Você está na página 1de 10

a!.:.

/>
/

/?o
--^ ç-(( í,. ----;

Antonio
Candido

Coleção Espírito Crítico

Duas Cidades
Editora 34
6.A literatura
e a Íormação dohomem*

Nestapalestra,desejoapresentaralgumasvariaçõessobrea
fun@o humanizadorada literatura,isto é, sobrea capacidadeque
ela tem de confirmar a humanidade do homem. Para estefim,
começofocalizandorapidamente,nos estudosliterários,o con-
ceito de função, vista como o papel que a obra literária desem-
penhana sociedade.
Esteconceitosocia.lde funçãonão estámuito em voga,pois
as correntesmais modernasse preocupamsobretudocom o de
estrutura,cujo conhecimentoseria,teoricamente, optativoem
relaçãoa ele,se-aplicarmoso raciocíniofeito com referênciaà his-
tória. Em facedestaos estruturalistasoptâm, porque echamque
é possívelconhecera história az a estrutuÍa,mas não a história r
a estruture.Os dois enfoquesseriammutuamente exclusivos.
Que incompatibilidademetodológicapoderia existir entre
o estudoda estruturae o da fr:nção?O primeiro pode ser com-

* "A literaturae a formaçãodo homem" é o texto de uma conferênciapro-


nunciadana )O(lV ReuniãoAnual da SBPC (SaoPaulo,julho de 1972). Repro-
duzo-osegundoa versáopublicadaem Ciênciae Cuhura (n" 9, vol. 24, SáoPau-
lo, set.1972).(N. O.)
Tôxtos
deinterv€nção D ir Eç õos

parativamente mais estáticodo que o segundo,qu€evocariaceftas e a suafilnção num momento dado, e que poftânto acen am o
noçõesem cedeia,de cunho mais dinâmico, como: atuafo, pro- seucaráterde produto contingentemergulhadona história.
cesso,sucessão, história.Evocariaa idéia de pertinênciae de ade- Isto é dito paÍa iustificar a eÍìÍmaçãoinicial: que os estu-
quaçãoà finalidade;e daí bastariar- p*rã para chegarà idéia dos modernos de literatura se volnm mais paÍa a estrutura do
de vaÌor, posta enrre parêntesespelastendênciasestruturalishs. que para a função. Privadados seusapoiostredicionaismais só-
Mais ainda: a idéia de função provocâ não apenar uÍna cer- lidos (o estudo da gênese,a aferiçáo do valor, a relação com o
ta inclinação para o lado do valor, mas para o lado da pessoa; público), a noÉo de funÉo passade fato Por uma certa crise.
no caso,o escritor (queproduz a obra) e o leitor, coletivamente Seriapossível,no entanto, focaliála? É claro, desdeque não
o público (que recebeo seu impacto). De fato, quando falamos queiramossubstiruir um enfoque pelo outro. O enfoque estru-
em fun$o no domínio da literatura, pensamosimediatamente: tural (inclusivesob a modalidademais recente,conhecidacomo
