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talando no seu gabinete ao microfone

da Emissora Nacional
I ) MANUEL CONCALVES CEREJEIRA
( ARDEAL PATRIARCA DE LISBOA

OBRAS
PASTORAIS
T E R C E I R 0 VOLUME
1 943 — 1 947

UNIÀO GRÁFICA
LISBOA — 1947
A Padroeira de Portugal
e do Brasil

1 - A Fidelidade de Portugal à Pa­


droeira
F alando sobre a Padroeira de Portugal e do Bra­
sil, em velha terra portuguesa rica de historia, de
onde partiram seus maiores a fazer e a engrandecer
com tantos outros, nomes conhecidos ou anónimos,
esta grandiosa Patria brasil eirá — um dos vossos, que
por la andou anos atrás a separar, com o seu verbo
ardente como espada flamejante de arcanjo, o sim
e o nao, na hodierna e tremenda confusao da ver-
dade e do erro, perguntou aos portugueses que o ou-
viam deslumbrados: «ainda amais, como nos ensi-
nastes, a Mae de Deus verdadeiro» ?
Por gentil convite de Sua Eminencia o Senhor
Cardeal Arcebispo de S. Paulo, tres vezes meu ir-
máo pela púrpura, pelo episcopado e pela raça, e
urna vez ainda pelo parentesco do coraçâo, venho
pressuroso dar-vos a resposta em nome dos portu­
gueses.
Mas quase hesito, como o vosso venerável An­
chieta na praia de Iperoíg: «falarei? nao falarei))?

Conferencia na sessáo solene de encerramiento do Con­


gresso Eucarístico da Provincia eclesiástica de S. Paulo (Bra­
sil), na cidade de Campiñas, em 7 de Setembro de 1946.
150 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

Como em certo soneto celebre, receio que o melhor,


no fim de ter falado, seja o que ficou por dizer. Se,
para falar de um santo, foi dito que era preciso ser
outro santo, quem poderá falar dAquela que é a Máe
do Amor Formoso? Seria preciso ao menos purificar
os lábios impuros corn a brasa ardente da Fé e do
Amor, como os sacerdotes recordam Deus fizera a
Isaías, quando se aprestam para comungar o Verbo
de Deus no sacramento da Divina Palavra que é o
Evangelho.
Da Mâe de Deus so falou bem, numa única pa­
lavra que disse tudo, Aquele que a criou e nasceu
delà, e que é o Verbo de Deus; e essa palavra re-
petiu-a desde toda a eternidade, como nos ensina o
Livro da Sabedoria, na beatitude infinita da Trin-
dade Santíssima.
Os homens limitar-se-ao a balbuciar; e o que de
melhor saberáo dizer é repetir as palavras da divina
embaixada corn que o Anjo a saudou, e nos portu­
gueses e brasileiros, irmáos na fé e na lingua, tradu-
zimos por igual maneira: «ave, ó cheia de graça»!...
Nao faltam aos brasileiros — mais que nos, os
portugueses de hoje, herdeiros do nosso comum
Vieira — lingua, engenho e arte para celebrar este
centenario da Padroeira de Portugal e do Brasil. Na
boca deles, tem a lingua portuguesa mais sonorida-
de cantante, mais opulencia verbal, mais amplidâo
sintática.
Mas, se eu devo falar, responderei à pergunta do
orador brasileiro corn que principiei — que o povo
portugués pode nao saber contestar-lhe o que que-
ria, à altura da eloquéncia daquele. Mas, melhor do
que falando, exprime o seu amor à Mâe de Deus e
Mâe nossa: exprime-o rezando ou cantando (se nâo
as vezes chorando).
Obras Pastorais 151

Se duvidais, correi todas as igrejas e cápelas do


País e lá o vereis ajoelhado, de maos postas, olhos
fitos na doce Imagem, ciclando oraçoes que lem-
bram, como me dizia certo artista francés, encanta­
do com aquele ingénuo murmurio dos nossos tem­
plos, o frémito macio do bater de asas quentes de
avezinhas em bando.
Ide sobretudo a esse santuario de Fátima, que é
o coraçâo mesmo de Portugal, e lá vereis multidoes
numerosas, arrastando os joelhos feridos ñas arestas
vivas das pedras duras, e deixando correr pelas fa­
ces requeimadas fios de pérolas das lágrimas doces
que os olhos já nao estavam acostumados a chorar,
e erguendo ñas maos em místico entusiasmo os len-
ços brancos do adeus saudoso à Virgem.
Sim, em toda a parte ouvireis a resposta:

ó gloria da nossa terra


que tens salvado mi. vezes!
enquanto houver portugueses
tu serás o seu amor.

