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O que você vê? Um homem caindo?

Nem sempre o real é o que nos parece ser...


Olhe de novo: uma certa estranheza no "modo de cair" põe em dúvida
nossa constatação inicial. Intrigados, nos perguntamos sobre
o signüicado desse movimento: O que é isso? O que vejo de fato?
Essa fotografia faz parte de uma sequência de imagens de dançarinos·
·malabaristas de rua de Paris. Nela o fotógrafo conseguiu flagrar o momento
exato em que um dançarino está no meio de uma pirueta. Essas fotos
constituem a série Ç)ueda, que lhe rendeu o prêmio da World Photo 2007.
Darzacq imprimiu às imagens de aparente queda livre sua percepção das
mobilizações de jovens, a maioria estudantes, que em 2006 agitaram
a França em protesto contra as dificuldades de emprego para as novas
gerações do pais.
Aproveitando a sensação de espanto que essa foto nos provoca,
podemos fazer uma analogia com a filosofia. É ela que propicia um olhar
de estranheza diante de tudo que nos parece óbvio: a experiência filosófica
pressupõe constante disponibilidade para se surpreender e indagar.
D Como é o pensar do filósofo?
Leia o relato do filósofo francês André Comte-
-Sponville:

[... ]A cena se desenrola no início do século XX,


num lugarejo da França rural. Um jovem professor
de filosofia passeia com um amigo e encontra um
camponês, que seu amigo conhece, lhe apresenta
e com o qual nosso filósofo troca algumas palavras.
- O que o senhor faz? - indaga o camponês.
Heráclito e Demócrito, afresco de Donato Bramante,
- Sou professor de filosofia . c.1soo. O artista representa uma velha história sobre
- Isso é profissão? os pré-socráticos Heráclito e Demócrito (séc. V a.c.),
-Por que não? Acha estranho? segundo a qual o primeiro era o "filósofo que chora" e o
outro o "filósofo que ri ". Em que medida um filósofo pode
- Um pouco!
lamentar ou ironizar o comportamento das pessoas?
- Por quê?
- Um filósofo é uma pessoa que não liga para
O texto de Sponville termina com uma constatação:
nada ...
a de que só não filosofam aqueles para quem "já não
Não sabia que se aprendia isso na escola.
é possível pensar de modo algum". Nesse ponto, cabe
a pergunta: afinal, só pensa e reflete quem filosofa? É
Na continuidade do texto, Sponville assim comenta claro que não, já que você pensa quando resolve uma
o diálogo: equação matemática, reflete criticamente ao estudar
história geral, pensa antes de decidir sobre o que fazer
o
u
O que é um filósofo? Éalguém que pratica a filosofia, no fim de semana, pensa quando escreve um poema.
.,Ç>
em outras palavras, que se serve da razão para Então, que tipo de "pensar" é esse, do filósofo? Não
tentar pensar o mundo e sua própria vida, a fim de é melhor nem superior a todos os outros, mas sim dife-
se aproximar da sabedoria ou da felicidade. Eisso se rente, porque se propõe a "pensar nossos pensamen-
aprende na escola? Tem de ser aprendido, já que tos e ações". Dessa atitude resulta o que chamamos
ninguém nasce filósofo e já que a filosofia é, antes de experiência filosófica. Ao criar ou explicitar conceitos,
mais nada, um trabalho. Tanto melhor, se ele começar os filósofos delimitam os problemas que os intrigam e
na escola . O importante é começar, e não parar mais. buscam o sentido desses pensamentos e ações, para não
Nunca é cedo demais nem tarde demais para filosofar, aceitarem certezas e soluções fáceis demais.
dizia Epicuro [... ]. Digamos que só é tarde demais Se olharmos com atenção esta tira do cartunista
quando já não é possível pensar de modo algum. argentino Quino, constatamos que Mafalda faz uma
Pode acontecer. Mais um motivo para filosofar sem interrogação filosófica sobre o sentido da existência, mas
mais tardar. 1 seu amigo Felipe quer se livrar o mais rapidamente dessa
questão, ou seja, recusa-se a essa forma de pensar.