l) em função da liteÍature como um todo; 2) em função de uma esrrururalismo) é responsávelpelo maior avenço que os esrudos
determinadaobra; 3) em funÉo do autor - rudo referido aos literfuiosconheceramem nossot€mpo. Mas vai ficando câdadia
receptores. mais claro que uma visão íntegra da literatura chegaráe conci-
Ora, uma característicado enfoqueestruturalé não apenas liar num todo explicativo coerentea noçáo de estrutura e e de
concenüar-sena obra tomada em si mesma(o que aliásocorria função, que aliás andaram curiosamentemisturadase mesmo
em outrasorientaçóesteóricasanteriores),masrelacionáJaa um semantiqrmenÌeconfundidasem certosmomentos da entroPo-
modelo vinual abstrato,que seriaa última instânciaheurística. logia inglesados anosde 1930 e 1940. E nós sabemosque a an-
Isto provém do desejode chegar a um conhecimento de tipo tropologia é, com a lingúística,uma dasgrandesfontesdo estru-
científico, que superao conhecimenro demasiadocontingente àa turalismo contemporâneo.
obra singular em proveito de tais modelosgenéricos, que .1" Voltando aospontos de referênciamencionadosacima: na
sesubordina e de que é uma manifestaçãopanicular; e"que por- medide em que-nosinteressaBmbém como experiênciahuma-
tanto a explicam.Eles não seriama-históricos,mas telveztrans- na, náo apenascomo produçãode obrasconsideradas Projeçóes,
históricos,porque possu€mgeneralidadee permanênciamuito ou melhor, transformeçõesde modelos profundos, a literatura
maiores,em rela$.o àsmanifestaçõesparticulares(obras),que pas_ despertainevitavelmenteo interessepeloselementoscontextuais.
sam para segundoplano como capacidadeexplicativa. Através da Tanto quanto a esúutura, elesnos dizem de perto, porque somos
mudançadasmanifestações panilularo, elo p..--.cem, como levadosa elespela preocupâçãocom e nossaidentidade e o nosso
sistemasbásicose como princípios de organização,escapandoaté destino,sem contar que a inteligênciada estruturadependeem
certo ponto à história,na medida em que sãomodelos;masinte- grandepane de sesabercomo o texto seformaaparrïrdo antex-
grando-senela, quando vistos em suasmanifesta@esparticulares. to, até constituir uma independênciadependente(sefor permi-
O ponto de visa estrutural consisteem ver asobrascom refe- tido o jogo de palavras). Mesmo que isto nos afastede uma visão
rênciaaosmodelosocultos, pondo pelo menosproviúria e metodi- científica,é difícil pôr de lado os problemasindividuais e sociais
camenteentre parênteses os elementosque indicam a suagênese oue dão lastro àsobrase as amarÍam eo mundo onde vivemos.