2 —A cidade de S. Paulo e a Padroeira


Venho falar da excelsa‘Padroeira de Portugal e
do Brasil nesta capital paulistana, que corre vertigi­
nosamente à frente na audaciosa estrada do progres­
so brasileiro — e que é terra santa da historia do cul­
to mariano nesta imensa naçâo, já gloria e ainda es-
perança maior da Igreja católica.
Nao so tem aqui, nesta apostólica provincia ecle­
siástica, seu solar oficial Nossa Senhora da Conceiçâo
Aparecida, que Pio XI por Bula de 16 de Julho de
1930 declarou Padroeira do Brasil; mas ainda foi nes-
te planalto de Piratininga que nasceu o Brasil (pode
152 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

dizer-se) sob a invocaçâo e a protecçâo da virginal


Mae do Amor Formoso.
S. Paulo foi a primeira célula crista dum mundo
novo, remido pelo baptismo, que começou a surgir
da selva virgem, como Cristo radioso do túmulo, sob
a luz brilhante do Cruzeiro do Sul, nesta imensa e
feracissima Terra de Santa Cruz, para imortais des­
tinos. O Colégio dos Jesuítas desta nova cidade, ]á
alguém afirmou que fora «o primeiro foco da civili-
zaçâo brasileira».
E se foi a missâo da Virgem Mâe Imaculada dar
Cristo ao mundo, como o povo portugués soube ma-
ravilhosamente dizer em versos de cristal:

No seio da Virgem Mâe


encarnou divina graça,
entrón e saíu por ela
como o sol pela vidraça;

foi por Ela que o Brasil nascente O receben.


Em seu nome foram docemente aliciados * s
guaianases do planalto a virem à catequese, (a quai
iria revelar as almas obscurecidas e degradadas
Aquele que é a «luz de todo o homem que vem a
este mundo», como disse o Apostolo S. Joao), por
intermedio dos bandos de crianças selvagens que iam
pelas tabas dançando a dança tupi chamada «cate-
reté» e cantando ao mesmo tempo a poesia que o
P.e Anchieta compôs na lingua deles:

ó Virgem Maria
Tupan ci été!
Aba pe ara pora
oicó endê iabé!

a quai, traduzida a nossa lingua, quer dizer: «Ó


Obras Pastorais 153

Virgem María, Máe de Deus verdadeiro, os homens


deste mundo, sentem-se táo bem convosco».
Nesta aurora edénica do nascimento do Brasil,
os portugueses de Martim Afonso de Sousa e os in­
dígenas das tabas de Teberiça e Caiubú misturavam
ja as suas vozes, à hora mística do Angelus, no ter­
reiro do Colegio, louvando com as palavras angéli­
cas Aquela que «todas as geraçôes proclamaráo bem-
-aventurada)) — mas nenhuma melhor que Portugal
e o Brasil.
E nao faltou até o poeta que, como canto bran-
co da madrugada do dia esplendente que amanhe-
cia para o Brasil, compos devoto poema a Virgem
Santíssima.

3 — 0 nascimento do Brasil e a Pa-


d roe ira
Pode dizer-se que o Brasil nasceu a cantar Iou-
vores a Virgem Imaculada. Foi no meio dos suspi-
cazes e cruéis Tamoios, onde estava como heroico
refém preparando os caminhos reais da paz por on­
de ha vería de passar a graça de Cristo, que o «apos­
tolo do Brasil)) por excelencia, o venerável P.e An­
chieta, compos o seu célebre poema De Beata Vir­
gine. E antes mesmo de trasladar ao papel os seus
versos, ia-os imprimindo na areia fina da praia íe
Iperoíg — associando a terra brasileira ao cántico
cristáo da sua alma.
Ao ve-lo absorto em comunicaçâo com Deus,
pensavam os Indios, que o espreitavam, receosos e
respeitosos, que o page falava corn o céu, e que
lupan Ihe mandava as avezinhas para saber os seus
desejos.

