Você está na página 1de 16

Isto não é Filosofia

CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

ENCONTRO 5
FILOSOFIA PÓS-MODERNA: NIETZSCHE

Sumário
1. Nietzsche ................................................................................................................................. 2
1.1 Vida e obras...................................................................................................................... 2
1.2 Pluralismo, perspectivismo e experimentalismo ......................................................... 3
1.3 Tragédia ática: espírito dionisíaco e apolíneo ............................................................. 4
1.4 A noção de valor e o procedimento genealógico........................................................ 5
1.4.1 O procedimento genealógico .................................................................................. 6
1.4.2 Perspectivas avaliadoras a partir de valores (avaliação) ................................... 7
2. A pós-modernidade para Luc Ferry .................................................................................... 9
2.1 Theoria: genealogia, forças ativas e forças reativas ................................................ 10
2.1.1 Epistemologia como genealogia .......................................................................... 10
2.1.1 Ontologia como forças ativas e reativas ............................................................. 11
2.2 Ética: o grande estilo ..................................................................................................... 13
2.3 Salvação: eterno retorno e amor fati .......................................................................... 13
3. Guia de leitura para o Encontro 6...................................................................................... 15
Bibliografia ................................................................................................................................. 16

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

1. Nietzsche
1.1 Vida e obras

Demolidor dos valores tradicionais e anunciador do homem que ainda está por
vir, Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um pensador cuja obra deixou marca decisiva na
modernidade e no início da contemporaneidade.
Estudou Filologia Clássica em Bonn e em Leipzig. Aos vinte e quatro anos,
tornou-se professor de Filologia na Universidade de Basiléia. Nesse período encontra
Richard Wagner, em cuja obra musical via o instrumento apto para renovar a cultura
contemporânea. Logo, porém, ele se afastará do artista e de Schopenhauer, cujo Mundo
como vontade e representação havia lido alguns anos antes1.
Em 1879, Nietzsche deixa a Universidade por motivos de saúde – mas também
porque a Filologia não era seu “destino”, como declarou em certa ocasião – e inicia sua
peregrinação de pensão em pensão, entre Suíça, Itália e França meridional. Em 1882,
conhece Lou Salomé, jovem russa de 24 anos; enamora-se e pretende desposá-la; ela,
porém, rejeita-o e se casa com Paul Rée, amigo e discípulo de Nietzsche.
Em 1883, em Rapallo, Nietzsche concebe sua obra mais importante: Assim falou
Zaratustra, trabalho que terminou, entre Roma e Nice, dois anos depois. Acredita ter
encontrado morada satisfatória em Turim. Mas, no dia 3 de janeiro de 1889, é acometido
por uma enfermidade psíquica e, segundo se conta, lança-se ao pescoço de um cavalo
cujo dono o espancava diante de sua casa.
Entregue primeiro aos cuidados da mãe e depois aos da irmã, Nietzsche morre
dia 25 de agosto de 1900, sem poder ficar inteirado do sucesso que estavam tendo os
livros que ele havia impresso à própria custa.
Sua obra principal pode ser assim enumerada:

1
Nietzsche havia dedicado a Wagner o Nascimento da tragédia, vendo em Wagner “seu insigne
precursor no campo de batalha”. No entanto, porém, ele vinha amadurecendo sua separação
tanto de Wagner quanto de Schopenhauer, como é testemunhado por obras como Humano,
demasiado humano (1878), Aurora (1881) e A gaia ciência (1882). Schopenhauer “não é outra
coisa que o herdeiro da tradição cristã”; o seu é “o pessimismo dos que renunciam, dos falidos e
dos vencidos”; é, justamente, o pessimismo resignado do romantismo, fuga da vida. Por outro
lado, Wagner – deve admitir Nietzsche – não é de fato o instrumento da regeneração da música;
ele – escreve Nietzsche em O caso Wagner (1888) – “lisonjeia todo instinto niilista (-budista) e o
camufla com a música, bajulando toda cristandade [...]”. Wagner é uma doença: “est um
névrose”. O afastamento de seus dois “mestres” comporta (ou caminha paralelamente com) o
afastamento de Nietzsche em relação ao idealismo (que cria um “antimundo”), ao positivismo
(com sua louca pretensão de dominar a vida com pobres redes teóricas), aos redentores
socialistas, e ao evolucionismo (“mais afirmado que provado”). O desmascaramento, porém, não
termina aqui. E justamente em nome do instinto dionisíaco, em nome do homem grego sadio do
século VI a.C., que “ama a vida”, Nietzsche anuncia a “morte de Deus” e desfere um ataque
decisivo contra o cristianismo.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

• O nascimento da tragédia (1872)


• Considerações intempestivas (1873-6)
• Humano, demasiado humano (1878)
• Aurora (1881)
• Gaia Ciência (1882)
• Assim falava Zaratustra (1883)
• Além de bem e mal (1886)
• Genealogia da Moral (1887)
• O caso Wagner (1888)
• O crepúsculo dos ídolos (1888)
• O anticristo (1888)
• Ecce homo (1888)
• Nietzsche contra Wagner (1888)
• Vontade de Poder (obra póstuma e não autorizada)

