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Romance Policial
Um fenômeno urbano
O presente artigo busca analisar o papel da This study analyses the role of the urban
cidade nas narrativas policiais, tendo por space in detective narratives, based on the
base os pressupostos do romance policial classic detective story purposes, the
clássico, o cenário da literatura brasileira scenery of contemporary brazilian literature
contemporânea e a polêmica discussão acerca and the polemical discussion about the
da literatura dita pós-moderna. so-called postmodern literature.
Palavras-chave: romance policial, cidade, pós- Keywords: detective story, city,
moderno. postmodern.
E
m sua A teoria do romance , 1 Também Walter Benjamin, em seu conhe-
Lukács estuda a perda do senti- cido ensaio O narrador, 2 atesta o declínio
do imanente em que se basea- da palavra narrativa na sociedade moder-
va a epopéia helênica e o aparecimento na, vinculando-o à crise de um tipo de
do romance como forma artística da frag- experiência partilhada que dá lugar à
mentária era moderna. Quando os laços solidão e à melancolia, característicos do
que vinculam o herói à comunidade per- sujeito moderno.
dem sua condição de essência Se tais transformações e suas conseqüên-
inquestionável e o indivíduo faz emergir cias já não eram, por si sós, superfici-
sua subjetividade problemática, estão da- ais, a vivência presente se faz acompa-
das as condições para a solidão do ho- nhar de outras tantas mudanças que,
mem moderno que vai estruturar – ainda quer vistas como uma continuidade dos
para Lukács – o próprio romance como dilemas modernos ou como uma forma
uma das configurações históricas da arte. de superação destes, imprimem sentidos
O
der melhor o problema. Com o inegável
predomínio da cultura urbana e industri- romance policial, em sua ori-
alizada na construção da experiência so- gem, está intimamente relaci-
cial de grande parte da humanidade na onado ao romance de aventu-
era moderna, o flerte da palavra artísti- ras, como afirma Paulo de Medeiros e
ca com os chamados gêneros da cultura Albuquerque, 3 principal estudioso do gê-
de massa afirma-se como um fenômeno nero no Brasil. Neste, assinala-se a cons-
que, se não é estritamente novo, assu- tante luta entre forças antagônicas, ex-
me status próprio e aponta um importan- pressando o bem e o mal. Naquele, ob-
te ângulo para a discussão. serva-se a reincidência de dois elemen-
tos centrais: o criminoso, representando
De fato, se dadas modalidades de escri-
o mal, e o detetive, representando o bem.
ta proliferaram ou se consolidaram na
lógica do mercado, do consumo, é fato O que possibilitou a delimitação do que
também que a apropriação desses gêne- hoje se denomina romance policial foi o
ros por artistas e intelectuais da enver- advento do raciocínio e da lógica, e seu
gadura de Umberto Eco – que alia erudi- conseqüente emprego no desvelamento
ção à cultura de massa no singular ro- dos mistérios. Apesar das incursões
uma relação poética entre o leitor e tem a ver com as massas, mas pare-
narrador; o mundo com seu caráter ain- ce que de modo diferente das fisio-
da selvagem e ameaçador (por mais con- logias. Pouco lhe importa a determi-
nos, pode, com muita pertinência, ser a natureza humana. [...] Essa indife-
homem nas cidades – para o crítico ale- repugnante e ofensivo quanto mais
mão, verdadeiras ruínas modernas apri- esses indivíduos se comprimem num
N
algo realmente singular. Essa concen-
ão se pode dizer que, no Bra-
tração colossal, esse amontoado de
sil, há uma tradição de se pro-
dois milhões e meio de seres huma-
duzir romance policial, como
nos num único ponto centuplicou a
sempre houve nos Estados Unidos e na
força desses dois milhões e meio...
Europa. Há, contudo, nas últimas déca-
Mas o sacrifício que isso custou só
das, uma recorrência do gênero e, em
mais tarde se descobre. Quando se
todas as experiências pesquisadas, ob-
vagou alguns dias pelas calçadas [...]
serva-se o mesmo sucesso de público
só então se percebe que esses lon-
alcançado por correlatos estrangeiros.
drinos tiveram de sacrificar a melhor
parte de sua humanidade para reali- Quase cem anos depois de Edgar Allan
zar todos os prodígios da civilização Poe, a ficção policial brasileira foi lançada
[...]. O próprio tumulto das ruas tem da mesma forma, em folhetins. Precisa-
algo de repugnante, algo que revolta mente em 20 de março de 1920, iniciou-
al, escrito por Coelho Neto, Afrânio Pei- por uma questão de honra ou por-
xoto, Viriato Correia e Medeiros de que não queira que essa pessoa exis-
Albuquerque. Para se ter idéia do suces- ta, pode matá-la certamente, segura-
so obtido, ao virar livro, em 1928, três mente, sem deixar nenhum vestígio
edições já haviam sido publicadas, trans- do seu ato, e sem levantar a menor
for mando-se, à época, num best-seller , suspeita...