NUNCA . MAS ESTOU ME QUANTO MAIS


PERGUNTANDO AGORA: DEPRESSA AGENTE
• PARA QUE A GENTE SE LIVRAR DESSE
ESTÁ NESTE TIPO DE PROBLEMA,
MUNDo"" MELHOR!

Tirinha da Mafalda, personagem criada pelo argentino Qui no. Mafalda 3,1968. Em: LAVADO, Joaquim
Salvador (Qu mo). Toda Mafa /da: da primeira à última tira. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 79-

1
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 251-252.

A experiência filosófica Capítulo 1


I
MILHÕES E. MILHÕES
DE PESSOAS VIYEM
NO MUNDO. PARA
QUÊ~

Tirinha da Mafalda, personagem criada pelo argentino Qui no. Majalda 3,1968. Em: LAVADO, Joaquim
Salvador (Qumo). Toda Majalda: da primeira à última tira . São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 79.

Os que acompanham o trabalho de Quino sabem Quantas vezes você já se perguntou sobre o que é
que Manolito tem uma mentalidade ~mática. Por o amor, a amizade, a fidelidade, a solidão, a morte?
isso, nesta outra tira, promete dar uma resposta no dia Certamente, não só pensou sobre esses assuntos,
seguinte, sem perceber que essa pergunta fundamen- como eventualmente discutiu a respeito com seus
tal não depende de procurar uma informação qual- amigos, observando que às vezes os pontos de vista
quer. Trata-se de um problema filosófico permanen- não coincidem. Essas divergências também ocorrem
temente aberto à discussão e para o qual não existe entre os filósofos.
resposta unânime. Com isso, não identificamos a filosofia de vida com
a reflexão do filósofo propriamente dita, mas nota-
mos que as indagações filosóficas permeiam a vida
fJ A filosofia de vida de todos nós. Os filósofos especialistas conhecem a
Talvez você tenha percebido que existe outra idei a história da filosofia e levantam problemas que ten-
permeando a explicação dada por Sponville no início tam equacionar não pelo simples bom-senso, mas por
do capítulo: a de que é possível a qualquer pessoa pro- meio de conceitos e argumentos rigorosos.
Q.

por questões filosóficas. De fato, na medida em que Por conta dessa afinidade que todos temos com o o

somos seres racionais e sensíveis, sempre damos sen- filosofar, parece claro que seria proveitoso sabermos 8"'
o

tido às coisas. A esse "filosofar" espontâneo de todos um pouco sobre como os filósofos se posicionaram a "
~

"'
nós, chamamos de filosofia de vida. A propósito desse respeito de determinados tema.s. Desse modo, você
assunto, o filósofo italiano Antonio Gramsci diz: poderá enriquecer sua reflexão pessoal por meio de
uma argumentação mais rigorosa, o que não significa
sempre concordar com eles. Muito pelo contrário, a dis-
não se pode pensar em nenhum homem que não seja cussão filosófica está sempre aberta à controvérsia.
também filósofo, que não pense, precisamente porque
o pensar é próprio do homem como tal. 2
D Para que serve a filosofia?
Então as questões filosóficas fazem parte do Retomando o texto de abertura do capítulo: será que a
nosso cotidiano? Fazem sim. Quando alguém decide opinião do camponês destoa do que muita gente pensa a
votar em um candidato por ser de determinado par- respeito do filósofo, quando diz ser ele "urna pessoa que
tido político; quando troca o emprego por outro não não liga para nadá'? Essa ideia não estaria ligada a outra:
tão bem remunerado, mas que é mais de seu agrado; a de achar que a filosofia não serve para nada?
quando alterna a jornada de trabalho com a prática Afinal, qual é a "utilidade" da filosofia?
de esporte ou com a decisão de ficar em casa assis- Vivemos num mundo que valoriza as aplicações
tindo à tevê; quando investe na educação dos filhos, imediatas do conhecimento. O senso comum aplaude
e assim por diante. É preciso reconhecer que exis- a pesquisa científica que visa à cura do câncer ou da
tem critérios bem diferentes fundamentando tais aids; a matemática no ensino médio seria importante
decisões, pois há valores que entram em jogo nes-
sas escolhas, e a indagação sobre os valores é uma Pragmático. No contexto, aquilo que diz respeito
tarefa filosófica. à aplicação prática, à utilidade.

