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R V O

Adriana Maria Almeida de Freitas


Doutoranda em Literatura Comparada pela UERJ. Professora
Assistente do Instituto de Aplicação da UERJ.

Romance Policial
Um fenômeno urbano
O presente artigo busca analisar o papel da This study analyses the role of the urban
cidade nas narrativas policiais, tendo por space in detective narratives, based on the
base os pressupostos do romance policial classic detective story purposes, the
clássico, o cenário da literatura brasileira scenery of contemporary brazilian literature
contemporânea e a polêmica discussão acerca and the polemical discussion about the
da literatura dita pós-moderna. so-called postmodern literature.
Palavras-chave: romance policial, cidade, pós- Keywords: detective story, city,
moderno. postmodern.

E
m sua A teoria do romance , 1 Também Walter Benjamin, em seu conhe-
Lukács estuda a perda do senti- cido ensaio O narrador, 2 atesta o declínio
do imanente em que se basea- da palavra narrativa na sociedade moder-
va a epopéia helênica e o aparecimento na, vinculando-o à crise de um tipo de
do romance como forma artística da frag- experiência partilhada que dá lugar à
mentária era moderna. Quando os laços solidão e à melancolia, característicos do
que vinculam o herói à comunidade per- sujeito moderno.
dem sua condição de essência Se tais transformações e suas conseqüên-
inquestionável e o indivíduo faz emergir cias já não eram, por si sós, superfici-
sua subjetividade problemática, estão da- ais, a vivência presente se faz acompa-
das as condições para a solidão do ho- nhar de outras tantas mudanças que,
mem moderno que vai estruturar – ainda quer vistas como uma continuidade dos
para Lukács – o próprio romance como dilemas modernos ou como uma forma
uma das configurações históricas da arte. de superação destes, imprimem sentidos

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e aprofundam problemas que fazem o mance O nome da rosa – sugere algo


homem contemporâneo questionar a pró- mais do que rendição ao mercado. E é
pria sobrevivência da palavra literária em justamente o arquétipo narrativo do ro-
nossos dias, dominados pela mídia, pela mance de Eco, o romance policial, um
informação de consumo imediato, pelas objeto privilegiado para investigar as re-
redes planetárias de computadores. lações da literatura e da cultura com os
tempos contemporâneos e, mais especi-
Mesmo não tendo por objetivo tomar a
ficamente, com a vida urbana. Nessa
cargo esse debate por inteiro, é possível
modalidade de narrativa, talvez como em
identificar, “mapear” quais formas espe-
nenhum outro conjunto específico de for-
cíficas a literatura – particularmente a
mas literárias, a subjetividade problemá-
palavra narrativa, em foco para um nú-
tica do homem e a feição fragmentária
mero expressivo dos teóricos que tratam
da urbe se encontram, se alimentam e
da contemporaneidade – tem assumido
se completam.
em suas contemporâneas modalidades
de permanência e, com isso, ensaiar al-
AS ORIGENS DO GÊNERO :
gumas perspectivas que ajudem a enten-
CIENTIFICISMO E AMBIÊNCIA URBANA

O
der melhor o problema. Com o inegável
predomínio da cultura urbana e industri- romance policial, em sua ori-
alizada na construção da experiência so- gem, está intimamente relaci-
cial de grande parte da humanidade na onado ao romance de aventu-
era moderna, o flerte da palavra artísti- ras, como afirma Paulo de Medeiros e
ca com os chamados gêneros da cultura Albuquerque, 3 principal estudioso do gê-
de massa afirma-se como um fenômeno nero no Brasil. Neste, assinala-se a cons-
que, se não é estritamente novo, assu- tante luta entre forças antagônicas, ex-
me status próprio e aponta um importan- pressando o bem e o mal. Naquele, ob-
te ângulo para a discussão. serva-se a reincidência de dois elemen-
tos centrais: o criminoso, representando
De fato, se dadas modalidades de escri-
o mal, e o detetive, representando o bem.
ta proliferaram ou se consolidaram na
lógica do mercado, do consumo, é fato O que possibilitou a delimitação do que
também que a apropriação desses gêne- hoje se denomina romance policial foi o
ros por artistas e intelectuais da enver- advento do raciocínio e da lógica, e seu
gadura de Umberto Eco – que alia erudi- conseqüente emprego no desvelamento
ção à cultura de massa no singular ro- dos mistérios. Apesar das incursões