sidera que o Brasil, por condições espe- por esse tipo de narrativa parece confir-
cíficas de suas grandes cidades, tornou- mar-se quando se verificam iniciativas
se terreno fértil para uma dada modali- como a de uma grande editora que re-
dade de literatura policial: aquela que se centemente lançou uma série, que deve-
baseia em crimes reais, o que na época rá ter vinte títulos, de romances policiais
já se delineava como um fenômeno as- escritos por autoras brasileiras que são
sustador. estreantes no gênero.
ria brasileira da década de 1980 em di- mos para o bar Amarelinho, na esquina
sobressai já no título. Faz-se uma alusão [...] Muitos anos antes de Cristo ha-
apriorística a Hegel, que perde comple- via na Grécia um poeta que dizia: “te-
tamente o referencial ao longo do texto, nho uma grande arte: eu firo dura-
pois o que se depreende da leitura é exa- mente aqueles que me ferem. Minha
tamente a inviabilidade da chamada gran- arte é maior ainda: eu amo aqueles
de arte e dos modelos tradicionais, numa que me amam”. 18
época em que as pessoas estão
Os trechos citados atestam a
“empilhadas nos edifícios”, e se valem
banalização, a dessacralização da obra
dos critérios de eficiência, rapidez e
de arte que o autor opera. Afinal, o que
praticidade.
é a grande arte na contemporaneidade?
O título da primeira parte do romance Esse é o questionamento subjacente ao
constitui um índice da violência e da in- romance de Rubem Fonseca, que equi-
triga policial que vai atravessar toda a para a arte a um ofício qualquer, ressal-
história: PERCOR. Trata-se de uma sigla, tando sua precariedade em um mundo
conforme elucida o próprio narrador pos- que já fora identificado como o da crise
Assim, A grande arte não se deixa escra- de seus livros se tornaram best-sellers
vizar pelas normas mais fechadas do gê- (a exemplo de Vastas emoções e pensa-
zar a expressão de Umberto Eco, “iludir sos de literatura também. Tal retomada
o leitor ingênuo”, que se demonstra sem- suscita o debate acerca da arte na pós-
culpa” e, para isso, precisa entrar no la- Ocupando lugar de destaque nos meios
birinto: “Ironia, jogo metalingüístico, intelectuais, a polêmica em torno da exis-
enunciação elevada ao quadrado. Portan- tência ou não dos tempos pós-modernos
to, com o moderno, quem não entende encontra defensores conceituados, quer
não pode aceitá-lo, ao passo que, com o de uma posição, quer de outra. Segundo
pós-moderno, é possível até não enten- Sérgio Paulo Rouanet, 23 a discussão ori-
der o jogo e levar as coisas a sério. O gina-se da constatação generalizada de
que constitui a qualidade (o risco) da iro- que a modernidade, tal como a compre-
nia. Existe sempre quem toma o discur- ende Weber, 24 passa por alterações sig-
so irônico como se fosse sério”. 21
nificativas. O problema está em se enca-
rar tais alterações como uma verdadeira
Também entre os críticos brasileiros, não
ruptura dos parâmetros modernos, o que
passa despercebida essa intencionalidade
configuraria a pós-modernidade nas es-
de enfrentar as questões contemporâne-
feras da sociedade e da cultura; ou ape-
as na obra de Rubem Fonseca: “Essa
nas como uma “consciência da ruptura”,
postura dialética e cínica da arte que fin-
ou seja, uma revisão da modernidade
ge não ser arte para melhor ser é a gran-
que, feita com suas próprias armas, não
de via de Rubem Fonseca. [...] É esse o
chegaria a romper com seus principais
jogo. Ora simulacro da obra de arte, ora
elementos definidores.
essência artística historicamente possível,
não se pode negar a esse romance de Essa arte está, sem dúvida, sob a influ-
Rubem Fonseca o título de Grande ência das manifestações concretas do que
ras; se, para Aristóteles, 30 é próprio ato arte de ruptura tem de transitar por dife-
criador; e se, na modernidade, assumiu rentes espaços de recepção. Assim, a li-
uma função crítica e criadora, exercen- teratura pós-moderna é capaz de propi-
do um papel de “negação do modo de ser ciar níveis de leitura variados, que vão
bur guês” 31
– segundo Walter Benjamin, desde o simples prazer de fruir uma his-
identificado com a “perda da aura”, fruto tória bem contada, até a reflexão
de uma série de transformações no cam- problematizadora de questões inerentes
po da estética e do próprio período his- à compreensão do mundo e à própria
tórico; nos “tempos pós-modernos”, essa escrita literária. Estariam apagadas, des-
questão se torna mais complexa, visto sa forma, as fronteiras entre cultura eru-
que, como se disse, já se superou artis- dita e cultura de massas.