11
154 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

Falava realmente com Deus, a louvá-lo pelas


grandes coisas que fizera em Sua Mae, a candida flor
da criaçao, que a Igreja em todos os tempos e
lugares proclama «toda formosa». Os seus desejos,
nâo precisava Deus de enviar as avezinhas para os
conhecer, porque fora quem lhos fizera nascer no
coraçâo; e se lhas mandava, seria para ver quem
melhor canta va, pois rezam as Florinhas de S. Fran­
cisco que ja urna vez cantaram ao desafio com o Se­
rafim de Assis o louvor de Deus...
Os seus desejos, dissera-os ao Coraçâo ¡macu­
lado da Mâe do Amor Formoso: ser puro como os
anjos numa carne enferma mordida pelo tentador
com brasas de fogo ardente, no meio daquela natu-
reza luxuriante e daquela humanidade degenerada (e
este fora o voto do poema). Este holocausto interior
— maior que o da vida num arranque heroico — era
a condiçâo de todos os sacrificios: ser puro para ser
forte, ser forte para se poder dar. Nao disse ele, na
dedicatoria do poema, segundo a feliz traduçâo do
P.e Cardoso:

A inspiraçâo do céu,
eu muitas vezes desejeí penar
e cruelmente expirar em duros ferros.

Este místico poema, além do próprio valor lite­


rario, tem precioso valor histórico. Nao so por ser o
primeiro poema que o Brasil cantou, mas mais ainda
porque transcende o assunto directo da Vida da Vir­
gem Santíssima, para se tornar no drama simbólico
do nascimento do Brasil sob a protecçâo da Virgem
Pura.
O voto de Anchieta, pelas circunstancias em
que é feito — o apóstolo de Cristo, num mundo
Obras Pastorais 155

em que dominam as forças da natureza e do mal,


confia à protecçâo da Virgem Imaculada a guarda
do tesoiro frágil da sua virtude — tem alguma coisa
de semelhante ao Sacrificio de Cristo pela humani-
dade: é fonte de graça e de vida.
Cantaram poetas antigos de olhos concupiscen­
tes o mitológico nascimento dentre a espuma do mar
dessa Vénus paga, que eles mesmos reconheceram
ser «trite e cruel». O nascimento histórico do Brasil
a Fé e à civilizaçâo crista, este fez-se sob o signo da
Mae purissima do Amor Formoso. Vénus era o amor
egoísta, que no altar homicida do prazer tudo sacri­
fica a si: tal amor espalha à volta a escravidao, a
dor, a morte. Mas o Amor Formoso, desde que foi
revelado ao mundo, eleva o homem acima dele mes-
mo: liberta-o das paixóes, purifica-o das impurézas
do egoísmo, ergue-o à comunhâo do Pensamento e
da Vontade de Deus, acende no humano coraçâo o
fogo dos entusiasmos sublimes, póe na alma um
ideal divino.

4 —A Padroeira na historia de Portu­


gal e do Brasil
Anda na origem a historia do Brasil entrelaçada
à de Portugal. Nem portugueses nem brasileiros po-
derâo falar da sua historia, sem repetirem as mes-
mas coisas — até ao momento em que o Brasil, che-
gado à maioridade, poe casa aparte e toma nas suas
maos generosas e heroicas os próprios destinos.
No que vou dizer, terei de referir-me a Portu­
gal, mas pertence também ao Brasil, de cuja historia
é o prefacio.
Se o Brasil nasceu cantando à Rainha do céu e
da terra, de Portugal nem pode citar-se o nome sem
156 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

pronunciar o dEla, pois primeiro Portugal se chamou


Terra de Santa Maria. Esta designaçâo bem signi­
fica que a nossa terra sem Maria nao é mais a terra
portuguesa.
Sendo de Santa Maria, tinha de ser de Cristo,
pois onde Ela está, está o ((bendito fruto do seu ven­
tre, Jesús». Eis ai as velhas catedrais do País, gran­
diosos monumentos de pedra que elevam até ao céu
o grito triunfal da Fe, todas dedicadas à Virgem
Maria. Per correr Portugal é o mesmo que desfiar um
rosário mariano.
Depois, construida e arrumada a Casa lusitana,
achou-a pequeña para si; ou, melhor, para a sua fe e
o seu amor a Cristo e a sua virginal Máe. Certo é,
aqui podia cantar como boje à Virgem concebida
sem pecado original: «De Portugal és a flor.» Mas
nao quis ser so, a honrar a Mae purissima de todos
o homens. E foi a busca de novas terras e novas
gentes.
Ao partirem para as terras desconhecidas, os
Gamas e os Cabrais dirigiram-se primeiro, e lá pas-
saram a noite em oraçâo, à capelinha da Senhora de
Belém da praia do Restelo, a pedir-lhe a bênçao.
Ela, a Estrela do Mar, foi a Madrinha dos maravilho-
sos descobrimentos, que deram ao mundo novos
mundos e a Cristo novas cristandades. Senhora do
Mundo Novo a podemos chamar.
Um poeta nosso contemporáneo disse, para si­
gnificar a sua intervençâo na grande epopeia do des-
cobrimento dos continentes ignorados:

