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«O homem não está emparedado na subjetividade da raça, da

sociabilidade e dos projetos subjetivos nos quais, de diversas


maneiras, sempre definiu a si mesmo; mas com a sua
existência - que é a práxis - tem a capacidade de superar a
própria subjetividade e de conhecer as coisas como
realmente são».
(Karel Kosik, 1969, p. 229).

SUBJETIVIDADE: REFERÊNCIA EPISTEMOLÓGICA DO


PENSAMENTO MODERNO
Ivanilde Apoluceno de Oliveira1

Considerações Iniciais
Neste texto analisa-se a construção da subjetividade como referência
epistemológica do pensamento moderno, tendo como foco o conflito entre a razão
Cartesiana e a razão Dialética, fundamental para a reflexão sobre a relação Filosofia e
Ciência.
A subjetividade é um dos eixos de sustentação do discurso científico moderno.
Isso significa que o problema da cientificidade das ciências humanas centra-se no
debate filosófico do sujeito consciente. Pensar a Ciência é pensar o ser humano e todo
seu processo histórico de sua produção do conhecimento, cultura e organização social,
política e educacional.
A reflexão sobre a subjetividade no pensamento moderno está associada ao
debate em relação ao processo de construção da racionalidade científica, que perpassa
pelo conflito de concepções de mundo antagônicas como o Idealismo e o Materialismo.

1. A construção da Subjetividade no pensamento moderno


Na história do pensamento ocidental, os Gregos, na Antiguidade, buscavam uma
explicação racional dos fatos, relacionando episteme e verdade. A filosofia é
considerada ciência, cujo saber se dimensiona como enciclopédico, erudito e científico.
A racionalidade clássica se constitui em uma razão subjetiva, cujo princípio da
subjetividade é a compreensão do ser humano como racional e dual, composto de corpo
e alma.
Com o Cristianismo, passa-se do racionalismo filosófico ao racionalismo
teológico. A sabedoria cristã não dispensa a inteligibilidade racional, mas subordina a
filosofia à religião, a razão à fé e a verdade racional à verdade revelada.
O período moderno marca a ruptura com o pensamento escolástico e o tema da
investigação filosófica é deslocado dos fenômenos Deus e religião para a natureza e o
ser humano, emergindo uma nova racionalidade, um novo espírito filosófico e
científico. Em contraposição às verdades reveladas, faz-se renascer as forças da razão
no processo de construção do conhecimento, do saber científico e da verdade.
Em conseqüência, o ser humano é valorizado como ser racional e amplia-se o
campo de sua investigação: o universo com dimensão infinita. O ser humano passa a ser
o «autor» e com o nascimento das Ciências Humanas, passa a ser, também, «objeto» de
1
Texto produzido para fins didáticos. Belém: PPGED, 2005 e atualizado em 2008.
2

Ciência. Emerge, então, neste contexto, a problemática que envolve a passagem «de
sujeito do conhecimento ao objeto da Ciência», de cunho filosófico, epistemológico e
metodológico, questionando-se estatuto de cientificidade das Ciências Humanas e o fato
do referencial do conhecimento e da verdade ser posto na subjetividade, na consciência.
A filosofia moderna, na visão de Chauí (1990, p.80), é caracterizada pela
construção da subjetividade, porque:
realiza a primeira descoberta da Subjetividade propriamente dita, porque nela
o primeiro ato de conhecimento, do qual dependerão todos os outros, é a
Reflexão ou a Consciência de Si Reflexiva. Isto é, os modernos partem da
consciência da consciência, da consciência do ato de ser consciente, da volta
da consciência sobre si mesma para reconhecer-se como sujeito e objeto do
conhecimento e como condição de verdade [...] a filosofia moderna é a
primeira a reconhecer que, sendo todos os seres humanos seres conscientes e
racionais, todos têm igualmente o direito ao pensamento e à verdade.
Garcia-Roza (1987) destaca que a filosofia moderna não alterou a crença na
universalidade da verdade, existindo uma aproximação entre o pensamento moderno e a
episteme platônica, ao definir-se a Ciência como verdadeiro conhecimento.
Para este autor a filosofia moderna constrói uma subjetividade, uma
representação no interior da qual mantém as mesmas exigências e objetivos do discurso
platônico, a constituição da ciência e do conhecimento da verdade. Assim, a
subjetividade consiste no referencial do conhecimento e verdade. A representação é o
lugar de morada da verdade. Isto significa que a verdade habita a consciência seja numa
perspectiva racionalista ou empirista. Ambos diferem no caminho epistemológico, mas
visam o mesmo fim: a verdade, a universalidade e a identidade.
A subjetividade, que se dimensiona na força da razão humana, tem sua base no
racionalismo Cartesiano, perpassa por Kant e culmina em Hegel, referenciais da
concepção idealista moderna de mundo.

