis.
Todos eſcrevem com as meſmas pennas ; porque nao ſo
ſe citað , mas ſe trasladão ; e deſta forte como os ani.
Ezech . 1.9. maes da Carroça todos vodo com as meſmas azas : Jun
Etæque erant pennä сorum alterius ad alcerum ; por
iſo com a penna na mão , ainda que ſejað animaes ,tem
ſemelhança de Homem : Similitudo hominis in eis.
Eſta meſmaſemelhança , queſe acha entre os EG
critores modernos , tenho tambem obfervada em todos
os ſeus livros ; porque todos , ainda que ſejao partes
de animaes , tem ſemelhança de Homens : Similitu
do hominis in eis. Naſcem todos os livros , como cor
Tumaõ naſcer os Homens. A ſciencia he a luz do En
tendimento , e eſta fecunda luz he a mãy de que todos

os livros são filhos. Primeiramente com ideas confuſas


se começa a delinear nos borradores o embriao , que
com o calor da imaginação fe anima, e com folidasof
peculações ſe alimenta , e vay creſcendo. Diſtingue o
juizo as partes, e com erudita proporçaõ as organiza.
Formadopois , e acabado o livro , ſahe a luz , ten
do por cabeça o frontiſpicio , por corpo a materia de que
trata , e por alma a verdade. Os capitulos ſão os mem
bros ,
bros , as regras Jao as veas , a tinta he o ſangue , o
Prelo he o berço , e as folhas ſão as mantilhas. Asno
to
ticias, que encerra ſao os ſeus olhos , a doutrina he o ſeu
leite , o titulo be o ſeu nome, e o Protector, a quem ſe de
dica , he o ſeu Padrinho. Havendo porèm tanta diver
fidade de livros , como de Homens, aſſim nos Homens, co
mo nos livros ſe acha hoje huma grande fernelhança :
Similitudo hominis in eis. Nenhum volume ſaheneſ
te ſeculo a publico fem o amparo de hum Protector
porque como nao hà Homem no Mundo fem Padrinho;
tambem no Orbe Literario nao ha livro ſem Pa
trono.

Eſte he o primeiro erro , que pelomotivo , com que


implorað a protecção , em muitos volumes impreſſos
tenho notado. Temem os ſeus Authores a mordacidade
dos Zoylos , e a ſeveridade dos Criticos , e paraque lhes
defendao as obras da cenſura dos Ariſtarchos, edama
licia dos Momos fupplicao na primeira folha dosſeus li
vros: 0. patrocinio de poderoſos , ou reſpeitados Mecenas,
fem advertirem muitas vezes , que a petiçaõ he injuf
ta , e o deſpacho impoſivel; porque impreſos , e divul
gados por todo o Mundo os ſeus volumes , como poderà
ö feu Protector defendellos , nao ſendo Sol, queem per
petuo gyro ande continuamente obſervando quanto ſe
nota no Mundo , e murmura no Univerſo. Com que ra
-Zað pretendem todos , que o patrocinio do ſeu Áfecenas
Seja às vezes aſylo da ignorancia , ſilencioda toquacidade,
e rayo da inveja ? E como porerà tambem livrar os vo
- lumes da Satyra , ou da Critica , não lendo , e muitas
vezes nao entendendo o Senhor Mecenas o meſmo livro,
que ſe lhe conſagra , para conhecer ſe a cenſura eſtà fei
ta com a malicia de Momo, ou com o juizo de Arif
Larcho ?
SS Pars
Para evitar eſte erro univerſal ( jà que nao emen
do outros muitos , que neſta obra publico ) offereço a
VOSSA SENHORIA eſta Segunda Parte da
minha Ennæa , nað para que a defenda dos Criticos
e dos Zoylos ; mas para que lhe ponha benignamente os
olhos ,e interprete os ſeus enigmas.He VOSSA SE
NHORIÀ como univerſalmente ſabro , Sol do Orbe
Literario. Nao ha dia , em que não obſerve com luz
propria quanto florece na Republica das Letras; e no
ſe lorva, ou murmura nos eſcritosalheyos,
tando o que
cada hora ſé faz mais ſabio. Por eſta ſó razão ( quan
do não houvera outras ) emendo comeſta Dedicatoria o
erro , que cenſuro em outras ; porque ſendoeſtesDiala.
gos enigmaticos , que Patrono havia de buſcar para
jèu Edipo, fenao a hum Protector tao douto , que por
ouvir aos Sabios , cada vez he mais ſciente , vendo , e
advertindo nos ſegredos das parabolas, e nos myſterias
Proverb . I. dos enigmas : Audiens ſapiens, fapientior erit : ani
verf. 5 madvertet parabolam , & interpretationem , verba
fapientum , & ænigmata eorum . He eſte Livro com
1 os ſeus enigmas obſcuriſſimo myſterio para os ignoran .
tes , e ſegredo quaſi impenetravel para os Doutos : e
ſendo eſcrito para utilidade de todos , neceſſitao de que
VOSSA SENHORIA, advertindonas parabolas,
interprete os ſeus arcamos. Na balança da minha eſtos
mação tanto peza o grande talento de VOSSA S'E
NHORIA como o de Platão , e ſendo eſte divino Phi
lofopho hum homem , quevalia por todos , na perſpicaz
intelligencia de VOSSA SENHORIA conjegui
rà o meu livro , que todos oentendað.
Nao ſerà difficil a VOSSA SENHORIA
decifrar os enigmas da Arte Magna , quando como Sol
com a maxima das Sciencias , Segundo chama Salamað
À Po.
}

à Politiea : Sub Sole vidi fapientiam !, & probavi Ecclefiaftic.


maximam : penetra os smyſterios mais occultos das Mo- cap.9 . 13 .
1 narchias ; porque he mais facil explicar enigmas , do
gne adivinhar penſamentos; e moſtrou VOSSA SE
NHORIA muitas vezes neſta Corte , entre grande
parte da mayor , e mais entendida Nobreza , aonde lhe
deu lugar o ſeu eſclarecido, e illuſtre naſcimento, quan
to pode o eſtudo, e o muito, que o juizo alcança ; por
que ſempre ouvir að diſcorrer a VÓSSA SENHO.
RIA com acerto nas Politicas, e com diſcreta elegancia
em todas asmaterias ; ſabendo VOSSA SENHO.
RIA unir a efficacia das razões ſolidas com a erudi.
ção das noticias conſumadas ; porque ſendo Philologo
por curioſidade , Philoſopho por eſtudo, Theologo por li
ção, e Mathematico por divertimento, todas eſtas Scien
ciasſabe com perfeição. Para cultura do ſeu grande.
juizo, concorrerão as quatro Lingoas Latina , Fran ,
ceza , Heſpanhola , e Italiana, que na ſua adoleſcencia
entrarão a ſervir a VOSSA SENHORIA como
eſcravas ; porque em pouco tempo fe fez Senhor de todas.

Eſta verdade conhecerà o Mundo, quando na Re


publica das letras apparecer impreſſa a vida da Rai
nha de Eſcocia Maria Eſtuarda , que VOSSA SE
NHORIA em outra obra tem promettido. Então ves
rão os Oradores hum Cicero , os Políticos hum Tacito,
cos Hiſtoriadores hum Livio , como em dons volumes
admiržo jà os Aſceticos em VOSSA SENHO.
RIA hum Metaphraftes , e os Politicos hum Xeno
phonte ; porque ainda queVOSSA SENHORIA
occultou em hum deſtes livros o nome por snodeftia ,
que em outro eſcreveo por obediencia , a igualdade, e
Femelhança do leueftylo o fez publico, e conhecido, co
mo a voz manifeſtou a Jacob , disfarçado com as gal
SS ij Las
las de fen Irmão Ezan ; porque ſendo o eſtylo tão nas
tural como a voz , não pode o artificio occultar a nao
turalidade.

Sobre eſta grande capacidade , que VOSSA SE


NHORIA tem para interpretar enigmas , e myſte
rios Hermeticos , concorrem da minha parte razoes
forfozas, para fiar ſó de VOSSA SENHORIA
eſtes meus ſegredos. Huma das mayores be o conſelho
de Salamão , advertindo a todo o homem , que trate os
ſeus particulares fo com o ſeu amigo, e não revelle a
Proverb . 25. ſen ſegredo a peſſoa eſtranha : Cauſam tuam tra & a cum
9. amico tuo , & fecretum extraneo ne revelles. Por
eſta razao devo buſcar Patrono para entender eftes ul
timos Dialogos na meſma Caſa donde elege o Illuſtriſſi
mo Protector para authorizar o primeiro . Pelo eſcla
recido , e nobiliſſimodeſpoſorio com que VOSSA SE
NHÓRIA ſe aparentou na Excellentiſima Caſa de
Menezes , fazendo da Sylva laço , unio com mdiffon
luvel vinculo as Quinas, as Lizes, e as Luas, e com
a ſua benevolencia me prendeo , e captivou de forte
que honrandome como à feu Medico , me transformou
em fi proprio por amigo , ſendo para mim grande hon

ra ſó o titulo de ſeu criado; e como nem o tempo , que


tudo acaba , nem a auzencia , que tudo muda, poderao
extinguir no coração de VOSSA SENHORIA .
verdadeiro affecto , com que ainda hoje auzente me hort
ra , moſtrando na ſua generoſa conſtancia , e firmiſſi
ma memoria , que no ſeu heroico animo não tem juriſ
dição os celebrados effeitos do Rio Lethes, que tantas
vezes tem paſſado para deſmentir eſte eng ano ; não era
poſſivel, que faltando nas agoas do Tejo aquelle fabu
lofo effeito, me eſqueceffe eu como ingrato de tão repeti
dos beneficios, como tenho recebido da ſua grandeza ,
egea
e generoſidade, para com eſte devido obſequio não mof
trar agora a VOSSA SENHORÍA , e a todo o
Mundo o meu juſto , e eterno aggradecimento . Deos
guarde a Excellentiſima Peſſoa de VOSSA SE
NHORIA como todos os ſeus criados havemos miſ.
ter. Lisboa Occidental 12. de Janeiro de 1730 .

EXCELLENTISSIMO SENHOR.

B.as M.de VOSSA SENHORIA ,

Şeu criado obrigadiflimo ,

Anſelmo Caetano Munhòs de Avrex Guſmaõ e Caſtello Branco.


ŞAQAgAgata

ex nenose hancesco
XOCKISTUSKOKOOK

INDICE

DOS

CAPITULOS,

INTRODUCCOENS , E PARAGRAFOS,
Que ſe concèm nos dous Dialogos , de que
conſta a

SEGUND PARTE
A
DESTA

E N N Æ A.

DIALOGO SEGUNDO .

APITULO UNICO . Das qualidades , e vir.


C tudes do Philoſopho Hermetico , e da mate
ria da Chryſopeia. pag . I,
§. I. Introducção do ſegundo Dialogo: pag. 1 .
. II. Da materia com que os Hermeticos fazem a Pe .
dra Philoſophal. pag . 27.

DIA
DIALOGO TERCEIRO .

APITULO UNICO . Do Mercurio Philo


CA Pophico ,e da fua digeſtão.pag
.31. .
S. I. Introducção do Terceiro Dialogo , pag. 31 .
Š. II. Revela -ſe a materia da Chryſopeia. pag. 33 .
S. III . Do caſamento Hermetico doLeão com a Aguia.
pag . 39 .
S. IV. Dosmeyos, e extremos da Chryſopeia. pag .
41 .
S. V. Das quatro digeſtoens Hermeticas . pag. 45 .
S. VI. Da circulação da Agoa. pag. 50.
Š . VII . Do Fogo da Natureza, e da circulação dos
Elementos. pag . 52.

S. VIII . Do Fogo Philoſophico , ou Hermetico , e


da preparaçaõ da Chryſopeia. pag. 59.
S. IX. Teſtamento Hermetico . pag. 8o.
S. X. Metemfomatofis do Chumbo em Prata. pag . 48.

A Da
0: 8 Detlo
01:03:03 :6

0.69.
( CE ) S 29 08:12:25
* * * * * **
PS ( CET ) CS GEDC61 )C64 ..
ON ge : 90

ADVERTENCIA AO LEITOR . ?

As introduecoens dos precedentes Dialogos


N ſempre os Interlocutores falàrão na famola
Ponte de Soure , como Theatro verdadeiro da ſua
converſação ; e por delcuido do Amanuenſe ficou
( com outras muitas couſas ) na margem do Original
a ulcima parte do paràgrafo ſegundo , que eſtà a fo
Ihas 32.do Dialogo Ill.e com eſte Supplemento ago
ra ficarà completo. Bem ſabeis vos , que buſcando eu
ſempre por genio o retiro , devo agora eſtimar. o paſeyo
por necesſidade ; porque havendo de falar nos miſterios
mais importantes, e occultos da Pedra Philofophål, nað
convèm , que pratiquemos neſte Phenomeno en lugar tao
publico , para que não ſucceda ouvirme algum Pſeudo
Critico, qne imitando a Momo ſeria da minha Chryſo
peia , comomotejon hum Zoylo a nova Planta deſtaar
ruinada Ponte , que ideava o Doutor Manoel Martinz
Falcato , equiparandoa à fantaſia do Lourenço da ; Pe
dreiras ; que he hum ruſtico Lavredor ; reſultando deſte
fatyrico parallelo pôr eſte Miniſtro buma pedra emcima
da informação , que vero tirar a eſta Villa para ſereedi
ficar , e accreſcentar ejta Ponte; e como neſta terra com
palavrinhas picantes impedirao , que ſe tranformale o
Vitriolo da tinta em Orra pararcedificação deſta Ponte;
tambem impugnarão com zomrarias a eſpeculaçağ da
Chryfopzia ; porque os moradores deſta Villa tað fa
cilingiate ſe pàden rir dos Philoſophos, como dos Miniſtros.
EN
Pag. 1

THIS

ENNÆA ,

OU APPLICAÇA Ở

DO ENTENDIMENTO ,
SOBRE A

PEDRA PHILOSOPHAL .

- DIALOGO SEGUNDO .
CAPITULO UNICO .

Das qualidades , e virtudes do Philoſopho Hermes


rico , e da materia da Chryſopeia.

$. I.
INTRODUCCAO .
ENODIO . GUALMENTE
tenho ſentido a rui
na delta grande
le
Ponte , por me pri
I var há muitcs dias
da voſſa communis

caçaó ; como por


ver cahida huma obra tao magnifica , como Real ;
e ainda agora me aſſuſta a repreſentação da furio
fa
Errca , (1 Affliceçeč d'o Eritcrdin into,

fa tempeſtade , que repentinamente ſe levantou em


6. de Dezembro de 1729. depois que neſte lugar
nos apartamos , e dentro de poucas lioras choveo
tanta agoa , que juntando - ſe neſte dilatado campo

parecia hum grande mar , que ameaçava com no


vo diluvio a todo o Mundo ; e como as voſſas ca
ſas eſtão unidas com a Ponte , e cercadas com as
duas Couraças, que por duas ruas largas entrão na
Villa , ouvindo eu cà de longe , e na obſcuridade
de huma noite tempeſtuoſa os formidaveis eſtam
pidos da Ponte arruinada , e fobvertida , entendia ,
que não ſó o quarto das voſſas caſas , que fica ſo
bre o Rio , mas toda a parte da Villa , que eſtà
edificada nas ſuas margens , juntamente com a Pon
te ſe fobvertiáo ; porèm com a primeira luz do dia
vi , com grande laſtima , que para ſe livrar da incle
mencia dos ares , ſó o intenſivel das pedras deſta
Ponte buſcou o refugio das agoas.
ENODATO . Éſta Ponte chamada de Baixo,
e aquella , que fica tambem à noſſa viſta , que las
hindo do Caſtello , termina no monte onde eſtà edie
ficada a Igreja de Santo Andrè , e chamamos Pon
te de Cima, ambas podiaõ ter o meſmo nome; pora
que ambas eſtáo fundadas ſobre outras duas Pontes
muito antigas , edificadas pelos Romanos , e hoje
eſtão enterradas, como Roma , ſuſtentando ſobre
fi novas Pontes , como Eſtatuas daquelles fepulta
dos cadaveres ; e conſta por tradição verdadeira
ferem as Pontes velhas tão altas , quando jà não
erão novas , que paſſaváo barcos à vella por baie
xo dos ſeus arcos. Os caes por onde ſe deſcia an
tigamente ao Rio , tinháo mais de ſeſſenta degràos,
1
e ainda eu conheci homens antigos , que ſe lem
bra .
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog .II.cap.nic. $ . 1. 3

bravão de contarem vinte e quatro degrãos no


caes da Ponte de Cima , os quaes com a Ponte jà
eſtarão quaſi ſepulrados nas areas , quardo eu paſ
fey por cima della as primeiras vezes . Confirma
ſe eſta tradiçaõ com hum violento homicidio , que
ſe fez nas margens do Mondego junto da Ponteve
lha de Coimbra ; porque conſta de autos publicos ,
que devaçando -le deſte delicto , juràrão as teſtemu
nhas , que o virão commetter , estando no circulo
da Ponte , e que não conhecerão o matador , por ler
tanta a diſtancia , ou altura daquelle lugar ao Rio,
que não pode a viſta diſtinguirlhe as feições do rol
to. Com razão eſcreve Bluteau , que le o Mundo Bluteau To .
fora eterno , como Ariſtoteles , e outros Philoſo
mo 5.fol.566 .
ſos erradamente imaginàrão , muito tempo hà , que
os mayores montes da terra eſtariáo deſmoronados,
e teriamos hoje todo o globo da terra cáo plano ,
como a palma da mão ; porque o calor do Solcria
na ſuperficie da terra huma codeafinha , que depois
de muito ſeca le reſolve em pó , elevado dos ventos,
ou trazido das chuvas para baixo , he cauſa de que
os montes vão infenſivelmente mingoando, e os vals
les ſe vão enchendo , como fallando deoutros valles,

e oiteiros profetizou o Precurſor de Chrifto : Om- Luc.3.5


nis vallis implebitur, & omnis mons , & collis humilia ,
bitur ; e com eſta experiencia fundada em taõ cla .
ro Texto e razao tao certa , não podia ſer mayor ·
o erro dos Eſcudeiros deſta terra ( muito prezados
de Sabios ) do que deixarem fazer a planta de hu
ma obra táð neceſſaria , e tað ſumptuoſa com ode
feito de ficar baixa , tendo na magnificencia , e li.
beralidade do Sereniſſimo , e AuguſtiſſimoSenhor
Rey D. Pedro II, de laudoſa , e feliz memoria to ,
Aij do
4 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

do o dinheiro neceſario para a fazerem tað alta ,


como a Torre daquelle Relogio , que he hum dos
mayores Gigantes de pedra , e cal , que temos no
nollo Reyno .
A elte defeito da planta fe juntou tambem o
deſcuido , omiſao , ou injuſtiça do ſeu governo po
litico ; porque vindo todas as cardes converſar nef
te ſitio ; e ſendo algumas vezes aſſumpto da fua
converſação a futura , c jà paſſada ruina delta Pon
te , que ameaçaváo duas pedras deſencaixadas do
talhamar do quinto arco , nunca ſe relolveraó a
mandallas ſegurar à cuſta dos bens do Concelho ,
:
nem fe atreveráo a gaſtar cinco toſtóes , para com
dous officiaes fazerem em hum ſó dia aquelle con
certo à ſua cuſta ; c deſta miſeria , e daquelle del
governo reſultou arruinar - ſe a melhor parte deſta
obra,, que
que nað ſe repara agora com muitos mil cru
zados ; e não poſſo deixar de me rir , vendo que
com a de cima parte do que ſe gaſta agora inutils
decima
mente em madeira , e officiaes para fazer huma paſ
ſagem de tão pouca duraçaố , como vereis , ſe podia
evitar o eſtrago , que tendes viſto . Porillo ſe faz
menos fenſivel eſta grande perda , por ſer juſto cal
tigo de miſeraveis , e deſgovernados, ou de cobiço
fos , e avarentos , quando não foſſe tambem fupplie
cio de murmuradores ; porque algumas vezes coſe
Vieira Tom. tumão ſer para caſtigo myſterioſas as ruinas . Hum
2. num . 441. dos mais prodigioſos caſos com que o Ceo aſſom
fol.405 brou a terra , e as noſſas terras , foy o memoravel
terremoto da Ilha Terceira , não muitos annos antes
deſte . Arruinou , fobverteo , e arrazou coralmen
te a Villa chamada da Praya ; mas foy muito mais
Rotavel pelo que deixou em pé , que pelo que der
Lubous
Sctre afedraPhiloffhal.Dialog . 11.cap.znic.§.I. 5

rubou . Unicamente ficarão inteiras , e fem leſað


eſtas tres partes, Ol! peças d'aquelle Povo : a Cadea
publica , a Caſa da Miſericordia , e o Pulpito da
Ígreja mayor. Oh Providencia Divina , ſempre vi
gilante, ainda nos caſos, que parecem , e podem
fer da Natureza ! Aquellas tres excepções tão no
taveis , náo forão , ou ſuccederão ſem grande myſ
terio : e todos os que as virão , o notàrão , e re
conhecèrão logo . No Carcere reconhecerão a Ju .
ſtiça , no Hofpital a Mifericordia , e no Pulpito a
Verdade. Como ſe nos prègara Deos , que por fal
ta de Verdade , de Miſericordia , e de Juſtiça ſuc
cedem tað myſterioſas rninas ; e porque os defgo
vernados faltao à Juſtiça , os avarentos à Miſeri
cordia , e os murmuradores à Verdade , para caſti
go das murmurações , avarezas , e injuſtiças parece
que fuccedeo a ruina deſta Ponte.
ENODIO . Bem caſtigada eſtà a injuſtiça ,
avareza , e murmuraçao de alguns Eſcudeiros deſta
Villa com a ruina da Ponte , e com a voſa cenſu .
ra ; e porque agora todos eſtaó divertidos com a
fabrica da Ponte de madeira , como ſe foſſe a quo
para conquiſtar Anvers mandou fazer fobre o Rio
Eſcalda. o grande Alexandre Farneſio Duque de
Parma , e Placencia , liberdade nos fica para con
verſarmos ſós na revelacao do ſegredo , que me
prometteſtes deſcobrir.
ENODIO . Louvo muito a voſſa curioſida

de , ainda que ſempre me fica o eſcrupulo de que


rerdes ſaber a Philoſophia Hermetica para ſatisfaçaó
da cobiça .
ENODIO. Nað vos devo encobrir ainda os

mais occultos penſamentos. Principiey a inquirie

elta
6
E :1: 2.2a , Oil Applicaçaž do Entendimento ,

eſta materia , movido ſó:nente da curioſidade ; mas


depois que vos ouvi , confeſſu -vos ingenuamente ,
que me ſobreveyo hum grande deſejo de eſtudar ,
e practicar eſta Philoſophia para ſaber eita fcienti
fica Arte com toda a perfeição , não para ſatisfação
da cobiça , ou deſafogo da ambição , mas para al:
cançar hum tão grande ſegredo , que me dè licicos
meyos para fazer muitos beneficios aos pobres , e
aos enfermos.
ENO DATO . Como o fim he táo juſto , e
honeſto , poderà Deos noito Senhor alumearvos
com a ſua Divina luz, paraque deſcubrais o Segredo
Her netico , que a muitos occulta por eſtudarem a
Philofophia de Hermes para augmento da ſua vaida
de , e oppreſlao dos pobres, fem terem compaixão
dos mileraveis enfermos ; e como jà conheço o
voſlo bom , e virtuoſo intento , não duvido decla
rarvos o arcano , que tanto deſejais faber, nem de

vos enſinar a fazer qualquer operação Chymica.


ENODIO . Não pretendo agora ſenão , que
me reveleis a materia de que os Hermeticos formão
o Lapis, para com eſte conhecimento me applicar
a fazer a Chryſopeia.

S. II.

Da materia con quie os Hermeticos fazem a Pe


dra Philofoplia !.

