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Marisa Lajolo

OQUE E LITERATURA

Verso
“Ela já não serve para nada”
Marshal McLuhan “Exprime, de modo inconfundível, a alegria
e a angústia, as certezas e os enigmas do homem”
Vítor Manuel de Aguiar e Silva Nem parece que esses dois
brilhantes intelectuais estão falando da mesma coisa, mas e
assim que eles. definem literatura.
Optar por um desses enunciados hão e ornais difícil.
ComplicadO:<rpesnho é saber se tudo o que se escreve
literatura. Aqueles contos na gãyétâ;;
as cartas amigas, poemas apaixonados... O que os diferencia
de um grande romance? E esta contracapa? Seria literatura?.

"... a literatura existe. Ela é lida, vendida, estudada. Ela ocupa


prateleiras de bibliotecas, colunas de estatísticas, horários de
aula. Fala-se dela nos jornais e na TV. Ela tem suas instituições,
seus ritos, seus heróis, seus conflitos, suas exigências. Ela é
vivida cotidianamente pelo homem civilizado e contemporâneo
como uma experiência específica, que não se assemelha a
nenhuma outra."
(R. Escarpit, Le Littéraire et le social) "Perguntar-se o que pode a
literatura? é já uma atitude mais científica do que perguntar-se o
que éa literatura?, mas seria melhor ainda perguntar-se o que
podemos fazer da literatura?"
I
Não faz tanto tempo, o mundialmente famoso sociólogo
norte-americano Marshal McLuhan cometeu a especial
delicadeza de dizer a um grupo de escritores reunidos num
congresso do Pen Club que eles, escritofes, eram nada mais
nada menos do que "os últimos sobreviventes de uma espécie
em vias de extinção" pois "já não serve para nada escrever e
publicar livros" (Teoria da Literatura).
Um livro que — exatamente por ser um livro — registra e
difunde o prognóstico de McLuhan, defende opinião oposta,
assinada pelo professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva: "a
literatura não é um jogo, um passatempo, um produto
anacrônico de uma sociedade dessorada, mas uma atividade
artística que, sob multiformes modulações, tem exprimido e
continua a exprimir,de modo inconfundível,a alegria e a
angústia, as certezas e os enigmas do homem. Foi assim com
Esquilo e com Ovídio, com . Petrarca e com Shakespeare, com
Racine e com Sthendal, com Eça e com James Joyce; continua a
ser assim com Sartre e com Beckett, com Jorge Amado e com
Nelly Sachs, com Norman Mailer e com Cholokhov, com Miguel
Torga ou com Her- berto Helder. E assim há de continuar a ser
com os escritores de amanhã. Apenas variará o tempo e o
modo" (Idem).
Mas, tanto McLuhan quanto Vítor Manuel são pessoas muito
especiais: são intelectuais, pensadores, produtores de
conhecimento. Freqüentam congressos, escrevem livros, têm sua
opinião ouvida, discutida, comentada. Assim, por mais
divergentes e contraditórios que sejam seus pontos de vista
sobre a literatura, há algo comum entre eles: ambos assumem
suas posições a partir de uma tradição cultural que vem se
construindo há séculos. O que é literatura, para qualquer um
deles — como para qualquer intelectual de sua classe e quilate
— exige uma resposta que retoma, atualiza e prolonga tudo o
que já foi, até hoje, pensado sobre o assunto.
Para encurtar a conversa, a posição que cada um deles
assume perante a literatura é uma posição culta, inserida numa
tradição cultural que, se tem o respaldo de muitos séculos^ tem
também a civilização burguesa por horizonte.
Aquém e além deles, uma multidão de gente anônima:
você, eu, nós todos eventualmente já nos perguntamos e
já nos respondemos o que é literatura. Perguntas
permanentes, respostas provisórias. Tão permanentes
umas e provisórias outras quanto o são as perguntas e
respostas com que lidam os intelectuais do time dos
McLuhan e Vítor Manuel.
Só que sem o reflexo do espelho, das citações, dos
interlocutores.
Então, em igualdade de condições, é arregaçar as
mangas e pagar pra ver.
II
Será que é errado dizer que literatura é aquilo que cada um
de nós considera literatura? Por que não incluir num conceito
amplo e aberto de literatura as linhas que cada um rabisca em
momentos especiais? Ou aquele conto que alguém escreveu e
está guardado na gaveta? Por que excluir da literatura o poema
que seu amigo fez para a namorada, só mostrou para ela e para
mais ninguém? Por que não chamar de literatura a história de
bruxas e bichos que de noite, à hora de dormir, sua mãe
inventava para você e seus irmãos? Por que negar o nome de
literatura aos poemas mimeografa- dos que o jovem autor vende
para a plateia depois do espetáculo ou na feira hippie de
domingo?
Estes textos não têm a mesma cidadania literária que o
romance famoso com crítica no jornal e comentado na escola?
E abrir os olhos e olhar em volta, para as pilhas de livros que
habitam bibliotecas e livrarias, para os textos que nos
contemplam distribuídos em volantes mimeografados ou
pintados a spray em alguns, muros e edifícios da cidade, e
remeter a eles a pergunta: o que é literatura?
Certos livros são muito conhecidos. Estão à venda em
qualquer livraria, todos conhecem o nome de quem os escreveu.
0 todos acima é um modo de dizer. Digamos, quase todos,
ou, melhor ainda, quase todos de uma certa classe, pois nenhum
MOBRAL conseguiu ainda transformar nem em leitores e muito
menos em consumidores de livros a percentagem dos cento e
vinte milhões de brasileiros, que, por direito de idade, poderia
ter acesso a bibliotecas e congêneres.
Mas, então, esses quase todos de uma certa classe dizem ter
lido ou pretender ler tal ou qual autor. Jorge Amado, Vinícius de
Morais e Castro Alves parecem se incluir neste caso. São
badalados, estudados nas escolas, citados. Os vivos estão
sempre recebendo convites para conferências, noites de
autógrafos, feiras de livros. E às vezes brigam. Como diz
Drummond: 0 poeta municipal discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal tira ouro do nariz.
(Reunião) Marisa Lajolo
Já outros escritores nlo desfrutam desta por assim dizer
unanimidade. Estão em outro esquema. Seus nomes são
desconhecidos, suas obras são difíceis de serem encontradas em
livrarias, não constam das bibliotecas, ninguém fala delas .. . são
escritores que imprimem seus livros à própria custa e vão vendê-
los de porta em porta ou de mesa em mesa, em restaurantes,
bares, cinemas e teatros das grandes cidades.
Enquanto isso tem-se notícia de que em pequenas cidades,
cantadores de feira, repentistas, contadores de histórias —
embora amados e respeitados por seu público — raramente
projetam seus nomes para além dos locais por onde passam.
Num movimento oposto, em segmentos extremamente
modernos e requintados da sociedade, livros de grande sucesso
— os bestsellers — são escritos por uma espécie de trabalho em
linha industrial: a produção da obra começa com um
levantamento das expectativas do público: tipo de história que
prefere, tolerância maior ou menor a sexo e violência, cenários e
ambientes de maior IBOPE, coisas assim. Com base nesta
pesquisa escreve-se um romance por assim dizer sob medida
para o público. Como investimento comercial, livros deste
figurino correm riscos mínimos em termos de retorno financeiro.
E aí? Com formas tão diferentes de produção e circulação de
objetos igualmente denominados literatura, será que é possível
defini-la?. Vamos chamar igualmente de literatura os romances
de autores consagrados como Érico Veríssimo e as produções
quase anônimas de cantadores de feira e autores marginais? Vão
para o mesmo saco (de gatos . . .) best-sellers escritos quase
que de encomenda e requintadas obras de vanguarda que
apenas poucos e eleitos entendem? E cabe também a etiqueta
literatura para aqueles autores como Rui Barbosa e Coelho Neto,
que sobrevivem apenas em manuais e aulas caretíssimas?
Antes que você desista e feche este livro, fique sabendo que
o problema não aflige só leitores e autores anônimos. Confunde
também gente mais graúda, diretamente envolvida na questão.
Por exemplo, escritores, mesmo os de renome.
Mário de Andrade, escritor brasileiro da primeira metade
deste século, parece ter resolvido a questão de maneira
exemplar: irritado com as intermináveis discussões sobre o
conto, virou a mesa e puxou o tapete das polêmicas sisudas:
"Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei
bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade"
(Contos Novos). Em outro momento, o mesmo Mário de Andrade
explode de novo: "Conto é tudo aquilo que o autor chama de
conto". Primazia absoluta da intenção do autor, denúncia radical
do arbitrário e relativo das teorias que definem, rebatem,
discutem e muito pouco dizem ao autor e ao leitor.
Rubem Braga pode ser outro exemplo de desabafo.
Sentindo-se expulso de uma das várias histórias da literatura
brasileira que correm mundo (III), considerou-se vingado no
momento em que uma antologia de suas crônicas foi incluída
numa coleção com um título explicitamente literário.
Outros escritores — poetas, romancistas, teatró- logos —
tiveram e têm momentos semelhantes de revolta: num gesto
largo de independência, deram soberania ao indivíduo que
escreve, atribuindo a ele — a ele e talvez a seus leitores — o
direito de chamar ou não alguma coisa de literatura.
Veja o leitor como é fácil ser irreverente quando se vai de
mãos dadas com Mário de Andrade e Rubem Braga. Embora não
sejam da Academia, eles são da patota. Somos incorrigíveis, não
é? Gratos pela força que nos deram, voltamos a indagar de
nossos botões.
Será que são literatura os poemas adormecidos em gavetas
e pastas pelo mundo afora, os romances que a falta de
oportunidade impediu que fossem publicados, as peças de teatro
que, como dizia Fernando Pessoa, jamais encontrarão ouvidos de
gente? Será que tudo isso é literatura? E, se não é, por que não
é? Para uma coisa ser considerada literatura tem de ser escrita?
Tem de ser editada? Tem de ser impressa em livro e vendida ao
público?
Será então que tudo o que foi publicado em livro é
literatura? Mesmo aquele romance de alta sacanagem, que todo
mundo lê escondido e gosta?
E os livros que nenhum professor manda ler, de que crítico
nenhum fala, que jornais e revistas solenemente ignoram?
A resposta é simples. Tudo isso é, não é e pode ser que
seja literatura. Depende do ponto de vista, do sentido que a
palavra tem para cada um, da situação na qual se discute o que
é literatura.
III

