Você está na página 1de 3

A banalização da literatura

Ao longo dos últimos meses, é possível que muitos jovens leitores utilizadores
frequentes de redes sociais como TikTok, Instagram e Youtube se tenham
apercebido da emergência do ‘smut’ e da instapoetry que, na perspetiva de
alguns, pouco mais são que frases de efeito arbitrariamente divididas em várias
linhas para dar a impressão de verso. Tal pode ser interpretado como uma
forma de oferecer uma maior acessibilidade à leitura – afinal, cada vez mais
pessoas estão a ler, em parte graças aos influencers. Por outro lado, poderá
parecer que o ato de ler, em específico, e a literatura, no seu todo, estão a
sofrer uma certa banalização.
O primeiro ponto de vista apresentado defende que as obras cuja prosa
(ou verso) são de mais fácil compreensão e abordam temas interessantes à
média pessoa, ganharão uma vasta quantidade de leitores. Quem trabalha oito
horas por dia e chega a casa para limpar fraldas, tirar blocos de lego da boca
das crianças e fazer-lhes o jantar, frequentemente não terá tempo, paciência e,
sobretudo, interesse, em ler uma obra densa, que exija do leitor a maior
atenção aos detalhes. Na verdade, qualquer pessoa que busque apenas uma
forma de evasão da realidade e escolheu a literatura como meio para alcançar
esse objectivo, frequentemente há de optar por uma história que o cative desde
a primeira página e descreva clara e distintamente – isto é, sem palavras
difíceis – ódios tamanhos que se tornam em amores ainda maiores – expresso
por frases como “Diz-me agora quem te fez isso”, bem como detalhadas cenas
de sexo – feiticeiros e fadas no campo de batalha, intrigas políticas que
colocam o destino dos adorados protagonistas em jogo, revoluções, jogos de
vida ou morte, etc. Contudo, quem diz isto pode tanto estar a falar de Hunger
Games (Suzzane Collins) como de After (Anna Todd).
No que concerne, em específico, à emergência do ‘smut’ (livros que
apresentam cenas de sexo explícitas), surgem outras questões, tais como: será
que estes livros podem ser considerados “verdadeira” literatura ou serão mera
pornografia? O que, por sua vez, implica a questão: livros pornográficos ou
eróticos fazem parte daquilo a que chamamos ‘literatura’? Quem coloca
questões dessas não deve ter lido ou estudado os grandes clássicos: o
Decamerão, por exemplo, é um grande livro constituído por inumeras histórias
de caráter erótico, uma das quais tem lugar num convento e um dos nossos
grandes poetas, Bocage, é famoso pela sua poesia erótica. Todavia, existe
distinção entre eroticismo e pornografia (inserir definição aqui). O concenso
geral é que o erótico tem lugar na literatura, mas o pornográfico não (do
mesmo modo que ninguém afirma que os filmes do PornHub são obras
cinemáticas).
A verdade é que um número impressionante de pessoas que nunca se
interessaram por leitura durante toda a sua vida, de repente criam nos seus
quartos bibliotecas quase exclusivamente constituídas por ‘smut’, começam a
virar noites com livros nas mãos, compram kindles, apaixonam-se por ‘fanarts’
de personagens etc. De acordo com as respostas que recebi por parte de 2
leitoras ávidas deste género literário, as cenas mais quentes constituem uma
mistura entre o pornográfico e o erótico. Segundo uma das leitoras, “dá para
perceber melhor o plot e as personagens; por exemplo, no livro que estou a ler
agora a protagonista está com gajo que não tem nada a ver com ela. Também
torna a história mais interessante”.
Mas… então ser-se um leitor é banal? Ler é só mais uma atividade como
qualquer outra? Acredito ser possível afirmar que ser "leitor", no sentido geral,
está agora pouco ou nada relacionado a uma vida refletida, a cultura ou mesmo
a capacidade de concentração por extensos períodos de tempo, pois estes
livros seriam quase que uma uma espécie de fast-food literário – é popular,
barato e vai goela abaixo sem mal se apreciar o sabor. Alguns chegam a
declarar que a literatura está, de certo modo, a ser diminuída a uma mera
forma de entretenimento comparável a telenovelas, sem qualquer necessidade
de reflexão ou profundidade, cujo artifício é irrelevante e o enredo será
esquecido no preciso momento em que os ventos que governam o booktok
(TikTok sobre livros) mudarem de direção. Contudo, tanto os leitores de
Dostoievski como os de S.J Maas concordam que o ato de ler exige mais
concentração do que o de ver um filme ou uma série e, no caso dos fãs de
ACOTAR com quem tive contacto, apenas o empreendem por não existir uma
alternativa audiovisual (embora alguns destaquem a imersão na história que
consideram única à leitura).
Tanto os ‘romances cor-de-rosa’, como os que simplesmente tiveram a
sorte e o azar de se terem tornado estrondosamente populares desde sempre
foram fortemente criticados. Durante os séculos XVIII e XIX, obras hoje
consideradas parte do cânone da literatura mundial foram relegadas ao título
de “romances de mulheres/meninas”, isto é, não constituíam a literatura séria
estudada, é claro, única e exclusivamente por membros do sexo masculino.
Dickens e Machado, pela sua popularidade, eram vistos como pouco mais que
autores de revista (isto porque, há uns dois séculos, era usual escrever obras
capitulo a capitulo e publicá-las em jornais ou revistas), indignos da ‘alta
literatura’. O Amante de Lady Chatterley (D. H. Lawrence), foi censurado em
múltiplos países pelo seu – escasso – conteúdo sexual. Lolitta (Vladimir
Nabokov), foi banido por apresentar cenas de pedofilia e sexualizar uma menor
(se calhar porque o narrador é um pedófilo… uau!). Gustave Flaubert foi levado
a tribunal porque a sua Madame Bovary ia contra os preceitos morais judaico-
cristãos (spoiler alert: a protagonista que dá nome ao livro cultiva casos extra-
conjugais). A lista continua.
O que se quer dizer com tudo isto é que a literatura, popular ou obscura,
reflete a vida, mesmo sob os olhos de dragões. Sexo faz parte da vida;
naturalmente, será utilizado por artistas dos mais variados meios para
demonstrar e descrever tópicos que vão desde o amadurecimento das
personagens e o desenvolvimento dos seus sentimentos, até a adentrar na
mente de um predador, pelo que o ‘smut’ não é novidade nenhuma.
Pessoalmente, entendo a boa literatura como uma forma de arte
semelhante à escultura: o autor, limitado pelo vocabulário e regras gramaticais
da sua língua -- do mesmo modo que um escultor está limitado à quantidade de
mármore que consegue arranjar -- esculpe, minuciosamente, um mundo novo,
pessoas que nunca viveram e intrigas que nunca tiveram lugar, sendo a escrita
em si o mais relevante na obra. No entanto, a minha opinião – nem a de mais
ninguém – é passível de definir categoricamente quais são os bons e os maus
livros.

Você também pode gostar