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NIETZSCHE, A LIÇÃO
SCHOPENHAUER E
O ETERNO RETORNO
CARLOS ALBERTO SOBRINHO
Nietzsche, Schopenhauer’s Bacharel em Letras. Mestre e
Lesson and the Eternal Return doutorando em Educação pela
PUC-RJ. Técnico em Assuntos
Educacionais do MEC
Resumo Arthur Schopenhauer está presente no desenvolvimento da filosofia nietzs- sob@uol.com.br
chiana. Tanto que, nos seus escritos, Nietzsche o homenageia, tecendo elogios à ori-
ginalidade do filósofo, e examina aspectos da obra de Schopenhauer que subsidiam a
formulação de sua crítica da cultura. Este artigo indica elementos dessa influência, si-
tua a tese do Eterno Retorno como uma resposta de Nietzsche ao pessimismo en-
carnado por Schopenhauer e aborda algumas breves implicações do Eterno Retorno
no pensamento contemporâneo.

Palavras-chave existência – cultura – diferença – vontade – valor – potência.

Abstract Arthur Schopenhauer is present in the development of Nietzsche’s philo-


sophy. So much so that in his writings, Nietzsche pays him homage by praising his
originality and examines some aspects of Schopenhauer’s work that support the for-
mulation of his criticism of culture. This article indicates some elements of this in-
fluence, bringing up the Eternal Return theory as Nietzsche’s answer to Schopenhau-
er’s pessimism, indicating some implications of the Eternal Return to contemporary
thinking.

Keywords existence – culture – difference – will – value – power.

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A
fecundidade das idéias desenvolvidas por Nietzsche ain-
da hoje reverbera nos debates empreendidos pela cultu-
ra. No esforço de reflexão sobre as questões mais can-
dentes das últimas décadas, o renovado exame da obra
do filósofo demonstra o vigor do seu pensamento.
Não obstante o valor da contribuição filosófica do sé-
culo XIX, há reconhecidas limitações do seu alcance di-
ante dos problemas erigidos pelo atual contexto sócio-
político. Todavia, as dificuldades inerentes à aproximação do presente com o
passado não nos impede de reconhecer, na investigação teórica de Nietzsche,
um campo de possibilidades para enfrentar as inquietações do mundo con-
temporâneo, melhor compreender as circunstâncias históricas deste início de
século e aprofundar o diagnóstico de nosso tempo. Como indagava Benja-
min, afinal, em nossa relação com o futuro, “não somos tocados por um so-
pro do ar que foi respirado antes?”.1
Nessa perspectiva, visitaremos os fragmentos de “Schopenhauer como
Educador”, reunidos no capítulo III das Considerações Extemporâneas, e al-
guns dos principais aspectos sobre o “Eterno Retorno”, apresentado pela se-
leção de textos de Gérard Lebrun, e publicados pela Editora Nova Cultural,
na coleção Os Pensadores.
A fim de explorar as vicissitudes dos referidos temas, recorreu-se a lei-
turas complementares, entre as quais destaca-se o relato de Gilles Deleuze
como participante do VII Colóquio Internacional de Royaumont “Nietzs-
che”, realizado em 1964 – momento em que no Brasil a formação do dife-
rente não tinha horizonte, e a diferença sobrevivia à condenação e ao expur-
go. Outros textos mais clássicos de Deleuze também foram consultados,
além do posfácio do professor Antônio Cândido à publicação brasileira Os
Pensadores, da Editora Abril Cultural e do trabalho do professor italiano
Domenico Losurdo (Nietzsche e La Critica della Modernità. Per una Bio-
grafia Politica), um ensaio contundente sobre a natureza histórica e política
da crítica nietzschiana.