Mas chega de rodeios. A paciência é curta, não é verdade,


impaciente leitor? E vamos a um final- ^ mente que dê a
sensação de que não perdemos tempo, e que, por esta altura, já
estamos mais próximos de um conceito de literatura do que
estávamos quando contemplávamos este livrinho do lado de fora
da vitrina da livraria.
0 finalmente é que a obra literária é um objeto social. Para
que ela exista, é preciso que alguém a escreva e que outro
alguém a leia. Ela só existe enquanto obra neste intercâmbio
social.
Num mundo como o nosso, essa relação binária entre o
produtor e o consumidor de obras literárias é mediada por
muitas instâncias: a do editor, a do distribuidor, a dos livreiros,
para ficarmos só nas alfândegas que o texto paga para ter
direito a ser impresso, a circular e, eventualmente, a ser lido.
Há, então, na sociedade moderna, uma espécie de corredor
comercial pelo qual deve passar a obra literária antes que se
cumpra sua natureza social, de criar um espaço de interação
estética entre dois sujeitos: o autor e o leitor (epal com este
"espaço de interação estética entre dois sujeitos" parece que os
finalmentes vêm de cambulhada e chovem sobre o texto, não é,
leitor amigo?). Vamos sair de fininho deste circuito, cujo
reconhecimento, no entanto, é indispensável na caracterização
do sistema contemporâneo de produção da obra literária. Sob
este aspecto, não tem choro nem vela: a literatura iguala- -se a
qualquer produto produzido e consumido em moldes capitalistas,
isto é, confunde-se com esmaltes de unhas, marcas de carro e
supermercados.
Mas, há mais coisas, entre o autor e o leitor, do que a
sombra sinistra do sistema-capitalista de produção. Para que um
texto seja considerado literatura (e aqui, talvez, alguns leitores
gostassem de uma inicial maiuscula ... Literatura) é preciso algo
mais do que o livre trânsito entre seu autor e um eventual leitor.
Parece ser necessário o aval dos canais competentes. Quem são
estes canais? Pois é. Quem são?
Canais competentes são todas aquelas instâncias às quais
cumpre referéndar a Hterariedade. As quais compete, por uma
espécie de acordo entre cavalheiros, estabelecer (mesmo que
pela crítica demolidora), o valor ou a natureza artística e literária
de uma obra considerada literária por seu autor ou eventuais
leitores.
E necessário, portanto, para que uma obra seja considerada
parte integrante do conjunto de obras literárias de uma dada
tradição cultural, que ela tenha o endosso de certos setores mais
especializados, aos quais compete o batismo de um texto como
literário ou não literário.
E quem são estes setores especializados?
São poucos, ou muitos, mas sempre os mesmos, que Narciso
acha feio o que não é espelho: os intelectuais, a crítica, a
universidade, a academia. Algumas destas entidades são
"entidades" entre aspas.
Não são institucionalizadas. Sem sede nem cartei- rinha, pairam
nas nebulosas esferas do subentendido, do dito nas entrelinhas,
do tacitamente consentido. Outras não. A Academia — a
Brasileira de Letras, por exemplo — além de sede tem uniforme
e espada. A crítica já é mais sutil: inclui tanto as.azedas opiniões
de um desafeto do autor, quanto o minucioso (mas nem por isso
mais insuspeito) estudo de uma obra numa publicação
especializada em crítica literária.
Entre as instâncias responsáveis pelo endosso do caráter
literário das obras que aspiram ao status de literatura, a escola é
fundamental. A instituição escolar é das que há mais tempo e
com maior eficiência vêm cumprindo o papel de avalista e
fiadora da natureza e valor literários dos livros em circulação.
Podia-se acompanhar historicamente o sucessivo acumular
de competências que foi dotando a escola de um poder de
censura — em nome do bom gosto — sobre a produção literária.
Mas seria demorado, não é, leitor? Vamos então por um atalho, a
reflexão sobre a palavra clássico e seus derivados, de trânsito
tão freqüente em livros e aulas de literatura, e tema do próximo
capítulo.
IV
À primeira vista, clássicas são as obras produzidas num
determinado período da tradição literária: os velhos autores da
antiga Grécia e Roma, os mais modernos — mas igualmente
antigos — escritores da Europa renascentista. Mas, desse
significado (indicar as obras produzidas numa determinada
época), clássico — suas flexões e derivados — passou a indicar
um juízo de valor: tanto para uma partida de futebol quanto para
um livro.
Nesta outra acepção, a de significar excelência, boa
qualidade, um autor ou texto para serem considerados clássicos
não precisam ser contemporâneos nem da Grécia de Eurípides,
nem da França de Ra- cine, nem mesmo do Portugal de Camões.
Basta apenas que o escritor ou o texto sejam reconhecidos como
excelentes, acima de qualquer suspeita... é só nesse sentido que
se pode dizer que Rubem Braga é um clássico da crônica, ou
Noel Rosa um clássico da música popular brasileira.
E qual foi o passe de mágica pelo qual a palavra clássico (a,
os, as, ismo...) desenvolveu um significado segundo sobre um
significado primeiro? Ou, melhor ainda: qual é o significado
primeiro e qual é o segundo? Sem cartolas nem coelhos, a
jogada está na palavra derivada de classis, palavra latina que
significa classe de escola. Os clássicos, então, eram chamados
clássicos por serem julgados adequados à leitura dos
estudantes, úteis na consecução dos objetivos escolares. E como
a escola, na seleção de seus textos, privilegiava os autores mais
antigos, vem daf talvez a superposição de significados.
Começa assim, bem antigamente, o papel da escola como
uma das mais importantes instâncias que legitimam uma obra,
não só como boa ou má literatura, mas como literatura ou não
literatura. Os traços de instituição avalista e sancionadora da
produção que se pretende literária persistem em outras
maneiras de dizer: a escola romântica, a escola de Recife e, mais
uma vez, na maravilhosa irreverência de Mário de Andrade, para
quem "em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade
dum só".
Tem, assim, marcas muito fundas de seu lugar social de
origem toda a discussão sobre o que é literatura. Reconhecer o
lugar social que marca esta discussão não implica em negar sua
validade, sua seriedade. Implica apenas em assumir sua
relatividade, em negar sua superioridade, seu caráter de
verdade maior e absoluta.
Nestes termos a discussão de o que é literatura costuma ser
séria. Profunda. Bem formulada. Já faz muitos séculos que certas
pessoas vêm se empe- j nhando em definir, para melhor
compreender e do- ! minar, a natureza dos textos que os
encantam. Esse esforço contínuo de definição faz com que as
for- W mulações mais modernas constituam uma forma de
diálogo que retoma, rebate e prolonga as anteriores. Incorporam
conceitos de outras ciências humanas. Exigem, de quem quer
discuti-lo, um mínimo de familiaridade com a linguagem da
filosofia, da história, da linguística, da sociologia, da
antropologia, de quantas logias mais se quiser.
Calma, leitor indignado e impaciente. Para entrar na e
participar da plenária desta discussão, é preciso ter ingresso.
Para dizer a verdade, comprar in^l gresso. Não dá para pegar o
bonde andando, que o tombo é quase certo. E os ingressos —
livros, cursos, escolas — nem estão por aí, nem são oferta grátis.
Custam exatamente o que custa pertencer à classe dominante
ou, pelo menos, ter acesso a suas formulações culturais. Que,
aliás, é o que se costuma exigir quando se pretende avaliar
"instrução", "cultura", "saber", etc., etc., etc.
De uma vez por todas, a viagem pelos conceitos costuma
interessar apenas a uns poucos. Por exemplo, só aos que usam
óculos, que os outros estão ocupados demais com a própria
sobrevivência e, portanto, ignoram a viagem do bonde
fantástico, cujos primeiros passageiros conhecidos foram
provavelmente Platão e Aristóteles, revezados depois por uma
pequena multidão de cidadãos do mundo igualmente ilustres.
Definitivamente, então, quem escreve e lê um livro como
este aqui, já está a meio caminho do oculista. As situações nas
quais precisamos de uma resposta para a pergunta o que é
literatura? são muito marcadas. Se não têm fardão e beca, têm
lousas, exames e livros como cenário. O script é o que nos
deram e, queiramos ou não, precisa ser decorado, incorporado,
entendido.
Há, portanto, que escolher o tom de voz certo, o que não
impede ninguém de mostrar a língua quando todos estão de
costas. Ou, os mais afoitos, em pleno palco, o de frente para a
plateia. Que o mais é guardar-se pra quando o carnaval chegar.
V
Mesmo — e talvez principalmente — de uma perspectiva
culta, definir literatura exige uma razoável mão-de-obra. Nem do
ponto de vista tradicional, acadêmico e elaborado, literatura tem
uma definição, no sentido em que podem ser definidos — com
certa unanimidade — um composto químico, um acidente
geográfico, um órgão do corpo humano.
Pode-se definir, sem muito sangue na arena, água,
cordilheira, aparelho respiratório, coisas assim. Mas a poeira é
muita quando se tenta definir literatura, liberdade, arte e
congêneres. Aí as perguntas são muitas e as respostas poucas.
Tem tanta gente pensando no assunto (aliás, sempre teve) e
tantas e tão diferentes são as respostas sugeridas que não dá
para eleger uma delas como verdadeira e jogar no lixo todas as
outras.
O que é literatura? é uma pergunta que tem várias respostas. E
não se trata de respostas que, paulatinamente, vão-se
aproximando cada vez mais de uma grande verdade, da
verdade-verdadeira. Não é nada disso. Não existe uma resposta
correta, porque cada tempo, cada grupo social tem sua resposta,
sua definição para literatura. Respostas e definições — vê-se
logo — para uso interno.
Já houve centenas de tentativas de definir o que é literatura.
Nessas investidas, vários têm sido os critérios pelos quais se
tenta identificar o que torna um texto literário ou não literário: o
tipo de linguagem empregada, as intenções do escritor, os
temas e assuntos de que trata a obra, a natureza do projeto do
escritor... tudo isso já teve ou ainda tem sua hora e sua vez.
Cada uma destas definições é parcial em si mesma. E em
conjunto, mais do que se anularem umas às outras,
complementam-se, ajustam melhor certos aspectos e, acima de
tudo, correspondem ao que foi ou é possível pensar de literatura
num determinado contexto da vida do homem.
Estabelecer, afinal, o que uma coisa é pode não valer tanto a
pena. Desconfio, e meus botões concordam, que a literatura
continuará a ser o que é para cada um, independente do que
outros digam que ela é. De qualquer forma, a ascensão e queda
de conceitos de literatura parece seguir uma dinâmica própria e
não exclusiva: pensadores, escritores, artistas e demais
interessados discutem, escrevem, polemizam (antigamente às
vezes até duelavam!) e, com isso, modulam conceitos que
parecem explicar de forma convincente o que é literatura em
vista da produção de seu tempo. Giram os ponteiros. De repente,
começam a surgir novos tipos de poemas; romances e contos
passam a manifestar perfis inovadores, surgem formas novas e
não previstas de criação literária e ... engatam-se novas
discussões, novas teorias, até que a poeira assenta, para de
novo levantar-se em nuvem tempos depois.
O que quero dizer é que há uma profunda relação entre as
obras escritas num período — e que, portanto, configuram a
literatura deste período — e aquilo que, nestas obras, costuma
ser identificado como o específico literário. Desenvolve-se,
assim, uma espécie de diálogo ininterrupto entre a prática e a
teoria da literatura. Em outras palavras: os conceitos de
literatura (lembre-se da ressalva, leitor: certos conceitos, os de
tradição filosófica, intelectual . ..) são inspirados pela leitura das
obras literárias (perdão, leitor, mas de novo outra ressalva: de
certas obras, de livre trânsito nos meios filosóficos e intelectuais
...). Reciprocamente, as obras literárias de um certo tempo, por