78 79
Textosde inteÍvenção Di r eç õ es

Digamos, então, parâ encerraresraintrodução: há no es- recentementerocorreu o boomdasmodalidadesligadasà comu-


tudo da obra literáriaum mom€nÌo analítico,se ouiseremde nicaçáopela imagem e à redefiniçãoda comunicaçáooral, pro-
cunho cienrífico.que precisadeixarem suspenso problemasre- piciada pela técnica: fita de cinema, radionovela, fotonovela,
lativos ao auÌor, âo valor, à atuaçâopsíquica e social, a fim de históriaem quadrinhos,telenovela. Isto, semfalar no bombar-
reforçar uma concentraçãonecessáriana obra como ob.jetode deio incessanteda publicidade,que nos assaltade manhã à noite,
conhecimento;e há um momento crítico, que indagasobrea va- apoiadaem elementosde ficção,de poesiae em geralda lingua-
lidade da obra e suafrrnçãocomo síntesee projeçâoda experiên- gem literária.
cia humana. Portanto,por via oral ou visual;sob formascurtase elemen-
Tendo assimdemarcadoos campos,vejamosalguma coisa tares,ou sob complexasformasextensas,a necessidade de ficção
sobrea literatura como força humanizadora,não como sisrema semanifestaa cadainstante;aliás,ninguém pode passarum dia
de obras.Como algoque exprimeo homem e depoisatuana pró- sem consumi-la,ainda que sob a forma de palpite na loteria,
pria formaçãodo homem. devaneio,construçãoideal ou anedota.E assimsejustifica o in-
teresse pelafunçáodessas formasde sistematizara fantasia,de que
^ i r ' r ^ a ô : ^\ \ â o a literatura é uma das modalidadesmais ricas.
Ir n ó" Ç ^ ^ I .s ' " ' - f
A fantasiaquasenunca é pura. Ela serefereconstantemen-
J5italóãi<q-
te a alguma realidade:fenômeno natural, paisagem,sentimen-
-f Um certo tipo de função psicológicaé ralveza primeira to, fato, desejode explicaçáo,costumes,problemashumanos,etc.
coisaque nos ocorrequando pensamosno papel da literatura. Eis por que surgea indagaçãosobre o vínculo entre fantasiae
A produção e fruiçáo destase baseiamnuma espéciede neces- realidade,que pode sewir de entrada para pensarnâ função da
sidadeuniversalde ficção e de fantasia,que decerto é coexren- literatura.
sivaao homem, pois apareceinvariavelmenteem suavida, como Sabemosqge um grandenúmero de mitos, lendase contos
indivíduo e como grupo, ao lado da satisfaçáodas necessidades sãoetiológicos,isto é, sãoum modo figurado ou fictício de ex-
mais elementares.E ísto ocorre no primitivo e no civilizado, na plicar o aparecimentoe a razãode serdo mundo físicoe da socie-
criança e no adulto, no instruído e no analfabeto.A literatura dade. Por issohá uma relaçãocuriosaentre a imaginaçãoexpli-
propriamentedita é uma dasmodalidadesque funcionam como cativa,que é a do cientista,e a imaginaçãofantástica,ou ficcional,
resposmâ essânecessidade universal,cujasformasmais humildes ou poética, que é a do artista e do escritor. Haveria pontos de
e espontâneasde satisfaçãotalvezsejamcoisascomo a anedora, contato entre ambas?A respostapode seruma especulação late-
a adivinha, o trocadilho, o rifão. Em nível complexo surgemâs ral no problema da função, que nos ocupa.
narrativaspopulares,os cantos folclóricos, as lendas,os mitos. Interessadoem estudara formação do espírito científico,
No nossociclo de civilizaçío,tudo isto culminou de certo modo GastonBachelardprocurouinvestigarcomo eleia surgindoduma
nas formas impressas,divulgadaspelo livro, o folheto, o jornal, espéciede progressivadepuração,a partir dâ gangaimaginativa
a revista:poema, conto, romance, narrativa romanceada.Mais do devaneio- que seriaum estadode passividadeintelectuala