1.2 Pluralismo, perspectivismo e experimentalismo

Segundo a filósofa brasileira Scarlett Marton2, há três palavras que caracterizam


a filosofia de Nietzsche: pluralismo, perspectivismo e experimentalismo.
A Filosofia de Nietzsche, inicialmente, é uma filosofia pluralista no que diz
respeito aos estilos de escrita. Há textos, por exemplo, em que Nietzsche adota um tom
dissertativo: Nascimento da tragédia (1871), Genealogia da moral (1887). Há textos
que são praticamente panfletários: As considerações extemporâneas: David Strauss,
o Devoto e o Escritor (1873), Da utilidade e desvantagem da história para a vida (1874),
Schopenhauer como educador (1874), Richard Wagner em Bayreuth (1876). Há outros
livros em que Nietzsche adota o estilo aforismático – escreve por máximas. Humano,
demasiado humano: um livro para espíritos livres (1878), Aurora: uma reflexão sobre
preconceitos morais (1881), A Gaia Ciência (1882). Há também os poemas. Ditirambos
de Dionísio (1888). Há até mesmo uma espécie de autobiografia. Ecce homo: como
alguém torna-se o que é (1888).
A pluralização filosófica de Nietzsche também acontece porque não apresenta
um único conceito básico em torno do qual todas as suas idéias se articulariam. Há
conceitos e princípios vários e plurais: a morte de deus, o além do homem, a teoria das
forças, a vontade de potência, a doutrina do eterno retorno, a noção de valor, o
procedimento genealógico.
Perspectivista também é a filosofia nietzscheana, porque não se trata de chegar
a princípios últimos e definitivos. Não se trata de forjar um sistema acabado. Trata-se
de adotar múltiplas perspectivas para uma questão, de abraçar diferentes pontos de
vista para abordar um tema. Enfim, de esposar os mais variados ângulos de visão para
lidar com uma problemática.
Por fim, a filosofia nietzscheana é também experimental. Nietzsche não quer
propor receitas acabadas. Na verdade, pretende não chegar a afirmações categóricas,

2
Marton, Scarlet. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

mas pôr à prova hipóteses interpretativas. Portanto, trata-se sempre de fazer


experimentos com o próprio pensar. Nietzsche é o filósofo da suspeita.
Nietzsche também propõe ao seu leitor múltiplas provocações.
A primeira delas são os ataques à religião cristã e à moral do ressentimento
que são constitutivas de nossa maneira de pensar. São ataques a como se entende a
compaixão, a caridade, o altruísmo.
A segunda delas é o combate à metafísica, entendida de uma maneira
completamente diferente da maneira pela qual Schopenhauer, por exemplo, entendia.
A metafísica é entendida como uma duplicação de mundos. Além deste mundo, há o
que nós podemos chamar de mundo transcendente, de mundo suprassensível, de
mundo que está no além. Toda a filosofia – na interpretação de Nietzsche – nada mais
fez do que desprezar esta vida tal como nós vivemos aqui e agora em nome de uma
outra vida, em nome de um outro mundo. Este mundo seria ilusório, efêmero e
transitório. O outro mundo – que, no entender de Nietzsche, é fictício – seria essencial,
imutável, eterno. Nesse seu combate à metafísica, exerce uma crítica devastadora de
noções consagradas pela tradição filosófica: a noção de sujeito, de substância, a própria
concepção de verdade.
A terceira provocação é a desconstrução da linguagem. Nietzsche vai
subverter no sentido de termos comumente empregados. Por exemplo, alma. A alma,
para Nietzsche, passa a designar os seres vivos microscópicos que constituem o corpo.
Uma última provocação é a tentativa de implodir as dicotomias. Essa tentativa
vai acabar poder por desestabilizar a nossa lógica, a nossa própria maneira de
raciocinar. Estamos habituados a pensar em verdadeiro e falso, certo e errado, bem e
mal. Nietzsche escreve um livro intitulado Para além de bem e mal.
É deste filósofo da suspeita que se trata aqui. E é filósofo da suspeita porque
ele nos convida com todas as suas provocações a colocar sob suspeita as nossas
crenças, as nossas convicções, os nossos preconceitos, a nossa maneira de pensar, de
sentir e de agir. Na verdade, ele vem pôr em causa os valores que norteiam a nossa
conduta.
Em Genealogia da moral Nietzsche diz:
“Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser
colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias
nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência,
como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,
medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu,
nem foi desejado.” (Genealogia da moral, Prefácio, § 6)

Portanto o que Nietzsche se propõe a fazer como ele próprio diz é uma crítica
dos valores morais, ou seja, é questionar o valor dos valores morais.

1.3 Tragédia ática: espírito dionisíaco e apolíneo

De 1872, é O nascimento da tragédia. Nessa obra, Nietzsche afirma que a


civilização grega pré-socrática explodiu em uma aceitação vigorosa da vida, em uma