serem permeáveis ao intercâmbio, incorporam tais formulações,
vali- dando-as aos olhos de seus formuladores.
Teoria e1 prática literária correm o risco de se repetirem uma
à outra. A partir de certo momento, a quase perfeita identidade
entre teóricos e escritores torna-se redundante. Eco recíproco, o
texto literário e sua teoria chegariam ao impasse do silêncio. A
volta por cima é o momento da vanguarda, da subversão de
tudo o que se disse e se fez em termos de literatura.
E nessa subversão radical que a literatura retoma sua
dinâmica. Brechas no aparato conceituai, linguagens novas no
horizonte da produção literária. E recomeça o diálogo, não só do
texto literário com sua teoria, mas da produção literária de um
dado período com todo o conjunto de obras que o precedeu.
Rompe-se aí o círculo vicioso de uma teoria e uma prática que
constituem um espelho no qual se miram uns e outros.
Mas, seja como for, mesmo de uma perspectiva intelectual,
as definições propostas para literatura importam menos do que
o caminho percorrido para chegar a elas. Ou, como dizia
Fernando Pessoa, o que importa mesmo é esperar D. Sebastião,
quer venha ou não.
Apontar, então, como a literatura foi diferentemente
concebida em diferentes momentos da história é o caminho
esperado. No tempo devido iremos a ele, mesmo que esse
percurso não me pareça afetar muito o relacionamento das
pessoas com os textos cuja leitura lhes dá prazer. Reivindico,
portanto, o direito a miragens e caretas, para as quais os leitores
estão devidamente convidados.
No intervalo, um ajuste de contas: da literatura com a
linguagem.
VI
Vamos começar o ajuste de contas pedindo socorro ao
Aurélio que, no lugar competente (página 845), ensina que:
LITERATURA Do lat. litteratura.] S.F. 1. Arte de compor ou
escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso. 2. O conjunto de
trabalhos literários dum país ou duma época. 3. Os homens de
letras: A literatura brasileira fez-se representar no colóquio de
Lisboa. 4. A vida literária. 5. A carreira das letras. 6. Conjunto de
conhecimentos relativos às obras ou aos autores literários:
estudante de literatura brasileira; manual de literatura
portuguesa. 7. Qualquer dos usos estéticos da linguagem:
literatura oral q.v. 8. Fam. Irrealidade, ficção: Sonhador, tudo
quanto diz é literatura. 9. Bibliografia:^ é bem extensa a
literatura da física nuclear. 10. Conjunto de escritos de
propaganda de um produto industrial.
São, como se vê, dez diferentes significados recobertos pela
mesma palavra. Mas, antes que algum leitor mal-humorado me
acuse de passar a bola para o Aurélio em vez de entrar eu
mesma em campo para a partida, aviso: o que me interessa lá
do verbete dele, por enquanto, é a informação primeira, que
vem entre colchetes: do latim litteratura.].
A forma latina litteratura nasce de outra palavra igualmente
latina: Httera, que significa letra, istoé, sinal gráfico que
representa, por escrito, os sons da linguagem. O parentesco
letras/literatura continua em expressões como cursos e
academias de letras, homens letrados, be\as-letras e tantas
outras. Insinua-se, por aí, uma estreita relação entre a palavra
literatura e a noção de língua escrita, pergaminho com
iluminuras, papel impresso, etc.
Corra, leitor cauteloso! Vá conferir no verbete do Aurélio
quantas vezes a noção de escrita está implícita ou explícita nos
significados que ele atribui a literatura.
Aos olhos da nossa tradição cultural, o domínio da escrita
vale muitos pontos. É timbre de distinção, atestado de
superioridade intelectual, marca de valor: tanto para indivíduos
quanto para civilizações. Que os escândalos anuais em torno da
assim chamada calamidade-redação nos exames vestibulares o
atestem. Daí que o entrelaçamento da noção de literatura com a
linguagem escrita favorece um conceito de literatura que
privilegia a manifestação escrita sobre a oral.
Some-se a isso o fato de que, antes de significar o que
significa hoje, o termo literatura recobria outros significados: o
de erudição, de conhecimentos gramaticais, de domínio das
línguas clássicas.,. foi i só a partir dos meados do século XVIII
que a palavra literatura foi tendo atenuado seu significado de
atividade intelectual superior mas generalizada, e fortalecido o
significado mais próximo do que hoje ela nos sugere.
Mas, se contemporaneamente a palavra literatura em
algumas situações já rompeu com a conotação de altos saberes
e elevadas ciências, este rompimento não foi total: gravita
ainda, em tomo da palavra (e da noção de) literatura um
restinho do halo de seriedade e respeitabilidade que aureolava
seus antigos usos.
Ilustrando essa importância da escrita no estabelecimento
da teoria e da história literária, vamos voltar no tempo, às
primeiras manifestações poéticas do velho Portugal, todas de
caráter eminentemente oral: as canções de amigo e de amor.
Como sugere a palavra canção, eram originalmente textos orais,
cantados e dançados pelos coloridos jograis, e trovadores da
Idade Média portuguesa. No entanto, essa produção oral só se
transforma em documento literário a partir do momento em que
é registrada e recolhida em cancioneiros; O curioso é que na
compilação, os textos deixam de ser o que .eram: música, dança
e palavra, e passam a ostentar a frialdade e afastamento do
texto só escrito, das linhas secas e despidas de música.
Distancia-se, assim, o registro que temos (e sobre o qual se
constrói a história literária) de nossas origens literárias, das
apresentações musicais e movimentadas dos artistas que
apresentavam simultaneamente a música, o canto, a dança.
Neste mesmo sentido — da elitização e do resfriamento do
que se chama literatura — o nosso dia-a-dia também é
eloqüente: olhando à nossa volta, vemos como explode uma
cultura rica em matizes visuais, riquíssima em sonoridades, tons
e semitons. O corpo reivindica o espaço que tanto tempo a
repressão confinou ao limite das roupas e dos movimentos
sóbrios do decoro burguês. O corpo reconquistado explode em
movimento, em dança, em sensações. Assim, movimento,
visualidade, sonoridade, geralmente ausentes (ou apenas
latentes) no texto escrito, manifestam-se gloriosamente na
música popular, um dos refúgios contemporâneos da literatura.
A admissão da MPB no pódio da literatura, no entanto, não é
tão tranqüila assim: fora os que torcem de cara o nariz, existem
os que cobram sua admissão: o preço é ser a MPB passível de
uma reflexão que, passando por cima de seus elementos não
estritamente verbais, aplica a eia os mesmos critérios e
categorias tradicionais na literatura escrita. Isto para não falar
da telenovela, também sem direito ao pódio literário . . .
intelectual nenhum que se preze assiste a ela.
Essa desconfiança de tudo o que não é escrito, - ou de tudo que
ao escrito acrescenta outros códi- 1 gos, não nasce da azeda má
vontade da crítica, não. 1 E, talvez, a marca de sua impotência
para lidar com qualquer coisa que, ao contrário dela, não tenha i
raízes cultas e nobres."
VII
'Quando o homem não era mais símio, mas ainda não era
completamente humano, no começo de tudo, ele se maravilhou
com a linguagem.
Foi através dela, talvez naquele tempo limitada a ruídos
muito primitivos, ainda próximos do grito animal, que suas
coisas ausentes se fizeram tão presentes como se nunca
passaram. O que era remoto e perigoso tornou-se familiar e
amoldou-se à dimensão humana.
Bichos, plantas, rios e montanhas receberam nomes. Foram
reproduzidos em desenhos, foram simbolizados por sons e sinais
gráficos. Completou-se a transformação: o homem não era mais
um ser entre outros seres, mas o ser capaz de simbolizar todos
os outros. E, nessa faculdade de simbolização, estava latente a
possibilidade de conhecimento e domínio.
As lendas e histórias que contam o poder mágico de certas
palavras, vivem nos lembrando disso: a caverna de Ali Baba
abria-se por força mágica do abre-te sésamo\ Nas mitologias da
sociedade moderna, o Capitão Márvel invoca, com a palavra
SHA- ZAN, as qualidades olímpicas e heróicas dos deuses e
semideuses que lhe delegam superpoderes.
Também testemunho vivo desta força mágica que se atribui
à linguagem e que sempre fascinou o homem é o tabu que cerca
a pronúncia de algumas palavras. Câncer talvez seja o melhor
exemplo contemporâneo do medo que certas palavras
provocam. Esta seqüência de seis letras tem um eco tão terrível
e profundo, que só é pronunciada raramente. Em lugar da
precisão fria deste termo para nomear a doença, usamos
circunlóquios, expressões atenuantes: "aquela doença", "mal
terrível" são fórmulas substitutas: tomam o lugar de câncer,
assim como mal de Hansen e mal dos deuses assustam menos
do que lepra e epilepsia.
Parece, então, que, em relação a certas palavras, o homem
se comporta como se acreditasse que a simples pronúncia delas
tivesse o poder de defla- gar a realidade da coisa nomeada. Em
outras palavras: a presença do nome seria suficiente para
carrear a presença do ser que ele nomeia.
Outro exemplo ainda, para os leitores céticos que acreditam
piamente que as palavras são palavras e nada mais: na tradição
judaica ortodoxa, a palavra deus não pode ser escrita com todas
as letras, em obediência ao preceito “não tomarás seu santo
nome em vão". No aportuguesamento do preceito escreve-se
D'us. D'us, então, na mutilação de sua integridade, reproduz a
desigualdade da relação homem/deus na perspectiva judaica e
judaico- •cristã. Mesmo no prosaico uso de letras maiúsculas nos
nomes próprios pode ser vista uma convenção que transfere,
para o universo verbal da modalidade escrita, as marcas que
assinalam a especificidade de um certo tipo de seres numa certa
visão de mundo.
Em ambos os procedimentos, ressaltam as marcas da
suspeita de identidade entre nome e coisa, a mesma identidade
que faz evitar a pronúncia do nome de certas doenças.
Nos usos que o homem faz da linguagem, em inúmeras
outras situações, as palavras se tecem de forma a intensificar ou
atenuar o relacionamento do homem com o mundo das coisas.
Temendo a violência do mundo dos seres, e ao mesmo
tempo fascinado por ele, o homem vive e se move entre
palavras, ora fortalecendo, ora atenuando o vínculo destes dois
mundos: o original dos seres e o simbólico da linguagem.
O relacionamento linguagem/mundo, então, ora esgarça e
diminui a distância e a convenção que separam palavras e
coisas, ora cimenta e fortalece o espaço que se interpõe entre as
coisas-e as palavras.
O homem, assim, constantemente se faz recordar que os
nomes não são as coisas. Mas, no mesmo movimento, percebe
que as coisas só existem para ! ele, homem, quando
incorporadas à sua linguagem.
E é nesse jogo de avanços e recuos, entre a momentânea
certeza de que as palavras e coisas constituem uma unidade e a
igualmente momentânea angústia de que palavras e seres
jamais se interpenetram, que se configura a linguagem. E é
desta linguagem, na sua manifestação mais radical, que surge a
literatura.
VIII
Participando da natureza última da linguagem — simbolizar
e, simbolizando, afirmar a distância entre o mundo dos símbolos
e dos seres simbolizados — a literatura leva ao extremo a
ambigüidade da linguagem: ao mesmo tempo em que cola o
homem às coisas, diminuindo o espaço entre o nome e o objeto
nomeado, a literatura dá a medida do artificial e do provisório da
relação. Sugere o arbitrário da significação, a fragilidade da
aliança e, no limite, a irredutibilidade de cada ser. É, pois, esta
linguagem instauradora de realidades e fundante de sentidos a
linguagem de que se tece a literatura.
Nada, entretanto, de receitas literárias. Nem prescrições,
nem proscrições. Toda e qualquer palavra, toda e qualquer
construção lingüística pode figurar no texto e literalizá-lo. Ou, ao
contrário, não literalizá-lo coisa nenhuma, apesar de todo
opedigri literário que certas palavras e construções parecem
arrastar atrás de si.
Não é, portanto, o uso deste ou daquele tipo de linguagem
