Você está na página 1de 32

N.

º 4

candido
novembro
2011

jornal da biblioteca pública do paraná


Ilustração: Federico Delicado

Os caminhos
do conto
Escritores e críticos discutem o
futuro do gênero que revelou autores
clássicos da literatura mundial

• Respeitem este direito | Marcelino Freire • Chuva | Otávio Duarte • Anotações de viagem a Juqueí | Ivana Arruda Leite •
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

editorial

A
lém de difundir a literatura contem- tiras expediente

porânea e incentivar a leitura, o Cân-


josé aguiar
dido também deseja fomentar discus-
sões a respeito dos rumos de nossa
cultura. Se na edição passada falamos sobre Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
os desafios da formação de novos leitores na Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana
era das redes sociais, desta vez colocamos Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
em pauta uma discussão a respeito do conto Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross
— gênero que deu à nossa literatura obras e
autores geniais como Dalton Trevisan, Ru- Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski Junior.
bem Fonseca e Lima Barreto —, mas que Redação: Fernanda Rodrigues, Felipe Kryminice e Guilherme Sobota.
tem perdido espaço para o romance neste Fotografia: Kraw Penas. Projeto gráfico e diagramação: Versão
início de século. Autores, críticos e editores Design. Colaboradores desta edição: André Caliman, Bernardo
discutem por que o gênero tem sido preteri- Ajzenberg, Cadão Volpato, DW Ribatski, Federico Delicado, Iacyr
do pelas narrativas mais longas. Anderson Freitas, Ivana Arruda Leite, João Carrascoza, José Aguiar, Luís
“É certo — reiterando — que nin- Henrique Pellanda, Marcelino Freire, Marciel Conrado, Menalton Braff,
guém consegue [hoje] o mesmo destaque Otávio Duarte, Rafael Cerveglierie, Robson Vilalba e Rones Dumke.
que Rubem Fonseca ou Dalton Trevisan
conseguiram em suas épocas. De onde que Redação: imprensa@bpp.pr.gov.br - (41) 3221-4974
se conclui que vivemos uma época, no Brasil,
que viralatizou o conto”, diz João Gabriel de Biblioteca Pública do Paraná
Lima, editor da Bravo!, uma das revistas de Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 – Curitiba - PR.
cultura mais importantes do país. Horário de funcionamento: segunda a sexta: 8h30 às 20h.
Como contraponto a essa possível Sábado: 8h30 às 13h
“crise do conto”, a quarta edição do Cân- cartas Quem são os
dido traz contos de Marcelino Freire, Ivana escritores Critérios para publicação no Cândido
Arruda Leite e Otávio Duarte, além de de- Cândido, o jornal da Biblioteca, da capa? Todos os originais enviados ao Cândido, serão analisados pelo seu
poimentos de contistas sobre o gênero que Âncora da nova fase, heureca! Conselho Editorial, que avalia a partir dos seguintes critérios:
consagrou Jorge Luis Borges. Não deixarão (esperamos) cair a peteca, O ilustrador Federico • Contribuição relevante ao jornal;
Sempre em busca de boas histórias en- Dialogando com frequentadores sérios e... sapeca, Delicado, espanhol talentoso • Adequação ás propostas do Cândido, que privilegia obras inéditas,
volvendo a literatura, contamos nesta edição Impossível publicar textos levados da breca, que aportou direto das que tenham relevância para a cultura.

a saga de Sansão José Loureiro, o maior doa- Divulgando a cultura paranaense, e a oposição já seca; páginas do El País para o Para obter a aprovação para publicação, as obras devem preencher
dor de livros da Biblioteca Pública do Paraná, O jornalismo cultural não é loteca!... Cândido, faz a capa desta os seguintes requisitos:
• De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade).
que há setenta anos é um leitor apaixonado. Luís Santos – via e-mail. edição. Ele reuniu uma turma • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência
A edição apresenta também bate-papos inte- da pesada, todos contistas de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração;
ressantes com Sérgio Rodrigues, jornalista e do primeiro time da literatura originalidade da abordagem).
Recebi a edição nº 2 do Cândido, atestando o
escritor que se divide entre a ficção e a críti- mundial. E nós queremos O Conselho Editorial não analisa:
ca literária, e Marçal Aquino, um dos autores
excelente formato e a qualidade gráfica, bem como saber quem são essas
mais talentosos da literatura contemporânea. o elevado padrão estético do conteúdo. O novo figuras. O primeiro leitor que • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor.
As obras devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a
Como de praxe, as ilustrações dão co- suplemento, que nos remete aos bons tempos do acertar o nome de todos os permitir a leitura crítica e a análise final da obra.
lorido especial à edição, cuja capa é ilustrada Nicolau, consolida a tradição literária do Paraná, escritores da capa ganhará
Serão imediatamente desconsiderados os originais que atentem contra as
pelo artista espanhol Federico Delicado, co- contribui para difundir as novidades da criação o livro Desgracida, de Dalton declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos
laborador de vários jornais da Europa, entre literária em nosso país e abre espaço para o debate Trevisan, vencedor do Prêmio morais e éticos, nomeadamente os casos de:
• Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos,
eles o El País, da Espanha, onde ilustra o ca- e a crítica de alto nível. Vida longa Cândido. Jabuti de 2011, categoria culturais e ambientais;
derno literário Babelia. Outras feras do traço, Ronaldo Cagiano — São Paulo/SP Contos e Crônicas. • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a
como os curitibanos DW Ribatski e André Os palpites devem ser crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc.

Caliman, também ajudam a deixar os textos Maravilha de edição. Adorei os contos enviados para o e-mail
do Cândido mais saborosos. da Assionara Souza! imprensa@bpp.pr.gov.br. Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
Boa leitura a todos Fabiano Vianna — Curitiba/PR Boa sorte a todos.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 3

biblioteca afetiva curtas da bpp


Lilo Clareto
Divulgação
Li Menos que um, de Joseph Brodsky, há 14 anos, por indicação
do escritor Miguel Sanches Neto. É um livro de ensaios. Foi uma
Inscrições abertas para
leitura definitiva - em especial a descrição que o autor faz de sua
rotina familiar num minúsculo apartamento de São Petersburgo, sem
oficina de reportagem
cozinha ou banheiro. Brodsky cresceu ouvindo os peidos dos vizinhos.
Entendi a URSS ali. Impossível esquecer a maneira como o autor
com Eliane Brum
conta a história de Anna Akhmatova e seus versos escondidos pelo
corpo, para que não fossem sequestrados pela KGB. Sanha de poeta. A jornalista e escritora gaúcha Eliane Brum
José Carlos Fernandes é jornalista, colunista da Gazeta do Povo coordena a última edição da Oficina BPP
e professor da PUC–PR e da UFPR. Vive em Curitiba (PR).
de Criação Literária em 2011. O tema é
Du Borsatto reportagem. Para se inscrever, basta enviar
A escolha certa, de Og Mandino, é um livro que mostra a importância um e-mail para oficina@bpp.pr.gov.br, com
de você ir atrás do trabalho que realmente lhe dá prazer e satisfação. uma pequena biografia, de no máximo cinco
Conta a história de um grande executivo CEO de uma multinacional mil caracteres. Nela, o candidato deverá
que aparentava ser realizado profissionalmente, mas no fundo contar quem ele é e por que quer ser - ou
era frustrado porque queria mesmo ser escritor. O livro conta sua é - repórter. Também deverá enviar uma
trajetória de mudança atrás deste sonho; ele passa por inúmeras reportagem (investigativa) de até cinco
dificuldades, inclusive financeiras, em busca do que realmente mil caracteres sobre o seu nome - por que
acreditava. Ao ler A escolha certa, tomei uma atitude que mudou minha vida: pedi tem o nome que tem e como se relacionou
demissão do antigo emprego e fui atrás dos meus sonhos, pois o livro me ajudou e se relaciona com ele. Ambos os textos
abrindo meus olhos para que não deixasse o meu sonho escapar. deverão ser enviados em formato word,
Diogo Portugal é comediante. Vive em São Paulo (SP). fonte Times New Roman 12. O material
Divulgação
será avaliado pela própria Eliane Brum. A
Li aos 18 anos Nine Stories, publicado dois anos antes. Cada conto oficina acontece entre 7 e 9 de dezembro, das 14h às 18h,
era uma revelação. Traduzi “Um dia perfeito para peixebanana” e na Biblioteca Pública do Paraná (Rua Cândido Lopes, 133). As inscrições vão até 21 de
publiquei na revista Senhor em 1962. É a pedra angular da família novembro e são gratuitas. As vagas são limitadas.
Glass, que ocuparia a maior parte da obra de Salinger. Seymour
Glass mete uma bala na cabeça e vira lenda. A epígrafe do livro
revela as intenções do autor: “Conhecemos o som de duas mãos Uma noite na Biblioteca
batendo palmas. Mas qual é o som de uma mão batendo palmas? Um
koan Zen.” E tem “Uncle Wiggily in Connecticut”, único texto de Salinger levado A Biblioteca Pública do Paraná vai participar da Virada Cultural de Curitiba com uma pro-
para a tela: My foolish heart/Meu maior amor (1949), de Mark Robson, não é gramação voltada ao público infantil. Entre 5 e 6 de novembro, crianças de até 13 anos passam
mau. Susan Hayward recita diálogos inteiros, ipsis. E o filme lançou a canção, “Uma Noite na Biblioteca”. Este é o segundo ano do acantonamento, que tem ocorrido sempre
eterna favorita do jazz. na madrugada da Virada Cultural. Além do teatro e contação de histórias, as crianças fazem
Roberto Muggiati é curitibano que botou o pé no mundo, começou na um bibliotour, para conhecer todos os setores da BPP. O evento começa às 18h do dia 5 de no-
Gazeta do Povo em 1954, estudou jornalismo em Paris, trabalhou na BBC de
Londres, foi editor de Manchete, Veja e Fatos e Fotos. Quarenta anos como autor, vembro e vai até as 10h do dia 6. Pela manhã, as crianças e seus pais tomam café da manhã no
dos livros Mao e a China (1968) a Improvisando soluções: o jazz como estratégia hall de entrada da Biblioteca. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas na Seção Infantil da
para o sucesso (2008) - ­ e mais a caminho. Vive no Rio de Janeiro (RJ). BPP e pelo telefone 41 3221 4980.

Sempre gostei de Carlos Drummond de Andrade, em especial de um poema


chamado “Biblioteca verde”, em que o poeta relata a alegria de Kraw Penas Um Escritor na Biblioteca
uma criança ao ganhar os 24 volumes da Biblioteca Internacional
de Obras Célebres. Esse poema fez aguçar minha curiosidade em Luiz Alfredo Garcia-Roza é o próximo convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca”. O
conhecer essas obras. Quando comecei a trabalhar na Biblioteca encontro acontece no dia 24 de novembro, quinta-feira, às 19h. Durante o bate-papo, promo-
Pública do Paraná, há 13 anos, pude conhecê-las e ver que vido mensalmente pela BPP, os autores falam sobre sua formação como leitores e escritores e
são realmente maravilhosas. o papel que as bibliotecas exerceram em suas vidas. Garcia-Roza nasceu no Rio de Janeiro, em
Lidiamara Alvez Gross é a bibliotecária 1936. Seu romance de estreia, O silêncio da chuva, recebeu os prêmios Nestlé e Jabuti em 1997.
responsável pela Divisão de Coleções Especiais
da Biblioteca Pública do Paraná. Garcia-Roza também é o autor dos romances policiais: Achados e perdidos, Vento sudoeste, Uma
Vive em Curitiba (PR). janela em Copacabana, Perseguido e Céu de origamis.
4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Fotos: Kraw Penas

Marçal
Aquino
No sexto encontro do projeto
“Um escritor na Biblioteca”, o
autor de Faroestes falou sobre
sua formação como leitor,
seu fascínio pelos livros e do
sucesso de sua obra literária
no cinema, outra arte pela
qual se diz“apaixonado”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 5

N
Começando a ler a mitologia das histórias para mim está
ascido em Amparo, cidade a 140 quilômetros da
O livro entrou muito tarde na ligada à coisa oral, em que as pessoas se
capital São Paulo, Marçal Aquino é atualmente minha vida. Comecei pelas histórias em reuniam no final da noite e comenta-
considerado um dos grandes autores da literatura quadrinhos, com as quais fui alfabetiza- vam as histórias e os causos. Como eu
do. Eu era louco por histórias em qua- era muito fã desse tipo de conversa, fi-
brasileira contemporânea. Cultuado especialmente drinhos, e achava os livros muito chatos, cava perto dos adultos, então comecei a
pelos livros de contos e novelas, geralmente de porque não tinham figuras. Eu queria aprender técnicas narrativas inconscien-
ver as figuras, não sabia ler. Lembro de temente. Meu pai, por exemplo, é um
temática policial, Aquino começou a ler ainda na infância um sujeito que foi à minha casa e levou grande contador de histórias. Ele con-
de forma espontânea. “Nunca tive um adulto dizendo uma edição do Tarzan, escrito pelo Ed- tava a mesma história meses seguidos.
gar Rice Burroughs. Resolvi ler e desco- Só que cada vez que contava o causo,
para eu ler. Então li às cegas, durante muitos anos”, disse bri uma coisa fascinante: era muito me- ele se modificava. Ele usava técnicas que
o escritor no sexto encontro do projeto “Um Escritor lhor do que qualquer gibi do Tarzan, do aprendi ouvindo. Quando vou escrever,
que qualquer filme do Tarzan, porque automaticamente penso no que pode e
na Biblioteca”. O início como ficcionista foi parecido. a história se passava dentro da minha no que não pode ser revelado. Isso que
cabeça. Eu fiz a transição - abandonei você aprende depois nos grandes livros,
“Comecei fazendo redação na escola. Descobri, fascinado,
os quadrinhos e passei para os livros, ali sobre linguagem e tal.
que podia mentir à vontade. Essa foi a melhor coisa pelos dez anos. Foi a curiosidade que
me levou a abrir um livro. Nunca tive Primeiros livros
que descobri. Mentia impunemente”, diz o escritor. E um adulto dizendo para eu ler. Então li Nunca vou esquecer: mentia mi-
completa: “porque a literatura, à semelhança do cinema, às cegas, durante muitos anos. Li erra- nha idade para poder pegar livros proi-
do, como se diz. Embora não exista isso bidos. A biblioteca de Amparo, que na
é manipulação. Um bom livro precisa de um bom leitor. de ler errado, o importante é ler. Mas época tinha um acervo de uns 13 mil
Um bom livro sem um bom leitor não é nada.” Entre eu li Nietzsche com 13 anos. Não en- exemplares, era uma biblioteca bacana.
tendi nada, achava curiosíssimo aquilo. Não sei como ela está hoje, mas para
seus principais livros, destacam-se as coletâneas de contos Por que aquilo era importante? Li Ma- mim aquilo foi fundamental, porque eu
Faroestes (2001) e Famílias terrivelmente felizes (2003), a chado de Assis muito cedo: achei uma não tinha dinheiro para comprar livros.
droga. Dom Casmurro, durante mui- E queria e precisava ler. Desesperada-
novela O invasor (2002) e os romances Cabeça a prêmio tos anos, considerei um engodo. Aí fui mente. Então, fui aquele rato de biblio-
ler mais tarde, com uma experiência de teca. Houve momentos em que o biblio-
(2003) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
vida maior, e, claro, encontrei um gran- tecário me orientava, indicando autores
(2005), os três últimos adapatados para o cinema. Aquino de autor. Mas li de forma desordenada. e tal, mas na maior parte das vezes eu
chegava lá e pensava: “isso aqui é um
também falou sobre a parceria que mantém com o cineasta História oral supermercado, posso ler tudo o que qui-
Beto Brant, que já rendeu sete longas-metragens. Além Eu fui muito pobre. Ainda sou, ser”. Entrei pela primeira vez nessa bi-
mas hoje pelo menos consigo pagar as blioteca quando tinha onze anos. Outro
de adaptar seus próprios livros (como no caso de O contas. Nasci numa fazenda. Então essa dia eles me mandaram a minha ficha.
invasor), Marçal roteirizou obras de outros escritores, como história de que tem que ter livros em Pude ver o que eu andava lendo naque-
casa para o cara enveredar para a litera- les anos. Pude ver que eu era um leitor
Lourenço Mutarelli. O escritor também trabalha como tura não é verdade. Meu pai tem terceiro onívoro, porque lia filosofia, poesia, pro-
roteirista de TV, escrevendo, ao lado de Fernando Bonassi, ano do antigo primário, minha mãe tem sa, policial, não tinha uma linha de lei-
ginasial incompleto. Mas há vantagens e tura. Não era orientado para um só lado
a série Força Tarefa, da Rede Globo. Durante a conversa, desvantagens nisso. A primeira televisão da literatura. Acho que isso me tornou
mediada pelo jornalista Irinêo Baptista Netto, Marçal — que entrou na minha casa foi quando eu um leitor sem preconceitos, um leitor
tinha 14 anos. Então, eu sou uma rari- que, para saber se um livro era bom ou
que também é jornalista e foi por muitos anos repórter dade: vi cinema antes de ver TV. Isso é não, tinha que ler. Houve um momen-
impossível hoje em dia, qualquer criança to em que descobri Raymond Chand-
policial — ainda falou sobre releituras, técnicas de
nasce vendo TV. Eu vi cinema primei- ler, e aí li toda sua obra. Por sorte, tinha
escrita e resenhas literárias. ro, e fiquei encantado com aquilo. Toda lá na biblioteca de Amparo. Descobri
6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

