Você está na página 1de 4

WarnEr BroS.

/EVErEtt CollECtion/FotoarEna
imagem do filme Matrix (1999), no qual a maioria da humanidade vive de forma inconsciente uma “realidade virtual” criada por
máquinas. É possível comparar a história desse filme com o argumento do gênio maligno de Descartes?

A descoberta da primeira certeza


Submerso na dúvida hiperbólica, mergulhado riam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la,
no nada, Descartes segue buscando. Como em sem escrúpulo,como o primeiro princípio da Filosofia
um jogo de xadrez ou em um enigma, procura que procurava (p. 46).
uma saída para a exigência autoimposta de um observe que o próprio ato de pensar, sem impor-
gênio maligno que quisesse enganá-lo sempre. tar os conteúdos, não pode ser colocado em dúvida
tem então a seguinte intuição com relação a seu por aquele que duvida. tente duvidar que está pen-
próprio ato de duvidar e de pensar: sando agora, neste mesmíssimo instante... Você verá
Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? [...] que, enquanto duvida que está pensando, está pen-
Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso sando, pois é impossível duvidar sem pensar. Por-
e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em tanto, você pensa, com certeza. ora, se você pensa,
enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de deve haver algo (que é você) que produz esse pensa-
que sou, se ele me engana; e, por mais que me enga- mento. Você deve ser, no mínimo, uma coisa que
ne, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, pensa. Daí a conclusão de Descartes, uma das mais
enquanto eu pensar ser alguma coisa. (Medita•›es,
célebres frases da história da filosofia: “Penso, logo
p. 23-24; destaques nossos.)
existo”, que ficou conhecida como cogito (forma re-
Em outras palavras, o filósofo percebe que, se duzida de Cogito, ergo sum, a mesma frase em latim).
um ser enganador o enganava, ele, Descartes, Essa foi a primeira certeza de Descartes: a de
tinha de ser algo enquanto era enganado. E, se existir como “coisa que pensa” enquanto pensa. Ele
duvidava, também devia ser algo que existia en- não podia ainda concluir que há uma coisa corporal,
quanto duvidava, mesmo que não tivesse corpo. mas pôde afirmar que existe uma coisa pensante. a
Essa reflexão é resumida de maneira mais clara partir dessa certeza, o filósofo trataria de alcançar
em sua obra Discurso do método: outras certezas, como a existência de Deus e do
[...] enquanto eu queria assim pensar que tudo era mundo material, na sequência de suas meditações.
falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, Como o estudo dessas certezas excede os
fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu propósitos deste capítulo, sugerimos que você,
penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas se ficou curioso ou curiosa, leia a sequência das
as mais extravagantes suposições dos céticos não se- reflexões do filósofo na obra Meditações.
Cap’tulo 2 A dœvida 49
toPham/FotomaS/kEyStonE
Meditações metafísicas (1641)

Menos conhecidas pelo grande público do que o Discurso do


método, para os filósofos, porém, Meditações metafísicas constituem
a obra mestra de Descartes,livro em torno do qual se articulam todos os
outros textos.E mais: um pilar e um eixo para toda a história da filosofia.
As Meditações devem ser lidas por si mesmas, sem referência
histórica ou erudita. Não que não tenham história, como qualquer
outro texto, mas porque traçam num presente eterno a trajetória de
um pensamento que decidiu apoiar-se apenas em si mesmo, contar
apenas com suas próprias forças, para ter acesso à verdade.

HuisMan, Dicionário de obras filosóficas, p. 363.

Página de abertura de uma edição holandesa das Meditações


metafísicas, em latim, como era costume (Coleção particular).
a primeira impressão dessa obra ocorreu em 1641. observe
que o título original era, em português, Meditações de filosofia
primeira em que se demonstra a existência de Deus e a imortalidade
da alma. a publicação da obra em francês se deu apenas em
1647, com o título pelo qual ela é mais conhecida atualmente.