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esparsas de outros autores no gênero em panto produzido pela resolução de um


questão, pode-se afirmar que Edgar Allan enigma são traços do romance policial
Poe foi o precursor das estórias polici- pertinentes, portanto, à própria psicolo-
ais, pois a intenção de desemaranhar, de gia humana, conforme atesta o fato, já
usar o método analítico com o objetivo por muitos apontado, de que essa confi-
de desconstruir um enigma já aparecia guração narrativa está, em germe, em
explicitamente em sua obra. Em Os cri- todas as investigações racionalmente
mes da rua Morgue , uma das obras mais conduzidas. É a ficção utilizando-se da
conhecidas do autor, o narrador assim razão para extrair prazer: o enigma vira
inicia a história: crime e o cientista, detetive. Assim, Ed-
gar Allan Poe trabalhou ficcionalmente,
As faculdades do espírito, denomi-
dando a forma literária do romance poli-
nadas “analíticas”, são, em si mes-
cial a uma inclinação humana já presen-
mas, bem pouco suscetíveis de aná-
te, por exemplo, em Édipo. A raiz pro-
lise. Apreciamo-las somente em seus
funda, metafísica, dessa narrativa é pos-
efeitos. O que delas sabemos, entre
sível que resida na necessidade humana
outras coisas, é que são sempre,
de eliminar o sofrimento que nos domina
para quem as possui em grau extra-
enquanto não atingimos a compreensão
ordinário, fonte do mais intenso pra-
de uma dada questão.
zer. Da mesma for ma que o homem
A par do advento da lógica, o surgimento
forte se rejubila com suas aptidões
de determinadas circunstâncias possibi-
físicas, deleitando-se com os exercí-
litou a sedimentação do romance polici-
cios que põem em atividade seus
al. Trata-se, sobretudo, do aparecimen-
músculos, exulta o analista com essa
to de uma civilização urbana atrelada, é
atividade espiritual, cuja função é
claro, à industrialização; à criação da
destrinçar enredos. Acha prazer até
polícia; à existência ascendente de cri-
mesmo nas circunstâncias mais tri-
minosos; ao desenvolvimento de um pú-
viais, desde que ponha em jogo seu
blico consumidor de jornais, em que os
talento. Adora os enigmas, as adivi-
crimes eram divulgados; ao surgimento
nhas, os hieróglifos, exibindo nas
do folhetim como gênero e às influências
soluções de todos eles um poder de
do positivismo, claramente presente na
acuidade, que, para o vulgo, toma o
análise lógica desenvolvida, por exemplo,
aspecto de coisa sobrenatural. 4
em Os crimes da rua Morgue .
O temor frente ao desconhecido e o es- Partindo da premissa positivista de que

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o homem é objeto da ciência, o crime ência francesa. Da mesma forma, eviden-


passou a ser estudado através da utiliza- cia-se a ambientação urbana das históri-
ção do mesmo método de observação e as policiais. Nessa combinação, Poe tan-
análise. Desse modo, cientistas e deteti- to escolheu Paris como cenário para três
ves de um lado, índices materiais e psi- romances – Os crimes da rua Morgue ; A
cológicos de outro, misturam-se nas tri- c a r t a r o u b a d a; O m i s t é r i o d e M a r i e
lhas analíticas. A influência do Roget, quanto acentuou procedimentos do
behaviorismo, por exemplo, é bastante método científico na composição literá-
clara no comportamento do detetive ria, conforme claramente exposto em La
Dupin 5
que, ao contrário de Édipo, pos- genèse d’un poème : “Minha intenção é
sui um domínio explícito dos processos demonstrar que nenhum ponto de com-
da ciência. posição pode ser atribuído ao acaso ou
à intuição e a obra marchou, passo a
Allan Poe aplicou tal técnica de raciocí-
passo, rumo à solução com a precisão e
nio à ficção, estabelecendo múltiplas com-
a rigorosa lógica de um problema mate-
binações de elementos que, desde então,
mático”.7
passaram a ser as peças mestras do
surgente romance policial: um crime mis- O que Poe ressalta é, pois, a suprema-
terioso, o detetive, a investigação. Em Os cia da lógica, da racionalidade sobre a
crimes da rua Morgue há esses elemen- inspiração. Além disso, o desfecho de
tos fundamentais, recheados de muita cada história era pensado a priori , para
violência, sutilezas psicológicas e que o encadeamento fosse perfeito, para
suspense, o que garante um indubitável que cada incidente caminhasse em dire-
sucesso de público e, de certa forma, ção ao desfecho previsto.
ajuda a marcar um específico lugar margi-
No tocante ao romance policial, além
nal para esse gênero literário nas discus-
dessa técnica de antes de se iniciar a
sões acerca dos fenômenos de cultura.
narrativa elaborar-se a conclusão, Allan
Muitas ainda, e diversas, são as Poe destaca que é fundamental que se
interlocuções desse gênero com as ten- faça uma consideração prévia acerca do
dências de seu tempo presente e com o efeito que o escritor deseja extrair do
espaço da cidade. Francis Lacassin, por 6
romance em questão. A resposta deve
exemplo, afirma que Poe teve como fon- ser clara e objetiva: medo . Esse é o pro-
te Voltaire, Vidocq, Campanella, Lavater pósito primeiro do romance policial e,
e Laplace entre outros, com clara influ- para tal empreendimento, lança-se mão