autores policiais e fiquei anos lendo ro- esse livro de novo?”. Eu disse: “não, es-
mance policial. Lembro também quan- tou lendo pela primeira vez”. Porque o
do li Moby Dick — eu estava na escola e Calvino diz que o clássico é aquele li-
torcia para a aula terminar logo. Quan- vro que, quando se lê pela primeira vez,
do todo mundo ia jogar bola, eu ia para tem-se a impressão de já tê-lo lido. E
casa terminar de ler Moby Dick. Estava quando você retoma esse livro para re-
encantado com aquilo. Então, há mo- ler, sempre há a sensação de que é a pri-
mentos e livros que foram muito mar- meira vez. O São Bernardo é assim para
cantes na minha trajetória. mim. Às vezes, há trechos que leio e
penso como pude não ter percebido an-
Biblioteca em casa tes. Eu tinha lido, mas a mirada era de
Chegou um momento na minha um outro momento. Até porque a gente
vida em que eu tinha quatro mil livros, vai mudando. Eu tinha outra idade, ou-
o que não é muito. O problema é que, tras expectativas, tinha lido outras coi-
quando ia procurar um livro, dava tan- sas. A verdade sobre um grande livro é
to trabalho que eu preferia ir comprar que ele nunca termina de ser lido. Pare-
outro. Porque eu não ia achar naquele cido com poesia. Não dá para dizer “eu
manancial. Morei num apartamento em li o Drummond”. Eu leio Drummond.
que a coisa ficou tão feia, que o Beto Para o escritor, tem outra coisa tam-
Brant foi lá e disse: “os livros vão acabar bém: mesmo que não seja essa a inten-
botando você para fora”. Eu tinha livros ção, quando você vai reler um livro e já
em tudo que era canto, adoro isso, livros está a par da trama, do desenvolvimento
na sala, na cozinha. Gosto da presen- e da linguagem, você relê para aprender.
ça do livro. No meu quarto, hoje, tenho Você incorpora coisas. O aprendiza-
várias estantes. Essa conversa mole de do de escrever é inesgotável, não acaba.
e-book não pega em mim. Vou morrer O jornalista Irinêo Netto conversa com Aquino no auditório Paul Garfunkel da BPP. Nenhum escritor poderá sentar e dizer:
antes, então não tem problema. Fiquei eu sou um escritor pronto. Este escri-
feliz tal como os livros existem hoje. tor estará morto. Porque nunca acaba


Um formato invencível. Mexe com a sua sensibilidade ou não, e esse aprendizado. Fico fascinado com
Um bom livro precisa de assim por diante. O resto são invenções as coisas que descubro relendo. Porque
Primeiras histórias um bom leitor. Um bom livro que as pessoas fazem para tornar com- aí você lê sem preocupação com trama.
Comecei fazendo redação na es- plicado algo que é absolutamente sim- Você relê pelo prazer. Mas, obviamente,
cola. Descobri, fascinado, que podia sem um bom leitor não é nada.” ples. Quando você abre um livro, está releio livros que amei, que amo.
mentir à vontade. Essa foi a melhor coi- em busca de um tipo de prazer que só a
sa que descobri. Mentia impunemente. leitura pode dar. Nenhuma outra coisa é Técnica
Lembro que uma vez a professora me igual. Cinema, chocolate, nada é igual. O grande escritor não mostra a
chamou para perguntar por que eu ti- não era nada daquilo. Fazem leituras O livro, até hoje, dá um tipo de grati- técnica, não é evidente, você não vê os
nha escrito uma história com um final próprias, e aí toda leitura é válida. Ela é ficação que você não encontra em ne- andaimes. Num livro ruim, ficam todos
triste. Ela estava toda cheia de piedade. tão importante quanto a minha. A mi- nhum outro lugar. Sou viciado nisso. os andaimes que o cara usou na constru-
Quando eu disse que aquilo não tinha nha leitura é apenas uma. O autor não ção. Há repetição. Estava lendo James
acontecido, ficou mais chocada ainda. É pode ser autoritário a ponto de achar Releitura Wood, autor de Como funciona a ficção,
a coisa de manipular o outro, o que o a própria leitura a única possível. Isso Há alguns livros que reli mui- ele faz um comentário muito engraçado.
escritor faz muito. O escritor, claro, vive é uma bobajada que se inventou numa to. O estaleiro, do Juan Carlos Onetti, Já flagrei escritor que usa a mesma ima-
todas as emoções, mas como trabalha- certa época por aqui, em que se pergun- li cinco, seis vezes. Graciliano Ramos, gem em dois livros. Ele gosta tanto da-
mos com o plano das emoções, adoro a tava a um escritor qual era a mensagem também. Já li umas dez vezes o São Ber- quela imagem que a usou em dois livros.
ideia de que posso mexer com a cabeça de um livro. Como assim, que mensa- nardo. Tem uma definição do Italo Cal- Eu, na ocasião, fiquei pensando que ele
dos leitores. Quero que você fiquei per- gem? Livro com mensagem é do Chi- vino interessante. Quando eu estava tinha um repertório pequeno. Mas não,
turbado, triste, alegre. Já vi gente con- co Xavier. Não tem que ter mensagem. relendo o Onetti, uma namorada che- o James Wood fala que isso é consolida-
tando a história de um livro meu que Livro mexe com a sua cabeça ou não. gou para mim e disse: “você está lendo ção de estilo. Perfeitamente. É tão bom,
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 7

é dele, que ele pode usar quantas vezes lá, brilhando em neon. “Saudade” com
quiser. Então, essa coisa de prestar aten- cedilha, cachorro com x, como é que
ção na maneira que o escritor fez é ilu- pode? Mas passa, é humanamente regu-
sório, porque o bom escritor não mos- lar. Só que tentei escapar disso, claro. O
tra. Quando você lê um bom escritor, problema de reler seus próprios livros é
ele já te envolveu. Porque a literatura, à que você tenta reescrevê-los. Aconteceu
semelhança do cinema, é manipulação. comigo. A pedido da Cosac Naify, lan-
Um bom livro precisa de um bom leitor. cei uma antologia [Famílias terrivelmen-
Um bom livro sem um bom leitor não é te felizes (2003)] dos meus dois primei-
nada. Para se completar, o livro precisa ros livros de contos [As fomes de setembro
que o leitor faça essa leitura, que não é (1991) e Miss Danúbio (1994). Quando
necessariamente a leitura do escritor — fui mexer nos contos, comecei a reescre-
e geralmente não é. O livro oferece essa vê-los. Só que aí pensei que não teria gra-
possibilidade. A riqueza de leituras de ça se fizesse aquilo. Não seria o escritor lá
um mesmo livro é um negócio absur- de 20 anos atrás. Publiquei tal e qual es-
do. Todo mundo já deve ter vivido essa tava, com “ela tinha” e tudo mais. Então
experiência. Às vezes, eu amo de paixão só releio quando vou adaptar para o cine-
um livro, não aguento a gostosura, dou ma, aí sou obrigado. Mas, por diletantis-
para um amigo que eu acho que vai ler mo, nem a pau. Tenho medo de abrir um
e vai gostar, o cara lê e fala: “ah, achei livro e achar um “ela tinha” lá no meio.
ok”. É uma decepção muito grande para
mim, porque aquilo foi transformador Caminho literário
para mim. Então, literatura é uma via- O escritor não dá saltos. Ele tem
gem muito pessoal. que passar por determinados livros.
Precisa escrevê-los, mas não sei quantos
Vida de leitor são. Não sei quantos livros de verdade
Só leio algo quando tenho um mí- deixam um escritor feliz. A gente, para
nimo de curiosidade. Quando algum jor- uso público, diz que livro é que nem fi-


nal fala para eu resenhar tal livro, recuso critor que respeito, que está lá dentro, iso- lho, gostamos de todos igual. Mas é
quando não estou curioso para ler aqui-
Quando você lê um bom lado do mundo. O mundo exterior se per- mentira. A gente não gosta de todos
lo. Por exemplo, tem autor que já sei que escritor, ele já te envolveu. deu. Eu abstraio o mundo ao redor. Não por igual. Mas reconheço a importância
não vou conseguir ler. Nesta encaderna- ouço que música está tocando, por exem- de cada livro, sei que não chegaria no
ção não vou ler alguns caras. O Proust é Porque a literatura, à semelhança plo, porque estou dentro do livro. terceiro se não tivesse feito o primeiro.
um deles. Não vou ler, não vai dar. Por- do cinema, é manipulação.” Não chegaria no quinto se não tivesse
que tem uns caras que eu quero reler. Relendo os próprios livros feito o terceiro. Não dá para não passar
Mas quando você começa a reler, surge Fiquei super ansioso quando lan- por isso. Tudo é aprendizado.
o seguinte problema: ao reler, você está cei meu primeiro livro. Quando saiu,
ocupando um tempo de leitura que po- ler, tá?” Eu disse: “que bom”. Porque eu abri ao acaso e vi lá no meio: “ela ti- Histórias na rua
deria ser dedicado a novos livros. Agora, não vou me obrigar a ler. nha...”. E eu tenho problema com caco- Gosto de ver gente no metrô. É
se fica uma sequência de livro chato, você fonia. Sou jornalista. Como que passou importantíssimo para mim, ouvir con-
vai atrás do cara que conhece e gosta. É Escritor dentro da história esse “ela tinha”? E aí eu fiquei com ódio versas alheias, essas coisas bonitas aí.
aquela coisa que o Raduan Nassar fala: Desculpa, mas continuidade não é do livro. Para piorar, fiz uma noite de au- Gosto de ver gente, ir para a rua. Uma
é preciso afiar sua lâmina, se não ela fica só no cinema. Eu, quando escrevo - digo tógrafos e um amigo jornalista chegou e sala de espera de um consultório médi-
cega. Então, você vai nos bons, nos caras por mim, cada um escreve de uma ma- falou assim: “sabe o que eu gostei? É que co é um universo. Dependendo da es-
que mexem com você e dialogam conti- neira — vejo aquilo que estou escrevendo. você não está nem aí para a linguagem, pecialidade do médico, é um universo
go. Hoje em dia não leio ninguém por Sei a roupa que o personagem está ves- tem até um ‘ela tinha’ lá no meio”. Eu: “é, muito grande. Porque aquela hora da
obrigação. Nem amigo. Um dia um ami- tindo, embora não vá descrever isso. Olho tem sim”. Porque isso acontece no jor- rua é a hora de ver gente, de ouvir, de
go levou um original lá em casa e disse: para ele e sei como é o seu rosto. Você tem nal. Eu fui revisor. É horrível abrir uma alimentar um outro tipo de mitologia
“eu vou deixar aí, mas você não precisa que estar dentro da história. Esse é o es- página que você revisou e o erro estar que não a literária.
8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Leituras simultâneas como é o processo de escrita, por que faz cepcional. Quem diz isso é o Phillip
Leio mais de um livro ao mesmo assim e não faz assado, tem gente que Roth, num prefácio: “Saul Bellow é o
tempo, sempre. A não ser que seja um li- diz que baixa o santo e tal, não acredito maior escritor americano de todos os
vro avassalador, daqueles que você tem em nada dessas besteiradas. Eu sou es- tempos”. Se ele diz isso, quem sou eu
que ler e não pode se afastar, porque vai critor, escrevo. Eu sou jornalista, escre- para dizer que não. Também li um livro
perder. Mas é raro. Eu gosto de ter dois, vo. Eu sou roteirista, escrevo. Tenho que muito interessante, do David Lebedoff,
três livros na cabeceira, depende da hora. sentar diante da mesa e escrever. em que ele junta as biografias do Geor-
Mas, claro, você não pode ler, por exem- ge Orwell e do Evelyn Waugh. O livro
plo, Onetti de uma forma leviana, ele vai Rotina se chama O mesmo homem — no amor e
exigir de você, porque ele é diabólico. Você Claro que há dias em que você na guerra e mostra que os dois tiveram
não vai ler García Márquez como quem tem mais facilidade, o dia está favorável, biografias absolutamente semelhantes,
vai ler Onetti. Não vai ler o Cortázar, sei etc. Têm dias que é mais difícil, você es- embora fossem duas pessoas comple-
lá, Graciliano, da mesma forma que Ma- creve menos. Tenho um amigo que fala: tamente antípodas. Mas ele mostra que
chado. Cada escritor demanda um tipo de “não saio do computador se eu não es- não, que andaram pelos mesmos cami-
leitura. Tem escritor que é ciumento. crever trinta linhas”. Eu não. Se eu con- nhos, é um livro incrível.


seguir escrever duas linhas definitivas,
Método estou feliz. Porque, às vezes, você es- Cinema A gente, para uso público,
Escrevo à mão, em cadernos. De creve 50 linhas e depois lê e começa a Sou um cara que aguenta filme diz que livro é que nem filho,
todos os meus livros existem manus- cortar, cortar... E no final cortou 49. O cabeça, filme encrencado que tem sete
critos. Não tenho nenhum livro escrito importante é estar próximo do livro, dar horas de duração. Se o cara não insul- gostamos de todos igual. Mas
no computador. A literatura para mim ao livro o tempo que ele pede. É ilu- tar minha inteligência, tudo bem, mas se é mentira. A gente não gosta
é tão pessoal e intransferível que escre- são achar que você pode apressar o pro- tiver uma coisinha que caia de repente,
vo em cadernos. Tudo começou porque cesso: “ah, vou terminar rápido porque eu saio. Não deixava livro sem terminar de todos por igual.”
eu morava numa pensão e não podia ba- o editor está pedindo”. Um bom edi- e jamais saía de cinema antes de acabar.
ter à máquina de madrugada. Então, es- tor jamais aperta um escritor. Até por- Hoje eu saio. Outro dia estava no júri de
crevia à mão, melhorei minha letra, etc. que não adianta. Eu devo um livro para um festival e uma hora o filme me en-
Mas tem essa coisa de você estar perto o meu editor há quatro anos. Ele faz o cheu tanto o saco, era tão agressivamen-
do livro, não se desligar emocionalmen- que pode, às vezes manda uns bilhetes, te ruim, que resolvi sair. O diretor estava
te dele. Quando se passa muito tempo, mas não adianta forçar. Tem uma coi- presente e me disse: “se você sair ago-
o retorno é doloroso. Já perdi livro por sa dentro da literatura que ainda é ar- ra vai perder a melhor parte”. Aí fiquei,
causa disso. Perder significa que deixei tesanal. Volto a dizer: estou falando da assistimos à melhor parte e eu lhe dis-
de concluir um livro que eu tinha pela minha experiência e de alguns escrito- se: “você está enganado”. E saí. Também
metade, por ficar muito tempo sem es- res que conheço. Tem escritor que faz não vou ver cinema de entretenimento.
crevê-lo. Há um problema para quem diferente. Eu acho difícil escrever. Ima- Acho que as pessoas vão hoje ao cinema
escreve: eu, por exemplo, não sei nada ginei que com o tempo fosse ficar mais para usar mais o estômago do que o cé-
do que vai acontecer. Vou descobrindo fácil, mas é o contrário. Você fica mais rebro. Acho horrível a pessoa comer no
na medida em que escrevo. Há escrito- exigente, fica mais difícil se contentar. cinema. As pessoas entram com verda-
res que fazem um plano de trabalho. Eu, É infernal a literatura. A tendência do deiros jantares nas salas de cinema.
se fizer isso, não vou escrever o livro. Por escritor é realmente parar de escrever.
que é que eu vou escrever se já sei o que Chega um momento em que ele fala: Resenhas em jornais
acontece? Gosto de descobrir, de mer-
gulhar no vazio. Isso implica o fato de
“não dá mais, já escrevi o que tinha que
escrever”. Também tem que saber parar.
Eu não sou crítico, não tenho
substrato para falar. Até porque as re-
“ Há escritores que fazem um
plano de trabalho. Eu, se fizer
que, se o escritor ficar muito tempo lon- Temos uns amigos aí que não souberam senhas que faço têm 15 linhas. Em 15
ge, as coisas ficam difíceis. Voltar é sem- parar, mas é um direito. linhas, se o nome do autor for mui- isso, não vou escrever o livro. Por
pre muito difícil. É uma coisa demorada, to comprido, você já gasta a metade.
tem que reler tudo, se perguntar “o que Leituras marcantes em 2011 Então não me arvoro na ideia de que que é que eu vou escrever se já
mesmo eu quero contar aqui?” Isso é um Foram releituras. Herzog é um sou crítico. Acho que a resenha cum- sei o que acontece? Gosto de
desastre. Tem uma hora que o livro vem lançamento, embora já existisse por pre bem o seu papel se disser que o li-
até você. Não estou interessado em saber aqui em outra tradução. É um livro ex- vro saiu, se der uma palhinha do que descobrir, de mergulhar no vazio.”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 9

