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LENDAS BRASILEIRAS E COMPUTADOR:

UMA COMBINAÇÃO QUE DÁ CERTO


Renata Frauendorf¹

Muitas vezes o profissional tinha dificuldade em fazer a


leitura, com falta de fluência, problemas de entonação,
dificuldade com pontuação etc. Se a ideia era que ele
oferecesse, por meio das rodas de leitura, um bom modelo de
leitor, era necessário trabalhar com ele essa habilidade.
Usamos na formação o texto "Concertos de Leitura"3, de
Rubens Alves, em que ele deixa muito clara a distinção entre
ler e dominar a técnica de leitura. Ele mesmo descreve o
horror que sentiu ao ouvir a leitura de um poema por uma
aluna que não dominava a técnica. Passamos, então, a
realizar em nossos encontros leituras em voz alta. Com esses
espaços, sentimos avanços nos educadores e ele se tornou,
acima de tudo, um momento de descoberta de uma fragilidade
que poderia ser trabalhada.
Da mesma forma, ao trabalhar a produção de texto,
O projeto "Aventuras com as Letras e as Teclas" foi percebemos o quanto ela pode ser uma prática totalmente
desenvolvido pelo Grupo Comunitário Criança Feliz, na cidade distanciada do cotidiano desses educadores, que continuam a
de Campinas (SP) em 2005 e teve repercussões na EEPG escrever porque "alguém manda". Como podíamos rever uma
Prof. Alberto Medaljon. Com a finalidade de diminuir o número prática de ensino da escrita se em seu cotidiano ele não fazia
de crianças e pré-adoles-centes com dificuldades na escrita e uso da escrita de forma proficiente?
leitura, foi concebido como um projeto de formação de edu- Criando uma situação homológica4, propusemos que
cadores com três metas concretas: implantar uma biblioteca redigissem a justificativa para nosso proje-to com as crianças.
alternativa enquanto espaço de uso comum para a escola, Em primeiro lugar, pesquisamos em dicionários, na Internet, o
para o Grupo Comunitário e comunidade; desenvolver uma significado das lendas. Depois, realizamos a leitura de uma
oficina de informática que possibilitasse o acesso e o uso variedade de justificativas de projetos para que pudessem
contextualizado do computador; e organizar uma oficina de construir seu texto. Fizeram o texto e numa etapa seguinte
contos com intuito de preparar adolescentes para serem passamos ã revisão. Nesse momento, realizamos a reflexão
contadores de histórias e assim se tornarem multiplicadores sobre uma justificativa bem escrita e levantamos quais
do projeto com outros grupos de crianças. aspectos a caracterizavam como um bom texto. Os
O trabalho atendeu especificamente os educadores educadores passaram a revisar o próprio texto, e com isso
sociais do grupo de crianças de 7 a 10 anos que já fazia parte ampliaram seu conhecimento sobre esse conteúdo tão
da oficina de informática. A equipe escolheu para trabalhar o importante para desenvolver o comportamento escritor nas
gênero da narrativa literária, mais especificamente as lendas, crianças. Até então, para a maioria, revisar texto era apenas
por oferecer oportunidade de conhecer outras culturas e corrigir erros, assinalando em vermelho as falhas das
ampliar os horizontes. O crianças. Quando perceberam que na revisão poderiam
produto final deste projeto foi o livro Lendas Contadas e reformular, melhorar o sentido, eliminar e alterar palavras e
Aprendidas. trechos, abriram-se para estes comportamentos escritores e
As crianças foram motivadas a pesquisar na Internet, aceitaram que seus alunos também fizessem isto, o que
digitar seus textos no Word e a fazer as ilustrações sando o transformou o trabalho de revisão.
Paint Brush2. O computador foi, assim, usado como
ferramenta de aprendizado para estimular a leitura e a escrita
de forma contextualizada e significativa.