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do mistério e de cenas de horror, numa possibilitam o anonimato, a proteção do


forma de experimentação que se iria con- criminoso.
solidar mais tarde, embora com formato
As mezinhas calmantes que os
diferente, no chamado “romance de tese”
fisiologistas punham à venda logo
naturalista, e que, muito tempo depois,
foram ultrapassadas. Por outro lado,
ainda ocuparia parte considerável da pro-
à literatura que se atinha aos aspec-
dução cinematográfica.
tos inquietantes e ameaçadores da
Por meio da palavra, o medo se torna vida urbana, estava reservado um

uma tortura da imaginação e estabelece grande futuro. Essa literatura também

uma relação poética entre o leitor e tem a ver com as massas, mas pare-
narrador; o mundo com seu caráter ain- ce que de modo diferente das fisio-

da selvagem e ameaçador (por mais con- logias. Pouco lhe importa a determi-

traditoriamente urbano e racionalizado nação dos tipos; ocupa-se, antes,


que possa parecer) é, dessa feita, uma com as funções próprias da massa

fonte fundamental de inspiração literária. na cidade grande. Entre essas, uma


O romance policial é permeado por es- que [...] é destacada num relatório

ses vários elementos advindos do conta- policial: “É quase impossível – escre-

to do homem com o outro e com o des- ve um agente secreto em 1798 –


conhecido – medo, mistério, investigação, manter boa conduta numa população

curiosidade, assombro, inquietação, que densamente massificada, onde cada

são dosados de acordo com os autores e um é, por assim dizer, desconheci-


as épocas. do de todos os demais, e não preci-

sa enrubescer diante de ninguém”.


Várias poderiam ser as associações en-
Aqui a massa desponta como o asilo
tre o extraordinário desenvolvimento do
que protege o anti-social contra seus
método científico e o crescimento das
perseguidores. Entre todos os seus
cidades, mas, no tocante à narrativa po-
aspectos ameaçadores, este foi o que
licial, é possível ir mais além: pode-se
se anunciou mais prematuramente;
afirmar que a própria existência do es-
está na origem dos romances polici-
paço urbano, tal como o conhecemos na
ais. 9
modernidade, assume papel decisivo. De
fato, Walter Benjamin, 8 a propósito das A reflexão de Benjamin, que parece ge-
narrativas de Poe, identifica a cidade, a nialmente antever a atual explosão da
multidão e a massa como elementos que criminalidade nos grandes centros urba-

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nos, pode, com muita pertinência, ser a natureza humana. [...] Essa indife-

aplicada à análise da dita revalorização rença brutal, esse isolamento insen-


do romance policial. Tamanho destaque sível de cada indivíduo em seus in-

mereceriam as formas de existência do teresses privados, avultam tanto mais

homem nas cidades – para o crítico ale- repugnante e ofensivo quanto mais
mão, verdadeiras ruínas modernas apri- esses indivíduos se comprimem num

sionadas pelo senso da mercadoria – que, espaço exíguo. 10

a propósito da vida urbana e da presen-


Engels assim registrou o que era, para
ça marcante da multidão, Benjamin apro-
ele, a vida em Londres na segunda meta-
ximaria ainda Poe, Marx e Engels na ca-
de do século XIX. O mesmo, ou quase o
racterização do fenômeno da
mesmo, poder-se-ia dizer de qualquer
massificação nas grandes cidades, privi-
metrópole contemporânea. Não parece,
legiando um objeto de análise que ain-
de fato, fruto do acaso serem Rio de Ja-
da hoje ocupa boa parte do debate in-
neiro e São Paulo as cidades que estão
telectual:
no centro do ressurgimento do romance
Uma cidade como Londres, onde se
policial entre nós.
pode vagar horas a fio sem se che-
gar ao início do fim, sem se encon- R OMANCE POLICIAL NO B RASIL :
trar o mais ínfimo sinal que permite VIOLÊNCIA , INTRIGA E A GRANDE
inferir a proximidade do campo, é ARTE