Alguém te víu, Divina Costureira,


De carnhosas maos imaculadas...
Alguém te viu, multas vezes,
a remendar, contra os ventos,
o veíame das naus esfrangaliiadas.
Obras Pastorais 157

Mas a Virgem Imaculada nâo abençoou so os


portugueses que descobriram e colonizaram o Brasil.
Veio com eles. Traziam a sua doce Imagem ñas
naus; e sobretudo nos coraçôes. E quando os cora-
çôes eram como o do P.e Anchieta, eram como urna
eucaristia do dEla: atraíam à linda Senhora do Céu
todos os coraçoes. Veio com eles e cá ficou.
Quando em 1646 — faz agora tres séculos — o
rei de Portugal a proclamou Padroeira, ja o era des­
de o principio; mas, como na frase célebre de Pascal,
também pederíamos dizer: nâo A escolheríamos se
primeiro Ela nos nao tivesse escolhido a nos.
O rei pos a própria coroa a seus pés, que esma-
garam a serpe infernal, — para significar que a Rai-
nha era Ela. E a Naçâo inteira, cortes, Universidade,
cámaras, cabidos — todos à compita se esmeraram
em aclamar Aquela que os Anjos aclamam no céu.
E ainda boje se pode 1er, recolocada amorosamente
no Palácio do Governo da Baía, como reliquia ve­
neranda, a lápide comemorativa do faustoso acon­
tecimiento.
O Brasil fazia entao parte de Portugal, como o
membro faz do corpo. A alma era a mesma: e por­
tanto a Fé e a devoçâo mañana.
Quando se separou de Portugal, reclamando a
legítima paterna, nao se separou porém da Padroei­
ra. E continuou a venerá-la e a honrá-la, acrescen-
tando-lhe apenas novos títulos.
Mas, ja antes, a celeste Padroeira resolverá dar
audiencia pública a todos os filhos do Brasil e ar­
mar aqui trono público de audiencias. E fez-se des-
cobrir por humildes pescadores em aguas do cauda­
loso Paraiba no lugar de Itaguassu. Ela própria fu-
gindo-lhes as escondidas, (levada pelos anjos ou in­
do «certinha», como diziam os pastorinhos de Fáti-
158 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

ma, assim como urna luz que se desloca?...), Eia pro­


pria escolhe o local do santuário, no alto de urna .co­
lina, nâo sei se para ficar mais perto do céu, se para
ver melhor o Brasil. — É a Senhora da Conceiçâo
Aparecida.
E, desde entao, todo o Brasil ajoelhou a seus
pés.

5 — 0 milagre portugués da renovaçâo


e a Pad roe ira
E Portugal?
Houve tempo em que infelizmente pareceu que­
rer renegar a Padroeira. Também quis experimentar
o sabor do fruto da árvore do bem e do mal; ou, co­
mo disse blasfemamente o nosso Antero do Quental:
«já provamos os frutos da verdade»...
Como se a Verdade, a Verdade eterna, na qual
o homem conhece a Deus e se conhece a si, nâo fos­
se Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando Ele é renega­
do, Ele que é a «luz do mundo», o homem fica em
trevas, como diz o Evangelho.
Que descobriu todo aquele que fez a experien­
cia da apostasia? O mesmo poeta o disse:

«a ilusáo e o vazio universais».

Toda a historia contemporánea o demonstra trá­


gicamente. O poeta egregio procurou a morte, no
seu triste desespero; e o mundo encontrou o erro e a
guerra, em vez do reino da verdade, amor e paz
que sonhara.
Portugal, abandonando a tradiçâo religiosa, que
era a própria alma da sua historia, renegava-se a si
mesmo. E nao faltaram ilustres filhos do século que
Obras Pastorais 159

perguntassem, tendo perdido a consciéncia do desti­


no nacional, a sua razao de existir. Lembrava aquele
misterioso romeiro da peça de Garrett, que a per-
gunta ansiosa de Frei Jorge Coutinho: a quem es tu?»,
responde: «ninguem!»
Sim, Portugal parecia nao ser ninguém.
Certo escritor brasileiro escreveu: — «no Brasil
já começavamos a pensar que Ela esquecera o país
dos nossos avós».
Para dizer a verdade, Portugal nao renegara ja­
mais a Padroeira. O povo humilde, que é o cerne
da naçao, continuava a invocá-la e a venerá-la
sempre.
Nao, a Padroeira nao esquecera Portugal. E nuni
dia luminoso de iMaio a «linda Senhora» surgiu toda
branca no nosso céu, que era também delà (pois era
portugués). —E começou entâo o milagre da reno-
vaçâo.
Como o nosso povo canta ao repetir o Ave com
que o Arcanjo a saudou, nesse «Ave de Fatima» que
já se ouve em toda a terra:

Desde entâo nas almas


nova luz brfcHiou!

