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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Jacques Rancière: A filosofia no banheiro - 20/01/2002

São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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O ensaísta discute os best-sellers filosóficos e comenta o


filme "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", que deve
estrear no Brasil em fevereiro

A filosofia no banheiro
por Jacques Rancière

A Filosofia como Maneira de Viver" ("La Philosophie


comme Manière de Vivre"), "Pequena Filosofia da Manhã"
("Petite Philosophie du Matin"), "101 Experiências de
Filosofia Cotidiana" ("101 Expériences de Philosophie
Quotidienne"), "Antimanual de Filosofia" ("Antimanuel de
Philosophie"), "As Consolações da Filosofia" ("Les
Consolations de la Philosophie")... O filósofo que
examinasse neste período de festas os títulos que figuram nas
prateleiras das livrarias parisienses ficaria satisfeito de ver
seu ídolo disputar com vantagem sobre Bin Laden a
condição de vedete da atualidade editorial. A filosofia está
na moda, não resta dúvida. Há alguns anos foi o sucesso dos
"cafés filosóficos", onde qualquer um, com a ajuda de um
animador, podia vir debater aos domingos de manhã as
grandes questões da existência humana. Depois vieram as
consultas de filosofia, a filosofia a serviço dos problemas da
empresa, jornadas ou semanas filosóficas organizadas com
sucesso em várias cidades, grandes e pequenas, convidadas a
terem sua hora de filosofia.
Num segundo momento, claro, o filósofo se interroga: o que
é exatamente essa filosofia triunfante? E, se conhece seu
ofício, ele não pode deixar de observar a tonalidade geral
dessa vitrine filosófica. Dos "cafés-philo" aos best-sellers
filosóficos, uma mesma afirmação se repete. Ela opõe a
filosofia viva, aquela pela qual cada um pode enfrentar os
problemas de sua vida concreta, à filosofia universitária, a
que se ensina como professor ou que se estuda para vir a ser
professor. Em verdade, alguns dos autores pertencem à
corporação universitária. Mesmo assim fazem coro com os
outros para reivindicar uma filosofia que desça da cátedra
para o domínio da vida.
Resta saber exatamente que "vida" é essa à qual a filosofia é
devolvida. Os espíritos mal-humorados insistem que essa
restituição da filosofia a cada um é também uma maneira de
confinar cada um em seus problemas existenciais. Filósofos
"universitários" como Kant ou Fichte enfrentavam a todo-
poderosa faculdade de teologia sob o olhar de estudantes que
sonhavam com a Revolução Francesa e de funcionários
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monárquicos que podiam fechar seus cursos a qualquer


momento. Quanto ao filósofo adormecido em cada um de
nós, este é chamado a se dedicar a outros problemas que não
os do fundamento da legitimidade dos Estados: os
"verdadeiros" problemas que cada um enfrenta em seu
cotidiano, tão logo delegou aos especialistas a preocupação
com as questões de justiça ou de liberdade coletivas.
O leitor das "Consolações da Filosofia" (Rocco), de Alain de
Botton, aprenderá primeiro, com o exemplo de Sócrates, a
não mais sofrer com sua "falta de popularidade". Depois
disso, ser-lhe-á permitido buscar em Epicuro os meios de
resistir às preocupações com o dinheiro, em Montaigne, os
de suportar seus problemas sexuais, em Schopenhauer, a
arma para enfrentar suas decepções amorosas. Assim a
filosofia será devolvida à sua função: mudar a vida dos que a
ela se devotam. Pouco importa então a contradição que há
em opor a filosofia viva à sua história universitária para no
final propor apenas resumos ou textos escolhidos dos
grandes filósofos. Pois os filósofos privilegiados -Sócrates,
Epicuro, Sêneca, Montaigne, Schopenhauer- dão eles
mesmos a demonstração de uma filosofia de não-
profissionais, idêntica à experiência de uma vida a mudar.
O único problema é saber que vida pode ser mudada e até
onde vai essa mudança. Nietzsche, que havia praticado muito
Platão e lido apaixonadamente Schopenhauer, tinha uma
idéia a esse respeito. O que se aprendia na escola de
Sócrates, dizia, não eram os prazeres da vida preservada da
popularidade, era um novo tipo de esporte de combate no
qual brilhar aos olhos do mundo. Esse tipo de esporte
destinava-se evidentemente a amadores privilegiados, jovens
ricos que não tinham outra coisa a fazer na existência a não
ser transformar sua vida em obra de arte. E a obra de arte que
os fascinava por excelência, a nova meta que a filosofia
destinava à vida deles, era Sócrates moribundo. Transformar
sua vida para fazê-la filosófica tornando a filosofia viva era
aprender a fugir o mais rápido, o mais longe possível.
Pedir à filosofia para ser uma arte de viver que remedeie as
pequenas preocupações da existência não é sempre, se
levarmos a coisa a sério, pedir-lhe para chegar a isto: retirar
dessas preocupações sua seriedade, retirar dos imperativos
da vida a crença a eles associada? Podemos ler
Schopenhauer para aprender a relativizar nossos males de
amor. Mas ele, Schopenhauer, pede outra coisa: que nos
subtraiamos à visão do mundo onde esses males se fazem
sentir, que aprendamos a não mais querer, a nos tornar
espectadores. Seguramente isso pode ser dito de maneira
mais ou menos dramática. Assim, há somente coisas
agradáveis nas "101 Experiências de Filosofia Cotidiana"
propostas por Roger-Pol Droit: "Esperar sem fazer nada",
"Acompanhar os movimentos das formigas", "Tomar uma
ducha de olhos fechados", "Sair do cinema para a plena luz
do dia", "Despertar sem saber onde", "Tomar o metrô sem ir
a lugar nenhum". Mas percebe-se bem aonde conduzem
todos esses exercícios de desorientação sensível. A
experiência filosófica da estranheza do mundo tem por termo
a convicção de que a "verdadeira vida" não passa de "uma
ficção entre outras", que "de toda forma se interromperá".
Essa maneira de mudar a vida será realmente o que se requer,
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no momento em que cada um de nós é chamado a expulsar a