Conexões

5. Descartes concluiu que pensava e que, por- estado de não saber com certeza se existe
tanto, era “pelo menos” uma coisa que pensa. outra mente (ou sujeito pensante) além de si
no entanto, essa conclusão não lhe permitia mesmo, além do eu.
deduzir que existissem outras mentes, outras reflita sobre essa concepção. Você consegue
coisas pensantes como ele. Foi um momento imaginar-se como uma mente sozinha, sendo
solipsista de sua meditação. Solipsismo é esse que todo o resto, coisas e pessoas, é mera ilusão?

Aprendendo a filosofar
Depois do estudo da dúvida metódica de Des- em que tudo o que se diz deve estar bem funda-
cartes, acreditamos que você tenha compreendido mentado. Como já dissemos, não existe apenas um
um pouco mais sobre o que é filosofar e como tipo de método para isso.
se filosofa. no caso de Descartes, aqui vão algumas dicas
Você deve ter percebido, entre outras coisas, sobre seu método, seguido em grande parte até
como é importante aprender a suspender o juízo e nossos dias pelos cientistas:
a pesquisar mais profundamente um assunto an- • sempre que possível, deve-se partir do mais
tes de emitir uma opinião sobre ele. tudo o que nos simples (isto é, daqueles conceitos que podem
parece mais evidente em determinado instante ser compreendidos com mais simplicidade, sem
pode ser percebido como falso ou incerto se ana- depender da compreensão de outros conceitos)
lisado em outro instante, em outra perspectiva e até chegar ao mais complexo (isto é, os concei-
com mais rigor. tos compostos, que pressupõem outros concei-
nesse processo também se descobre, muitas tos em seu entendimento). um exemplo bem
vezes, o sentido ou as razões profundas de certos fácil: para saber fazer uma soma (conceito com-
fatos, atos ou crenças dos quais tínhamos antes plexo), você precisa entender primeiro o que é
apenas uma compreensão superficial (isso ficará número (conceito simples) e, depois, o conceito
mais claro para você nos próximos capítulos). de adição (conceito menos simples que número,
outro aspecto importante que acabamos de pois depende deste para ser entendido);
trabalhar é a ideia de que a investigação filosófica • geralmente se vai do que é básico, dos funda-
sobre determinado tema deve ser conduzida com mentos, até o “corpo” completo de determinado
bastante critério, de maneira metódica e ordenada, assunto. Por exemplo: para entender o tema da
50 Unidade 1 Filosofar e viver
violência social, comece por investigar aquele etapas de nossa existência do que em outras. Por-
que a pratica, o ser humano, em suas diversas tanto, vá com calma: se algumas pistas fornecidas
dimensões básicas (mental, emocional e física, por ele não parecem ser úteis ou significativas para
por exemplo), bem como em sua interação com você agora, deixe-as guardadinhas em um canto de
o meio ambiente, com outros seres humanos e sua memória até surgir o momento adequado de
instituições sociais, e assim progressivamente. resgatá-las. Você não vai se arrepender disso.
Sabemos, porém, que as conclusões às quais

SCiEnCE SourCE/gEtty imagES


chega um filósofo muitas vezes podem causar
frustração naquele que o acompanhou com tanto
interesse. Se isso acaba de acontecer com você,
podemos dizer que é compreensível. mas tenha
paciência. tanto em filosofia como na vida em
geral, é importante não ser precipitado nem pre-
conceituoso, como recomendou o próprio Descar-
tes, principalmente quando se trata de aprender.
E é isso o que você está fazendo agora: aprendendo
a aprender, aprendendo a filosofar.
assim, considere, primeiramente, que você ain-
da tem pouca “experiência” filosófica. além disso, ilustração baseada
você é jovem, e a filosofia é algo para toda a vida. na escultura de
Charles Degeorge
muitos temas ou explicações oferecidos por deter- A juventude de
minado pensador fazem mais sentido em certas Aristóteles (1875).

