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1) Introdução (pp.1 - 4)
O motivo de trazer à baila a discussão sobre essas divisões feitas pela crítica, pela teoria
e pela própria história literária é porque elas têm uma repercussão direta no modo como são
selecionadas as leituras escolares obrigatórias (inclusive na relação com vestibulares e ENEM),
em geral, vinculadas a dois princípios: 1) seleção do que deve ser ensinado quando se ensina
Literatura (“o que se ensina quando se ensina literatura”? Mais frequentemente, na prática, a
resposta, na educação básica, é “história literária”) e 2) seleção do repertório que, em tese, fará
diferença na vida do aluno (“o que se deve ler e por que?” As respostas variam, mas passam por
ideias como a de tornar-se mais culto; humanizar-se; formar critérios de gosto e de valor etc.).
Esses dois princípios seguem junto não apenas com a iniciação à Literatura e ao estudo
de Literatura, mas com a formação do leitor literário.
Entretanto, esse vasto terreno compreendido pelo que estou chamando de “iniciação à
literatura” (e de seu estudo) e, simultaneamente, pela formação do leitor literário recobre vários
aspectos e diferentes experiências. Vou mencionar apenas algumas:
- quando eu era adolescente, vários de nós copiávamos em cadernos versos como “Que não seja
imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure”. O “Soneto de Fidelidade”, de
Vinícius de Moraes, era às vezes conhecido apenas por seus dois últimos versos e repetido por
adolescentes como parte, mais do que de uma linguagem amorosa, de signos sociais
compartilhados acerca de um modo de pensar o amor.
- a própria literatura também traz essa experiência de obras literárias se constituírem em signos
de identificação e de socialização, um modo de conceber afetos e relações sociais e
interpessoais. Cito um exemplo do século XVIII, vindo de uma obra canônica:
Obs.: é digno de nota que esta obra de Goethe é considerada, pela história literária, além de
canônica, importante marco para o Pré-Romantismo e Romantismo, e também um dos
primeiros “best-sellers” do então nascente mercado editorial, dada a imensa circulação e
repercussão que teve. Para a sociologia da literatura, além de se tratar de obra canônica,
Werther é uma obra relevante para entender o fenômeno cultural em que uma obra repercute
em larga escala numa sociedade e nos comportamentos.
- Um outro exemplo, mais recente, vem de um acontecimento de 27/02/2018, que virou notícia
de jornal e envolve obra não-canônica. Cito um trecho:
Fonte: https://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/morador-chama-policia-apos-avistar-
dementador-em-parque-nos-eua.ghtml
Obs.: não se tratava de trote aplicado na Polícia. O morador, num momento de angústia e medo,
enxergou no saco de lixo a imagem de algo que dava forma ao que ele estava sentindo. Também
não é raro que a figura de Voldemort, do mesmo universo de Harry Potter (série de J. K Rowling,
cuja publicação completa 20 anos em 2020), seja evocada em situações de confronto político e
mesmo em relações de trabalho ou interpessoais.
Não é apenas a literatura que compõe essa formação sentimental, afetiva e essa socialização
que permeia codificações e signos que passam a circular num contexto histórico-social: música,
imagens, memes, filmes etc. também o fazem. Um exemplo recente interessante, que lida com
várias esferas e aspectos dessa questão, é o filme Yesterday (Dir. Danny Boyle, 2019).
b) as buscas pessoais e subjetivas por aquilo que ajudam um indivíduo a compreender a si mesmo,
a vida que leva, a situação social em que se insere, seja pela via da identificação, seja pela do
estranhamento e desconforto.
Nesse ponto, é preciso levar em conta que somos todos iguais, perante a lei e nos nossos direitos
fundamentais, mas vivemos experiências muito diversas dentro de uma mesma sociedade, na
qual as diferenças entre as pessoas podem rapidamente vir a ser convertidas em deméritos ou
méritos que implicam em tratamentos hostis ou em privilégios (velados ou explícitos): raça,
classe social e poder aquisitivo, gênero, etnia, religião etc. Há, por exemplo, a possibilidade de
que duas crianças tenham reações diferentes diante dos volumes de Sítio do Pica-pau Amarelo,
de Monteiro Lobato, autor canônico, e não apenas por seus gostos individuais, mas pelo fato de
serem brancas ou negras, para ficar apenas em um exemplo que tem gerado controvérsias e
pesquisas no âmbito escolar.