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

exaltação corajosa dos valores vitais. O filósofo individua o segredo desse mundo grego
no espírito de Dionísio: o deus é símbolo da força dionisíaca, instintiva e da saúde, de
uma humanidade em pleno acordo com a natureza. A arte grega, todavia, deve seu
desenvolvimento não só a essa divindade, mas também a Apolo, à força apolínea:
visão de sonho, senso da medida e de equilíbrio.
Se o apolíneo se exprime nas artes figurativas, o dionisíaco explode na música.
Os dois instintos caminham um ao lado do outro, “no mais das vezes em aberta
discórdia”, até quando, “por causa de um milagre metafísico da ‘vontade’ helênica”,
aparecem acoplados, gerando a obra de arte, igualmente dionisíaca e apolínea, que é
a tragédia ática.
Eis, porém, que chega Eurípedes, que procura eliminar da tragédia o elemento
dionisíaco em favor dos elementos morais e intelectualistas. E surge Sócrates, com sua
presunção de dominar a vida com a razão. Nesse momento, para Nietzsche, inicia a
decadência da cultura grega. Sócrates e Platão são “sintomas de decadência, os
instrumentos da dissolução grega, os pseudogregos, os antigregos”. Sócrates –
continua Nietzsche – “foi apenas alguém longamente enfermo”. Foi hostil à vida.
Destruiu o fascínio dionisíaco. A racionalidade a todo custo é uma doença.

1.4 A noção de valor e o procedimento genealógico

A noção do valor é central na filosofia nietzscheana da maturidade, isto é, a partir


de Assim falava Zaratustra. Ao ser introduzida, levanta duas questões: 1) a pergunta
pela criação dos valores e 2) a questão do valor dos valores. Vamos por partes.
Os valores bem mal nunca foram questionados. Nunca foram questionadas,
porque, desde Platão, há dois mil anos, considerou-se que os valores encontravam a
sua origem, a sua sede a sua legitimidade no outro mundo, no mundo transcendente.
Se nós pensarmos na filosofia platônica – pelos olhos de Nietzsche –, o principal
conceito é a duplicação de mundos. Este mundo em que nos encontramos aqui e agora
é o mundo da ilusão, da aparência. O mundo inteligível – o mundo das Ideias, das
Formas – é o mundo da verdade, da essência. No ápice, no cume do mundo das ideias
estão alojadas 3 ideias, no ápice: Bem, Belo e Verdadeiro.
Desde Platão, a ideia de Bem encontra sua origem, sua sede e ganha
legitimidade neste outro mundo – que, no entender de Nietzsche, é fictício. Daí todos os
entraves possíveis para o questionamento dos valores do animal bem.
Nietzsche diz que os valores são humanos, ou seja, foram criados em algum
momento, em algum lugar. Portanto, transformam-se, desaparecem. Estão inscritos na
história e não no mundo transcendente, inventado pela metafísica.
Esta questão da criação dos valores já traz consigo mesma uma outra questão:
a pergunta acerca do valor dos valores. O valor Bem jamais foi questionado. Além disso,
ao longo dos séculos, sempre se atribuiu a ele o valor superior ao valor normal. Sempre
vamos atribuir um valor maior a ele do que o valor Mal.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

1.4.1 O procedimento genealógico

Nietzsche inaugura o chamado procedimento genealógico, um método de


diagnóstico da cultura, em dois movimentos inseparáveis. Num primeiro momento,
relaciona os valores às perspectivas avaliadoras que os engendraram. Num segundo
momento, trata-se de relacionar essas perspectivas avaliadoras aos valores.
Nietzsche traça uma dupla história de Bem e Mal. Examinando civilizações
passadas (Nietzsche é um grande leitor de estudos de etnologia, antropologia e
etimologia), defende que existem duas perspectivas avaliadoras: a dos nobres (fortes)
e a dos ressentidos (fracos).
Essas duas avaliações, tanto nas diferentes civilizações, quanto nos diversos
indivíduos, aparecem por vezes nitidamente distintas, por vezes mescladas. Ao invés
de chamar de avaliações ou de perspectivas avaliadoras, Nietzsche utiliza outra
expressão: moral de senhores e moral de escravos.
Moral – para a perspectiva nietzscheana – não significa receituário, prescrições,
normas de conduta, regras de comportamento. Moral é utilizada como perspectiva
avaliadora, como avaliação que gera valores.
Bom e Ruim são engendrados pela maneira nobre de avaliar – por um
movimento de autoafirmação. Bom e Mau são engendrados pela perspectiva dos
escravos – por um movimento de negação e oposição. Como isso acontece?
Primeiro, analisemos a moral dos nobres.
O nobre começa criando o valor Bom, que atribui a si mesmo: nós bons, nós
nobres, nós felizes. Depois de algum tempo, “como uma pálida imagem em contraste”,
os nobres inventam o valor Ruim, que atribuem, aos fracos, aos desprezíveis, aos
incapazes de lutar.
Quando fala de nobres, o que Nietzsche tem em mente é a aristocracia guerreira
dos tempos homéricos. Não se trata da nobreza como classe social que vai aparecer
bem mais tarde, mas é basicamente um tipo. Do que se trata? É um conceito que reúne
características dos diversos indivíduos, sem a eles se resumir, com o intuito de estudá-
los. A tipologia nobre, assim, não se confunde com um indivíduo nobre, mas serve para
entender a conduta dos diversos indivíduos nobres. Nessa perspectiva, o tipo nobre é
aquele que não se furta a ir à luta, que não se exime do combate.
Agora, analisemos a moral dos escravos.
Os escravos (ressentidos, fracos) começam por inventar o valor Mal, com que
designam justamente os fortes. O raciocínio se dá desta maneira: se ele é mau, então
eu sou bom.
A partir daí, podemos chegar a três conclusões:
1. O valor Bom da moral dos nobres, que surgiu de um movimento de
autoafirmação, não é idêntico ao valor Bom da moral do ressentimento, que
surgiu de um movimento de negação e oposição.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