N
algo realmente singular. Essa concen-
ão se pode dizer que, no Bra-
tração colossal, esse amontoado de
sil, há uma tradição de se pro-
dois milhões e meio de seres huma-
duzir romance policial, como
nos num único ponto centuplicou a
sempre houve nos Estados Unidos e na
força desses dois milhões e meio...
Europa. Há, contudo, nas últimas déca-
Mas o sacrifício que isso custou só
das, uma recorrência do gênero e, em
mais tarde se descobre. Quando se
todas as experiências pesquisadas, ob-
vagou alguns dias pelas calçadas [...]
serva-se o mesmo sucesso de público
só então se percebe que esses lon-
alcançado por correlatos estrangeiros.
drinos tiveram de sacrificar a melhor

parte de sua humanidade para reali- Quase cem anos depois de Edgar Allan
zar todos os prodígios da civilização Poe, a ficção policial brasileira foi lançada
[...]. O próprio tumulto das ruas tem da mesma forma, em folhetins. Precisa-
algo de repugnante, algo que revolta mente em 20 de março de 1920, iniciou-

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se a publicação de O mistério , 11 no jor- samente arquitetando dois crimes

nal A Folha , de Medeiros e Albuquerque. possíveis, crimes bem-feitos, em que


Nascia o nosso primeiro romance polici- uma pessoa que precisa matar outra,

al, escrito por Coelho Neto, Afrânio Pei- por uma questão de honra ou por-

xoto, Viriato Correia e Medeiros de que não queira que essa pessoa exis-
Albuquerque. Para se ter idéia do suces- ta, pode matá-la certamente, segura-

so obtido, ao virar livro, em 1928, três mente, sem deixar nenhum vestígio

edições já haviam sido publicadas, trans- do seu ato, e sem levantar a menor
for mando-se, à época, num best-seller , suspeita...

com dez mil exemplares vendidos. Dos


Que isso é possível – garanto. Pen-
quatro autores, apenas Medeiros e
sem que eu tenha passado estes dias
Albuquerque continuou fazendo histórias
ruminando o meu conto devagarinho,
policiais ( O assassino do general , em
por todas as faces, prevendo todas
1926, e Se eu fosse Sherlock Holmes ,
as objeções... Quem sabe quantos
em 1932 – ambos de contos). A respeito
crimes impunes têm sido cometidos!
deles, o autor chegou a escrever o se-
O do meu conto, se fosse ou se for
guinte:
praticado, não falhará e não terá

A única coisa que me distraiu foi quem descubra...

pensar num conto... No primeiro ca-


O que eu não sei é se devo publicar
pítulo de O mistério eu escrevi um
o conto... 12
crime bem-feito, que ninguém pode-

ria descobrir porque o bandido Viriato De fato, o escritor em questão enfrentou


fez o criminoso, que era meu prote- o preconceito de muitos intelectuais que
gido, confessar. Recentemente, em viam com reserva o gênero policial. Ape-
contos do Jornal do Brasil , eu des- nas na década de 1930 apareceria ou-
crevi um crime em Impunido e outro tro autor, Jerônimo Monteiro, que, aliás,
em Implacável . Diante deles, várias precisou (ou preferiu) usar um pseudôni-
pessoas me falaram da impossibili- mo inglês: Ronnie Wells. O detetive de
dade de passar da teoria à prática. suas narrativas era Dick Peter, criado
Outros me advertiram que eu estava inicialmente para o rádio.
dando ensinamentos perigosos.
Outros escritores vieram e deram conti-
Pensei em aperfeiçoar os meus pen- nuidade à tradição policial que se inicia-
dores criminosos. E estive minucio- ra. Paulo Medeiros e Albuquerque 13 con-

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sidera que o Brasil, por condições espe- por esse tipo de narrativa parece confir-
cíficas de suas grandes cidades, tornou- mar-se quando se verificam iniciativas
se terreno fértil para uma dada modali- como a de uma grande editora que re-
dade de literatura policial: aquela que se centemente lançou uma série, que deve-
baseia em crimes reais, o que na época rá ter vinte títulos, de romances policiais
já se delineava como um fenômeno as- escritos por autoras brasileiras que são
sustador. estreantes no gênero.