80 81
Tex to sd e in teÍv e nc ão Di r eç õ e s

seranulado.Mas aospoucoso devaneiolhe foi aparecendo,não -l Isto levaa perguntar:a literaturatem uma funçáoformativa
âpenascomo etapainevitável,ou solo comum a partir do qual de tipo educacional?
sebifurcam reflexãocientíficae criaçãopoética,masa condição Sabemosque a instruçãodos paísescivilizadossempres€
primária de uma atividadeespiritual legítìma.O devaneioseria baseounasletras.Daí o elo entreformaçãodo homem, huma-
o caminho da verdadeiraimaginação,que não se alimenta dos nismo,letrashumanase o estudoda línguae da literatura.To-
resíduosda percepçáoe portanro não é uma espéciede restoda madasem si mesmas,seriamasletrashumanizadoras,do ponto
realidade;masestabeÌece sériesautônomascoerentes,a partir dos de vistaeducacional?
estímulosda realidade.Uma imaginação criad,orapara alëm, e Sejacomo for, a sua função educativaé muito mais com-
não uma imaginaçãoreprodutivaao lado, parafaÌar como ele. plexado que pressupóeum ponto de vista estritamentepedagó-
O devaneio (rêuerie)se incorpora à imaginaçãopoética e gico. A própria açãoque exercenas camadasprofundas afastaa
acabana criaçáode semelhantesimagens;mas o seu ponto de noção convencionalde uma atividade delimitada e dirigida se-
partida é a reâlidâdesensíveldo mundo, ao qual seliga assimne- gundo os requisitosdas normas vigentes.A literatva podefor-
cessariamente. ParaBachelard,estaespéciede cargainicial da ma\ mas náo segundo a pedagogiaoficial, que costuma vê-la
imaginaçáoé formadapelosquatro elementosda tradiçãoeleática; ideologicamentecomo um veículo da tríade famosa- o Ver-
os simplesdo mundo, segundoa visão de tantos sécuÌos:terra, dadeiro,o Bom, o Belo,definidosconformeos interesses dosgru-
água,ar e fogo. pos dominantes,para reforço da sua concepçáode vida. Longe
Independentede aceitarmosou não o ponto de vista de de serum apêndiceda instruçãomoral e cívica(estaapoteoseme-
Bachelard,a referênciaa eleservenestecontextosobrerudocomo rreira do óbvio, novamenteem grandevoga),ela agecom o im-
amostrado laço entre imaginaçãoliterária e realidadeconcreta pactoindiscriminadoda própriavida e educacomo ela- com
do mundo. Servepara ilustrar em profundidadea função in- ialtos e baixos,luzese sombras.Daí asatitudesambivalentesque
tegradorae transformadorada criaçãoliterária com relaçãoaos suscitanos moralistase nos educadores,ao mesmo tempo fasci-
seuspontos de referênciana realidade. nadospela sua força humanizadorae temerososda sua indiscri-
Ao mesmo tempo, â evocaçãodessaimpregnaçãoprofun- minada riqueza.E daí as duasatitudestradicionaisque elesde-
da mostra como ascriaçóesficcionaise poéticaspodem atuar de senvolveram:expulsá-lacomo lonte de perversãoe subversão,ou
modo subconsciente e inconsciente,operandouma espéciede tentar acomodá-lana bitola ideológicados catecismos(inclusi-
inculcamentoque não percebemos.Quero dizer que ascamadas ve fazendoediçóesexpurgadasde obras-primas,como asdeno-
profundasda nossapersonaìidadepodem sofrerum bombardeio minadasad usumDelphinì, destinadasao filho de Luís XJ\|.
poderosodasobrasque lemose que atuamde maneiraque náo Dado que a literatura, como a vida, ensinana medida em
podemosavaliar.Talvez os contos populares,ashistorietasilus- que âtuâ com toda a suagama,é artificial qu€Ìer que ela funcio-
tradas,os romancespoliciais ou de capa-e-espada, asfitas de ci- ne como os mânuaisde virtude e boa conduta.E a sociedadenão
nema, atuem tanto quanto a escolae a família na formação de pode senãoescolhero que em cadamomento lhe pareceadapta-
uma criancae de um adolescente do aosseusfins, enfrentandoainda assimos mais curiosospara-