ENODATO . Ntes que vos diga qual he


ria de que os Hermetis
A a mate
cos fabricão o Lapis , he neceſſario ſaber ſe tendes
vos todas as qualidades , virtudes , e perfeições ne.
cella
Sobre afedr af kiloſophal.Dialog. 11.cap.1!RIC.G.1. 7

ceffarias para obrares com acerto , e perfeiçaõ quan


do trabalhardes na Chryſopeia.
IP, ENODIO . Como eu não ſey quaes faó ellas
perfeições, virtudes , e qualidades , não vos poſſo
3 dizer ſe as tenho ; mas tambem vos quero dever
mais eſſa noticia , e obrigação , ſe mas explicardes.
ENODATO . Primeiramente deve o Philofc
pho Hermetico ſer temente a Deos , virtuoſo , e jul
tificado em todas as ſuas acções ; porque para alcan
çar eſta Sciencia , conforme enſino Geber, Senior ,
e outros Adeptos ( ſendo infieis , Gentios , ou Ma
homeranos ) he neceſſaria inſpiração Divina, a qual
concede Deos aquem he fervido para os fins , que
fó elle comprehende. Sem Deos nada ſe faz , e tor
na a ſer nada tudo quanto ſe faz ſem Deos : Sine Joann.1.3.
ipſo factum eſt nihil , quod factum eſt . Deos creou o
Philoſopho Hermetico , que trabalha por meyo do
fogo, e dentro de hum vaſo prepara a Obra gran
de ; e Deos com a ſua liberalidade, omnipotencia ,
e ſabedoria concede aos Hermeticos as ſciencias
as verdadeiras Pedras Philoſophaes , aquem pode
mos chamar Pedras deſejadas , como parece lhe
chama o meſmo Senhor por boca de Ilaias fallan
do da ſua Igreja : Ecce ego ſternam per ordinem la- Ifai. 54. Te
pides tuos , & fundabo te in ſaphirts & ponam jaſpi- 1:6.

dem propugnacula tua : & portas tuas in lapides ſcul


ptos , & omnes terminos tuos in lapides deſiderabiles :
univerſos filios tuos doctos à Domino : ecce ego creavi
fabrum ſuflantem in igne prunas, & proferentem vas
in opus ſuum ; e ſe Deos cria os Philofophos Herme
ticos , concedendolhes as fciencias Chymicas , e as
Pedras Philoſophaes , que como a Chryſopeia de al
guns Hermeticos ſaa fabricadas com o Antimonio ,
QU
8 Ennea, 011 Applicaçãă do Entendimento ,

ou Stibio , palavra , que nelte lugar diz Alapide ef


creverão algunas Verſões: Alij vertuntfiernam inſti
bielapides 11:05, idelt , infiai" ft.bij , aindaque por todos
as deſejirem faó ráo appericiilas, e deſejadas: Lepides
defiderabiles, que ſe podem chamar pedras do deſejo
por ſerem tað yrecioſas , ſugundo o Texto Hebreo,
co commento de Alapide: Defiderij, ideft , fpeciofos,
ac pretio,as, ideoque deſiderabiles; ſó aos Adeptos, que
faó , e forem virtuoſos , perfeitos, e juftos conce
deri Deos eita grande ſciencia ; porque a ſabedo
ria nio entra no entendimento dos homens mìos,
Sap. 1.4. nem perſevera no corpo dos peccadores: Quemam
in mekvc !ain animam non introit fapientia , nec ha
bılabit in corpore fiibdito peccatis . E eſta me parece
a principal, e verdadeira cauſa de ſerem tão pou
cos os homens, que tenhaõ deſcuberto , e alcança
do o ſegredo da Chryfopeia ; porque cambem faó
rariflimas as peſſoas , que fem ambiçaõ , cobiça ,
avareza , inveja , ſoberba , e vaidade ( vicios , e
peccados oppoſtos às virtudes ) eſtudem a Philo
sophie Hermetica , e trabalhem na Obra grande ; e
nio quer Deos , que os homens perverlos polluað
lium chefouro perpetuo , e huma Univerſal Medicin
m ; porque não he juſto que a fatisfação das virtu
des leja premio dos peccados.
EVODIO . Sempre me pareceo jufto o caſti
go dos pecrados , e o premio dai virtudes , e he
muito neceflariv amur, temer , e recorrer a Deos,
para merecer , e conſeguir os bens temporaes na
vida e os eternos depois da morte , porém não
entendia , que para fazer a Pedra Philoſophal era
preciſo , quc PhilajepoHerinetico tolle Santo ; por
que me lembro de que Hermes foy Gentio , Geber
Mouro ,
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog. II.cap.116.S.2 . II

of Mouro , Paracelſo Herege , quando não foſla que


Pria gico ; e com cudo he certo , que eſtes , e oudem
femelhantes homens ſem virtudes , e com peccados
5 alcançarão o ſegredo
da Chryſopeia.
3 ENODATO . Todos elles Hermeticos tiverão

virtudes heroicas , e moraes , que Deos como re


10.
cto , e juſto , não deixa ſem premio , e remuneração ;
e como ſendo Gentios, Mouros , e Hereges , náo
bavião de ſer premiados com a gloria , que Deos
não dà fenaó aos Catholicos, que morrem em graça,
remunerou aquelles homens com as utilidades da
Chryſopeia , e outros benstemporaes , para ſatisfazec
os ſeus merecimentos. Mas ſe elles não tiveraõ eſtas

virtudes , naó os remuneraria Deos com eſtes pre


mios. Poriſſo os Hermeticos, que aſpiraó a conſe
guir a gloria eterna , e a fortuna temporal , devem
pedir , e merecer a Deos todas eſtas felicidades. 1

ENODIO . Aindaque eu nao ſou Santo , pela


mifericordia Divina eſtou há muitos annos fóra dos
vicios ; e baftan lo a eſperança da gloria eterna pa
ra eu viver juſtificado , o deſejo , que ſempre tive
de conſeguir eſta temporal felicidade , ſerà hum
grande del pertador para perſeverar conítante ſenaó
em virtudes , livre de vicios ; e ſe com iſto tenho al .
gum merecimento , peçovos , que me reveleis quaes
lao as outras qualidades , que deve ter o Philofo
pho Hermetico
ENODATO . Hà de ſer homem de claro en

tendimento , profundo juizo , ſubtil diſcurſo , gran


de comprehenſað , e bom engenho ; e porque iſto
ſó naõ baſta , deve tambem ſer perito na lingua La
tina , conſumado na Philoſophia , intelligente da
Machematica , e verſado na liçaõ dos livros Chy.
B micos,
C.S.9
8 ?pplicação do Entendimento ,

Ma

2.
ou tudo aperfeiçoe o entendimen

à
ito illuſtrado alcance grandes ſe

SO
..
ilcza do juizo , e os reduza a
engenho. A’lem de todas eſtas
induſtria , conſtancia , riqueza ,
paciencia , e ſegredo ; porque ,
», enſinað todos os Hermeticos ,
trto Magno , em nenhuma cou
ſer mais acautelados , do que
gredos com que obraố : Cavia
wtrgu ne in ijta operatione alicui ſecreta noſtra revea
Alchym . fol . letis. Eſta era a razaó porque os Antigos( entre os
quaes foymais conhecida eſta Arte ) collocavão nas
eltradas a Eſtatua de Mercurio chamada Herm - Har
pocrates com hum dedo fechando a boca , e com
outro moſtrando o caminho aos que faziaõ jornada
pelas eſtradas ; porque como com a ſua Vara tudo
convertia em Ouro , que por todos os caminhos
andão buſcando os homens , ſe com hum dedo lhes
moſtrava o caminho de o acharem , com outro lhes
recomendava juntamente o ſilencio .
ENODIÓ . Nao poſſo alcançar a razao , que
os Hermeticos tenhão para guardarem tað inviola
vel ſegredo a reſpeito do modo com que transfor
mão os Metaes em Prata , e Ouro , deſcrevendo as
operações da Chryſopeia por enigmas , allegorias,
e metaphoras , quando na Arte Magna com que
obraõ as transformações, falláo publicamente ſem
nenhum legredo.
ENOPATO . Muitas fað as razões , que os
Hermeticos ſempre tiveraõ para occultarem tað im
portante ſegredo , e até as meſmas razões encobrem
com grande myſterio ; porem antes que eu volas
reves
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.11.cap.sınic. S.2 . 11

revele , vos quero moſtrar por lium exemplo , que


ſe devem occultar os ſegredos com que ſe fazem
as transformações por meyo da Chryfopeia, no meſ
mo tempo , que ſe publica a Arte wagna. Vendo
o barbaro Pharaò , Rey do Egypto , que Aarað
convertia milagroſamente em Dragað horrivel a
prodigiofa Vara de Moylés : Verſa eft in colibrum , Exod . 9. 10.
mandou chamar ao Paço os mais infignes, e ſabios
homens , que na Chymica , e na Magica havia na
Cidade de Memphis : Vocavit autem Pharao ſapien
tes , & maleficos. Eſtando eſtes Magos , ou Sabios
na preſença d'ElRey Pharaò , e conhecendo , que
a vontade do Rey era , que a ſua grande fabedo
ria obraſſe naturaes maravilhas, ſemelhantes aos mis
lagres da Omnipotencia Divina , e às obras da Na
tureza creada , com encantos Egypciacos , e com
ſegredos Hermeticos , elles meſmos , e não outras
pelloas convertèrão com a projecçaõ as ſuas Vac
ras mortas em Serpentes vivas : Et fecerunt etiam Exod. 7. 11 .
ipſi per incantationes Ægyptiacas , l arcana quae 12.
dam ſimiliter. Projeceruntquefingulivirgas filas, quæ
verſe fint in Dracones . Os Setenta Interpretes, que
tambem ſao Authores Canonicos , declarão , que
eſtes Sabios , a quemo Texco Hebreo chaina Magos,
eraõ Sophiſtas, e Pharmacos : Sophiſtas, é Phar
macos ; e os Pharmacos , como diz Sennerto , não Sennert. To
differem dos Chymicos : Chymicus hoc modo confi- mo 1.de Chy .
deratus , 6 Pharmacopeus rion differunt ; e o Pa- micor. cum
Ariſtot. & Ga
dre Cornelio Alapide expondo eſte Texto entén
len . conlenſl.
deo , que eſtes Magos não erað outros Sabios , le
ac diffenf.c.1,
nað huns homens peritos em ſegredos , e na Arte fol. 180,
admiravel : Sapientes hic vocantur rerum arcanarum ,
vel artis admirabilis periti; e nenhuma Arte do Mun
Bij do
12 Ennæa , ou Applicaçãč do Entendimento ,

do mereceo até agora o epitheto de admiravel , fe


Schengk . nað a Chymica , ſegundo adverte Schengkio : Ad
apud Sennert. modum ingciofa eſt ars Chymica ut digna ſit admi
loc.cit.cap.2. ratione . Pois le o Texto Sagrado declara , que els
fol.183. tes Sabios erao Chymicos , e diz expreſſamente , que
os Hermeticos converterao as ſuas Varas em Ser

pentes por força de encantos , e de certos fegredos,


porque razao occulta os legredos , como encantos,
e manifeſta a Arte com que os Magos fizeraõ as
transformações ? Porque os ſegredos da Chymica
com que as entidades ſe transformaó , ſempre le ene
cobrem , ainda quando a Arte ſe manifefta. Por
eſte modo , ainda que a Arte ſe eſcreva, os fegredos
nað ſe declaraó , aindaque a Arte ſe divulgue , os
ſegredos nao ſe publica ) , aindaque a Arte ſe moſ
tre , os ſegredos nað ſe deſcobrem , e ainda que a
Arte ſe veja , os ſegredos nað ſe penetraó. Servis
rào os Hermeticos ao leu Rey nas occalióes , em que
os Segredos Chymicos lhe poſſaó ſer conveniences
para fazerem alguma neceffaria transformaçao ,mas
os Arcanos Hermeticos ſempre ficaraó em ſegredo:
Arcana quædam . A Arte de transformar as ſubſtan
cias ſerà publica , e notoria a todo o Mundo ; po
rèm os Segredos Chymicos haõ de ficar para ſempre
encantados : Incantationes ; e a razaõ defte myite.
rioſo ſegredo he , porque as operações da Arte Mag
na ſao muito difficultoſas, e nao podem os homens
explicar - ſe com palavras , quando as couſas faó
Eccleſ.cap.i. muito difficeis : Cuneta res difíciles : non poteft eas
8,
homo explicare fermone. Poriſlo a lingoa, que naš pò.
de explicar as operações difficultoſas da Arte Mag
na2 ,
vos dirà agora mais clara , e facilmente as ra .
zões, que os Hermeticos ſempre tiveraõ para naó re
Velarem eſte myſterio .
A pri
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.11.cap.unic.S.2. 13

A primeira he , paraque ficando eſtas operações


duvidofas, naó fejaó inquiridas , nem averiguadas
por homens ignorantes, e malignos , que executem
com ellas grandes maldades , e poſſa a duvida ex
citar a curioſidade dos Sabios , e juſtos , para com
utilidade do proximo deſcobrirem eſte ſegredo.Por
eſte modo transforma a Minerva dos Hermeticos os
cabellos de Ouro da fermoſa Meduſa , violentada
no ſeu Templo por Neptuno , em venenofas Ser
pentes , paraque transformem em eſtatuas de pedra
aos ſeus exploradores , que nað forem Perfecs ar
mados com o eſcudo de Pallas , e calçados com os
talares de Mercurio. Segunda , para que todos os
Philofophos , que forem deſcobrindo a Chryſopeia,
conheçaó , que Deos lhes concedeo eſte grande be
neficio , que a muitos ſabios tem occultado ; e en
cubrao o myſterio , que nao quer Deos, que todos
ſaibaó. Terceira , para que nao ſejao poderoſos
aquelles , que o nao podem fer , nem'he convenien
te, que o fejao. Quarta , paraque os Hermeticos
inventores, e deſcubridores deſte ſegredo não fi.
caſſem obrigados a ſatisfazer os damnos , que cau
ſariaó no Mundo todos aquelles Tyrannos , e Po
deroſos , que abuſaſſem de taó ambicioſa potencia ,
ho e tyrannia ; porque como diſſe Agamenon , ſendo
hum poderolo Rey Gentio , quem naó prohibe pece
Samoa
car , podendo evitar o peccado, manda commettello :
Qui non vetat peccare , cum poſſit , jubet ; e paraque
não imaginem os pouco eſcrupuloſos, que eſta Theo
logia he Gentilica, faibaó que he tao Catholica , que
a ſegue , e enſina o Meſtre dos Theologos Santo
Div. Thom .
Thomaz : Tenetur ille reftituere, qui non obftat , cum apud Vieir.

IÓN obftare teneatur. Quinta , paraque fe nao confundiſ Part.3.num .


ſe o 418
14 Ernea , ou Applicação do Entendimento,

de o Mundo racional , e policiso ceſando as artes ,


eſtudos , obſequios , reſpeitos
relpeitos ,, e dependencias.
Sexta , paraque fe naó igualaſſe o neſcio com o fa
bio , o pobre com o rico , o vil com o nobre
preverſo com o virtuolo , e o indigno com o bene
merito . Septima , paraque o fabio , que deſcobrir
a Pedra Philofophal, conhecendo o muito eſtudo ,
deſvello , e trabalho , que lhe cuſtou alcançar eſte
ſegredo , faça delle a verdadeira , e bem merecida
eſtimação , agradecendo a Deos eſte beneficio ,
com o conſervar tão occulto , como Deos o tem
ſempre eſcondido ; porque he providencia fua,
que os grandes bens eſtejað ſempre defendidos com
as mayores difficuldades, conforme lemos no Sagra
do Texto , que hum Cherubim defende com huma
elpada de fogo a drvore da Vida. A meſma Natureza
governada por Dcos cria as riquezas do Ouro , Pra
ta , e das Pedras precioſas encerradas, e eſcondidas
dentro na terra , enſinando aos homens , que à tua
imitaçao fazem eſtas precioſidades , obrem como el.
la as meſinas producções encubertas , e occulras; e
quando expoem à viſta dos homens o ſegredo de
transformar os Meraes em Ouro , nunca o deſcobre
de dia , e ſó o manifeſta de noite ; porque he provi
dencia da Natureza , que os arcanos da Chryfopeia
nunca jà mais fayaó a luz, ſenað envoltos , e cerca
Joſeph.deBel. dos de lombras. Eſcreve Jofepho Hebreo , que no
Judaic. lib. 7. Monte Libano naſce no mez de Mayo huma pro
cap.23 digiofa planta , chamada Baaras , a qual de noite fe
accende , e luz como tocha acceza , eſcurecendo -ſe
com a luz do dia atè fe fazer inviſivel. Tanto ſe oc

culca com a luz, e claridade do Sol , que até as meſmas


folhas recolhidas em hum valo , ou mecidas em hum
lenço
Sobre a PedraPhilofophal.Diclog.II.cap.unic.S.2 . 15

5 lenço deſapparecem da viſta. Os Arabes lhe chamão


S. Erva de Ouro , porque , como refere Bluteau , he Bluteau Tom .
fama conſtante, e opiniao bem recebida, que com 2. fol. 3.
7 eſta planta ſe transformað em Ouro todos os Me :
caes. Porèm com ſer tað precioſa , e admiravel eſ
ta planta , nað ſe atrevem os homens a porlhe as mãos,
por lhes moſtrar a experiencia , que todos aquel
Jes , que a tocarao para a colher , cahira ) repenti
namente mortos , como tambem de repente mor
rem na China os animaes , e os homens , que arran
cao a planta , chamada Gin -fen , Jimſem , ou Ginſam ,
que cambem fe occulta de dia , e de noite ſe mani.
feſta entre labaredas de fogo ; porque a meſna na
tureza eſconde de dia aos homens ambicioſos da vi
da , e da riqueza todos os ſegredos de augmentar
a riqueza , e de prolongar a vida; e ſó de noite lhes
dà alguma luz deſte arcano , com que a vida ſe di
lata , e a riqueza ſe augmenta , mas ſempre occul.
to na obſcuridade das trevas . E ſe a Arte Magna
para fazer a Chryſopeia deve imitar nas ſuas ope
rações a Natureza ; aſſim como ella nað manifeſta
de dia as duas plantas Ginſam , e Baaras , que tranſ
formað os Metaes em Ouro , e dilatað os annos da
vida , tambem devem osHermeticos eſconder a Pedra
Philoſophal para que ſe não veja com a luz do dia , fe
nað entre nocturnas labaredas , e as fombras da nois
te. Oitava , para que ſobre os Hermeticos nao cayao
as maldições , que os primeiros inventores fulmi
narað , e lançàrað aos que revelarem eſte ſegredo.
Nona , porque os homens naturalmente naš que
rem , que os outros faibað ſem lhes cuftar eſtudo ,
nem trabalho , o que elles com trabalho , e deſve .
lo eſtudàrað , e deſcobrirao . Decima, para que as

pef
!

16 Ennea , cu Applicaçao do Entendimento ,

peſſoas, que vendem a mareria do Lapis , a nað ven .


dað tað cara como o meſmo Ouro , em que pela
1
Arte ſe transforma, ſegundo fazem os Chins com
a raiz de Ginſam , que vendem a pezo, e pelo pre
ço do Ouro fino. Undecima , porque ſeria conhe
cida a materia da Chryfopeia , e preparada a Pedra
Philofophal pelos ruſticos , e ignorantes, fe.os nde
ptos a naõ deſcrevera ) com enigmas , e metapho
fas , ſonhos , e fabulas. Duodecima, porque fe os
Monarchas alcançaſſem eſte ſegredo, confundiriað
o Mundo com o ſeu extraordinario poder , e inſa
ciavel ambiçaõ. Decima cerceira , porque facilitan .
do -ſe algum Hermetico com Principes , e podero
fos , o importunaràó com a impaciencia de quere
rem ver a 'Obra grande intempeſtivamente acabada,
e nao eſperando que chegue ao fim , entendem que
o Adeptó com eículas , e eſperanças os engana , e
deſta forte fem razao nem fundamento o aborre
cem , e infamað , e com a ſua indignaçaó o cafti
gaó , ſe o Hermetico por algum accidente nað he
bem fuccedido. Pelo contrario ſe tem bom fuc
ceffo , prendem -no para terem naquelle Artifice hum
theſouro , como pondera Santo Alberco Magno :
Cogitabunt perpetuo te habere , nec permittent te babi
re. Demaneira, que ſendo hum Hermetico mal fuc
cedido , caſtigao - no os Monarchas com o deſpre
zo , e ſe tem bom ſucceſſo , como El eſclavo en grillos
de oro fica prezo . Decima quarta , porque ſe al
gum Medico ſe reſolveſſe a curar publicamente com
å Tinctura Univerſal , fecharia as Boticas , deſpo
voaria os Hoſpicaes , extinguiria os enfermeiros ,
acabaria os Cirurgiões , e anniquilaria todos os Me
dicos , obrigando por eſte modo a todos eſtes ho
mens,

1
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.II.cap.um.c.5.2. 17

li mens , que hoje vivem como nobres , a trabalha


rem como ſeus pays, para não morrerem de fome;
e quando elles lao inimigos declarados de qualquer
official do ſeu officio , que lhe cira da boca , o
que jà podera naufear o ſeu enchimento , ſe elles
não tiverão mayor fome , que ventre , que ſeria ſe
viſlem , que hum ſó homem comia cudo , ao meſo
mo tempo , que elles pediaõ elmola , como o pobre
Lazaro ao rico Avarento ? Em hum Mundo aonde
os invejoſos macàrão com veneno a Paracelſo , 208
quarenta e lete , ou quarenta e oito annos da ſua
idade, ſem commetter outro delicto , do que ſer me
lhor Medico que codos , obrando prodigios com
a ſua Pedra Philofophal, nenhum homem que tiveç
juizo , deixarà de imitar a Democrito , que para con
ſervar a vida, ſe fingia doudo ; e deſtemodo ſe anda
va rindo de todos , com grande inveja de Hippo
crates , que conhecia o ſeu diſcreto , e ſeguro fin
gimento . Para viver ſeguro entre os ſeus inimigos
Cambem David le fingia doudo ; e a experiencia me
tem enlinado , que para viver entre neſcios, não hì
dictame mais acertado , do que fazer - ſe hum ho
mem tolo .

ENODIO . Confeſſo , e reconheço a impor,


tancia do ſegredo , e agora deſculpo a ſua grande
recommendação ; e como a mim importa guardal
lo , podeis fiar de mim a revelaçao da materia da
Chryfopeia.
ENODATO). Bein ( beis , que vos não poſ
lo revelar a materia da Pedra Philoſophal, ſenãoem
ſegredo ; e para o legurar mais , quero que voscul
te algum trabalho , porque os homens não eſtimão
ſenão aquillo , que pelo ſeu trabalho adquiriráo. A
g pria
io Ennaa , ou Applicação do Entendimento ,

primeira couſa , que deveis conhecer , e averiguar,


he a verdadeira materia de que o Lapis ſe forma ,
para não trabalhardes em couſa eſtranha , como ſuce
cede ordinariamente à mayor parte dos que princi
pião eſta grande obra , ſem terem as noticias necef 1
farias pira fizella. E le não dizei- me : ſe vós hou
vefleis de eleger materia , ſeguindo o que tendes
lido , qual eſcolheria a voſſa eleição ?
• ENODIO . Conforme o que enfina Raymun
do Lullio em varios lugares das luas doutiſlimas
obras , eſcolheria o Vinho vermelho , ou branco ,
para ſeparar delle o eſpirito , que he huma quinta
eſſencia , a qual animada com o Sal volatil de tar
taro he hum menftruo radicalmente diffolvente
do Ouro .