Tal modalidade, inaugurada pelo próprio Tomando a obra de Rubem Fonseca


Edgar Allan Poe em O mistério de Marie como exemplo, verifica-se a recorrência
Roget , ganhou também grande populari- de importantes pressupostos teóricos do
dade. No caso específico de Poe, chegou- romance policial. A ambientação de suas
se a acreditar que ele havia conseguido histórias é prioritariamente urbana, com
solucionar o mistério por meio da leitura o luxo da burguesia, o submundo e o lixo
de jornais e da simples utilização do ra- inerente ao homem e às metrópoles. Há
ciocínio – o que não corresponde à reali- inúmeras referências a lugares, institui-
dade, pois, pelo que se sabe, o crimino- ções, pessoas conhecidas e outros dados
so jamais foi descoberto. de domínio público, configurando tam-

Mais recentemente, na produção literá- bém um recurso de verossimilhança: “Fo-

ria brasileira da década de 1980 em di- mos para o bar Amarelinho, na esquina

ante, verificou-se, em meio a uma inten- da rua Alcindo Guanabara”; “o único

sa pluralidade de formas narrativas que anúncio que havia, no Jornal do Brasil,

convivem e se mesclam, a retomada do O Globo, e O Dia” 14 ; “Já foi ao Porcão,

romance policial. O espaço urbano, pal- da Avenida Brasil? Ao Freeway, na Bar-

co de intensas contradições sociais e de ra? Ao Carrefour?” 15 . Nesse caso, esta-

uma avassaladora onda de crimes, avul- belece-se um pacto de cumplicidade tam-

ta como um misto de cenário e motiva- bém entre o narrador e o leitor comum

ção das histórias policiais. que transita no espaço urbano do Rio de


Janeiro, pois as citações são perfeita e
O gênero em foco constitui, pois, uma
propositalmente acessíveis, tornando re-
marca dominante na obra de inúmeros
conhecível a ameaça urbana que cerca
autores brasileiros contemporâneos: Ru-
os cidadãos todos os dias.
bem Fonseca, Patrícia Melo, Luiz Alfredo
Garcia-Roza, Tony Belloto, entre outros. Na prosa de Rubem Fonseca, destacam-
Do ponto de vista editorial, o interesse se níveis diferenciados de leitura, tornan-

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do tênues as fronteiras entre o popular, teriormente: “sigla que definia um con-


o prosaico e o erudito, procedimento de junto de técnicas e táticas de manejo de
composição artística que, para muitos, armas brancas”. 1 6 Da mesma forma, a
está no cerne da chamada pós- grande arte refere-se, também, ao ma-
modernidade ou modernidade tardia. nuseio de facas e ao ofício de matar:
Esse tipo de arte, para seus estudiosos,
NÃO ERA uma ferramenta como as
permite um acesso fácil pela
outras. Era uma feita de material de
homogeneidade de formato com a cultu-
qualidade superior e o aprendizado
ra de massa, mas, ao mesmo tempo,
do seu ofício muito mais longo e di-
engendra uma sutil interlocução com o
fícil. Para não falar no uso que dela
que há de mais refinado na produção
fazia o seu portador. Ele conhecia
artística e intelectual conhecida, só per-
todas as técnicas do utensílio, era
cebida e refletida por seus conhecedo-
capaz de executar as manobras mais
res, que teriam, dessa forma, um outro
difíceis – a inquartata, a passata
viés de acesso à obra, ao final, portan-
sotto – com inigualável habilidade,
to, lida por todos.
mas usava-o para escrever a letra P,

No caso específico do romance A grande apenas isso, escrever a letra P no

arte , de Rubem Fonseca, tal hibridismo rosto de algumas mulheres. 17

sobressai já no título. Faz-se uma alusão [...] Muitos anos antes de Cristo ha-
apriorística a Hegel, que perde comple- via na Grécia um poeta que dizia: “te-
tamente o referencial ao longo do texto, nho uma grande arte: eu firo dura-
pois o que se depreende da leitura é exa- mente aqueles que me ferem. Minha
tamente a inviabilidade da chamada gran- arte é maior ainda: eu amo aqueles
de arte e dos modelos tradicionais, numa que me amam”. 18
época em que as pessoas estão
Os trechos citados atestam a
“empilhadas nos edifícios”, e se valem
banalização, a dessacralização da obra
dos critérios de eficiência, rapidez e
de arte que o autor opera. Afinal, o que
praticidade.
é a grande arte na contemporaneidade?
O título da primeira parte do romance Esse é o questionamento subjacente ao
constitui um índice da violência e da in- romance de Rubem Fonseca, que equi-
triga policial que vai atravessar toda a para a arte a um ofício qualquer, ressal-
história: PERCOR. Trata-se de uma sigla, tando sua precariedade em um mundo
conforme elucida o próprio narrador pos- que já fora identificado como o da crise