que vai configurar a literatura. 0 registro coloquial, o
parnasianês nativo da sonetolândia, as metáforas de palanque ..
. qualquer tipo de linguagem nem anula o literário, nem
necessariamente o provoca. E a relação que as palavras
estabelecem com o contexto, com a situação de produção e
leitura que instaura a natureza literária de um texto.
Assim, não se pode falar numa distinção aprio- rística entre
linguagem literária e, por exemplo, linguagem coloquial. 0 que
toma qualquer linguagem isto ou aquilo é a situação de uso. A
linguagem parece tornar-se literária quando seu uso instaura um
universo, um espaço de interação de subjetividades (autor e
leitor) que escapa ao imediatismo, à predic- tibilidade e ao
estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram a
vida cotidiana.
Parece que o milagre se dá quando, através de um texto,
autor e leitor (de preferência ambos) suspendem de alguma
forma a convenção de significado corrente. Assumindo ou
recusando o câmbio oficial da linguagem de seu tempo, mas de
qualquer forma fecundando-o, têm, no texto, um momento de
verdade que, com licença do poetinha, "não seja imortal posto
que é chama, mas que seja. infinito enquanto dure".
0 texto literário, ao mesmo tempo que significa, como que
sugere os limites da significação. Dribla o leitor, sugerindo-lhe
que o que diz é e não é, porque o dizer, em literatura, tira sua
força, paradoxalmente, do relativo e provisório.
Na situação de produção e significação do texto literário, o
contexto estabelecido tende a elidir as fronteiras entre o que à
primeira vista seria científico, ou técnico ou prosaico.
Cansado de bláblá-biá, leitor? Plim Plim. Textos para
refrigério.
LIÇÃO SOBRE A ÁGUA Este líquido é água: quándo puro, é
inodoro, insípido, incolor; reduzido a vapor
sob pressão e a alta temperatura move os êmbolos das
máquinas que por isso se denominam máquinas de vapor
É um bom dissolvente, embora com exceções: mas de um modo
geral dissolve tudo bem
ácidos, bases e sais Congela a zero graus centesimais Ou ferve a
cem
Quando à pressão normal Foi nesse líquido que numa noite
cálida de verão, sob luar gomoso e branco de camélia apareceu
a boiar o cadáver de Ofélia com um Menúfar na mão.
(Antonio Gedeão, Poesias Completas) RECEITA DE HERÓI
Tome-se um homem feito de nada Como nós em tamanho
natural Embeba-se-lhe a carne Lentamente De uma certeza
aguda, irracional Intensa como o ódio ou como a fome. Depois
perto do fim Agite-se um pendão E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
(Reinaldo Ferreira) CORAÇÃO
Coração, grande órgão propulsor, distribuidor do sangue venoso
e arterial Coração, tu não és sentimental Mas, entretanto, dizem
que és o cofre da paixão.
Coração, não estás do lado esquerdo, nem tampouco do direito,
ficas no centro do peito, eis a verdade.
Tu és pro bem-estar de nosso sangue p que a casa de detenção
é para o bem da humanidade Coração de sambista brasileiro
Quando enche o pulmão Faz a batida do pandeiro Eu afirmo, sem
nenhuma pretensão, que o amor faz dor no crânio Mas não ataca
o coração.
(Noel Rosa)
POSITIVISMO
A verdade meu amor mora num poço É Pilatos lá na bíblia quem
nos diz E também faleceu por ter pescoço O infeliz autor da
guilhotina de Paris O amor vem por princípio, a ordem por base,
o progresso é que deve vir por fim desprezaste esta lei de
Augusto Comte E foste ser feliz longe de mim.
Vai, orgulhosa, fingida Vai aprender a lição No câmbio certo da
vida, a libra sempre foi o coração.
IX
Éa literatura porta de um mundo autônomo que, nascendo
com ela, não se desfaz na última página do livro, no último verso
do poema, na última fala da representação. Permanece ricoche-
teando no leitor, incorporado como vivência, erigi ndo-se em
marco do percurso de leitura de cada um.
Daí o engano de quem acha que o caráter huma- nizante e
formador da literatura vem da natureza ou quantidade de
informações que ela propicia ao leitor. Literatura não transmite
nada. Cria. Dá existência plena ao que, sem ela, ficaria no caos
do ino- meado e, conseqüentemente, do não existente para cada
um. E, o que é fundamental, ao mesmo tempo que cria, aponta
para o provisório da criação.
Troçando em miúdos, que venha em meu socorro Gonçalves
Dias. Com ele e com Manuel Bandeira, com palmeiras e com
Pasárgadas, é bola pra frente, que o jogo é a taça.
Quando Gonçalves Dias chora de saudades da Pátria dizendo
que sua terra tem palmeiras onde canta o sabiá, "palmeiras" e
"sabiá" são traços I leves, por assim dizer só acidental mente
relaJHII cionados à sensação de saudade, de finitude do homem,
de sua familiaridade maior com certos espaços e resistência a
outros. O traço da paisagem é circunstancial: brasileiro, quase
verde-amarei o. No texto do poeta, no entanto, transformam-se
e significam muito mais do que meros elementos da flora e da
fauna brasileiras. Evocam, em cada leitor, sua j palmeira e seu
sabiá, que podem não ter existido, mas cuja existência se
pressente a partir da leitura.
Talvez fique mais claro o que entendo porsigni- 'I . ficado
fundante da literatura se apelar para outros versos, aqueles em
que Manuel Bandeira cria e celebra a utopia de sua Pasárgada:
Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a
mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora
pra Pasárgada.
(Estrela da Vida Inteira)
Não vem ao caso a precisão geográfica e histórica da
Pasárgada; se é próxima ou distante, se tem rei ou vive em
regime republicano. Aqui, a irrelevância de pedirmos à literatura
provas documentais do que afirma é bem clara. Pasárgada, terra
da utopia, sublinha o caráter fantástico daquilo que em
Gonçalves Dias pode confundir-se com a paisagem real. Tanto
Pasárgada quanto a terra de onde Gonçalves Dias sente
saudades têm existência apenas literária, nascidas da vivência
dos poetas e recriadas na experiência de seus leitores.
Tudo isso, leitor, para dizer que não precisam ser verdadeiras
as histórias que a literatura conta. Aliás, também não precisam
ser inverídicas. Tanto faz. Importa bem pouco saber se Iracema,
a virgem dos lábios de mel, vagava enamorada nas alvas praias
dos verdes mares bravios. Idem para a certidão de casamento
do casal Capitu e Bentinho, que viveu as dúvidas do ciúme ao
tempo do segundo império brasileiro. Não v.em ao caso indagar
se eles existiram como pessoas. Tia Nastácia, tendo ou não sido
a babá de um dos filhos de Lobato, ganhou o amor dos leitores
do sítio. Como ficção, como criação, as personagens encarnam o
que podería ter sido. O que, para parodiar o Chico, anda na
cabeça e anda nas bocas. Ou andava, no tempo de cada um.
O mundo da literatura, como o da linguagem, é o mundo do
possível. Esta afirmação não tem nada de novo. Já Aristóteles,
respondendo a Platão, dizia que, enquanto a história narrava o
que realmente tinha acontecido, o que podia acontecer ficava
por conta da literatura.
Devagar, leitor. Esse compromisso da literaturacom o mundo
possível não implica no abandono do projeto de fazer do
presente seu ponto de partida ou de chegada. Não serei o poeta
de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros, já advertiu
Drummond, que tem sempre razão.
Não se trata, portanto, de banir da literatura o cotidiano, o
hoje, o aqui e o agora. Antes pelo contrário. A história vivida e
sofrida pela multidão de leitores está sempre presente, no direito
ou no avesso do texto.
A própria criação da utopia se nutre sempre de uma
imaginação ancorada na realidade, mesmo os mundos edênicos
como a Pasárgada de Bandeira, j ou os labirintos degradantes e
assustadores como os percorridos pelas personagens de Zero,
de Inácio de Loyola.
Os mitos e espaços poéticos nascem não só da realidade
circundante, compartilhada por autor e leitores, mas também do
diálogo com tudo o que, vindo de tempos anteriores, constitui a
chamada tradição literária. E como se a literatura fosse um
constante passar a limpo de textos anteriores, constituindo o
conjunto de tudo — passado e presente — o grande texto único
da literatura.
Prontinho, prezado leitor. Veja agora com que destreza, com
que arte fiz eu a última transição deste livro. A recuperação do
passado no presente, é a deixa de que eu precisava para viajar
um pouco, contemplando de mais perto diferentes concepções
de literatura até hoje respeitáveis. Mas, cuidado: eu disse
algumas, e a história é a que se quer oficial.Portanto, respiração
profunda, cintos apertados, pitada de pirlimpimpim. Vamos aos
gregos.
X
Ver como foi concebida a literatura desde que o homem
começou a registrar suas preocupações com ela é, de certa
forma, ficar sabendo como os que tinham e têm acesso a voz e
voto a conceberam. Desde os gregos, criou-se uma linhagem de
definições que, embora muitas vezes conflitantes, têm em
comum sua origem letrada.
Vai por água abaixo a intocabilidade de certas definições
quando vemos que são sociais os critérios que filtram o que vai e
o que fica. O prestígio de alguns conceitos, endossados por
certas instituições ou percursos de circulação, condena outros à
desmemoria dos homens, ao menos daqueles que registram a
tradição cultural.
Ê preciso, portanto, estar atento e forte e levar em conta que
as definições apesar (ou por causa...) da pretensão à
universalidade mostram as cicatrizes da classe de origem.
Reconhecer, no entanto, os filtros ideológicos da história das
teorias literárias não anula a importância de conhecê-las. Trata-
se de uma porta, tão larga ou tão estreita quanto outra qualquer.
E, se põe a nu a fragilidade do edifício, permite também o
ingresso nele, que é de onde ele pode ser observado.
O passado só sobrevive em forma de linguagem, no que
resta dele transformado em presente, no que dele se cristalizou
nos documentos conhecidos.
E o caráter parcial destes documentos herdados é indiscutível.
Se muitos documentos registram o que Horácio pensava da
poesia, onde estão os documentos que registram o que
pensavam dela a mulher e os escravos do poeta?
Então, repetindo ainda uma vez, que nunca é demais, os
documentos refletem sempre os olhos que os escreveram e
quase sempre os que os lêem. Lidando com eles, a escolha não é
minha nem sua; e a literatura é filtrada pela distância e pelas
vivências: a que não temos do passado, e a que temos do
presente.
Por tudo isso, a turnê histórica que vai começar no próximo
capítulo não vai ser longa. Sem dúvida, alguns turistas vão
reclamar do itinerário, que outro seria o de sua preferência.
Paciência! As passagens estão compradas e a companhia,
embora aceite reclamações, não devolve o dinheiro. Para os
insatisfeitos, o percurso admite, no máximo, como qualquer
texto escrito, o abandono no meio do caminho. É ir cuidar de
outra coisa, que o resto é literatura ... À vontade, leitores!
Qualquer seleção é sempre arbitrária e pessoal, e o máximo de
liberdade é o direito de andar sozinho, como já dizia o mesmo
Mário de Andrade lá de trás, ao fundar o desvairismo.
XI
A ordem, senhores passageiros, é apertar os cintos e não
fumar. A primeira parada tem no horizonte o perfil da acrópole
grega. Começamos por lá, onde se pensa ser o começo, antes de
Cristo, no tempo dos gregos antigos. Aparentemente
desaparecidos, eles deixaram muitos rastros, muitas pistas e,
quando menos se espera, ressuscitam.
Esta ressurreição é uma forma de permanência. A cultura
grega sobrevive, e não só nos objetos e textos que nos legou.
Ela permanece também na herança cultural que permeia nosso
dia-a-dia e, de forma talvez mais viva, nas sucessivas
reinterpreta- ções que seu modo de vida inspirou, e parece
continuar inspirando.
Um dos belos momentos de ressurreição é o que se
contempla nos textos abaixo, de um poeta moderno
português: Fernando Pessoa, na, linguagem de seu
heterônimo Ricardo Reis:
"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada."
(Obra Poética) Para ser grande sê inteiro: nada Teu exagera ou
exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes
Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.
(Ibidem) As rosas amo do jardim de Adónis, Essas volucres amo,
Lídia, rosas, Que em o dia em que nascem.
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque Nascem nascido jl o sol, e
acabam Antes que Apoio deixe O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia Inscientes, Lídia,
voluntariamente Que há noite antes e após O pouco que
duramos.
{Ibidem)Nos poemas transcritos (e em quase todos os
atribuídos a Ricardo Reis), Fernando Pessoa dá sangue novo e
repõe em circulação vários traços que aprendemos á considerar
como helenizantes. É claro que não se trata de poesia grega,
leitor ranzinza e desconfiado. Que entre gregos de que falo e
Fernando Pessoa há muitos séculos e mais o cristianismo. Mas ir
lá paga pedágio e a companhia de turismo teme perder seus
clientes se começar a maçá-los com análises, vocabulário,
situação histórica e outras miudezas.
Como eu dizia, então, nestes versos de Pessoa os ecos
gregos se multiplicam: sobretudo, o comedimento do tom, a
sobriedade da dor e da alegria, a certeza da insignificância e da
grandeza do homem repontam insistentemente.
Sirvam, pois, os textos de Pessoa, de passaporte e souvenir
da breve excursão em terras gregas. A fala agora é do guia da
excursão que, como todo- guia, recita informações mais ou
menos decoradas. Já se sabe: os mais sensíveis à beleza
esqueçam o guia e contemplem o mundo: no caso, os textos de
Homero, Píndaro, Sófocles ou Safo. Ou, em último caso, os de
Pessoa, sempre melhores do que a cantilena do cicerone.
Começando bem antes de Cristo, e para efeitos culturais
confundindo-se com a origem de tudo, é na Grécia antiga
que se costumam localizar as primeiras reflexões mais
sistemáticas sobre aquilo que ainda hoje chamamos
literatura.
0 nome de Homero, por exemplo, é bastante conhecido.
Quem é que não sabe que ele celebrou, nos versos da Odisseia,
as aventuras de Ulisses, guerreiro grego que regressou ao lar e
aos braços de Penélope depois de vários e conhecidos episódios
heróicos e sentimentais?
Foi, portanto, na Grécia antiga, de mármores brancos e
deuses olímpicos, que começou a tomar forma um conceito e
uma prática de literatura cujas metamorfoses últimas são as que
se conhecem hoje. Mas os gregos não praticavam só a poesia.
Também o teatro parece ter nascido dos textos dos gregos
Esquilo, Euripides e Sófocles. A tragédia grega, na interpretação
de quase todos os que se preocuparam com ela, deixou também
sua marca na cultura ocidental, que por longos tempos viu no
teatro grego não só um modelo de linguagem dramática, mas a
representação dos grandes problemas humanos: os chamados
conflitos existenciais.
Mas fique claro que o mundo não era só a Grécia. E nem foi
monopólio dos gregos o dar sentido à vida através da linguagem
literária. Muitos outros povos — a dizer a verdade talvez todos —
entrelaçaram seu que fazer diário à música, à dança, à poesia.
Mas como não eram umbigo do mundo, ficam confinados a esse
parágrafo curtinho. E o preço de não terem conquistado o mundo
...
Foi no mundo clássico dos gregos que começaram as primeiras
divergências sérias entre os que discutiam o que era, para que
servia a literatura (embora não usassem esta palavra). Platão,
teórico rigoroso e às vezes mal-humorado, foi implacável com a
poesia. Queria expulsá-la do convívio dos homens, porque, dizia
ele, a poesia era mentirosa: era a imitação da imitação da
imitação . .. e o filósofo, vê-se logo, não sabia que as coisas
podem também ser o avesso do avesso do avesso ...
A ideia de catarse — purificação das emoções por sua
ampliação máxima — veio com Aristóteles, que saiu a campo em
defesa da dama-poesia exilada por Platão. E entre ume outro e
depois dos dois, o debate continua até hoje.
Aos olhos de hoje, a literatura deles (gregos) parece uma
atividade fundamentalmente integrada à vida grega. Forma de
exprimir sentimentos coletivos, forma de comunicação com os
deuses, forma de purificação (pela expressão) das grandes
emoções, a literatura grega, mais do que frios textos escritos,
era entrelaçada à vida pública e coletiva da Grécia.
Nos teatros, nas praças e nos templos, a literatura não era
um privilégio dos que liam, mas uma espécie de celebração. E
como celebração coletiva, além de cumprir o papel que lhe
estava reservado, ainda tinha a chance de repercutir
profundamente na vida de cada um, como, aliás, pode repercutir
ainda hoje (de forma diferente) em quem a leia.
Quem sabe o fino leitor já se cansou dos gregos,
principalmente de gregos tratados com tão pouco respeito ... A
quem quer seriedade e sisudez pago com um piparote, e envio
diretamente a Platão e Aristóteles, nos respectivos endereços. Lá
se encontra o rigor reclamado. E, sem mais, vamos à Idade
Média.
XII
Com a expansão do mundo grego, que conquistou
colônias e submeteu povos em todo o mundo então conhecido,
sua tradição cultural firmou-se. Alargou-se, ricocheteou por
outras plagas e, bem mais tarde, multitransfomada, deitou
raízes na Europa. De lá, nas caravelas dos colonizadores,
chegou a outras plagas, inclusive ao Brasil.
Os gregos e seus descendentes fizeram a cabeça de
muitos poetas antigos (inclusive brasileiros, que recebiam via
Europa) e de alguns modernos mais discretos. E ainda hoje
invadem os lares, como por exemplo quando entre os plim-
plim da TV acompanhamos os passos de Hércules ou de Edipo.
Mas entre o mundo grego e a luz azulada da TV, muitos
séculos nos contemplam. Entre eles, os que constituíram a
Idade Média.
O mundo cristão da Idade Média conheceu e de certa
perspectiva lutou contra as tradições culturais do mundo grego.
Mas, de outra perspectiva, aceitou-as, medievalizou-as,
incorporou-as. (Leitor, não funda a cuca. Seja compreensivo e
dialético, admita que as coisas são e não são, e passe em
frente). Antes dos cristãos, aliás, já os romanos (e com eles
todas as suas colônias espalhadas pelo mundo) haviam adotado
a tradição grega, adaptando-as à sua individualidade única de
povo irreprodutível. Qualquer povo é, aliás, tão irreprodutível,
que a tentativa de todos os colonizadores de imporem — com a
dominação militar, econômica e política — a cultural, como
forma de legitimação das anteriores, nunca dá certo. Melhor
dizendo, nunca dá inteiramente certo.
Foi depois da cristianização — ao tempo em que os templos
gregos e romanos iam sendo substituídos na linha do horizonte
por catedrais de torres pontiagudas e vitrais coloridos — que o
conceito de literatura passou a abranger diferentes formas de
expressão, e a literatura começou a cumprir novos papeis na
vida do homem e da coletividade. O que parece permanecer
intocado é a força da palavra como forma de simbolizar o mundo
e o lugar das pessoas no mundo.
Tanto as civilizações clássicas da Grécia e Roma, quanto a
medieval, são períodos em que a sociedade organizou-se
segundo padrões muito rígidos: I nobres de um lado, plebeus de
outro; senhores de terra de um lado (do mesmo que os nobres),
servos de gleba de outro; diferenças sociais rigidas, gente
separada de gente, homens com poder de vida e de morte sobre
outros homens e mulheres.
E a literatura absorve e irradia isso tudo, mesmo que numa
linguagem cifrada, inacessível talvez para quem não a viveu em
sua hora. Parece que já naqueles tempos remotos os textos
literários eram produzidos e consumidos por poucos. Os poucos
que tinham acesso à palavra. Como diria O Pasquim, perdão,
leitores. Como é que fui dizer que “os textos literários eram
produzidos e consumidos por poucos"? E o velho vício flagrado
em público: chamar de literatura apenas a produção verbal que
circula e é aplaudida pelos poucos eleitos. . . Vamos então
remendar depressa, e dizer que os gêneros considerados nobres
pelo seu parentesco com o classicismo começaram a ter sua
circulação restringida: primeiro, porque eram proibidos (sendo
pagãos, poderiam pôr minhocas nas cabeças que a Igreja
esforçava-se por cristianizar e manter cristianizadas) e porque
pouca gente conhecia grego e que tais. Mas, mesmo separando-
se desta tradição da nobreza clássica, o que se chama produção
literária medieval não inclui (ou inclui pouco e em posição
secundária) a tradição oral, os cantos de trabalho, as narrativas
populares . . . como eu já disse, perdão, leitores.
Mais do que Idade Média, houve idades médias.
Os complicados séculos que separam a dissolução do mundo
clássico do surgimento dos tempos modernos viram um mundo
(leia-se Europa, que a América não era ainda um tupi tangendo
um alaúde. Era Pindorama, e isso lhe bastava...) repartido em
feudos e burgos. As cortes (cintilantes) e as festas da Igreja
prenunciavam, a seu modo, o bulício do mundo moderno que
estava por vir.
Na Idade Média musical e aventureira que se destaca das
canções trovadorescas e das novelas de cavalaria, quase não
sobra espaço para os oprimidos, para a escravidão dos mosteiros
e conventos, para o autoritarismo da Igreja Católica. 0 que a
versão oficial selecionou foi, como sempre, uma literatura que,
embora tardiamente recolhida e aparentemente composta ao
embalo de vinhos e danças, nas tabernas e nas ruas, só muito
raramente escapa de um ponto de vista aristocrático e cortesão.
Mas em outros momentos, é verdade que mais raros,
confluem para os textos medievais a malícia e o jogo de cintura
do povinho miúdo, sempre às voltas com a autoridade, seja a da
mãe zelosa da1 castidade da filha, ou a do nobre sovina que não
cumpre o prometido.
Vozes me dizem que é hora de abafar o bla-bla- -bla do guia
com a sonoridade do texto. Se são vozes da consciência ou dos
leitores, não sei. Sei que obedeço, calo e chamo em meu socorro
vozes de hoje, que ressuscitam tons medievais. Em lugar de
Dom Dinis, quem me socorre é Caetano, que canta o amor de
Clara, moça irmã da donzela medieval, que vive seu amor entre
o cotidiano de mulher e o mar que leva pra longe o amado.
quando a manhã madrugava calma
alta
clara
clara morria de amor faca de ponta flor e flor cambraia branca
sob o sol cravina branca amor cravina amor cravina e sonha a
moça chamada clara água
alma
lava
alva cambraia no sol galo cantando cor e cor pássaro preto dor e
dor um marinheiro amor distante amor e a moça sonha só um
marinheiro sob o sol onde andará o meu amor onde andará o
amor no mar amor no mar ou sonha se ainda lembra o meu
nome longe
longe
longe
onde estiver numa onda num bar numa onda que quer me levar
para o mar de água clara clara
clara
clara
ouço meu bem me chamar faca de ponta dor e dor cravo
vermelho no lençol cravo vermelho amor vermelho amor cravina
e galos e a moça chamada clara clara
clara
clara
alma tranqüila de dor A gente grave achará no exemplo umas
aparências de pura mistificação, ao passo que a gente frívola
não achará nele seu cantor usual. Mas eu, que ainda espero
angariar as simpatias dos leitores, continuo apostando em
Caetano, em Chico, em Milton e em todos os que revivem, no
Anhembi e Canecão, a praça medieval, e no ritmo e na cor das
canções, a gaia ciência dos trovadores e jograis andarilhos pela
Europa medieval.
XIII
Este capítulo se abre com um parêntese. E se fecha com
outro, aliás, o mesmo: ele é um parêntese, onde os interessados
poderão fazer uma excursão paralela. A pretexto da Idade Média,
é claro, mas com paisagens gerais. Se o leitor não é dado a
contemplações gratuitas, pode saltar; que fique no hotel, e vá
direto para o próximo capítulo.
Os textos a que a tradição reserva o nome de literatura, embora
nascendo de uma elite e a ela dirigidos, não costumam confinar-
se às rodas que detêm o poder. Transbordam daí e, como pedra
lançada às águas, seus últimos círculos vão atingir as margens,
ou quase. Seus efeitos, a inquietação que provocam, podem
repercutir em camadas mais marginalizadas, mais distantes dos
círculos oficiais da cultura.
É desse cruzamento do mundo simbolizado pela palavra em