1.1. Descartes: subjetividade no cogito


Para Garcia-Roza (1987) é com Descartes que a questão da subjetividade recebe
sua primeira reformulação. Ele tem como preocupação filosófica encontrar uma maneira
do ser humano chegar à verdade (LARA, 1988), por isso faz da dúvida um método.
Busca encontrar o verdadeiro conhecimento, ou seja, algo que seja tão evidente que não
possa ser colocado em dúvida. E a sua única certeza, e que não pode duvidar, é a de sua
existência como ser pensante. «Eu penso, logo existo» (DESCARTES, 1973, p. 54)

Descartes

Penso, logo existo


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Considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando


despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja
nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as
coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais
verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas logo em seguida, adverti que,
enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente
que eu, que pensava fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu
penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes
suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia
aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que
procurava.
[...]pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas
seguia-se muito evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se
apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez
imaginara fosse verdadeiro, já não teria qualquer razão de crer que eu tivesse
existido; compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar,
nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é a alma(2),
pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é
mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não
deixaria de ser tudo o que é.
[...]E, tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me assegure de
que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é
preciso existir, julguei tomar por regra geral que as coisas que concebemos
mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma
dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente. [...]
Pois, enfim, quer estejamos em vigília, quer dormindo, nunca nos devemos
deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão. E deve-se observar que
digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação, ou de nossos
sentidos. (DESCARTES, 1973. P. 54 a 55 e 58).
O eu pensante (res cogitans) é distinto do corpo (res extensa), estabelecendo
Descartes uma visão dualista de ser humano, constituindo-se o eu (sujeito pensante) o
determinante no processo de conhecimento. No processo de investigação da verdade
Descartes (1973) baseia-se na evidência da razão como garantia metodológica. Desta
forma, o cogito (razão) especifica a natureza humana. O pensamento é considerado um
atributo do ser humano, bem como o ponto de referência entre a consciência e a
realidade passa a ser o «eu», uma vez que as coisas são idéias do sujeito.

EU - COGITO
EU DUAL: CONSCIÊNCIA E CORPO
EU = SER PENSANTE (Determinação da consciência sobre o corpo)
SUJEITO (consciência) > OBJETO (fenômeno) = VERDADE
(A racionalidade do Sujeito determina o processo de conhecimento)

2
Descartes insiste na substância da alma como puro pensamento, heterógena à substância do corpo, mas
estabelece também a natureza puramente intelectual da alma.
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Descartes, tal como Platão, separa a certeza, cuja validade epistemológica está
situada na evidencia da razão, da opinião, sendo essa separação denominada por
Japiassu (1982) de «corte epistemológico».
Entretanto, Platão ao dicotomizar a episteme da doxa visa ascender da
particularidade sensível à universalidade da essência «Mundo das Idéias» enquanto
que Descartes visa obter a certeza do conhecimento pelo Cogito, mas com o mesmo
ideal platônico, a busca do verdadeiro conhecimento (GARCIA-ROZA, 1987).

PLATÃO DESCARTES
Mundo das Idéias Subjetividade
Universalidade da Essência (Cogito) = Universalidade da
consciência (natureza humana)
Mundo Inteligível (episteme) Corte Epistemológico
Mundo Sensível (doxa) Cogito Opinião

Objetivo Comum
A constituição da ciência, verdadeiro conhecimento e conhecimento da verdade

O pensar epistemológico racionalista de Descartes se desenvolve na tradição do


pensar platônico, na sua decisão de executar a razão sobre si mesmo, em cujo exercício
redescobre uma "alma filosófica" e a capacidade de reinventar seu próprio mundo pelas
forças de sua própria razão (SPINELLI, 1990).
Descartes diante da incerteza do mundo objetivo afirma a certeza do cogito e
com isso, formula a questão da subjetividade, que é dotada por idéias inatas e
caracterizada pela afirmação da universalidade da consciência. O Cartesianismo supõe
uma universalidade do espírito como fundamento do cogito, não se preocupando em
afirmar a singularidade do sujeito. Descartes retira da subjetividade, do eu penso, toda
concretude individual, isto é, não fala do ser humano concreto, mas de uma natureza
humana, de uma essência universal (GARCIA-ROZA, 1987).