A LIÇÃO SCHOPENHAUER
Arthur Schopenhauer viveu entre 1788 e 1860. Diz-se ter sido um fi-
lósofo que não queria se vincular à escola pós-kantiana mas que, na realidade,
inspirado pela aproximação com pensadores indianos e com Kant, conseguiu
formalizar uma filosofia da vontade não muito distante do que Fichte já havia
proposto.
Por outro lado, sabe-se também que, em 1865, depois de abandonar o
curso de teologia na Universidade de Bonn, Nietzsche descobriu Scho-
penhauer em Leipzig, ao se deparar com o título de seu principal trabalho,
“O Mundo como Vontade e Representação”, exposto na vitrine de uma li-
vraria. Ficou imediatamente impressionado com o que encontrou. Durante

1 BENJAMIN, 1993, p. 223.

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onze dias, leu ávida e atentamente as duas mil pági- profundamente ferido por ele, em seu íntimo mais
nas do livro, e acabou por conhecer toda a obra do sagrado. Meu único, meu supremo alvo foi a pique,
filósofo. e não tenho mais nenhum.”3
Embora no contexto do idealismo alemão De acordo com Nietzsche, esta maneira de
(Kant, Fichte, Schelling e Hegel) a doutrina de Scho- sentir, quando desacomodam-se as convicções mais
penhauer seja identificada como portadora de poucos caras aos pensadores, é condição necessária para o
elementos originais, a lição extraída por Nietzsche entendimento, depois de Kant, da importância de
dessa viagem relaciona-se à importância de um pen- Schopenhauer como educador. Isto é, somente de-
sador não se dobrar às opiniões alheias e às imposi- sinvestindo-se do ceticismo e do relativismo, susce-
ções acadêmicas, buscar a independência do Estado tíveis de serem provocados na alma popular pela
e da sociedade, respeitar a si próprio e, no confronto sentença kantiana, é que os escritos de Schopenhau-
com a ordem estabelecida, ser, sobretudo, fiel às er puderam encarnar o sentido trágico na interpre-
suas idéias e à sua verdade. Nove anos depois, um tação da vida como um todo, a partir de sua própria
dos resultados desse encontro foi aparecer na Ter- experiência.
ceira Extemporânea, publicada em 1874, “Scho- Em meio a diversas descobertas e ao pleno
penhauer como Educador”. desenvolvimento científico, ao realizar a crítica do
interesse dos cientistas pelo detalhe, Nietzsche in-
KANT, A VERDADE E O PINTOR voca a vida como pintura universal, e lembra que “é
Segundo Nietzsche, todo pensador íntegro preciso adivinhar o pintor para entender a ima-
que estipulava sua trajetória a partir de Kant corria o gem”.4 O universal está para a imagem pintada as-
risco de cair, primeiro, no isolamento e, depois, so- sim como o pintor está para a tela. Sem a apreensão
frer o desespero da verdade, desde que fosse vigo- do conjunto, apenas os fios singulares das ciências
roso nos seus sentimentos e nos seus desejos. Po- não conseguem traduzir o tecido vivo das cores e
rém, ele reconhecia ser escassa a presença dessas dos materiais da existência. Para Nietzsche, a gran-
qualidades no campo filosófico, e admitia que, na deza de Schopenhauer foi caminhar no sentido ani-
verdade, a extensão da influência transformadora de mado e penetrante da imagem do mundo, sem se
Kant ainda era muito reduzida no espírito de sua restringir à erudição ou ao refinamento conceitual
época. da escolástica. A potência pedagógica de sua filoso-
fia está em, admitindo o cisma, a dúvida e as con-
Entretanto, no testemunho de Heinrich von
tradições inerentes a todo pensamento – na urdidu-
Kleist, um conhecido escritor de peças teatrais,
ra intrincada e insondável dos movimentos que
Nietzsche teve o exemplo vivo do trauma a ser en-
compõem a pintura viva do ser –, oferecer-se como
frentado por quem se submetia inteiramente ao ba-
imagem da vida para a compreensão do sentido in-
tismo de Kant. Tocados no cerne de sua verdade,
dividual, ou favorecer, na leitura da medida singular,
ponderava o filósofo, só os homens mais ativos e
o entendimento dos sinais da dimensão universal.
mais nobres, “que nunca agüentaram permanecer
na dúvida”,2 experimentariam o abalo como efeito “Toda grande filosofia (...) sempre diz unica-
da filosofia kantiana. Na reação de Kleist ao projeto mente: esta é a imagem de toda a vida, aprende nela
kantiano, o que comove Nietzsche é o modo como o sentido de tua vida. Ou vice-versa: lê tua vida e en-
o dramaturgo alemão foi afetado pelo pensamento, tende nela os hieróglifos da vida universal.”5 Tanto a
na sua relação mais íntima com a vida. “Não pode- alusão a Schopenhauer quanto a referência a Kleist
mos decidir se aquilo que denominamos verdade é traduzem o elogio ao caráter inovador da filosofia
verdadeiramente verdade ou se apenas nos parece de Kant, e também significam uma crítica às teorias
assim. (...) Se a ponta desse pensamento não atinge do conhecimento que, com o apogeu do Iluminis-
teu coração, não sorrias de um outro que se sente 3 KLEIST, H.W. In NIETZSCHE, 1996, p. 289.
4 NIETZSCHE, 1996, p. 290.
2 NIETZSCHE, 1996, p. 289. 5 Ibid.