2
GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 45.

Unidade 1 Descobrindo a filosofia


por "cair" no vestibular; a formação técnica do advo-
gado, do engenheiro, do fisioterapeuta prepara para o
S lnforma~ão, conhecimento
exercício dessas profissões. Diante disso, não é raro que e sabedoria
alguém indague: "Para que estudar filosofia se não vou Para melhor entender o campo da experiência filo-
precisar dela na minha vida profissional?" sófica, o filósofo espanhol Fernando Savater faz uma
De acordo com essa linha de pensamento, a filo- distinção entre informação, conhecimento e sabedoria.
sofia seria realmente "inútil", já que não serve para Aproveitamos os três tópicos para comentá-los livre-
nenhuma alteração imediata de ordem prática. No mente a seguir.
entanto, a filosofia é necessária. Por meio daquele
"olhar diferente", ela busca outra dimensão da reali- • lnforma~ão
dade além das necessidades imediatas nas quais o Ao lermos um jornal, uma determinada notícia
indivíduo encontra-se mergulhado: ao tornar-se capaz pode nos chamar a atenção, como a que simulamos
de superar a situação dada e repensar o pensamento e a seguir, a partir de dados recolhidos na mídia.
as ações que ele desencadeia, o indivíduo abre-se para
a mudança. Tal como o artista, a que nos referimos na
abertura do capítulo, ao filósofo incomoda o imobi- A gravidez na adolescência quase sempre é uma
lismo das coisas feitas e muitas vezes ultrapassadas. gravidez não planejada e, por isso, indesejada .
Por isso mesmo, a filosofia pode ser "perigosa", por Desde 1970, a incidência de casos tem aumentado
exemplo, quando desestabiliza o status qy.a ao se con- significativamente, ao mesmo tempo que tem
frontar com o poder. É o que afirma o historiador da diminuído a média de idade das adolescentes
filosofia François Châtelet: grávidas. Na maioria das vezes, a gravidez na
adolescência ocorre entre a primeira e a quinta
relação sexual , e a jovem grávida procura o serviço
Desde que há Estado- da cidade grega às burocracias de saúde para fazer o pré-natal apenas entre o
contemporâneas - , a ideia de verdade sempre se terceiro e o quarto mês de gravidez.
voltou, finalmente, para o lado dos poderes [... ]. Por
.
_,
c conseguinte, a contribuição específica da filosofia que
~ se coloca a serviço da liberdade, de todas as liberdades, • Conhecimento
&
8 é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas Para explicar essa notícia, podemos lançar mão de
o
"O
ações que desencadeia, as instituições repressivas e uma série de conhecimentos. Por exemplo:
simplificadoras: quer se trate da ciência , do ensino,
~
o
• a ciência da história descreve as transformações
"
<i
da tradução, da pesquisa, da medicina , da família, da do comportamento sexual desde a década de
~
.
"-
0

g
polícia, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos,
o que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá -la,
1960 e analisa suas causas, mostrando o afrou-
xamento das regras que proibiam a atividade
i arrancá-la ... 3
a: sexual antes do casamento, principalmente para
as mulheres;
• a sociologia investiga a repercussão desses compor-
U' PARA REFLETIR tamentos nos novos modelos de família (aumento
do número de divórcios; liberação da mulher;
Sempre há os que ignoram os fi lósofos. Mas não
é o caso dos ditadores: estes os fazem calar, pela ampliação do espaço da mulher no mercado de
censura, porque bem sabem quanto eles ameaçam trabalho; as famílias monoparentais, em que as
seu poder. crianças vivem apenas com um genitor, na maior
parte das vezes, a mãe; as uniões de pessoas do
mesmo sexo);
É bem verdade, alguns dirão, sempre houve e ainda • a biologia descreve como se dá a concepção - e
haverá pensadores que bajulam os poderosos e que descobre processos de contracepção-, conheci-
emprestam suas vozes e argumentos para defender mentos que podem explicar os riscos da gravidez
tiranos. Nesse caso, porém, estamos diante das fra- precoce para a saúde das mais jovens;
quezas do ser humano, seja por estar sujeito a enga-
nos, seja por sucumbir ao temor ou ao desejo de pres- Status quo. Expressão latina que significa estado atual
tígio e glória. das coisas, situação vigente.