Achou logo a Pátria


remédio a seu mal.
E a Virgem bendita
salvou Portugal.

6 —A mensagem fatimita da Padroeira


Contaram os jornais que o Sumo Pontífice dis­
sera ao seu Legado as Festas da Coroaçâo da Pa­
droeira de Portugal em 13 de Maio passado, quan­
do à despedida fora buscar a sua bênçao — que ele
Í60 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

ia coroar em Fatima a Rainha do mundo. Naquele


dia augusto, em que cerca da décima parte da po-
pulaçâo portuguesa ali estava reunida, vinda, Deus
sabe como, de todos os cantos do País, à chuva e ao
vento, a aclamar, de maos postas e lágrimas nos
olhos e joelhos na lama, Aquela que ele gosta de
chamar a «Gloria da nossa térra» — Fátima nao era
so o coraçâo de Portugal, era o altar do mundo todo.
Corn efeito, a mensagem de Fátima tem carác­
ter universal. Pelo que de inicio se soube, ela con­
tinua as mensagens célebres de La Salette e Lour­
des: — recomenda a oraçâo e a penitencia da vida
crista. A celestial Apariçâo repetiu aos videntes o
que vem dizendo sempre aos homens: «fazei tudo o
que meu Filho vos manda». O mundo custa-lhe a re-
conhecer que a obra da nossa Redençâo foi operada
na Cruz: ninguém pode ser discípulo de Cristo, se nao
sofrer de algum modo a morte do Divino Mestre no
seu espirito e na sua carne. Mas esta morte — cha-
ma-lhe a ascética crista mais vulgarmente mortifica­
do — leva à ressurreiçâo, à liberdade, à vida.
Esta nova mensagem vinda do céu por graça da
«Mae de misericordia» coincidia corn a explosáo in­
fernal de erros, que iriam infestar, perturbar e revo­
lucionar o mundo (a revoluçâo russa é do mesmo
ano das apançoes de Fatima): — erros que negavam
nao so a ordem sobrenatural mas ainda a propria
ideia de Deus.
O comunismo, como depois o racismo — acusa-
vam igualmente a religiáo crista de ter corrompido a
natureza. Repelir a ideia da redençâo era criar as
condiçoes da livre expansâo da natureza. — Nao é
agora o momento de mostrar como a insurreiçâo da
carne leva à morte do espirito. Os factos, os factos
Obras Pastorais 161

terríveis, a clolorosa demonstraçao pratica estao a


vista...
Das duas partes ja reveladas do chamado «se-
gredo» —- a terceira aínda nâo foi comunicada, mas
está redigida em carta lacrada que será aberta em
I960 — sabe-se o bastante para concluir que a salva-
çâo do mundo nesta hora extraordinária da historia
foi posta por Deus no Coraçâo Imaculado de Maria.
Ousarei mesmo acrescentar: a missâo especial
de Fátima é a difusáo, no mundo, do culto ao Ima­
culado Coraçâo de Maria. À medida que a perspec­
tiva do tempo nos permita julgar melhor os grandes
acontecimentos de que fomos testemunhas, estou
certo que melhor se verá que Fátima será para o
culto do Coraçâo de Maria o que Paray le Monial foi
para o culto do Coraçâo de Jesus. Fatima, de algum
modo, é a continuaçâo, ou, melhor, a conclusâo de
Paray: reúne aqueles dois Coraçoes, que o mesmo
Deus uniu na obra divina da Redençâo dos homens.

7-0 Coraçâo da Padroeira


Como poderia eu falar da Padroeira de Portu­
gal e do Brasil, sem falar do seu Imaculado Coraçâo?
É este que a resume e explica. Quem nâo consiga
entrar dentro dele, nâo conhecera jamais a doce
«Mâe de misericordia».
Mas aqui, mais atinge o místico que conhece e
ve e possui com o coraçâo, que o pensador que pe­
netra só com a fria inteligencia.
A Jacintinha de Fátima, que nâo sabia 1er, com-
preendia, bem (aínda que nao o soubesse exprimir)
os tesoiros que se encerravam no Coraçâo, quando
dizia ao beijar urna estampa de Jesus: «beijo-o no
162 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