Pensar em tais aspectos, dentre outros que poderiam ser levantados, tem a ver menos com
propor métodos didáticos para a escolha e a abordagem de obras literárias no ambiente escolar,
sobretudo o da Educação Básica, do que refletir acerca do modo como os diferentes métodos e
abordagens consideram ou não esses mesmos aspectos, e em que medida. É menos, talvez, uma
questão de proposta metodológica e mais a de uma prática autoconsciente e autocrítica de
qualquer metodologia já existente e dos critérios para sua adoção.
Em alguma medida, tais aspectos se vinculam à concepção da leitura como algo que envolve não
apenas a aquisição de competências técnicas e a formação de um repertório social e
academicamente consagrado, mas, além disso, também a experiência afetiva, social e
subjetivamente vivida, por seres humanos em formação e em processo de socialização.
II - “Quando entrei em letras, e entrei justamente porque gostava de ler, o sentimento inicial foi
que eu não havia lido nada relevante, e tinha pouquíssimo repertório para acompanhar as aulas,
a teoria literária e os textos de pensadores famosos. Eu consigo ler Anna Kariênina em uma
semana, mas não me peça para ler um ensaio de 30 páginas sobre o romance. Isso se qualifica
quase como tortura. Acredito que aqui entra uma das perguntas norteadoras da disciplina: "O
que as pessoas leem enquanto os autores do cânone escrevem?"
No entanto, eu entrei no mundo literário não através dos textos de Adorno, mas das histórias
de Pedro Bandeira, e isso me trouxe até aqui. Concordo com quem disse que a literatura tem
um potencial transformador, mas não o poder, e isso me parece estar relacionado ao modo
como as pessoas leem, e se elas entendem o que estão lendo. Por mais horrível que isso possa
soar.
Mesmo que todas as pessoas tenham acesso a tudo que se lê na universidade, por exemplo,
como esperar que todos os leitores extraiam tudo que se tem para extrair de um texto? E
quando isso é mais desejável do que simplesmente a sensação particular que a leitura causa em
cada um? Será que os romances de Dostoiévski, por exemplo, seriam considerados literatura
perigosa por todos os leitores que têm acesso a ele?
[...] reconheço essa relação ambígua com a leitura, que não sei como resolver, e que se resume
em: como as pessoas podem se tornar leitores críticos, que realmente entendem aquilo que
estão lendo, e quando isso seria desejável? Quando é preferível investigar cada referência
encontrada no texto, como o narrador de A viagem de inverno, e quando a relação direta com
a literatura basta? Será que algum dia todos atingirão um estágio de leitores formados, que ao
mesmo tempo em que terão leituras prazerosas, terão também leituras críticas e reflexivas. Por
enquanto, pelo menos no meu caso, e em se tratando de textos teóricos canônicos, salvo
algumas exceções, essa fusão nunca acontece.” (Mariana dos Santos Correia - quarta, 25 mar
2020)
III - “O que "tornou" o leitor um "LEITOR"? De onde "brotou" a "vontade" de, a partir das leituras
mais infantis, adolescentes e de "entretenimento", que é de onde normalmente partimos)
questionamento do próprio ato de ler? Viver, nós vivemos; questionar a vida, nem sempre.
(Por favor, não estou dizendo que há hierarquia entre leitura: entretenimento / universitária /
autoajuda / erótica etc. Questiono aqui que alguns, poucos, tornam o ato de ler algo reflexivo,
outros não. Gosto muito de cinema. Desde minha infância. Vi muitos filmes de terror, kung-fu,
comédia, filmes de ação. Muitos amigos, que comigo conviveram, continuam vendo os mesmos
filmes terror, kung-fu, comédia, filmes de ação... E eu me tornei um chato para eles, os meus
amigos, ao mostrar a eles as infinitas semelhanças (estou sendo eufemista entre os "sempre
mesmos filmes"... Bem... Eles ainda se divertem (sem questionar) a estrutura narrativa dos
"eternos mesmos filmes de sempre").
[...]