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da experiência partilhada e, portanto, da Mandrake (Raul) – “acostumado, profis-


palavra narrativa. A utilização das técni- sionalmente, ao exercício da
cas do romance policial possui papel cen- hermenêutica”. 20
Mandrake é auxiliado
tral neste exercício tenso de por seu sócio Wexler, também advogado
dessacralização e, simultaneamente, de criminalista, que funciona na narrativa
permanência da obra de arte: lança-se como uma espécie de Watson. Na verda-
mão de um gênero desprestigiado pela de, os crimes envolvendo as prostitutas
academia, mas consagrado pelo grande são apenas a ponta do novelo que escon-
público e dá-se a ele, ironicamente, o tí- de escândalos financeiros de importan-
tulo de A grande arte . “Desenhar um P tes famílias, tráfico de drogas e outras
qualquer um desenha. E estrangular, a contravenções que puderam se desenvol-
gente nasce sabendo. Você inventou que ver na sociedade brasileira em virtude,
decifrou os cadernos e pode, assim, in- sobretudo, da impunidade e da
ventar a história que quiser.” 19
corrupção reinantes. Ingredientes roma-
nescos, esses elementos constituem,
Mais uma vez, resume-se o romance ou
também, um arsenal de índices daquilo
a arte a uma “invenção qualquer” e o lei-
a que parece ter se reduzido a vivência
tor volta a se defrontar com o jogo de
atual no imaginário do cidadão comum
Rubem Fonseca, que, na verdade, se
brasileiro.
sustenta num projeto estético bem pro-
A par dessa forma de identidade, habil-
duzido, que resulta numa tentativa
mente manejada no romance, o suspense
metalingüística, ficcional, de tratar a
e o desejo de descobrir o culpado acio-
questão da sobrevivência da palavra nar-
nam ainda a curiosidade do leitor, ingre-
rativa em um mundo marcado pela frag-
diente essencial do romance policial. En-
mentação da experiência e pelo isolamen-
tretanto, como já se disse, essa expec-
to do sujeito.
tativa resulta inócua, visto que o assas-
Logo nas primeiras páginas, para iniciar sino jamais será descoberto e o objeto
o jogo, entra-se em contato com alguns causador de tantas mortes (uma fita de
elementos básicos que integram o roman- vídeo) não tinha coisa alguma gravada!
ce policial: um crime foi cometido miste- Com essa radical subversão dos cânones
riosamente; a vítima é uma prostituta; o da narrativa policial, Rubem Fonseca
criminoso traçou com uma faca a letra P opera o que preconizam teóricos do cha-
no rosto da mulher; o papel de detetive mado pós-moderno: discute temas como
será desempenhado por um advogado, a solidão do homem moderno, o vazio da

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experiência e o lugar da arte na socieda- Arte”. 22


de contemporânea, mantendo o interes-
O autor brasileiro revisita, pois, ironica-
se até do leitor mais comum – aquele que
mente, um tipo de narrativa que ocupa
passa ao largo desse debate e frui ape-
lugar de destaque dentre os gêneros tra-
nas a intriga policial – até o final.
dicionais de massa, de consumo. Muitos

Assim, A grande arte não se deixa escra- de seus livros se tornaram best-sellers
vizar pelas normas mais fechadas do gê- (a exemplo de Vastas emoções e pensa-

nero policial, acrescenta dados inusita- mentos imperfeitos e Agosto ): o grande


dos e consegue perfeitamente, para utili- público lê e gosta; os críticos e estudio-

zar a expressão de Umberto Eco, “iludir sos de literatura também. Tal retomada

o leitor ingênuo”, que se demonstra sem- suscita o debate acerca da arte na pós-

pre interessado em saber “de quem é a modernidade ou na modernidade tardia.