Coraçâo, que e do que mais gosto; quem me dera


também um Coraçâo de Maria».
A devoçâo ao Coraçâo Imaculado de Maria vai
direita ao que a «Cheia de graça» tinha de mais ínti­
mo, de mais profundo, de mais delicado. Dá-nos as-
sim a Santissima Virgem, de algum modo, como
Deus mesmo a via: — na sua imaculada pureza, na
plenitude das suas graças, no mais fino da sua ter­
nura maternal, na sublimidade indizível do seu amor,
em toda a amargura das suas dores, na amplidáo uni­
versal da sua solicitude protectora, mas tudo isto uni­
do, identificado, simplificado no esplendor da per-
feiçâo, como as sete cores da luz no brilho branco
do sol.
Para nos, pecadores, o Coraçâo Imaculado de
Maria abre-nos, melhor que nenhuma outra mística
chave, os tesoiros de ternura, compaixâo e misericor­
dia encerrados ñas entranhas dAquela que nelas con-
cebeu a Divina Vítima, a qual veio por amor lavar
no Seu sangue os pecados do mundo. O coraçâo hu­
mano mais endurecido pode resistir, mas difícilmen­
te pode ficar insensível a um coraçâo de Máe que
é a própria Mâe do Amor.
E esta nova manifestaçâo do Coraçâo da Mâe de
misericordia que é senâo o maternal, solícito apelo
à conversâo dos pecadores? Conta, no seu vibrante
livro Confiteor, o paulistano Paulo Setúbal a ingénua
prece à Imagem da Virgem, na igreja da sua aldeia
natal, para que se nâo desgarrassem no mato as ove-
lhas que guardava: — «Minha Nossa Senhora, aju-
dai-me! Fazei que eu encontre a Morena e a Mantei-
ga sem custo».
So pronunciar o nome «Coraçâo da Mâe de Mi­
sericordia», e dizer que Ela nâo nos desampara nun­
ca; que a maior miseria humana é para Ela maior
Obras Pastorais 163

motivo de solicitude e compaixáo (pois, por causa


dos pecadores, é que Ela, como o seu Divino Filho,
fora escolhida); que, segundo S. Bernardo lembrou,
«nunca alguém recorreu a sua protecçao que fosse
desamparado)); que, enfim, conforme o cantico por­
tugués «Salve nobre Padroeira)):

A sua glória é valer-nos.


Nao tem maior alegría.

O caso de Paulo Setúbal o documenta. Perde-


ra-se, nao no mato, mas nos falsos atalhos do erro
e nos pantanos do vicio. Mas nao o perdeu jamais
de vista a Máe celestial, que tao amargas lágrimas
chorara, por ele como por todos nos, ao pé da Cruz.
Foi preciso fenr com a doença a ovelha desgarrada.
O cepticismo de olhos cegos dira que fora crueldade
da natureza insensível abater assim o talento em flor.
Nos porém afirmamos: foi amor. A ovelha ferida nao
caíu no precipicio para onde corria; salvou-se.
O Coraçâo Imaculado de Maria e o caminho
mais directo para penetrar no Coraçâo Sacratissimo
de Jesus. Estes Coraçôes sâo inseparáveis. Em céle­
bre gravura bizantina do século VI, a Imagem da
Virgem Máe tem no peito a imagem de seu divino
Filho adolescente. Assim como o Pai eterno, o Co­
raçâo de Maria traz sempre em si o Verbo que deu
ao mundo: vive dEle, por Ele, nEle e com Ele. Jesus
é o seu centro, a sua vida: e Ela é, como alguém ;á
escreveu, «o porta-Verbo, a custodia de Jesús». ,
Mas o Coraçâo da Divina Mâe é mais acessível
ao nosso coraçâo. Dá-nos o Seu divino Filho, po­
rém com ternura mais próxima de nos, com voz ma­
ternal mais aliciadora a nossos ouvidos, com feminea
graça mais cativante.
164 D- Manuel Gonçalves Cerejeira