se trata e, se puder, trouxer a opinião algo a partir desse livro. Fernando Bonassi e o Vitor Navas. Du- não me entender, o problema é dele, não
de quem escreve. Essa história de apro- rante um ano e meio eles trabalharam no meu. É o poema do Drummond: “não
fundar e tal, não existe mais espaço no Ensino da literatura roteiro, sem satisfazer o Beto. Um dia eu é o meu verso que é ruim, é o seu ouvi-
jornal para isso, talvez só na internet. Acho errado o modelo que as es- brinquei com ele: “sabe o que falta nes- do que entortou”. No cinema, não. Pri-
Tem que virar a chave. Evito fazer crí- colas adotam para formar leitores: dar se roteiro? Isso, isso e aquilo”, que era o meiro, dezenas de pessoas vão depender
tica de cinema também, especialmen- o livro e aplicar prova. O cara vai odiar que eu teria posto no meu livro se tivesse daquele material para fazer o trabalho
te de cinema brasileiro, porque conhe- Machado de Assis, Graciliano Ramos, ido até o fim. Ele concordou e me cha- delas. O maquiador precisa do roteiro,
ço todo mundo. E os caras não aceitam todo mundo. Até Marçal Aquino. Um mou para dar um tapa no roteiro. O tapa o iluminador, o fotógrafo, o diretor, etc.
crítica. Diretor não gosta de crítica. dia minha filha me mostrou na inter- foram 70 dias escrevendo e uma viagem Então, tem uma responsabilidade mui-
Não faço para evitar problemas. Prefi- net uma menina comentando: “Marçal ao Paraguai. A partir daí estabelecemos to grande.
ro trabalhar com os clássicos. É mui- Aquino? Um corno”. Como assim, um uma relação profissional.
to mais confortável. Cinema que eu já corno? Aí, fui ler qual era o assunto. A Diálogos
conheço, é uma oportunidade de rever. professora deu meu livro na sexta-feira Roteiro O Nelson Rodrigues, maior dia-
e na segunda-feira aplicou prova sobre Eu não sou roteirista. Roteiro não loguista da literatura brasileira, dizia que
Escrever para o cinema o livro. Ela passou o fim de semana ten- tem nada de literário. Não é preciso fi- o grande defeito do escritor brasileiro é
Nunca penso em cinema quan- do que ler meu livro. E odiou. Então, o guras de estilo. Um bom roteiro é infor- que ele toma muito pouco cafezinho. Ou
do vou escrever. Sou escritor puro-san- livro tem que dar prazer. Dizem: “o li- mativo, diz o que acontece e o que se seja, é preciso ir ao bar e prestar atenção
gue. Sempre falo que, no dia do juízo vro é difícil”. Difícil para quem, cara pá- fala. O plano das intenções pode ou não no outro. Estou sempre prestando aten-
final, espero estar na fila dos escritores. lida? Se o livro exige que você se esforce estar no roteiro. Então, eu virei roteirista ção no outro. Morei num apartamento
Porque quando tenho uma ideia, penso um pouco mais do que está habituado, porque era a coisa mais óbvia do mundo. que era uma festa. A mulher que mora-
logo: “isso dá um conto, um romance ou ele é valoroso. Ele está chamando você Eu já contava histórias no jornalismo e va imediatamente acima do meu aparta-
uma novela”. Nunca penso “isso dá um para cima, não para baixo. Quem gosta na literatura. Ir para o roteiro foi uma mento usava telefones sem fio. Então eu
roteiro”. Tem um único caso na minha de ler, pega um livro e tem um genuíno coisa que me pareceu natural. Aí, fiz Os tirava o meu do gancho e ouvia ela con-
vida que peguei um livro e pensei: “dá prazer. É esse o momento da literatura. matadores, Ação entre amigos, O invasor, versando com as filhas. Comecei a mon-
um puta filme”. Que é O cheiro do ralo. O resto é conversa mole. Cão sem dono, Crime delicado, O cheiro do tar uma história, porque ela falava mal
Costumo ouvir sempre que determina- ralo e Nina. No Cabeça a prêmio dei uma de uma filha para outra. Comecei a ficar
do livro é “cinematográfico”. Eu penso: Parceria com Beto Brant mão para o Marco Ricca, mas pequena. interessadíssimo nessa história. Eu não
“todo livro é cinematográfico”. Porque, Eu não queria nada com o cine- Hoje, escrevo roteiro profissionalmen- contava para ninguém, obviamente, por-
quando se está lendo, você vê os perso- ma. Achava que em matéria de ativida- te para a televisão, com a séria Força ta- que isso é muito feio. Um dia o Naum
nagens e situações. Livro é livro, fico fe- de economicamente inviável já bastava a refa. Agora, é uma atividade como ou- Alves de Souza disse: “sabe de onde nas-
liz com isso. Só começo a pensar naquilo literatura. E aí o cinema veio até mim. tra qualquer. É uma maneira de contar cem as peças? Da rua, das pessoas”. Cla-
como um produto audiovisual quando Existe um diretor em São Paulo, o Beto histórias, não tem nenhum segredo. Não ro. Como você vai escrever sobre pes-
um diretor diz para adaptarmos. Aí, seja Brant, que leu um livro meu [As fomes de acredito na ideia de que o roteiro tem soas se você não sabe como elas falam,
meu livro ou de outro, tenho que fazer setembro] e resolveu adaptar um conto. que ter figura de estilo. Acho que o cara ou como elas pensam? Que diabo é isso.
uma mirada muito diferente. Tenho que Como a editora não tinha os direitos, ele que compra roteiro é meio tarado, por- Uma frase ouvida na rua, ao acaso, pode
ler ou reler o livro já entendendo como teve que vir a mim. Saímos beber e fi- que não é possível, o roteiro é só a receita fazer com que eu vá para casa, sente e es-
que a gente vai transpor aquilo para essa camos a noite toda falando de cinema. do bolo, não é o bolo. É necessário que creva um conto. g
outra linguagem. Nunca tive essa ideia Ele ficou abismado ao saber que eu tinha ele exista, sem roteiro dificilmente você
de sair do cinema dizendo “o livro era visto muito mais filme do que ele. En- vai conseguir fazer algo razoavelmente
melhor”. O livro é sempre melhor. O li- tão ele disse que eu era um cara do cine- bom, mas, uma vez feito o filme, o rotei- Próximos convidados do projeto
vro é outra coisa, não dá para comparar ma. Eu falei que não, que só gostava de ro deixa de ter razão. Ele não é um texto “Um Escritor na Biblioteca”:
o livro ao filme. Eu acho engraçado que cinema. Ele acabou não fazendo o filme teatral, que pode oferecer várias leituras.
em peças de teatro ninguém fala isso. O sobre meu conto. Mas quando foi fazer O roteiro, quando é bem filmado, é fil-
cara adapta uma peça de teatro e nin- seu primeiro longa, que é Os matadores, mado uma vez só. Para mim, é superna- • Luiz Alfredo Garcia-Roza 24/11
guém fala “a peça era melhor”. Mas o fui chamado. Eu estava escrevendo um tural fazer roteiro. Tem lá as dificulda- • milton hatoum 6/12
livro, todo mundo diz que era melhor. romance e precisei parar para fazer ou- des, você é obrigado a apertar a tecla sap.
Acho que o grande cinema, quando tras coisas, desandou, que nem maionese. Quando escrevo literatura, não estou Sempre às 19 horas. Entrada franca.
parte de uma matriz literária, deve esta- Não consegui retomar. O Beto chamou preocupado com o meu leitor. Eu tento
belecer um diálogo com o livro, propor dois roteiristas para fazer Os matadores, o ser o mais claro possível, mas se o leitor
10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | sérgio rodrigues


Maria Mendes

Dos dois lados


do balcão
Escritor e crítico, Sérgio Rodrigues fala sobre a
democratização da “conversa” literária na internet,
onde se tornou referência com seu blog Todoprosa

Guilherme Sobota Globo, na revista Veja e na TV Globo. No


começo dos anos 2000 ajudou a criar o

S
e a internet não criou uma nova periódico esportivo Lance!.
forma de se fazer literatura, como Em 2000 fez sua estreia na lite-
se apregoava no início dos anos ratura com O homem que matou o escritor,
2000, ela tem sido um importan- um elogiado livro de contos. De lá para
te canal de discussão sobre assuntos que cá foram cinco livros, entre romances e
os cadernos de cultura, com suas páginas coletâneas de contos, escritos paralela-
cada vez mais enxutas, não conseguem mente ao trabalho crítico no Todoprosa.
mais dar conta. “A conversa literária, a Apesar de rechaçar a alcunha de “crítico
troca de informações, o ambiente de re- literário” (“Em termos de autodefinição,
cepção de livros, tudo isso também vai fico satisfeito com essas três palavras:
passando por mudanças muito excitan- leitor, escritor e jornalista.”), Rodrigues
tes, com o meio digital ocupando cheio diz que não se pode confundir “crítica
de entusiasmo os espaços que a impren- literária” com “crítica de rodapé”, os tex-
sa tradicional e a crítica universitária vão tos publicados nos antigos suplementos
deixando vagos”, diz Sérgio Rodrigues, literários. “Qualquer texto, seja jornalís-
que com seu blog Todoprosa se tornou tico, acadêmico, ensaístico, blogueiro ou
uma referência literária na internet. o que for, que dê uma contribuição inte-
Apesar de seu trabalho na rede, ligente, bem informada e original à lei-
Rodrigues tem uma sólida carreira na tura de uma obra literária, é um texto de
grande imprensa, iniciada como repór- crítica literária”, diz.
ter da Folha de S. Paulo, no Rio de Ja- Na entrevista a seguir, o escri-
neiro. Já no Jornal do Brasil, aos 25 anos, tor ainda fala sobre um possível esgota-
foi enviado pela editoria de esportes a mento da narrativa. “Não acho que tudo
Londres para cobrir o circuito da Fór- já tenha sido escrito ou experimentado.
mula 1. Trabalhou ainda no jornal O As recombinações vão sempre tender
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 11

ao infinito”. Rodrigues também reve- existiria, então convém manter as coisas vras: leitor, escritor e jornalista. sei: estou no caminho certo. O jornalis-
la como um leitor profissional organiza em perspectiva. O maior risco da tra- mo surgiu então como uma forma de me
suas leituras, que, no seu caso “têm a ver dição é você, por ignorância, achar que Assim como os livros do escritor espa- aproximar daquela meta, um modo de
com uma mistura de obrigação, planeja- está sendo revolucionário quando re- nhol Enrique Vila-Matas, sua ficção se garantir o ganha-pão enquanto a litera-
mento, impulso e prazer”. pete um achado dos vanguardistas de alimenta, em grande parte, de temas tura não me cobrisse de glória e riquezas,
1870. Por isso, quem pensa que pode relacionados ao universo da escrita, dos como àquela altura eu tinha certeza que
Você é um jornalista formado na im- escrever sem ter lido nada já perdeu o escritores e da leitura. Isso não pode acabaria acontecendo. Era para o jorna-
prensa tradicional, de papel, que está jogo antes de começar. Mas não, não tornar a literatura ainda mais restrita a lismo ter sido um mandato-tampão, mas
agora na internet. No começo dos anos acho que tudo já tenha sido escrito ou um círculo de iniciados? deu tão certo que me desviou por um
2000, surgiu uma discussão acerca de experimentado. As recombinações vão Gosto muito do Vila-Matas, mas não tempo do caminho. Comecei pelo jorna-
uma possível “literatura feita na inter- sempre tender ao infinito. vejo esse parentesco. Até me aproximo lismo esportivo e aos 25 anos estava mo-
net”. Uma década depois, qual a influ- disso pelo lado do humor nos textos rando em Londres, responsável pela co-
ência da internet em nossa literatura O escritor José Castello escreveu tex- curtos que comecei a publicar no blog bertura de Fórmula 1 do Jornal do Brasil,
contemporânea? to recentemente afirmando que a crí- com o nome de Sobrescritos e que depois enviando matérias para todas as seções
Uma influência muito pequena, quase tica literária é um fenômeno do século foram lançados em livro. Nos Sobrescri- do jornal, da política à cultura. Viajei o
inexistente, se pensarmos na literatu- XX. Se não há mais crítica, o que há en- tos, os personagens são todos ligados a mundo inteiro. Depois, de volta ao Bra-
ra em si, forma e conteúdo. A influên- tão? Como você definiria seu trabalho uma versão satírica e meio absurda da sil, fui chefe de reportagem, editor, chefe
cia da internet só aparece com força no no site da Veja? nossa vida literária, mas no restante da de redação, colunista. Quem já esteve lá,
aspecto da divulgação, da circulação, da Me parece que esse é um juízo bastan- minha ficção a metalinguagem é só uma sabe que o jornalismo pode ser a profis-
facilidade de publicar. Essa curiosa ex- te estreito. Não se pode reduzir a crítica entre outras linhas de força, tem mais a são mais absorvente do mundo. Só em
plosão que estamos vendo no número literária à “crítica de rodapé”. Esta é um ver com a estrutura do que com o tema. 2000, aos 38 anos, retomei o fio e publi-
de escritores, aspirantes e simpatizantes fenômeno do século XX, certo, e tem Trata-se de uma obsessão ou limitação quei meu primeiro livro de ficção. Mas
tem tudo a ver com isso, a meu ver. A tanto a ver com a história da literatura minha: a de considerar naïf qualquer não tenho de modo algum a sensação de
conversa literária, a troca de informa- quanto com a história do jornalismo — texto que, a esta altura do campeona- que perdi tempo. O homem que matou o
ções, o ambiente de recepção de livros, mais até com esta, imagino. Mas a crítica to, não traga em si a consciência de ser escritor é um livro muito melhor do que
tudo isso também vai passando por mu- literária existia antes disso e continuou a texto. Quem narra? Por que narra? Não qualquer coisa que eu poderia ter publi-
danças muito excitantes, com o meio existir depois. Qualquer texto, seja jor- acho que dê para fugir dessas pergun- cado aos vinte e poucos anos.
digital ocupando cheio de entusiasmo nalístico, acadêmico, ensaístico, bloguei- tas. Mas a ideia da literatura como lin-
os espaços que a imprensa tradicional e ro ou o que for, que dê uma contribuição guagem cifrada ou maçonaria não me Quais são as leituras fundamentais e bá-
a crítica universitária vão deixando va- inteligente, bem informada e original à agrada nem um pouco. Procuro escrever sicas (teóricas ou não) para quem quer se
gos. Mas a ideia, muito presente dez leitura de uma obra literária, é um tex- para fora e não para dentro. iniciar na vida de “leitor profissional”?
anos atrás, de que a internet daria ori- to de crítica literária. Os espaços insti- Não sei se existe tal coisa. Profissional
gem imediata a uma literatura drama- tucionais da crítica passam por um mo- Você trabalhou em diversas áreas de ou não, um leitor tem que fazer o seu
ticamente nova era ingênua ou oportu- mento de crise: encolhem na imprensa grandes veículos da imprensa, como es- recorte pessoal no universo quase in-
nista. Revoluções profundas desse tipo tradicional, fecham-se numa algaravia porte, por exemplo. Como foi sua tra- finito dos livros. Nem sempre a leitu-
nunca têm a velocidade do marketing. autista em grande parte da universida- jetória até chegar à literatura. Quando ra mais constitutiva é a mais óbvia. No
de. Em compensação, uma multidão de enveredou para a área e decidiu que iria meu caso, por exemplo, para falar de
Nos contos de O homem que matou o es- vozes espontâneas se levanta na grande ser escritor? Ou foi algo que simples- crítica, Roland Barthes foi apaixonante
critor, as histórias enveredam por vários Babel digital, e algumas delas são óti- mente “aconteceu”? durante um tempo, mas não saberia di-
gêneros. Depois de Kafka, Joyce e Gui- mas. Quanto a mim, de vez em quan- Não foi assim que as coisas se passa- zer se a leitura dele foi mais ou menos
marães Rosa, ainda há espaço para ex- do publico no Todoprosa textos que po- ram. Não “cheguei” à literatura, já estava influente do que a leitura disciplinada
perimentar? A percepção de que tudo dem ser catalogados como crítica, sem lá desde o início. Decidi que seria escri- que fiz na mesma época de O Capital,
já foi escrito na literatura chega a lhe dúvida. Se não me intitulo “crítico lite- tor aos 14 anos, quando comecei a escre- de Karl Marx. Outro exemplo: Anto-
angustiar na hora de escrever? rário”, embora algumas pessoas me cha- ver contos com uma disciplina que gos- nio Candido é obrigatório e Roberto
O escritor que amaldiçoa a tradição é mem assim, é porque não é esse o foco taria muito de conseguir reproduzir hoje Schwarz falando de Machado é, a meu
como o pescador que amaldiçoa o mar. do meu trabalho. O Todoprosa é um blog em dia. Eram os anos 1970, época do tal ver, brilhante, mas nenhum deles ficou
Está certo que a tradição representa um de leitor, um leitor que é também escri- “boom do conto”, e andei ganhando al- impresso na minha memória com a ni-
desafio, que é imensa e perigosa, que tor e jornalista. Em termos de autodefi- guns concursos de província pelo país tidez dos eruditos inventados de Bor-
pode te engolir, mas sem ela você não nição, fico satisfeito com essas três pala- afora com meus primeiros escritos. Pen- ges. Não existe receita. O importante é
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | sérgio rodrigues