E os educadores?
Ao iniciar a formação, logo nos deparamos com uma
primeira dificuldade: desejávamos que o educador revisse
suas praticas de ensino de leitura e escrita com seus alunos,
mas esquecemos de investigar quais experiências eles tinham
como usuários da cultura escrita. Ao esperar que o educador
realizasse a leitura em voz alta para as crianças, por exemplo,
não cuidamos de saber como ele fazia esta leitura, nem qual
era a sua prática nesse sentido.
No mundo das lendas Para se apropriar do gênero
A primeira condição criada para familiarizar as crianças e O grupo já tinha uma prática de roda de história, que
os educadores com as lendas brasileiras foi a leitura de textos passamos a avaliar nos encontros de formação. Percebemos
pelo educador. Ao conhecerem diferentes versões de uma o quanto ela se tornou sem sentido, apesar de ser sempre tão
mesma lenda, aumentaram seu repertório e foram se recomendada. No geral, as rodas eram formadas com todas
aproximando do gênero. Em seguida, elegeram as lendas as crianças atendidas, aproximadamente 50. É fácil imaginar a
preferidas e passaram a explorá-las com mais afinco. dificuldade para o educador manter a atenção e o
Leram então os textos para as crianças, que foram envolvimento de todos.
convidadas a reescrever a narrativa coletiva-mente e logo Propusemos de imediato a subdivisão do grupo. E, com
digitá-la, em duplas, no computador. Em paralelo, as crianças menos crianças, iniciou-se a leitura de livros de lendas
foram estimuladas a criar as ilustrações, primeiro ã mão e brasileiras. As educadoras que tinham uma experiência
depois usando o Paint Brush. Para finalizar esta etapa, anterior negativa com propostas desse tipo começaram a se
fizeram a revisão de seus textos usando algumas ferramentas envolver e ficaram mais interessadas e participativas em ouvir
do Word como: desfazer digitação, escolher tipo, tamanho e a leitura de histórias. Além da roda de leitura, outras
cor da letra. E exploraram mais significativamente algumas atividades foram propostas a fim de que as crianças come-
teclas como "backspace", "delete", "barra de espaço", "caps çassem a refletir e ampliar o conhecimento sobre as
lock". propriedades dos textos (estrutura, características, traços
Continuamos a descoberta das lendas, buscando a diferenciadores, finalidade, intencionalidade). A seguir, dois
valorização da cultura local e da tradição oral, e convidamos exemplos dessas iniciativas:
um morador antigo da comunidade local para visitar o grupo e
1. Recontar a lenda - A turma foi convidada a recontar a
contar as histórias que conhecia. As visitas foram filmadas e,
lenda da Cobra Grande5 a partir do quadro A Lenda da
a seguir, em pequenos grupos, as crianças transformaram a
Cobra Grande, de Rybas6. Desta forma, exercitaram o
gravação em texto, estabelecendo as relações entre a
domínio da estrutura e dos traços diferenciadores desse
linguagem oral e a escrita.
tipo de texto. Ao usar como estímulo do reconto uma
A seguir, um exemplo de texto coletivo produzido pelas
imagem artística, enriquecemos o trabalho de ilustração
crianças a partir da história contada por um morador:
do livro. Outras imagens, como a Cuca de Tarsila do
Amaral7 e a Mula-sem-Cabeça de Portinari», também
foram usadas.
2. Reescrever a lenda - Também foi proposta a reescrita
coletiva de uma lenda e sua digitação no computador.
Esta atividade, no início, tomava um tempo muito grande,
pois as crianças não eram familiarizadas com o teclado, o
que tornava a tarefa mais árdua. No entanto, com o
passar do tempo e o afinamento das duplas, esta
proposta foi ganhando outra dimensão e ao final já
transcorria com mais tranquilidade, até mesmo com a
divisão de papéis entre a dupla.
Trabalho no computador
No início, os educadores questionaram a estratégia de
trabalhar em duplas no computador, e não foi fácil romper o
paradigma da ação individual. Num primeiro momento, as
duplas foram formadas aleatoriamente, o que nos rendeu
material para refletir em nossas supervisões. O monitor
responsável pelo grupo da oficina começou a perceber que
deveria haver um preparo e critério ao se elegerem as duplas.
Crianças que interagem bem em situações de brincadeiras
mais espontâneas não necessariamente são boas companhei-
ras para trabalhar. Para alguns, sentar-se ao lado daquele que
sabe mais é um estímulo e serve de apoio para suas
dificuldades. No entanto, para outros é mais uma forma para
se acomodar e desviar a atenção, pois sabem que sempre há
alguém que fará a tarefa por eles. Ao longo do processo,
mudamos as duplas e tivemos muitos casos de sucesso. Em
outros, avaliamos que as parcerias não foram acertadas.
Na proposta de reescrita da lenda usando o computador,
foi comum ver uma divisão de papéis entre as duplas por
iniciativa das próprias crianças. Uma ditava o texto, enquanto
a outra digitava e vice-versa. Outras duplas preferiram se
dividir de maneira diferente: um se responsabilizava pelo texto
e o outro pela ilustração e uso do Paint Brush. Avaliamos que
houve um grande avanço nessa dinâmica, e as brigas e 2. O corretor ortográfico, num primeiro momento, também
disputas, comuns no início, deram espaço ao companheirismo foi assustador, pois as crianças viam em seus textos as
e autonomia das decisões sobre a melhor forma de trabalho. palavras não reconhecidas sublinhadas e para eles
Outro ponto favorável foi que algumas crianças que iniciaram significava: "Estou escrevendo errado". Obviamente,
o ano sem escrever aceitaram a ajuda e intervenção do muitas palavras não estavam escritas da forma
parceiro com mais conhecimento e apresentaram uma convencional, mas isto serviu para que juntos fôssemos
evolução em suas hipóteses de escrita. refletindo sobre a palavra e, depois, sobre o erro. Pois
muitas vezes o sublinhado informava apenas que o
Hora da revisão computador não reconhecia aquela palavra por ser um
Após os textos estarem todos digitados, iniciamos o nome ou mesmo uma expressão característica da lenda,
trabalho de revisão que incluía, neste caso, não só a melhora e assim passaram a lidar melhor com a questão. Em
do texto nos aspectos de ortografia, coerência e coesão, como muitos casos, após se certificarem de que a palavra
também voltar o olhar para "erros" de digitação, comuns em estava escrita corretamente e mesmo assim continuava
qualquer trabalho com o editor de texto. sublinhada, já saiam avisando pela sala: "Olha, o
computador não sabe o que é Iara!"