1.2 Kant: subjetividade transcendental


Kant (1974) elabora uma teoria transcendental do conhecimento, significando
que o conhecimento não é transcendente nem imanente, mas transcendental. Na visão
transcendente o conhecimento é das coisas externas ao sujeito, realidade fenomênica
que é transcendente ao eu. No conhecimento o que se conhece são as coisas externas.
Na imanente, as coisas são idéias e o conhecimento do eu é das suas próprias idéias. O
que se conhece são as idéias. Para Kant a transcendentalidade significa que as idéias do
eu são as das coisas, isto é, as coisas se apresentam nas idéias do eu. O sujeito conhece
as coisas nele.
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Conhecimento
Conhecimento
Imanente Transcendente
O conhecimento é
O conhecimento é das coisas externas
constituído pelas ao sujeito,
próprias idéias do realidade
sujeito fenomênica que
transcende ao eu

Transcendental
Conhecimento
Transcendental
As coisas se
apresentam nas
idéias do eu. O
sujeito conhece as
coisas nele
Imanente +Transcendente

Kant (1974, p. 33) denomina de transcendental «todo conhecimento que em


geral se ocupa não tanto com o objetos, mas com o nosso modo de conhecimento de
objetos, na medida em que ele deva ser possível a priori». Denomina a este sistema de
conceitos de filosofia transcendental.
Distingue Kant (1974) entre os fenômenos (coisas tal qual se manifestam ou
aparecem ao eu) e os noumenos (coisas em si) inacessíveis ao conhecimento porque
fazem parte da subjetividade do eu e não são nem espaciais nem temporais, condições
necessárias ao conhecer humano.
Kant considera fenômeno “o que não se pode de modo algum encontrar-se no
objeto em si mesmo, mas sempre na sua relação ao sujeito, sendo inseparável da
representação do primeiro” Acrescenta ainda que os fenômenos: “não podem existir em
si mesmas, mas somente em nós [...] Não conhecemos senão o nosso modo de perceber
os objetos”. (1974, p. 54 e 49).
Desta forma, para o ser humano conhecer as coisas necessita de algo que se
apresenta ao sujeito (transcendente) que é apreendido pelas sensações e do sujeito,
(imanente), cuja consciência, por meio de suas categorias lógicas (quantidade,
qualidade, relação e modalidade) ordena as sensações O processo de conhecimento
efetiva-se pela junção do imanente e do transcendente, caracterizando-se como
transcendental.
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Conhecimento Transcendental
Transcendente Imanente Transcendental
Sujeito Objeto Sujeito Objeto Sujeito Objeto

Desta forma, o processo do conhecimento, para Kant, teria uma parte a


posteriori ou sensível e outra a priori ou, puramente, lógica, que são as categorias ou
funções sintetizadoras do próprio entendimento, as quais são determinantes do
conhecimento. Conhecer então, seria uma função ativa do sujeito. É na consciência do
sujeito que se encontra o suporte da universalidade da razão, por meio de sua estrutura
lógica e formal. O poder do sujeito sobre o objeto da sensação e da percepção resulta da
organização dos dados sensíveis na forma de juízos universais e necessários (SILVA,
1990).
Kant ao afirmar que o eu, por sua capacidade lógica é que torna possível o
conhecimento, mantém em sua subjetividade transcendental a soberania da razão, não se
preocupando com o sujeito individual e concreto (GARCIA-ROZA, 1987).
Kant considera a filosofia transcendental a ciência dos limites da razão humana,
cujos limites só podem ser determinados pela própria razão, refutando as tentativas de
“assinalar os limites à razão em nome da fé ou de uma experiência mística ou supra-
sensível qualquer” (ABBAGNANO, 1970, p. 84).
Segundo Andery (1996, p. 344):
Kant transfere a preocupação com o mundo como objeto da ciência, para o
homem enquanto capaz de fazer a ciência do mundo. Ao explicar a
capacidade de entender humana. Kant associa homem e mundo na explicação
científica – no processo de conhecimento as condições humanas a priori se
vinculam à experiência, o que impede que o sujeito que conhece se anule
frente ao objeto. Para Kant, na produção de conhecimento é necessária a
existência do objeto que desencadeia a ação do nosso pensamento e ao qual
todo conhecimento deve se referir; é fundamental, ainda, a participação de
um sujeito ativo que pense, conecte o que é captado pelas impressões
sensíveis, fornecendo, para isso, algo de sua própria capacidade de conhecer
Assim, a filosofia transcendental é uma investigação crítica sobre a possibilidade
do conhecimento humano, tendo como pressupostos a matemática e as ciências da
natureza, considerando que o grau de certeza dessas ciências decorria de que o
conhecimento formulado baseava-se no vínculo entre razão e experiência, produzindo
juízos sintéticos a priori3 (ANDERY, 1996).