3
CHÂTELET, François. História da jilnsojia: ideias, doutrinas. v. VIII. Rio de Janeiro: Zahar, s. d. p. 309.

A experiência filosófica Capítulo 1


• a antropologia (científica) compara esse tipo de • Sabedoria
comportamento e suas consequências em diver-
O conceito de sabedoria recebeu vários significados
sas culturas;
ao longo da história humana. Vamos escolher aquele que
• a psicologia investiga os conflitos de uma gravi- diz respeito às decisões refletidas que visam buscar um
dez indesejada, o difícil confronto com a família, caminho para o bem-viver. Nesse sentido, por sabedoria
a reação emocional do jovem futuro pai, a brusca entendemos um conceito amplo, que tanto inclui a ati-
ruptura dos projetos de vida diant e de novos e tude do filósofo como também de qualquer pessoa.
inesperados encargos etc. Diante do tema que propusemos discutir - a gravi-
Inúmeras outras ciências ocup am-se desse dez precoce - , as questões que se colocam são inúme-
assunto, sem nos esquecermos de que mesmo as pes- ras: o que significa para esses jovens se descobrirem futu-
soas não especializadas analisam esse fato pelo senso ros pais? Qual é o sentido desse acontecimento para suas
comum, baseando-se nos seus conhecimentos, valores vidas? Que atitude tomar diante do fato consumado:
e crenças. levar a gravidez até o final ou abortar? Dúvida dramá-
tica, que exige reflexão ética e envolve questões como
liberdade dos jovens versus direito à vida da criança
A propósito do tema da liberdade e da escolha
autônoma, transcrevemos trechos de dois filósofos
franceses, que podem servir como ponto de partida
para uma reflexão sobre a gravidez precoce e não
plan ejada.
A filósofa francesa Simone de Beauvoir diz:

Nenhuma questão moral se coloca para a criança,


enquanto ela é incapaz de se reconhecer no passado,
de se prever no futuro; é somente quando os
momentos de sua vida começam a organizar-se em
conduta que ela pode decidir e escolher. Concretamente,
é através da paciência, da coragem, da fidelidade que se
confirma o valor do fim escolhido e que, reciprocamente,
manifesta-se a autenticidade da escolha. Se deixo para
trás um ato que pratiquei, ao cai r no passado ele se torna
coisa ; não é mais do que um fato estúpido e opaco. Para
impedir essa metamorfose, é preciso que, sem cessar,
eu o retome e o justifique na unidade do projeto em
que estou engajado. [...]Assim, não poderia eu hoje
desejar autenticamente um fim sem querê-lo através de
Protect m efrom what I want.lntervenção minha existência inteira, como futuro deste momento
de Jenny Ho lzer. Londres, 198 8.
presente, como passado superado dos dias a vir: querer é
]enny Holzer é urna artista conceitual que ao comprometer-me a perseverar na minha vontade 4
final da década de 1970 e durante a década de
1980 fazia intervenções nos espaços públicos
de diversas cidades. Suas frases instigantes Leia agora este trecho de outro filósofo francês,
Georges Gusdorf:
propiciavam a reflexão filosófica: o que significa
Protect me from what I want ("Proteja-me do
que eu desejo")? Quero que alguém me proteja? A liberdade é uma das ma iores reivindicações da
Ou sou eu mesmo que devo fazê-lo? E por que ado lescência, mas a liberdade que ela reivi nd ica é
(ou quando) haveria eu de me proteger do meu uma sombra da liberdade autêntica, tanto quanto a
desejo? Qual é a relação entre desejo e razão? espontaneidade criadora que se imagina descobrir na
criança não passa de uma sombra e o simu lacro de