Análise e entenDimento
5. Por que o exercício da dúvida realizado por Des- 10. Qual é a primeira certeza que rompe com a dúvida
cartes é conhecido como “dúvida metódica”, mas hiperbólica? Explique como o filósofo chegou a ela.
também como “dúvida radical ou hiperbólica”? 11. relacione a dúvida cartesiana em relação aos
6. identifique a ambição de Descartes ao se propor sentidos com a teoria de Platão sobre o mundo
realizar a dúvida metódica. sensível.
7. resuma o critério de verdade adotado pelo filósofo. 12. no segundo parágrafo da citação contida no
8. Diferencie as “ideias que nascem dos sentidos” das quadro Meditações metafísicas, o autor consi-
“ideias que nascem da razão”. Exemplifique. dera que essa obra de Descartes não pode ser
9. analise a dúvida metódica de Descartes, passo compreendida sem a ajuda do contexto histórico
a passo, destacando os principais raciocínios ou do filósofo? ou critica seu caráter atemporal?
argumentos. Justifique.

ConveRsA filosófiCA
3. Cegueira se sabe; também se deve possuir a acuidade lógica
O pior cego é aquele que não quer ver. (Provérbio e o hábito do pensamento exato. Tudo isso, claro,
popular.) é uma questão de grau. A incerteza, em particular,
Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos pertence, até certo ponto, ao pensamento humano;
fechados sem nunca os haver tentado abrir (Des- podemos reduzi-la indefinidamente, embora jamais
cartes, Princípios da filosofia, Prefácio).
possamos aboli-la por completo. Em consequência,
a filosofia é uma atividade contínua, e não uma
interprete essas duas afirmações, observan- coisa pela qual podemos conseguir uma perfeição
do suas semelhanças e diferenças e buscando final, de uma vez por todas. (russell, Fundamentos
exemplos para ambas. Depois, em grupo, discuta de filosofia, p. 9.)
suas conclusões avançando sobre o problema da
“cegueira” e o que as pessoas não querem ver. Descartes concordaria com o filósofo britânico
Bertrand russell (1872-1970) quanto à ideia de
4. Certezas e incertezas que a filosofia deve ser uma atividade contínua?
Para ser um bom filósofo deve-se ter o desejo forte de E você? Em grupo, debata com colegas sobre es-
saber, combinado à grande cautela em acreditar que sas questões.
Cap’tulo 2 A dœvida 51
PROPOSTAS FINAIS

de olho na universidade

(uFu-mg) Em O Discurso sobre o método, Descartes afirma:


“não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece ser tal pela evidência, ou seja,
evitar acuradamente a precipitação e a prevenção, assim como nunca se deve abranger entre nossos juí-
zos aquilo que não se apresente tão clara e distintamente à nossa inteligência a ponto de excluir qualquer
possibilidade de dúvida” (REAlE, g.; AnTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Descartes. trad. de ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 289).
após a leitura do texto acima, assinale a alternativa correta.
a) a evidência, apesar de apreciada por Descartes, permanece uma noção indefinível.
b) a evidência é a primeira regra do método cartesiano, mas não é o princípio metódico fundamental.
c) ideias claras e distintas são o mesmo que ideias evidentes.
d) a evidência não é um princípio do método cartesiano.

Sessão cinema

Descartes (1974, itália, direção de roberto rossellini)


obra sobre a vida de Descartes e de sua busca pelo conhecimento. inclui o processo de escritura e publicação
de alguns de seus principais livros e os debates em torno de suas ideias.

Dúvida (2008, Eua, direção de John Patrick Shanley)


Filme ambientado em escola católica do bairro nova-iorquino do Bronx que recebe seu primeiro aluno negro.
inicia-se com o sermão do padre Flynn sobre a dúvida, tema que pautará toda a trama, em um duelo com as
certezas morais da madre superiora.

Horton e o mundo dos Quem (2008, Eua, direção de Jimmy hayward e Steve martino)
animação baseada em livro homônimo de Dr. Seuss, de 1954. o elefante horton conversa com uma partícula
de pó, onde vive uma comunidade microscópica que ninguém acredita existir. o lema de horton é: “toda
pessoa é uma pessoa, não importa seu tamanho”.

Matrix (1999, Eua, direção dos irmãos Wachowski)


Ficção científica em que o mundo é dominado por máquinas que se alimentam da energia dos seres humanos,
enquanto estes vivem uma realidade virtual (matrix), um mundo ilusório criado por essas inteligências artificiais,
embora de fato estejam adormecidos em seus casulos.

52 Unidade 1 Filosofar e viver

Você também pode gostar