2. O valor Mal colocado pelos ressentidos, na verdade, designa apenas o Bom


na moral dos nobres.
3. A perspectiva avaliadora do ressentimento surge de uma inversão de
valores. O seu ato inaugural não passa de reação. Na medida em que o
ressentido diz “Se ele é mau, então eu sou bom”, os ressentidos se limitam
a inverter os valores já postos pelos nobres; não criam propriamente valores.
A maneira nobre e a maneira ressentida guardam entre si uma relação lógica e
uma relação cronológica.
No entender de Nietzsche, se os ressentidos se limitam a inverter os valores
colocados pelos nobres, então a maneira ressentida de avaliar, logicamente, é posterior
à maneira nobre de avaliar.
No entender de Nietzsche, cronologicamente também. Isso porque a moral do
ressentimento (ou a perspectiva avaliadora dos ressentidos) surgiu quando a classe
sacerdotal sobrepujou a aristocracia guerreira na Grécia Antiga.
A classe sacerdotal converteu em preeminência espiritual o que era
preeminência guerreira. Enquanto valor aristocrático, Bom identificava-se a nobre, belo,
feliz. Tornando-se valor religioso, Bom passa a equivaler a pobre, miserável, impotente,
sofredor, piedoso, necessitado, enfermo. Aqui se insere a crítica à religião e à moral
cristãs.

1.4.2 Perspectivas avaliadoras a partir de valores (avaliação)

É necessário, agora, avaliar as avaliações. Como?


Há algum sentido em se perguntar se a moral dos nobres é melhor ou pior que
a moral dos ressentidos? Se procedemos assim, vamos incorrer em círculo vicioso,
porque recorreremos aos valores gerados pelas próprias avaliações para avaliá-las.
Portanto, nós somos obrigados necessariamente a encontrar um critério de avaliação
que valha por si mesmo, um critério de avaliação que não seja ele mesmo fruto de uma
avaliação. O único critério – na avaliação de Nietzsche – que se impõe por si mesmo é
a vida.
A pergunta agora é esta:
“A maneira nobre de avaliar contribui para a expansão e a exuberância da vida, ou contribui para
a sua decadência?”

Moral, Arte, Filosofia qualquer apreciação de qualquer ordem tem de ser


submetida ao procedimento genealógico: o crivo da vida. E a pergunta sempre será
esta:
“Em que medida x contribui ou contribuiu para expansão da vida, ou em que medida contribuiu
para sua decadência?”

A genealogia converte-se numa poderosa arma de combate aos valores.


Permite o diagnóstico de uma cultura inteira – Revolução Francesa, doutrina utilitarista,
anarquismo, socialismo, democracia, obra de Wagner, textos de Rousseau, figura de
Sócrates. São eles sintomas de decadência ou de exultação da vida?

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

Porém o que é vida para Nietzsche? Foi apenas a partir de Assim falou
Zaratustra que Nietzsche identifica vida e vontade de potência, e a vida vai aparecer
como uma vontade orgânica, ou seja, ela própria não unicamente do homem, mas de
todo ser vivo. Esse afeto de vontade de potência não se trata de livre-arbítrio. Acontece
ao nível do organismo. Toda célula quer expandir-se o quanto pode. O mesmo com
tecidos. O mesmo com órgãos. Portanto, cada ser vivo microscópico que constitui
qualquer organismo quer mais potência. Isso faz com que se deflagrem em luta.
Essa luta, entretanto, é sempre vista de uma maneira bastante positiva, porque
a vontade de potência se exerce na medida em que encontra resistência. O obstáculo
se converte, portanto, em estímulo3.
Nietzsche vai dizer que o mundo, seja matéria inerte, seja matéria orgânica, é
constituído por forças plurais que estão permanentemente em luta, em combate. O
conceito de vontade de potência vê o seu âmbito de atuação ampliado. Se antes ele
dizia respeito unicamente ao organismo, agora ele passa a dizer respeito a tudo o que
existe – toda força quer exercer-se sempre mais. Vida é vontade de potência. Enquanto
caso particular da vontade de potência presente no mundo inteiro, a vida vai servir de
parâmetro nesta avaliação.
Para trazer mais concretamente uma outra definição de vida, em Para além de
bem mal, Nietzsche escreve:
“[...] a vida é essencialmente uma apropriação, uma violação, uma sujeição de tudo aquilo que é
estranho e fraco, significa opressão, rigor, imposição das próprias formas, assimilação, ou pelo
menos, na sua forma mais suave, um aproveitamento [...] Também uma corporação, na qual como
indicamos mais acima, os indivíduos se tratam como iguais (isto acontece em toda aristocracia
sadia) – deve, embora represente um corpo vivo e não um corpo moribundo, fazer nas próprias
relação com os outros corpos tudo aquilo que são obrigados a abster-se os seus componentes
nas suas relações recíprocas: essa deverá ser a vontade de dominação, desejará crescer,
aumentar, atrair, adquirir predomínio – não já pela moralidade ou imortalidade, mas unicamente
porque ‘vive’ e porque a vida é a vontade de potência.” (Além do bem e do mal, §259)

A partir daí nós compreendemos o ataque que Nietzsche faz a moral cristã,
entendendo que a moral cristã expressa a negação da própria vida.