Coraçâo Imaculado. Toda a nevc eterna das


montanhas inacessíveis, e toda a candura dos jas­
mins incontaminados, e toda a brancura fresca da
espuma do mar, e toda a inocencia dos olhos virgi-
nais — tudo isso nao nos pode dar urna imagem se-
quer da imaculada pureza do Coraçâo da «doce noi-
va de Deus», como lhe chamou Anchieta. Dela se
enamorou a Santidade infinita de Deus. Desde a sua
conceiçâo sem pecado, esteve com ela o Senhor e a
encheu de todas as graças.
Melhor lhe chamou a Igreja: a Mâe do Amor
Formoso. A imaculada pureza da Virgem concebeu
o Amor Formoso — que havia de enamorar em to­
dos os tempos aos milhóes as almas virgens, as quais
cantariam com entusiasmo a alegría de se terem da­
do ao Amor, como a Santa Teresinha «querida do
mundo inteiro», que protestava, no seu leito de mor­
te, nâo se arrepender de se lhe haver consagrado; e
havia de inspirar os entusiasmos mais ardentes em
peitos generosos de jovens puros, fortes e alegres,
para urna luta sem fim contra a matilha raivosa dos
baixos instintos e paixóes brutais.
E aqui encontramos outra vez o «apóstolo do
Brasil» com o seu voto à Mâe do Amor Formoso. ~
O Poema sobre a Virgem Maria, feito na aurora do
Brasil, lembra-lhe o ideal a sustentá-lo na obra Ja
libertaçao crista do homem, sem a quai nâo ha ver­
dadera civilizaçâo humana. Esta obra so será reali­
zada sob a protecçâo -da sua excelsa Padroeira.

Trago-vos a todos os que invocáis e confiais na


Padroeira urna grande esperança.
É já sabido que no segredo de Fátima, depois de
anunciar os grandes sofrimentos que os pecados hu­
manos causariam à humanidade (pois o pecado, sen­
Obras Pastorais 165

do violaçâo da leí eterna e natural, leva necessaria-


mente à desordem, à escravidao, a morte) e a difu-
sáo contagiosa de erros mortais — a Santissima Vir­
gem anunciara: «por fim, o meu Imaculado Coraçâo
triunfará)).

8 —A Voz de Portugal e do Brasil


e a Padroeira
Em 1934, no Rio de Janeiro, em sessao solene
do Gabinete Portugués de Leitura, a que se dignara
assistir o falecido Cardeal Leme — esse homem táo
grande que me pareceu o maior do Brasil, e que so­
bre todos os títulos apreciou o de amigo pessoal de
Nosso Senhor Jesus Cristo, que eu tímidamente me
atrevi a chamar-lhe, depois de ter conhecido a sua
alma, — a sessao foi interrompida para inaugurar a
nova emissáo radiofónica «A Voz do Brasil». Devia
o Eminentíssimo Cardeal Leme proferir as consagra­
das palavras de abertura, que, por serem dele, eram
ilustres e belas; e quis por fraterna cortesía que eu
acrescentasse algumas minhas ás dele.
Lembro-me, como se fosse agora, do deslum-
bramento que senti a ouvi-lo. Começou assim: «Lou-
vado se ja Nosso Senhor Jesus Cristo: é a voz do Bra­
sil» e, comentando a linda, tradicional exclamaçâo
crista, continuou com rendilhada linguagem, que era
de místico e de poeta. O Cardeal brasileiro abriu o
coraçâo.
Lembrei-me mais tarde da prosa poética do que­
rido Irmáo e Amigo, ao 1er a poesía que Machado de
Assis consagrou a Anchieta, o poeta da Virgem:
166 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

Nas florestas os pasearos, ouvindo


o nome de Jesus e os seus louvores,
iam cantando o ïnesmo canto lindo.

Aquela era, com efeito, a «voz do Brasil».


Chegara a minha vez de falar. Confesso que re-
zei interiormente, enquanto ouvi aquela voz, que era
tambem a da minha Patria, louvando o nome ben­
dito dAquele que é, desde que o conheci tamanino,
a Luz da minha consciencia, e o amor da minha
mocidade, e o ideal da minha virtude, e o prémio da
minha vida. A resposta à voz do Brasil encontrei-a
dentro de mim, como fio cristalino de agua fresca
que nasceu comigo no baptismo, brotando da fonte
crista de Portugal.
j Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, dis­
se, e a voz do Brasil. Pois para sempre seja louvado
e sua Adae Adana Santissima, e a voz de Portugal!
Hoje posso (que naquele momento, e naquela
casa de portugueses — que é o Lar comum deles —
nao era preciso explicar mais: ali e entre portugue­
ses, Brasil e Portugal era tudo um, o mesmo amor e
a mesma fé os reunia no coraçâo dos presentes),
hoje posso e devo explicar melhor o meu pensamen-
to. Para ser completo e justo, acrescentarei: — lou-
vado seja Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mâe Ma­
ña Santissima, é a voz de Portugal e do Brasil!
Uma grande esperança
para o mundo todo...