1.3. Hegel: consciência absoluta


Hegel pela dialética supera o princípio lógico da identidade do ser, cujo estado é
definitivo e imutável, apresentando o ser como um vir-a-ser, ou seja, em um processo
em permanente mudança.

3
“Sintéticos no sentido de que neles o predicado acrescenta algo de novo ao sujeito (o que não acontece
com os juízos analíticos); a priori porque têm uma validade necessária que a experiência não pode dar”
(ABBAGNANO, 1970, p. 90). Conforme Kant (1974), os juízos sintéticos são juízos de experiência (Ex:
todos os corpos são pesados) e os analíticos de explicação (Ex: todos os corpos são extensos).
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Segundo Andery (1996, p. 368):


Se o homem está em processo de contínua transformação, o mesmo se aplica
ao conhecimento por ele produzido. O conhecimento é um processo contínuo
que não pode ser desvinculado das condições históricas que o determinaram.
É também progressivo, não existindo verdades eternas. A verdade está
submetida à razão humana, e a razão humana, está submetida à sua história.
A razão em Hegel não é apenas um entendimento humano, como em Kant, e sim
“a realidade profunda das coisas, a essência do próprio ser. Ela não é só um modo de
pensar as coisas mas o próprio modo de ser das coisas” (VERGEZ;HUISMANN, 1988
apud ANDERY, 1996, p. 369)
Na visão epistemológica de Hegel (1995), a consciência encontra sua realização
no espírito enquanto saber e razão absolutos. O saber absoluto e verdadeiro em Hegel
seria o resultado de um movimento dialético lógico e histórico do espírito pelo qual a
consciência se eleva da imediatidade de uma relação com as coisas até o absoluto que se
revela na elucidação conceitual. O real seria racional, identificando Hegel o racional
com o real.
Aquilo que é racional é real; e aquilo que é real é racional» (...) «A
razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade: assim o
idealismo exprime o conceito de razão (Hegel Apud Abbagnano,
1978, p. 109 e 112).

Hegel apresenta a trajetória do espírito em direção à apreensão do mundo em sua


totalidade, por meio de três níveis. O espírito é:
a) Consciência em geral, que tem um objeto como tal;
b) Consciência-de-si, para a qual o Eu é o objeto;
c) Unidade da consciência e consciência-de-si, [de modo] que o espírito
intui o conteúdo do objeto como a si mesmo, e a si mesmo como determinado
em si e para si: [é] razão, o conceito de espírito.
Adendo: Os três graus, apresentados no parágrafo acima, da elevação da
consciência à razão são determinados pela potência ativa do conceito tanto
no sujeito como no objeto, e por isso podem considerar-se como outros tantos
conceitos. [...] Enquanto o não-Eu, que conta para a consciência como
autônomo, é suprassumido pela potência do conceito exercendo-se nele;
[enquanto] é dada ao objeto a forma de um universal, de um interior, em vez
da forma de imediatez, exterioridade e singularidade, e a consciência recolhe
em si esse interiorizado, então como uma interiorização do objeto, aparece
para o Eu seu próprio interiorizar-se, que se realiza justamente por meio
disso. Somente quando o objeto é interiorizado em [tornando-se] um Eu, e
dessa maneira a consciência se desenvolveu em consciência-de-si, o espírito
sabe a potência de sua própria interioridade como presente e atuante no
objeto. Assim, o que na esfera da simples consciência é apenas para nós, que
consideramos, vem-a-ser na esfera da consciência-de-si para o espírito
mesmo. A consciência-de-si tem, por seu objeto, a consciência; e por isso se
contrapõe a ela. Mas ao mesmo tempo, a consciência também é conservada
como um momento nessa mesma consciência-de-si. A consciência-de-si
procede necessariamente, pois, por meio de sua repulsão de si mesma, a
contrapor-se uma outra consciência-de-si, e a dar-se nessa outra um objeto
que lhe é idêntico e contudo, ao mesmo tempo, autônomo. Esse objeto é,
antes de tudo, um Eu imediato, singular. Mas quando ele é liberado da forma,
que lhe está ainda aderente, da subjetividade unilateral, e apreendido como
uma realidade penetrada pela subjetividade do conceito – por conseguinte,
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como idéia -, a consciência-de-si avança de sua oposição à consciência, rumo