ENODATO . Sempre que entenderes os no


mes , que os Philofophos Hermeticos dað ás entidades,
tão materialmente comoelles os eſcrevem , commeta
tereis grandes erros. Quando Lullio fallou no Vi.
nho vermelho , ou branco , quiz que ſe entender
ſem por elles couſas totalmente diverſas do que
gnifica ) aquelles nomes; porque diffolver radical
mente o Ouro , he reduzillo à primeira materia de
que foy formado ; e como feria poſſivel, que hum
menftruo vegetavel podeſſe ſeparar os principios
do Metal mais fixo , es perfeito ?
ENODIO . Tambem poderia eleger o eſpirito
de ourina , por ſer a quinta eſſencia do animal , e
com elle , ou com ambos juntos faria a diſſolução ;
porque deſtes eſpiritos fe prepara hum menſtruo ,
que diſſolve o Ouro .
ENODATO . A meſma impropriedade , que
tem'o Vegetavei, tem o Animal, para obrar ſobre
o Mi
Sobre a PedraPhilofophal. Dialog.II.cap.unic.S.2 . 19

o Mineral. Ainda que eſſes menſtruos tem ſeu uſo


na Chymica , na Alquimia naó tem nenhum preftimo.
ENODIO . Como Raymundo Lullio diz , que
o Lapis he Vegecavel, Animal, e Mineral, entendi,
que a materia havia de fer tambem Mineral , Ani
mal, e Vegetavel, para ter com a Chryſopela a ſua
proporção .
ENODATO. Meu amigo , tudo ſe acha'nos
livros , mas nem codos os buſcáo , e faõ poucos
1
os que os entendem . Nas obras de Raymundo Lul
lio achareis convencido o voſſo engano , e emen
dado o voſſo erro ; porque no Tratado intitula
do : Elucidatio Teftamenti , deixou desfeita a voſſa
duvida por eſtas formaes palavras : Tres lapides def
cripfimus Mineralem , Animalem , & Vegetabilem , cum
unus dumtaxat fit Lapis noſtre artes, iſque mineralis
quia minera eft , animalis, quia animam habet , vegem
tabilis , quia creſcit, & multiplicatur ; e deſta explica
cação feita pelo meſmo Author ſe colhe, que he
muito differente a intelligencia , e ſentido do que
fignificão as palavras com que literalmente , ou pa
ra dizer melhor , enigmaticamente ſe explicarão .
ENODIO. Como para eſta obra não ſerve o
Vegetavel, nem o Animal , reſta ſomente recorrer
ao Mineral ; e de todos os Mineraes eſcolheria o Sa
litre ; porque a todos o prefere Hermes , como ſe
pode ver na Taboa Eſmaragdina : Pater ejus Sol ,
mater ejus Luna , portavit illud ventus in ventre ſic
co , nutrix ejus terra eſt. Mas quando eu me enga
1
De ne na intelligencia deſte Texco , elegerey o Vitrio
lo , que he hum Sal metallico , e primeiro princi
pio de codos os Mecaes , como affirmão graviflimos
Eſcritores ; por iſſo fazendo - lhe anathomia no ſeu
Cij pro
20 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

proprio nome o acharão tão myſterioſo , que cada


letra he huma palavra , e todas as letras juntas for
mão eſta oração perfeita : Viſitabis interior a terre ,
retificando invenies occultum lapidem , ver am medicinam .
E eſta he a materia de que ulou Baſilio Valentino

para formar a Pedra Philofophal , a quem muitos


Neotericos feguirað ; e com inuita razão , porque ſe
a Pedra Philoſophal he huma Pedra occulta , e me
dicina verdadeira : Occultum lapidem , veram media
cinam , todas eſtas circunſtancias , e propriedades
ſe achão no Vitriolo ; porque he verdadeira medi
cina , e Pedra occulta .
ENODATO . Havemos de gaſtar a tarde fem
concluirmos em couſa alguma ; mas quero ouvir
vos , e reſponder- vos ; porque o meu genio he ſa
tisfazer a todas as duvidas. “O Salitre náo he mais
do que hum Sal , de que le tira hum eſpirito acci
do , e corroſivo , o qual he totalmente improprio
para o miniſterio da Obra Grande ; e o Vicriolo he
outro Sal accido , e corroſivo , com partes ſulphu
seas e terreas , como vemos na anathomia , que
ſe faz deſte mixo pela Chymica ; por iſſo he inutil
para preparar a Pedra Philofophal , ſegundo elcre
vem doucidimos Hermeticos, que entenderaõ melhor
do que vòs a Baſilio Valentino , o qual pelo Vitrio
lio nao fallou da Caparoſa , mas de outra roſa mui
to differente , que deixou coberta com a fua capa.
ENODIO . Alguns Hermeticos de grande no
me dizem , que o Arfenico he a verdadeira mate
ria do Lapis ; porque he metallico , e volatil , naó
molha as mãos , e tem todos os finaes , com que
deſcrevem a materia da Chymica os Philoſophos Ade
ptos.
ENO,
Sobre a PedraPhilofophal. Dialog.11.cap.inic.6.2. 21

ENODATO , Ainda que he verdade , que os


3 Adeptos, chamarao Arſenico a materia da fua Pedra
Philofophal, nao fallàraó literal, fenaó enigmatica
mente do Arſenico Philoſophico.
ENODIO . Lembrame, que Philaleta , e Be
chero affirmao , que o Antimonio he a verdadeira

materia do Lapis ,e como não fallàrað por enigmas,


eſtimàra ſaber de vós , ſe com elles tenho deſcuber .
to o ſegredo.
ENODATO . A obra de Philaleta he falſa , e
ſophiſtica , como a experiencia moſtrou a Bechero ;
e outros muitos, que com ella ſe enganàrao . Do
Antimonio podereis fazer muitos , e excellentiſlimos
remedios , ſegundo affirmaBaſilio Valentino in Cur .

ru triumphali, e ainda o Lapis ignis, que elle deſcre


ve , podereis vos preparar do Antimonio ; mas de ne
nhum modo podereis tirar delle a materia da noſſa
Obra.
ENODIO . Não poſſo alcançar a verdadeira
razao , porque ſendo excluidos os Vegetaveis , e
Animaes , por ſerem improporcionados , le excluað
tambem eſtes Mineraes , ſendo Mineral a materia da
Obra grande.
ENODATO . Todas eſſas materias , ou Mine
raes , faó improprios , por ferem fugeitos à corru ,
pçað , introduzida nellas pela actividade do fogo.
ENODIO . Efſa razão tudo exclue , porque

o fogo tudo deſtroe ; nem vòs me moſtrareis enti


po dade alguma , que o fogo não corrompa.
ENODATO . O calido innato radical, co
ao
uc humido radical dos elementos ſaó incorruptiveis ,

t e reſiſtem a mayor actividade do fogo ; porque nao


pode fazer impreſſao na ſua hemogeneidade , du
rilli,
22 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

riflima, e fortiſſima compoſiçao , uniao , mixtaó ,


dilatadiſſima , e temperadiſſima decocçao dentro da
ſua mina.
ENODIO. Conformeo que tendes dico , ji
fey que a materia , que buſcamos , he o calido inna
to , e o humido radical dos Mecacs ; mas o fogo
conſome o ſeu humido , e altera o feu calido , e
deſta forte nem o calido , e humido metallico , po
dem ( ſegundo a voſſa Philoſophia ) ſer a materia
da Chryſopeia.
EÑODATO . Os Mecaes , eſtando fepultados
na terra muitos mil annos , Lahem das fuas minas
incorruptos , e nao appareceriaó deſte modo , ſe o
fogo ſubcerranco lhes conſumiſle o humido , e lhes
augmentaffe o calido.
...

ENODIO . Como todos os Adeptos excluem


as pedras precioſas , por terem menos virtudes ,
que os Mecaes, para que dellas ſe cice a materia do
Lapis , deſejo ſaber le eſta materia fe tira de hun
ſó , ou de todos os Metaes.
ENODATO . Facilmente vos reſponderey
com eſtas palavras de Morieno Romano : Scitote
quod totum hoc non aliud eft quàm res una ſola , que
patrem , & matrem babet , pater , do mater eam
crearunt, ég nutriverunt , & ipfa eft fui ipſius pater ,
á mater ; e para me entenderdes melhor , haveis de
ſaber , que na geraçao dos Mecaes o Enxofre he co
mo a materia feminal paterna , e o Mercurio he co
mo a materia com que concorre o ſexo feminino
para a geraçao do feto , as quaes ambas juntas for
mao no utero hum fó , e perfeito corpo. E daqui
ſe ſegue , que eſta materia he huma ſó couſa , co.'
mo concordemence eſcreyem codos os Hermeticos,
ENO.
Sobre aPedra Philoſophal.Dialog.II.cap.unic.S.2 . 23

ENODIO . Se o corpo métallico he hum ſó ,


¢ perfeito corpo , do Ouro , ou da Prata ſe tira á

materia da Pedrá Philofophal ; porque eſtes dous


corpos metallicos fað os corpos mais perfeitos.
ENODATO . Confeffo, que o Ouro he pela
fua natureza mais perfeito , do que todos os outros
Metaes; mas a materia do Lapis não ſe tira de to
da a ſubſtancia metallica , ſenão da primeira mare
ria radical , que em todos os Metaes he igualmen
te a meſma. Entre os Metaes nað ha ſenao huma

accidental differença , que ſobrevem da mayor , ou


menor decocçao dentro na ſua mina ; poriſſo não
devemos entender , que o Ouro he melhor , que
os outros Metaes , para delle ſe tirar a materia pa
ra eſta Obra , ainda que na verdade ſeja o mais per
feito , e delle , como diz Ettmullero , ſe tire al
guma pequena porção para fermento da Chryſopeia ;
antes confórme enſina Geber , he mais improprio Geber. lib . 3.
o Ouro do que os outros Metaes , para le tirar del . cap. 4. & lib.
le a materia do Lapis ; porque o Ouro tem huma 3.cap.6. & lib.
natural, e fortiſſima compoſição , e não ſofre ne. 1. cap.8.
nhuma calcinação , por não ter Enxofre combuſti
vel , como tem os outros Metaes , que por eſta
cauſa ſe corrompem , e calcinko , perdendo os ac
cidentes , que lhe tinhão ſobrevindo , e reduzindo ,
ſe facilmente a ſua primeira materia. Por eſta meſ.
ma razão ſe não pode fazer a Pedra Philoſophal,
nem tirar a ſua materia da Prata ; porque confór
me enfina Geber , a Prata no ſeu centro he Ouro ;
e a noſſa Arte não permuta o Ouro , como diz San- Div. Albena
to Alberto Magno : Ars non permutat aurum ; por lib . 3. cap. 7 .
que como eſte Metal chegou à ſua ultima perfei
çao , ainda que pela Chymica ſe lhe ſeparem alguns
acci
20 Ennaa, ou Applicação do Entendimento ,

proprio nome o acharão tão myſterioſo, que cada


letra he huma palavra , e todas as letras juntas for
mão eſta oração perfeita: Viſitabis interiora terra ,
retificando invenies occultum lapidem , veram medicinam.
E eſta he a materia de que ulou Baſilio Valentino
para formar a Pedra Philofophal , a quem muitos
Neotericos feguirao ; e com muita razão , porque ſe
a Pedra Philofophal he huma Pedra occulta , e me
dicina verdadeira : Occultum lapidem , veram medi
cinam , todas eſtas circunſtancias , e propriedades
ſe achão no Vitriolo ; porque he verdadeira medi
cina , e Pedra occulta .
ENODATO . Havemos de gaſtar a tarde fem
concluirmos em couſa alguma ; mas quero ouvir
vos, e reſponder-vos ; porque o meu genio he ſa
tisfazer a todas as duvidas. O Salitre náo he mais
do que hum Sal , de que le tira hum elpirico acci
1
do , e corroſivo o qual he totalmente improprio
1
para o miniſterio da Obra Grande ; e o Vicriolo he
outro Sal accido , e corroſivo , com partes fulphu
reas e terreas , como vemos na anathomia , que
ſe faz deſte mixco pela Chymica ; por iſſo he inutil
para preparar a Pedra Philoſophal, ſegundo elcre
vem doutiflimos Hermeticos, que entenderaó melhor
do que vòs a Baſilio Valentino , o qual pelo Vitrio
lio nao fallou da Caparoſa , mas de outra roſa mui
to differente , que deixou coberta com a fua capa.
ENODIO . Alguns Hermeticos de grande no
me dizem , que o Arfenico he a verdadeira mate
ria do Lapis ; porque he metallico , e volatil , nao
molha as mãos , e tem todos os finaes , com que
deſcrevem a materia da Chymica os Philofophos Ade
ptos.
ENO .
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.11.cap.inic.$.2. 21

ENODATO . Ainda que he verdade , que os


Adeptos chamarao Arſenico a materia da fua Pedra
Philofophal, nao fallàraó literal, ſe nað enigmatica
mente do Arſenico Philoſophico.
ENODIO . Lembrame, que Philaleta , e Be
chero affirmaõ , que o Antimonio he a verdadeira
materia do Lapis , e como não fallàrað por enigmas,
eſtimàra ſaber de vós , ſe com elles tenho deſcuber ,
to o ſegredo.
ENODATO . A obra de Philaleta he falfa , e
ſophiſtica, como a experiencia moſtrou a Bechero ;
e outros muitos, que com ella ſe enganàrao. Do
Antimonio podereis fazer muitos , eexcellentiſlimos
remedios , ſegundo affirmaBaſilio Valentino in Cur
ru triumphali, e ainda o Lapisignis, que elle deſcre
ve , podereis vos preparar do Antimonio ; mas de ne
nhum modo podereis tirar delle a materia da noſſa
Obra ,

ENODIO . Não poſſo alcançar a verdadeira


razao , porque ſendo excluidos os Vegetaveis , e
Animaes , por ſerem improporcionados ,le excluað
tambem eſtes Mineraes , ſendo Mineral a materia da
Obra grande .
ENODATO. Todas eſſas materias , ou Minec
raes , fað improprios , por ferem fugeitos à corru ,
pçað , introduzida nellas pela actividade do fogo.
ENODIO . Eſſa razão tudo exclue , porque
0:02
CB o fogo tudo deſtroe ; nem vòs me moſtrareis enti
dade alguma, que o fogo não corrompa .
DRÁ ENODATO . O calido innato radical , eo
humido radical dos elementos faó incorruptiveis ,
que
Art e refiftem a mayor actividade do fogo ; porque nao
pòde fazer impreſſað na ſua heinogeneidade , du
102 rilli ,
22 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

riſlima, e fortiſſima compoſiçao , uniaó , mixtaó ,


dilatadiſima, e temperadiſſima decocçao dentro na
ſua mina .
ENODIO. Conforme o que tendes dico , ji
fey que a materia , que buſcamos , he o calido inna
to , e o bumido radical dos Mecacs ; mas o fogo
conſome o ſeu humido , e altera o ſeu calido , e
deſta forte nem o calido e humido metallico , po

dem ( ſegundo a voſſa Philoſophia ) ſer a materia


da Chryſopeia.
EÑODATO . Os Mecaes , eſtando fepultados
na terra muitos mil annos , Lahem das ſuas minas
incorruptos , e nao appareceriaó delte modo, fe o
fogo ſubterranco lhes conlumiſle o humido , e lhes
augmentaffe o calido.
ENODIO . Como todos os Adeptos excluem
as pedras precioſas , por terem menos virtudes,
que os Mecaes, para que dellas ſe cire a materia do
Lapis , deſejo ſaber le eſta materia ſe cira de hun
ſó , ou de todos os Metaes.
ENODATO . Facilmente vos reſponderey
com eſtas palavras de Morieno Romano : Scitote
quod totum hoc non aliud eft quàm res una ſola , que
patrem , & matrem habet , & pater , do mater eam
crearunt , dy nutriverunt , & ipfa eft fui ipfius pater,
ó mater'; e para me entenderdes melhor , haveis de
ſaber, que na geraçao dos Mecaes o Enxofre he co
mo a materia feminal pacerna , e o Mercurio he co
mo a materia com que concorre o ſexo feminino
para a geraçao do fero , as quaes ambas juntas for
mao.no utero hum fó , e perfeito corpo. E daqui
ſe ſegue , que eſta materia he huma ſó couſa , co
mo concordemente eſcreyem todos os Hermeticos,
ENO ,
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog . II.cap.unic.S.2. 23

ENODIO . Se o corpo metallico he hum ſó ,


• perfeito corpo , do Ouro , ou da Prata ſe tira a
materia da Pedra Philofophal ; porque eſtes dous
corpos metallicos fað os corpos mais perfeitos.
ENODATO . Confeſſo , que o Ouro he pela
I fua natureza mais perfeico , do que todos os outros
Metaes ; mas a materia do Lapis não ſe tira de to
da a ſubſtancia metallica , ſenão da primeira mare
ria radical, que em todos os Meraes he igualmen
te a meſma. Entre os Metaes nao ha ſenao huma

accidental differença , que ſobrevem da mayor , ou


menor decocçaõ dentro na ſua mina ; poriſſo não
devemos entender , que o Ouro he melhor , quę
os outros Metaes , para delle fe tirar a materia pa
ra eſta Obra , ainda que na verdade ſeja o mais per
feito , e delle , como diz Ettmullero , ſe tire al
guma pequena porção para fermento da Chryſopeia;
antes conforme enſina Geber , he mais improprio Geber. lib . 3 .
o Ouro do que os outros Metaes , para le tirar del . cap. 4. & lib .
le a materia do Lapis ; porque o Ouro tem huma 3.cap.6. & lib .
natural, e fortiſſima compoſição , e não ſofre ne. 1. cap.8.
nhuma calcinação , por não ter Enxofre combuſti
vel , como tem os outros Metaes , que por eſta
cauſa ſe corrompem , e calcinko , perdendo os ac
cidentes , que lhe tinháo ſobrevindo , e reduzindo ,
ſe facilmente à ſua primeira materia. Por eſta mef
ma razão fe não pode fazer a Pedra Philoſophal,
nem tirar a ſua materia da Prata ; porque confór
me enfina Geber , a Prata no ſeu centro he Ouro ;
fors e a noſſa Arte não permuta o Ouro , como diz San- Div . Albert
cap.7.
qu to Alberto Magno : Ars non permutat aurum ; por lib . 3.
co que como eſte Metal chegou à ſua ultima perfei
çao , ainda que pela Chymica ſe lhe ſeparem alguns
acci .
Oo
24 Eunea, ou Applicação do Entendimento ,

accidentes , que ſobrevieraó à fua materia radical,


nunca por induſtria da Arte pode ficar melhor do
que era . Porém o que nao pode fazer a Arte ſo
bre -a Prata , e Ouro , por ſerem perfeitos Mecaes ,
obra nos Meraes imperfeitos , porque facilmente
perdem os accidentes , que ſe radiçao na fua mare
ria , e pela Chymica chegão à ſua ultima perfeiçao ;
Div. Albert. poriſfo o meſmo Santo Alberco enſina , que todos
lib . 5. de Mi
os Metaes imperfeitos ſe pòdem converter em ou
neralib . c. 1 .
tros, por ferem na ſua eſpecie como entes incom
plecos.
ENODIO . Todos os Adeptos confeffaó , que
eſta materia ſe acha , ou ſe cira de couſas viz , e de
pouca eſtimaçao ; e conforme eſta doutrina, naõ fe
pòde tirar , nem achar nos Metaes imperfeitos; por
que eſtes não fað viz , e de pouco preço , como ex-.
perimentaó à tua culta todos os homens , que os
compraó. E agora me lembra , que difle Lourenço
Gracian no feu Criticon , que ſó dos Eſcriváens fe
podia tirar a materia da Chryfopeia , porque erão
peſſoas muito viz , e de baixa graduaçao .
ENODATO . Se vay a murmurar , ou a fazer
juſtiça , como elle chama às murmurações feitas
com raza) , temos muitos fogeitos de que tirar a
materia da Pedra Philofophal. Os Eſcrivaens, que dao
fés falſas , quc dilatað os negocios com prejuizo
das partes , que eſcondem os documentos , e fazem
taes embrulhadas , que nunca ſe deſembrulhao. Os
Requerentes, que ſó cuida ) em dilatar a deciſao das
caufas , ordindo , e fazendo taes enredos , que nun
ca ſe defenredaõ . As Sogras, que prometrem , e nao
pagað os dotes promettidos . Os liſongeiros , que
para não deſagradarem , nunca fallão verdade, e a
to .
Sobre aPedraPhilofophal.Dialog.11.cap.i.nic.S.2. 25

todos enganão. Os Fidalgos , que não pagão a quem


0
os ſerve , nem ſatisfazem o que pedem empreſtado ,
Oo e ſe eſcondem com vergonha dos ſeus acredores . To
dos eſtes , e outros muitos , que não nomeyo , na tua
vileza tem materia para a Pedra de Eſcandalo , eindu
ftria para ſem Philoſophia fazerem a Pedra Pluilofo.
phal, e ajuntarem muito dinheiro ; porque fe ,como diz
onoflo Adagio), he Alquimia provada ter renda , e nað
gaſtar nada,melhor Chymica he ſem poſſuir nada , ter
grande renda, como fuccede aos fugeitos acima refe
ridos, que vivem amecade do anno coin arte , e enga
no , ea outra parte , com engano , e arte . E tornando
ao noſſo ponto , haveis de faber , queos Adeptos cha
marão vil a eſta materia , comparandoa com o valor ,
que depois adquire por beneficio da Arte Magna.
ENODIO . Eſſa comparação exclue o Eſta
nho , eo Chumbo ; porque ainda que Hermes , e
Pythagoras affirmão , que neſtes Metaes fe occul
ta o ſegredo , he muito provavel, conforme enſina
Geber , que o Chumbo , e o Eſtanho commum ſao
Metaes impuriſimos, e immundos na ſua raiz , ou
no principio da ſua criação ; porque he tão impu
så å fua eflencial ſubſtancia , que ſe não pode facil.
mente purificar das partes terreas com qualquer pre
paração ; e confeffa Geber , que perdera inucilmen . Geber. lib.2 .
te o tempo , e a paciencia na depuração deſtes dous cap . 7. & lib .
corpos metallicos; porque os não pudera nunca re- 2.cap.2.
duzir ao ſeu lacido elplendor , por lerem Meraes na
turalmente iminundos na ſua propria raiz . E o peyor
de tudo he , lerem deſtituidos de ſubſtancia fixa , que
permaneça conſtantemente no fogo , e dotados de
ſubſtancia volati ' , a qual quando ſe ſublima em eſpi
ritos, leva comligo a lua eſſencial impuridade ; porir
D ſo
ão do Entendimento ,
26 Enn & a ,01: Applicaç

fo alguns Chymicos quando querem fazer oſtentaçao.


da ſua grande Sabedoria , ordinariamente tranſmutao
o Chumbo em Ouro , para com ad fficuldade acre
ditareni a ſciencia . E à viſta do que tenho lido , coule
vido a honens mu to doutos , tenho receyo de fallar
no Ferro , Cobre , enoMercurio ; porque tambem
eftes Metaes tem immundicias.
ENODATO . Pois deſſes tres Mineraes affirmão
os Adeptos, que ſe tira com mayor facilidade a ma
teria da Pedra Philofophal ; porque ſendo tres Me
taes diverſos na ſua forma accidental , ou apparente ,
na ſubſtancia radical fao eſſencialmente o meſmo lu
geito metallico . Entre todos os Mecaes imperfeicos ,
ſó eſtes tres tem a raiz pura , ſegundo enſina Geber :
Geber. lib.4. Subſtantie Veneris , & Martis dealbatio pura eft, com
cap. 13. ſimiliter Lunæ rubificatio ; porque eſte grande Mel
tre de todos os Philofophos, ou como elles Ihe cha- .
mão , Magiſter Magiſtrorum , entende pelo branco o
Mercurio , e pelo rubicundo da Lua o Enxofre, ou
Tinctura vermelha do Mercurio ; e affirma que todos
fao puros na raiz , e tem intrinſeca , e eſſencialmen
te a meſma natureza. Porém com iſto ſer tão certo ,
declara o meſmo Geber , que do Azougue ſe tira
mais facilmente a materia da Pedra Philofophal, ou
da Univerſal medicina, que do Cobre , e do Ferro :
Geber. lib . 2. Dicimus quoniam ex ipſis corporibus metallicis cum ſuo
cap . 17 . ſulphure , vel arſenico preparatis , & ex folis fimiliter
corporibus hæc medicina elici poteft. Ex ſolo vero Ara
gento vivo facilius, & propinquius , & perfe tiusinve
nitur . E de qualquer deſtes tres Metaes podereis vos
tirar a materia da Chryſopeia , ſe vos applicares ao el
tudo , e exercicio da Pbiloſophia Hermetica.
ENODIO . Como Geber ſendo Meſtre confef

fa ,
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.II.cap.unic.S.2. 27

ſa , que do Mercurio fe tira mais facilmente a mate


ria da Pedra Philoſophal, no Azougue me refolvo a
trabalhar , e para ſer com algum fructo , eſtimàra ,
que me enſinaſſeis a preparar a Chryſopeia.

S. III.

Da preparação da Pedra Philofophal.