Nâo quero ocultar a alegría que sinto ao encon-


trar-me de novo em Portugal, após uma viagem em
que nunca deixei de o ter dentro de mim.
Trago, é certo, os olhos mais uma vez encanta­
dos corn a beleza da terra brasileira, e o coraçâo ca­
ti vado com as atençoes da sua gente (autoridades e
povo). Jul go que também ele vem dentro de mim.
Volto do Brasil mais portugués — neste sentido
de que melhor compreendo, depois de ter tornado a
contemplar o que os portugueses la tém feito até bo­
je, a grandeza histórica de Portugal.
Digo grandeza histórica, mas nâo quero dizer
grandeza que seja so do passado. Os portugueses de
hoje continuam a epopeia de trabalho, de progresso
e de benemerencia dos que os precederam. E nâo
faltaram la bocas de brasileiros ilustres a fazerem, a
propósito da minha presença, o elogio do Portugal
renovado.
E até me parece que nova missâo providencial
lhe está reservada nos nossos tempos devastados
por tantos e táo desencontrados ventos de destruiçâo
e morte dos valores humanos e cristáos. Algum as ve-
zes fui saudado expressamente como o «embaixador

No momento da dhegada (a Lisboa, de regresso do Bra­


sil, em 1 de Outnbro de 1946, ao microfone da Emissora Na­
cional.
168 D. Manuel Gonçalves Cerejeira

de Nossa Senhora de Fatima». Sentía que o presti­


gio mundial, cada vez maior, do milagre de Fátima,
envolvía a minha pessoa, e além delà a nossa Patria.
Nao nego, baja vozes discordantes. Mas na tre­
menda desorientaçao do presente, em que, como na
bíblica historia da confusáo das linguas do episodio
de Babel, os homens se nao entendem sobre o sen­
tido das palavras que pronunciam, justiça, direito, li-
berdade, democracia, condenando alguns nos outros
como crime o que praticam como sistema, ou defen­
dendo, como propaganda no exterior, o que negam
e destroem corn mao de ferro no interior de densa
cortina intransponível — as almas sedentas de ver-
dade, de amor, de paz começam a olhar para Fá­
tima, como estrela de esperança que surgiu no céu de
Portugal.
Corn a desorientaçao de ideias sás como as que
disse há pouco e que enlouqueceram, tornando-se
necessário primeiro que tudo esclarecer as conscién-
cias (e so a luz de Cristo o conseguirá cabalmente),
corn aquela desorientaçao, coincide, a exacerbar o
mal-estar e a azedar as almas, a insuficiencia dos ar-
tigos mais essenciais à vida.
Penitencia que se pode chamar universal, impos­
ta pela Providencia divina ao nosso orgulho, a fim
de o encaminhar à organizaçâo duma economía hu­
mana e crista; peniténcia que so pode ser superada
pelo exercício das virtudes cristas da mortificaçâo e
da caridade, mortificaçâo para aceitar com resigna-
çâo o que falta, e caridade para distribuir com lar­
gueza o que sobra e até alguma coisa do que nao
sobra.
Venho dum país, que é emporio de riquezas
inesgotáveis — um dos mais ricos do Mundo. Mas o
pecado dos homens desconjuntou a máquina da eco-
Obras Pastorais 169

nomi a das naçoes. E até la, onde a terra é imensa


e o solo contém tesoiros de oiro e pedras preciosas,
até la, as mundiais dificuldades da vida e insuficien­
cia das coisas se fazem duramente sentir.
Que quero eu dizer, nestas breves palavras de
saudaçâo, ao regressar do Brasil? Quero dizer que
urna grande esperança de salvaçao para o mundo
todo se levantou na terra portuguesa de Fátima.
Esta esperança implica o regresso dos homens
à luz e à prálica do Evangelho — depois desta con-
vulsáo universal, que foi mais urna prova dos abis­
mos de dor, angustia e escravidâo a que leva o des-
prezo voluntário da leí de Deus.
Esperemos que, com o saneamento dos espirites
na luz de Cristo e o arrefecer das paixoes, — pouco
a pouco se estabeleça o clima social em que possa
tranquilamente assegurar-se a cooperaçâo de todos
os homens de boa vontade, e assim a das naçoes, na
obra da elevaçâo económica, social, cultural e polí­
tica dos homens e das sociedades. Por outras pala­
vras, no reinado da justiça, do amor, da liberdade e
da paz entre os homens.
E quero também dizer que esta esperança para
o mundo a estendo especialmente ao Brasil. É o Bra­
sil já hoje, territorial e populacionalmente, a maior
naçâo católica da terra.
No santuario da Aparecida, do mais íntimo da
alma roguei a Virgem Santissima, padroeira do Bra­
sil, que ela estenda o seu manto protector sobre a
grande naçâo irma — para que ela seja luz, alegria,
força e gloria de Deus no mundo.

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