82
Textosde intervenção D i r eç ões

doxos- pois mesmo asobrasconsideradasindispensáveis para (segundoos padróesoficiais) e a sua poderosaforça indiscrimi-
a formaçáo do moço trazem freqüentementeo que âs conven- nada de iniciação na vida, com uma variadacomplexidadenem
çõesdesejariambanir. Aliás, essaespéciede inevitávelcontraban- sempredesejadapeloseducadores.Ela náocorrompenem edifc4
do é um dos meios por que o jovem entra em contato com reâ- portânto; mas,tr:ìzendolivrementeem si o que chamamoso bem
lidadesque se tenciona escamotear-lhe. e o que chamamoso mal, humanizaem sentido profundo, por-
Vejamos um exemplo apenas.Todos sabemque â ârte e a que faz viver.
literatura têm um forte componentesexual,mais ou menosapa-
rente em grandeparte dos seusprodutos. E que age,porranro,
como excitanteda imaginaçãoerótica.Sendoassim,é paradoxal l
que uma sociedadecomo a cristá, baseadana repressãodo sexo,
tenhausadoasobrasliteráriasnasescolas, como instrumentoedu- Chegamosagoraao ponto mais complicado.Além dasfun-
cativo. Basta lembrar, na veneráveltradiçãoclássica,textoscomo çõesmencionadas(isto é: satisfazerà necessidadeuniversal de
a llíadn, o Canto IY da Eneida,o Canto IX dosLusíadas,os ìdílìos fantasiae contribuir para a formaçãoda personalidade),teria a
de Teócrito, ospoemasapaixonadosde Catulo, osversosprovo- literaturauma funçãode conhecimentodo mundo e do ser?Por
cantesde Ovídio - tudo lido, traduzido,comentadoou explica- outraspalavras:o fato de consistir na construçãode obrasautô-
do em aula. Esta situaçáocuriosachegou até os nossosdias de nomas,com estruturaespecífica e filia$.o a modelosduráveis,lhe
costumesmenosrígidos,e vive gerandobrigasentrepaise profes- dá um significado também específico,que seesgotaem si mes-
sores,por causada leitura de Aluísio Azevedoou JorgeAmado. I mo, ou lhe permite representarde maneiracognitiva, ou suges-
O revestimentoideológico de um autor pode dar lugar a tiva, a realidadedo espírito, da sociedade,da natureza?
contradiçõesrealmenteinteressantes - os poderesda socieda- Muitas correntesestéticâs,inclusiv€asde inspiraçãomar-
de ficando inibidos de restringir a leitura de textosque deveriam xista,entendemque â literaturaé sobretudouma forma de conhe-
ser banidos segundoos seuspadrôes,mâs que peÍtencema um cimento, mais do que uma forma de expressão e uma construção
autor ou a uma obra que, por outro lado, reforçamestespadróes. de objetossemiologicamente autônomos.Sabemosque astrêscoi-
Nada mais significativo do que a voga, até há poucos anos, de sassãoverdadeiras; mas o problema é determinar qual o âspecto
Olavo Bilac, poetaque em muitos versosâpresentavao sexosob dominante e mais característicoda produçãoliterária. Sem pro-
aspectosbastantecrus, perturbando a paz dos ginasianos,cujos curar decidir, limitemo-nos a registrarastrêsposiçõese admitir
mestresnão ousavamtodavia proscrevê-losporque setratavade que a obra literária significaum tipo de elaboraçãodassugestões
um escritorde conotaçõespatrióticasacentuadas- pregadorde da personalidadee do mundo que possuiautonomiade significa-
civismo e do serviçomilitar, autor de obrasdidáticasadotadase do; masque estaautonomia não a desligadassuasfontesde ins-
cheiasde "boa doutrina". piração no real, nem anula a sua capacidadede atuar sobreele.
Paradoxos,portanto, de todo lado, mostrando o conflito Isto posto, podemosabordaro problema da função da lite-
entre a idéia convencionalde uma literatura olueeleuae edifrca râturâcomo reoresentacão de uma dadarealidadesociale huma-