à unidade mediatizada com esta [consciência], e torna-se assim o ser-para-si
concreto do Eu, a razão absolutamente livre, que se reconhece a si mesma no
mundo objetivo.Neste ponto seria apenas necessária a observação de que a
razão, que aparece em nosso exame como o terceiro e o último [grau], não é
algo simplesmente último, um resultado proveniente de alguma coisa que lhe
seja estranha, mas antes, o que está na base da consciência e da consciência-
de-si; portanto, o que é o primeiro, e se mostra, pela suprassunção dessas
duas formas unilaterais, como sua originária unidade e verdade» (HEGEL,
1995, p. 187-188).

O Espírito em Hegel (1995) consiste na elevação da consciência à razão por


meio de um movimento dialético constituído pelos seguintes níveis.
1) A consciência do objeto, constituída pela relação imediata da consciência
com o objeto em nível de sensação. Há uma apreensão imediata do fenômeno pela
consciência (como aparece em si). A consciência entrelaça sensações e percepções e
codifica pontos de referência fora de si. O fenômeno torna-se objeto, existe para uma
consciência. O mundo está constituído de objetos (Não-Eu, autônomo, exterior e
singular).
TESE (Posição)

CONSCIÊNCIA (EU) FENÔMENO ( NÃO-EU)


(sujeito) (objeto)

Movimento Dialético do Espírito


Tese (Posição)
Relação imediata (sensível) Consciência do objeto (em si)
Consciência (EU) Fenômeno (não-Eu)
Sujeito Objeto

2) A consciência de si. A consciência percebe que funciona como o elo das


relações estabelecidas entre as percepções. A consciência dá ao objeto uma dimensão
universal e recolhe a si a interiorização do objeto. A consciência descobre-se como
consciência-de-si ( Sujeito), como EU (presente e atuante no objeto). A consciência
descobre a força que lhe é inerente, ou seja, a de visar objetos como seus objetos.
Reconhece-se como determinante no processo de conhecimento. Mas ao mesmo tempo
em que a consciência é mantida como consciência-de-si, repulsa a si mesma ao ver-se
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com uma consciência-de-si objetivada, isto é, uma outra consciência-de-si , vista como
objeto autônomo (EU imediato e singular).

ANTÍTESE (Negação)

CONSCIÊNCIA-DE-SI - EU (CONSCIÊNCIA = OBJETO)

Antítese (Negação)
Relação mediata (consciência) - Consciência de si

Consciência-de-si (Consciência como objeto)


objetivada

3) Unidade (consciência e consciência de si = razão). Quando essa


subjetividade unilateral (consciência-de-si como objeto) é apreendida como uma idéia, a
consciência-de-si avança de sua oposição e condição objetivada à consciência, rumo à
uma unidade.
O Espírito afasta-se de si, no mundo fenomênico e regressa a si. O objeto que
antes estava dividido entre o objeto e a consciência torna-se um movimento total. O
resultado desse movimento é o saber absoluto, verdadeiro. A idéia é o real, é o Ser, que
corresponde à identidade entre o racional e o real.

SÍNTESE
( Negação da Negação, afirmação que supera e conserva)

RAZÃO = SUJEITO ABSOLUTO


(Unidade da consciência e da consciência-de-si)
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Síntese
(Negação da negação > afirmação que supera e conserva)

RAZÃO = SUJEITO ABSOLUTO


(Unidade da consciência em si e da consciência-de-si)

A razão é determinante
no conhecimento

A razão se reconhece a si mesma no mundo objetivo. O espírito somente se


reconhece plenamente quando atinge o nível em que existe em si e para-si ao mesmo
tempo sintetizando os momentos de exterioridade e de interioridade em um estágio mais
alto onde está presente um absoluto, que é sujeito sem se confundir com a consciência
subjetiva.
Neste sentido, Descartes, Kant e Hegel ao estabelecerem no plano
epistemológico a subjetividade (cogito, transcendental e consciência absoluta) como
«poder» da razão a constitui ponto de referência do pensamento moderno no campo da
Filosofia e da Ciência.