estado de literatura com a realidade diária dos homens que a


literatura assume seu extremo poder transformador. Os mundos
fantásticos criados pelo texto não caem do céu, nem têm gênese
na inspiração das musas. O mundo representado na literatura,
simbólica ou realista mente, nasce da experiência que o escritor
tem de uma realidade histórica e social muito bem delimitada.
0 universo que autor e leitor compartilham, a partir da criação
do primeiro e da recriação do segundo, é um universo que
corresponde a uma síntese — intuitiva ou racional, simbólica ou
realista — do aqui e agora que se vive.
Excursão terminada. Regresso à Idade Média, onde os
leitores dissidentes aguardam. Mas, na ausência dos que
viajaram, e na sesta dos que dormiam, passou-se o tempo, e
com ele a Idade Média, que começa a desbotar suas cores,
perante o mundo moderno que chega. Mas nós, para chegarmos
a ele, precisamos de alguns vistos no passaporte.
Nem lá nem cá, já abandonando o mundo medieval, mas
sem cruzar as fronteiras do mundo moderno, vamos deixando
para trás a Idade Média, seus textos líricos e melodiosos; o guia
solícito retoma a palavra e informa: há muitos séculos, quase até
as portas de mil_e oitocentos, a literatura era produzida de um
modo muito diferente do de hoje, quando os livros são impressos
em série, vendidos em livrarias, constituem renda para seu autor
e lucro para a editora. Tudo isso resume os livros ao que deles
disse, meio profeticamente, Fernando Pessoa, quando
desabafou: livros são papeis pintados com tinta...
Este prosaico circuito que a literatura percorre hoje para
chegar das mãos do escritor às do leitor não existia
antigamente. Não era assim no tempo de Homero, nem de
Virgílio, nem na Idade Média. Tampouco era assim até quase as
vésperas de mil e oitocentos...
Nos tempos muito antigos — na Idade Média, por exemplo, o
artista era financiado por alguém — rico e geral mente muito
poderoso. 0 escritor não precisava preocupar-se em agradar ao
público indiferenciado. Bastava angariar as simpatias de seu
patrono: o mecenas que, garantindo-lhe cama, comida e roupas,
financiava-lhe a aventura intelectual.
Sem dúvida, esta forma de produção marcou fortemente a
literatura, imprimindo nela o selo de atividade de luxo, e no
poeta a marca de cidadão ocioso, supérfluo, não produtivo. E,
indiretamente, caracterizou o escrever literatura como a
atividade elitizada que se conhece até hoje. Por volta ainda dos
séculos XVII e XVIll eram os salões da aristocracia que, abrindo-
se com chás e bolinhos precursores das academias de hoje,
entre veludos e brocados recebiam da boca dos poetas suas
últimas composições.
0 artista a braços com um público numeroso e pagante veio
depois, bem depois. E por isso vai para o próximo capítulo.
Chega de Idade Média, de trovadores cantando canções em
festas palacianas e em tavernas de rua. De teatro nas câmaras
reais de fantoches e pantomimas nos quadros das Igrejas.
Pulando os muitos séculos que sucederam a Idade Média,
chegamos ao mundo moderno da Renascença, e o moderníssimo
de depois dela, onde nos deteremos, anunciando o salto por
sobre a Renascença, com o perdão de todos os renascentistas.
Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, esta ...
XIV
Como se ameaçou no capítulo anterior e como se
prenunciava em agitações sociais aqui e ali, o mundo
aristocrático de regras, modelos, padrões e normas foi pelos
ares. A vida modernizou-se e, na modernização, atenuou o
autoritarismo de suas feições (ao menos de algumas); nasceu
destas cinzas o mundo burguês, naquele tempo romântico e
liberal.
Com a vitória política da burguesia, na França de 1789,
começa um novo ciclo cultural. Firma-se uma nova cultura, uma
nova linguagem que redefinirá a posição do homem no mundo e
a natureza deste mundo. Homem e mundo bastantes diferentes
dos vistos e registrados pelos olhos clássicos, medievais e
renascentistas.
Na literatura, esta virada foi o Romantismo.
Comparada com a concepção clássica, a concepção de literatura
assumida e praticada pelos românticos democratizou-se muito.
Produções literárias a que, aparentemente, a literatura clássica
torcia o nariz, ganharam direito de cidadania. Exemplos, leitor
incrédulo? O romance, que embora descendente da ilustre
epopeia clássica, abandonou o berço aristocrático e, recolhido ao
jornal, foi buscar seus leitores em um público mais largo,
indiferenciado e sem pedigri literário.
0 guia se desculpa pela pressa e chama a atenção dos
viajantes para deter os olhos neste ponto do processo: a
democratização do texto literário como objeto. Aos manuscritos
antigos, à impressão rudimentar e primitiva, à existência de
poucos e caros exemplares, responde o jornal, veículo
democrático de textos de idêntica pretensão. E depois? Depois é
o livro de bolso, os poemas na música, os fascículos de banca, os
grafiti de parede. Mas como este depois é o nosso hoje, é bom
voltar ao ontem, o século XIX.
Sob muitos aspectos, a literatura romântica foi uma festa,
em que lágrimas e sorrisos borbulhavam do coração de leitores
— muitos e muitos leitores e leitoras — comovidos com o que
liam. Aos olhos de hoje, esta concepção e esta prática romântica
de literatura parecem ter-se fundado na emoção, fantasia,
imaginação, sentimento. E acima de tudo na liberdade.
Nos textos românticos, esta liberdade manifesta- -se de
vários modos: na linguagem adotada, na musicalidade dos
ritmos, na desobediência à razão cerceadora das peripécias, na
concepção de personagens arrebatadas pela própria fantasia
que, transbordando, contagiava leitores e autores. Ambos, por
assim dizer, coniventes com as regras do jogo.
Este conceito e esta prática de literatura como alguma coisa
que toca profundamente as pessoas, como transbordamento de
uma alma para outra, parece durar até hoje. Talvez você ache
isso, não sei. Às vezes, como Caetano, eu acho que somos todos
um pouco muito românticos. E parece que o poeta brasileiro
Álvares de Azevedo também acreditava nisso tudo e o disse com
todas as letras, no texto com que apresanta sua Lira dos Vinte
Anos, que ele sugere constituir .'. .
"Cantos espontâneos do coração, vibrações doridas da lira
interna que agitava um sonho, notas que o vento levou, — com
isso dou a lume estas harmonias.
São as páginas despedaçadas de um livro não lido .'.
E agora que despi a minha musa saudosa dos véus do mistério
do meu amor e de minha soli-' dão, agora que ela vai seminua e
tímida por entre vós, derramar em vossas almas os últimos
perfumes do seu coração — ó meus amigos, recebei-a no peifo, e
amai-a como consolo que que foi de uma alma esperançosa, que
depunha fé na poesia e no amor — esses dois raios luminosos do
coração de Deus."
Lágrimas enxutas, leitorinha romântica? Voltemos, então, ao
pão-pão queijo:queijo com que o guia da excursão anunciava a
abertura dos diques que represavam a emoção e o sentimento.
A prática literária que espartilhava o texto com normas e regras,
cedeu lugar a outro figurino, que via a liberdade com valor
maior.
Em certos casos, e por alguns momentos, a literatura como
prática e espaço da liberdade possível ao escritor dos começos
do século XIX é fecunda: faz o texto assumir, abertamente, a
função de denúncia de uma vida social injusta, de reivindicação
de uma nova ordem social. Em uma palavra, é a poesia das
esquinas e dos comícios, da participação política praticada e
vivida nos limites possíveis do sisudo tempo de afirmação da
burguesia.
Faltam exemplos, leitor libertário? Valho-me de Castro Alves,
poeta colosso, sujeito moço que soube o que fez. E o que fez
ele? Fecundou sua poesia na luta contra a sociedade brasileira
escravocrata contemporânea sua, gritando para quem quisesse
(e quiser ainda) ouvir: Adeus, meu canto! É hora da partida ...
O oceano do povo s'encapela!
Filho da tempestade, irmão do raio.
Lança teu grito ao vento da procela.
é tempo agora pra quem sonha a glória E a luta... e a luta, essa
fatal fornalha, Onde referve o bronze das estátuas Que a mão
dos secMos no futuro talha...
E pendido através de dois abismos Com os pés na terra e a
fronte no infinito Traz a bênção de Deus ao cativeiro.
Levanta a Deus do cativeiro o grito!
Sinto-me à beira de perder o leitor, e com ele o emprego.
Ideia fixa, fino leitor? Dus te livre, leitor, de uma ideia fixa, como
essa que me está perseguindo, de que o gentil leitor continua a
desconfiar do guia e ruminando que já ouviu falar desse tipo de
poesia caminhando e cantando e seguindo a canção. Que poesia
social e libertária não foi privilégio romântico, que tampouco as
normas e convenções literárias ficaram sepultadas nos
longínquos tempos clássicos. Ab-so-lu-ta-men-te cer-to, leitor! Na
mosca. Concepções e práticas literárias não se isolam no
momento em que nascem, nem se segmentam com a nitidez a
que as confina uma rígida história dos estilos. Elas são, antes de
mais nada, vivas. E, como coisas vivas, repontam antes e depois
de sua vigência oficial. Menos ostensivas, entrelaçadas a outras
tendências, empurradas a muque para dentro ou para fora, mas
desta ou daquela forma sempre presentes. Nas escolas, na vida,
bancos, procissões. Nem que seja na memória. Portanto,
retifique seu nariz, meu quase ex-leitor, que continuo
ciceroniando a viagem.
Já parece ser tempo de deixar os poetas românticos a sós
com suas lágrimas, suspiros e eventuais brados de indignação e
revolta. Outra ocorrência importante que marcou a literatura
romântica foi o acelerado desenvolvimento do romance, gênero
literário desconhecido — ou melhor, considerado menor,
registrado como secundário, não valorizado — na tradição
anterior ao Romantismo. Mas isso merece capítulo novo. Lá
iremos.
XV
Nova excursão dos viajantes, rumo agora ao ateliê do
romancista, para ver como este novo personagem da vida
literária tece suas teias de sedução. Com a palavra, Joaquim
Manuel de Macedo, prosador brasileiro da primeira metade do
século passado, e de ibope alto entre os leitores
contemporâneos seus (e alguns nossos).. E assim que ele
apresenta A Moreninha, sua primeira grande obra: "Eis af vão
algumas páginas escritas, às quais me atrevi a dar o nome de
Romance. Não foi ele movido por nenhuma dessas três
poderosas inspirações que tantas vezes soem amparar a pena
dos autores: glória, amor, interesse. Deste último estou eu bem
a coberto com meus vinte e três anos de idade, que não é na
juventude que ele pode dirigir um homem; a glória, só se
andasse ela caída de suas alturas, rojando as asas quebradas,
me lembraria eu, tão pela terra rastejo, de pretender ir apanhá-
la. A respeito do amor não falemos, pois se me estivesse o
buliçoso a fazer cócegas no coração, bem sabia eu que mais
proveitoso me seria gastar meia dúzia de semanas aprendendo
numa sala de dança, do que velar trinta noites garatujando o
que por aí vai. Este pequeno romance deve sua existência
somente aos dias de desenfado e folga que passei no belo
Itaboraí, durante as férias do ano passado. Longe do bulício da
corte e quase em ócio, a minha imaginação assentou lá consigo
que bom ensejo era esse de fazer travessuras, e em resultado
delas saiu A Moreninha."
(A Moreninha) São por demais evidentes as marcas de
leviandade com que Macedo quer embrulhar seu romance e seus
leitores. Ele dá seu recado dizendo nas entrelinhas; não me
esforcei muito, escrevi ao sabor da imaginação, não fiquei
prestando atenção a regri- nhas... Mas o leitor arguto nas
entrelinhas das entrelinhas lê mais: lê que ele é homem de
posses, que tira férias, que conhece a vertiginosa vida da corte
e, sem dúvida, que sonha com a forma literária, que ninguém é
de ferro, não é mesmo?
Mais ou menos a mesma é a leitura do romance Amor de
Perdição que Camilo Castelo Branco (seu autor) sugere ao
público, quando fala de sua obra: "Escrevi o romance em quinze
dias, os mais atormentados de minha vida. Tão horrorizada
tenho deles a memória, que nunca mais abrirei Amor de
Perdição, nem lhe passarei lima sobre os defeitos das edições
futuras, se é que não saiu tolhiço incorrigível da primeira. Não
sei se lá digo que meu tio Simão chorava, e menos sei se o leitor
chorou com ele. De mim lhe juro que..."
(Obra Seleta) Aquilo que o pudor do romancista o impediu de
confessar — p choro — o clima romântico não o impediu de
sugerir, identificando-se, com isso, à personagem e ao
leitor/leitora, para quem a qualidade de um romance, naquele
tempo, parecia medir-se pelas lágrimas e suspiros que
provocava.
V.
Perdão, leitor. Não fica bem exemplificar sempre e apenas
com autores da tradição vernácula. Pois não corre por aí que a
literatura em língua portuguesa é pobre pobre pobre de marré
marré marré? E os meus exemplos todos — maiores ou pelos
menos médios no metro da tradição luso-brasileira, parecem
encolher e ficam mixuruqufssimos ao lado dos românticos do
naipe dos Byron, Goethe e outras ilustrices literárias do primeiro
mundo... Não é isso o que nos dizem os livros? Pois não é isso o
que está em jogo, leitor europeizado.
Sem nenhum ufanismo verde-amarelo me parece razoável
que se comece a pensar sobre literatura a partir da brasileira;
que se parta da produção local. No máximo, da matriz. Entre
outras razões, porque textos brasileiros e portugueses não são
mediados por outros idiomas, outras histórias, outras
plumagens. São, por assim dizer, prata da casa. Que repousem
em paz, portanto, os modelos europeus, perante os quais somos,
parece que necessariamente, menores. Em outras palavras,
cante lá que eu canto cá, como quer Patativa do Assaré.
E, dito isto, é tempo de mudar de capítulo e de prática literária.
XVI
Nem só, no entanto, de lágrimas, suspiros de amor e de
saudade, brados de revolta, romances açucarados e poemas
libertários compôs-se o mundo que a literatura do século XIX
construiu. Por volta da metade do século passado, leitores e
autores já eram outros, menos ingênuos. Politicamente, o sonho
da liberdade-igualdade-fraternidade já tinha acabado. Era a
cultura burguesa assumindo hábitos culturais mais condizentes
com as suas novas prerrogativas políticas e econômicas: o
proletariado se multiplicava nas fábricas e começava a gritar nas
ruas. A situação está mais para os cortiços do que para as
moreninhas e moços loiros. Com tudo isso, a representação de
mundo proposta pelos românticos perdeu a força e o sentido.
0 conceito e a prática romântica de literatura parecem
tornar-se inadequados para uma situação mais complexa, em
que a burguesia impõe sua violência econômica e política, sem
as máscaras do humanitarismo liberal. Parece que então,
quando o barulho da industrialização crescente se fazia ouvir
dominante, o poder da linguagem romântica murchou; dos
laboratórios dos cientistas vinham teses incômodas quanto à
natureza humana; a crença nos microscópios, metros e
esquadros afastou para os fundos a imaginação e a fantasia, e a
literatura começou a se pensar como documento o retrato de
uma sociedade que ela considerava injusta.
É a virada realista que aponta no horizonte, que se instaura