ENODATO . Enhum Philoſopho explica


N. claramente eſa preparação ;
porque não he licito fallar neſta materia com muita
clareza; poriflo tambem eu não excederey os termos
com que elles ſe explicàrão. Nem para vos me en
tenderes ſerà neceſſario mudar o eſtylo dos Philofo
phos. Ouvi, pois , em ſegredo, e em boa amiſade,
a verdadeira preparação da materia da Obra grande,
declarada pelos termos com que os Hermeticos ſe ex
plicão com os ſeus amigos . O Mercurio , ou Azou
gue ficou tão inficionado pelo peccado original mi
neral , que fe occultað nelle duas immundicias : a
primeira adquirida na terra , que ſe lhe miſtura na
jua geraçao , e que lhe fica pegada , quando na mi
na fe coagula ; e a ſegunda he hydropeſia , com in
troducçao de agva entre a pelle , procedida da hu
midade craila , e impura , miſturada com a pura no
principio da ſua creaçao. Nao pode a Natureza ex
pellir , facudir , nem ſeparar eſtas impuridades , ain
da que ſejao de materia eſtranha , e volatil; mas co
mo eſta lepra , que mancha o corpo do Mercurio, nað
procede da ſua raiz , nem le identifica com a ſua ſubf
tancia , e ſó accidentalmente fe une com elle , facil.
mente ſe pode leparar pela induſtria da Arte. A ter
Dij ra ſe
7.12.2.1 , 01 Applicação do Entendimento ,

ra teple por banho humido , e pela enfaboadura


di Niture z .. ; e a agua por banho fecce, e calor beni
ano foge , e deſapparece. Por eſte modo com cres la
vações , é purgas fe renova o Dragaó , deſpindo
as eſcamas , e antigas conchas.
ENODIO . Sempre ache y muita graça no eſty
lo dos Hermeticos ; porque neſte enigma explicaó de
tal modo , que ſe deve fazer huma ſeparação no cor
po do Mercurio , para ſe tirar delle a materia da Pe
dra Philofophal , que declarando tudo , não revelão.
nada ; e ao meſmo tempo deixáo revelado o myſte
rio , e debaixo de huma pedra eſcondido o fegredo.
ENODATO . Como vos entendeis cudo, im
porta pouco , que os neſcios não entendío nada ;
porque com homens ignorantes , nem eu , nem vòs
fallamos .
ENODIO . E agora que elles vem paſſeando ,
he tempo de emmudecer-mos, reſervando para outra
tarde a continuaçao deſta pratica.
ENODATÓ . Nao tenho duvida em ſervir
vos , aindaque não goſto de converſar em lugares
publicos. Por iſſo nas caçadas , e peſcarias, que fað
os melhores divertimentos , que os montes , e rios
circumvilinhos offerecem aos moradores deſta Vil

la , coſtumo gaſtar os dias , que não emprego nos


meus eſtudos .
ENODIO . Tambem eſſes divertimentos ſoli
tarios ſao eſtudos, e a folidão tambem le eſchola ,
como diſſe S. Pedro Damião , aquelle grande hc
mem , que pelo fayal trocou a Purpura , e pelo de
ferto a Roma : Solitaria vita cæleſtis doctrina ſchola
ef , divinarum artium diſciplina : illic enim Deus eſt
totum , quod difcitur. Eſta he a razão , porque S. Ber
nar
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.11.cap.unit.S. 3. 29

nardo eſcreveo a hum amigo , quemais ſe aprendia


nos boſques , do que nos livros : Experto creide , all
quid ampliusinvenies in ſylvis , quam in libris ; porque
nos botques acha-ſe Deos , que he a verdadeira fon
te de toda a ſabedoria , e nos livrosacha - ſe muita ig
norancia dos homens .
ENODATO . Com o meſmo penſamento diſ
ſe o Doutor Maximo S. Hieronymo , que para ello
o povoado era carcere , e o deſerto paraiſo : Mihi op
pidum carcereft, Solitudo paradiſus. Tinha S. Hiero
nymo paſſado a vida em Roma , e nas Cidades da
Grecia : e tambem tinha experimentado como ſe vi
via nos defertos da Thebaida, e da Paleſtina ; e con
ferindo a vida do povoado com a vida do deſerto ,
achou, que o deſerto era paraiſo , e carcere o povoa
do . Com eſte deſengano fugi ſempre do povoado , e
goſtey muito do deſerto, como teltemunha ) os mon
tes , e valles, que eſtáo no termo deſta Villa , e das
circumviſinhas , principalmente os boſques , ou ma
tas de S. Gião (que ficao junto ao lugar de Alma
1
greira , Freguefia de quaſitodos os moradores , que
vivem entre eſta Villa de Soure , e a de Pombal , )
33 Selvas rão deliciofas, pelo frondoſo , e elpeffo labe
ryntho dos feus grandes e ſombrios arvoredos, e com
13 a perenne multidao das ſuas fontes , que com muita
propriedade a huma das fuas Povoações chamão os
Naturaes Aldeya dos Anjos , e a hum dos ſeuslugares
o Caſal dos Reys, como ſe forao Paizes dignos de ſe
rem habitados ſó de peſſoasReaes , e de Eſpiritos An
de gelicos , citio em que poſſuo huma dilatada fazenda ,
para nella fazer huma boa Quinça , por eſtar cercada
: do Rio Arunca ,e ſer regada com muitas fontes de ex
cellentiſſima agoa , para neſte retiro paffar os ultimos
annos
31 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

annos da minha vida , aflim como agora coſtumo gaf


tar alli os dias dos meus honeſtos divertimentos
que por ſerem muito frequentes , não hà lugar neſtes
montes deſde a Serra de N. Senhora da Eltrella atè
as prayas do Mar ( ceano , aonde eſta edificado em
huma eſpaçoſa campina o magnifico Templo con
fagrado à Virgem Senhora Noſſa , com o titulo da
Guia , e da Igreja de N. Senhora do Cardal , atè à
Ermida da Virgem Soberana do Bom Succeſſo , que
fica à noſſa vilta , no alto daquelle monte , que eu
não tenha pizado com os pes , perfumado com polvo
ra , e ſemeado de Chumbo , por tomar o exercicio
da caça,humas vezes por divertimento ,e outras vezes
por pretexto para fugir do carcere do povoado ; e
agora , que me recolho a caſa , me vou fechar ló den
tro na minha Livraria , e com eſte ſolicario retiro
me parecerà a cala hum Paraiſo muito largo , e todo
o Mundo hum carcere muito eſtreico .

FIM DO DIALOGO SEGUNDO ,

ENNÆA ,
*
Pag :31

IHS

uch

ENN ÆA ,

OU APPLICAÇA Ö

DO ENTENDIMENTO ,
SO B R E A

PEDRA PHILOSOPHAL :

DIALOGO TERCEIRO .

CAPITULO UNICO .
Do Mercurio Philoſophico , e da ſua digeſtao .

S. I.

INTRODUCÇA Ö .

ENODIO .
OM grande alvos
roço vos eſtou ef
perando neſte lu

C gar ha muitos dias ,


em que os inſtan
tes me pareceraõ
annos , as horas ſes
culos , e os dias eternidades ; porque o deſejo de vos
ver augmentou o tempo de eſperar.
ENO .
32 Ennet , 01 Applicação do Entendemento,
ENODATO . He deſneceſſaria efia vola lic
zonja , para converſarmos agora ambos na Pedra
Philofophali; porque faço muito goſto de ſatisfazer
o voſſo deſejo , tem que vos cuite a vergonha de
me pedires, que vamos paſſeando pelas margensde
ftes Rios , é fallando na Chriſopeia.
ENODIO . Adevinhalte : -ne o penſamento , e
cativaſtes -me o coraçao com a voſſa benevolencia.
ENODATO.Qurando as inclinações ſe conhe
ccm , logo os penſamentos ſe adevinbaõ ; mas como
os interiores nunca ſe penetraó , nem os diſcurſos
ſe averigua) , quero faber o que tendes diſcorri
do ſobre a materia da Pedra Philofophal.
ENODIO . Tenho dilcorrido muito , e não
tenho averiguado nada . He taó limitada a capaci
dade do meu entendimento , que estando tao adian
tado ncíta Philofophia, me vejo agora no fou prin
cipio , e por mais que caminho para diante , mepa
rece que nao tenho dado o primeiro paſſo .
ENODATO . Nao vos deſconfoleis ,nem del
animeis , por eſtares pouco adiantado. Eſta Philo
fophia he tummamente dilliculcoli, e nao ſe pòde
faber lengõ coni citudo , experiencia , e paciencia. Jà
vejo que a paciencia vos falta , aindaque vos tobeja
a com que me tendes ouvido . A experiencia vena
de -ſe na botica dos annos ; e o eſtudo o podereis fa
zer pelos meus livros . Mas como nao tendes pacien
cia para ler cantos Authores, ſe quizeres ſaber al
guma couſa ſem eſtudar muito , eu vos direy algu
ma parte do que tenho eſtudado.
ENODIO.Revelaſtes -me, que a primeira ma

uria da Obragrande, ſe podia tirar do Ferro , Co


bre , e do Mercurio ; e aindaque ignoro como te ti
ra ,
Sobre a Pedra Philofophal. Dialog.111.cap.unic. S. 1. 33

ra , deſejo ſaber para que ſerve , porque a lụa uti


lidade ſe for grande , me incitará para que trabalho
em ciralla .

$ . II .

Revela -ſe a materia da Chryſopeia.

ENODATO . Om a promeſſa de trabalhar


C des ,e fazerdes alguma diligen
vos deſcubro , que a materia da
cia da voſſa parte ,
Roſla obra he o ninho onde naſce, e ſe cria a noſſa
Aguia , he o inſtrumento com que le fabrica a Obra
grande, e he a chave meſtra , que abre as portas do
Palacio encantado da Natureza.

ENODIO . Neſſe labiryntho do entendimen


to , vejo que ſerve para muito a materia , mas pare
ceme , que naoentra na Obra grande.
ENODATO . Aindaque eſta materia naó en
tra na Obra, ſerve de meyo para alcançar, e conhecer
a mater a, que nella entra . Eſta he compoſta dos qua
tro elementos ( que agora quero admittir para me
entenderdes ) proporcionados, e determinados em
materia mineral.
ENODIO. Como ella materia he mineral , ne
ceſſariamente hà de ſer corporea , ſem nenhum ef

pirito ; e não poſſo entender o que enlinao os Her


meticos, affirmando , que he eſpiritual a materia.
ENODATO. Eſta materia cem corpo , alma ,

e eſpirito ; porque he filha do eſpirito univerſal.


ENODIO . Vòs haveis- me de explicar , que
couſa he eſte univerſal eſpirito ; porque os Herme
ticos publicamente o explicao .
E ENO :
34 Ennea , ou Applicação do Entini :niento,

ENODATO . Hà pouco tempo , que vos of


fereci os meus livros para eſtudardes ; e para vos au
gmentar a curioſidade, vos repetirey o que do Eſpi
rito Univerſal eſcreveo o grande Padre D.Rafael
Bluteau To- Bluteau no ſeu Vocabulario univerſaliſſimo. Espi
mo 3. liter.E .rito Univerſal ( dizelle ) entre os Chymicos , particu:
fol.282 .
larmente aquelles , que fe applicarao ao conheci
mento , e artificio da Pedra Philofophal, he muy
miliar eſta expreſſað ; e como os mais Philoſophos
ordinariamente ignorað , ou querem ignorar o ſeu
ſignificado , acho , que nao ſerà inutil declarar aqui
o que por ella ſe entende. Eſpirito Univerſal ( fegun
do a PhilofophiaHermetica ) he huma ſubſtancia, fube
tiliſſima, puriſſima , penetrantiſlima , que do Ceo
Empyreo para os corpos celeſtes , e deſtes para os
fublunares, e elementaes he lançada , como ſetta, em
todos os mixtos, Mineraes, Vegetantes, e Animaes,
dando a todos elles aquella virtude, e vida propria ,
e particular de cada eſpecie , e individuo. Como el
ta fubſtancia he impalpavel , e inviſivel , com razao
fe lhe deu o nome de Eſpirito ; tambem merece o epia
Eteto Criterſal, porque nelle eſtað mecidas , e oc
cultas as viriudes de todas as ſementes do Univer

fo. Eſtas pois , como ſe vè , nos grãos de todos os


páes , legumes, e frucosdaterra , ainda que ſejað viſi
vei , e palpaveis, o Eſpirito Univerſal embebido nel
les , e em todos identico , mas mulciforme, ſegundo a
nanureza de cada hum, he imperceptivel ,poſto que in
tenſivelmente ſe faz corporal, miſturando - ſe com os
corpos, e dando - lhes o augmento ,e perfeiçao , que lhes
convem.O que claramente vemos em qualquer graó ,
ou femente merida debaixo da terra ; porque ſe nao
tivera dentro de li hum Agente , procurador , e fol
lici
Sobre à PedraPhiloſophal.Dialog.III.cap.i.nic.G.2. 35

licitador da ſua germinaçað , apodreceria , e nað


chegaria a fazer - le vegetante . Eſte Agente , procu
rador, e ſollicitador he o Eſpirito Univerſal, que
continuamente eleva, fortifica , e accreſcenca do leu
proprio cabedalo ſeu paciente ; deſta forte , todo o
grað , ou ſemente depois da ſua germinaçaó , nað
tem diminuiçaõ alguma , e fica do tamanho que era ,
quando foy ſemeado. Nem val o dizer , que a plan
ta, que delle brotou , tomou da terra circumvilinha,
e adjacente o ſeu creſcimento , porque ficaria aquela
le cha) com cova , proporcionada com a materia
do augmento , faltando a quantidade da terra , que
entraſſe na corporatura da planta, e allim todo o chao
de que fahiſſem todas as arvores de huma grande mid
ta , ceria covasmuito profundas , por darem a mate
ria das plantas , quenelle fe criaraó. Donde ſe infere,
que ſó ao Eſpirito Univerſal ſe deve attribuir a cria
ção , e augmentação dos corpos , e nao as mallas
terreſtres, que lað exerementos da materia eſpiritual,
o que tambem le conhece no cozimento do eſtomago,
que lança excrementos quali em pezo igual aos ali
mentos , que cozco ; o ſucco que delles extrahio ,
nað he outra couſa , que eſte Eſpirito Univerſal , en
cerrado na maſſa dos dirosalimentos. O logeito pois,
em que reſide o dito Eſpirito como alma no ſeu cor
po , he o que os Philofophos Hermeticos chamão Sul , ao
qual, como ao ſeu principio, ſe reduzem todas as cou
ſas, porque todas laõ compoſtas da materia ,, em que
ſe relolvem , e aſlim a primeira materia de todo o
compoſto, he a que ſe reduz o proprio compoſto.
Com o movimento pois dos Aſtros , e corpos celef
tes , que he circular, continuamente ſe communica
eſte Eſpirito a todas as partes da terra , acè o centro
Eij della ,
36 Ennaa , ou Applicação do Entendimento ,

della , do qual não podendo paſſar adiante, pelo Ar


cheo da natureza (como dizem os Hermeticos) he re
pellido para cima , enos Metaes, e raizesdas plantas
penetrando ſe une com o EſpiritoUniverſal, que do
Ceo vem para a terra; de forte que a flor que brota da
terra, ou da arvore, traz comfigoo Eſpirito Univerſal,
que do centro da terra vem a unir -te com o que man
da o Ceo ; e no Mundo grande efta circulação he
quaſio modo da circulação do ſangue para a conſer
vação, e ſubſiſtencia do Mundo pequeno. Demanei
ra , que o Eſpirito Univerfal he filho do Sol , e do
Ceo , alma do Mundo , e fonte da vida de todasas
coufas. He a quinta eſſencia da Natureza, que con
tem em ſi as ideas de todas as formas. He huma fubf
tancia eſpiritual , e inviſivel, que tem tres fubftan
cias diſtinctas , e nao differentes em fi meſmo ; por
que he homogenca ; mas como ſeachao nella o calor,
fecura , e humidade , ſendo todos entre ſi diſtintos ,
e não differentes, digo , que os tres faõ huma eſſen
cia , e huma meſma ſubſtancia radical.Tem tres no
mes diverſos ; porque a reſpeito do feu fogo natural
ſe chama Enxofre , a reſpeito do ſeu humido , que
he o proprio alimento do ſeu fogo , ſe chama Mer
curio ; e a reſpeito do ſeu ſeco radical, que he o que

une o humido, co quente , ſe chama Sal. Heuniver


fal , e eſpecifica-ſe no Vegetavel, Animal , e Mi
neral, conforme a matriz , que recebe eſte tão uni
Verſal, como admiravel Eſpirito.
ENODIO . Com grande goſto , e mayor admi
ração , ouvi a explicação do Espirito Univerſal ; e
agora deſejo ſaber ſe he tambem elle o pay da Pedra

dos Philofophos .
ENODATO , He pay da Pedra Philofopbal, e
de
>

Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.IlI.cap.unc.S.2. 37

de todas as couſas criadas , como inſtrumento da


Omnipotencia Divina.
ENODIO . Como chamão os Hermeticos à ma
teria do Lapis depois do ſeu nacimento ?
ENODATO . Chama-ſe Mercurio Philoſophico,
o qual contem em ſi os quatro elementos , ou Sal ,
Enxofre , e Mercurio , ficando hum corpo de ma
ravilhoſa, e admiravel figura , e qualidade.
ENODIO . Quaes faõ as principaes qualidades
do Mercurio Philoſophico ?
ENODATO . O calido , co humido ligado no
ſecco , como explica Raymundo Lullio no Teſta
mento : Fili tibi diximus quod humiditas radicalis, in Lullius in
qua calor naturalis hofpitatur , & refidet, multum eſt un- Teftam . cap .
& tuofa , & ideo difficulter ſeparatur , do per conſequens 65.
fua ficcabilitas, quod nifi eſet natura , non poſſet ſuisne
ceſſitatibus providere , quæ funt foliditas , fluxibilitas
permanentes.
ENODIO . Como ſe unem o calido , eo hu
mido ?
ENODATO. Quando pela força do fogo ſe
deftila a humidade radical, juntamente com ella iu
deſtila o teu natural calor , que tem cor de Ouro.
Efte he o Ouro Philofophico ; e deftes dous vapo
res fallou Alberto quando difle : Vapor humidus in . Albert. met.
cludens , & vapor ficcus incluſus in illius ventre , fimul lib. 3.
elevatur , & hoc fit vi caloris utrumque vaporem ele
vantis, quoniam femper commifcet , & facit ut unius ef
fentia moveatur in alterius effentia. A eſte vapor ſecco
radical chamão os Antigos Ouro , Alma , e Enxo
fre ; porque na fua cor parece Ouro.
ENODIO . Como podem eſſe Ouro , Alma,
e Enxofre , reſidir ao meſmo tempo com os qua
tro
to
caça
õ men
38 i endi
Enn & a , on Appl do Ent ,

tro elementos no Mercurio Philofopbico ?


ENODATO.Ouvia Bernardo Conde de Tre
veris na ſua Practica : Solem nihil aliud effe niſi matul
rum Argentum vivum . Nam in Mercurio ſunt tantuin .
duo elementa aciu , fcilicet terra , é aqua : elementa au
tem activa , ut aer, dignis funtin eo poteftate tantum .
Sed , ut notum eſt, quando illa aer , da ignis in Mercurio
mundo deducuntur de potentia ad actum , ſcilicet ad de
bitam digeſtionem , d proportionalem decoctionem , tunc
fit aurum .
ENODIO . Conforme a doutrina de Bernardo ,
parece que ſe não pode chamar ao Mercurio , no
meſmo tempo Mercurio , e Enxofre, ou Ouro Phi
lofophico ; mas ſe lhe deve dar nome , conforme os
gråos de calor , que teve na digeſtão.
ENODATO . Quando o Azougue eſtà em fór
ma de Mercurio , concem em li o Enxofre Philofophia
co; mas quando perde a forma, he Enxofre fixo . Ou
vi humas palavras do Author do Clangor Buccinæ ,que
explica elta materia com grande eſtrondo: Notandum
quad Philofophi dicunt, quod iftud argentum vivum,
fulphur , lper quod fundat naturalian actionein , á
operationem ,eft argentum vivum , á ſulphur deduétum ,
for productum ad aliquam naturam aqueam ſubtiliſſi
man , albiſſimam , damæniſſi nam , quam Philofo
phi vocant argentum vivum , & ad quandam terream
materiam ſubtiliſſimam , quam vocant fulphur per arti
ficium , quod Philoſophi anirabiliter occultaverunt. Eft
autem iſtud argentum vivum , é iſtud ſulphur una
M'es , e de una re exit .
ENODIO . Efe Author diz, que å materia do
Mercurio Philoſophico he agoa.
ENODATO ). Não entendais effe nome maa
terial,
>

Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.IlI.cap.umic.5.2. 39

terial , e literalmente aſſim como ſoa , fe nao como


elle mais abaixo fe explica : Et cuin dico aqua minera
lis, nolo intelligere Mercurium nudum , red Mercuriam
Philoſophorum , rubeæ ſubſtantie, extractum à mineris
in fe habentibusmateriam de Sulphure & Mercurio.
. ENODIO . Logo o Mercurio , e o Enxofre
exiſtem em huma lo materia , ainda que lejao de
qualidades differences ?
ENODATO . Alim o confeſſa , ou affirma
Raymundo Lullio no Codicillo : Inter Sulphur, &
argentum vivum noftrum non eſt differentia , quia in
genere complexionis naturaliter conveniunt , licet fit de
ratione humidum , & alterum ficcum .
ENODIO. Quanto mais vos explicais, menos
Vos entendo ; mas confeſſo , que eſta falta de incelli
gencia he ignorancia minha , e nao culpa voſſa. Po
rèm ainda que fou tað ignorante , ea materia he tað
imperceptivel , com tudo reconheço ', que he ne
ceſſario fazer mayor reflexa ) no que me tendes ex
plicado , para perceber a contextura do Mercurio
Philoſophico ; e depois de chegar a eſte conhecimen
to , quero ſaber o que para diante ſe ſegue.

S. III .

i Do caſamento Hermetico do Leaõ com a Aguia.

ENODA Omay a Virgem com azas, las


,limpa,e prenhada da se
TO. T vada
Se
minal, e eſpiritualmateria do primeiro contacto mal
culino, ficando illefa a gloria da ſua virgindade, com
as faces tintas de roxo ; ajuntay-a com o ſegundo ſu
geito maſculino ſem fofpeita, nem perigo de adulte
rio ;
140 Ennea , ou Applicação do Entendimento,

rio ; e por fim parirà hum veneravel fructo de ambos

os ſexos do
, qual lahirà huma immortal proſapia de
poderoſiſſimos Reys .
ENODIO. Sãomuito differentes as Leys , e os
vinculos dos congreſſos Mecalicos , do que os dos
Matrimonios humanos.
ENODATO . Nella melma differença , ſe bem
advertirdes , achareis a mais admiravel ſemelhança.
Neſtes ajuntamentos de que f.ço mençað , tudo he
puro , fem mancha de vicio : naó ſe perde a virgin
dade , nem ſe commette adulterio . Ajuntay pois a
Aguia com o Leão, e eſcondeyos no feu clauſtro
diaphano , com a porta muy bem capada, para que
não iaya por ella a ſua reſpiração, ou lhe entre o ac
eſtranho. A Agnia acomecendo o Leao , o deſpeda
càra , e comerà. E logo adormecera com hum pro
fundo , e dilatado fono , inchandolhe tanto o eſto
mago , que feita hydropica, ſe converterà com admis
ravel metamorphoſeem hum Corvo muito negro; el
te perdendo paulatinamente as pennas , principiarà
a voar , e com o ſeu voo le remontarà canto , que ſa
nuvens , atè que fi
cudirà ſobre limelino agoa das
can do mol had o difpa de boa vontade asazas , e def
cendo por falta dellas , ſe converta em hum bran .

quillimo Cyfne.
ENODIO . Bem entendo , que neſſa operaçao
a Aguia , Leão , e Corvo , ſe convertem em hum
Cylne, o qual não apparece ſe não delapparecendo
H
o Corvo, Leao , c Aguia.
ENODATO . Entendo, quepercebeſtes admi
ravelmente a transformação deſtes Animaes ; porèm :
fe quereis fer bom Arcifice , deveis imicar as obras da
Nacureza com os primores da Arte. A Natureza náo
obra
Sobre a Pedrá Philofophal. Dialog. III.cap.unic. 5.3. 41

obra de repente , ſenaó por ſucceſlivos , e dilatados


movimentos. Principia a geração, e producção, e fem
parar nem hum ſó inſtance, lentamente, como ſubindo
por gràos , leva as couſas produzidas , é geradas ao
ultimo ponto da ſua natural perfeiçao. Intenta , e

conſegue o termo das ſuas maravilhoſas producções,


mais com a dilação , do que com a brevidade, e con
clue assfuas obras entre dous extremos diſtinctos , e
feparados, que fað o principio , e o fim . A practica
da Philoſophia Hermetica , que he imitadora da Nacu
reza , trabalhando na preparação da Obra grande, e
reduzindo a praxe a ſubtiliſſima eſpeculação da ſua
myfterioſa Pedra , não ſe deve apartar do exemplo ,
e caminho , que a Natureza tem moſtrado; porque
apartando -ſe deftes ſeus naturaes dictames, erra , ou
fe expoem a commetter erros graviſſimos . '' T
ENODIO. Para evitar tantos perigos vos pe
ço , que me digais, quaes ſao os extremos da Pedra
Philoſophal; porque ignorando donde devo princi
piar , e quando heideacabar , nao poſſo acertar com
meyo deſtas Scylla , e Carybdes , em que tem nau
fragado todos aquelles , quenaðacerta ) com o meyo
entre os perigofos , e arriſcados extremos .

S. IV .
5
Dos meyos , e extremos da Chryfopeia.

ENODATO . S extremos da Pedra Philo


) fophal ſað o Mercurio Philofos
eſtao
pbico , e o Elixir perfeito ; e os meyós , que
entre eſtes dous extre mos m
, que ſerve para proſe
guir a fabrica da Obra grande , faõ de tres generos,
F pers
4.2 Ennæa , oủ Applicação do Entendimento ,

pertencentes à materia , obra , ou aos ſinaes demons


trativos della . Com eſtes meyos , e com eſtes dous
extremos toda a noſſa obra le acaba.

ENODIO . Jà que explicaſtes caó claramente


os dous extremos da Pedra , peço - vos , que me ex
pliqueis tambem os meyos.
ENODATO. Os meyos materiaes da Pedra
Philoſophal tem diverſos gráos , e fucceſſivamente
ſe tirað huns dos outros : os primeiros faó Merche
rio Philoſophico, cos Metaes perfeitos, os quaes, ain
da que faó extremos nas obras da Natureza , fað
meyos na obra deſta Philoſophia. Deſtes primeiros
ſe tirao os fegundos, que vem a ſer os quatro ele
mentos , que circulaó atè fe fixarem : dos ſegundos
ſahem os terceiros , a ſaber hum , e outro Enxofre ,
cuja multiplicaçao acaba a primeira obra : os quar
tos, e ulcimos meyos faó os fermentos, ou unguen
tos produzidos fucceſſivamente na obra do Elixir,
pela ponderada miſtura das ſobreditas couſas : fic
nalmente pela acertada direcçao das taes couſas ſe
cria o Elixir perfeito , que he o ultimo termo detc
da a obra , em que deſcança a Pedra Philoſophal ,
como no ſeu centro , cuja multiplicaçað nað he ou
1
tra couſa mais , que huma breve repetiçaõ das cou
fas fobreditas .