culpa” e, para isso, precisa entrar no la- Ocupando lugar de destaque nos meios
birinto: “Ironia, jogo metalingüístico, intelectuais, a polêmica em torno da exis-
enunciação elevada ao quadrado. Portan- tência ou não dos tempos pós-modernos
to, com o moderno, quem não entende encontra defensores conceituados, quer
não pode aceitá-lo, ao passo que, com o de uma posição, quer de outra. Segundo
pós-moderno, é possível até não enten- Sérgio Paulo Rouanet, 23 a discussão ori-
der o jogo e levar as coisas a sério. O gina-se da constatação generalizada de
que constitui a qualidade (o risco) da iro- que a modernidade, tal como a compre-
nia. Existe sempre quem toma o discur- ende Weber, 24 passa por alterações sig-
so irônico como se fosse sério”. 21
nificativas. O problema está em se enca-
rar tais alterações como uma verdadeira
Também entre os críticos brasileiros, não
ruptura dos parâmetros modernos, o que
passa despercebida essa intencionalidade
configuraria a pós-modernidade nas es-
de enfrentar as questões contemporâne-
feras da sociedade e da cultura; ou ape-
as na obra de Rubem Fonseca: “Essa
nas como uma “consciência da ruptura”,
postura dialética e cínica da arte que fin-
ou seja, uma revisão da modernidade
ge não ser arte para melhor ser é a gran-
que, feita com suas próprias armas, não
de via de Rubem Fonseca. [...] É esse o
chegaria a romper com seus principais
jogo. Ora simulacro da obra de arte, ora
elementos definidores.
essência artística historicamente possível,
não se pode negar a esse romance de Essa arte está, sem dúvida, sob a influ-
Rubem Fonseca o título de Grande ência das manifestações concretas do que

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seriam os chamados tempos pós-moder- cultural. É importante notar, entretanto,


nos, marcados pela “onipresença do sig- que não parece se tratar da mesma ati-
no e do simulacro, do vídeo e da tude parodística que, característica do
hipercomunicação”, no cotidiano; pela modernismo, satirizava alguma norma ou
“planetarização do capitalismo”, na eco- elemento dessa tradição: “num mundo em
nomia; e pela atomização de grupos e que não há mais uma norma hegemônica,
movimentos sociais no cenário político. 25
e sim mil estilos concorrentes, a imita-
ção não se dá sobre o pano de fundo de
Se é verdade que está delineando uma
um estilo padronizado, e portanto não
sociedade informatizada, fragmentária,
tem uma intenção ulterior, satírica ou
privada de grandes referências e em
cômica. É o pastiche, a imitação pela
meio a uma profunda crise de valores; a
imitação”.27
arte, e em especial a literatura, vai se
apresentar sob o estigma do fragmento, Há de se notar que também não se trata
da fratura, do desfazimento . Instaura-se, de uma imitação ingênua, reprodutora de
conscientemente e sem reservas, o rei- um padrão sublimado como ideal. Como
no do pastiche, da citação e da observa Umberto Eco, a atitude pós-mo-
intertextualidade, em contraposição a derna de revisitar o passado evita a fal-
qualquer perspectiva de totalidade, de sa inocência, à medida que, assumindo
continuidade ou de pretensa originalida- declaradamente a imitação do já dito (que
de – conceitos inviáveis num mundo de não pode ser eliminado), insere-se no
particularismos, de partes descontínuas jogo da ironia em relação a esse. 28 Se,
e de esgotamento da própria noção do por um lado, não há intenção corrosiva
novo. da paródia modernista, por outro, avulta
a clareza de que os elementos do passa-
Para alguns autores como Jameson, 2 6
do não podem, em nosso tempo, ter a
essa atitude é característica da relação
mesma recepção que tiveram em sua
sui generis da arte com a história nos
época.
tempos pós-modernos. A figura do artis-
ta como sujeito criador, original, dilui-se Trata-se de um desafio para a teoria lite-
na sociedade da hipercomunicação e da rária investigar exatamente como seria
multiplicidade dos recursos tecnológicos; a mímesis na dita pós-modernidade. Se,
e o artista, então, recorre ao passado, para Platão,29 era uma espécie de medi-
compondo um pastiche de obras anterio- ação entre a linguagem e a realidade,
res, dialogando com a própria tradição uma produção de aparências enganado-