na raça e no susto. É a hora e a vez de levar adiante um


conceito e uma prática de literatura que se concebem
representação do real e que abominam qualquer rastro de
deformação deste real pelo sentimento ou imaginação.
Num certo sentido, atilado leitor, a literatura foi e é sempre
realista, tá certo. Por mais deformado, transformado ou
transfigurado que seja, o real esteve e está nos livros, para
quem quer vê-lo. Acho às vezes, inclusive, que só se tem acesso
ao real quando ele humaniza, isto é, se conforma a alguns dos
códigos que o instauram em linguagem humana. As linguagens
humanas não se esgotam com a palavra, claro, mas a literatura
é talvez a mais ampla delas. O que a chamada literatura realista
vai propor, então, não consistirá exata mente numa novidade: o
que ela inova é, como sempre, o conceito de realidade que
instaura, a sensação de "verdadeiro" (verossímil) que ela quer
dar ao leitor, a linguagem que ela usa e como a usa para fazer
tudo isso. Mas não antecipemos os sucessos. Já que estamos de
acordo, prosseguimos no que interessa...
Trata-se de um figurino novo. No afã de doeu- *'i mentar o
real, de fundir-se o mais possível à realidade — e nisso
afirmando seu vanguardismo em relação, por exemplo, aos
românticos — os realistas começam renegando o passado, como,
aliás, cada uma a seu tempo, todas as vanguardas.
Não é nem nunca foi fácil afirmar a autonomia e
originalidade de uma concepção literária em relação às que a
precederam. Tudo começa sempre com muito sangue, suor e
cerveja, para não falar das resmas de papeis e litros de saliva.
No caso das últimas décadas do século XIX, a rebeldia
desfraldou várias bandeiras e seguiu vários caminhos: em alguns
textos, a nova concepção de literatura implicava no abandono
da linguagem à vontade e no retorno à linguagem de fraque e
car- t tola; em outros, a solidariedade a seu tempo consistia no
abandono dos ambientes refinados e luxuosos e no mergulho no
dia-a-dia dos oprimidos e miseráveis; para outros ainda, a virada
era o enfoque quase obsessivo de personagens criados com
rigor que via na ciência se modelo mais próximo.
Ao homem-emoção-e-sentimento seguiu-se o homem-
instintos, o homem-corpo, o homem- -orgânico. Mas essa ânsia
científica, essa por assim dizer tomada de posse do corpo pela
literatura não tinha nada de prazerosa. Nada de descontraído e
alegre. A descoberta do corpo no final do século passado foi
acompanhada de uma espécie de sentimento de pecado,
bastante parecido com a sensação culposa das leituras de
banheiro e fundo de quintal, E como se, em nome da ciência, o
homem presente na literatura deste tempo recusasse a
dimensão de puro espírito e sentimentos excelsos que parece
(hoje) ter-se projetado da literatura romântica. Mas, com tudo
isso, não conseguiu escapar da noção de pecado e desvio que
acompanhava esta eleição de aspectos físicos e concretos como
próprios do texto literário.
Um episódio curioso que envolve Coelho Neto ilustra bem
esta concepção literária em voga na segunda metade do século
XIX. Por que Coelho Neto, leitor modernista? Porque ele foi um
escritor que virou o século, que tagarelou por muitas e muitas
obras escritas ao longo de muitos e muitos anos. Escreveu tanto,
tanto, que às vezes acertou. E exatamente na tagarelice de sua
obra, ela é exemplar do fim do século, a versão tropical da belle-
époque parisiense, onde tinham os olhos os que viviam a vida
literária.
Mas vamos à história. Deu-se que Coelho Neto, ao acabar
seu romance Inverno em Flor, teve medo de não ter sido
suficientemente rigoroso e científico. Assustado com a hipótese
de que seu trabalho fosse considerado imaginoso e fantasista,
planejou uma forma de evitar isso apoiando-se, se não na
ciência, ao menos em seus sacerdotes mais à mão, alguns
cientistas cariocas. Foi assim que antecedeu o lançamento do
livro de uma espécie de consulta aos cientistas (na pior das
hipóteses, leitor malicioso, vê-se logo que o procedimento
poderia funcionar como fortíssima propaganda do livro, não é
mesmo?). E vamos ao texto que ele dirigiu aos . doutores. E
abaixo: Exmo. Sr. Dr
Capital Federal, 15 de dezembro de 1897 — Antes do
julgamento propriamente literário do meu romance Inverno em
Flor do qual tomo a liberdade de enviar um exemplar a V. Excia,
desejava ouvir a opinião dos especialistas sobre o método
seguido na apresentação gradativa do caso de um delírio crônico
de evolução sistemática, com estigmas hereditários.
Todo o romance gira em torno duma psicose, conseqüente-
mente é sobre o tipo essencial de Jorge Soares que espero a
palavra erudita de V. Excia, pedindo mais a fineza de remeter-me
para a minha residência, permitindo-me fazer dela o uso que me
convier.
Com a mais alta consideração Subscrevo-me, de V. Excia
admirador.
Coelho Neto
(in Aluísio de Azevedo)
Seria covardia recorrer às entrelinhas, quanto as linhas são tão
eloqüentes quanto às intenções de Coelho Neto. E como, ao que
me conste, não deve ninguém melindrar seus leitores, confio a
cada um a tarefa de juntar dois mais dois e ver que são mesmo
quatro, apesar da sedução do cinco. Grande jogada a de Coelho
Neto, não?
XVII
Pausa. Outro capítulo e outro texto. Agora em versos, que o
surto de anti-romantismo não acometeu somente a prosa:
contagiou também a I poesia. Parnasiemos um pouco, nos
quatorze versos I de um Soneto. Um soneto que, só por
constituir uma estrutura poética fixa de quatorze versos, tinha
quase sido exilado pelos românticos e que passou, pela mesma
razão, a ter ibope alto entre os pós e anti.-românticos.
0 texto foi publicado em Tarde, último livro de Bilac, editado
já no século XX, mas com marcas bem claras do que tinha sido a
poesia um pouco antes disso:
A UM POETA
Longe do estéril turbilhão da rua.
Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e
no sossego. Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e suai Mas que na
forma se disfarce o emprego Do esforço; e a trama viva se
construa De tal modo, que a imagem fique nua. Rica mas sóbria,
como um templo grego.
Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o
efeito agrade. Sem mostrar os andaimes do edifício: Porque a
Beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a
força e a graça na simplicidade.(iPoesias) Investindo-se da
função de conselheiro, o príncipe dos poetas legisla: comanda no
imperativo, definindo à sua maneira as tarefas do poeta de seu
tempo, que "trabalha, e teima, e lima e sofre e sua. . .". Mais
adiante, ele teoriza mais, delineando os atributos do poema,
recorrendo ao modelo marmóreo e impávido do templo grego,
imobilizado logo depois na rigidez do edifício.
Mas, se essa consciência artesanal do fazer poético poderia
— vá lá, leitor, com uma certa boa vontade de quem lê o texto —
ser vista como incorporação ao fazer poético do rigor econômico
do modo de produção industrial, ledo engano! A preocupação
com o fazer, os garimpos da linguagem em que os parnasianos
tanto se esmeraram não são assumidos abertamente. Muito pelo
contrário: o que Bilac propõe que se atinja via trabalho com a
linguagem tem de se diluir na aparência do não premeditado, do
espontâneo, do natural.
Não me estendo mais. O leitor de bom senso percebe
sozinho a trapaça do terceto final, onde as maiúsculas de Beleza
e Verdade contradizem, na pretensão à universalidade que
sugerem, a clara relação com o momento histórico em que
surgem.
0 rótulo de natural, superposto ao que é, inegavelmente cultural
e histórico, tem sido bastante conveniente, não é verdade,
leitor?
' Mas, embora o tom professoral e conselheiro seja corriqueiro
nos textos que crêem a linguagem literária veículo
convincente da Verdade e da Beleza (com maiúsculas, como
queria Bilac), foi por aí que o texto começou a criar um real
que fazia da percepção sensorial ponte entre o leitor e o
escritor. Essa, imersão no sensorialismo — já sei, leitor, você
sabe que isso se desdobra muito no simbolismo: é verdade —
preserva o autor de envolvimentos mais incômodos com
outras realidades que seu texto criava. Mas, leitor, convenha
que já se trata de um começo. Já é o início de uma linguagem
que começa a se concretizar, mesmo sem o saber, como
ocorre no Vila Rica, do mesmo Bilac:
VILA RICA
O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre; Sangram, em laivos
de ouro, as minas, que a ambição Na torturada entranha abriu
da terra nobre: E cada cicatriz brilha como um brasão.
O ângelus plange ao longe em doloroso dobre.
O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre, O crepúsculo
cai como uma extrema-unção.
Agora, para além do cerro, o céu parece Feito de um ouro ancião
que o tempo enegreceu. ..
A neblina, roçando o chão, cicia, em prece, Como uma procissão
espectral que se move. . .
Dobra o sino. . . Soluça um verso de Dirceu...
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.
(Poesias)
Fôlego, leitor desabituado de ritmos parnasianos. .. Leituras
múltiplas, deixando-se impregnar pela atmosfera antiga,
sensorial e histórica que o poeta constrói ao longo dos quatorze
versos. Papai Aurélio necessário para o fluxo do primeiro verso?
Dicionário enciclopédico requerido para o Dirceu do verso 13?
Mais do que saber que Dirceu é o velho Tomás Antonio Gonzaga
que arrastou seus amores por Marília na Ouro Preto da
Inconfidência, a teoria é ver e ouvir. 0 significado do poema
constrói-se agora a partir de uma percepção (tanto do autor
quanto do leitor) guiada pelos sentidos, dispersa em impressões
sensoriais.
Esta Vila Rica de Bilac tem muito de artesanal. Casa de
ferreiro, espeto de ferro e laboriosamente trabalhado. Só para
começar, o "ângelus que plange ao longe em doloroso dobre" é
bonito demais. Sonoriza e, sonorizando, atenua os brilhos dos
dourados nobres enfatizados em cada um dos quatro primeiros
versos. E, mortos os ouros no último ouro do sol, resta apenas a
paisagem não geográfica, mas suspensa na memória e no
sonho, que transfere para além e para os astros a visão quase
psicodélica de uma cidade imersa em cores, sons e sensações.
A força e a importância da percepção e construção da realidade
a partir de suas dimensões concretas retornam num outro texto,
o abaixo transcrito* imobilizadas agora, elas se cristalizam na
distância instaurada entre quem fala e o que esse alguém fala.
Na violência das luzes, das cores nos contornos nítidos e
sensações táteis precisas que ressurgem nas sete estrofes da
Fantástica de Alberto de Oliveira, poeta contemporâneo (e quase
cunhado) de Bilac:O que é Literatura Erguido em negro mármor
luzidio.
Portas fechadas, num mistério enorme, Numa terra de reis,
mudo e sombrio.
Sono de lendas um palácio dorme.
Torvo, imoto em seu leito, um rio o cinge, E, à luz dos plenilúnios
argentados.
Vê-se em bronze uma antiga e bronca esfinge, E lamentam-se
arbustos encantados.
Dentro, assombro e mudez! quedas figuras De reis e de rainhas;
penduradas Pelo muro panóplias, armaduras.
Dardos, elmos, punhais, piques, espadas.
E inda ornada de gemas e vestida De tiros de matiz de ardentes
cores, Uma bela princesa está sem vida Sobre um toro fantástico
de flores.
Traz o colo estrelado de diamantes.
Colo mais claro do que a espuma jônia, E rolam-lhe os cabelos
abundantes Sobre peles nevadas da Issedônia.
Entre o frio esplendor dos artefactos.
Em seu régio vestíbulo de assombros, Há uma guarda de anões
estupefactos, Com trombetas de ébano nos ombros. E o silêncio
por tudo! nem de um passo Dão sinal os extensos corredores; Só
a lua, alta noite, um raio baço Põe da morta no tálamo de flores.

Quase fim da linha, que o cansaço da viagem já marca alguns


rostos, É fechar as malas, embrulhar as lembranças e preparar o
coração para o regresso à vida real, o que vamos celebrar no
próximo capítulo.
XVIII
Quase todas as concepções de literatura que se sucederam
ao longo do longo século XIX parecem ter comungado a crença
(ou o fazer de conta que acreditavam) na transparência todo-
poderosa da palavra. Embeber-se e fazer embeber em
sentimentos, transmitir emoções, amarrar-se em verdades
científicas do tempo, fazer o sentido emergir de contornos claros
e realçados por torrentes de luz que destacam massas e
volumes.. . são alternativas semelhantes, próximas.
De certa forma, parecem ter-se esgotado no realismo as
possíveis saídas para uma concepção e uma prática de literatura
que se queria transparente, tradutora de um mundo. O fim do
século foi também o fim da crença na neutralidade de uma
linguagem literária. Ruiu a concepção de uma significação única
e linear. A literatura realista.
apostando na possibilidade de uma reprodução não distorcida do
real, paradoxal mente, abriu caminho para a ideia de que, mais
do que um significado determinado, o que é próprio da literatura
é encenar a própria linguagem.
E posto isso, retornamos ao século XIX, que já Machado de
Assis vivia dizendo a seus leitores que eles eram leitores, que ele
era um autor, e que o texto era apenas (!) um texto.
Como eu já disse, quase ponto final. Estamos virando a
esquina do século XX. E nem adianta resmungar que é uma pena
que sobre pouco tempo para o que está mais próximo... ocorre
que à velocidade de qualquer viagem soma-se a velocidade
própria das paisagens, que sambalançam vertigi- . nosas em
torno, virando de cabeça pra cima o que estava pra baixo, e
vice-versa. E mais ainda: o hoje que está próximo de nós
mereceu considerações várias, ao longo de toda a viagem.
Quem não percebeu na hora, volte atrás e confira. Ou não volte
e acredite.
Para efeitos literários, o século XIX fecha para balanço um
pouco antes da virada para mil e novecentos. Somando tudo, ele
foi uma espécie de pano de amostra, de festa. Nele, a crença no
poder criador da linguagem como forma de imaginar o mundo,
ou como forma de recriar com transparência uma realidade que
se queria definitiva, teve sua hora e sua vez. Nele se teceu uma
literatura que se queria mimética do que se gostaria que fosse o
real, do que se achava que era a realidade.
Mas todos estes fios de representação se esgarçam e se
esfiapam, e ao fim do século passado, pouco mais, pouco
menos, alterações à vista: a literatura como linguagem está
sozinha, sem prestar contas às teorias que a viam como forma
de interpretação da realidade com uma prática literária
inquietante. Talvez valha a pena assinalar aqui que desacredita-
se da, nesta altura dos acontecimentos, a realidade e não da
literatura. Desacredita-se de uma realidade compreensível, de
um real conversível a palavras, de um mundo cuja significação
esteja no exterior da linguagem.
Renuncia, então, a literatura posterior ao entre- -séculos (e
igualmente a contemporânea nossa) a qualquer anseio de
totalidade premeditada. A literatura, seus produtores e seus
teóricos mergulham na grande aventura da significação
provisória e que tem nesse provisório a arma de sua
permanência. Exceto o grande público (ainda atrelado ao sus-
pense e à verossimilhança do século anterior, todos os outros
(aliás bem poucos, já se sabe. ..) vêem a literatura como
instauração de uma realidade apreensível apenas na medida em
que permite o encontro de escritor e leitor sem que, entre
ambos, haja qualquer acordo prévio quanto a valores,
representações, etc. (exceto, é claro, o acordo prévio inerente a
qualquer situação de linguagem, o que já não é pouco).
E a partir daí, é a vertigem e o abismo. Depois que alguém,
Dostoievisky, disse que se Deus não existe, então, tudo é
permitido, o sinal verde ficou aberto: livre trânsito para o
experimentalismo, para a permanência teimosa de antigas
fórmulas ao lado das novas, para os processos de produção que
vêem no artesanato forma de resistência ao anonimato da
produção em série. E o irresistível ingresso da literatura no rol
dos objetos de consumo.
Mas nem por isso o mundo, livrou-se de concepções mais
antigas, nem as funeralizou e enterrou em terra santa. Nada
disso. Os clubes de poesia desse interior de deus e do diabo na
terra do sol mostram que nenhuma vanguarda conseguiu, por
exemplo, banir o soneto. Que o figurino dos quatorze versos
encerrados na chave de ouro continua tendo seus adeptos...
Portanto, leitor fiel e levemente nostálgico, legitimidade também
para seus madrigais e sentimental ices, que tudo é permitido e
só é proibido proibir.
Despido da crença nas imagens de si mesmo,
profundamente desconfiado da linguagem que herdou e
reconstrói a cada dia, o escritor contemporâneo está só e nu.
A violência do hoje roubou o direito ao sonho que, aliás,
acabou. A posteridade tornou-se o amanhã de manhã, e o pedir
um café pra nós dois o único projeto talvez possível. Em
particular no Brasil, a televisão que, branca-e-preta ou em cores
faz viver tanto o casamento real quanto o fuzilamento de Sadat,
precedeu o domínio da leitura. Somos um povo telespectador;
não somos nem nunca fomos um país de leitores.
Somos um povo sem tradição escrita. E estamos chegando à
era do descartável, quando a literatura, como prática, corre o
risco de tornar-se igualmente descartável. Como resistência a
isso, adota a linguagem do bit, é registrada a spray, parece ter a
durabilidade de uma folha volante mimeografada, a perenidade
do eco do grito.
Por outro lado, o momento é também de planejamento,
eficiência, rapidez. Stop. A vida parou. E a literatura desse nosso
momento renuncia às vezes ao significado verbal. No predomínio
do visual sobre o verbal, no uso das cores e de todo o requinte
da indústria gráfica, a literatura objeta- liza-se às vezes, talvez
como única forma possível de consciência crítica da
objetalização.
É nesta geleia geral, que o poeta desfolha a bandeira e a

poesja ressurge e explode ao compasso dos discos e das fitas,


no embalo do corpo e da voz que, na canção, recupera a força
mágica da linguagem literária, de palavra que instaura seu
sentido.
E o resto é chegar da viagem, e fechar este livro. E depois abrir
outros, muitos outros: livrões e livrinhos, livros e revistas,
panfletos e jornais, É ouvir música e cantar e seguir novelas, que
a festa é de arromba e, já se sabe, o melhor o tempo escon de
longe, muito longe, mas bem dentro aqui.