2. Crise Filosófica do Sujeito Consciente


Japiassu (1982) explica que no Séc. XIX, as Ciências Humanas nasceram do
que denomina de «deposição do sujeito pensante», isto é, das críticas às concepções
deterministas idealistas do «sujeito pensante», cujos principais representantes são
Descartes, Kant e Hegel. Essa «deposição do sujeito pensante» caracteriza-se por ser
uma «crise filosófica», por gerir a polêmica entre a Filosofia e as Ciências, no que se
refere ao seu objeto de estudo.
As Ciências Humanas ao decretarem a deposição do sujeito pensante,
desapropriaram os filósofos de seu objeto, constituindo, desta forma, um problema
filosófico. O ser humano objeto de estudo da filosofia passou a ser também a ser objeto
da ciência.
Collingwood (1981) problematiza a dicotomia estabelecida entre a Filosofia e a
Ciência após o séc.XIX, com o desenvolvimento da Ciência, com a separação de
estudiosos da ciência natural e dos filósofos em dois grupos de intelectuais, mostrando a
necessidade de se reverter essa situação, porque cada grupo pouco sabe sobre o trabalho
do outro, o que tem prejudicado ambas as partes.
A deposição do sujeito pensante significa a crítica à filosofia idealista esvaziada
do conteúdo real e apegada à certeza absoluta e que aponta para uma nova concepção
epistemológica de sujeito, o concreto. «O homem concreto, vivente, com seu corpo,
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suas necessidades, sua capacidade de trabalho, etc.», pressupondo «a existência de


indivíduos humanos vivos»(JAPIASSU, 1982, p. 183 ).
Esse conflito entre a concepção idealista e materialista no bojo do
desenvolvimento da ciência é analisado por Karel Kosik (1969, p.81-2) que reflete sobre
a passagem histórica do homem «subjetividade» para o homem «econômico», elemento
do sistema, cujo processo altera não só a argumentação, mas o objeto de análise,
transformando a realidade objetiva em realidade objetual. «Este processo puramente
intelectual da ciência, que transforma o homem em uma unidade abstrata, inserida em
um sistema cientificamente analisável e matematicamente discutível é um reflexo da
real metamorfose do homem, produzida pelo capitalismo».
O ser humano ao tornar-se objetual, deixa de ser uma simples atividade engajada
que cria o mundo, mas se insere como parte integrante do sistema, de um todo supra-
individual regido por leis. Com essa inserção, o sujeito abstrai-se da própria
subjetividade e torna-se objeto e elemento do sistema.
Kosik elabora crítica à ciência econômica clássica por reduzir o ser humano ao
sistema e não analisar as implicações ideológicas nas suas relações histórico-sociais;
problematiza a relação entre razão, racionalidade e irracionalidade, criticando a razão
cartesiana por gerar a racionalização e o irracionalismo. O centralismo do poder na
razão, na consciência individual conduz à racionalização e ao irracionalismo pelo fato
da razão racionalista criar uma realidade que é inatingível e indomável por si própria,
isto é, pela própria razão.
O racionalismo clássico dos séculos XVII e XVIII suscitou uma onda de
irracionalismo (real ou presumido) porque, não obstante o heróico esforço
para tudo conhecer racionalmente e para valer a razão em todos os campos,
não pôde cumprir os seus propósitos, por causa da concepção metafísica da
razão e da racionalidade (KOSIK, 1969, p.95 ).
E, também pelo fato de criar uma inversão: «a razão independente perde tanto a
independência como a razoabilidade e se manifesta como algo dependente e irrazoável
enquanto os produtos daquela mesma razão se apresentam como sede da razão e da
autonomia. A razão já não tem a sua sede no homem individual e na sua razão, mas fora
do indivíduo e da razão individual» (KOSIK, 1969, p.91). Essa inversão significa, na
análise marxista de capitalismo, o «fetichismo da mercadoria», inversão na qual o ser
humano coisifica-se e os produtos, as coisas adquirem uma autonomia, uma
característica humana.
No discurso científico, o racional se torna instrumento eficaz para a consecução
de uma meta a ser atingida, com o mínimo de esforço e o maior aproveitamento
possível. A razão então, se nivela à técnica do comportamento e da ação. A razão torna-
se um fim em si mesma, meio, instrumento e técnica de ação. Dessa forma, a realidade
humana prática e teoricamente se estrutura no campo da «ratio», da racionalização, dos
meios e da técnica e, no campo dos valores e significações humanas, essas,
paradoxalmente, se tornam domínio do irracionalismo.
Na razão cartesiana, o racional e o irracional são concebidos de forma
ontológica enquanto a razão dialética, em contraposição à razão racionalista, rompe essa
ontologização. A razão é compreendida mediatizada pela realidade social e com suas
implicações ideológicas. O ser humano é visto como concreto, histórico e social e não
mais abstrato, subjetivo e individual.
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A razão dialética é um processo universal e necessário, destinado a