ler muito, sem preconceitos, para ir for- cias históricas. Elza, a garota é o meu li- dez romances medianos, por mais que o a tiragem padrão dos livros de ficção
mando aos poucos uma visão própria. vro mais vendido, e não tenho dúvida de mercado não funcione assim. A pressão que as editoras não conseguem esgotar.
que o fato de se basear em fatos histó- para transformar contistas em roman- Como explicar essa contradição?
Na Oficina de Leitura da BPP, você ricos tem a ver com isso. Mas a presen- cistas é grande: “ah, aumenta essa histó- Acho que não existe uma explicação sim-
disse que a literatura de “interface”, ça do romance histórico em nossa lite- ria aí, enfia umas subtramas, uns perso- ples. O processo de profissionalização da
aquela que se relaciona ou trata com a ratura é tradicionalmente modesta. Nos nagens secundários...”. É preciso caráter indústria editorial tem se acelerado, o li-
história, com a mitologia e com o jor- últimos anos saíram alguns, mas acho para resistir a isso, mas um escritor de vro como mercadoria nunca teve tanto
nalismo, por exemplo, pode ser um ca- prematuro falar numa tendência. verdade sabe que cada história dita seu peso no Brasil, mas os pontos de conta-
minho importante para a literatura próprio tamanho. Um conto esticado à to desse fenômeno com a ficção nacio-
contemporânea. Que exemplos recen- Esta edição do Cândido discute os cami- força nunca será um bom romance. nal são escassos. Por outro lado, existe a
tes podem ilustrar esse comentário? nhos do conto. A publicação de contis- explosão digital que mencionei ali atrás.
A linguagem da ficção nunca foi pura, tas no Brasil é cada dia mais esparsa. Os Na vida de um leitor profissional, as lei- Palestras e oficinas estão em alta por-
e as zonas de fronteira são sempre ex- contistas “puro-sangue”, que não migra- turas de “lazer” certamente se confundem que a facilidade de publicar na internet
citantes, mas talvez a narrativa esteja ram para o romance após uma coletânea com as “profissionais”. Mas existe uma pi- e mesmo no papel, com as novas tecno-
se beneficiando um pouco mais dessa de histórias curtas, estão sumindo? lha de livros queridos à espera de leitura logias, levou a um aumento exponencial
mestiçagem nos últimos tempos. Basta Duvido muito que estejam. Uma coi- na sua cabeceira? Poderia citar alguns? no número de pessoas que querem escre-
pensar em Sebald, Julian Barnes, Vila- sa é a resistência das editoras ao conto, Não posso dizer que organize minhas ver. Mas talvez, em boa parte dos casos,
-Matas, Javier Cercas... Alguns críticos que obedece a uma lógica de mercado, leituras. As decisões sobre quais livros esses aspirantes não compareçam com a
têm batido na tecla de um suposto es- e outra é o potencial artístico do gêne- vou ler, e em que ordem, têm a ver com necessária contrapartida da leitura, quem
gotamento da narrativa. Uma das coisas ro em si, que a meu ver continua ins- uma mistura de obrigação, planejamen- sabe sejam movidos mais por um desejo
que me fazem duvidar da possibilidade tigante como nunca. Um conto extra- to, impulso e acaso que no fim das contas pessoal de expressão e projeção do que
desse esgotamento é o fato de as fron- ordinário vai sempre valer mais do que está mais para caos do que para organi- por um compromisso real com a litera-
teiras serem todas abertas. zação. Começo a ler com grande inte- tura, que não é brinquedo. De toda for-
resse livros que abandono após algumas ma, acho que o quadro atual é promissor.
Seu romance mais recente, Elza, a ga- páginas sem dor na consciência, outros Confuso e contraditório, como você dis-
rota, de 2009, trata de uma história livros eu folheio despretensiosamente e acabo se, mas de grande potencial.
real, mas romanceada. Romances his- fisgado. Hoje a pilha na mesinha de ca-
tóricos têm uma trajetória bem deli- beceira - mesinha metafórica, porque a Depois de muita discussão, as oficinas
neada na literatura brasileira contem- pilha não caberia ali - inclui The sense of literárias se espalharam e se firmaram
porânea. Acha que a literatura pode Elza, a garota an ending, de Julian Barnes, Alvo notur- no país. Você ministrou uma oficina de
falar da nossa História de uma forma no, do Ricardo Piglia, e um manuscrito criação na Biblioteca Pública do Para-
mais atraente do que os próprios livros ainda inédito do Fernando Molica cha- ná. Que tipo de benefício esses encon-
de História? mado O inventário de Julio Reis. tros podem trazer a quem pretende es-
Mais atraente, sem dúvida, porque o crever ficção?
público potencial de um romance his- Dos clássicos, o que deveria ter lido e Oficinas podem ser boas ou ruins, de-
tórico - ou de um livro jornalístico de ainda não leu? pendendo das pessoas envolvidas — e
divulgação da história, como os de Lau- Um monte deles. A lacuna que mais não me refiro só a quem as ministra,
rentino Gomes - é muito maior do que Sobrescritos tem me incomodado, e que estou só mas também a quem delas partici-
o de livros de historiadores. Históri- esperando uma hepatite para corri- pa. Quando funcionam, são espaços de
co ou não, um bom romance vai sem- gir, é Proust. Li apenas No caminho de discussão e convivência que podem ser
pre chegar mais perto de reconstituir a Swann, o primeiro livro de Em busca do muito úteis a quem escreve, como um
pulsação de vida de determinada épo- tempo perdido. contraponto à solidão inevitável da es-
ca do que qualquer trabalho acadêmico, crita. Mas o que eu acho mais positivo é
que tem méritos de outra ordem. Existe Nosso mercado editorial nunca esteve a disseminação de uma ideia subjacen-
uma demanda dos leitores nesse senti- O homem tão aquecido. Hoje há uma “vida literá- te a toda oficina: a da criação literária
do, uma fome que eu diria ser de apren- que matou ria” que permite aos escritores viver da como trabalho, processo, esforço, apren-
dizado mesmo, e que parece ter a ver o escritor literatura e de seus derivados - pales- dizado. É uma ideia meio subversiva na
com o fracasso do ensino brasileiro em tras, oficinas, etc. Por outro lado, conti- cultura brasileira, que sempre foi mais
prover um quadro razoável de referên- nuamos presos aos três mil exemplares, inclinada a confiar na inspiração pura. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 13

livro e leitura

Paraná define ações Plano Estadual do Livro, Leitura e


Literatura reúne políticas públicas que

de incentivo à leitura visam a democratização do acesso


ao livro e a valorização da leitura
Kraw Penas
Felipe Kryminice Paulino Viapiana
(ao centro),

O
Paraná acaba de lançar seu Pla- secretário estadual
no Estadual do Livro, Leitura e da Cultura, lança
Literatura (PELLL), que define o Plano Estadual
os rumos das políticas públicas do Livro, Leitura e
na difusão da leitura no Estado. Com Literatura (PELLL)
isso, Paraná e Mato Grosso do Sul são na BPP.
os dois primeiros Estados brasileiros a
concluir seus Planos.
O Plano Estadual do Livro co-
meçou a ser elaborado em 2010 pelas
Secretarias de Estado da Cultura e da
Educação. O governo atual retomou o
Plano, dando continuidade à proposta
e acrescentando algumas diretrizes para
a política estadual do livro e leitura nos
399 municípios paranaenses.
Foram realizadas três audiên- concretas. Por isso é importante a dos, mas precisamos colocar em prática Retratos da leitura no Paraná
cias públicas para apresentar a minu- participação da sociedade, que já se ações no interior. E isso começará já em A pesquisa Retratos da Leitura no
ta do Plano, sendo duas no interior do manifestou de forma participativa nas 2012, com projetos que vão fortalecer o Paraná, realizada 2010 pela Paraná Pes-
Estado - em Foz do Iguaçu e Maringá audiências públicas e tem demonstra- livro e a leitura em todo o Estado.” quisas, em parceria com a Gazeta do Povo,
- e uma em Curitiba. A elaboração do do grande interesse nas propostas do A próxima etapa no desenvolvi- a Posigraf e o ex-deputado federal Mar-
PELLL contou com uma comissão de projeto”, diz Viapiana. mento do projeto é apresentá-lo à Assem- celo Almeida, constatou que o Paraná
especialistas e técnicos do governo. Seguindo as orientações do Pla- bleia Legislativa, para transformá-lo em tem índice de 8,53 livros por habitante/
“O objetivo do Plano é transfor- no Nacional do Livro e Leitura, o lei estadual. “É do nosso interesse que as ano, incluindo obras didáticas e não di-
mar o Paraná em um Estado de leitores, PELLL paranaense é orientado por próximas gestões tenham a mesma preo- dáticas. Portanto, o dobro da média apre-
desenvolvendo, para isso, diversas ações quatro eixos principais: democratização cupação em difundir a leitura no Paraná. sentada na pesquisa Retratos da Leitura
que visam democratizar o acesso ao li- do acesso ao livro, fomento à leitura e Esperamos que até o primeiro semestre no Brasil, que revela que o brasileiro lê,
vro, fomentar e valorizar a leitura e in- à formação de mediadores, valorização do ano que vem o PELLL se torne uma em média, 4,7 livros por ano.
centivar a produção literária paranaense, da leitura e comunicação e desenvolvi- lei”, explica Pereira. A pesquisa entrevistou 2 mil pes-
dinamizando a cadeia produtiva do li- mento da economia do livro. Uma das novidades inseridas no soas em todas as regiões do Estado e
vro”, diz Paulino Viapiana, secretário es- Segundo o diretor da Bibliote- Plano é o Prêmio Paraná de Literatu- apresentou um panorama sobre pontos
tadual da Cultura. ca Pública do Paraná e coordenador do ra, cuja primeira edição será lançada em relacionados à leitura, como a motiva-
O PELLL, portanto, tem como PELLL, Rogério Pereira, há uma preo- 2012. Serão três categorias: romance, ção dos leitores, o acesso aos livros e as
meta reunir, organizar e garantir a cupação em “descentralizar” a cultura do conto e poesia. “Além do prêmio, será preferências literárias da população. Se-
continuidade dessas ações ao longo Paraná por meio do Plano. “Claro que os prioridade o fortalecimento das biblio- gundo a pesquisa, 62,3% dos entrevista-
dos próximos anos. “Após o lança- grandes centros, como Curitiba, Londri- tecas e a formação de mediadores de dos leram pelo menos um livro nos três
mento do Plano, precisamos de ações na e Maringá continuarão sendo assisti- leitura”, diz Pereira. meses anteriores à pesquisa. g
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

memória literária

A liberdade na arte
Organizadora da poesia de Júlia da Costa, a professora Zahidé Lupinacci Muzart escreve sobre a vida e a obra
da autora parananense, uma das mais interessantes e ousadas poetas do século XIX, que morreu há cem anos

Zahidé Lupinacci Muzart falecido em dois de julho de 1911, Júlia


da Costa também é incluída entre os es-

L
eitora e personagem, assim é retra- critores catarinenses.
tada, no Brasil, a mulher no século Júlia foi uma figura controvertida.
XIX. Entretanto, também existiram Há artigos e estudos que a retratam de
muitas escritoras, e, se algumas o fo- diversas maneiras, às vezes contraditó-
ram de um livro só, houve outras que se rias. Os melhores estudos sobre a poetisa
dedicaram ao ofício das letras como ide- são de Rosy Pinheiro Lima, que estabe-
al de vida. Dentre essas, salienta-se a po- lece a biografia de Júlia da Costa a par-
etisa Júlia Maria da Costa (1844-1911), tir de várias cartas — ao todo quarenta e
que publicou dois livros entre 1867 e quatro —, e o livro do historiador Carlos
1868 e colaborou com muitos periódicos da Costa Pereira, onde, além de desfazer
do Paraná e de Santa Catarina. equívocos sobre a vida conjugal da poeti-
A publicação de Poesia — que reú­­ sa, casada com o Comendador Costa Pe-
ne as obras completas de Júlia Maria da reira, reúne um bom número de poemas
Costa — pela Imprensa Oficial do Para- publicados em periódicos.
ná, em 2002, teve uma ótima repercussão. Lendo as cartas da poeta à fa-
Além de suscitar artigos de jovens pes- mília e, sobretudo, as de amor, vemos
quisadores em congressos, Júlia da Cos- delinear-se uma personalidade mui-
ta foi uma das autoras escolhidas por to interessante: forte, decidida, às ve-
Adriana Lunardi para participar de um zes audaciosa. Mas, antes de mais nada,
capítulo do romance Vésperas. Este livro uma mulher que se antecipou à sua épo-
é uma homenagem a grandes escritoras, ca e que, por isso, sofreu muito.
agora personagens e todas retratadas em Nascida em um tempo cheio de
extrema solidão. E, em 2008, foi publica- preconceitos e tabus, e vivendo em uma
do o romance Júlia, de Roberto Gomes, cidade muito pequena, seu espírito an-
que reconta a história da poeta na ilha de sioso de liberdade evade-se no sonho,
São Francisco, onde viveu toda a sua vida. na poesia e nas cartas.
Júlia Maria da Costa nasceu em Casada por conveniência e impo-
Paranaguá, no Paraná, em 1° de julho sição familiar com um homem rico, mas
de 1844. Era filha de Alexandre José da trinta anos mais velho, Júlia da Costa
Costa, também de Paranaguá, e de Ma- leva para o casamento a desilusão de um
ria Machado da Costa, natural de São afeto não concretizado pelo poeta Ben-
Francisco do Sul, Santa Catarina. De- jamin Carvoliva. Todo este namoro foi
pois do falecimento do marido, Maria pontilhado de poemas e de cartas quase
da Costa e a filha Júlia — na época com diárias. E em todas, Júlia da Costa ani-
apenas dez anos —, passaram a residir ma o poeta que, como bom romântico,
em São Francisco do Sul. Por ter mora- padecia de melancolias e tristezas sem
do toda a vida nessa bela ilha e tendo ali fim pelo desprezo do mundo...
Ilustração: André Caliman
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 15