4
BEAUVOIR, Simone de. Moral da ambiguidade. Rio de Jan eiro: Paz e Terra, 1970. p. 20.

Unidade 1 Descobrindo a filosofia


um verdadeiro poder criador. A liberdade adolescente Além disso, a filosofia não está à margem do
é uma adolescência da liberdade, uma liberdade mundo, nem constitui uma doutrina, um saber aca-
de aspiração, uma aspiração à liberdade, sem bado ou um conjunto de conhecimentos estabeleci-
conteúdo preciso, na onda das paixões e a confusão dos de uma vez por todas. Ao contrário, a filosofia
dos sentimentos e das ideias. [... ]A juventude não é pressupõe constante disponibilidade para a inda-
a idade da liberdade, mas o tempo de aprendizado
gação. Por isso, Platão e Aristóteles disseram que a
da liberdade, a li berdade não sendo definível pela
primeira virtude do filósofo é admirar-se, ser capaz
ausência e restrição, ou a revolta contra as restrições.
de se surpreender com o óbvio e questionar as ver-
o homem livre é aquele que, tendo feito a prova dos
dades dadas. Essa é a condição para problematizar,
diversos aspectos, dos componentes da personalidade,
o que caracteriza a filosofia não como posse da ver-
chegou a pôr em ordem a consciência que tem d~ si
mesmo, no projeto de sua afirmação no mundo. E dade e sim como sua busca.
absurdo imaginar que a criança, o rapaz, possa um
belo dia entrar no gozo de sua liberdade, vinda a
• O processo do filosofar
ele como uma dádiva do céu. A liberdade de um ser
humano se faz difici lmente, ela se conquista dia a Kant, filósofo alemão, assim se refere ao filosofar:
dia, ela é o desafio de uma conquista, ausente nos
começos da vida, desenha-se no decorrer dos anos de Não é possível aprender qualquer filosofia;
formação que correspondem a um percurso através
[... ]só é possível aprender a filosofar, ou seja,
do labirinto mítico das significações e possibilidades
exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os
da existência. Procura do sentido, procura do centro,
seus princípios universais em certas tentativas
tomada de consciência da autenticidade pessoal , não
filosóficas já existentes, mas sempre reservando
sem angústia nem sofrimento 5
à razão o direito de investigar aqueles princípios
até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou
rejeitando-os. 6
U' PARA REFLETIR
A partir dos dois trechos transcritos, de Beauvoir
e Gusdorf, leva nte as características pelas quais
Em que essa citação de Kant pode orientar seu
eles expõem o que entendem por escolha livre. Em contato com a filosofia? Ela serve para advertir que,
seguida, estabeleça uma relação com a notícia de jor- mesmo estudando o pensamento dos grandes filóso-
na l sobre a gravidez de adolescentes. fos-eéimportantequeseconheçaoquepensaram - ,
você mesmo deve aprender a filosofar, exercer o
direito de refletir por si próprio, de confirmar ou
É possível definir filosofia? rejeitar as ideias e os conceitos com os quais se
depara. Em outras palavras, a filosofia é sobretudo
Talvez você esteja se perguntando: Como então
a experiência de um pensar permanente.
definir o que é filosofia? O filósofo alemão Edmund
Mais que um saber, a filosofia é uma atitude
Husserl diz que ele sabe o que é filosofia, ao mesmo
diante da vida, tanto no dia a dia como nas illllã;;
tempo que não sabe. Isto é, a explicitação do que é
ções-limite, que exigem decisões cruciais. Por
a filosofia já é uma questão filosófica. E adverte que
isso, no seu encontro com a tradição filosófica,
apenas os pensadores pouco exigentes se contentam
é preferível não recebê-la passivamente como um
com definições cabais.
produto, como algo acabado, mas compreendê-la
como processo, reflexão crítica e autônoma a res-
lY ETIMOLOGIA peito da realidade.
Fi losofia. A palavra fi losofia (philos-sophia) significa
"amor à sabedoria" ou "am izade pelo saber". Pitágoras Simulacro. Representação, imitação.
(séc. VI a.C.}, fil ósofo e matemático grego, teria sido o
Situação-limite. Expressão que se refere a situações
primeiro a usa r o termo filósofo, por não se considerar
extremas de adversidade, como a ameaça de morte, uma
um "sábio" (sophos), mas apenas alguém que ama e
doença, a perda de um ente querido, experiências que
procura a sa bedori a.
modificam nosso olhar sobre nosso cotidiano.

GUSDORF, Georges. Impasses e progressos da liberdade. São Paulo: Convívio, 1979. p. 107-108.
& KANT, lrnmanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 4ü7.