3
A respeito da relação entre Nietzsche e o nazismo, Scarlett Marton afirma que entre as diferentes apropriações e
utilizações que foram feitas do filósofo – judeus, cristãos, ateus, extrema-esquerda, extrema-direita, políticos.
discurso pós-moderno, vários se apropriaram – também se apropriou do filósofo o nazismo. Porém, nada mais
contrário à palavra de ordem nazista – ou seja, a solução definitiva da questão judia – que o conceito de vontade de
potência. Isso porque a luta que é deflagrada por essa vontade de potência não visa ao extermínio e ao aniquilamento.
A luta reveste um caráter agonístico. É um antigo tema encontrado lá nos pré-socráticos, basicamente em Heráclito,
o tema do pólemos, do combate. Para que o combate ocorra, é necessário que existam antagonistas. Para que ele
perdure, é imprescindível que os beligerantes não sejam aniquilados.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

2. A pós-modernidade para Luc Ferry


Resumo até agora

Theoria Ética Salvação


Adaptação ao
kósmos e
lugar do kósmos Desapego da vida
lógos impessoal –
Estoicos atitude intelectiva
correspondente a cada pessoal para voltar ao
um, seguindo o lógos kósmos impessoal
diante da realidade
que o rege

Observação dos
kósmos e Pratica do amor em
mandamentos divinos
lógos encarnado – Deus e o amor de Deus
Cristãos atitude humilde de fé
inscritos na Bíblia,
para alcançar a vida
inspirada pelo lógos
diante de Deus eterna pessoal
encarnado.

Engajamento em
Sem kósmos e sem Dignidade humana e religiões seculares,
lógos encarnado – individualismo como empreendimentos
Modernos atitude de construção negação da natureza humanos: revolução
da realidade via egoísta, rumo a (progressismo), nação
cognição humana princípios universais (nacionalismo) e
ciência (cientificismo)

Eterno retorno e amor


fati – agir de modo a
Forças ativas e reativas
eternizar momentos
– atitude genealógica Grande estilo –
valiosos e amar a
de identificação dos intensificação e
Pós-modernos modos avaliativos por hierarquização das
realidade presente tal
qual ela é, com a
trás dos juízos sobre a forças ativas e reativas
consciência de que não
realidade
poderia ser de outro
modo.

Luc Ferry

Em Filosofia, Pós-Modernidade se refere à crítica que se faz tanto ao


Humanismo, quanto ao Iluminismo. O ataque dos pensadores pós-modernos se
direciona a duas ideias centrais da Modernidade, dos sécs. XVII ao XIX:

• Antropocentrismo
• Racionalidade
A primeira ideia diz que o ser humano é o conceito central, de onde partem as
concepções éticas, políticas e metafísicas – na célebre frase de Protágoras: “o homem
é a medida de todas as coisas”. Descartes, Rousseau e Kant são os principais alvos.
A segunda ideia diz que a capacidade discursiva não só é o traço distintivo dos
humanos, como também apresenta, caso desenvolvida, um poder emancipador graças
ao qual é possível rumar à liberdade e à felicidade tanto individuais, quanto coletivas.
A figura central, que sintetiza os ataques ao humanismo-antropocentrismo e ao
iluminismo-racionalismo é Nietzsche – segundo identifica Luc Ferry. Mas, por que
passar novamente de uma visão de mundo a outra?

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

Os medievais trocaram o lógos impessoal dos antigos pelo lógos pessoal dos
cristãos, mantendo a ideia de kósmos organizado, harmônico e hierárquico. Os
modernos, em contrapartida, abandonaram a noção de kósmos e criticaram a
autoridade religiosa – com ela a salvação pela fé no lógos encarnado. Trocaram-na pelo
ideal humanista e pelas ideias de racionalidade e liberdade humanas, centrados na
premissa de que o homem é fundamentalmente diferente dos outros animais –
distingue-se por sua perfectibilidade e não está limitado à sua natureza (Rousseau),
portanto é livre para agir moralmente e negar o próprio egoísmo, rumo a princípios
universais (Kant). Nesse cenário, a salvação se dá por tripla via: revolução (comunismo),
preservação e exaltação da nacionalidade (nacionalismo), descoberta e inovação
científicas (cientificismo). Por sua vez, todo esse prédio teórico se fundamenta na
sacralização do espírito crítico que opera via dúvida metodológica que de tudo duvida,
inclusive desconsiderando a tradição (Descartes).
Esse espírito crítico que desconsidera a tradição irá se voltar contra seus
criadores. Isso porque o humanismo não ultrapassou a estrutura religiosa fundamental,
isto é, a dicotomia mundo/além-do-mundo. Vale dizer, continuou a acreditar que alguns
valores são superiores à vida, e que o real deve ser julgado pelo ideal. Eis o
fundamento da crítica nietzscheana:
“Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu erija
novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter pés de barro! Derrubar ‘ídolos’ –
é assim que chamo todos os ideais – esse é meu verdadeiro ofício. É inventando a mentira
de um mundo ideal que tira o valor da realidade, sua significação, sua veracidade... A mentira do
ideal foi até agora a maldição que pesou sobre a realidade, a própria humanidade se tornou
mentirosa e falsa até o mais fundo de seus instintos – até a adoração dos valores opostos àqueles
que poderiam lhe garantir um belo crescimento, um futuro...” (NIETZSCHE, Ecce Homo, prefácio
apud FERRY, 2006, p. 177)