Ao Trovador “Se Deus demorar a realização mas de antanho. Se o romance foi re- busca a razão e o consolo para uma vida
do nosso sonho, então pisarei em to- almente escrito, não o sabemos. Talvez, tão cheia de solidão. Não tinha outro ho-
Quando murmura em silêncio dos os preconceitos da sociedade e serei somente na imaginação da escritora e rizonte além do branco da folha de papel
A onda na praia nua, tua, embora no centro das florestas, lon- nas cores dos curiosos painéis que or- à sua frente ou o branco do teclado do
Por que, ó bardo, tristonho ge do mundo, longe de tudo que possa naram as paredes do salão de sua casa. piano, duas atividades de artista, entre as
Lamentas a sina tua? lançar-me em rosto o excesso da minha Estranhamente, não os realizou com quais se moveu essa alva figura, sempre
paixão”, escreve Júlia em uma das cartas. cores sombrias, mas alegres — as cores vestida de branco. Escreve e toca. Toca
Quem te disse que a florinha À proposta generosa da poetisa, da fantasia de uma mulher enlouqueci- e escreve, recusando as outras atividades
Cheia de viço e de amor não houve resposta. Novamente, Car- da pela solidão e aridez do meio em que de cunho doméstico, destinadas às suas
Cismando no ameno vale voliva optara pela fuga. A partir daí, viveu. Segundo Rosy Pinheiro Lima, irmãs, essas mulheres de uma época de
Não sorria ao trovador? os poemas de Júlia da Costa se tornam quando ela morreu, “do salão retiraram- opressão e secretos desejos.
cada vez mais desesperançados, cada -se as velhas esteiras e a cadeira de em- Enlouquece, ao final de sua vida,
vez mais melancólicos. balo. Armou-se o caixão no centro e era permanecendo enclausurada, numa
Segundo Rosy Pinheiro Lima, fantástico o aspecto daquela sala som- pa­­ranoia de perseguição, até a benfa-
essa última desilusão mudou Júlia da bria, com os velhos retratos nas paredes, zeja morte.
Em uma das cartas, ela lhe afir- Costa. A poeta passou a escrever febril- vizinhando com o colorido violento dos Os temas da poesia de Júlia da
ma que “um poeta é nada para o ho- mente e a frequentar mais e mais serões painéis que as recobriam por completo, Costa são sempre os da ausência e da
mem sem prestígio, para a jovem sem e festas. Também muda a cor dos cabe- a multidão de flores de papel de seda, perda, da dor de viver, da angústia ou do
cultura, para esse povo rude que enca- los, agora negros, em uma época em que numa empoeirada desordem que nin- desejo da morte, da falta de esperança e
ra tudo pelo lado do interesse, e que só somente meretrizes e artistas o faziam, guém ousou destruir.” da solidão como se lê no poema “Página
tem em si uma ideia: Ouro! Enriquecer começa a pintar o rosto e a usar muitas A vida de Júlia Maria da Costa solta”: “Queres saber quem eu sou? Meu
para deslumbrar o mundo com suas ri- joias, a receber muitas pessoas em seu tem feição cinematográfica. Não obe- nome queres saber?/ Eu sou a sombra
quezas. Para estes, o poeta é nada, mas, casarão e a se tornar uma lenda na pe- dece aos padrões vigentes para a mu- dourada, de um tempo que já lá foi,/
para aquele que encara a vida pelo lado quena cidade que muito se orgulhava de lher brasileira do século XIX. Inteligen- Sou o fantasma de um sonho/ Que em
espiritual, para aqueles, o poeta é tudo.” sua poetisa... A partir daí, a nova mu- te e independente, sucumbe somente ao tua mente pousou; Sou uma folha sem
Vemos, a cada linha, a generosi- lher Júlia da Costa vai levar uma vida amor-paixão pelo poeta Benjamin Car- nome/ Que o vento forte mirrou...”
dade e a paixão da escritora. Mas o po- febricitante: festas, campanhas políti- voliva. Essa paixão e o abandono se tor- Todos esses temas do Roman-
eta, cheio de hesitações e dúvidas, foge cas, publicações inúmeras em jornais e nam a marca da poesia de Júlia da Costa. tismo encontraram em Júlia da Costa
de um compromisso mais sério (exigi- revistas, etc. Porém, com o falecimen- Em seus poemas, verdadeiros lamentos, uma boa intérprete, mas pode-se vê-los
do pela mãe da poetisa), indo-se de São to do comendador, sua vida muda to- também como manifestação da angús-
Francisco. O rapaz estaria destinado para talmente e a solidão se torna cada vez tia de um espírito superior acorrentado
o sacerdócio e esse seria o grande impe- maior, pois seu marido a habituara a re- à mesquinhez de um meio provinciano.
dimento para o casamento, mas a dife- ceber muitas figuras de proa da socie- Os críticos acham Júlia da Costa místi-
rença de idade entre os dois — Júlia era dade catarinense e da política. Viúva, a Amélia ca. No entanto, o sentimento maior que
cinco anos mais velha que ele —, parece- poetisa vai ficando cada vez mais expur- nos transmite sua poesia é o de desejos
-me a mais forte razão para o seu recuo. gada da vida de festas. Fechando-se em Quando no centro dos bosques carnais não realizados, o de uma sensu-
Depois de quatro anos de casa- casa, acredita-se perseguida pelos seus A rolinha pipilar, alidade insatisfeita. Tudo isso deve ser
mento infeliz, e com a volta de Carvoliva concidadãos, vendo o riso e o escárnio Uma saudade me manda lido nas entrelinhas, de acordo com sua
à cidade, reinicia-se a apaixonada corres- em cada um que a olhava. Nessa velhice Nas ondas do alto mar. época e sua condição. Mas mesmo no
pondência diária entre os dois, as cartas solitária, Júlia da Costa enlouquece e se que há de promessa em sua poesia, na
sendo colocadas em esconderijos diver- fecha no casarão por oito anos, dele só Nas ondas do alto mar procura do cantante, do singelo, do co-
sos, tais como o oco de uma velha árvore. saindo para o cemitério. Quando a noite for formosa, tidiano, foi ela uma das mais interessan-
É Júlia da Costa quem, com rara audácia, Dentro de casa, servida por duas Me manda de teu piano tes poetisas do século XIX. Poesia que
pois, esposa de um comendador, chefe fiéis empregadas, Júlia planejou escrever Uma nota harmoniosa. se lê até hoje com prazer. g
do Partido Conservador de uma cidade- um romance. Para isso, fez grandes pai-
zinha como São Francisco do Sul, suge- néis com papel de seda de diversas co- Uma nota harmoniosa Zahidé Lupinacci Muzart é professora
titular aposentada da Universidade Federal
re ao poeta a fuga e a vida em comum. E, res. Esses painéis representariam cenas, Que defina o teu sentir;
de Santa Catarina (UFSC). Atua no curso
mais uma vez, é o poeta quem foge, com personagens, paisagens de romance, ta- Que me traga uma saudade, de Pós-Graduaçâo em Literatura da UFSC
medo da opinião pública. peçarias intermináveis como as das da- Que me mostre o teu sorrir. e é pesquisadora do CNPq.
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

Respeitem este direito


Marcelino Freire
Ilustrações: D.W. Ribatski
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17

Hoje o Velho faz 60 anos. Meu Cristo!


Finalmente. Como fui casar com uma mulher tão ruim? Bandida. Uma vida inteira
60. de agonia, descaso. E os filhos, então? O Velho nem lembrou deles. Uns conde-
Embora esteja Velho faz tempo. Hoje, no entanto, é o Velho velho. De nados. O tanto que se arrastou para criar, dar educação, ensinar aqueles trastes
fato. Ninguém mais poderá dizer que ele abusa. Que ele engana os guardas. Do a respeitar o ser humano, o cidadão.
metrô. Quando se senta no assento privativo. Hoje ele é dele, pô. Este direito. Não.
Novo. Sempre foi ali cada irmão por si.
Por isso, resolveu. E esse bebê ridículo, por que tanto olha para mim? Por que tanto ri?
Comemorar a data. Daqui eu não saio. Eu não me levanto. E o bebê olhando.
Pegou a bengala e entrou no trem. Iria além. Passaria o dia inteiro va- Olhando, olhando, olhando...
gando no vagão. Só por satisfação. Por vingança. Da netinha. Que vive man- Entendendo tudo.
dando ele sair do sofá. Quero ver só agora ela me mandar. Coitado!
Nem que chamem o presidente. Pode vir quem quiser. Um cego. Um A mãe deixando a baba do menino babar. Bem na minha calça. Nin-
aleijado qualquer. Daqui eu não saio. Só passando por cima do meu osso. Serei guém dá um lugar a essa desnaturada? Ninguém salva essa criança desse peri-
grosso, mandarei pastar. go? Dessa falta de cuidado? Eu, repito, é que daqui não saio.
E a Velha? Fico e finco. Até os 80.
Ela que não pense que é a dona da casa. Aqui não. Não vê? A minha Ora, ora.
idade? Orgulhoso, olhava pelo vidro. A rapidez que era o trilho comprido. A Estou com 60 anos, ouviram?
tecnologia. GRITOU.
O microfone dizia, para quem quisesse ouvir: o assento de cor cinza é Hoje eu estou fazendo 60.
preferencial. Fez cara de mau. Contente. Nem que aconteça algo urgente. Um in- Não entendeu por que falou alto. Como nunca havia falado. Bem alto,
cêndio. Não sairia do seu canto. Como um homem que morre. Endurece as raízes. feito um microfone. Feito o barulho do vento no túnel. Desabafou, musculoso.
Planta-se no chão mais subterrâneo. O Velho idoso.
Dentro do trem tinha até televisão. Viu? Pensou, mais uma vez, na ne- Chegou a imaginar tudo que é passageiro ali cantar, assoprar velinhas,
tinha. Que não deixa o Velho ver o jogo. O Velho ver Paulo Autran. Como o linguinhas, festa de papel picado. Um sonho amalucado, de um segundo. Im-
Velho gostava do Paulo Autran. possível que o mundo no trem parasse. Por causa dele - um ano mais velho o
Grande ator! bobo do Velho. Apenas uma moiçola ao seu lado abriu um sorriso molhado.
Homem mais educado! Parabéns.
Ah! Já não se faz mais gente como antigamente... O Velho assustou-se.
Hoje, para sempre, amanhã. Nem que o universo acabe. Quem o ex- Hoje é o aniversário do senhor? Ela perguntou.
pulsaria do banco? Respeitem os meus cabelos brancos. 60 anos.
Minha cara de orangotango. Não parece.
Veio a tarde, quase chegando a noitinha. Hã?
Como se carregasse 60 velhos o Velho de 60. O senhor não parece ter 60 anos.
Capenga. Está pensando o quê? Que eu minto? Finjo ser velho sem ser?
De quando em quando, um cochilo, um suspiro. Imediatamente, como Ah! Não aguentaria mais levar desaforo para casa. Mais nunquinha,
um soldado, ao primeiro balanço abria os olhos pesados. Só para avisar: você sua condenada. Rapariga, você vai ver.
que não invente de me desabrigar. Uma grávida, por exemplo, apontou a vista Subiu-lhe um ódio antigo, pegou da bengala.
para o seu assento. Ah, minha filha, vá procurar onde cair a sua barriga. Eu é Segura o Velho, segura o Velho, o povo gritou.
que não tenho nada a ver com você. A vida é assim mesmo, querida: enquanto Segura o Velho.
uns estão para nascer, outros renascem.
Nunca é tarde. Que se levantou. g
Longa.
Eterna será esta minha primeira viagem.
Viu jovens se aglomerarem, viu gravatas. Viu gente apressada. Corren-
do para onde? Essa onda de gente? A Velha deveria estar se perguntando: cadê Marcelino Freire nasceu em Sertânia (PE), em 1967. Viveu no Recife. Reside em
São Paulo, capital, desde 1991. É autor, entre outros, de Angu de sangue (2000) e
o maldito? Juro que ela nem lembrou do meu aniversário. Nem um bolo, um Contos negreiros (2006), ganhador do Prêmio Jabuti. Faz parte do coletivo artístico Edith
bombocado. (visiteedith.com), por onde acaba de lançar o livro de contos Amar é crime.
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | conto

Ilustração: Federido Delicado


jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 19

Um nocaute no conto
Com forte tradição na literatura brasileira, o conto tem sido preterido pelo romance neste início de século. Escritores, críticos
e editores discutem por que o gênero que revelou importantes autores no país encontra grande resistência no mercado editorial

Luiz Rebinski Junior sileira. Desde a fantástica geração de como uma verdade incondicional, pois critores de hoje escrevam romances.
autores surgida nos anos 1970, que re- os contistas podem estar espalhados “Um importante efeito da pro-

D
alton Trevisan e Rubem Fonse- velou nomes como Sérgio Sant’Anna, pelos mais diferentes selos, ou mesmo dução desses contistas [dos anos
ca acabam de lançar novos livros. João Atônio e Caio Fernando Abreu, na internet, ela pode pelo menos susci- 1970] talvez tenha sido, paradoxal-
E, mais uma vez, os reclusos es- poucos autores nacionais estabelece- tar algum debate a respeito do que está mente, um adestramento da língua
critores atacam no conto: Trevi- ram suas carreiras por meio do conto. acontecendo no conto nacional. portuguesa moderna de tal forma efi-
san com o O anão e a ninfeta, Fonseca Em uma pesquisa pelos sites das “Eu acho que, infelizmente, o ciente que abriu caminho para o ro-
com Axilas e outras histórias indecorosas. duas principais editoras do país, Re- conto é considerado um gênero menor mance de hoje, todo ele escrito com
Aos 86 anos, os dois autores continuam cord e Companhia das Letras, é possí- no Brasil. Quem já escreveu roman- uma liberdade de movimentos muito
sendo as maiores referências do conto vel constatar que, apesar de terem sur- ce e conto — meu caso — sabe que expressiva e com uma linguagem re-
brasileiro contemporâneo. E isso não se gidos bons livros de contos entre os não há diferença de dificuldade entre almente forte, eloquente, coisa que a
deve apenas à qualidade do que escre- anos 1990 e 2000, há poucos escritores um e outro. A concisão é tão sofistica- geração de 1970 ainda precisou lutar
veram, mas também à quantidade. Ape- dispostos a encarar uma carreira solo da quanto o trabalho de maior fôlego. para estabelecer”, explica Fischer. “Es-
sar de terem escrito romances, Fonseca no conto, sem se desviar para o roman- No Brasil, no entanto, o conto é con- crever romance depende da existência
(vários) e Trevisan (apenas um) fizeram ce. Há muitos escritores que iniciam a siderado uma espécie de segunda divi- de uma língua suficientemente male-
carreira mesmo com suas histórias cur- carreira com um livro de histórias cur- são, onde o ficcionista treina para es- ável, dúctil, e isso foi em parte obtido
tas, escrevendo livros que estão entre as tas, mas logo migram para o romance. crever o que interessa: romances”, diz pelo conto dos anos 1970.”
melhores obras da literatura brasileira É o que muitos chamam de “treino”, o João Gabriel de Lima, editor da revista Para o jornalista e escritor Pau-
do século XX. Trevisan lançou 35 livros que irrita os contistas de ofício. No- Bravo! e autor dos romances O burla- lo Roberto Pires, que na última década
de histórias curtas — excetuando seus mes como Marcelino Freire, João An- dor de Sevilha e Carnaval. trabalhou como editor nos grupos Pla-
títulos renegados, Sonata ao luar (1945) zanello Carrascoza e Amilcar Bettega, O escritor e crítico Luís Augus- neta e Ediouro, “nem sempre se con-
e Sete anos de pastor (1948). Fonseca, puros-sangues do gênero, são exceções to Fischer recorre à geração de Sérgio segue determinar com precisão porque
autor de 27 livros, tem nas suas pri- entre os muitos escritores brasileiros Sant’Anna e João Antônio para explicar um gênero literário tem mais prestígio
meiras coletâneas de contos o supras- surgidos nos últimos 15 anos com o a presença do romance em escala supe- numa época do que em outra. Ser escri-
sumo de sua obra. Carreiras feitas sob aquecimento de nosso mercado edi- rior à do conto hoje. Segundo Fischer, a tor nos anos 1970 era, quase sempre, ser
a égide do conto, algo que parece cada torial. Se a amostra nas duas maiores geração dos nos anos 1970 de certa for- contista — ou ser contista em momen-
vez menos em voga na literatura bra- editoras do país não pode ser tomada ma preparou o terreno para que os es- tos decisivos de sua carreira”.
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | conto