A experiência filosófica Capítulo 1


• A reflexão filosófica coisa seja bela. Nesse sentido, para ele as ideias são
mais "reais" que as próprias coisas.
Já dissemos que a reflexão não é privilégio do filó-
No entanto, o conceito de ideia seria rein-
sofo. O que, portanto, distingue a reflexão filosófica
ventado ao longo da história da filosofia, assu-
das demais?
mindo conotações diferentes em Descartes,
O filósofo brasileiro Dermeval Saviani, no livro
Kant, Hegel e assim por diante. É pelo rigor
Educação brasileira: estrutura e sistema, na tentativa
dos conceitos que se inovam os caminhos da
de se aproximar de uma definição possível, concei-
reflexão. E isso não significa que um filósofo
tua a filosofia como uma reflexão radical, rigorosa e
"suplanta" outro, porque qualquer um deles pode -
de conjunto sobre os problemas que a realidade apre-
e deve - ser revisitado sempre.
senta. Explicaremos esses três tópicos.

PARA REFLETIR
@ETIMOLOGIA
Você já ouviu falar em ética aplicada? É um ramo da
Reflexão. Reflectere, em latim, significa "fazer retroce- filosofia contemporânea que trata de questões práti-
der", "voltar atrás". Portanto, refletir é retomar o pró- cas que, por sua vez, exigem justificação racional. São
prio pensamento, pensar o já pensado, voltar para si ramos da ética aplicada: a bioética, a ética ambien-
mesmo e questionar o já conhecido. tal e a ética dos negócios, que refletem, por exemplo,
Radical. Em latim, radix, radicis significa "raiz", mas sobre a manipulação do genoma humano, o desastre
também "fundamento", "base". ecológico e a responsabilidade socia l das empresas,
respectivamente.

a) Radical
A filosofia é radical, não no sentido corriqueiro
de ser inflexível- nesse caso seria a antifilosofia! -,
mas porque busca explicitar os conceitos fundamen- 2"

tais usados em todos os campos do pensar e do agir. "'oi


Por exemplo, a filosofia das ciências examina os pres-
supostos do saber científico: é ela que reflete sobre o
que a comunidade científica define como ciência,
como a ciência se distingue da filosofia e de outros
tipos de saber, quais são as características dos diver-
sos métodos científicos, qual a dimensão de verdade
das teorias científicas e assim por diante. O mesmo se
dá com a psicologia, ao abordar o conceito de liber-
dade: indagar se o ser humano é livre ou determinado
já é fazer filosofia.
h) Rigorosa
Os filósofos desenvolvem um pensamento rigo-
roso, justificado por argumentos, coerente em suas
diversas partes. O uso de linguagem rigorosa evita
as ambiguidades das expressões cotidianas, o que
permite a interlocução com outros filósofos a partir
de conceitos claramente definidos. Por isso criam
expressões novas ou alteram o sentido de palavras
usuais. Por exemplo, enquanto o termo ideia no Fotocomposição mostrando mãos que
envolvem o planeta Terra, 2000.
grego arcaico (eidos: "forma") significava a intuição
sensível de uma coisa (aquilo que se vê ou é visto),
Platão criou o conceito de ideia para referir-se à A partir dessa figura, faça urna reflexão sobre
concepção racional do conhecimento, a forma ima- a ética ambiental: quais são as responsabHldades
terial de uma coisa. Por exemplo, as pessoas e as humanas (para o bem e para o mal) pelo destino
coisas belas são percebidas pelos meus sentidos, do planeta? Proponha um titulo para a imagem
mas a beleza é uma ideia pela qual compreendo a e escreva um breve texto sobre o assunto.
essência - ou seja, aquilo que faz com que uma