Os ídolos a que se refere Nietzsche são os ideais que operam na dicotomia


mundo/além-do-mundo. Sob seu ataque estará toda a tradição – só que agora a
Modernidade faz parte dessa tradição, porque partilha da mesma premissa do passado.
Estão juntos Religião, Filosofia e Ciência, porque seus ideais – kósmos, Deus e Razão
– são os ídolos que operam a partir da duplicação de mundos, negando o imanente
em prol do transcendente.
Toda negação do real, em prol do ideal será denominada de niilismo – vale
dizer, algo que cultura o nada, já que “nihil”, do latim, significa “nada”.
Nietzsche não constrói uma theoria, uma ética e uma doutrina da salvação
propriamente. Porém, será possível lê-lo assim.

2.1 Theoria: genealogia, forças ativas e forças reativas


2.1.1 Epistemologia como genealogia

A tese mais profunda de Nietzsche é que não existe ponto de vista exterior, nem
superior à vida – e estar na vida implica fazer parte do jogo de forças que constituem o
fundamento do real.
Nesse sentido, Nietzsche fará seu ataque à tradição seguindo uma metodologia:
a de identificar intenções morais implícitas nos ideais, procedimento que ele chama de

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

genealogia – e que Ferry chama de desconstrução. Para Nietzsche, todo juízo sobre
a realidade é um sintoma que por vezes esconde uma forma de vida e não pode ser
entendido sem se remeter a essa forma de vida. É nesse sentido que Nietzsche será
visto como filósofo da suspeita – um desconstruidor do humanismo clássico, junto com
Freud e Marx:
“Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser, em última instância,
verdadeiros: não possuem outro valor senão o de sintomas – em si, tais juízos são
imbecilidades. É, pois, necessário estender os dedos para tentar apreender essa fineza
extraordinária que reside no fato de que o valor da vida não pode ser avaliado. Não por um
vivente, pois ele é parte, e até mesmo objeto de litígio; não por um morto, por uma outra razão. Da
parte do filósofo, ver no valor da vida um problema significa uma dúvida contra ele, um ponto de
interrogação em relação à sua sabedoria, uma falta de sabedoria” (NIETZSCHE, Crepúsculos dos ídolos,
O caso Sócrates, § 2 apud FERRY, 2006, p. 185)

Uma das fórmulas de Nietzsche, a de que “não existem fatos, apenas


interpretações” pode ser entendida à luz desse trecho. Um fato só é estabelecido
quando enunciado por um juízo, isto é, a formulação linguística de um evento no mundo.
A questão, para Nietzsche, é que não se pode formular um juízo sem pressupor o modo
de vida de quem o formula – modo de vida esse que condiciona todos os julgamentos
do emissor. Não há juízos neutros. Todos os juízos são interessados e, a depender de
que os emite, podem contrastar entre si. Nesse sentido. Juízos que pretensamente
expressam fatos não o fazem, apenas expressam pontos de vista interessados com
base no modo de vida de quem os emite. Por isso, emitem interpretações, não
explicações incontestes, isto é, fatos.
Se não há fatos, o que resta é trazer à luz o modo de vida que fundamenta os
juízos sobre o mundo. Cada modo de vida terá a sua maneira de falar sobre a realidade.
Identificar essa maneira de interpretar a realidade típica de cada modo de vida consiste
no empreendimento principal da genealogia.

2.1.1 Ontologia como forças ativas e reativas

Nietzsche pensa o mundo de modo diferente dos estoicos: tanto o reino orgânico,
quanto o inorgânico são compostos por um tecido de forças caóticas e não redutíveis a
uma unidade. Nesse sentido, há uma ruptura não só com os antigo e medievais, mas
também com os modernos. Todos procuram, ainda que não aceitem a ideia de kósmos
como uma ideia que fundamente a realidade, encontrar unidade, coerência e ordem no
mundo, nem que seja nele projetando a racionalidade humana, como faz Kant com suas
formas a priori da sensibilidade e do entendimento.
O mundo pós-moderno é o de Picasso (1881-1973) e Schönberg (1874-1951), o
moderno é o de Michelangelo (1475-1564) e de Mozart (1756-1791). Em outras
palavras, é desestruturado e fragmentado, não estruturado e unitário.
Nesse sentido, em vez de buscar a ordem na realidade, Nietzsche propõe
entendê-la por meio da distinção de duas forças, pulsões, instintos: de um lado, as
forças ativas; de outro lado, as forças reativas.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

Esquema de forças opostas que compõem a realidade


Plano Plano Plano Plano Plano Plano
cultural político volitivo comportamental do juízo intelectual

Forças Artes Aristocracia


Vontade de Lógica do sim Julgamento Aceitação do
ativas poder e da afirmação a partir de si mundo sensível

Forças Filosofia e
Democracia
Vontade de Lógica do não Julgamento Rejeição do
reativas Ciência verdade e da negação contra o outro mundo sensível