Ilustração: Federido Delicado


Mercado editorial
Em uma declaração recente, pu-
blicada na Revisa da Cultura, a editora da
Record Luciana Villas-Boas disse consi-
derar um erro um escritor iniciar a car-
reira com um livro de contos. Segundo
ela, os livros de histórias curtas não ven-
dem, o que pode deixar no autor inician-
te a pecha de fracassado. A declaração
gerou polêmica e evidenciou o pensa-
mento de pelo menos parte do mercado
editorial em relação ao gênero. Imposi-
ção que, caso verdadeira, pode explicar o
“esvaziamento’’ das carreiras de contistas
brasileiros neste início de século.
“Essa percepção começa pelo mer-
cado. As editoras não querem publicar li-
vros de contos. Eu mesmo já senti isso.
Eu, que tenho dois romances publicados,
já ofereci livros de contos para editoras,
e ninguém quer publicar. Todo mundo
pergunta: ‘mas quando sai o próximo ro-
mance?’ Claro que isso desestimula. Re-
sumindo, acho que é por aí. Primeiro,
uma questão cultural. Depois, uma ques-
tão de mercado que decorre desta ques-
tão cultural”, diz João Gabriel de Lima.
Ainda que concorde que há uma
predominância de romancistas na cena
literária atual, Paulo Roberto Pires cita
Faroestes, coletânea de contos de Ma-
çal Aquino, lançada em 2001, como um
livro que pode rivalizar com grandes
clássicos brasileiros do gênero.
“Quem dá maior ou menor impor-
tância ao mercado é a compreensão que
o escritor tem de sua atividade. Acho di-


fícil que um contista vocacional, ou seja, uma tipologia comercial”, afirma Pires. plos de coletâneas de histórias curtas que
um escritor com mão boa para o conto,
No Brasil, no entanto, o O escritor e crítico literário José viraram best-seller nos Estados Unidos,
de verdade, abandone sua vocação sem conto é considerado uma espécie Castello segue na mesma toada e diz que como os contos de John Cheever reuni-
mais nem por que para atender a qualquer acha isso “lamentável” e que são “tendên- dos em The stories of John Cheever, que em
exigência. Se ele diz que abandona para de segunda divisão, onde o cias de mercado, resultados precários de 1978 vendeu 125 mil exemplares na edi-
atender a alguma exigência, eu duvidaria ficcionista treina para escrever balancetes, ou de pesquisas, aos quais a ção de capa dura e figurou por seis me-
de sua firmeza de propósitos. E, na boa, literatura é absolutamente indiferente”. ses na lista de best-sellers do The New York
nem o mercado sabe o que quer. Ou me- o que interessa: romances” Times. No Brasil, talvez apenas O vam-
lhor, tem manifestado querer epígonos de João Gabriel de Lima
Influência da imprensa piro de Curitiba, de Dalton Trevisan, te-
livros-sensação ou seriados voltados para Situação diversa vive o mercado nha feito sucesso semelhante entre os
um público adolescente. E isso não tem de língua inglesa, onde os contos ainda livros de contos. Morangos mofados, de
nada a ver com gênero literário, mas com fazem muito sucesso. Há diversos exem- Caio Fernando Abreu, hoje considera-
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21

do um clássico do gênero, fez bastante publicar, num suplemento aqui e noutro


barulho à época de seu lançamento e se ali — eles eram em número bem supe- contos que matam romances
tornou um dos maiores sucessos edito- rior aos de agora, na grande imprensa.
riais dos anos 1980. No entanto, ao lon-
go das décadas de 1990 e 2000, poucos
livros de contos alcançaram o mesmo su-
Isso hoje se modificou, e o candidato a
narrador pode tentar a sorte logo com o
romance”, opina Fischer.
M eus contos surgem como romances. Como estou escrevendo um
segundo romance agora, os contos sumiram − ou viraram romances.
A primeira frase do que seria o romance é capital. Quando o fôlego dessa
cesso e relevância. “Não li todos os livros José Castello sugere que a for-
de contos que saíram recentemente, en- te tradição na área do conto nos Es- frase acaba, nasce o conto. No meu primeiro romance, o fôlego durou
tão estaria cometendo uma injustiça se tados Unidos possa ser explicada pela dois meses. Por isso, é um romance. Para o segundo, estou fazendo
dissesse que não há contistas à altura de influên­­cia de Hollywood, mas tam-
nossa tradição. Mas é certo — reiteran- bém, certamente, pela imprensa local. natação a seco, já que não gosto muito de água. Pode acontecer de tirar
do — que ninguém consegue o mesmo “Uma hipótese — mas talvez muito a cabeça seca da água, então nasce um conto.
destaque que Rubem Fonseca ou Dal- frágil — é de que, nos Estados Unidos,
Também não gosto de histórias conclusivas, já que a vida não é assim. Como
ton Trevisam conseguiram em suas épo- os contos se desenvolveram com mais
cas. De onde que se conclui que vivemos vigor pela influência do cinema e dos o universo é de quem o inventa, meus contos e romances (assim que estes
uma época, no Brasil, que viralatizou o roteiristas. Outro aspecto importante forem publicados, você verá) terminam de um jeito inconclusivo, o que põe o
conto”, diz João Gabriel. é a existência de revistas especializa-
Pode-se encontrar alguma expli-
leitor para trabalhar (acho que é por isso que tenho tão poucos e dedicados).
das na publicação de contos. O que é
cação para essa diferença entre mercados uma tradição lá e também na Argen- Dito isso, é preciso esclarecer que detesto microcontos. E que sou
no fato de que a própria imprensa ame- tina. No tempo da nossa Ficções, por indiferente ao que os contistas escrevem em geral, principalmente os que
ricana ainda valoriza e dedica espaço às exemplo, os contistas brasileiros eram
chamadas short stories. Enquanto no Bra- muito mais conhecidos que hoje.”
estão por aí. É uma indiferença mútua, então não há o que reclamar.
sil os suplementos literários e cadernos Luís Augusto Fischer tem uma te- Também não gosto de Guimarães Rosa − ou melhor, não entro
de cultura dos jornais encolhem, nos Es- oria interessante para explicar esse “esva- nos livros dele, não entro num livro que começa com esta palavra:
tados Unidos as tradicionais magazines, ziamento” das carreiras de contistas bra-
que no passado revelaram nomes como sileiros: diz ele que os prêmios literários, “Nonada”. No entanto, é do Rosa um dos meus contos favoritos,
Truman Capote, J. D. Salinger e Gore que se proliferaram na última década, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, que também deu um filme
Vidal, ainda estão em plena atividade, só valorizam o romance. Caso houves- excelente do Roberto Santos (pelo menos era quando o vi na
dedicando espaço a novos contistas. se uma categoria de contos em prêmios
“A Bravo! publica contos há mui- como o São Paulo, por exemplo, o gêne- faculdade). Felizmente, “A Hora e a Vez...” é o contrário de um
to tempo, e a seção “Ficção Inédita” é ro poderia aparecer mais. “Os prêmios li- microconto − os literatos preguiçosos é que inventaram essa porcaria.
uma das que mais prezo - como você terários mais polpudos de nosso tempo
Claro, também não gosto de literatos, e sou obrigado a reconhecer que
já deve ter percebido, sou um entusias- são para o romance, e não para qualquer
ta do gênero. Mas um fenômeno curio- outro gênero, o que por certo fortalece os contistas estão rareando, pois conto só está acima da poesia na
so é que nem sempre há contos dispo- a presença do romance, ao contrário do cadeia alimentar. Os dois sempre estiveram próximos, por sinal.
níveis para a seção. Muitas vezes o que que rolava antes, quando havia o prêmio
publicamos, na ausência de contos, são
Gosto de poesia. Como escreveu Natalia Ginzburg, minha escritora
do Paraná, que foi um farol para os novos
trechos de romances que estão para sair. escritores dos anos 1970 e 1980.” preferida e rara contista: “Só entendo a poesia”.
Mais um indício da crise cultural do gê- “Acho que a hipótese é boa para Meus contistas favoritos estão mortos ou por um fio: Bioy Casares,
nero. Sei que na The New Yorker, revista esquentar a conversa”, opina Paulo Ro-
que em certo sentido inspira a Bravo!, há berto Pires, que hoje edita a revista de en-
Pirandello, Tchecov e Cortázar, quando eu era muito jovem. O tcheco Ivan
filas de contos para publicação. Não sei saios Serrote. “Mas não acho que no final Klima, um octogenário divertido, está entre eles.
em relação ao mercado, mas isso mostra das contas o prêmio faça essa diferen- Tenho um livro de contos para sair pela Cosac Naify. Chama-se
que a cultura americana tem o conto — ça toda. Os bons valores pagos por bons
com o perdão do trocadilho — em alta prêmios — acho eu — não despertaram Conversa futura. Muitos romances morreram ali.
conta”, explica o editor da Bravo!. novas vocações. Talvez, ao contrário, te-
Cadão Volpato é músico, escritor, autor de quatro livros de contos, um infantil
“Até os anos 1980 o sujeito podia nham até inflacionado o romance e a po-
e um romance, Pessoas que passam pelos sonhos, ainda no prelo. É apresentador
até ter ideia para romance, mas primei- esia com escritores medíocres em busca do programa Metrópolis, da TV Cultura. Vive em São Paulo (SP).
ro tentava o conto porque era mais fácil apenas do dinheiro e do brilhareco.” g
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | conto

O conto-riacho
Ilustração: Federido Delicado
João Anzanello Carrascoza

E
m sua clássica obra Aspectos do ro-
mance, E. M. Forster afirma que
este gênero literário é irrigado
por centenas de rios-histórias.
Essa síntese feita pelo escritor britâni-
co a respeito da prosa de ficção longa,
leva-me, por contiguidade, a comparar
o conto a um riacho.
Se o romance é um espaço ine-
rente à polifonia, ao mundo coletivo, o
conto é o locus onde se manifesta a es-
cassez de vozes, o universo do indiví-
duo. O romance opera como uma sin-
fônica, instaurando um diálogo entre
os seus variados músicos. Já o conto
é a música de câmara: poucos instru-
mentos, rápida performance. Romance:
grande sertão. Conto: veredas.
Mas se os rios-histórias de um
romance podem, não raro, degenerar em
pântanos, o riacho-conto também pode
desandar. Para mover bem suas águas, é
preciso não esquecer que ele consubs-
tancia uma estética metonímica. O con-
to não é o todo, é apenas o detalhe. Mas
o detalhe que contém o todo: as águas,
os peixes, os seixos, a vida lá dentro em
conflito — embora, à sua superfície,
possa parecer em calmaria.
Oscar Wilde afirmou que a vida
é desprovida de forma. A arte é uma das
maneiras de delinear esses contornos.
Na esfera do conto, ela o faz não com
carvão grosso (do romance), mas com a
fina ponta de um lápis. O rio é presença
forte na paisagem. O riacho, corte seco.
Daí porque a economia, o ritmo, a ten-
são, que o caracterizam.
Em busca de riachos, sigo algu-
mas pistas deixadas por Horacio Qui-
roga em seu Decálogo do contista. Uma
delas é: “não escreva sob emoção. Dei-
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 23

quem conta um conto o fogo das narrativas

O conto é um corte rápido da realidade, um golpe de foice. Vou começar usando um antipático advérbio de
xe-a morrer, e depois a evoque. Se fo- Não há uma maneira de se conceber o conto, mas muitas modo: socialmente, sempre fui considerado um
res capaz de revivê-la, terás chegado
maneiras. Para simplificar, elas podem ser divididas em contador de histórias. Era algo natural. Só me
à metade do caminho”. O conto é, ao
meu ver, a re-construção (literária) de duas: o estímulo pode ser figurativo — uma cena, um grito, tornei um contista quando passei não apenas a
uma emoção. Uma emoção que, se for uma imagem, a história que alguém contou, uma lembrança, escrever minhas histórias, mas quando troquei de
bem transmitida vai gerar o “contá-
gio”, como dizia Tolstói, e, consequen-
qualquer coisa com cor e corpo, com elementos concretos advérbio. Agora, conto histórias pretensiosamente.
temente, será atualizada pelo leitor. que tenham impressionado fortemente o contista. Muitas E onde estaria essa pretensão? Num desejo de
Como um anti-narciso, ele reconhecerá vezes, contudo, o estímulo é temático. Um tema abstrato permanência, de significação mais ampla. É difícil
seu próprio rosto nessas águas.
Outra pista deixada por Quiroga:
é sugerido por uma leitura, uma conversa qualquer, uma explicar — ou justificar-me — sem parecer pedante
“pegue seus personagens pelas mãos e inquietação. Quando o estímulo é figurativo, as figuras partem ou ridículo, mas não há saída: escrevo contos porque
conduza-os firmemente até o final, sem em busca do seu tema. Quando temático, o tema começa a contar histórias é uma forma de nos mantermos
deixar que nada o desvie do caminho
traçado”. É preciso tomar cuidado com pedir suas figuras. Geralmente a germinação de um conto unidos, de passar adiante a tocha de uma civilização
os moinhos de ventos, que nos empur- é lenta: o embrião vai tomando forma, crescendo, até o duvidosa, ambígua, mas que, no ponto em que nos
ram a outros territórios, desviando-nos momento da realização do discurso narrativo, que é rápida. encontramos, talvez seja nossa melhor opção. Enfim,
do nosso curso. O riacho não é o mun-
do, mas um mundo. Poe, Maupassant, histórias são elos que forjamos entre as gerações
Tchecov, Machado, Cortázar e Carver, Menalton Braff nasceu em Taquara, no Rio Grande do Sul, em 1938. É
passadas e as futuras, e a literatura, assim, seria
romancista e contista, autor dos livros À sombra do cipreste, vencedor do
entre outros, souberam dar profundida- Prêmio Jabuti, no ano de 2000 e Castelos de papel (2002), entre outros. esse encadeamento de significados, uma corrente
de e alargar as suas margens.
E, a principal de todas as reco- que vamos esticando até onde o acaso permitir.
mendações de Quiroga, ligada umbilical- Sinto que tenho várias histórias para contar e, por
mente à anterior: “não comece a escrever lampejo indomável
sem saber aonde ir. Em um bom conto, as
isso, escolhi o conto, sua brevidade e intensidade.
três primeiras linhas têm quase a mesma Conto, para mim, acontece como um lampejo, um Não me sinto tão disposto, como o são os grandes
importância que as três últimas”. romancistas, a enredar emocionalmente meus
Tal elo, entre o início e o fim, material latente — uma emoção, um gesto atípico, um episódio
conduz-nos a uma conexão com An- inusitado, uma dor — que súbito exige alguma resolução na leitores durante semanas ou meses (embora eu
tonio Skármeta. O escritor chileno, em
forma de texto e vira, assim, compulsão. Por isso, preciso também seja um leitor empolgado de romances).
Assim se escreve um conto, lembra que Tampouco quero nocautear alguém. Mas acho que
a noção de fim opera no conto desde o solucioná-lo imediatamente, rapidamente, e expulsá-lo de mim.
começo. “Tudo chama, tudo convoca a Isso feito, e a mente aliviada, ponho o texto para repousar e a eficácia de um bom conto, pequeno e ágil, está
um final”. Em outras palavras: o riacho,
depois, friamente, reviso o que for necessário. Ou jogo fora. em sua capacidade de acomodar-se dentro dos
em sua nascente, já é atraído pela sua leitores e de suas casas. Fazer parte da mobília e da
foz. Qualquer conto é, portanto, me- Mas o que conta, mesmo, é aquele lampejo quase indomável,
táfora da existência, apreendida numa um novelo pequeno, um pavio curto impondo a explosão. memória de cada um. Misturar-se à tralha pessoal
metonímia. Riacho-instante. g que, a um só tempo, nos humaniza e individualiza.
João Anzanello Carrascoza é autor Bernardo Ajzenberg nasceu em São Paulo, em 1959. É jornalista,
dos livros de contos O volume do silêncio escritor e tradutor. É autor de Variações Goldman (1998), A gaiola de Luís Henrique Pellanda nasceu em Curitiba, em 1973.
(2006), Espinhos e alfinetes (2010) e Faraday (2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de É escritor e jornalista, autor dos livros Nós passaremos em
Amores mínimos (no prelo), entre outros. Letras), Homens com mulheres (2005, finalista do prêmio Jabuti) branco e O macaco ornamental. Organizou o primeiro volume
Vive em São Paulo (SP). e Olhos secos (2009), entre outros livros. da antologia As melhores entrevistas do Rascunho.
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | conto

“B “U
ati em Angela com o lado esquerdo do paralama, jogando o seu corpo um m menino de cor e descalço vem com uma vela, que acen-
pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente — e senti o som de ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, qua-
surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando — e logo atrope- se o retrato de um morto desbotado
lei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava li- pela chuva.
quidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade. Fecham-se uma a uma as janelas. Três
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um fil- horas depois, lá está Dario à espera do rabecão.
me colorido, dublado. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse. sem a aliança. O toco de vela apaga-se às pri-
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia ter- meiras gostas de chuva, que volta a cair.”
rível na companhia.” Uma vela para Dario
Passeio noturno - Parte II • Rubem Fonseca • Dalton Trevisan

Ilustração: Federido Delicado

“U
rgia encontrar Sacudiram com tristeza as jubas rosto de Múcio era o de mantém no presente: mal vejo um ovo e já
so­­lução para o e imploraram-me que os fizesse desa- um homem tenso. A chu- se torna ter visto um ovo há três milênios.
meu desespero, parecer: va ainda não havia cessado — No próprio instante de se ver o ovo ele
pensando bem, — Este mundo é tremendamen- e o luminoso do Blue Star é a lembrança de um ovo. — Só vê o ovo
concluí que somente a te tedioso — concluíram.” foi ligado nesse momento. quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tar-
morte poria termo ao O ex-mágico da Taberna Vagarosamente, ela puxou o homem até de demais: ovo visto, ovo perdido. — Ver o
meu desconsolo. Minhota • Murilo Rubião a cama, fez com que se deitasse e come- ovo é a promessa de um dia chegar a ver o
Firme no propósito, tirei dos çou a despi-lo. Nu, ele em nada lembra- ovo. — Olhar curto e indivisível; se é que
bolsos uma dúzia de leões e, cruzando va um dos matadores de aluguel que seu há pensamento; não há; há o ovo. — Olhar

“‘A
os braços, aguardei o momento em que gora larga de besteira e vem marido, o Turco, mantinha sob contrato.” é o necessário instrumento que, depois de
seria devorado por eles. Nenhum mal cá que eu acabo com essa sua Matadores • Marçal Aquino usado, jogarei fora. Ficarei com o
me fizeram. Rodearam-me, farejaram preocupação.’ A mulher le- ovo. — O ovo não
minhas roupas, olharam a paisagem, e vantou da cama e abraçou o tem um si-mesmo.