Mas como tornar o alfabetizado (ao desescolarizado falta leitura da escrita das letras; a leitura
do mundo ele já a tem!) um leitor. De onde vem esse "clique" da vontade de entender o ATO
DA CONSTRUÇÃO, não somente a CONSTRUÇÃO?
[...] o meu motivo da leitura continuar em mim, depois do fim do livro, é o mesmo para todos?
A "reconstrução" do meu "motivo" é a "verdade" exemplar?” (Carlos Alberto Xavier - terça, 5
mai 2020)
IV - “Há alguns anos vinha alimentando o desejo de ler alguns clássicos da literatura infantil,
contudo, devido às diversas leituras e atividades da faculdade e às tarefas do estágio, era difícil
encontrar tempo. Durante este período de isolamento social consegui, porém, realizar essa
vontade. Esta semana estou lendo O mágico de Oz, de L. Frank Baum.
Minha mãe costumava ler bastante clássicos quando eu era pequena e, como muitas crianças,
também cresci assistindo as adaptações cinematográficas destes livros. Embora não me lembre
muito bem das estórias contadas por minha mãe, sei que de alguma forma esse universo
literário contribuiu para a minha formação como leitora.
Decidi começar a ler alguns destes livros da minha infância não apenas para matar minha
curiosidade de ver as diferenças entre “o original” e “as adaptações”, mas também porque são
leituras prazerosas, que me trazem boas lembranças e me fazem sentir bem. A leitura do livro
de Baum – e também dos outros que li, como O quebra-nozes e Peter Pan – tem me distraído
bastante.” (Ana Cristina Henriques Nunes - terça, 31 mar 2020)
V - “Mesmo sendo parte do corpo de bombeiros, Beatty conserva sua humanidade acumulando
livros. Com efeito, essa é uma característica dos superiores em tempos de distopia. Em
"Admirável Mundo Novo", há mais de uma cena em que os administradores discutem sua leitura
de clássicos como Shakespeare, sendo que o acesso a eles era proibido pelo governo fictício da
história. Ocorre que mesmo Beatty possuindo o acesso à Literatura, a realidade acachapante de
seu tempo não oferece paralelos a serem estabelecidos entre leitor e obra, entre realidade e
ficção - um movimento fundamental e necessário para que ocorra fruição da Literatura [...]”.
Acredito que, essa formação de novos leitores vai sim acontecer por diversas razões. Alunos de
cursinhos, agora, com mais tempo em casa para ler os clássicos exigidos pelos vestibulares,
enquanto estudantes de escolas regulares leem por entretenimento e passagem do tempo.
Haverá, na leitura, a descoberta da imaginação e do imaginário como espaço que pode ser
explorado e por consequência um possível aumento criativo, o que de certa forma tinha sido
preenchido pelas redes sociais com leituras mais mecânicas e rápidas, porém, essa formação de
leitores se antes era restrita para classes com maior acessibilidade financeira da sociedade
brasileira, será ainda mais, já que não há acesso às bibliotecas de escolas ou bibliotecas públicas
(Nas escolas, que fiz estágio para a licenciatura, tinham bibliotecas e eram a principal fonte dos
alunos). [...] A leitura, que sempre teve um caráter elitista no meu ponto de vista, com a crise
na saúde e desemprego, será ainda mais. Acho legal pensar sim que vão vir novos leitores, mas
de onde eles vêm e como vêm? Em alguns países, cestas básicas distribuídas por voluntários
devido a crise tem livros incluídos, pois quem não tem o que comer, dificilmente terá o que ler
ou com o que se entreter. Não sei como seriam as soluções futuras enquanto a isso, é algo que
me preocupa como professor. Mas para agora, acho que uma das soluções poderia ser essa, que
outros países têm tomado, a distribuição de livros junto com cestas básicas. (Henrique Reis Fatel
- quarta, 25 mar 2020)
VII - “Ao escolher o tipo de leitura que deseja fazer, acredito que o leitor busca uma conexão
com o tema , uma correspondência ele busca uma satisfação.
Na sua ação de ler, ele traz para o texto sua experiência de vida, sua bagagem, sendo esses
instrumentos, suas possíveis ferramentas para dialogar com o texto.
Sim, a escolaridade, seu acesso a cultura, situação socioeconômica, habitacional, nutricional,
desejos, sua saúde mental e física, o momento político, histórias passadas, são alguns dos
determinantes que devem influenciar o modo como diálogo irá acontecer e como ele
interpretará o texto lido.