ENODIO. Agora vos pėço , que me enſineis,


quaes fað os meyos , que pertencem à obra ; porque
neſſes me dizem ſe deve pôr o mayor cuidado.
- ENODATO . Os meyos operativos , que tam
bem le chamao chaves da Obra grande, faó quatro .
O primeiro he diſſoluçao , ou liquefacçao : o ſegun
do lavaçaõ : o terceiro reducçao : e o quarto fixa.
çağ. Pela liquefat çaõ le reduzem os corpos à ſua pri.
1 mel 1
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.III.cap.i.nic.S.4.. 43

meira , e antiga materia ; o que eſtava cozido tor


na a ficar cru , e fazendo -ſe o congreſſo do macho ,
e da femea , gerað hum negru Corvo : finalmente
feparab -ſe os quatro elementos confuſos da Pedra,
quando retrocedem os Luminares. A lavação enſina
a fazer branco , como Cyfne, o Corvo negro, como
carvab , e de Saturno faz naſcer a Jupiter , o que ſe
Faz convertendo o corpo em eſpirico. A reducção per
tence reſtituir a alma à Pedra deſanimada , e ſuſten .
talla com leite orvalhado , e eſpiritual, até que te
nha perfeito vigor. Em ambas eſtas duas ultimas
obras exercita o Dragað a ſua grande crueldade
comſigo meſmo; porque tragando a ſua cauda, todo
fe engolle , e ultimamente ſe converte em pedra . Fi
nalmente o effeico da fixaçaõhe fixar hum, e outro
Enxofre ſobre o ſeu corpo fixo , mediante o elpi
rito , que he omedianeiro dasTinturas: coze os fer
mentos por ſeus grãos, amadurece, ou fazona as cou
fas cruas dulcifica as amargoſas , e derretendo ,
penetrando , e ringindo , gera , e aperfeiçoa ulcima
mente o Elixir , exaltando - o ao ſummo auge de ſus
blime.
ENODIO . Eſta operaçao tem muito que con

templar , e vendo -ſe todos eſſes admiraveis effeitos,


tem a Philoſophia grande aſſumpto para exercicio
do ſeu diſcurſo . Agora eſtimàra ouvir a explicaçao
dos ultimos meyos.

ENODATO . Os meyos , ou ſinaes demonſ


crarivos , laõ as cores , que abraçao , ſucceſſivamente,
e por ordem , a materia , e manifeſtað o que ella obra,
ou padece;deſtas cores ſe devem notar ſomente tres, a
que alguns accrefcentao huma quarta cor. A primei
ra he negra , chama-ſe cabeça de Corvo , tanto que
2223 2
Fij prin
44 Ennaa , on Applicaçãõ do Entendimento ;

principia a primeira negridaó , cujo crepufculo in


troduz o principio da acção do fogoda natureza , e
: a noite porèm muito negra conclue a
perfeiçao da liquefacção, e a confuſao dos elementos.
Então apodrece o graó , e ſe corrompe , para que
fique diſpoſto para a geraçaõ . A'cor negra fuccede
a branca , na qual ſe dà a perfeiçao do primeiro graõ ,
e do Enxofre branco. Eſta Pedra ſe chama Bemdica :
Eſta he a Terra Foliata , em que os Philofophos Her
meticos ſemeão o feu Ouro.A terceira cor he amarella ,
que apparece no tranſito do branco para o vermelho,
comoſe foſſeo meyo de ambas miſturadas, e he, co
mo Aurora, annunciadora dos cabellos dourados do
Sol. A quarta cor vermelha , ou fanguinolenta , ſe ti
ſa da branca , ſó pelo fogo ; porém a cor alva , por
ſer alterada por outra qualquer cor , antes que appa
reça a luz , principia a diminuir a ſua alvura ; mas a
cor vermelha eſcura acaba a obra do Enxofre do Sol,
, oroa
chamado Eſperma maſculino , Fogo da Pedra C
Regia, e Filho do Sol, e neſta cor deſcança o primei
ro trabalho do Operante Hermetico.
ENODIO . Effas faõ todas as cores, que ap
parecem na preparaçao da Obra grande ?
ENODATO . Saó cantas as cores na obra , co
mo na Natureza ; porque vemos nellas infinitas co

res, que ſemanifeſtao nos vapores , ou nuvens , co


mo no arco chamado Iris , as quaes breviſſimamen
te fe deſvanecem , e ſe transformaõ em outras , que
The vaõ ſuccedendo , e ſobrevindo de novo. Eſtas
cores fazem mayor impreſſao no ar , do que na terra ;
poriſfoo Operario deve fazer pouco calo dellas
porque nao laó permanentes, nem procedem da in
trinfeca diſpoſição da materia .! :: 1,1
ENO
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog : 11I.cap.unic.S. 4. 4.5

: ENODIO . Havendo erro na obra , varia ) as


cores , e pode-ſe conhecer o erro pela ſua Variedade?
ENODĄTO . Pelas cores eſtranhas , que ſuc
cedem antes do tempo , ſe prognoſtica o damno da
Obra grande ; porque os filhos do Corvo ſe deixa
a rem o ninho , naộ tornarào para elle . O vermelho
anticipado ſe apparece na materia , he indicio de
grande fecura , e nað ſe pode remediar ſenaõ com
grande perigo , lançando logo o Ceo a chuva ne
ceſſaria ; mas he fauſtiſſimo ſinal no fim da eſperan
ça certa da colheita .
ENODIO . Aqui ninguem nos ouve ( ainda
que os paſſageiros nos vem) enſinaime em ſegredo
o que devo fazer para não errar,
ENODATO . Como me prometteis ſegredo ,
vos declaro , que a Pedra ſe exalta por grãos com
fuccellivas digeſtões , e por fim alcança , ou chega
à ſua ultima perfeiçao. Aquellas quatro operações ,
regidas por quatro digeſtões aperfeiçoað a obra
cujo author he o fogo , o qual determina as ſuas difá
ferenças.
ENODIO . Explicai- me melhor eſſas digeſtões,
para que as poſſa executar , tendo dellas verdadeiro
conhecimento .

S. V. ,

Das quatro digeftoes Hermeticas.

Primeira digeſtão conſegue a


ENODATO. A diſſolução do corpo, pela qual
Le fazo congreſſo do'macho , e femea , a miſtura das
materias ſeminaes , a putrefacção , e a reſolução dos
ai elo .
46 Ennæa , on Applicação do Entendimento ,

elementos en agoa homogenea , o eclypſe do Sol,


e da Lua na cabeça do Dragão. Finalmente todo o
Mundo torna a ficar no chaos antigo , e no tene
broſo abyſmo. Eſta primeira digeſtão fe faz , como
no eſtomagº , com calor brando , mais proprio para
a corrupção , do que para a geração.
ENODIO . Os Chymicos vulgares errarað fa
cilmente nella digeltao ; porque eſtao coſtumados
a uſar de fogo forte. Mas qual he a ſegunda digel
tao ?

ENODATO . Na ſegunda digeſtaó anda o Ef


pirito do Senhor ſobre as agoas. Principia - ſe a fazer
á luz , e vað ſe leparando as agoas das agoas , re
novao -le o Sol , e a Lua . Tirað -ſe os elementos do
chaos , para que miſturados perfeitamente em eſpi
rito conftituað novo Mundo , formem nova terra ,
façaó hum novo Ceo , e eſpiritualizem todos os cor
pos. Os filhos dos Corvos , transformados jà em
Pombas, principiáo a trocar as pennas pretas em
azas brancas . A Aguia , ę o Leão ſe abraçaó com
eterno , e intimo laço . Mas eſta regeneração do

Mundo ſe faz pelo Eſpirito Igneoʻ, que deſce em


forma de agoa , e lava o peccado original; porém
a agoa dos Philoſophos he fogo , que le move pe
lo calor do banho , que faz eſta operação. Mas he
neceſſario obrar com grande advertencia , para que
ſe faça a ſeparação das agoas com o pezo , e medi
da , de forte , que as agoas que ficão debaixo do
Ceo , não afoguem a terra , e as que ſobem ao Fir
mamento , a não deſamparem de modo , que fique
Тесса .

* ENODIQ . He muito delicada a Philoſophia


delta Hermetica operação, Parece-me, que da pri
meira
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.111.cap.unic.5.5. 47

meira vez ſe não acertarà ; mas vamos a terceira di


Q geſtão.
3 ENODATO . A terceira digeſtáo dà a beber
a terra , que acaba de naſcer , leite orvalhado , e
todas as virtudes eſpiricuaes da quinta eſſencia , e
mediante o eſpirito , liga ao corpo a alma vivifican
te . Então eſconde a terra em Ghum grande theſou
ro , tazendo- ſe primeiramente ſemelhante à luz reſ
plandecente , e ao depois ao Sol rubicundo . A pri
meira ſe chama terra da Lua , e a outra terra do Sol,

e ambas nafcem pela conjunção de dous Planetas.


Nenhuma dellas teme jà o tormento do fogo ; por

que ambas eſtão purificadas ; e porque muitas ve


zes forão limpas do peccado pelo fogo , e padecè
rão tão grave martyrio , que de compaixão todos
os elementos le virårao , e deſcèrão para baixo:
ENODIO . Curiofiffimas faó eſtas operações ;
porque ainda ouvidas dao goſto , e cauſao admira
ção ; e he fem duvida , que viſtas ainda ferão mais
admiraveis . Continuay -me a merce de me dizerdes ,
ou explicardes a quarta digeſtao.
ENODATÓ. A quarta digeftao aperfeiçoa to
dos os myſterios do Mundo , e convertida por ella a
terra em excellentiſlimo fermento , fermenta todos
os corpos imperfeitos; e porque paſſou primeiro à
natureza celeſte de quinta eſſencia , a fua grande
virtude emanada do Eſpirito Univerſal , he prom
pta , e efficaciſſima Panacea Catholica , e Univerſa»
liſima Medicina , para curar quafi momentaneamen
te todas as enfermidades de todas as creaturas, El.

la impede , e dilata a velhice : ella renova a idade:


ella prolonga a vida : ella evita a doença : e ella cu
ra , e remedea perfeitamente toda a moleſtia. Eſte
milag
48 Ennea; ou Applicação do Entendimento,

milagre da natureza , e da arte vos manifeſtarà o


forno ſecreto dos Philofophos , repetidas algumas
vezes as digeſtões da primeira obra. Mas para con
ſeguires eſta grande felicidade, laveisde fer juſto ,
e vituoſo , para que Deos vos favoreca; e le o naó
fizeres aflim , ferà inuril o voſſo trabalho . Toda à
fabrica da Obra Philoſophica nað he outra couſa mais
que diſlolver , e coagular : diſſolver o corpo , e coas
gular o eſpirito ; e ambas eſtas couſas. fað huma ló

operaçao. Nella ſe miſturaó o volatil , e o fixo ,


unindo -ſe perfeitamente em eſpirito ; e iſto ſe nao
pode fazer fe fe nao diſſolver primeiro o corpo fi
хо ,, feito volatil . Pela reducçað ſe fixa o corpo vo
lacil em permanente corpo , é a Natureza volatil ul
timamente paſſa a ſer fixa , do meſmo modo , que a
fixa tinha paffado a fer volatil. Todo o tempo po
rèm que as naturezas confulas andað errantes, em
forma decfpirito , aquelle eſpirito mixto fuftenta a
natureza de eſpirito , e corpo , de volatil , e de fixo.
ENODIO. Naó duvido dos effeitos deſta ad
miravel , e quali milagroſa Panacea ; porque vejo
que a agoa de húm Rio entrando ein hum lago cor
rupto lhe purifica , e renova as agoas ; o azeite que
novamente ſe lança no candieiro , lhe conſerva e
perpetua a luz ; e aſlım purifica a Pedra Philofophal
o fangue, e conferva a noſſa vida ; maseſta obra tó
ſe pode fazer havendo hum radical diffolvente do
Ouro , e da ſua meſma natureza , como vòs dizeis,
que he o Mercurio Philofophico ; porèm quem o nao
over , não poderá colher o fruto defta Arvore da
vida, ainda que faiba conliecellas )
- !; ) ENODATO . A producçao da Pedra dos Phi
lofophos he como a creaçao do Mundo ; - porque
he
Sobre a PedraPhilofophal. Dialog III.cap.unic.9.5. 49

3 he neceſario que tenha o ſeu chaos , e a lua mater


ria prima , em que nadem confufos os elementos
atè que ſejaõ feparados pelo eſpirito Igneo , e que

feja elevada a parte leve deſta deparaçao para cima;


ea grave ſeja precipitada para baixo. Naſcendo a luz;
defapparecem as trevas .: ajuntando -ſe as agoa's em
hum lugar , apparece a terra ſecca , ou aridar Finals
mente fahem ſucceſivamente os dous Luminares
grandesji e produzem asvirtudes Mindraes , Vege
.
taveis , e Animaes na terra PhilofophicaOOK
ENODIO .Com razaõ ſe compara a mayoropes

ração da Arte com a mayor obra da Omnipocena


cia, porque tem muita ſemelhança,o que Deos, com
mo Author da Natureza , criou de nada , com o que
a Arte,imitadora da Natureza, produzio do que na
da val ; más iſto não baſta para igualar por todas
as circunſtancias o paralello . '
ENODATO . Criou Dels Adam do limo da
terra , em que reſidiaõ as virtudes de codos os elet
mentos , e principalmente da terra , é daragoa , as
quaes conſtituem mais a machina corporea , e fenfi
yel . Neſta Eſtatua de barro inſpirou Deos a reſpi.
raçao , ou eſpiraculo da vida , que he a alma racio
nal: Infpiravit in faciem ejus fpiraculum vitæ ; edef. Gen. 2. 7.
ta forte vivificou aquelle barro com o Sol do El
pirito Santo : criou homem , e mulher, ou como
diz o Texco, macho , e femea; e lançando-lhes a ſua
benção , lhes pozo preceito , ethes concedeo a facul
dade de multiplicar : Mafcrilum ifæminam crea - Gen. 1.27.
vit eos : benedixit que il!is Deus, ait : creſcite, e
multiplicamini, a replete tèrrain , 5. ſübjicite eam . A
criação da Pedra Philofapbal_bie por todas as cir
cunítuncias femeilianta a da Adaníz porque do corb
.. ‫روند‬ G po ter
50 Ennæa,, ou Applicação do Entendimento ,

po terreſtre , e grave diſoluto pela agoa ſe faz o


limo , que mereceo chamar -ſe Terra Adamica , na
qual reſidem as qualidades , e virtudes de todos os
elementos. Tambem ſe lhe infunde a alma celeſte
pelo eſpirito da quinta eſſencia , e o influxo ſolar,
e pela benção , e orvalho do Ceo fe lhe dà a virtu .
de infinitamente multiplicativa , mediante a copube
la de ambos os lexos .
· ENODIO . Agora confeſſo , que aſſim como
a creação da Pedra Philofophal tem propriedades ;
e ſemelhanças da creação do Mundo grande; aſlim
he conveniente , que as tenha a reſpeito do Mun :
do pequeno. Muito deſejo faber todos os ſeus gran
des myſterios.
ENODATO . O mayor ſegredo deſta obra
conſiſte no modo de obrar, o qual todo depende
da circulação dos elementos, porque a matcria do
Lapis vay paſſando de huma para outra Natureza.
Puxa-ſe ſucceſſivamente pelos elementos ,que paus .
latinamente alcanção o dominio ; porém agita-ſe ca
da hum pela circulação do ſecco , e humido , atè
que todos fiquem embaixo , e alli tomem deſcanço.
ENODIO. Efla circulação ha de ſer muito cu
riofa ; e fe a minha amizade vos merece alguma cou
ſa, peço - vos , que ma expliqueis com todas as ſuas
circunſtancias.

S. VI.

. $ .t Da circulação da Agoa.

ENODATO . Omo o amigo he outro


Coo , não vos poſſo occulcar
eun
o que ley. Na obra da Pedra Philoſophal os mais
elemen .
SobreaPedrà Philofophal.Dialog 111.cap.unic.$.6 . 51

elementos circulão ena figura de agoa ; porque em


agoa le reſolve a terra , em que reſidem os outros
6
elementos. A agoa fe fublimaem vapor, o vapor cora
na a cahir em forma de agoa , e deſte modo por humi
circulo direito ſe move a agoa atè que para fixa
no fundo. Alim ſe reſolvem nella , por ella ſao ex
altados , com ella vivem , e morrem com ella ; pod
rèm a terra de todos elles he o termo ulcimo.
ENODIO . Muito ſe deve å agoä nettá obras
mas he'agoa , que le converte em terra , conhecida
de poucos , e deſejada de muitos.
ENODATO . A ordem admiravel da Natu

reza, pede que toda a geração principie pelo hu .


mido e no humido : na obrá Philoſophica ſe hà
de reger a Natureza de cal forte , que a materia da
Pedra , que he terreſtre, ſecca , e compacta , ang
tes de tudo ſe reſolva no ſeu proximo elemento ,
he agoa ; então do Sol ſe gera Saturno.
que
ENODIO . Nela obra ſe joga o trocado ; por
que no principio do Sol ſe gera Saturno ; e no fim
de Saturno le gera o Sol , quando transforma o
Chumbo em Ouro .
1. ENODATO . Depois de ſeré gyros , ou revo

luções ſuccede à agoa o ar , que circula com outros


circulos, e reducções, atè que le fixe embaixo , eex.
pelido Saturno , tome as inſignias de Jupiter, 'com
cuja vinda ſe forma o Infance Philoſophico , crean
do -ſe no ventre , até que finalmente fahe a luz ,
moſtrando na candida , e ſerena face o refplendor
da Lua .
ENODIO . Com eſſa operação ſe prova , c

confirmi, que o elemento do ar he mais nobre que


o da agoa .
Gij ENO.
52 Ennæa , 011 Applicaçao do Entendimento ,
ENODATO. Deixemos couſas de pouca ima

portancia , e concluamos no que vos importa ſaber.


Finalmente,o fogo da Natureza concluindo os exer
çicios dos elementos , apertando o fogo externo , de
occultos ſe faz manifelto . Então o açafrað tinge a
branca Aljucena, a vermelhidão , ou rubicundo oc
cupa , e cora as faces do abrazado Mancebo , feito
jà mais valeroſo. Efte he u. fim da primeira obra , e
perfeita circulação dos elementos , cujo final he,
quando tudo ſe acaba no ſecco , e o corpo fica prof
trado fem eſpirito , nem alento , nem ainda movi,
mento do pulfo ; e deſte modo finalmente deſcan
ção todos os elementos na terra .
ENODIO . Saõ bem Philoſophicas eſtas cir
culações ; mas nao me direis, que vem a ſer eſſe to ,
go da Natureza

! S. VII.

Do Fogo da Natureza, e da circulação dos Elementos.

ENODATO

O Philofophal , he o principado
da Natureza , filho , e vigario do Sol, que move ,
e digere a materia , e que nella aperfeiçoa todas as
couſas, ſe alcança liberdade. Para vos ſervir livre
mence , procura a liberdade ; porque eſtà eſcondido,
e fraco debaixo de huma dura caſca. Adverti porém,
que não he conveniente apercallo com exceſſo ; por
que não podendo lofrer a tyrannia , ſe farà logo fu
gitivo , ſem vos deixar eſperança alguma de tor
nar : chamay -o'pois brandamente , e guarday -o com
a prudencia , que importa.
ENO,
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.Ill.cap.stnic.9.7. 53

ENODIO . Explicay-me o aperto , ou tyran


nia , de que devo. livrar o Fogo da Pedra Philofophal.
ENODATO . He o fogo externo ; porque nef
ta operação he o primeiro motor da Natureza e
o que'modera o interno fogo , e toda a noſſa obra .,
O Philoſopho deve ſaber muito bem o ſeu regimen
to , e obſervar os ſeus pontos , e gràos; porque del
le depende a proſperidade , ou à ruina da obra . A
Arte ajuda a Natureza , e o Philoſopho he miniſtro
de ambas .

ENODIO . Como eſta obra he fabricada pela


Natureza , e pela Arte , tambem por eſte principio
tem ſemelhança com a dos Vegetaveis , e Animaes ..
ENODATO . Com aquelles dous inſtrumen
tos da Arte , e da Natureza , ſe levanta a Pedra fua 3
vemente com grande engenho da Terra ao Ceo , e
torna a cahir do Ceo na Terra ; porque a Terra he
a ſua ama , e levada no'ventre do vento , coma for
ça dos ſuperiores , e dos inferiores.
ENODIO . Explicay- me iſſo commayordiſtinc
ção , e mais clareza.
ENODATO . A circulaçao dos elementos
exercita -le por gyro dobrado , por mayor , ou exten
fo , ou por menor , e recolhido : 0 gyro extenſa
fixa todos os elementos na Terra , e o ſeu circulo
nað ſe fixa , ſe naó com a obra do Enxofre conſu
mada . A revolução do gyro menor acaba-ſe com a
extracçao , e preparação de cada hum dos elemen
tos. Neſte gyro porèm hà tres circulos , que com
certo movimento errante , e incrincado agitaõ total
mente a materia varia ; e muitas vezes , ou quando
menos ſete , trazem à roda cada hum dos elemen
COS , ſuccedendo- le alternadamente entre ſi , mas .

1
54 Ennaa , ou Applicaçao do Entendimiento ,

tambem ordenados , que ſe falta algum , o trabalho


de todos fica perdido . Eſtes faó os inſtrumentos da
Natureza , com que os elementos ſe preparáo.
ENODIO. Nao entendo bem eſſes tres cire
culos.
ENODATO . Cada circulo tem ſeu proprio
movimento ; porèm todos os movimentos dos cir
culos andão entre o humido , e o lecco ; c eftaó cáo
encadeados, que produzem huma ſó operação, e hu
ma harmonia da Natureza . Dous delles ſao oppoſtos
naó fó na razão dos termos , mas tambem na das cau.
ſas , e dos effeitos ; porque hum move para cima
leccando pelo calor, outro move para baixo , huo:
medecendo pelo frio ; mas o terceiro repreſentan.
do a imagem do lono , e do deſcanço , dirigindo
com ſummatemperança, traz a ſuſpenſao de ambos.
ENODIO. Para eu perceber melhor eſſa ex
plicação , haveis-me de explicar por li a cada cir
culo .

- ENODATO .. O primeiro dos tres circulos he


a evacuacaó , cujo trabalho conſiſte em ſeparar o hu
mido fuperfluo , como cambem o puro , limpo , e
Subcil das fezes craſlas, e terreſtres. Porém ha gran
de perigo no movimento deſte circulo ; porque cra
ta das couſas eſpirituaes , e tira as entranhas a Na
tureza. Duas couſas ſe devem principalmente ad
virtir no movimento deſte circulo : a primeira , que
ſe não mova com muita força; a ſegunda, que não
dure mais tempo do que conyem : o movimento acce

Jerado excita confufað namateria , de tal forte , que


ſe levantarà a parte craſſa , impura , e indigeſta ,
com a pura , e lubril , e o corpo não diſſoluco , ou
desfeito , miſturado com o eſpirito reſoluto. Com
efte
SobreaPedràPhilofophal.Dialog.III.cap.unic.S.7. 55

eſte movimento precipitado ſe confunde a Natu


reza celeſte , e terreſtre , e corrupto o eſpirito da
quinca eſſencia , miſturado com a terra , fe faz grof.
fo , e inutil . Pelo movimento mais dilatado ſe eva
cua demaſiadamente a terra do ſeu eſpirito , fazen
do - ſe tão languida , arida , e deftituida de eſpiri
to , que ſe não pode facilmente reſtaurar a ſua com
pleição. Ambos os erros queimão as tinéturas , ou
as fazem fugitivas.
3 ENODIO . Muito tem que obfervar, e enten
der eſte primeiro circulo ; mas paſſemos à explica
ção do ſegundo .
ENODATO. O ſegundo circulo he a reſtau
ração , cujo officio he reſtituir com a bebida as for
ças ao corpo debilitado , e myrrhado com a ſede.
O primeiro circulo foy orgaõ do trabalho ,e do
fuor ; eſte porèm he do refrigerio , e conſolação.
A ſua acção em triturar , e abrandar a terra , he ſe
melhante à dos Oleiros , para que melhor ſe miſtu
re , ſe fórme e finalmente fe coza . O movimen .
to deſte circulo , convem que ſeja mais leve , que
o movimento do primeiro , principalmente no prin
cipio da ſua revolução , para que os filhos do Core
vo não ſe eſcondáo , ou afoguem no feu ninho
com a torrente do Rio , e para que o Mundo , que
naſce , fe não deftrua com o diluvio . Efte he o que
peza a agoa , e que examina as medidas ; porque
diſtribue a agoa pelos preceitos das razões Geome
tricas. Quali que não hà mayor ſegredo em coda
a praxe da obra, que o certo , e ajuſtado movimen
to deſte circulo , porque dà forma ao Infante Phic
ch
lofophico , e lhe inſpira com a alma a ſua vida . As
1
leys do movimento deſte circulo , faó que corra
tenta ,
56 Ennea , oü
oilApplıcação do Entendimento,

lenta , e paulatinamente , e que parcamente ſe der


rame , paraque com a preſa não fobrepuje a medi
da , e para que o calido innato , e architecto da obra,
afogado nas agoas te não esfrie , ou apague : tam :
bem fe devem adminiftrar as bebidas alcernadas ve ,
zes , para que ſe faça melhor a digeſtão , é a melhor
compleição do ſecco , e humido ; porque he hum
forte laço de hum , e outro o fim , e a difficulda
de da obra. Pelo que deveis advirtir , ſer neceſſai
rio regar tanto , quanto faltar affancio ; paraque a
reſtauração corroborando , reftitua tanco de fors
ças perdidas, quantas tinha tiradoa evacuação de
bilitando.