“D
se foram. homem, que continuou com os braços e manhã na cozinha sobre a Indi­­­­­­­­vi­dualmen­­te ele não
Na manhã seguinte, regressara e estendidos ao longo do corpo. Beijou- mesa vejo o ovo. Olho o ovo existe.”
se puseram, acintosos, diante de mim. -o várias vezes no rosto e, pegando uma com um só olhar. Imediata- O ovo e a
— O que desejam, estúpidos de suas mãos, guiou-a até o meio de suas mente percebo que não se pode galinha
animais?! — gritei, indignado. pernas. Visto por sobre o ombro dela, o estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se • Clarice Lispector g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 25

conto

Anotações de viagem a Juqueí


Ivana Arruda Leite
Ilustração Rafael Cerveglieri

Q
do Alberto me ligou propondo q
saíssemos uns dias eu fiquei fe-
liz feito criança, torcendo p/ não
chover. Dessa vez ia dar tudo cer-
to. Fazia tempo q não viajávamos juntos.
Ele disse q às 10 passaria p/ me apanhar.
Desci e fiquei esperando na portaria. 10
e meia, 11 e nada dele chegar. O zela-
dor me olhava morto de dó. Cena típica
de novela: o mocinho deixa a mocinha
esperando e não aparece. Ao ½ dia eu Ivana Arruda
Leite nasceu em
subi, pus pijama e me enfiei na cama aos Araçatuba, São
prantos. Não é a 1ª vez q ele me apron- Paulo, em 1951. É
ta uma dessas. Qdo ele chegasse eu ia mestre em sociologia
pela Universidade de
mandar ele à puta que o pariu e falar q São Paulo e autora
não ia viajar + porra nenhuma. dos livros Falo de
Às 3 da tarde ele buzinou e eu des- mulher (2002), Eu te
darei o céu (2004),
ci. Entrei no carro c/ a maior cara de cho- Ao homem que não
ro mas ele nem reparou. Disse q tinha tido me quis (2005) e do
uns contratempos, me deu um beijinho e juvenil Confidencial
(2002), entre
foi em frente. Nem perguntei p/ onde. outros. Participou
Q me levasse p/ onde quisesse. Juntos já de inúmeras
percorremos os piores lugares do planeta. antologias no Brasil
e no exterior. Escreve
Dessa vez viemos parar em Juqueí. desde 2005 no blog
Qdo entrei no quarto e vi a cama Doidivana (doidivana.
de casal com 2 travesseiros, pensei: oba! wordpress.com). Vive
em São Paulo (SP).
Nunca mais serei sozinha. Até pare-
ce... Cadê o casal que estava aqui? O
fogo queimou, a água apagou, o boi be- q vim tão longe p/ voltar c/ a lembran- gar p/ mulher p/ saber se tava tudo bem, Alberto dorme feito uma pedra.
beu. C/ Alberto eu tô spre sozinha. No ça de 1 peixe grelhado e a barriga vazia. se ela tinha dado comida p/ cachorros, Por sorte, o dia amanheceu chovendo.
maior bom humor, ele vestiu a sunga e Comigo é spre assim. E o pior é q se tinha levado o filho ao médico, etc., Daqui a pouco vou acordá-lo e sugerir
me arrastou p/ piscina. O dia tava lindo eu não aprendo. etc., etc. Mesmo qdo viaja c/ a amante, q a gente vá embora antes que vença a
de doer. Eu fiquei na água enqto ele ma- Depois do jantar fomos p/ o bar ele é todo cuidados c/ a maledetta. Mas próxima diária. Tomara que ele tope.
mou uns 4 gins-tônicas. A tarde pedia. do hotel e mandamos ver na vodca com bastou q eu colocasse minha perna em Esse bloquinho que encontrei na
Jantamos ali mesmo, na beira da gelo e limão. Alberto subiu p/ quarto cima da dele p/ ele estrilar: “pô, vc não gaveta do criado-mudo vai comigo pra
piscina. Robalo c/ molho de amêndoas tropeçando. Levei umas revistas p/ ler vê q eu não tô legal?”. SP, assim como a lembrança do robalo
e creme de espinafre. Delicioso! S/ dú- antes de dormir. Dormi mal e acordei cedo. São grelhado. A melhor coisa da viagem. A
vida, a melhor coisa da viagem. Pensar Ele ainda teve a pachorra de li- 10 e 15 e eu já tomei café da manhã. barriga volta vazia como sempre. g
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Perfil do Leitor | Sansão José Loureiro

Sansão e a força dos livros


Fotos: Kraw Penas
Sansão José Loureiro leu tratura, meu pai me deu 50 milhões de
cruzeiros, não sei quanto vale isso hoje.
seu primeiro livro aos sete Mas aí comprei todos os livros que queria.
Porque antes passava na livraria e não po-
anos e, desde então, lá se dia comprar. Às vezes ficava tardes intei-
vão mais de sete décadas ras na livraria só folheando os livros, sem
comprar nada. Eu não tinha nenhum li-
dedicadas à leitura vro até então, mas a partir daquele dia co-
mecei a minha própria biblioteca.”
O gosto pelo estudo acompa-
Felipe Kryminice nhou Sansão por toda a vida. Além do
curso de Direito, também se formou

F
oi com um livrinho chamado Pi- em Ciências Econômicas e deixou ina-
toco e Patulé, distribuído como cabado um curso de Filosofia. Estudo
brinde do fortificante Biotônico que o levou a cargos como o de diretor
Fontoura nos idos dos anos 1940, do curso de Direito na Pontifícia Uni-
que o professor aposentado Sansão José versidade Católica do Paraná (PUC-
Loureiro começou sua relação com a li- PR) e de juiz de Direito e juiz auditor
teratura, uma história que já dura mais da Justiça Militar.
de 70 anos. A autoria e paradeiro da Mas, ao lado de processos e teses
obra que iniciou Sansão no universo li- acadêmicas, Sansão mantinha sempre
terário se perdeu com o tempo, mas o um romance ou biografia debaixo do
gosto pelos livros ainda persiste no ou- braço. As biografias, diz ele, sempre o
trora garoto, hoje com 78 anos e ainda ajudaram a entender não apenas a vida
um leitor voraz. de grandes personalidades e o momen-
Formado em Direito em 1959, de oráculo entre os leitores da BPP. Lei- nha, etc.”, diz Sansão. to histórico em que viveram, mas sobre-
Sansão atuou como professor univer- tor de clássicos e da literatura contem- A relação com a BPP também tudo em questões práticas do cotidia-
sitário por 27 anos na área de Direito porânea, seus livros, sempre em perfeito é antiga. Assim que se formou em Di- no. “Por meio da biografia você acaba
Constitucional, em diversas instituições estado de conservação e edições atuali- reito, em 1959, Sansão prestou con- aprendendo muita coisa, não somen-
de ensino superior de Curitiba, incluin- zadas, são aguardados com expectativas curso para juiz. Com a ajuda dos livros te restrito à história em si. Como te-
do a Universidade Federal do Paraná, pelos seus seguidores. Sua assinatura na da BPP, foi aprovado. “Eu emprestava nho formação de economista, essas coi-
onde se formou e recebeu, em 2009, o folha de rosto dos livros que doa funcio- muitos livros da biblioteca nessa época, sas me interessam, gosto de saber como
título de professor emérito. na como uma espécie de selo de quali- principalmente de Direito. A doação é era a economia de outros tempos, como
Mas, paralelamente ao magis- dade literária. uma forma de retribuir essa ajuda.” os chefes de Estado resolveram deter-
tério e à carreira de jurista, Sansão ini- “Meu pai não tinha estudado minados problemas. A história vem te
ciou uma rotina de leitura de causar in- muito, mas sempre continuou com von- A primeira biblioteca dizendo. É aquele negócio que o Niet-
veja a leitores profissionais. Conhecido tade de aprender. Então, mesmo tendo Viciado em livros, mas sem di- zsche dizia: quanto mais se muda, mais
pela sua generosidade, já doou mais de pouco estudo, foi um grande incenti- nheiro para comprá-los, a aprovação no é a mesma coisa. No fluxo e refluxo do
dois mil volumes de obras jurídicas para vador da leitura. Em Uberlândia, onde concurso para juiz lhe rendeu um duplo livro, você vai chegar à conclusão do que
bibliotecas de cursos de Direito e ou- nasci, meu pai comprava livros de ven- presente. Além de garantir um empre- mudou. A paisagem, o cenário, a deco-
tros seis mil exemplares de obras literá- dedores de rua. E assim foi formando go, ganhou um incentivo financeiro do ração e a maneira de vestir. O homem
rias para a Biblioteca Pública do Para- a nossa biblioteca. E lá tinha de tudo: pai para formar sua primeira biblioteca. em si continua o mesmo. O que tem de
ná (BPP). O que o tornou uma espécie Monteiro Lobato, histórias da carochi- “Quando eu fiz o concurso para a magis- errado continua igual.”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 27

“ Eu emprestava muitos livros da


biblioteca nessa época [na juventude],
principalmente de Direito. A doação é
uma forma de retribuir essa ajuda.”

Escritores preferidos foram os hispano-americanos dos anos principais autores, com especial entu- a destilar sua filosofia. O Esmaga era
Entre os prosadores, Eça de 1970, escritores como García Márquez, siasmo por Graciliano Ramos. “Com um espetáculo”.
Queiroz é considerado “o máximo” Vargas Llosa e Onetti, que agitaram a o Graciliano cheguei a ousadia de fa- Entre 1957 e 1958, o profes-
pelo professor, que leu toda a obra do cena literária latino-americana com zer um argumento para Vidas secas. Mas sor Sansão passou uma temporada
escritor português ainda na adolescên- obras poderosas como Cem anos de so- o Nelson Pereira do Santos me furou. nos Estados Unidos. Estudava em
cia. “Papai dizia que o português bem lidão e Junta cadáveres. “Um amigo cha- Com Memórias do cárcere foi a mesma Greenwich Village, o bairro boêmio
escrito era o de Portugal. Então fazí- mado Claudio Lacerda, que sempre via- coisa.” O roteiro de Vidas secas não saiu, e artístico de Nova York que Holden
amos uma espécie de campeonato, sa- java para os países de língua espanhola, mas Sansão acabou cometendo um ou- Caulfield, o personagem de O apa-
bíamos de cor um monte de coisas dos me trazia muitos livros. Então li todos tro argumento, inspirado em uma figu- nhador no campo de centeio, de J. D. Sa-
livros do Eça.” Seguindo a recomen- os grandes quando eles estavam lançan- ra lendária que perambulava pela famo- linger, perambula após ser expulso da
dação do patriarca, Sansão foi fundo do suas obras: Borges, Onetti, Roa Bas- sa Boca Maldita, no centro de Curitiba. escola. “Tive um contato com a litera-
na tradição literária de nossos colo- tos”, diz Sansão, que também lê em es- Esmaga ou opinião universitária se base- tura americana que estava sendo feita
nizadores, mergulhando nas obras de panhol, francês e inglês. ava nas histórias de Alvino Guimarães à época. De John Steinbeck a Philip
Camões, Padre Antonio Vieira e Ca- Mas claro que a literatura brasi- da Cruz, conhecido como Esmaga, que Roth.” Era o prenúncio de uma vida
milo Castelo Branco. leira não foi negligenciada pelo leitor segundo Sansão “vivia filando uns tro- de leitura que prometia — e se confir-
Outra grande paixão de Sansão Sansão, que buscou com devoção seus cados dos conhecidos, sempre disposto mou — ser brilhante. g
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

E
Chuva
sta rua Martim Afonso é movi-
mentada. Nunca um carro deixa
de passar, nunca os motores de ru-
gir. Quem pode ouvir outra pes-
soa dizer uma palavra, uma frase? As
calçadas são de lajotas de pedra, corta- Otávio Duarte Ilustração: Rones Dumke
das irregularmente, a cobrir a terra. Du-
ras, diversas, difíceis para um carrinho
de bebê cruzá-las. Imagine para os joe-
lhos do homem velho que curva a cabe-
ça frente à imagem de Nossa Senhora
Auxiliadora, protegida pelas grades, no
parapeito posterior do pátio da igreja.
A bulha não o perturba. A garoa a dei-
xar escorridos os parcos cabelos neva-
dos também não e, se uma tempestade
houvesse, ele não se daria conta. Absor-
vido em si próprio, submerge na oração,
em sua comunicação com Aquele que
a tudo prove. Se levasse uma facada, se
fosse atropelado, nem notaria.
Ricardo Pereyra, chama-se, e o
melhor sobrenome, não o do registro, tal-
vez seja Sem Deus. Sem Deus e sem nada.
Romancistas procuram momen-
tos perfeitos, distintos e definitivos, nas
vidas de suas personagens atormenta-
das. Será que eles existem? Certamente,
isso não acontecia quando Ricardo Pe-
reyra bateu à porta da família Schwartz.
Chovia.
Vês aquela capela pequena, com
espaço para cinquenta pessoas, sentadas
ou ajoelhadas? A capela Schwartz. Uma
comunhão de família e amigos muito
próximos. A água caía quando ele es-
murrou as portas dela, no fechar da tar-
de de uma quinta-feira.
Levado para a casa grande, Ri-
cardo viu-se num mundo particular.
A tarde finda, a luz esmaece. O
grande jardim dos Schwartz escurece.
As luzes da casa se acendem. O jantar
está pronto.
— Senhor Ricardo Pereyra, é
uma honra e uma alegria que possa-
mos compartilhar da sua presença nesta
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 29