INDICAÇÕES PARA LEITURA


Nos parágrafos finais, sugerem-se livrões e livri- nhos. Que
sejam benvindos todos os textos, principalmente os de que se
gosta ou se vem a gostar na solidão do encontro. Afinal, para
quem quer saber o que é literatura o melhor mesmo é mergulhar
na própria, sem mais delongas. Shakespeare e Guarnie- ri,
Camões e Caetano, Machado e Gabeira, sem esquecer nenhum.
Ao lado dessa leitura, que é a fundamental, para muitos pode
valer a pena o mergulho paralelo em textos que se perguntaram
e se responderam o que é, para que serve e como se faz
literatura. Para estes, as sugestões de um menu leve e sem
riscos de ressaca: Literatura e Sociedade, de Antonio Cândido,
onde o mestre focaliza, como indica o título, vários aspectos da
complexa relação da obra literária com o contexto social em que
surge, circula e é consumida. Na mesma linha, Le litteraire et le
Social, de Escarpit, reúne uma série de ensaios que tentam dar
conta e problematizar o binônio litera- tura/sociedade, no
percurso de produção e consumo do texto. Vale notar, neste
livro, sua preocupação em discutir os traços institucionais da
literatura.
Qu'est-ce que ta Utterature?, de Sartre, inexplicavelmente
não traduzido, é obra fundamental. Na tentativa de responder à
pergunta-título O que éa literatura?, Sartre enfatiza
particularmente a situação do escritor e do leitor, antecipando,
com isso, problemas que até hoje se colocam para quem se
questiona sobre a natureza e a função da literatura.
ABC da Literatura, de Ezra Pound, é outro livro
interessantíssimo (e curtinho). Com uma irreverência deliciosa,
Pound investe contra alguns dos preconceitos mais correntes em
relação à literatura e abre alternativas muito fecundas para o
relacionamento leitor/texto. O didatismo impl ícito no título,
aliado à ironia de seu autor, faz da obra uma excelente porta de
entrada para quem se preocupa com problemas de teoria e
história da literatura.
Em O que é Poesia Marginai, Glauco Mattoso, para
encaminhar a discussão do que é marginal em poesia, tangencia
de escanteio vários aspectos da produção literária não marginal
o que, portanto, interessa muito a nós todos.
A Teoria da Literatura, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva e as
Posições da Crítica em Face da Literatura, de David Daiches, são
obras igualmente úteis, sobremaneira para quem se interessar
por uma sistematização ampla de problemas e hipóteses da
Teoria Literária (Vítor Manuel) e por acompanhar, ao longo do
tempo, as diferentes perspectivas que a crítica e a teoria
assumiram perante os textos literários (David Daiches). Nã
mesma linha a Teoria Literária de René Wellek e Austin Warren é
também uma admirável síntese didática dos principais tópicos
relativos à teoria literária.
BIBLIOGRAFIA
ESCARPIT, R. — "Le littéraire et le social" in Le littéraire et le
social", Flammarion, 1970, págs. 12 e 41.
DRUMMOND DE ANDRADE, C. — "Política literária" in Reunião (10
livros de poesia). Rio de Janeiro, Livr. José Olympio Ed., 6? ed.,
1974, pág. 11.
AGUIAR e SILVA, V.M. — Teoria da Literatura, Coimbra, Livr.
Almeidina, 3? ed., revista e aumentada, 1979. Prefácio e
segunda edição, s/pág.
ANDRADE, M. de — "Vestida de Preto", in Contos Novos, S.P;,
_Martins Ed., 4? ed., 1973, pág. 7.
GIDEÃO, A. — Poesias Completas, Lisboa, Portugalia Ed., 2? ed.,
1968, págs. 244/5.
BANDEIRA, M. — "Vou-me embora pra Pasárgada" in Estrelada
Vida inteira, R.J., Livr. José Olympio Ed., 1966, pág. 127.
PESSOA, F. — poema n° 358 in Obra Poética, R.J., José Aguilhar
Ed., 3? ed., 1969, págs. 259, 277 e 289.
MACEDO, J.M. — "Duas Palavras" in A Moreninha, S.P., Ed. Ática,
5? ed., 1973, pág. 7.
CASTELO BRANCÓ, C. — "Prefácio da Segunda Edição (Amor de
Perdição/Prefácios) in Obra Seleta, R.J., Ed.. José Aguillar, _ 1?
ed., 1960, 2 vtíls., pág. 318 do primeiro volume.
ALUÍSIO AZEVEDO (seleção de textos, notas, estudo biográfico
histórico e crítico e exercícios por Antonio Dimas) S.P., Abril
Educação, 1980, Col. Literatura Comentada, pág. 100.
BILAC, O. — "A um Poeta", in Poesias, R.J., Livr. Fco. Alves, 23?
ed., 1949, págs. 339/40.
OLIVEIRA, A. de — "Fantástica" in Presença da Literatura
Brasileira (Antonio Cândido e Aderaldo Castelo), R.J.-S.P. DIFEL,
7? ed., 1978, pág. 186.

Biografia
Mansa Lajolo nasceu e vive em São Paulo, embora para
efeitos de nostalgia e saudosismo declare-se santista: estudou
no Colégio Canadá, lia e declamava Vicente de Carvalho,
participava do concurso Penas de Ouro.
Cursou Letras na Maria Antonia, deu aulas no Cursinho do
Grêmio e no Equipe. Fez pós-graduação, mestrado e
doutoramento em Teoria Literária, na USP. Atualmente, é
professora no Instituto de Estudos da Linguagem, na UNI- CAMP
(Departamento de Teoria Literária).
Antes, durante e depois disso tudo, rabiscou coisas, sozinha
ou em co-autoria. Algumas foram publicadas, outras
engavetadas. Entre as primeiras, Caminhos da Linguagem,
livro didático escrito junto com Haquira e Platão. Com a Samira,
coordenou as duas primeiras séries de Literatura Comentada,
coleção para a qual preparou antologias de Machado de Assis,
Bocage, Lobato. O mais é coisinha miúda, prefácios e artigos em
revistas e jornais aqui e ah.

Caro leitor:
As opiniões expressas neste livro sâo as do autor, podem não ser
as suas. Caso você ache que vale a pena escrever um outro livro
sobre o mesmo tema, nós estamos dispostos a estudar sua
publicação com o mesmo título como "segunda visão".
Desmond Fischer -14 x 21 cm -152 pp.

Oobjetivo deste livro é lazer o conceito de comunicação


melhor conhecido, de íorma a encorajar uma discussão
mais ampla sobre o direito de comunicar, direito de estar
informado e participar da comunicação pública.
JOSÉ VERÍSSIMO - Cultura, litératura e política na América
Latina

Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa -152 pp.


Constituído por artigos inéditos de José Veríssimo (1857-
1916), um dos maiores críticos brasileiros do século XIX,
este livro é o resultado de uma extensa pesquisa sobre o
autor e sua época. Suas reflexões são importantes para a
compreensão do Brasil no conjunto dos povos
americanos.
TEORIA DA POESIA CONCRETA

Augusto de Campos/Haroldo de Campos/ Décio Pignatari 14


x21 cm — 208pp.
Surgido na década de 50, o movimento da poesia concreta
revolucionou o panorama artístico e cultural brasileiro e
internacional. Escrita pelos seus fundadores — Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari —, esta
reunião dos principais textos críticos e manifestos do
concretismo forma uma obra indispensável para a
compreensão do mais importante movimento literário
nacional dos últimos anos.Janeiro/89 — 9 anos, 215
títulos 5 milhões de exemplares publicados
Familia nu
Femmmo
Fome 1044)
HomossexuaKdade 1102)
Igrqa (081)
la«r m
Literatura Popular 1172)
Loucura (098)
Menor (073)
Morte 1152)
Musica Sertaneja (1501
Negritude (186)
Nordeste BrasBeiro (209)
Participação (119
Pessoas Deficientes (095)
Política Social (089
Pornografia (169
Psicologia Social Punk (129
(039
Questão da Morado Racismo 1079
1092)
Serviço Social (007)
Sociologia (111)
Suicídio (057)
(127)
Tortura (121)
Tmticomania (149
Trabalho (171)
Trânsito (162)
Transporte Urbano (201)
Vioiénàa (069
Vioiênda Urbana 1042)
DIREITO
Constituinte (143)
Direita (0621
Direito Autoral 1187)
Direito Internacional (059
Direitas da Pessoa 1049
Habeas-Corpus 1153
Justiça (109
Nacionalidade 1120
Poder Legislativo (059
ECONOMIA/ADMINISTRAÇÃO
Bolsa de Valores (213
Burocracia 1021)
Empregos e Salários 1029
Empresa (1811
Estatística 1199
Funcionário Público (214)
Inflação 1199
Mac Valia 1069
Marketing (027)
Multinacionais 1029
Questão Agraria (019
Recessão 1030
Recursos Humanos 1069
Reforma Agrária (033
Subdesenvolvimento (0141
Taylorismo 1112)
Trabalho (171)
EDUCAÇÃO
Adolescência Brinquedo Criança Educação Educação Física Escota (159
Profissional (139
(204)
(020
(079
(212)
1132)

ANTROPOLOGIA/REUGIÃO
Benreçáo (142)
Budismo (119
P 1 LI? <200
LwlOOfnDK
Comunidade Edesia! de Base (019
Espiritismo (059
Espiritismo - V Visão (149
Etnocentromo (124)
Folclore (060)
Igreja (032)
Mito (151)
Pastoral (069
Pentecostaksmo 1189
Refigião (031)
Teologia da Ubertação 11601
Umbanda (097)
POLÍTICA

Alienação (141)
Anarquismo (009
Autonomia Operária (140
Capital (064)
Capital Internacional (071)
Capitalismo (004)
Comunismo (002)
Constituinte (1431
Cooperativismo (189
Deputada (179
Desobediência Civil (090
Dialética 1023)
Direitos da Pessoa (049
Ditaduras 1022)
Estrutura Sindical (199
Geopolitica (1831
Greve (202)
Ideologia (013)
Imperialismo (039
Liberdade 1006)
Mais Valia 069
Marxismo (149
Ma teriaismo Dialético (209
Nacionalidade 1120
Narismo (1BO
Parlamentarismo (007)
Participação Politics (104)
Poder (024)
Política (054)
Poli tica Cultural (107)
Politka Nuclear (063)
Polibca Social (169
Positivismo (072)
Propaganda Ideológica (077)
Questão Agrária (016)
Questão Palestina (079
Reforma Agrária (033)
Revolução (029
Sindicalismo 1003)
Socialismo (001)
Stainismo 1034)
Trotskismo (040
SOCIOLOGIA
Ação Cultural (219
Alcoolismo (209
Cidade (2031
Comunidade Edesial de Base 019
Crime (207)
Cdtura (110
Cultura Popular (039

Leitura 1074)
Literatura Infantil (163)
(1S2)
Menor 1039
Método Paulo Freire (193)
Pedagogia 091)
Uraveisidade
FILOSOFIA 049
Arte (167)
Beleza 023)
Dialética (177)
Ética 061)
Existencialismo 037)
filosofia (109
Justiça 009
Liberdade (219
M*teriafismo Dialético (209
Morte (150
Poder 024)
(119
Teoria 059
Utopia 012)
HISTÚRIA/GEOGRAFIA
Documentação (17«
Geografia 049
História 017)
Materialismo Dialético (209
Museu (182)
(147)
Património Histórico 051)
PSICOLOGIA
Aborto (129
Adolescência (159
Aids (197)
Alcoolismo (209
Amor (088)
Corpo (179
Corpodatría) (159
Criança (2041
Erotismo (139
Escolha Profissional (2121
Hipnotismo (179
Loucura 073)
Morte (159
Parapsicologia (122)
Psicanálise-1? Visão (0661
Psicanálise - 2.* Visão (133)
Psicologia Comunitária (161)
Psicologia Social 1039
Psiquiatria Alternativa 052)
Toxicomania (149
Violência 1069
VIVER ALTERNATIVOIMEDICINA
Acupuntura (149
Astrologia (109
Aventura (199
Contracepção (1731
Ecologia (119
Esperanto (189
Hipnotismo (179
Homeopatia 1134)
Magia 1079
Medicina Alternativa
Medidoa Popular (129
Medicina Preventiva (119
Parapsicologia Psiquiatria Alternativa (122)
Remédio 1052)
(199
AHTES/COMUNICAÇOES

Ação Cultural (219


mim
Arquitetura um
Arte (190
Ator
Biblioteca (094)
Cinema
Comunicação 067)
Comunicação Poética (191)
Comunicação Rural (101)
Contracultura (100
Cultura (110
Cultura Popular (036)
Documentação (174)
Eátora 1179
1185)
Fotografe 062)
História em Quadrinhos (144)
Indústria Cultural 008)
Jazz 093)
0151
Jornalismo Operário (200
(182)
Música 080
Música Sertaneja (186
Política Cultural (107)
PósModemo (169
Rock ' 068)
Teatro 010
Teatro Nó (114)
Video (137)
LITERATURA
Comunicação Poética (191)
Conto (139
Direito Autoral (187)
Editora (179
Ficção (150
Ficção Cientifica. (169
Leitura 074)
Ungüistica (184)
Literatura 056
literatura Infantil (169
Literatura Popular 099
Neologismo (117)
Poesia 069
Português Brasileiro 1164)
Semiótica (109
Tradução (166
Vampiro (179
CIÊNCIAS EXATAS/BIOLÚGICAS
Arquitetura 016
Astronomia 049
Cibernética (129
Cometa Hajjey (157)
Darvrinismo (192)
Ecologia 016
Energia Nuclear 011)
Estatística 1199
Física (131)
Informática (159
Informática 2? Visão (210
Lógica (219
Radiotividade 1217)
Zoologia (154)
Table of Contents
OQUE E LITERATURA
Verso
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
INDICAÇÕES PARA LEITURA
BIBLIOGRAFIA
Biografia
Caro leitor:

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