As forças reativas são aquelas que só podem se expandir no mundo e produzir


todos os seus efeitos, reprimindo, aniquilando e mutilando outras forças. Operam pela
via da negação, não da afirmação. Por isso, sua principal ferramenta é a refutação dos
erros alheios, por meio do modelo dialético, isto é, o da contraposição de ideias.
O arquétipo maior é o do filósofo – Nietzsche, inclusive, nomeia esse arquétipo:
Sócrates. O filósofo grego, tal qual aparece nos diálogos de Platão, não para de fazer
perguntas a seus interlocutores, a fim de lhes mostrar que se contradizem, que suas
ideias e convicções não se sustentam, que é preciso que reflitam mais caso queiram se
aprimorar. A mosca de Atenas é o modelo de força reativa, porque sua forma de se
impor é mediante a negação da posição do outro (o que os gregos chamam de elénkhos
e que pode ser traduzido por refutação). Mais ainda, nos diálogos propriamente
socráticos, o mestre de Platão limita-se a negar e jamais propõe, de modo que seus
diálogos sempre terminam em aporia, isto é, sem solução.
Sócrates, na conta de Nietzsche, não só opera de modo dialético – portanto,
negativo, não afirmativo –, mas também pressupõe a dicotomia mundo/além-do-
mundo ao dizer que os erros do mundo sensível são ilusórios, ao passo que o mundo
não sensível é verdadeiro. Rejeita, assim, as forças que provêm da sensibilidade e do
corpo, desconfiando de tudo que é do âmbito da arte e hipervalorizando o que é do
âmbito do intelecto.
As forças ativas são aquelas que atuam sem necessidade de alterar ou reprimir
outras forças. Opera por via afirmativa a partir de si próprio, não por meio da negação
do que fizeram os outros.
O arquétipo maior é o artista, aquele que enuncia perspectivas de vida, que
inventa mundos novos sem necessidade de demonstrar a legitimidade do que propõe,
nem de refutar obras que o precederam. Propõe sem argumentar. Apenas cria. Chopin
não tem razão contra Bach, nem Ravel tem razão contra Mozart. Isso acontece porque,
na arte, não é o teor verdadeiro que importa, mas sim as emoções, sensíveis por
natureza, que são veiculadas.
Composto de forças ativas e reativas, a realidade não é kósmos impessoal, nem
pessoal encarnado na figura de Deus. Tampouco é construída pela vontade dos
homens, tal como consideravam os modernos. Diferentemente, é um caos irredutível à
unidade; é um constante confronto de pulsões.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

2.2 Ética: o grande estilo

Com base nessa ontologia, Nietzsche convida a uma intensificação e a uma


hierarquização das forças ativas e reativas – eis o que chama de grande estilo.
Não se trata de negar as forças reativas, porque toda atitude de rejeitar algumas
forças vitais em prol de outras é ela mesmo nada mais que reação:
“Supondo-se que um homem experimente o amor das artes plásticas ou da música, tanto quanto
se sinta atraído pelo espírito da ciência, e que considere impossível eliminar essa contradição pela
supressão de um e a liberação completa do outro, só lhe resta fazer de si mesmo um edifício da
cultura tão grande que esses dois poderes, embora em extremos opostos, possam nele habitar...”
(NIETZSCHE, Humano, demasiado humano apud FERRY, 2006, p. 206)

O que Nietzsche chama de grandeza de estilo é a capacidade de intensificar e


hierarquizar as forças vitais. Em vez de se contrariarem e se dilacerarem e, portanto,
esgotarem-se entre si, é preciso que cooperem, ainda que seja com a liderança das
forças ativa.
“a grandeza de um artista não se mede pelos ‘bons sentimentos’ que ele suscita, mas reside no
‘grande estilo’, quer dizer, na capacidade de ‘se tornar senhor do caos interior; em forçar seu
próprio caos a assumir forma; agir de modo lógico, simples, categórico, matemático, tornar-se lei,
eis a grande ambição’” (NIETZSCHE, Vontade de potência, fragmento póstumo apud FERRY,
2006, p. 207)

A vontade de poder, assim, é aquela que quer intensidade, que quer evitar
dilaceramentos internos que diminuem a intensidade um do outro, porque anulam um
ao outro.
Os maiores contraexemplos à tal vontade são os sentimentos de culpa e de
remorso, que se volta contra nós mesmos, contra nossas próprias ações e, em vez de
nos impulsionar, apequena. Analogamente, apresenta-se o herói pintado pelo
romantismo, dilacerado e enfraquecido por seus conflitos internos – Mollière,
Schumann e Brahms são autores arquetípicos.
O maior exemplo da vontade de poder e do grande estilo é o atleta que que
desempenha suas atividades com simplicidade e sem esforço aparente. Isso acontece
porque nele as forças em jogo no movimento estão perfeitamente integradas, de modo
a cooperar sem resistência – logo, sem reação. Analogamente, apresenta-se o herói
pintado pelo classicismo, possuidor de todos os dons, todos os desejos violentos e
contraditórios, mas de tal modo que caminhem juntos, sob o mesmo jugo, com frieza,
lucidez, dureza, lógica – Corneille, Mozart e Rameau são autores arquetípicos.

2.3 Salvação: eterno retorno e amor fati

Se não existem mais além, nem kósmos nem divindade, se os ideais fundadores
do humanismo estão comprometidos, como distinguir não apenas o bem do mal, como
distinguir mais profundamente ainda o que vale ser vivido do que é apenas medíocre?