ticamente o exercício da paródia (toma-
A combinação das técnicas policiais com
da aqui como símbolo do projeto estéti-
o mergulho profundo na criminalidade
co da modernidade, em geral, e do mo-
urbana, além de promover um diálogo
dernismo, em particular), e os impasses
com os preceitos da mencionada pós-
colocados para a arte chegam até mes-
modernidade ou modernidade tardia, in-
mo a colocá-la em xeque.
dica a possível quebra de um padrão, de
Configura-se, então, uma auto- uma expectativa do leitor de identificar
referencialidade da literatura dita pós- na literatura o sublime . Trata-se, portan-
moderna, que se manifesta quer na rela- to, de se despojar do saudosismo em
ção com sua tradição, quer no privilégio relação às grandes obras , capazes de
concedido à linguagem. Tal privilégio, resgatar o papel de representação de (su-
oriundo, em grande parte, da consciên- postos) valores essenciais, que outrora
cia de que agora, mais do que nunca, o coubera à esfera artística.
real e o autêntico são, na verdade, cons-
A aceitação dessa idéia implica também
truções discursivas, faz com que a arte
o abandono dos preconceitos em relação
literária se ocupe mais de si mesma que
às produções que, via de regra, foram
do mundo circundante, o que, entretan-
marginalizadas pela tradição da cultura
to, não conduz ao hermetismo da poéti-
erudita. Elas, na verdade, já se transfor-
ca modernista.
maram em dados inalienáveis da cultura
De fato, uma das características mais ocidental e, dessa forma, compõem um
ressaltadas pelos defensores do pós-mo- considerável arsenal, para o artista que
derno, é justamente a capacidade que a busca sobreviver em meio a tal sociedade.
N O T A S
1. Georg Lukács, A teoria do romance : um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da
grande épica, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000.
2. Walter Benjamin, O narrador, In: Walter Benjamin , Coleção Os pensadores , São Paulo,
Abril Cultural, 1975.
3. Paulo de Medeiros e Albuquerque, O mundo emocionante do romance policial , Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1979, p. 2.
4. Edgar Allan Poe, Ficção completa, poesia e ensaio , Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1981,
p. 50.
5. Detetive das narrativas policiais de Edgar Allan Poe.
6. Apud Boileau-Narcejac, O romance policial , São Paulo, Ática, 1991, p. 20.
7. ibidem, p. 21.
8. Walter Benjamin, Obras escolhidas , v. III, São Paulo, Brasiliense, 1989.
9. ibidem, p. 38.
10. Apud Walter Benjamin, Obras escolhidas , op. cit., p. 54.
11. Paulo de Medeiros e Albuquerque, op. cit., p. 205.
12. ibidem, p. 176.
13. ibidem, p. 208-209.
14. ibidem, p. 135.
15. ibidem, p. 138.
16. ibidem, p. 78.
17. ibidem, p. 7.
18. ibidem, p. 114.
19. ibidem, p. 288.
20. ibidem, p. 41.
21. Umberto Eco, Pós-escrito a O nome da Rosa , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
22. Sônia Salomão Khéde, Os preferidos do público : os gêneros de literatura de massas,
Petrópolis, Vozes, 1987.
23. Sérgio Paulo Rouanet, A verdade e a ilusão do pós-moderno, Revista do Brasil , Rio de
Janeiro, Secretaria Municipal de Ciência e Cultura, 1986, p. 28-53.
24. Para Weber, “a moder nidade é o produto do processo de racionalização que ocorreu no
Ocidente, desde o final do século XVIII e que implicou a modernização da sociedade, e
a modernização da cultura”. Apud Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p. 30.
25. idem.
26. F. Jameson, Pós-moder nidade e sociedade de consumo, Novos Estudos CEBRAP , São
Paulo, n. 12, jun. 1985, p. 16-26.
27. idem.
28. Umberto Eco, op. cit., p. 50.
29. Platão, livros III, VI, VII e X.
30. Aristóteles, Poética, In: Aristóteles , Coleção Os pensadores , São Paulo, Abril Cultural,
1973.
31. Lúcia Helena, Totens e tabus da modernidade brasileira, Tempo Brasileiro , Niteroi, Eduff,
1985, p. 203-206.