Um terceiro personagem pode surgir nessa história, que seria um tipo de orientador, que
também trará para essa discussão sua bagagem de vida.” (Edna Rodrigues Lemos - sexta, 10 abr
2020)
VIII - “É interessante pensar também que tenho procurado livros que me distanciem da realidade
em que estamos vivendo. Me afastei das distopias, embora goste muito de livros assim.
Outra observação que tenho é sobre minha mãe. Ela sempre gostou de ler e me levou para a
leitura desde cedo, mas estava há um tempo sem ler. Agora está retomando a leitura, lendo
todos os dias. Acho que essa é a experiência mais interessante que tenho visto.
Acho que é possível relacionar toda essa questão com um livro que tenho gostado de ler
também, chama-se A Literatura como remédio. Ele diz: "Neste contexto de embotamento
afetivo e moral que estamos vivendo, a literatura se ofereceria como um meio - alguns dirão até
mesmo o único - de nos reencontrarmos com as fontes humanas da nossa existência e nos
humanizarmos."” (Édela Janaina Pradela - quarta, 29 abr 2020)
IX - “Faço estágio na gestão de um projeto, financiado pela Prefeitura de São Paulo, de formação
de gestores escolares dos CEIs (Centros de Educação Infantil) da rede parceira do município.
Nesse momento de isolamento social, eu comecei a acompanhar os movimentos que esses
gestores e educadores tem feito para manter suas atividades com os bebês e crianças pequenas
atendidas em suas unidades. Entre as ações que mais me tocaram estão os vídeos que
educadores e coordenadores pedagógicos gravaram lendo livros, contando histórias e enviaram
as famílias.
Confesso que me encantei pelos vídeos não só por seus conteúdos mas também pelo fato das
educadoras escolherem ler os livros preferidos de seus alunos, quase como um "ainda estamos
juntos, bem pertinho". Me admirou as possibilidades que a literatura cria nesse contexto, aqui
ela permitiu que (i) educadores e bebês mantenham seu vinculo, uma vez que criar confiança
nos adultos é extremamente importante para essa fase da infância; e (ii) o acesso a outros
conteúdos, histórias e mundos a crianças que, em grande parte, vivem um contexto de
vulnerabilidade socioeconômica, intensificada no cenário da pandemia.
[...] Observando todo esse movimento, me peguei pensando que devemos valorizar a
construção desse tipo de rede, que parece ter se intensificado nesse momento de isolamento
social, mas que deveria se dar de forma permanente na nossa sociedade, que tanto precisa de
um acesso democrático a literatura desde a primeiríssima infância.” (Leticia Men dos Passos -
terça, 12 mai 2020)
X - “Sempre vi a dança, a música clássica e o acesso ao teatro (menos as que ocorriam nas
associações de bairro, sedes, ruas e comunidades) com algo inacessível e é claro que continua
sendo para uma boa parte da população. Consegui, através projetos culturais, onde o
orientador sempre levava em consideração os contextos locais, dialogar com aquilo que me era
distante, inacessível e diferente. Durante todo nosso processo foi possível, assim, como na
literatura, verificar o poder transformador de cada arte desenvolvida. Havia em cada encontro
uma interação, comunicação, diálogo dos alunos com a arte pesquisada e apresentada.” (Edna
Rodrigues Lemos - quarta, 1 abr 2020)
XI - “Como professores, o que temos sentido mais falta é a troca que acontece em sala de aula,
as interações com os alunos, as dúvidas que dão prosseguimento ao conteúdo, etc. - interações
essas que não acontecem no ensino virtual.
Propusemos, então, uma aula de sensibilização de um poema, para o 6º ano.
O poema, de Ana Martins Marques (poeta que conheci na aula de IEL 1) [...]
A videoaula buscava analisar o poema e levar o aluno a associar essa distância física que a poeta
está experimentando com o distanciamento social que estamos vivendo. Os alunos deveriam
então desenhar um mapa, indicando quem são as pessoas de quem eles gostariam que esse
mapa os aproximasse, dobrá-lo e tirar uma "selfie".