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mo, empenhavam-se na construção objetiva e cien- Justo na capacidade de escapar de tal armadi-
tífica do mundo, desvalorizando a implicação do su- lha reside a virtude de Schopenhauer. Nietzsche
jeito nessa construção, descartando a subjetividade. empenha-se em mostrar que a grandeza do filósofo
Esse é o primeiro ponto a ser destacado dos no confronto crítico com as feridas do seu tempo
fragmentos analisados que homenageiam Scho- não representa uma luta infecunda, dirigida contra o
penhauer: só posso conquistar a dimensão da vida lutador e destinada a converter-se na sua autodes-
universal se nela eu contemplo o horizonte da mi- truição. Ao contrário, Schopenhauer exerce a sua li-
nha própria vida. berdade mesmo é ao combater, na cultura, os valo-
res que o impedem de afirmar a diferença do seu
O EMPREENDEDOR, O JUIZ pensamento.
E O EXTEMPORÂNEO Quando Schopenhauer torna-se hostil ao que
Um segundo aspecto observado por Nietzs- em si mesmo encontra, não é para negar-se, mas, so-
che é relativo ao impasse do pensador moderno em bretudo, para expulsar de seu interior as mazelas de
sua aventura de sobrelevar-se, de transfigurar a na- sua época, o veneno da cultura que deforma e limita
tureza e caminhar para a civilização. Diferente dos sua aspiração a uma outra humanidade. Nietzsche,
filósofos gregos, que faziam a defesa intransigente traçando o perfil do filósofo moderno, compara a
da physis em toda a plenitude de sua beleza e liber- sua subordinação ao tempo como o vínculo do en-
dade, Nietzsche apontava o embaraço entre o esfor- teado à figura da falsa mãe indigna; em nome de um
ço de superação da vida imediata e a dúvida quanto reino saudável para a vida, ela deve ser afastada.
ao valor mesmo da existência como um dos proble- A advertência quanto ao papel crítico do filó-
mas que contagiavam o juízo e o pensamento mo- sofo frente ao movimento moderno assinala a legi-
dernos. Ou seja, a grandeza da vida só poderia ser timidade da aventura de Schopenhauer. Equivocam-
tangível mediante a renúncia à vontade de compre- se, em vista disso, os intérpretes que dele extraem
ender o seu verdadeiro valor. apenas a mensagem da ruína. Seus escritos, mais do
Nessa situação encontrava-se o falso dilema que um defeito do escritor, significam a tentativa de
do empreendedor e do juiz, ou do reformador e do depuração das marcas visíveis da doença contempo-
filósofo, tal como Nietzsche o nomeia: quanto mais rânea: uma vida sem clareza e sempre pronta a ser
eu realizo, mais me abstenho de julgar o produto da hipocritamente condenada. Nietzsche recusou o
minha realização, e quanto mais eu me ocupo do pessimismo de Schopenhauer, mas depois de nele
julgamento das minhas ações e do mundo, mais me reconhecer uma força: “sua hostilidade, no fundo,
distancio de efetivar minha vontade de empreender. está dirigida contra a impura mescla do incompatí-
“Um pensador moderno (...) sempre sofrerá de um vel e do eternamente inconciliável, contra a falsa sol-
desejo não cumprido: (...) ele considerará ser um da do contemporâneo com sua extemporaneidade;
homem vivo, antes de poder acreditar que pode ser e, afinal, o suposto filho do tempo se mostra apenas
um juiz justo.”6 como seu enteado”.7
A esta disjunção Nietzsche atribui o nasci- Celebrada por Nietzsche, esta é a manobra de
mento do espírito empreendedor da filosofia mo- Schopenhauer: a defesa do pensamento para além
derna – uma poderosa máquina de “fomentadores da vida contemporânea, que aprisiona a filosofia na
da vida” –, emigrando do presente em direção ao crítica imobilizadora ou na realização acrítica. O ho-
avanço do processo civilizatório. Todavia, adverte o mem, empenhado no curso de seu projeto criador,
filósofo, na transformação da natureza, a vida mo- não encalha entre o desejo de viver e a dúvida sobre
derna sempre deixa um resto: nessa trajetória obsti- o valor da vida; em toda a extensão da sua liberdade
nada, ou cessa o realizador ou cala-se o juiz, a crítica. e diferença com os valores culturais, ele eleva à altura