conhecer e a plasmar a realidade de modo a não deixar de fora nada
de si; portanto, é razão tanto da Ciência e do pensamento como da
liberdade e da realidade humana. (KOSIK, 1969, p.96-7 ).
Kosik (1969), então, elabora crítica à razão cartesiana tendo como fundamento o
materialismo histórico e Japiassu (1982) ao analisar a questão da "deposição do sujeito
pensante " fundamenta-se na crítica marxista ao pensamento Cartesiano e Hegeliano. A
autonomia da consciência e da razão para Marx é vista como alienação e passividade
obscura. A consciência não-crítica torna-se «alienada» e ideológica. A alienação do ser
humano seria a alienação da consciência de si e a verdade absoluta do idealismo
Hegeliano que corresponde à ideologia da classe dominante. O sujeito pensante seria
um ser humano de espírito falseado por diversas pressuposições ideológicas.
O pensamento de Marx (1984, p.23) contrapõe-se à posição idealista por
considerar que «não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a
consciência».
Assim, os pressupostos do materialismo centram-se nos indivíduos reais, em sua
ação e suas condições de existência material. E essa compreensão epistemológica
materialista é significativa para a Ciência, porque adquire uma dimensão histórica e
política. A Ciência deixa de ser "neutra" adquirindo a especificidade de ser histórica e
cultivar o saber historicamente produzido pelos seres humanos em suas condições
concretas de vida.

Considerações Finais
O pensamento moderno é caracterizado pelo surgimento de uma nova
racionalidade, centrada no indivíduo e na razão, com poder de determinação no
processo do conhecimento e da verdade. É a possibilidade do ser humano tudo
conhecer, por intermédio da razão, o que lhe permite intervir sobre a natureza física e
humana.
O pensar idealista moderno tem em Descartes a sua gênese, por definir o homem
como res cogitans, perpassa pelo sujeito transcendental Kantiano e encontra no espírito
absoluto de Hegel, através da identidade entre o racional e o real, a culminância do ser
humano como «sujeito pensante».
Entretanto, essa forma de pensar é problematizada quando se reflete sobre o
nascimento das Ciências Humanas e busca-se explicar as conseqüências dessa
racionalidade na filosofia, na ciência e na história da humanidade, tendo como
parâmetro de análise, o materialismo histórico, a razão dialética, cuja concepção de ser
humano e os pressupostos lógicos e epistemológicos são opostos ao idealismo.
Kosik destaca o processo da racionalização e do irracionalismo gerado pela
razão cartesiana e Japiassu demonstra a inviabilidade da tese do “sujeito pensante”,
explicitando a necessidade da “deposição deste sujeito”.
Tanto na construção da subjetividade como referência epistemológica do
pensamento moderno, quanto no pensamento positivista de Comte na definição da
Ciência Moderna, evidencia-se o conflito entre a razão Cartesiana e a razão Dialética,
fundamental para a reflexão sobre a relação Filosofia e Ciência.
Historicamente, a crítica de Dussel à visão eurocêntrica, de Marx à posição
idealista e positivista delineia novos caminhos tanto para a filosofia como para a
ciência. O ser humano deixa de ser visto como “abstrato” e “individual” para ser
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considerado “concreto”, “social” e “histórico”. Modifica-se, também, a concepção de


Ciência, que deixa de ser neutra, dimensionando-se como histórica e política.

Referências
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