85
Ìextos de intervenção D i r eçõe s

na, que faculta maior inteligibilidade com relaçãoa estarealida- tema as culturas rústicasmais ou menos à margem da cultura I
de. Para isso,vejamosum único exemplo de relaçãodas obras urbana.O que aconrece é que elesevai modificandoe adaptan-
literáriascom a realidadeconcreta:o regionalismobrasileiro,que do. superandoasformasmaisgrosseiras até dar a impressao de I
por definição é cheio de realidadedocumentária. na gener ali dade
q u e s e di ss ol veu dos tem asuni ver s ai s.
c om o e J
Trata-sede um casoprivilegiado para estudar o papel da normal em toda obra bem-feita. E pode mesmo chegarà etapaI
?'jnÌ\r1iteraturanum paísem formaçáo,que procurâ â suâidentidade onde os temasrurais sãotratadoscom um requinte qr,. .- g.-
f
ll1,tw'ts* da variaçáodostemase da fixaçãoda linguagem,oscilando ral só é dispensado âostemâsurbanos,como é o casode Gui-llüR-
para isto entre a adesãoaos modelos europeuse a pesquisade maráesRosa,a cujo propósitoseriacabivelfalarnum super-Re-"
| 6
drc",.,t. aspectoslocais.O Arcadismo, no séculoXVIII, foi uma espécie gionalismo.Mas ainda aí estamosdianrede uma variedadedrl
5u1."-
+ de identificaçãocom o mundo europeu atravésdo seu homem
rústico idealizadona tradição clássica.O Indianismo, já no sé-
malsinadacorrente. l] o,r,.,n,-
Fechandoo parêntese,voltemos ao assuntocom uma con] "-"í{ tW'
culo XIX, foi uma identificaçãocom o mundo não-europeu,pela sideraçãode ordem geral:o Regionalismoestabelece umâ curio- tq."a,jìÍ*
ü J
buscade um homem rústico americanoigualmente idealizado. sa tensáoentre tema e linguagem. O tema rústico puxa para os{
Ì i .. . .' \ \
O Regionalismo,que o sucedeue seestendeaté os nossosdias, aspectosexóticose pitorescose, atravésdeles,para uma Ìingua-l 1.
foi uma busca do tipicamentebrasileiroatravésdas formas de *--^
gem inculta cheiade peculiaridadeslocais;masa convençãonor- i,
enconrro.surgidas do conratoentreo europeue o meioamerica- Lal da literatura,baseadano postuladoda inteligibilidaá", p,.,t, iL'^i '5"""
no. Ao mesmotempo documentárioe idealizador,forneceu ele- parauma linguagemculta e mesmoacadêmica.O Regionalismo . I ,
mentosparaa auto-identificaçãodo homem brasileiroe também deveestabeleceruma relaçãoadequadaentre os dois aspectos,e l'À!Ì'1-r-
para uma sériede projeçõesideais.Nesta palestra,o intuito é Í'ì-
por issosetorna um instrumento poderosode transformaçáoda i/ú4tÀÀ
ll't"o
mostrâr que a suafunção socialfoi ao mesmo tempo humaniza- língua e de revelaçãoe autoconsciênciado país; mas pod. ,., '
dora e aÌienadora,conforme o asDectoou o autor considerado. também fator de artificialidadena língua e d. no plr-
"lien"çaÁ "rç)*;r,;
Mas antesde ir além,um parênt€se paradizerquehoje,tanto no do conhecimentodo país.As duascoisasocorrem nasdiver- ..^ n4.
vAÍ:íIz,tr'',.,i,ica brasileiraquanto na latino-americana,a palavra sasfasesdo Regionalismobrasileiro,e eventualmenteem obras i".ís
lr',:,01,\'f ln" de or-
' '\ ', dem é
ldem "morte ao Resionalismo".
Regionalismo",ouanto
quanto ao presente,
Dresente.e menos- diferentesdo mesmo autor. Tomemos como exemplo dois au-
t,
À' I
aC
pelo que iôi, quanto ao passado.Estaatitude é criticamente toresda mesmafase,que seconhecerame s€estimaram:CoeÌho
uttÍ;í lprezo
o sea tomârmoscomo um "basta!"à tiraniado pitoresco,que Neto (1864-1934)e SimõesLopesNeto (1865-1916).
;rrr,í /boa
ì" lvem a serafrnaÌde contasuma literaturade exportaçáoe exotrsmo Ambos escreveramnum momento de grandevoga da lite--
fácil. Mas é forçoso convir que, justamenteporque a literatura ratura regionalista,quando ela parecia mais autêntica do que
desempenhafunçõesna vida da sociedade,não dependeapenas outrasmodalidades,porque seocupavade tipos humanos, pai-
opinião crítica que o Regionalismoexistaou deixede existir. sagense costumesconsideradostipicamentebrasileiros.No con-
existiu,existee existiráenquanto houver condiçõescomo as .junto, foi uma tendênciafalsa,correspondendoa modalidades
'
, -.,,i,,, ldo subdesenvolvimento,que forçam o escritora focalizarcomo superficiaisde nacionalismo,baseadanuma distânciainsupera-
r-.iu$ü" ì^
-.\Íì. '
87
:-'l'n.\r'*"
Textosde intervenção D ir eçõe s