[...] Os alunos enviaram via formulário suas impressões da aula, e muitos diziam que, em
primeira leitura, não entenderam nada do poema, mas, após a videoaula, ficaram espantados
de como "um poeta tão pequeno fala tanta coisa".
Nas imagens, inúmeras crianças expressaram saudades das avós [...]. Muitos apontam também
as saudades de amigos (de maneira geral) ou de amigos específicos, como colegas que estão
com os pais doentes (tivemos muitos casos de covid19 na comunidade escolar). Alguns ainda
escreveram "pai" ou "mãe", pois são filhos de médicos e estão isolados na casa de parentes.
Enfim, foi uma experiência sensível e gratificante, em um momento que o contato com eles não
tem data para voltar, trouxe um aspecto de humanidade para o ensino a distância.” (Giovanna
Liberato Intellicato - segunda, 4 mai 2020)
O texto básico, anexado na sequência, é “Que literatura para os estudantes do Ensino Médio?”,
de Regina Zilberman, conferência proferida no evento III Jornada Leitores e Leituras na
Contemporaneidade, e publicado no e-book (gratuito) HOSSNE, A.S.; NAKAGOME, P.T. (Org.)
Leitores e Leituras na Contemporaneidade. Araraquara: Letraria, 2019, pp. 11 - 26. (A indicação
consta da bibliografia da disciplina, presente no Moodle junto com o Programa)
Leitores e leituras
na contemporaneidade
Araraquara
Letraria – 2019
LEITORES E LEITURAS NA
CONTEMPORANEIDADE
PROJETO EDITORIAL
Letraria
CAPA
Letraria
REVISÃO
Autores
APOIO
Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES)
ISBN: 978-85-69395-40-9
1. Leitores; 2. Leituras;
3. Contemporaneidade; 4. Literatura.
Que literatura para os
estudantes do ensino
médio?
Regina Zilberman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
1. O eclipse da literatura
É nos primeiros anos da década de 1970 que a literatura começa
sua paulatina – e pelo menos até agora irreversível – perda de espaço
no contexto da escola brasileira. Até então ela fora – no todo ou em
partes – a base do conhecimento da língua e da tradição cultural
lusófona. A partir do começo daquela década, em decorrência da
nova legislação, sumariada na Lei 5692, privilegia-se o “uso da
língua”, entendida essa como “instrumento de comunicação e
como expressão da língua portuguesa”.1 O vocábulo literatura não
é mencionado no corpo da lei.
11
Os novos rótulos relacionam-se aos conteúdos e propósitos
da disciplina. Conforme sintetiza Magda Soares, em artigo de 1974
(p. 4-25, sublinhas da autora), a língua doravante é entendida, logo,
ensinada, enquanto “instrumento de comunicação”:
12
obras de Charles Sanders Pierce e de Umberto Eco3, por exemplo,
é sintomática da atratividade da ciência que aqueles autores
praticavam.
13
apressar o processo de modernização, e a economia nacional abria-
se generosamente ao capital estrangeiro.
14
Encerra-se o reinado do signo, inicia-se o império do discurso.
Com efeito, o ponto de partida da proposta representada pelos
PCNs é o caráter discursivo da linguagem humana, como se expõe
no volume dedicado à Língua Portuguesa – Ensino Fundamental:
“interagir pela linguagem significa realizar uma atividade
discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada
forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
circunstâncias de interlocução.” (BRASIL, 1998, p. 20-21).
15
a proposta original de 2015, afirma-se que, “em continuidade ao que
foi proposto pelos PCNs, o texto ganha centralidade na organização
dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento do componente
Língua Portuguesa.” (BNCC, 2015, p. 37-38). Em documento mais
recente, essa formulação apresenta tão somente ligeiras diferenças:
“Tal proposta assume a centralidade do texto como unidade de
trabalho e as perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem,
de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de
produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo
da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos
em várias mídias e semioses.” (BNCC, 2018, p. 65).
16
Justifica-se esse tratamento diferenciado, porque, nas
palavras desse documento, a literatura traz consigo a vantagem
de “enriquece[r] nossa percepção e nossa visão de mundo”. Na
sequência do parágrafo, repete-se o argumento:
17
conteúdos passaram para um segundo plano ou desapareceram dos
manuais escolares, carregando junto seus paradigmas literários.