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R V O

ras; se, para Aristóteles, 30 é próprio ato arte de ruptura tem de transitar por dife-
criador; e se, na modernidade, assumiu rentes espaços de recepção. Assim, a li-
uma função crítica e criadora, exercen- teratura pós-moderna é capaz de propi-
do um papel de “negação do modo de ser ciar níveis de leitura variados, que vão
bur guês” 31
– segundo Walter Benjamin, desde o simples prazer de fruir uma his-
identificado com a “perda da aura”, fruto tória bem contada, até a reflexão
de uma série de transformações no cam- problematizadora de questões inerentes
po da estética e do próprio período his- à compreensão do mundo e à própria
tórico; nos “tempos pós-modernos”, essa escrita literária. Estariam apagadas, des-
questão se torna mais complexa, visto sa forma, as fronteiras entre cultura eru-
que, como se disse, já se superou artis- dita e cultura de massas.
ticamente o exercício da paródia (toma-
A combinação das técnicas policiais com
da aqui como símbolo do projeto estéti-
o mergulho profundo na criminalidade
co da modernidade, em geral, e do mo-
urbana, além de promover um diálogo
dernismo, em particular), e os impasses
com os preceitos da mencionada pós-
colocados para a arte chegam até mes-
modernidade ou modernidade tardia, in-
mo a colocá-la em xeque.
dica a possível quebra de um padrão, de
Configura-se, então, uma auto- uma expectativa do leitor de identificar
referencialidade da literatura dita pós- na literatura o sublime . Trata-se, portan-
moderna, que se manifesta quer na rela- to, de se despojar do saudosismo em
ção com sua tradição, quer no privilégio relação às grandes obras , capazes de
concedido à linguagem. Tal privilégio, resgatar o papel de representação de (su-
oriundo, em grande parte, da consciên- postos) valores essenciais, que outrora
cia de que agora, mais do que nunca, o coubera à esfera artística.
real e o autêntico são, na verdade, cons-
A aceitação dessa idéia implica também
truções discursivas, faz com que a arte
o abandono dos preconceitos em relação
literária se ocupe mais de si mesma que
às produções que, via de regra, foram
do mundo circundante, o que, entretan-
marginalizadas pela tradição da cultura
to, não conduz ao hermetismo da poéti-
erudita. Elas, na verdade, já se transfor-
ca modernista.
maram em dados inalienáveis da cultura
De fato, uma das características mais ocidental e, dessa forma, compõem um
ressaltadas pelos defensores do pós-mo- considerável arsenal, para o artista que
derno, é justamente a capacidade que a busca sobreviver em meio a tal sociedade.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 17, n o 1, p. 67-80, jan/jun 2004 - pág. 79


A C E

N O T A S
1. Georg Lukács, A teoria do romance : um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da
grande épica, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000.
2. Walter Benjamin, O narrador, In: Walter Benjamin , Coleção Os pensadores , São Paulo,
Abril Cultural, 1975.
3. Paulo de Medeiros e Albuquerque, O mundo emocionante do romance policial , Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1979, p. 2.
4. Edgar Allan Poe, Ficção completa, poesia e ensaio , Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1981,
p. 50.
5. Detetive das narrativas policiais de Edgar Allan Poe.
6. Apud Boileau-Narcejac, O romance policial , São Paulo, Ática, 1991, p. 20.
7. ibidem, p. 21.
8. Walter Benjamin, Obras escolhidas , v. III, São Paulo, Brasiliense, 1989.
9. ibidem, p. 38.
10. Apud Walter Benjamin, Obras escolhidas , op. cit., p. 54.
11. Paulo de Medeiros e Albuquerque, op. cit., p. 205.
12. ibidem, p. 176.
13. ibidem, p. 208-209.
14. ibidem, p. 135.
15. ibidem, p. 138.
16. ibidem, p. 78.
17. ibidem, p. 7.
18. ibidem, p. 114.
19. ibidem, p. 288.
20. ibidem, p. 41.
21. Umberto Eco, Pós-escrito a O nome da Rosa , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
22. Sônia Salomão Khéde, Os preferidos do público : os gêneros de literatura de massas,
Petrópolis, Vozes, 1987.
23. Sérgio Paulo Rouanet, A verdade e a ilusão do pós-moderno, Revista do Brasil , Rio de
Janeiro, Secretaria Municipal de Ciência e Cultura, 1986, p. 28-53.
24. Para Weber, “a moder nidade é o produto do processo de racionalização que ocorreu no
Ocidente, desde o final do século XVIII e que implicou a modernização da sociedade, e
a modernização da cultura”. Apud Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p. 30.
25. idem.
26. F. Jameson, Pós-moder nidade e sociedade de consumo, Novos Estudos CEBRAP , São
Paulo, n. 12, jun. 1985, p. 16-26.
27. idem.
28. Umberto Eco, op. cit., p. 50.
29. Platão, livros III, VI, VII e X.
30. Aristóteles, Poética, In: Aristóteles , Coleção Os pensadores , São Paulo, Abril Cultural,
1973.
31. Lúcia Helena, Totens e tabus da modernidade brasileira, Tempo Brasileiro , Niteroi, Eduff,
1985, p. 203-206.

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