da entre o escritor e o seu peÍsonagem,que ficava reduzido ao


nível da curiosidade e do pitoresco. Não obstante, alguns es- brasquietas.O caboclo lançouosolhosaocéuestrelado onde
critores conseguiramposiçãobem mais humanizadora.Os dois a lua brilhavae, passandoo cajadopelascostas,à alturados
exemplosabaixoprocuram sugeriras duasposições. ombros, vergouosbraços sobreeledeixando asmãospendentes
O Regionalismode Coelho Neto (cuia obra sedesenvolveu e pôs-sea caminho,precedido pelocãoqueseguia como fo-
na maior pârreem ourrosrumos)mosrraa dualidadeesrilísrica cinhobaixo,emzigue-zagues, a ervae o pó.
a fariscar
predominanteentreos regionalistas, que escreviamcomo homens A primeira coiseque se nota nesÌecentauro estilÍsticoé a
cultos, nos momentos de discursoindireto; e procurevam nos injustificáveldualidadede notaçãoda faÌa,que não pode serex-
momenrosde discursodirero reproduzirnão apenaso vocabu- plicada senãopor motivos de ideologia.Do contrário, por que
lário e a sintaxe,mas o próprio aspecto6nico da linguagemdo tenrârume notaÉo fonéticarigorosaparâa falado rústicoe acei-
homem rúsrico. Uma espéciede estilo esquizofrênico,puxando tar para a do nâÌrador culto o critério apÍoximativo noÍmâÌ? Com
o texto para dois ladose mostrando em grau máximo o disran- efeito, supondo no narradorCoelho Neto uma performancefô-
ciamenro em que se situava o homem da cidade, como se ele nica do tipo da que é correnteentre aspessoascultasdo Rio de
estivesse querendomarcarpela dualidadede discursosa diferen-
Janeiro e nes cidadesdo litoral do Norte do país,o lógico seria
ça de naturezae de posiçáoque o separavado objeto exóticoque (levandoo critério adotadoaté às últimas conseqüências) que â
é o seu personagem. escrim se epresentasse assim:
O conto "Mandoví", de seu livro SrrZa, pode ser romado
como casorípicodessaconcepçãoalienadora.Vejamosum trecho: - Não vô?ocêsabi?poismió. Dácámaizumadirru-
badaaí módiufriu, genti.Unduchvaqueiruch
passôlhocópo
- Nãovou?Ocêsabitpoismió. Dá cámaisumader_ i Mandovíbebeucomgôchto,chdcando a línguapralambê
rubadaaí modiu friu, genri.Um dosvaqueiros passouJhe o ruchbigodichetc.
copoeMandovíbebeucomgosto,esdcando alínguaparalam_
berosbigodes. Té aminha, genti. Isto nãopoderiaocorrer,porquenâ verdadeo procedimento
- Adeu! exemplificâdocom o texto de Coelho Neto é uma técnicaideo-
- Ehl Tigre...
livanta.Coma ponrado pé espremeu lógica inconscientepâre aumentara distânciaerudita do autor,
o
ventrede um cãonegroqueselevanrou que quer ficar com o requinte gramaticale acadêmico,e confi-
ligeiroe, rcbolindo-
se,a acenarcoma cauda,pôs-se neÍ o personagemrústico, por meio de um Íidículo paruá pseu-
a mirálo rosnando. Bamu!
Adeu,genti. do-realista,no nível infra-humano dos objetospitorescos,exó-
E, da porta,pararir, bradou:- Dá um rombunesse ticos para o homem culto da cidade.Digo pseudo-realista, por-
queixadacomedô,genti. que na verdadeo que ocorre é uma dualidadede critérios.Com
Foraa noiteia esplêndida, frescae de lua.A estrada, efeito, ao narrador ou peÍsonagemcultos, de classesuperior, é
muitobranca,insinuava-sepeloarvoredo reservadaa integÍidade do discurso, que setraduz pela gÍafia con-
e perdia-senassom_
vencional, indicadora da norma culte. Nos livros regionalistâs,