"sinistrose" e a dar sua contribuição entusiasta à nova vida
do cibermercado, do euro e das fusões grandiosas entre
gigantes da comunicação planetária? Pois o que se pede a
Sócrates e a Schopenhauer, afinal, é que rebaixem sua
exigência, que transformem sua maneira de ensinar a deixar
este mundo em maneira de "habitá-lo no cotidiano". Para
isso trata-se apenas de mudar um pouco o sentido do
exercício. O filósofo-jornalista convidava a "tomar uma
ducha de olhos fechados", sem saber portanto de onde vem o
jato, restringindo-se à pura sensação da pele molhada. A
jornalista-filósofa, autora da "Pequena Filosofia da Manhã",
retira dessas abluções sua suspeita sofisticação
schopenhaueriana. "Entre os gestos tônicos da manhã,
terminar a toalete por um jato de água fria em todo o corpo é
dos mais estimulantes", assegura-nos Catherine Rambert no
127º de seus "365 pensamentos para ser feliz todos os dias".
Essa filosofia é seguramente menos perigosa. Ela se inscreve
sem problema na infinidade de recomendações que nos
fazem, em centenas de revistas e programas de TV, médicos,
psicólogos, higienistas, nutricionistas e outros, para nos
ensinar a cuidar bem de nosso eu e a viver harmoniosamente
a vida. Mas então surge outra vez a questão: há realmente
necessidade de filosofia se esta apenas repete o refrão
midiático do cuidado de si no cotidiano? Eis aí o fundo do
problema: os defensores da "filosofia na vida" querem ter
simultaneamente a excitação de percorrer na carruagem
platônica o céu resplandecente das idéias e a mornidão do
conforto do pensamento e do corpo nas menores coisas da
vida. Sócrates morrendo para a vida da opinião e um bom
misturador de água.
Nas imagens filosóficas há sempre um que olha o céu e um
que olha a terra. Para ter o céu e a terra ao mesmo tempo é
preciso certamente voltar-se para outras ficções. De fato, ao
lado das consolações filosóficas que as livrarias oferecem,
uma outra consoladora iniciava, graças ao DVD, uma nova
etapa de sua fabulosa carreira. Essa consoladora, a pequena
Amélie Poulain, ponta-de-lança da indústria cinematográfica
francesa, resolve exatamente o casamento problemático do
céu para onde fugimos e da terra onde nos enraizamos. "O
Fabuloso Destino de Amélie Poulain" ("Le Fabuleux Destin
d'Amélie Poulain") oferece a conciliação exemplar de duas
teses opostas: em primeiro lugar, é preciso escapar da
monotonia do real no ideal; em segundo, é preciso retornar
do céu do ideal ao real.
Por um lado, Amélie é a fadinha que muda, por sua simples
decisão, a vida de todos os que a cercam, aliviando os
corações inconsoláveis, unindo as almas solitárias, punindo
os maus, recompensando os bons e pondo em movimento os
sedentários. Mas tudo isso seria apenas ilusão se aquela que
projeta seu céu de sonho na vida dos outros não se ocupasse
também dela mesma e não aprendesse a trocar seu sonho
pela ocasião que o real prosaico oferece e não voltará a
oferecer, sob a figura de um rapaz aparentemente muito
esperto.
A ficção é mais bela que o real. O real é mais belo que
qualquer ficção. Amélie faz todo espectador participar do
gozo dessa irrefutável filosofia e reserva a experiência
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schopenhaueriana da desorientação do mundo familiar ao


mesquinho quitandeiro racista, trocando seu par de chinelos
ou pondo creme para os pés no lugar de seu dentifrício. Às
experiências equívocas da filosofia ela opõe o casamento
feliz do céu e da terra. Os espíritos mal-humorados dirão
certamente que esse casamento do céu e da terra se parece
muito às bodas da publicidade e da mercadoria e que essa
filosofia sorridente da vida cotidiana lembra um pouco
demais a teologia da mercadoria sensível-supra-sensível que
Marx analisava numa outra época.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Paulo Neves.

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