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

O critério será terrestre – deste mundo – não celeste – de outro mundo. A


duplicação de mundos, típica da tradição, terá que ser abolida. É nesta vida que é
preciso separar o que vale de o que não vale, por meio da doutrina eterno retorno, um
critério de avaliação da vida que vale ser vivida:
“Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando: ‘Tenho certeza de que desejo fazê-lo
infinitas vezes?’, isso se tornará o centro de gravidade mais sólido para você... eis o ensinamento
de minha doutrina: ‘Viva de forma a ter de desejar reviver – é o dever –, pois, em todo caso, você
reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama antes
de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de tudo se submeter, obedecer e seguir,
que obedeça! Mas que saiba para o que dirige sua preferência, e não recue diante de nenhum
meio! É a eternidade que está em jogo!’ Essa doutrina é suave para aqueles que nela não têm fé.
Ela não tem inferno nem ameaças. Aquele que não tem fé não sentirá em si senão uma vida
fugidia.” (NIETZSCHE, fragmento póstumo de 1881 apud FERRY, 2006, p. 221)

O convite de Nietzsche é a uma vida sem arrependimento, nem remorsos –


portanto, sem dilaceramentos internos, típicos do predomínio das forças reativas. Por
que essa é uma resposta de salvação? Porque evoca a noção de eternidade: na
ausência de Deus, ainda assim é preciso ter fé e cultivar o amor.
A vida boa é aquela que – desde os antigos – consegue viver no presente, sem
remorsos e culpas, movida pelas recordações do passado, e sem ansiedades,
movidas por projeções do futuro. Trata-se, de certo modo, da adoção de um preceito
tanto estoico, quanto budista, chamado de amor fati:
“Minha fórmula para o que há de grande no homem é amor fati: nada desejar além daquilo que é,
nem diante de si, nem atrás de si, nem dos séculos dos séculos. Não se contentar em suportar o
inelutável, e ainda menos dissimulá-lo – todo idealismo é uma maneira de mentir diante do
inelutável --, mas amá-lo.” (NIETZSCHE, Ecce Homo apud FERRY, 2006, p. 224)

De um lado, a doutrina do eterno retorno preceitua escolher os momentos que


valem viver; de outro lado, o amor fati recomenda amar a realidade tal como ela é. Não
há uma contradição?
Se tudo é necessário, se compreendemos que o real se reduz ao presente, então
a sensação de que poderíamos ter agido de outro modo se desvanece. Se assa noção
desaparece, logo amar a realidade não entra em contradição com a escolha dos
melhores momentos. Não há melhores momentos além daqueles que deveriam
acontecer de qualquer maneira.
Essa conciliação culmina na ideia de inculpabilidade total – a inocência do
devir:
Há quanto tempo me esforço para demonstrar a mim mesmo a total inocência do devir! [...] e tudo
isso por que motivo? Não será para conquistar o sentimento de mina completa irresponsabilidade,
para escapar a todo louvor e a toda reprovação...? (NIETZSCHE apud FERRY, 2006, p. 226)

A inocência do devir, isto é, da passagem incessante dos eventos traz a tona a


noção de que não fazem sentido as alegações do tipo “Eu deveria ter agido de modo
diferente”, “Eu não deveria fazer uma outra escolha?”.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

3. Guia de leitura para o Encontro 6

Leia o Cap. 6 “Depois da desconstrução. A filosofia contemporânea”, tentando


responder às perguntas abaixo. Escreva-as em seu caderno de anotações.
1. Como Marx e Freud, cada um a seu estilo, prosseguiram no caminho da
desconstrução proposto por Nietzsche?
2. O que significa dizer que a desconstrução se transformou em uma espécie
de cinismo?
3. Qual a diferença entre a ciência moderna e a técnica contemporânea,
segundo Heidegger?
4. O que é a theoria como autorreflexão que propõe Ferry?
5. O que é a ética como sacralização do outro que propõe Ferry?
6. Como o pensamento alargado pode ser considerado uma forma de
salvação, de acordo com Ferry?

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170


Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 5 – Cap. 5 – Filosofia Pós-Moderna: Nietzsche
Prof. Vitor Lima

Bibliografia

FERRY, Luc. Aprender a viver. Tradução de Vera Lucia dos Reis. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 1ª ed. 2ª reimp. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2018.
__________________. Além do bem e do mal ou o prelúdio de uma filosofia do futuro.
Tradução de Márcio Pugliesi. São Paulo: Hemus Editora, 1981.
__________________. A Gaia Ciência. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e
Norberto de Paula Lima. São Paulo: Hemus Editora, 1981.
__________________. Genealogia da Moral. Tradução, notas e posfácio de Paulo
César de Souza. 1ª ed. 11ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
__________________. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo.
Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. 1ª ed. 3ª reimp. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dário. História da Filosofia (vol. 56) – de Nietzsche à
Escola de Frankfurt. Coleção História da Filosofia. Tradução de Ivo Storniolo. 1ª ed.
[2008]. 2ª reimpressão [2016]. São Paulo: Paulus, 2016.
SCARLETT, Marton. Friedrich Nietzsche: uma filosofia a marteladas. 3ª Ed. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
________________. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São
Paulo: Brasiliense, 1990.

joao lira - joaolira.lima7@gmail.com - IP: 138.36.58.170

Você também pode gostar