88 89
Textosde intervenção D i r eç ões
I

{
I
o homem de posiçãosocialmaiselevadanunca rem soteeue,não telado numa terceirapessoaalheia ao mundo ficcional, que hi-
apresenra peculiaridadesde pronúncia,nãodeformaaspalavras, pertrofia o ângulo do narrador culto) atenuaao máximo o hiaro
que, na sueboca,assumemo estadoidealde dicionário. entre criador e criatura, dissolvendode certo modo o homem
euan-
do, ao contrário, marcao desvioda norma no homem rural oo_ culto no homem rústico. Este deixa de ser um ente separadoe
Ì
bre,o escrirordá ao nívelfônico um aspecroquesererarológico,
que contamina todo o discursoe situa o emissorcomo um serà
I estranho,que o homem culto contempla,para tornar-seum ho-
mem realmentehumano, cujo contato humaniza o leitor.
pafte, um espetáculopitorescocomo asárvorese os bichos, fei-
to paracontempla$o ou divenimentodo homem culto, que deste Veja-seo final do conto 'Contrabandista":
modo sesenreconfirmadona suasuperioridade. Em ralscasos,
o Regionalismoé uma falsaadmissãodo homem rural ao uni_ Erajá lusco-fusco.
Pegaram
a acender
asluzes.
versodos valoreséticose estéticos. E nessemesmorempoparavano rerreiroa comitiva;mas
No entanto,o seupropósito conscienteerao contrário. Ele num silêncio,tudo.
seepresentoucomo um humanismo,como uma recuDeracão E o mesmosilênciofoi fechandotodasasbocase abrin-
do
homem posto à margem;e de fato pode serassim,qr.lrrrdã d.- do todosos olhos.
"
libera$o temática,isto é, a decisãode escolhere rrararcomo rema Enrãovimos osda comitiva desceremde um cavaloo cor-
literário o homem rústico, é seguidade uma visão humana au- po entreguede um homem,aindade palaenfiado...
têntica, que evite o rratamentoalienantedos personagens.Esta Ninguém perguntounada,ninguéminformou de nada;
visãosetraduzpelo encontro de uma soluçãolingüísticaadequa_ todosentenderam
tudo...rquea festaestava
acabada
e a tris-
da; e dependendodelaé que o Regionalismopode rer um senri- tezacomeçada...
do humanizadorou um sentido reificador.Dito de outro modo: frvou-se o corpo pra salada mesa,parao sofáenfeita-
pode firncionarcomo representação do, queia sero trono dosnoivos.Entãoum doschegados
dise:
humanizadaou como repre-
senração desumanizada - A guardanosdeuem cima...tomouoscargueiros..,
do homem dasculturasrurais.
Contrastandocom o casonegativode Coelho Neto, veja- E mataramo capitão,porque ele avançousozinhopra mula
mos o casopositivo de SimóesLopesNeto - escritor cuja fic_ ponteirae suspendeuum pacoteque vinha solto...e ainda o
amarrouno corpo...Aí foi que o crivaramde balas.,.parado...
çáo, quantitativamentepaÍca, mas qualitativamenteelevada,se
desenvolveutoda dentro do Regionalismo. Os ordinários!...Tivemosque brigar,pra tomar o corpo!
SimóesLopes Neto começapor asseguraÍuma identifica- A sia-donamãeda noivalevantouo balandraudoJango
ção máxima com o universoda cultura rústica,adotando como Jorgee desamarrouo embrulho;e abriu-o.
enfoque narrativo a primeira pessoade um narrador rústico, o Era o vestidobrancoda filha, os saparosbralcos, o véu
velho cabo Blau Nunes, que sesitua dentrod,amatériâ narÍada, branco,asfloresde laranjeira...
e não raro do próprio enredo, como uma espéciede Marlowe Tudo numaplastadade
sangue...
tudo manchadode ver-
gaúcho.Esramediação(nuncausadapor Coelho Neto, encas- melho, toda a alvuradaquelascoisasbonitascomo que bor-

90 9l
Textos
deintêrvencão

de feitiosestram-
dadade colorado,num padrãocsquisito,
bólicos...
comofloresdecardosolferimesmaeadas a casco
de
bagud!...

Entãorompeuo choronacasatoda...

Com a utilizaçãodo narrador fictício fica evitedae situa-


fo de dualidade,porque não há diferençade cultura entrequem
nerre e quem é ob.jetoda nerrative.No entanto, aí estáum rit-
mo diferente,estãoceÍtos vocábulos reveladorese ligeiras de-
formaçóesprosódicas,construindo uma fala gaúchaestilizadae
convincente,mas ao mesmo tempo liteÍária, esteticamentel,á-
lida. Para o seu narrador Blau Nunes, o eutor dnhâ dois extre-
mos possíveis:ou deformar as palavrase grafar toda a narrativa
segundoa falsaconvençáofonética usual em nossoRegionalis-
mo, de que vimos um exemplo em Coelho Neto; ou adotar um
estilo castiçoregistradosegundoasconvençóesda norma culta.
SimõesLopesNeto rejeitou totalmenteo primeiro e adâptouse-
biamente o segundo,conseguindoum nível muito eficientede
estilizâÉo. Greçâsa isto, o universodo homem rútico é trazido
paraa esferado civilizado.O leitor, niveladoao personagempela
comunidade do meio expressivo,se senteparticipante de uma
humanidadeque é a sua e, destemodo, pronto para incorpoÍâÌ
à sua experiênciahumana mais profunda o que o escritor lhe
oferececomo visão da realidade.

92

Você também pode gostar