ENODIO . Tinhame parecido difficulcoſa a


intelligencia , e practica do primeiro circulo ; pɔ
rèm ainda eſte tegundo he mais difficulcoſo de prác
çticar , e de encender. Agora conheço, que dizem
com muita razão os Adeptos, que elta obra e não
pode faber , hem practicar ſenão com Meſtre , que
a enfine coin muita clareza . Mas com tudo quero
ouvir a explicação do terceiro circulo .
ENODATO. A digeſtio , ulrimo circulo ,
Qbra com movimento cacico , e inſenſivel; por iſſo
dizeni os Philofophos Hkrmeticos , que ſe fazem forno
fecreto. Coze o ſuſtento recebido , e o converte 1
em partes homogeneas do corpo ; daqui vem cha
mar-le putrefacção ; porque ſe corrompe no corpo,
aſſim como o alimento ſe altera , e fermenta noelto
mago , antes que le
ſe tranſmute 1
tranſmute em chylo , e ſe.con
verta em ſangue , e partes ſemelhantes. Anim tri
tura eſta operaç.1o o alimento com o calor eſtoma
chal , e de algum modo o apodrece , paraque fe fi
xe mellor, e palle da natureza mercurial à lulphus
chi rca .
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.111.cap.unic.6.7 . 57

tea. Mas tambemi ſe chama com alguma proprieda.


de enterro ; porque por ella fe enterra o eſpirito ,
e quali morto ſe ſepulta na terra. Porèm como pro
ſegue muito lentamente , por iſſo neceſita de mui
to mais tempo. Os primeiros dous circulos trabalhað
principalmente em reſolver , e eſte ém coagular ,
ainda que todos obrem huma, e outra coula. As leys
deſte circulo faó , que ſe mova com lentiſſimo calor
febril, e de eſterco , para que nao fuja o volatil ,
e ſe naó perturbe o elpirito no tempo da ſua eſtrei
tiſlima conjuncçao com o corpo ; porque entað fe faz
a obra com grande focego , e tranquilidade. Por iſſo
deve haver cautela , paraque a terra ſe naó mova com
alguns ventos , ou chuvas . Finalmente, he neceſſario
que eſte terceiro circulo ſucceda logo , e ſempre por
tua ordem ao ſegundo, aſlim como ſuccedeo o ſex
gundo ao primeiro. Aſſim , por obras continuadas ,
e por tres vezes , aquelles circulos errantes cumprem
huma circulação inteira , a qual repetida muitas ve
zes , tudo ſe converte em terra , eſtabelecendo finala
mente a paz , e concordia entre os inimigos.
ENODIO . Tendes explicado os circulos com
todas as ſuas circunſtancias ; mas varias vezes rendes
feito mençaõ do fogo com differentes ſignificações,
e deſejo entendellas todas ; porque me parece eſta
intelligencia muito neceſſaria para eſta obra .
EÑODATO . Tendes razas , e agora ſatisfa
rey o voſſo deſejo. Uſa a Natureza do fogo , como
tambem à lira imitaçað le vale do fogo a Arce , co
mo inſtrumento , e martello na fabrica das ſuas obras .
He o fogo o Meſtre, ou Preſidente nas operações
da Arte , e da Naturezi. Por eſta razao he muito
neceſſario ao Philoſopho o conhecimento dos fo
H gos;
58 Ennea , ou Applicação do Entendimento,

gos ; porque deſconhecendo -os, trabalharà inutil


mente , como Ixion , ſeguindo ſem utilidade a roda
da Natureza.
ENODIO. Como he tað neceffario eſte co
nhecimento caó deſconhecido , explicaime a natu .
reza do fogo.
ENODATO . O nome Ignis, ou fogo he equi,

voco entre os Philofophos Hermeticos ; porque algu


gumas vezes ſe toma pelo calor , e admitcem tantos
fogos como calores. Na geração dos Metaes , e dos
Vegetaveis conhece a Natureza tres fogos , que fa
celeſte , terreſtre , e innato . O primeiro deſcedo Sol,
como da ſua fonte para o ſeyo da terra ; move os
fumos , ou vapores mercuriaes, e fulphureos, com
que ſe miſtura na creação dos Metaes. Excicao fo
go dos Vegetaveis , que eſtava como apagado ,
dentro nas ſuas ſementes , accreſcentandolhes as
partes igneas para a ſua vegetação. O ſegundo el
tà eſcondido nas entranhas da terra , e com a ſua
acção impelle os vapores ſubterraneos , para que
fubað pelos ſeus poros , e ſayão para a ſuperficie
do Mundo , produzindo de caminho osMetaes, e
aperfeicoando as Sementes dos Vegetaveis , prepa
Jando -as , e abradando -as para fazerem melhor a ſua
producção. O terceiro he producção do primeiro , in
fundido no vaporoſo fumo dos Metaes , e tambem
no menſtruo, creſce juntamente com a materia humi
da, e quaſi como prezo, fica encerrado na fua for
çaleza, ou fica ligado no feu mixto como forma. Po
rèm introduzido nas ſementes dos Vegetaveis , fica
nellas ſigillado , até que folicitado pela agudeza dos
sayos paternos, fe inquieta , e move , e com eſte mo
yimento , è dà juntamente com a forma à materia ,
fazen .
Sobre a PedraPhilofophal .Dialog.III.cap.unic.9.7. 39

fazendo- ſe como Oleiro , e diſpenſeiro do mixto .


Na geração dos Animaes o fogo celeſte obra infen
fivelmente com o Animal ; porque he o primeiro
agente na Natureza. O calor porém da femea core
reſponde ao calor terreſtre , em quanto a materia
feminal eſtà em putrefacção , prepara -a, e favore
ce - a. Mas o fogo ſigillado no femen filho do Sol ,
diſpoem a materia , e diſpoſta, lhe dá fórma.
I
ENODIO . Tendes explicado magiſtralmente
os fogos , ou calores da Natureza, que lao os inſ
trumentos ,
com que obra nas producções; agora eſ
timàra que me explicaffeis , quaes laõ os fogos da
Obra grande.
i.

S. VIII.

Do Fogo Philofophico , ou Hermetico , e da pre


paração da Chryſopeia.

ENODATO. A materia da lua obra obſer


vara6
Nara boisos Philofophos Herme
Hermes
ticos tambem tres fogos , a ſaber natural , não na
tural , e contra a Natureza. Fogo natural chamão
àquelle eſpirito fogo celeſte , ſigillado , occulto no
profundo da materia , e prezo eſtreiciſfimamente
nella , o qual , por cauſa da fortaleza do Mecal , ef
tà como extincto , acè que pelo engenho Philolo
phico , e pelo calor externo fe excita , e move , e
poſto , em liberdade tem actividade de mover, e alte
bica far o ſeu corpo reſoluto . Então desfazendo, pene
trando , dilatando , e finalmente congelando , dà
cito fórma å fua humida materia . ' Em qualquer mixto
he o fogo da Natureza o principio , e o movimen
Hij. to
6o Ennaa , 01 Applicação do Entendimento ,

to do calor. Fogo não natural chamão àquelle , que


vindo extrinſecamente , e de longe , com maravi.
ihoſo artificio ſe introduz na materia , paraque au
gmente , e multiplique as forças naturaes. É o fo
go contra a Natureza he aquelle , que corrompe o
temperamento da Natureza , e apodrece o com.
poſto. Efte fogo he imperfeito , por ſer invalido pa
ra a geração , e não excede os termos da corrupção,
Semelhante a elle he o fogo , ou calor domenſtruo.
He verdade', que impropriamente ſe lhe deu o no
me de fogo contra a Natureza ; porque de algum
modo he conforme a meſma Natureza ; porque ſal
va a forma eſpecifica, è corrompe a materia de tal
ſorte , que a diſpoem para a geração.
ENODIO. Jà vejo pelo que me dizeis , que
na obra Philoſophica entra o fogo natural, e não
natural ; mas não percebo ſe entra tambem o cha
mado fogo contra a Natureza.
ENODIO . He mais provavel , que o fogo
contra a Natureza não diffira do innato , mas que
ſeja o ſeu primeiro gráo ; porque a ordem da Na
tureza pede , que a corrupção preceda à geração ;
e aſſim o calido innato conſentindo nas leys da Na
tureza , ambas as couſas executa , excitando hum
dobrado , e ſucceſſivo movimento na materia : 0
primeiro de corrupção , mais tardo , e vagaroſo , ex
citado por hum calor brando ; e o ſegundo gera
mais breve , e activamente , impelido pelo calor
mais forte , para animar , e plenamente informar o
corpo elemental , diſpoſto já pelo primeiro movie
mento ; e aſſim não faõ dous fogos , ſenão hum

dobrado movimento , produzido pelo duplicado


grào de calor do melmo fogo.
ENO :
Sobre aPedraPhilofophal. Dialog. III.cap.1.9.c.9.8. 61

E ENODIO . E o fogo nað natural fica ſempre


com as melmas qualidades , ou tem alteraçað neſta
obra ?

ENODATO.O fogo naõ natural , por ſuccelli,


vos gràos de digeſtaõ ſe converte em fogo , natural
ou innato, eo augmenta , e multiplica . Todo o ſegre
do conſiſte na multiplicaçaõ de fogo natural , o qual
lendo ſimples , nao pode nem obrar , nem communi
car aos corpos imperfeitos perfeita Tinctura , mais
do que .as ſuas proprias forças
lhe permittem ; por
que he ſufficiente ſomente para ſi, nem tem mais que
dar ; mas multiplicado pelo nað natural , que abun
da muito na virtude multiplicativa , obra com ma
yor poder , e actividade , extendendo -ſe àlem dos
extremos da Natureza , aperfeiçoando , e tingindo
os outros corpos imperfeitos, por cauſa da abun
dante Tinctura , e occulto theſouro do fogo multi
plicado.
ENODIO.Como podem ſer tað activos eſſes foa
gos , ſe hà pouco que diſfeſtes , explicando o ſegun
do circulo , que neſta obra he tanta a agoa , que ſe
póde afogar nella toda a a materia ?
ENODATO. Os Philoſophos Hermeticos tam
bem chamaó fogo à ſua agoa, por ſer ſummamente
calida , e por eſtar cheya de hum eſpirito igneo .
Por iſſo com o nome de agoa nomeao tambemo fo .
go ; porque queima os corpos dos Metaes perfeitos
mais do que o meſmo fogo , diffolvendo -os perfei
tamente , nao obſtante reſiſtirem elles ao noſſo fo
go , ſem poderem fer por elle diſſolutos , ou desfei
tos , e por eſta razao lhe chamaõ agoa ardente , c
adurente. O fogo porèm da Tinctura fe occulta no
Ventre da agoa , manifeſtando -ſe com dobrado ef
feito ,
62
Ennea , ou Applicaçaõ do Enterdimento ,

feito , que vem a ſer a diſſoluçao do corpo , e a mul


tiplicaçao.
EŃODIO . Uſa - ſe de mais algum fogo neſta
obra ?
ENODA AT TO . A Natureza uſa de dcus fogos na
obra da geraçao, que faó interno , c externo , ou ex
trinſeco , e intrinſeco. Eſte impreſſo, ou ſigillado nos
mixtos , e nas ſementes , fe occulta dentro no ſeu
centro , movendo , e vivificando o ſeu corpo , como
movimento , e principio da vida. E aquelle,ou emane
do Ceo , ou da terra, excita o primeiro adormecido
pelo ſono , obrigando- o a obrar. Os atomos igneos
vitaes innatos nas.Sementes de algum modo neceſ
fitao de motor externo , para que obrem , e ſe mo
vaõ. Por ſemelhante modo le procede na obra Phi
Joſophica , porque a materia da Pedra poſſue o ſeu
fogo interior, o qual parte innato , e parte accref
centado , por modo Philofophico ſe une em hum ſó
fogo; porque aquellas duas partes , por ſerem ho
mogeneas, interiormente ſe ajuntað . O fogo inter
no neceflita do externo , que adminiſtra o Philoſo
pho Hermetico conforme os preceitos da Arte , e da
Natureza . Aquelles fogos andío quaſi em duas ro
das , das quaes a occulta , impellida pela ſenlivel, ſe
move mais tarda , ou rapidamente conforme o im
pulſo . Por eſte modo te ajuda a Natureza da Arte . O
fogo interno he meyo entre o ſeu motor , e a materia ,
de que reſulta , que do meſmo modo que he movie
do por elle , aſſim a move : ſe for impellido com
mayor, ou menoractividade , do meſmo modo obra
na ſua materia . Finalmente a forma de coda a obra
depende da medida do fogo externo.
ENODIO. Neceſario he logo ter gran
de
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.111.cap.1:Nic.Ş.8. 63

de conhecimento deſte fogo exterior.


ENODATO . Quem ignorar os pontos , e os
gràos do fogo externo , nao emprenda a Obra Phi
1
lofophica ; porque a luz nunca lahe das treva , ſe
nað paſſar pelo meyo o calor : aſlim tambem os Éle
mentos , cujos extremos nað ſe convertem ſenaõ
pelos meyos ; e porque toda a obra confifte na ſe
i
paraçao dos quatro Elementos da Pedra , fað ne
ceſſarios para ella outros tantos gràos de fogo ; por
que cada Elemento ſe tira com o ſeu proprio grào
do meſmo fogo.
ENODIO . Quantos gràos tem o fogo externo ?
ENODATO. Reparte -ſe, ou divide-ſe o fo .
go externo em quatro graos , a ſaber, fogo de ba .
nho, fogo de cinzas, fogo de carvab , e fogo de flam
ma , ou labareda ; mas cada grào tem os ſeus pon
tos, ao menos dous , e algumas vezes tres ; porque
o fogo deve-ſe mover pouco a pouco , e por pon
tos, ou ſe augmente , ou le diminua, para que a ma
teria , à imitaçao da Natureza , ſe adiante paulati
na , e livremente , para ter fórma, e perfeiçao. Ne.
nhuma couſa he cao contraria à Natureza como o

violento . Conſidere o Philoſopho Hermetico a demo


ra , ou dilaçao com que o Sol ſe chega , ou retira ,
para com o ſeu calor fertilizar o Mundo, conforme
os tempos , e leys do Univerlo , imprimindolhe o
feu natural temperamento .

ENODIO . E quaes lað os pontos de cada grào


de fogo ?
ENODATO . O primeiro ponto do calor de
banho , he hum calor febril , ou de eſterco , o fe
gundo ſe chama ſomente de banho. O primeiro pon
to do ſegundo grão hc o ſimples calor da cinza ,
64 Ennaa , on Applicação do Entendimento ,

e o ſegundo o calor da area . Porém o fogo de care


vað , ou de flamma naó tem pontos , mas pela obra
ſe diſtingue pelo artifice, que lendo perito , conhe
ce le deve ſer mais , ou menos activo. Entre os Phi.

lofophos Hermeticos ſe nao admittem mais do que tres


grãos de fogo , a ſaber, de banho , cinzas , e arden
te , que comprehende o fogo de carvaó , é de flam
ma . O fogo de eſterco algumas vezes ſe diſtingue
do fogo de banho. Muitos Elcritores eſcondem
com as trevas de varias , e deſconhecidas palavras,
a luz do fogo dos Philoſophos Chymicos; porque tem
efte conhecimento por hum dos ſeus principaes ſe

gredos.
ENODIO . E como fe applica ) eſſes gràos de
fogo com os ſeus pontos à obra grande?
ENODATO : Na obra branca , como ſe puxa
ſó por tres Elementos, baſtao tres gràos de fogo ,
o quarto , que he o ardente , fica refervado para a
abra vermelha. Pelo primeiro grão ſe fazo Eclypſe
do Sol , e da Lua : pelo ſegundo ſe principia a rel
taurar a luz di Lui : Pelo terceiro recebe a Lua todo
o ſeu eſplendor ; e pelo quarto ſe exalra o Sol no
mais alto auge da ſua gloria. Mas em qualquer par
te ſe adminiſtra o fogo conforme as regras da Geo
mecria , de tal forte , que o agente correſponda à
difpofiçaõ du piciente , proporcionando -le juſta
mente as ſuas forças.
ENODIO . Supponho , que nao falta agora
mais do que fazerdes huma breve relaçaõ da applica
çaó deſtas couſas.
ENODATO . Tomay o Dragão Ruivo, ani
molo , e bellicoſo , em cujo naſcimento não falcou
tícnhuma força. Depois eſcolhey ſete , . ou nove
Agnias
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.111.cap.unic:9.8. 65

Aguias generoſas , cuja viſta ſe não offenda com


rayos do Sol . Lançay as Aves com a Fera em hum
carcere claro , e fortemente fechado , debaixo do

qual poreis hum vapor tepido , paraque le accen


da a peleija. Em breve tempo ſe cometerão com
dilatada , e obſtinada batalha , atè que finalmente
depois de quarenta e cinco , ou cincoenta dias prin
cipiaráo as Aguias a picar , e a deſpedaçar a Fera .
Morrendo eſta , inficionàra todo o carcere de podri
dão , e de veneno negro , com o qual feridas as
Aguias, tambem perdèráo a vida . Da corrupção dos
cadaveres fe gerarà hum negro Corvo , o qual le .
vantando pouco, e pouco a cabeça , augmentando
algum tanto o banho , começàra logo a eſtender as
fuas azas , e a remontar- ſe nos voos. Porém buf
cando Varedas , andarà voando à roda muito tem
po , vagando pelas nuvens , e região dos ventos ,
Vòs tereis cuidado , que não ache nenhuma porta
por onde fuja. Finalmente lavado com lenta , e die
latada chuva , e com o orvalho celeſte , que lhe
lançar em cima o Ceo ſereno , ficarà de huma can
diditlina cor. Mas o naſcimento do Corvo ſeja pa
ra vòs indicio da morte do Dragað. Para branqueae
o Corvo puxay pelos Elementos , e deſtilay pela
ordem determinada , até que ſe fixem na ſua terra ,
ficando reduzidos a pòs ſubtiliſſimos , e alviſſimos.
Acabada eſta obra , conſeguiſtes o voſſo deſejo pelo
que reſpeita ſomente ao branco.

ENODIO , E para conſeguir o vermelho , que


de deve fazer ?
ENODATO . Se quizerdes paſſar adiante ate
conſeguir o vetmelho , accreſcentay o elemento do
fogo , que falca à obra branca. Immovel pois o vas
I 10
66 . Ennaa , ou Applicação do Eritendimento ,

ſo , e augmentado paulatinamente por ſeus pontos


o fogo , apertay a materia , atè que ſe faça manis
feſto o occulto, o que ſe conhecerà principiando .
a apparecer cor amarella . Regey o fogo do quarto ,
grào pelos ſeus pontos , até que pela obra de Vul
cano das brancas allucenas nalcão purpureas roſas,
e cravos da Rochela ; mas não deixeis de puxar pe
lo fogo com o fogo , até que vejais a materia redu
zida à cinzas rubicundiflimas , e imperceptiveis ao
tacto , ou impalpaveis. Esta Pedra Vermelha vos le
vante o animo a couſas mayores , acções Catholi
cas, e heroicos procedimentos, favorecido com os
auxilios da Santiſlima Trindade.
ENODIO . Que vem a ſer propriamente eſle
pò vermelho ?
ENODATO . Aquelle Enxofre Philoſophica
he huma terra fubtiliflima muito calida , e ſecca ,
em cujo Ventre fe occulca abundantemente multi
plicado o fogo da Natureza , pelo que fe chama
fogo da Pedra ; porque tem em fia virtude de abrir,
e penetrar os corpos dos Metaes , e de os convers
ter , ou reduzir ao ſeu temperamento , produzindo
o que lhe he ſemelhante ; e por iſſo ſe chama pay ,
ou femen maſculino ; e àlem deſta grande activida
de , preſerva de moleſtias, cura enfermidades, di
Jaca as vidas , e finalmente transforma as idades.
f
ļ . ENODIO . Pòde-le augmentar effe femen maſs
culino por outro modo mais breve ?
ENODATO . Para fe augmentar infinitamen
te deve o Sabio , que tiver deſcuberto a Mina do
fogo celeſte , guardalla muito bem . Porém damef
ma materia , de que ſe gerou aquelle Enxofre fe
multiplica , accreſcentando huma pequena porção .

Lua,
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.TII.cap.unc.S.8. 67

fua, e cudo o mais , como tenho dico ; e ſe quereis


ſaber mais neſta materia , conſulcay a Raymundo
Lullio , que elle volo dirà nas ſuas obras , porque
nellas eſtá fallando , não com vozes aos ouvidos ,
mas com o Gilencio , e com os caracteres aos olhos.
ENODIO . Tenho ouvido tudo , e não tenho
percebido nada; porque entendendo o que dizeis,
não comprehendo o que explicais ; e deſejo que
me declareis eſta Philofophia , de force que ao me
nos polla entendella , quando não ſaiba praticalla .
ENODATO . Não vos poſſo declarar, nem
explicar mais eſta ſubciliſlima Philofophia ; mas pa
raque não fiqueis deſconfolado , tomay eſte papel ,
e lede u fonho , que nelle eſcrevi hontem pela ma
nháa, com tenção de volo dar para que o interpre
talleis. Elle me parece myſterioſo , e ſe o não enten
derdes , não vos appliqueis ao eſtudo da Chymica ,
porque náo haveis de tirar delle nenhum fructo .
>

SONHO ENIGMATICO.