casa. Esta refeição simples, que a graça Anne-Louise ostentava ar an- guia, de cabelos curtos, morena, usufruía ções, amores e tempo não se ajustavam.
de Deus nos permite desfrutar, a todos gelical, com seus olhos claros e cabelos com regularidade das tapas da lanchone- O que Ricardo precisava era dela inteira
eleva os sentimentos de boa vontade e curtos, quase uma acossada por Godard. te do Palau de la Música Catalana. só para ele. O que a mãe queria era a or-
hospitalidade. O que seríamos, se não Laurie, ora cortava as madeixas, ora as Na Barceloneta andavam, a mirar dem antiga, que a mantinha e garantia.
pudéssemos esperar que de outros seres deixava crescer. Ora vestia branco, ora o mar. Ah, “I wanna hold your hand”, E do que Luísa necessitava, talvez ela
humanos, de outros cristãos, tivéssemos preto, ora vermelho. cantava a inocência, pois coisa melhor não quisesse se dar conta.
a ventura do enriquecimento, pelo sa- A mãe, Anne-Sophie, muito bem não há. Nas noites, viam o jazz que os Dominado pela paixão, Ricar-
ber das suas aventuras, de suas dúvidas, se aventurava no piano e no canto das amantes descobrem nas canções, nos do não suportava mais a ausência, o
certezas e incertezas? Não se faz assim lieder, principalmente as de Mahler, o filmes e nos gestos de afeto. segundo plano em que se encontrava,
o mundo? O que seríamos, se os nos- judeu boêmio, talentoso e encantador. Chove, faz frio, calor, venta, tudo sem maneiras de vencer. Ele pressio-
sos braços encurtassem e as mãos aber- — Anne-Louise — dizia Ricar- muda e a vida também. nava mais Luísa. Queria que ela fosse
tas não ficassem ao alcance do desco- do Pereyra —, a arte cristã e universalis- Amar Ricardo alterava a vida de morar com ele. Casariam, publicariam
nhecido que bate à nossa porta, no meio ta de Bergman está longe de ser isolada Luísa. Filha tardia, crescera sob a vigi- a notícia em edital público e tudo seria
da noite gelada? É para nós uma alegria e não pode, de maneira alguma, ser se- lância e os cuidados ciumentos da mãe formalizado. Precisava disso. Não podia
tê-lo em nossa mesa e as nossas espe- parada das suas raízes suecas. viúva, pois o pai se fora antes que o pu- mais ficar dessa maneira e exigiu uma
ranças são de que a mesma disposição — Laurie — falava Ricardo —, desse conhecer. A ausência de irmãos decisão. Aceitava ou não.
ocorra em seu íntimo, e de que, ao nos a modernidade consiste da vitória da ou de outros parentes a deixava como a A mãe horrorizou-se com a pers-
esclarecer os rumos de seu pensamen- cultura clássica e também da contesta- única mantenedora da velhice materna. pectiva. Então, definharia em absolu-
to, a aliança dos bons propósitos muito ção e da síntese que as renovam. Tradi- A vida a esvair-se lentamente, cada vez ta solidão? Em plena ingratidão da filha
mais do que clara fique. ção e ruptura. mais necessitada de atenções, dobrava os adulada? Dela, por quem tudo fizera? O
Anne-Sophie e Heinrich Schwar­­ A vida transcorria assim na fa- encargos que pesavam no destino da jo- mundo não conhecia, embora muito o
tz tinham duas filhas: Anne-Louise e mília Schwartz. E o bom costume não vem. Amar Ricardo era amar menos a desejasse, porque tudo o que tivera, inves-
Laurie. O bem das moças costuma ser, é o de que todos colaborem para a ma- mãe, dona Alba, pois lhe tirava, progres- tira na formação da filha. Não era assim?
acima de tudo, o controle e a sobriedade. nutenção e o progresso das casas onde sivamente, o precioso tempo da filha. Que reservas poupara para o pagamento
A beleza, a alegria, a bondade, a simpa- vivem e das quais se nutrem? Das mu- Há uma força que move o mun- de enfermeiras e damas de companhia na
tia, o conhecimento das artes e da mú- lheres-objeto de encômios, Ricardo do e renova a espécie. Jovem alguma, se velhice? Se em tudo a filha querida tivera
sica a todos enlevam, mas espera-se um foi chamado por Heinrich a esclare- for sadia, deixa de outro jovem procurar, prioridade? E disso não se arrependia. Se
grau superior, que as diferencie. cer suas intenções e, se acaso pudesse e mesmo que não o saiba. E não consegue algo de bom fizera, foi isso, de providen-
Não que as bem cuidadas filhas quisesse, da possibilidade de participar não se apaixonar, não estabelecer rela- ciar para que Luisa uma vida boa tivesse.
pudessem se entusiasmar com um via- de um negócio. Antes, deveria explicar ções, não sonhar. Mas sempre a pensara juntas. Como fica-
jante, um aventureiro, um rocker, um de onde e a que vinha. — Você precisa viver —, dizia ria sozinha e desvalida?
cantor de jazz, um bailarino, um pintor Ricardo era grato pela acolhida e dona Alba, com a recriminação, entre- Ricardo ligava, dona Alba falava,
boêmio, um guitarrista, ou, Deus as livre, pela confiança dadas a um filho da noi- tanto, fixada na mágoa da idosa, que se os clientes da El Corte Inglês multipli-
um escritor. Não. Anne-Louise sempre te. O que podia advogar em seu favor? achava em vias de abandono. E piora- cavam-se e não ficavam contentes com
se interessou pela Suécia. Pensava vi- De tristeza e sofrimento era o seu pas- va a velha nos achaques quando a moça o atendimento. Luísa experimentou a
ver bem numa terra regrada pelos cos- sado. Muitas dores causara, sem querer. tardava ou, raro, pela madrugada apenas vergonha da reprimenda oficial e da vi-
tumes, pela lei e pela observância respei- Por uma soma de tragédias, aqui tinha voltava à casa. Era uma ordem que mu- são de portas se fechando. E isso, se era
tosa dos ditames de um Deus que a tudo chegado. dava, sob protestos e recalcitrâncias. importante para o que imaginava ser
via e não se intrometia. Laurie, ouso di- Longe de Curitiba, em Barce- Bem cedo tinha Luísa Paredes de seu futuro, era apenas parte das ques-
zer, tinha inclinação um pouco excessi- lona, Ricardo trabalhava como opera- iniciar o trabalho na El Corte Inglês. A tões com as quais vivia e das quais teria
va, talvez, pela cultura e pelas artes do dor no mercado de valores. Lá nascera chefia do setor de vestuário da procura- que tomar decisões. Ela postergava, não
homem, mais do que pela observância e crescera, orgulhoso das tradições cata- da loja a ocupava o dia todo e o fim da decidia, e as pressões aumentavam.
da lei e dos costumes religiosos. Ainda lãs. Um pecúlio interessante reuniu em tarde era um alívio. O happy hour, a sai- Luísa fizera-se forte para dar
assim, fora educada a confrontar a von- pouco tempo, pois sabia antecipar a alta dinha rápida com os colegas, um desa- conta das fraquezas da mãe, que se
tade pura dos anseios com as exigências e a queda dos movimentos. fogo. Depois, a casa, as novelas e dona abandonava. Assim se tornara pela ne-
da contenção e dos atos deliberados pela Uma moça atraiu-lhe a atenção. Alba. Agora, outra rotina se instaurava. cessidade e não por naturalidade. Não
instrução e pela boa inteligência. Luísa Paredes, gentilíssima jovem, es- Leve de início, complicada logo. Afei- tinha amigas próximas, namorado ou
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

amante, antes de Ricardo. Para a mãe se A nossa bossa da leveza brasileira ta sala, Ricardo Pereyra aprecia a fes-
dedicara, pelo trabalho pensava convi- reverteu a navegação das garrafas, como ta. Anne-Louise ou Laurie lhe darão a
ver com o mundo. Com Ricardo, a pai- as variações do batuque e a influência honra imensa do acompanhamento?
xão conhecera. A angústia suprema rei- do jazz tinham feito na música. Nave- Um toque suave no ombro o faz
nou então, sobre os caminhos que não gar é preciso, em Goa, Luanda, Floria- transformar-se. Ele vira-se, ansioso: não
se abriam, sobre as opções de ganho e nópolis ou no Porto. A linha Schwartz é nenhuma delas.
de perda. O mundo em que tinha vivido era, então, o melhor blend. A mensagem Assustado, Ricardo Pereyra in-
se fragmentava. Ela só achou uma saída. original, partida da Europa quinhentis- clina a cabeça ante sua patroa, Anne-
Da ponta de uma corda muitas ta, voltava no cálice da aceitação dos po- -Sophie. E o que ele vê é o olhar deses-
fugas acontecem. Dona Alba não su- vos, enriquecida, amadurecida e plural. perado: o largo colo resplandece, uma
portou o suicídio da filha e logo fene- Se o olor do vinho assim fluía, se corrente de ouro e o crucifixo sobre a
ceu. Ricardo sentiu que o mundo lhe os negócios avançavam, tudo o que bem pele, contrastando com o vestido de ve-
faltava e encharcou-se de vergonha e estava não acabaria bem? ludo verde. Anne-Sophie dirige-se para
dor. Viu-se como o único responsável Heinrich Schwartz pensou numa Ricardo, plena de intenções, perdida to-
pela tragédia, pois Luísa muito bem vi- grande comemoração. talmente nas vontades. Ela o cerca, im-
vera até então, sem o seu amor obses- Dos ardores luteranos, Anne- pede a fuga, o olhar fixo em seus olhos,
sivo. Em nada mais pensava. A habili- -Louise se deixara tomar de interesse as mãos seguram-lhe os ombros, a boca
dade que tinha de descortinar o rumo pelo estrangeiro católico. Os dias cur- abre-se para tomar o gosto da dele.
do lucro na compra ou na venda se eva- tos do inverno sueco, propícios ao reco- — Mãe! — Grita Laurie, e cor-
porou e as perdas logo o deixaram no lhimento e à reflexão, não lhe pareciam re em direção aos dois. Os saltos altos
chão. E ele não queria se levantar, cul- mais atraentes que a luminosidade do dos sapatos a atrapalham e ela perde o
pado que se sabia. verão curitibano. Os planos do novo as- equilíbrio. Tropeça, bate na murada do
Também Ricardo fugiu, sem sentamento tiveram de aguardar. Uma mezanino, vira e tomba. Cai e o barulho
rumo certo, por países, aeroportos, ci- abertura teológica se prenunciava. do corpo a bater no piso de mármore é
dades. E aqui afinal chegou, numa noite A nova linha de tintos apresentou Laurie, se os humores altera- o do fim de muitas vidas.
chuvosa, sem saber direito como. Não com eficiência e brilho aos jornalistas e va, não deixava nos modos demons- Veja agora esse homem envelhe-
seria o destino, o perdão divino, a graça connoisseurs de São Paulo. Os comentá- trar. Nada parecia importar nas atitu- cido, que se ajoelha nas lajotas duras da
de Deus, a abrir a porta da esperança? rios foram receptivos e as encomendas des independentes que sempre tomara. calçada, sob a chuva. Causou a morte de
Não tinha revivido? dispararam. A marca Schwartz foi o su- A atenção ao estrangeiro não a ocupava quem amou e levou a tragédia para den-
Heinrich Schwartz acreditava cesso da temporada, exigência em todos mais que o tempo devido da educação tro da casa que o abrigou da tormenta.
nos desígnios divinos. Não vivia bem? os restaurantes de público antenado. A e da boa formação. Espaço maior tinha Os que dele se aproximaram receberam
Não garantia o Senhor o bem-estar de cepa europeia adquiria brilho próprio que dedicar à leitura dos novos poetas o pior dos destinos. Por isso, só conse-
Anne-Sophie e das filhas, não lhe dava na terra nova. Ganhava força no ter- e performers, pelos quais se encantava e guiu passar a vida em solidão, apartado
a oportunidade do trabalho redentor? roir distinto. Sabores específicos, gostos dos quais se esquecia, assim que a maré do convívio que ameniza o sofrimento.
Dar a mão ao homem que se reergue particulares... elegância, acima de tudo. recuava e a vanguarda a retomava. Pois ele só traz dor. Pensa carregar uma
pareceu-lhe a única possibilidade de um Se as coisas dão certo, tudo está E foi por ela que Ricardo Pereyra maldição, uma doença peçonhenta que
cristão. Pois ainda que se multipliquem bem. não conseguiu deixar de se apaixonar. envenena a vida daqueles que a sorte
sobre a Terra, os fiéis são os mesmos — Anne-Louise — dizia Ricar- O baile brilha. A música da or- traz ao seu redor. Tudo lhe foi negado.
poucos que se abrigavam nas catacum- do —, a cristandade despida de orna- questra a ninguém deixa sossegar. A be- Todos os castigos experimentou, de to-
bas. E só pela fraternidade sobrevive- mentos é a recuperação da mensagem. bida estimula os desinibidos e libera os das as pessoas se afastou. Não tem razão
ram e prosperaram. Muitos em um. tímidos. A dança é o ritual alegre da tri- de sofrer, rezar e pedir perdão? g
Heinrich guardou a aceitação para — Laurie — falava ele —, a di- bo, que a todos envolve. A valsa eston-
si. A mulher e as filhas não sabiam de versidade da arte é o espelho que con- teia nos rodopios. Otávio Duarte é escritor e jornalista. Morou
em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Entre
suas dúvidas, pois obstáculos prévios não centra e multiplica as possibilidades de Heinrich Schwartz aguarda os outras obras, publicou o livro de poemas e
colocara. Ricardo Pereyra foi contratado abstração e expressão do ser humano. visitantes na porta da casa. Ele procu- contos Fanfarra infante (1998), o livro de
como representante dos negócios da fa- Um são muitos. ra: onde se encontra Anne-Sophie, que contos Seis romances e uma pintura (2001)
e o álbum Clepsidra, em parceria com o pintor
mília. Da venda dos produtos dos vinhe- Ricardo Pereyra saiu-se muito ainda não veio? Rones Dumke (2010), que ilustra o conto
dos deveria se ocupar e assim fez. bem também em Lisboa. No mezanino a dominar a vas- publicado aqui. Vive em Curitiba (PR).
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 31

retrato de um artista

Julio Cortázar
Por Robson Vilalba

Julio Florencio Cortázar nasceu em


Bruxelas, Bélgica, em 26 de agosto de
1914. Quatro anos depois, mudou-se para
a Argentina, onde estabeleceu sua carreira
de escritor e professor de letras. Em 1951,
passou a viver em Paris, onde faleceu, em
fevereiro de 1984. É considerado um dos
maiores contistas da história da literatura
mundial e pertence uma geração de
grandes escritores da literatura argentina,
como Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy
Casares. Entre seus principais livros estão
Bestiário (1951), O jogo da amarelinha
(1963) e Todos os fogos o fogo (1966).
Histórias fantásticas que questionam a
racionalidade do cotidiano são a marca
fundamental da literatura de Cortázar.

Robson Vilalba é ilustrador, cartunista e caricaturista.


Atuou como chargista e ilustrador no jornal A Tribuna,
em Rodonópolis (MT), nos jornais Notícia UEL e
Folha Norte, ambos de Londrina (PR), onde também
publicou o livro Londrinenses, em parceria com
Maurício Arruda Mendonça. Atualmente trabalha na
Gazeta do Povo. Mantém os blogs estacaofinlandia.
blogspot.com e robsonvilalba.carbonmade.com.
Em novembro, Vilalba apresenta a exposição Letrados
Caricatos, na BPP. Vive em Curitiba (PR).
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poesia
Iacyr Anderson Freitas Ilustração: Marciel Conrado

Conjunto habitacional Esperança 2.


era alta
Ap. 925 – Bloco E magra
e (segundo
dentro de sete dias dizia)
serei despejado bem resolvida
deste amplo apartamento
de vinte metros quadrados embora seja impossível
cá entre nós
puta sacanagem resolver
perder esta janela
sem sol a vida
ou paisagem
Condessa Petrina Marzano
fora os nove lances
de escada Condessa Petrina Marzano
e as pastilhas turbinou a bunda
que se jogam melhorou a silhueta
da fachada com 300 ml
em cada teta
(desperdício
ou trocou de dieta
suicídio?) alcançou com botox
a antiga meta
ficar sem o mofo depois de 23 cirurgias
as infiltrações as pulgas na pele crivada
e esta bela vista de setas
do fosso
que recolhe toda a chuva sacou duas costelas
e esticou o couro
para irrigar até as canelas
minhas rugas
bem que ficou natural
seu jeito de chorar
Susana em dois tempos sem mudar o visual

1. apenas
da última vez que a vi por sequela
ela estava com pressa quando explode aquele riso
mal me cumprimentou disse
que andava a mil (aquele riso
que desgoverna)
horas depois
tomou meia garrafa ela levanta
de vodca ligeiramente
e três caixas a perna
de rivotril
Pausa
meu olhar despenca
desta
até outra sala
Iacyr Anderson Freitas é poeta,
mestre em Teoria da Literatura e dessa
pela Universidade Federal de na memória
Juiz de Fora. Publicou mais de até a fala
dez livros, entre poesia, prosa
e ensaios. Já recebeu diversos que há muito
prêmios literários nacionais e é se perdeu
publicado em pelo menos outros
oito países. Entre suas principais no puro breu
obras estão Trinca dos traídos de um voo
(2003) e Oceano coligido (2000).
Vive em Juiz de Fora (MG). sem escalas g

Você também pode gostar