18
Sendo canônica porque abonada pela História da Literatura,
ela pertence ao passado. Porém, destituída da sacralidade que a
condição de modelo lhe conferia, tornou-se, com o tempo, ainda
mais distante – logo, definitivamente pretérita.
2. A elasticidade da literatura
As modificações registradas na legislação brasileira relativa à
organização da educação nacional, ocorridas em 1970 e 1996, podem
ser entendidas enquanto respostas a demandas da sociedade. Não
de toda a sociedade, pode-se afirmar, mas daqueles segmentos
que ocupavam o Estado. Nos anos 1970, o regime implantado
após o golpe civil-militar de 1964 adotava medidas no sentido de
acelerar a modernização brasileira, que se realizaria por meio do
desenvolvimento industrial. O governo proviria infraestrutura –
estradas, hidroelétricas, saneamento urbano, telefonia à distância
– e mão de obra, e o capital estrangeiro, da sua parte, importaria as
plantas industriais e os bancos que usufruiriam dessas benesses
para incrementar sua lucratividade e expansão. A obrigatoriedade
do ensino fundamental e a alfabetização em massa colaboravam para
o suprimento de trabalhadores urbanos minimamente qualificados,
contingente de origem rural que migrava para as grandes cidades
do Sudeste. A nova classe operária estaria apta igualmente ao
consumo, sendo-lhe oferecidas as ferramentas até então tímidas
da indústria cultural: literatura de massa e redes de comunicação
audiovisual de alcance nacional, acessíveis por meio de tecnologia
avançada no âmbito da produção e da circulação.
19
A literatura servira até então a uma elite letrada, bastando
conferir a origem social e geográfica da maioria dos autores e
autoras em evidência, para aceitar que os novos grupos sociais não
contavam com vozes próprias, a não ser no âmbito da criação oral,
de preferência cantada. Perdendo o estímulo escolar, a literatura
não conquistou os novos públicos agora alfabetizados. Também não
alargou a oferta, gerando a propalada “crise de leitura”, discutida e
combatida a partir dos anos 1980.
20
Não que a literatura tenha deixado de desfrutar de criadores e
de público, dentro e fora da escola. Mas esses – criadores e público
– são encontráveis também em outras modalidades de gêneros
usuários da linguagem verbal, combinada essa ou não com música,
áudio, imagem, performance. Podem-se identificar tais gêneros:
21
- a renascida ficção fantástica (fantasy fiction), que, cultuada
desde o século XVIII, encontra acolhida entre o público adolescente,
que elege seus heróis entre bruxos, como Harry Potter, vampiros,
como Edward Cullen, protagonista da série Crepúsculo, ou
divergentes, como Tris, personagem da trilogia de Veronica Roth,
criaturas, todos e todas, de boa índole e, sobretudo jovens.
22
- linguagem própria, conhecida e dominada por seus pares,
segundo um código exclusivo;
23
a. a atualidade;
b. a permanente mutabilidade;
c. a vocação para o consumo;
d. a dependência da cumplicidade do público e do leitor;
e. a volatividade.
24
o fato de que à literatura – aquela que seus porta-vozes, como
autores ou entidades representativas (associações de escritores e de
professores, academias de letras, estabelecimentos educacionais,
a crítica literária), definem como tal – sobraram poucos lugares na
escola, bem como nos meios de comunicação de massa. Campanhas
de leitura ou de aquisição de livros para distribuição em sala de
aula, por mais necessárias que sejam, evidenciam, por sua parte,
quão pouco restou às artes verbais mesmo entre as camadas que
a consumiam com regularidade, menos ainda entre as que, tendo
algum tipo de acesso à nova organização da sociedade nacional, a
ignoravam ou até desdenhavam.
Referências
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nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua
portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. p. 20-21.
Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação,
s. d. [2015].
Base Nacional Comum Curricular. 2. ed. versão revista. Brasília:
Ministério da Educação, 2016.
25
Base Nacional Comum Curricular. Ensino Médio. Brasília: Ministério
da Educação, s. d. [2018]. Lei nº 5692, de 11 de agosto de 1971, Art. 4,
# 2. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692.
htm>. Acesso em: 06 set 2014.
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SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística general. Tradução, prólogo e
notas de Amado Alonso. Buenos Aires: Losada, 1969.
26