Endo examinado todas as opiniões dos Phi

T lofophos Hermeticos, e ponderado codos osEnie


gmas com que os Adeptos explicàrão a mayor obra,
que a Natureza produz com os inſtrumentos da Ar
te , cançado jà de cáo grande trabalho , adormeci,
e comecey a ſonhar , que eſtava embarcado , e davá
logo àvèla , navegando com bonança pelas inquie
tas ondas do Oceano . Como não deſcobria mais que
Mar , e Ceo , delejava aviſtar , ou deſcobrir terra,
para me livrar de tão moleſta jornada , expoſta a
Eantosincommodos , perigos, e naufragios. Fuyme
0 engolfando , e perdendo o animo.com avilinhan +
lij
68 Ennaa , ou Applicação do Efitendimento,

ça da noite , e preſença de huma tormenta , táo


furiofa , que primeiro alterou o Mar , e depois de
fobverter o navio , me arrojou , abraçado com hu
ma taboa , a huma deſerta praya . Eiperey nella que
amanheceſe, e tanto que principiou a rir a Auto
ra do meu pranto , fuy caminhando pela terra den
tro , e com o naſcimento do Sol , deſcobri huns die
latados , e deſconhecidos campos ; porèin ſem cule
tura , eſtradas , nem varedas , por onde entendi,
que erão defercos , e defpovoados. Repreſentouſe
me na Phantaſia o meſmo , que no ar oftenta a Na
cureza , quaſi todos os annos , no mayor calor do
Eftio , junto da Cidade de Rheggio , do Reyno de
Napoles, na Calabria Ulterior, à qual repreſenta
ção chamão os moradores da dita Cidade Morgana.
He eſte efpectaculo humaformade Theatro , aberto
da parte do Eſtreito de Sicilia , no meyo dos vapo
resdo ar , em que apparecem com tão admiravel,
como repentina architectura ,Caſtellos , e Palacios
com arcos magnificos , e columnas equidiſtances ,
e eſtas em tão grande numero , que certo Padre da
Companhia em humaRelação, que fez do dico ef
pectaculo , ao Padre Leão Sanctio da meſma Com
panhia , Perfeito dos Eftudos do Collegio Roma
no , affirma , que lhe parecerão mais de dez mil , co
das belliflimas , com proporção , e cor admiravel ,
e pouco a pouco deſvanecendo os primeiros obje
Etos , fuccedem , como em differentes ſcenas, e ap
parencias , boſques ameniſſimos, cipreſtes , e arvo
res mayores em fileiras , e campos abertos , cheyos
de homens , e gados de muitas caſtas. O Padre Kir
cker no ſeu livro intitulado Ars Magna lucis , de um
bre , com razóes náturaes, fundadas na Catoptria
ca.
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog. 111.cap.inic.8.8. 69

ca, doutamente moſtra a poſibilidade deſte mara.


vilhoſo appararo , pela proporcionada miſtura de lu ,
zes , e ſombras , formando - ſe no meyo dos vapo
res mais craffos , oppoſtos ao monte , huma opaci
dade , com varios angulos de incidencia , e refle
xão , da qual reſulta hum perfeito eſpelho polye
dro , que de hum ſó objecto , v.g. de huma ſó com
lumnia , que acaſo eſtará na praya , fe reflecte hu
ma prodiginſa mulcidão de columnas , e afim do
objecto de hum fó animal ſe multiplicão as eſpe
cies em numerofo gado , de huma arvore ſe faz hum
boſque , e de hum homem hum exercito . Dema- '
neira , que aſſim como dos objectos da praya fóra
ma a Natureza no ar aquella vaporofa pompa ; af
ſim tambem dos objectos deſta terra formou na mi
nhaPhantaſia eſte myſterioſo eſpectaculo .Caminhey
contra o Sol , que vinha naſcendo , buſcando nas
ſuas luzes o meu refugio , e remedio ; e depois que
fubio alguns graos ſobre o Horizonte , deſcobri por
baixo delle alguns montes , que fuy demandando , e
reconhecendo . Cheguey perto delles junto ao meyo
dia , e entrando por hum valle , que ficava entre
dous montes muito altos , a poucos paſſos fuy deſco- .
brindo ao pé , ou raiz dos outeiros que ſe ſeguião , va
TO rias plantas pequenas de muito diverſas cores, e figu
ras ; porquenão ſó erão verdes , mas brancas , ama
rellas , azuis , pardas, e negras . Permanecião eſtas
Plantas muito viçofas , ſem haver naquele lugar
agoa , que as regaſte , nem peſſoa alguma, que as
OS cultivarſe. Atraveſſey outros montes, que eſtavão
adiante , veſtidos todos com as meſmas plantas , e
13 deſta forte fuy caminhando até que vi ao longe hue
ria mas ſerras muito alcas ., que eſtaváo cubertas de viſs
tofas
70 Enned; on Applicação do Entendimento ,

tofas arvores. Amimey -me a reconhecellas , e deo


pois de grande trabalho , cheguey cançado a hum
admiravel, e delicioſo boſque, que me palmou pe
la extraordinaria contextura do ſeu prodigiolo ar
Voredo,
As primeiras arvores que vi , tinhão os tron
cos , ramos , e folhas cubertos de cinzas , e os ſeus
fructos pareciáo beringellas : adiante eſtaváo outras
plantas , cujos troncos pareciáo feitos de eſcamus
de peixe , e os fructos erão ſemelhantes a pedaços
de requeijão. Para hum lado eſtáváo humas arvo
res , cujos troncos, ramos, e folhas erão tecidos com
cravos da India , e os fructos erão da cor de ver
melho eſcuro . Da outra parte eſtaváo outras plan
tas , cuja caſca , e folhas eráo parecidas às caſcas das
avellans , e os fructos eſtavão muito verdes. Em
hum outeiro mais baixo eſtava huma Arvore fingu
lar ; porque o cronco , ramos, e as folhas erão for
madas de gocas de agoa , que fuftentaváo humas às
outras , e os fructos pareciáo jaſmins. Da raiz def
te outeiro ſobia hum monte mais alto , que os ou
tros , onde eſtarão duas arvores mais prodigioſas ,
c admiraveis , do que todas quantas eu tinha viito ;
porque huma ciaha o cronco , ramos e folhas de

Prata , e os fructos erão como aſſucenas ; e a outra


tinha os fructos de purpura , e as folhas , ramos ,
c tronco de fino Ouro .
Junto a eſta ultima Arvore eſtava aſentado
hum veneravel Anciáo , que tinha colhido hum frue
cto della , do qual eſprenico na mão huma fó goe
ta , e apenas lhe cocou com a ponta da lingoa , e
a engullio , ſe transformou em hum mancebo de
poucos annos , ou quando menos parecia moço ,
e
fen
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog. III.cap.unic.5.8. 7 !

fendo na idade muito velho'; porque as forças, co


res , e ſaude erío as mais perfeitas da noſla idade.

Cheguey - me admirado para elle , e com huma gran,


de reverencia , -lbe diffe , que tinha naufragado , e
andava naquella montanha perdido ; mas que de
lejava conhecello , e informarme da terra em queef
tava , para ſaber ſe poderia voltar para a minha Pa
tria , e offerecer-me para o ſervir na minha peregrid
nação. Reſpondeo -me o Ancião , ou renovado Man
cebo , que eſtimava muito a minha vinda , e a nova
occaſião de ſervir huma poderoſiſlima Emperatriz,
como ſeu primeiro Miniſtro , que era , havia mais de
trezentos annos , do feu univerſal Imperio , ſem ter
outra occupação , nem obrigação mais do que en
ſinar aos curioſos Peregrinos, moſtrandolhes as ma
ravilhas daquelle Reyno. Perguntey -lhe como le
chamava , para nomeallo com decencia , e reſpei
to ; porque em huma converſação , algumas vezes
ſería neceffario tratallo pelo ſeu titulo. Refpondeo
mę , que o ſeu nome , e o ſeu titulo era o de Philo .
fopho , e que eu não tomaria naquelle Reyno ou
tro nome , ſenão o de Peregrino. Com eltes no
mes nos tratamos algum tempo, e por agradecimen

‫ولی د‬ to deſte fonhado beneficio ; e memoria deſte fantaſ

0010 tico Philofopho escrevi com elles o ſonho , por


modo de Dialogo.
PEREGRÎNO. Com a voſſa occupação he

ipais enſinar ignorantes Peregrinos , e moſtrar-lhes as ma's


ravilhas deſte Imperio , dizeyme que terra he eſta;
.. ‫ܘ‬
e quem he a Emperatriz , que a domina ?
PHILOSOPHO. Efta he a montanha de hu

ma grande quinta , em que habira huma Senhora
muito ſabia , e tão poderoſa Emperatriz , que do
m.no,
mina
lens
72 * Ennet , ou Applicação de Entendimento ,
mina abſolutamente o Mundo todo , mas com ma

yor goſto vive neſta quinta , como quinta eſſencia


de todas as quintas.
PEREGRINO. Como pode eſta Senhora do
minar a todo o Mundo , eſtando elle dividido en
Reynos , e Imperios, Republicas, e Principados,
os quaes governão varias Peſſoas, com tantos titu
los , como os ſeus deſejos, e penſamentos?
PHILOSOPHO . Efes chamados Monarchas

todos faó vaſſallos , e feudacarios da minha Empe


ratriz ; porque todos os inſtantes lhe pagað indiſ
penſaveis cributos.
PEREGRINO . Não poſſo deixar de enten
der, que tão omnipotente Emperatriz he a Santil
fima Trindade; porque ſó Deos Trino , e Uno
he verdadeiro Rey dos Reys , e Senhor dos que
dominão o Mundo.
i PHILOSOPHO. Naó he Deos eſta grande,
e Soberana Senhora ; porque he creatura ſua , e tem
mais de natural , que de divina .
PEREGRINO . Como le chiama eſta Senhora,
que deſejo conhecella ?
PHÍLOSOPHO . Nao podeis ignorar - lhe o ſeu
pome , ſendo ella tão famoſa , e nomeada no Mun
do; porque lhe obedecem todas ascreaturas , como
a May , e a todas ama , como filhas.
* : PEREGRINO. Agora encendo , que fallais
da Natureza , de quem lois primeiro Miniſtro, co
mo Philoſopho ; e venturoſo ſerey neſta peregrina
ção ſe vòsme explicais os myſterios deſta fua pro .
digioſa quinta.
PHILOSOPHO. Naó vos poſſo explicar os
{ egredos da Natureza , te ròsnão civerdes perce
dido
.

1
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog. III.cap.unic. S.9 . 73

bido os myſterios da Philoſophia ; porque nao coſ


tumo fallar lenão com quem me entenda.
PEREGRINO. Eu ſe nað fou Philoſopho , ao
menos eſtudey Philoſophia com o mayor Meſtre del
ta Sciencia de entendidos; porque reſpondendo, e
diffolvendo todas as duvidas alheyas , para os leus
argumentos nunca houve repoſta. Foy o terror das
Aulas , o paſmo , e admiração dos Sabios . Pequeno
elogio ſeria da conſumada ſciencia do grande Padre
Simão de Almeida , filho da ſempre eſclarecida , e ſa
pientiflima Companhia de JESUS , exceder na Sa
bedoria aos Platoes , e aos Ariſtoteles, que fouberão
pouco , e ignoraráo muico; mas ſendo alumno da Ca

ja da Sabedoria , os mayores Meſtres della podiáo


ſer diſcipulos felis ; e mayor eſtimação fiz eu ſempre
dette glorioſo nome de ſeu diſcipulo ; do que do
grào , que na Univerlidade de Coimbra ſe me deu
de Meltre ; e ſe com o trato de tão grande Philo
fopho tenho algum merecimento , participando del.
le a luz da Philofophia , peço -vos que me digais ,
para que eſpremeltes , e engoliſtes o çumo do pro
digiolo fructo deſta Arvore ?
PIILOSOPHO . Para conſervar os humores
sok
do corpo na ſua natural harmonia , expellindo o no
SUP
civo , è confervando o util para a faude ; e com al
gumas gotas , que tomey em diverſos tempos , te
nho vivido mais de tres ſeculos , e creſcendo cada
vez mais os . annos , parece - me que tenho menos;
porque me vejo com as forças , e alentos da mais
robuſta , e florida adoleſcencia .
PEREGRINO . Permittime , que colha , e le

a ve comigo hum fructo deſta arvore para me apro .


Car
veitar das ſuas virtudes .
K PHI
stw
74 Enn & a , 01 Applicação do Entendimento ,
PHILOSOPHO. Liberdade rendes para os co
Therdes rodos ; porque a Emperatriz a ninguem ne
gou atègora cfla licença.
PEREGRINO. Com toda eſta diligencia , e
forçu que eſtou fazendo, não poſſo colher nenhum
fruito deſta planta , e o mais que tenho conſegui
do he arrancarlhe algumas folhas ; porque os fru
ctos ſe eſcondem dentro dos troncos . Dizcyme , Se

nhor , le partindo eſtes ramos , acharey dentro os


ſeus fructos ?
PHILOSOPHO. Os fructos deſta arvore não

fe colhem com força , neni com violencia , ſenão


com ſciencia, e arte. Para colherdes eſtes fructos,
deveis primeiro examinar a natureza das arvores ,
que eſtáo neſtes montes circum viſinhos.
PEREGRINO . Como eſtas plantas ſaõ tão di
verſas , ſerà muito dilatado eſſe exame.
PHILOSOPHO. Enganais - vos com a ſua ap
parencia ; porque ſendo differentes na cor , e figu
ra , todas ſao o meſmo na raiz ; e paraque vos de
fenganeis com a viſta dos voſſos olhos , agora yc .
reis as raizes de todas eſtas plantas , quando eu fe
rir a terra com o primeiro golpe delta vara. Dizey
me, que vedes depois que eu dey o golpe ?
PEREGRINO. Vejo que todas as arvores tem
a raiz deſcuberta , e codas eſtas raizis ſaš brancas ,
e ſemelhantes, entrando todas perpendicularmente
pela terra dentro , aonde ſe ſuſtentão fem nenhu .
ma agoa .
PHILOSOPHO. Não vos admire a conlerva
ção deſtas plantas fem agoa , porque fe bem adver
tirdes , vereis que por baixo deſſas raizes perpendi
Fularmente vein lubindo dous fumos , cada hum por
fua
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.III.cap.unic.S. 8. 75

ſua parte , os quaes em chegando às raizes , ſe jun .


tão , e formão hum ſó fumo , que fem paſſar adian
te , fica nas raizes pegado. Eſtes fumos laó a mate :
ria , e a agoa de que ſe formão , e luſtentão as rai
zes deſtas plantas ; e conforme a terra , allim pro
duzem diverſas arvores eſtas raizes . Porém no co

ração deſtas plantas eſtà occulto hum callo , de que


fe faz hum balſamo de cáo raras virtudes , que a me
nor de todas he , facilitar a colheita dos fructos da
Arvore de Ouro , ſem mais trabalho , que tocar com
elle nos ſeus ramos .

PEREGRINO. Não fey como ſe pode deſco


brir , nem tirar eſſe tallo , ſendo os troncos deflas
ar vores quaſi impenetraveis .
PHILOSOPHO. Não fað tão impenetraveis
como vos repreſenta a voſſa imaginação ; porque com
os golpes da minha vara qualquer dellas" moſtra
logo o tallo ; e paraque vos delenganeis com a ex
periencia , noray os effeitos que ella faz com o teu
coque neſta planta , que parece formada de gotas
de agoa .
PEREGRINO . Com o primeiro toque da voſ
fa vara ſe fez a arvore toda negra. Cahir.olhe os
samos , e as folhas , e abrindo-le juntamente o tron
co apparecco no moyo delle hum branco tallo .
PHILOSOPHÓ. Colhey eſſe tallo precioſo ,
para conſeguirdes com elle o que vos falta.
PEREGRINO. Eſtà colhido ; e que devo fa
zer agora ?
PHILOSOPHO. Ponde - o fobre os voſſos hom
bros , e hide preſentallo à Emperatriz , para que lhe
lance a benção ; e volcay logo com elle a eſte lugar ,
onde vos eſpero deitado ao pé da arvore de Ouro .
Kij PERE
76 Emæa, 01 Applicação do Entendimento ,

PEREGRINO . He tão grande a vontade de


hir , como a ignorancia do caminho ; e accrefcenta
a difficuldade não ſaber a lingoa da terra , nem ter
na Corte nenhum amigo , que me facilite audien
cia de tão grande Mageftade.
PHILOSOPHO . O caminho heelte fó ; leo fe .
guirdes direitamente, fem vos inclinardes a nenhumë
das partes contrarias , no fim achareis o Palacio Im
perial. O callo que levais vos ſervirà de lingoa , e
conductor. Porèm caminhay ſem parar de dia , e de
noite , atè aviſtardes o Paço da Emperatriz.
PEREGRINO. Quanto tempo ſe gaſta peſta
jornada ?: 7
PHILOSOPHO.Huns peregrinos chegáo mais
tarde, queoutros , e alguns ſe perdem no caminho,
.e todos eſtes ſucceſſos dependem da pureza dotal
bo que levão ; como eſſe que vos levais eſtà bem

puro , elle vos alentarà para que não canceis; e pa


ra não errares o caminho fera huma certa guia.
PEREGRINO. Fuy caminhando com o meu
tallo ao hombro por eſtrada plaina , e direita , mas
ſempre deſerta , aliviando com o freſco da noite
o grande calor , que o Sol cauſava de dia ; cami
ahey ſempre coin tempo ſereno , ſem aviſtar nem
huma pequena nuvem . Não encontrando na eſtra

da peſſoa algunia via muitos pallaros , e pelas ma


drugadas orvalho ; e paſſados muitos dias aviſtey
omagnifico Palacio da Emperatriz, que buſcava. Na
fua circumferencia eſtavão muitos Cortezios , que
ſe parecião com o Philofopho , porèin erão mais
inoços , e todos ſuſpenſos olhaváo para a Empera-;
triz , a qual eſtava aſſentada em hun eleyadillimo
tudo .
throno , e riquillimamente adornada com
quan :
Sobre a PedraPhiloſophal.Dialog.111.cap.i.nic.9. 8. 77

quanto produz o Univerſo. Cheguey confiadamen


te aos ſeus pés , ſem que ninguem mo impediſe,
nem ella mo eſtranhaſſe , e ajoelhando , com grande
reverencia , puz o tallo à ſua viſta ; o qual logo
floreceo tanto , que ella com ſemblante agradavel, e
riſonho lhe lançou a fua bençaõ ; e logo me deſpa
chou remettendo - me ao Philofopho , paraque me en

finalle o que ignorava . Beijeilhe a mão , com de


monſtração do meu agradecimento , e voltando pe
la meſma eſtrada , me achey em poucas horas na
companhia do Philofopho , que eſtava deitado ao
pè da Arvore de Ouro; e preſentando -lhe o tallo ,
Ihe diſſe , o que me ordenàra a Emperatriz , para
que me enſinaſſe o que devia fazer.
PHILOSOPHÓ. Colhey eſſas flores do tallo ,
e pondeas fobre huma folha da arvore , que eſtiver .
mais expoſta ao Sol , e obſervay com grande cau
tela o fucceſſo.
PEREGRINO . O calor do Sol derrete a fos
lha , e as flores , e tudo fica reduzido a huma maſſa .
PHILOSOPHO . Deixay obrar o calor do Sol,
e vereis que eſſa maffa fe converte em hum fructo,

femelhante aos que produz continuamente a Arvo


re de Ouro.
INC
PEREGRINO. Eſtou admirado vendo eſſa
transformaçao .
PHILOSOPHO . He chegado o tempo de o
collerdes ſem nenhuma difficuldade , e de vos apro
veicardes das ſuas virtudes.
PEREGRINO . Aqui o tenho ; e para que me
ferve eſte fructo ?
PHILOSOPHO . Bisfregay com elle as folhas
das outras arvores , e vereis , que todas ſe con
yer ,
78 * Ennea , on Applicação de Entendimento,
verteni em folhas da Arvore de Ouro:
PEREGRINO . Rara maravilha ! Alim o ex ,

perimento. Eſtou vendo as transformações, e não as


creyo . Pareceme eſte bolque a methamorphole de
Ovidio. Dizeime , Senhor, poderey tambem tirat
delte fructo aquelle cumo , que vos vivifica , co
mo lemos , que Medea convertera de velhos em
mancebos a Efon , e a Echa ?
PHILOSOPHO. Eſe he o principal effeito
delte fructo ; e ſe elle nao tivera eſta virtude nað
teria canta eſtimaçao ; lançai - o na mão , e engolin
do - o para baixo, logo experimentareis hun raro pro
digio.
PEREGRINO . Nao tenho outra duvida para
bebello ſe nað o juſto receyo de me tornar a ver me .
nino ; porque fe eſte fucco vos transformou de ve
lho em moço , tambem converterì em menino hum
mancebo ; e não queria agora verme de caó pouca
idade fogeico às pensóes da infancia. Não me que
ro ver moço , tendo ſempre amo , nem quero ſerno
vo , naſcendo velho , eu medou por fatisfeito com
eſta idade.
PHILOSOPHO. Efte fucco não diminue
accreſcenta o numero dos annos ; porque dilara a vi
da a quem o bebe ; mas ſem diminuir a idade , con
verte os velhos em mancebos ; porque ſendo en de
trezentos e oitenta annos, eſtou com o vigor da mi
nha adoleſcencia .
PEREGRINO . Pois reſolvome a tomallo , pa
ra viver , ainda que febricitante , com toſſe , pernas
inchadas, c tolhido, como vim eſte Outono das Cal.
das , e para me livrar do funeſto prognoſtico , que
là mae fez o mayor Medico da Europa.

PHI
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.III.cap.i.nic.9.8. 79
PHILOSOPHO . Se vòs o tomardes , logo fi
çareis livre de todas eſſas , e quaeſquer outras mo
leſtias.
PEREGRINO . Eu o tomo , e jà vou ſentindo
cs braços , e as pernas livres , e delembaraçadas, o
corpo freſco , o peito livre , deſvanecida a coffe, é a
cachexia ; e o que mais me admira he nutrirne de
repente , eſtando muito extenuado. Se me não en
gana a minha imaginação , brevemente paſſearey pe
las ruas , reſticuido à minha faude ; e com eſte gof

to , que não foy pequeno , me alterey de ſorte , que


de repente fiquey acordado , reconhecendo , que
tudo iſto era ſonho.
ENODIO . Tenho lido com muito goſto , e
contemplado com grande ponderação o voſo ſonho;
e pareceme tão myſteriolo , que o levo para eſtu
dar por elle
o que deſejava ſaber, e não podia del
1
cobrir em outros eſcritos. Não lhe darey o credico
que merecem os fonhos propheticos de Jacob com
os Anjos da eſcada: os ſonhos de Joſeph com a ado
ração das Eftrellas : os ſonhos de Pharaò com a fi .
gura das vacas ; e os fonlios de Nabuco com os Me
faes da Eſtatua ; mas obſervarey as circunſtancias do
fono, para penetrar naturalmente o ſeu myſterio
fo ſegredo . Por eſte modo refere Herodoto no Li
vro terceiro , que fonhando a filha de Policrates ,
que via a ſeu pay no Ar , previo morrer elle pouco
tempo depois enforcado . O Emperador Mauricio
vio em Sonhos a tragedia da ſua morte , executada
violentamente por Phocas . E Phormaco , ſegundo
no Livro decimo eſcreve Herodoto , conheceo a fua
futura enfermidade , ſonhando com a imagem da

ſua doença . Agora com eſtes exemplos , e como Ar.


temi.
80 Ennea , 011 Applicaçað do Enten dimento ,

temidoro , Author Greg) , compoz hum livro , em


que pretende dar regras certas , para a interpretação
dos ſonhos , com grande curiolidade, e attenção
vou logo ver em Luciano a engenhola deſcripçio
que faz da Ilha dos Sonhos , para ver ſe poſlo en
tender o ſonho deſta Ilha. Se eſcreveſtes ſobre er.
ta materia mais alguma couſa , peço - vos , que me
não occulceis os voſſos eſtudos, e ſegredos.

S. IX.

Teftamento Hermetico .

ENODATO. Aó permittio o' Emperador


N Nero a ſeu Meſtre o grande
Philoſopho Seneca , que teſtaſſe de ſeus bens, el
tando condemnado por elle à morte ; mas o grande
Philoſopho deixou aos ſeus amigos a ſua vida por
kerança ; porém eu vendo-memuito enfermo , co
mo ſem propofito fe me repreſentou tambem no lo
nho , antes que partile para as Caldas , fiz o meu tel
tamento neſtas decimas , no qual lhe deixava o meſ
mio teſtamento por iegado. Seneca foy tão rico , que
teve fete milhões , e meyo de renda , e não pode
teſtar na morte , ſe não da vida que acabava ; e éil
teſto de huna vida , que dura , e de huma riqueza,
que le não extingue .

Si en
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.III.cap.uric.S.9. 88
1
Si en Mercurio no alterado ,
Diffuelves Oro nativo ,
El Rebis has conſeguido ,
Y el fermento deſeado :
Ponle en vaſo ſigilado ,
En fuego lento a coſer ,
Advertiendo , que ha de ſer
Tan ſuave el movimiento ,
Que folo el entendimiento ,
Pueda llegarlo a entender.

La fabia Naturaleza ,
Por devidas digeſtiones ,
Llega a lograr las funciones
De los trabajos que empieza :
Aburrece la fiereza ,

Del fuego conſumidor,


Y ula del con tal primor ,
Y can fingular repolo ,
Que es un fuego vaporoſo ,
El arte de ſu lavor.

Lo Animal , lo Vegetable ,
Lo Mineral , que produze ,
Eſta regla lo conduze ;
A una perfeccion loable :
De un principio , que es notable ,
Tres coſas en concluſion ,
Saca por leparaccion ,
Y.puras buelve a juntar;
Pero no ſe puede hallar
Efto , lin putrefaccion.

L AI
82 Ennea , 011 Applicação do Entendimento ,

Al Camaleon parecido
Es el licor no alterado ,
Y antes de eſpecificado ,
Le ajuſta qualquier veſtido :
En Mercurio convertido,
Pierde el nombre univerſal,
Y aſi llorando ſu mal ,
En lagrimas ſe deshaze ,
Y ſolo te ſatisfaze ,

Con lo que guarda de Sal.

En dos alas ſolamente ,


Conſiſte toda la Obra ,
Y lo de màs codo ſobra ,
Porque es engaño patente :
Toma un cuerpo permanente ,

Y aun que te culte diſvelo ,


Abate el Aguila al ſuelo ,
Y no la dexes bolar ;
Porque el intento es hallar ,
Modo de unir Tierra , y Cielo ,

El Fuego , y el Agoa ſon ,


El inſtrumento preciſo ,
Con que el Philofopho quilo ,

Diſponer la perfecion ;
El Agoa por la ablucion
Lo terreno purifica ,
Y el Fuego es quien clarifica
El veneno arſenical ,
Y afli encuentra lo eſſencial,
Quien los accidentes quita.

Ena
Sobrea PedraPhilofophal.Dialog.111.cap.unic.S.9. 83

En qualquier grano ſabemos ,


Que ay virtud vegetativa ,
Pero en lugar de la activa
Virtud no le conocenios :
Si la ſemilla ponemos ,
En la Tiera alli el vapor
Central , y el ſalino humor
Concurriendo a un melno punto ,

Deſpiertan en el conjunto ,
El Vegetante vigor .