1. Psicopedagoga da Clínica Soma, em Campinas, e formadora do


Instituto Avisa Lá.
2. Programa utilizado pelos usuários do Windows para desenhar
3. Rubem Alves é professor, escritor, teólogo e psicanalista. O texto
"Concertos de Leitura" está no livro Escola com que Sempre
Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir, Ed. Papirus.
4. Situações equivalentes, correspondentes, embora mais ou menos
diversas.
5. Uma das mais conhecidas lendas do folclore amazõnico, esta
lenda conta que uma índia, grávida da boiúna (cobra-grande,
sucuri), deu a luz a duas crianças gêmeas, que na verdade eram
cobras.
6. José Ribamar Silva Nery (Rybas), artista plástico brasileiro
7. Tarsila do Amaral (1 886-1973) é considerada uma das mais
importantes pintoras brasileiras.
8. Cândido Portinari (1903-1962), consagrado pintor brasileiro,
destacou-se, também, nas áreas de poesia e política.

Fonte: Revista avisa lá – N° 27 / Julho de 2006

Os principais "erros" observados foram:


1. Mudança de linha após término de palavra. Muitas vezes
as crianças usaram a tecla "en-ter" ao terminar de digitar
uma palavra, ou no meio dela, e assim mudavam de linha
sem haver necessidade.
2. Excesso de espaçamento entre palavras. Sabíamos que
na revisão tínhamos que cuidar da melhora do texto tanto
na elaboração como na apresentação.
A partir dos erros, algumas situações foram surpreendentes:
1. Ao tentar apagar, corrigir aiguma paiavra, a criança perdia
parte ou todo o texto e então a descoberta da função
"voltar a ação" foi uma grande salvação e fez todo o
sentido. Quando alguma criança se desesperava, já vinha
outro em socorro e compartilhava esse saber, que
tranquilizava a dupla como se fosse uma mágica.

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