Unidade 1 Descobrindo a filosofia


c) De conjunto No sentido comum, usamos a ironia para dizer algo
A filosofia é um tipo de reflexão totalizante, de e expressar exatamente o contrário. Por exemplo: afir-
conjunto, porque examina os problemas relacio- mamos que alguma coisa é bonita, mas na verdade
nando os diversos aspectos entre si. Mais ainda, o insinuamos que é muito feia. Diferentemente, para
objeto da filosofia é tudo, porque nada escapa a seu Sócrates, a ironia consiste em perguntar, simulando
interesse. Por exemplo, o filósofo se debruça sobre não saber. Desse modo, o interlocutor expõe sua opi-
assuntos tão diferentes como a moral, a política, a nião, à qual Sócrates contrapõe argumentos que o
ciência, o mito, a religião, o cômico, a arte, a téc- fazem perceber a ilusão do conhecimento.
nica, a educação e tantos outros. Daí o caráter trans- A maiêutica centra-se na investigação dos concei-
disciplinar da filosofia, ao estabelecer o elo entre as tos. Para tanto, Sócrates faz novas perguntas para que
diversas expressões do saber e do agir. Desse modo, seu interlocutor possa refletir. Portanto não ensina,
o avanço da biologia genética desperta a discussão mas o interlocutor descobre o que já sabia. Sócrates
filosófica da bioética; a produção artística provoca a dizia que, enquanto sua mãe fazia parto de corpos, ele
reflexão estética e assim por diante. ajudava a trazer à luz ideias.
O interessante nesse método é que nem sempre as
discussões levam de fato a uma conclusão efetiva, mas
.... ainda assim trazem o benefício de cada um abando-
PARA SABER MAIS
nar a sua doxa, termo grego que designa a opinião, um
As áreas de investigação fi losófica
conhecimento impreciso e sem fundamento. A partir
Os ca m pos clássicos da invest igação filosófica
são: Lógica, Metafísica, Teoria do Conhecimento, daí, é possível abandonar o que se sabia sem crítica e
Epistem ologia, Filosofia Política, Ética, Estética. Para atingir o conhecimento verdadeiro.
saber de sua abrangência, consulte os verbetes no
Vocabu lário, no fina l do livro.
Exi st em ta m bém inúmeras aplicações da filosofia a
QUEM É?
áreas específicas do conhecimento. Veja alguns exem-
plos: fi losofia da educação, filosofia da linguagem, filo- Sócrates (c. 470-399 a.C.). Nasceu
sofia do d ire ito, fi losofia da rel igião, filosofia de cada e viveu em Atenas, Grécia. Filho
uma das ciências (fi losofia da matemática, da história, de um escultor e de uma parteira,
da biologia etc.} e assim por diante. Sócrates conhecia a doutrina dos
filósofos que o antecederam e de
seus contemporâneos. Discutia em

mUm filósofo
praça pública sem nada cobrar. Não
deixou livros, por isso conhecemos Busto de
suas idei as por meio de seus discí- Sócrates,
Lembremos a figura de Sócrates. Dizem que era um pulos, sobretudo Platão e Xenofonte. original
Acusado de corromper a mocidade e grego do
homem feio, mas que, quando falava, exercia estra- século IV a.C.
negar os deuses oficiais da cidade, foi
nho fascínio. Procurado pelos jovens, passava horas
condenado à morte. Esses aconteci-
discutindo na praça pública. Interpelava os transeun- mentos finais são relatados no diálogo de Platão,Oefesa
tes, dizendo-se ignorante, e fazia perguntas aos que de Sócrates. Em outra obra, Fédon, Sócrates discute com
julgavam entender determinado assunto: "O que é a os discípulos sobre a imortalidade da alma, enquanto
coragem e a covardia?", "O que é a beleza?", "O que é aguarda o momento de beber a cicuta. Na maioria dos
diálogos platônicos, Sócrates é o protagonista.
a justiça?", "O que é a virtude?". Desse modo, Sócrates
não fazia preleções, mas dialogava. Ao final, o inter-
locutor concluía não haver saída senão reconhecer a
própria ignorância. A discussão tomava então outro • "Só sei que nada sei"
rumo, na tentativa de explicitar melhor o conceito. Em certa passagem de a Defesa de Sócrates, na
Vejamos então esses dois momentos, que Sócrates qual se refere às calúnias de que foi vítima, o pró-
denominou ~ e maiêutica. prio filósofo lembra quando esteve em Delfos,
local em que as pessoas consultavam o á
~ no templo de Apolo para saber sobre assun-

lY ETIMOLOGIA tos religiosos, políticos ou ainda sobre o futuro.


Ironia. Do g rego eironeía,"ação de pergu ntar, fingindo
ignora r".
Oráculo. Resposta da divindade às perguntas feitas
Maiêutica. Do grego maieutiké, "arte de fazer um
parto". pelos devotos.

A experiência filosófica Capítulo 1

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