La ceniza aquien la ardiente


Llama voraz conſtitue ,
De una verdad nos inſtrue
Por experiencia evidente ,
Que coſa ay màs permanente ,
Que ſu philica fubſtancia ,
. Pues es tanta la conſtancia ,
Con que puede mantener - ſe ,
Que no rehuſa exponer -ſe ,
Del Fuego a la vigilancia,

Aſi el Philoſopho atento ,


La Natureleza ſigue,
Y ſi no yà màs conſigue,
Lo que buſca tan fediento ,
Diſcurre el proprio alimiento ,
Con que qualquier planta creſce ,
Mira con lo que apereze ,
De la Tierra la humedad ,
Y luego la qualidad ,
Del Fuego com que la cueſe.

ENO .
L ij
84 Ennea , ou Applicação do Entendimento ,

ENODIQ . Mais rico fico com eſte voflo le


gado , do que Nero com a herança de Seneca ; e
para eu poderaddir eſta herança , haveis- me de de
clarar como poſſo fazer a tranſmutação dos Metaes
em Ouro , e Prata.

$. X.

Metemfomatoſis do Chumbo em Prata .

ENODATO . Dmittio o antigo Philofopho


A
fis, ou tranſcorporação com que os corpos elemen
taes ſe transformáo , do que ſe rio com muita razão
Tertul. lib.de o grande Tertulliano ; e receyo , que tambem vos
Aniin.cap.22 . provoque a riſo a tranlmutação , que agora vos de
claro de dous corpos mixtos. Diſolvey huma onça
de Prata fina em Agua Forte ; e precipitando -a com
Eſpirito de Sal , ficarà no fundo humamateria le
melhante ao requeijao. Tiray toda a humidade , e
lavay eſta materia duas , ou tres vezes com agoa
quente , e depois de ſecca , achareis huns pòs mui
to brancos. Fundi cres onças de Chumbo , e can
to que eſtiver derretido , lançailhe paulatinamen
te os pòs da Prata , a qual ſe diſolverà em forma
de oleo.Tende cuidado não caya dentro da Obra
algum carvão , ou braza . Tanto que a materia eſti
ver derrecida, tiray o cadinho fóra do fogo , e dei

хау esfriar tudo , eſtando o cadinho capido. Depois


que tu lo eſtiver frio, quebray- o, e feparayo Chum
bo da Prata , que eſta por cimaem forma de maſſa .
Copellay eſte Chumbi , e achareis huma onçı de
Praça de copella. Eſta tranſmutação fez o Eſpirito
da
Sorbe a Pedra Philofophal. Dialog.III.cap.unic.S .10.85

da Prata , penetrando , e purificando o Chumbo.


Não ſe tira della nenhuma utilidade , mas colhe -ſe
deſta operação hum grande documento , porque vos
dà luz para fazerdes huma grande fortuna , ſe ſoube
res reduzir a corpo a maffa da Prata ; e daqui pode
reis facilmente paſſar ao verdadeiro conhecimento ,
de fazer as tranſmutações dos Mecaes viz em fino
Ouro. Não vos revelo o legredo , como enigma
ticamente fizerão Santo Alberro Magno , e outros
Hermeticos ; porque não quero fatisfazer à cubiça
dor ambicioſos , ſenão à curioſidade dos Sabios.
ENODIO . Os Sabios não le contentão da cu
rioſidade, ſe juntamente não he util ; e não ſe po
dem fatisfazer com eſta operação , em que vos con
fefrais , que não ha utilidade .

ENODATO.Neſta operação não há convenien


cia ; porque ſe tira a meſma Prata , com que ſe faz
a Obra ; mas propoem hum exemplo , para ſe conſe
guir o modo de fazera Pedra Philofophal , de que
reſultem ao deſcubridor deſte legredo asmayores
conveniencias, e utilidades ; e para queas vejais deſ
cubercas, ouvi humas largas, e grandes palavras, que
eſcreveo o Padre D. Rafael Bluteau fallando da mel- Bluteau. Vo:

ma Pedra . Pedra Philoſophal, dizelle, ſe houve, ou ſe cab . Tom . 6.


ha tal pedra no Mundo , não he propriamente pedra, lit.P.fol. 353 .
mas he amateria , com que alguns Philoſophos , ou
Alchimiſtas pretendem fazer artificialmente Ouro. O
mayor argumento , com que ſe coſtuma impugnar a
pofſibilidade deſte artificio , he que não ſe pode na
turalmente mudar huma couſa de huma eſpecie pa
ra outra , como he fazer do Eſtanho Prata , ou da
Prata Ouro. A eſte argumento reſpondem os Pro
feſſores deſta Arse, que os Metaes não faó eſpeci
fica
**
86 Ennæa , ou Applicação do Entendimento ,

ficamente , mas fó accidentalmente diverſos ; e que


a tenção , ou intento da Natureza, que ſempre ten
de aos mais perfeito , he fazer de todos os Meraes
Ouro ; o que de ordinario não conſegue , ou por
que das veas da terra fe virão antes do tempo re
quilito os Metaes imperfeitos , e indigeftos ; Oui
porque nosmontes , em que ſe vão creando , contra
hem , como as crianças no ventre materno , as ime ?
mundicias , e impuridades da terra , ſua matriz ; e do
meſmo modo , que hum homem por ſer pallido ,
amarello , e doente , não differe eſpecificamente da
quelle , que he còrado , vermelho , e bem difpof
to , aſſim não differe hum Metal de outro effencial

mente , mas ſó accidentalmente , por ſer mais , ou


menos puro , ou impuro , ou mais, ou menos fam ,
ou doente , como v. g . o Chumbo , que pela mui
tas fezes , que tem , he o mais impuro dos Metaes,
e o Ouro ſummamente apurado , e por conſequen
cia lummamente compacto , porque homogeneo , e
por iſſo mais difficultoſo de diflolver, he dos Mes
taes o mais puro.
A Pedra pois Philoſopbal, ou o pò , a que cha
maõ de projecçaõ lançado ſobre o Metalmais impu
ro derretido , ſe tivera a virtude , que ſe lhe ateria ?
bue , não transformaria eſſencialmente o Metal , mas
fazendo evaporar as fezes, e materias herorogeneas,
ficaria Ouro aquella parte , que a Natureza deſtinou
para eſte effeico; e aſim como com a chamma de hu
ma vèla ſe converteria logo em fogo hum monte de
polvora , aſſim com a Pedra Philofophal, Ouro vi
tal dos Philofophos, ſe converteria em Ouro perfeito
hum mar de Metal liquido , e diſpoſto para receber
a cfficacia da ſua impreſſao ( como advertio na ſua
Chrys
Sobre aPedraPhilofophal.Dialog .111.cap.unic.S.10 . 87

Chryſopeia Augurello ) nem tão pouco ſe augmen


taria a difficuldade deſta transformação com a bre
vidade do tempo , porque ſegundo Ariſtoteles no
quinco livro da ſua Phyſica , allim como ha mortes
repentinas, e violentas, concrapoſtas ás que chama
mos naturaes, tambem hà producções, ou genera
ções anticipadas , e quaſi inſtantaneas , que abbre
viáo o curſo , e methodo ordinario da Natureza. Co
nheço , que eſtas, e outras muitas razões , que nel
te lugar ſe poderiáo trazer , ſem experiencia ſaó fri
volas ; porém não me poſſo reſolver a negar abſo
lutamente a poſibilidade da Pedra Philofophal; quan
to mais , que o Padre Martinho delRio pergun
tando nas ſúas Diſquiſições Magicas , fe a Pedra Phie
lofophal, ou a Arte de fazer Ouro , he Arte diaboli
ca , affirma , que não , e certifica , .com exemplos
que traz , que por doze differentes modos naturaes
ſe pode fazer Ouro. Tambem não acabo de me per
fuadir , que todos os. Authores antigos , e moder

nos, que ſeriamente , e com altiſſimas razões phi


lofophicas tratarão eſta materia com grande eſtudo ,
e fem emolumento algum , quizeſſem inculcar aos
Leitores das ſuas obrasfabulas por verdades. Verda
de he , que algumas experiencias, que parecem abo
nos deſta Arte , bem conſideradas , e examinadas
fao enganos.
Na Cidade de Florença em Italia , entre as
precioſas curioſidades , que ſe moſtráo na famoſa
Galaria do Gráo DuquedeToſcana, ſe ve hum pré
go meyo Ferro , e meyo Ouro . Eu o vi mais dehu

ma vez , e quem o moſtrava , dava a entender , que


a parte do dico prego , feita Ouro , era milagre da
Pedra Philofophal, obrado por hum Chymico , que
por
88 Ennæa , ou Applicação do Entendimento,

por aquellas partes paſſara , e deſapparecèra .Dahi


! a alguns annos paſſey de Italia para França, e de
! França para Portugal, aonde tive a honra debei
1 jar asmãos ao Grio Principe de Toſcana, hoje Cof
mo III . e na Cidade de Lisboa praticando com el
le ſobre a poſibilidade da Pedra Philofophal, admi
rado de que elle a impugnaſſe , procurey firmalla
com o prego ; mas foy o dico Principe ſervido deſ
enganarme, dizendo , que a parte aurea do dico prè
go, não era tranſmutação de Ferro em Ouro , mas
união de hum bocado de Ferro com Ouro , e eſſa
cáo ſubril , que ficara imperceptivel ao tacto , ea
viſta. Por eſte , e outros modos, e artificios, mui
cos fallos Alchymiſtas delacreditárão eſta Sciencia ;
porém não falcão liomens de bom juizo , que lhe dem
algum credito , e ainda que o Abbade Furetiere ,
no feu Diccionario Francez a deſpreze, como deli
rio da imaginação , e occupação de loucos, parece
quiz a Academia Real de França dar a eſta Arte
alguma probabilidade no feu . famoſo Diccionario
pag. 212. aonde diz , que Nicolao Flamel , Fran
cez de Nação , com a intelligencia de hum livro ,
que lhe communicàra hum Judeo , chamado Abra
ham , chegou a fazer Ouro em tão grande quanti
dade , que docàra com boas rendas quatorze Igre
jas , e outros tantos Hoſpitaes em França, e que vi
vendo em hum tempo , em que era muito mais ra
ro , que hoje o dinheiro , a ſaber , nos annos de
1393. e 1413. gaftára em obras pias mais de dous
milhões de cruzados .
O theſouro da ſaude , que tambem por meyo
da Pedra Fhilofophal fe eſpera , he muito mais elti
mavel , que o das riquezas . O fundamento deſtael
perans
Sobre a Pedra Philoſophal.Dialog.I11.cap.unc.8. 10.89

perança he , que fendo a Pedra Philofophal o corre


< tivo dos vicioſos exceffos dos tres principios , ou
elementos da Philofophia Chymica , a ſaber , Sal,
Enxofre, e Mercurio , que faó a cauſa das doenças
dos Metaes imperfeitos ; tambem as enfermidades
do corpo humano ſe origináo de algum exceſſo dos
tres ditos principios, ou por qualidades terreas ,que
he o que chamão Sál , ou por qualidades oleoſas,
e igneas , que he o a que chamão Enxofre, ou por
qualidades aquofas , que he o que chamão Mercu
rio ; e nos corpos , como nos Metaes deſtroe a Pedra
Philofophal eſtas nocivas qualidades ; e -eſta le a ra
zão , porque a Pedra Philofophal ſe chama Medici
na Univerſal. Entre as experiencias deſte prodigic
ſo preſervativo das enfermidades corporaes , huma
das notaveis he a que temos na peſſoa de Federico
Gualdo, que no anno de mil e feilcentos e oitenta e
dous , por conjecturas bem fundadas , pallava de tre .
zencos annos de idade, improviſamente delappare
ceo da Cidadede Veneza, aonde alguns ſucceſſos da
váo motivo para ſoſpeitar , que com o auxilio da
Pedra Philofophal, prolongava a vida.
Aos argumentos , que ſe poderiáo fórmar con
tra eſta tão ſingular maravilha , reſponde o Author
de hum livrinho Italiano , impreſſo em Colonia no
anno de 1694. intitulado , La critica della morte , o
11
vero l' Apologia della vita , e le ricette dell'Arte , che
,7 %
accreſcono i languori della natura ; e no principio do
dito livro ſe vè a effigie do dito Federico Gualdo ,
com eſta inſcripção Latina :

M Fede.
ne
90 Ennea, on Applicação do Entendimento,

Federicus Gualdu's

Natione , ut dicebatur , Germanus, fed verè


Coſmopolita ; attamen melius dicam ,
HERMETICI ORBIS PRINCEPS ,
Nam plufquam trium fæculorum coetaneus , ,
A multis affertis ,
Tamen fuo ore nonagenarius confeſſus ,
Anno M. DCLXXXIII. die XXII. Maii

Solus iter ignotum accipiens à Veneta urbe ,


Ubi quadragenarius incola moratus eft ,
migravit, imò diſparuit.

Como a ſaude abaixo da graça de Deos , ſeja neſte


Mundo o mayor bem do homem , com razão fe hou
vera de preferir a todas as ſciencias humanas a da Pe
dra Philofophal; e por iſſo com eſperança de huma
dilatada vida, ou quando nienos de huma vida ſem
achaques atè a hora deſtinada de Deos para a mor
te , gaſtàrão muitos Philoſophos muito dinheiro , e
muito tempo na inveſtigação deſte admiravel ſegre
do , que he o unico , que pode confervar o humi
do radical , e o calor natural em perfeita união , e
harmonia , deſterrando a velhice , e reſtituindo amo
cidade ; advertindo , que nenhum medicamento na
tural tem virtude para reſtituir as partes vitaes dami
nadas , porque (como dizem os Philoſophos ) à prie
vatione ad habitum non datur regreffus; mas ſó pò
de haver remedios para expellir humores heteroge
neos , e nocivos , e para com eſta expullaõ accreſ
centar muitos annos de vida.
Para conſeguir eſte bem , que dos bens tranſi .
torios he ſem duvida o mayor , he preciſo acertar
com a materia da Pedra Philofophal ; para eſte ef
· feito
Sobre a Pedra Philofophal.Dialog.III.cap.unic. S. 10.90

feito eſcolherão alguns o Vitriolo , outros o Mannà,


outros o Orvalho , e outros a Prata , e o Ouro ; mas
acho , que os melhores Meſtres deſta Arte aſſentão
que não ſe pòde tirar a materia da Pedra Philoſophal
de Metal algum , aindaque perfeito , mas da materia
mais proxima à formação dos Metaes . Achada pois a
materia, que he huma das mayores difficuldades deſta
Arte , faõ cantos os Enigmas dos Authores , e tão va
rias as operações deſta fábrica, que quaſinunca ſe al
cança , o que ſe intenta. O mais fam conſelho , que
neſta materia ſe pòde dar aos que delejáo dilatar a vi
da , he que obſervem as leys dehum verdadeiro ce
libato , é de huma moderada abſtinencia , porque de
ordinario os vicios , contrarios a eſtas duas virtudes,
faó a funeſta cauſa da brevidade das noſſas vidas.
Não recorro a eſta moralidade para eludir os ar
gumentos , que ſe podem fazer contra a poſſibilidade
do Lapis , porque não me obriguey a averiguar eſta
materia . Mas não poſſo deixar de eſtranhar a facili
dade, com que muitos ſe rim dos nomes enigmaticos
deſta Philoſophia , como ſe os homens doutillimos,
uſarão delles , os inventàrão para oſtentarem o
que
ſeu ſaber , e zombarem do Mundo. Eſta meſma eſcu
ridade he myſterio paramayor veneração da Arte. Só
dos nomes , que ſe dáo à materia, da qual ſe compoem
o Lapis , ou ao proprio Lapis depois da ſua compofi
çaõ , ſe podem fazer Catalogos capazes de encher
grandes volumes , e com a declaraçaõ dellas, e de ou
cros infinitos concernentes às operações, e effeitos
do Lapis, grandes Livrarias. Que imaginaó eſtes My
.
fochimicos, Antagoniſtas , e Antipodas da Hermetica
Philoſophia , que lonhavaó , e deliravao os Sabios ,
que nas ſuas obras chamàraõ à materia do Lapis,
Mij Nat16
92 Ennaa , 011 Applicação do Entendimento ,

Naturalis , Simplex, Catholica , Chaoſa , ou Chaotica ,


Primaterialis , Antiquiſſima , vel verè Satirnina, e
finalmenje Materia rerum prima ? Todos eſtes epi
thetos tendem a moſtrar , que eſta materia he real
1
mente a primeira de todas ; que della codas nalcem ,
e a ella todas por putrefacção natural ſe reduzem ,
tem por iſſo fer ella a materia prima , ( ſegundo os
principios da Philoſophia Ariſtotelica .) Todos os
nomes , que lhe derao , fað myſterios , que occulta
mente inſinuaó as ſuas propriedades , e qualidades
naturaes . Chama - ſe Microcoſmus noſter Macrocoſmi
Cils , porque nella ſe contém todas as virtudes elc .
1
mentaes , e celeſtes do Mundo grande , e pequeno.
Chamao lhe Chaos, porque nella todas eſtas virtu .
des eſtao miſturadas , e confuſas. Chamaó - lhe Ma
gneſia , porque attrahe para ſi todos os Metaes , par
ticularmente o Ouro , e a Prata , por cauſa da ſtra
perfeiçao. Chamao -lhe Ente Metallico, e na realidade
o he , porque delle ſe originaó , e formað todos os
Mecaes. Chamaố -lhe Eſpirito , porque he volatil ,
e dà aos Metaes vida como feu vital efpirito. Cha
maõ - lhe Altiffima , e Unica Medicina , porque cura
todas as enfermidades dos homens , e dos Mecaes.

Chamaó - lhe Veneno, porque aos Metaes, e mais cou


ſas dà morte , conduzindoas à putrefacção , mas pa
ra as regenerar , e reſtituir a eſtado mais perfeito .
Chamão - lhe Lixivium , id eſt Cenrada, ou Decoa
da , porque cira , e abſterge codas as impuridades
metallicas. Chamáo-lhe Eſpola , Máy , Mulher ,
Eva , & c. porque della naſcem nobiliſſimos filhos.

E no meſmo tempo chamão - lhe Virgem , e pura ;


porque ainda que produza filhos , permanece caſ
ta , e depois de os matar, e afogar ao proprio Ma
rido ,
Sobre a Pedra Philofophal .Dialog.III.cap.unic.S.10.93

rido , os reſuſcita , e reſticue à immortal , e incor


rupcivel vida . Chama-ſe Leite Virginal, porque da
ſua terra lahe a modo de leite o ſeu licor , e no re
çipiente com o frio ſe coalha a modo de mantei
ga , e com o calor ſe diſſolve. Chama- ſe Sangue,
porque ſe faz vermelho como ſangue , e contem
como ſangue , eſpirito de vida . Chama -ſe Agoa ar
dente, e ignea ; porque derrete todos osMetaescom
mais actividade , do que poderia fazer o fogo mais
violento . Chamaó- lhe Lucifero , Eſtrella matutina ,
e veſpertina , porque na operação luz muito nas ma
nhans , e nas tardes; o que he digno de grande ad
miração. Chamolhe Iris , porque nella ſe vem aspro
prias cores , que no Arco celeſte le diviſao. Final
mente por outras innumeraveis obſervações ſe cha
·ma Serpens, & Draco, Nubes, Ros, Luna, Plumbium ,
Venus Nature, Sputum Luna , Syrupus granatorum ,
Aqua repugnans igni, congelata , non madefaciens ma
nus, Glacies Sophorum , Lapis non lapis, de femine Mun ,
di maioris , filius Omouſios parentiſuio, in quio omnis ple
nitudo naturæ , hoc eft ÉL - 1-XEIR magnum , dc. into

he o que o Vulgo chama Pedra Philofophal , rindo- ſe


de codos os titulos , que ſe lhe attribuem , fem outro
fundamento , que o que poderia ter hum ruſtico, que
ouvindo fallar em forma accidental, ſubſtancial, af
ſiſtente , informante , em eſpecie expreſa, impreſ
fa ,infima , intencional, objectiva , predicavel, ſub
alterna , ſubjicivel , &c. ſe riſſe da Logica , chave
das Sciencias ; ou aos eccos de Eſpiração activa, e
palliva , Innaſcibilidade , Hypoftaſi, Ömohypofta
ton , Pneumatômacho , Conſubſtancialidade , Im
manencia, Proceſſóes, Relações, Emanações, zom
baſe da Theologia , nobiliflima filha da Fe , e glo
riolis
94 Ennæa , on Applicação do Entendimento,

riofilima interprete dos arcanos Divinos.


Os que não admittem eſta Chymica, aceitem el
ta moralidade. A verdadeira Pedra Philofophal he
a graça de Deos , que communica à alma a virtude
de purificar os Mecaes dos cinco ſentidos , e conver
terem Prata , e Ouro para a coroa da gloria as noſſas
obras. O humido fuperfluo , queosChymicos devem
tirar, he o luxo ; o ſulphureo ardor , he o fogo da lu
xuria ; a negridão corrumpente, he a macula do pec
cado ; as fezes terreſtres , que eſtorvão os progreſſos
da obra, ſao o amor aos bens da terra , que contamina
a pureza do eſpirico . Tambem neſta obra concorrem
asoperações Chymicas, a ſaber , Sublimaçaõ, quando
te levanta a alma ao conhecimento do Alciſſimo; Pre
cipitação , quando conhece a ſua baixeza; Calcina
ção , com o penſamento nas cinzas da morte; Solita
çao , liquação, e diſtilação, nas lagrimas da peniten
cia ; Coagulação , e Fixação , na conſtancia da Fè,
e firmeza no amor de Deos. Neſte breve , mas ele
gante , e doutiſſimo diſcurſo vos deſcobre o grande
Bluteau as utilidades da Pedra Philofophal nos fa
moſos exemplos de Nicolao Flamel , que foy mui
to rico , e de Federico Gualdo , que viveo muito ;
e le vos deſcobrirdes o ſegredo , que elles alcança
ráo , tereis huma larga vida, e poſſuireis hum gran
de theſouro , que ſão grandes utilidades .
ENODIO : D.Raphael Bluteau moraliza , e não
certifica a verdade , nem deſcobre o rico chefouro
do Lapis ; e deſta forte não approva , 'nem condem
na a certeza da Chryopeia : admira-ſe com as turbas.
ENODATO . Não queirais , Senhor Enodio,
que preſuma eu da voſla grande ambição , o que da
miferia do Leitor mofino affirma no Prologo do
Sup
Sobre a PedraPhilofophal.Dialog.III.cap.unic.S.10.95

Supplemento do leu doutiſſimo Vocabulario o mef


mo D. Raphael ; porque diz com grande diſcri
ção , e profundo juizo , que dos livros compoſtos
por Apuleyo , ſó lhe agrada o Afno de Ouro. Vòs
haveis de ſaber que D. Raphael he hum Varão mui
to grave , muito ſabio , e muito ſerio , e como tão
grande homem , he o alvo de ignorantes , e invejoſos
tiros, que o ferem tanto como as pedras, que os Bar
baros Ethyopes atirão ao Sol . Falla na Pedra Phi
lofophal inclinando - ſe mais a defendella, do que a
reprovalla , paraque conheçao os doutos , que he

o leu defenfor, mas não ſaibão os ignorantes , que


a defende , paraqué os Sabios o venerem , e os neſ
cios ſe nao riao . E com eſte artificio faz o tiro com
a pedra , e eſconde a mão. Por eſte modo he D. Ra
phael admiração das Turbas dos Philofophos , e dos
Philofophos das Turbas.
ENODIO . Como o fallar neſta materia he tão

arriſcado , e cão expoſto às injurias dos ignorantes,


eſtimo muito , que ao pé deſta Cruz retirados do
pulleyo , e fós , converlaſſemos quaſi ſempre na
Chryſopeia , para evitarmos as ſuas neſcias cenfuras.
ENODATO . Depois que li nos Evangelhos,
que a malicia , e a ignorancia humana , murmurou ,
eſcarneceo , e crucificou a Sabedoria Divina Encara
dada : Murmurabant ergo Judæi de illo : Hludebant Joan . 6.40 .
ti:Non enim ſciunt quid faciunt : crucifixerunt ei'm ; Matth.27.29 .
cemi pouco , e eſtimey muito as calumnias , que con- Luc. 23. 33 .
tinuamente me fazem os ignorantes com as ſuas laty
34.
ras , injurias , e affrontas , para ter ſempre alguma
couſa , em que imitar a meu Senhor JESU Chrif
to , ſeguindo as ſuas pizadas , e participando dos
opprobrios da fua Cruz .
FINIS L A U S D E O.
/
LISBOA OCCIDENTAL :

Na nova Officina de
MAURICIO VICENTE DE ALMEIDA ,

Morador ao Arco das Pedras Negras.

3 M. DCC . XXXIII.
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