6 Ibid., p. 291. 7 Ibid.

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da consideração trágica o exame da existência para seus próprios demônios, do seu inconformismo
tornar-se universal. com o crescimento do mundo moderno, cuja espe-
rança reservada aos homens não ia além da sua par-
O ESTADO, O MUNDO DA ticipação residual no devir do Estado. “É uma deci-
CULTURA E A EXISTÊNCIA são pavorosa! (...) Pois agora ele precisa mergulhar
O Estado, como resultado da civilização e ob- na profundeza da existência, com uma série de per-
jetivo último da humanidade, só cabe na convicção guntas insólitas nos lábios: Por que vivo? Que lição
da mais ferrenha estupidez daquele que tem no ser- devo aprender da vida? Como me tornei assim
viço estatal o seu supremo dever. Em oposição a como sou e por que sofro então com esse ser-as-
esta promessa de felicidade anunciada pela inovação sim? Ele se atormenta: e vê como ninguém se ator-
política, Nietzsche propõe a destruição de toda for- menta assim.”10
ma de estupidez como tarefa superior ao dever de Ao ressaltar a escolha de Schopenhauer, Niet-
servir ao Estado. zsche observa que, na relação da vida com a cultura,
Ao contrário dos professores de filosofia, em nome do projeto comum da civilização e da
acolhidos no conforto das organizações governa- convocatória ao adesismo irrefletido do jogo con-
mentais, o filósofo vê na vida moderna os sintomas temporâneo, o homem não deve mutilar a sua dife-
de um provável aniquilamento da cultura: a descren- rença. Antes de se ocupar como um fantoche na
ça religiosa, a crescente hostilidade entre as nações, burla do vir-a-ser moderno, Schopenhauer oferece-
o avanço desmesurado da ciência e o potencial des- se em sacrifício como primeira condição para medir
trutivo da economia monetária. Nietzsche vaticina as coisas à medida de si, à medida do seu ser.
que, num mundo onde não há mais lugar para a Associar-se ao sentimento infeliz, purgar a
contemplação, a simplicidade, o pensamento, “tudo desilusão diante de toda a inverdade que lhe assalta-
está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive a va o juízo foi a empresa de Schopenhauer para acer-
arte e a ciência de agora”.8 car-se da verdade, para encarnar o sonho da existên-
A capacidade de antecipar os graves proble- cia livre do peso do mundo e nascer transfigurado.
mas na proporção do que hoje enfrentamos é o tes- “Sua força está em esquecer-se de si mesmo; e se ele
temunho do seu estilo ousado e visionário. Não dei- pensa em si, mede a distância de sua alta meta até si
xa de ser notável que o perfil traçado pelo filósofo e é como se visse um desprezível monte de detritos
para o final do século passado ainda permaneça fa- atrás e abaixo de si.”11
miliar a muitas das atuais análises de nossos dias, es- A ascese de Schopenhauer permite a Nietzsche
pecialmente quando diagnostica a condição humana verificar que as ações de valorização da cultura mo-
frente aos ideais modernos: o “homem culto dege- derna incentivadas pelas autoridades não fazem se-
nerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar a não promover o bem e a existência do Estado e de
doença geral e é um empecilho para os médicos”.9 uma elite conformada. Juntos, negociantes, artistas
Por reconhecer na cultura o quadro de uma e eruditos tratavam apenas de defender os seus in-
debilidade generalizada, Schopenhauer não cede ao teresses imediatos e de zelar ciosamente pelos bene-
ímpeto de conjurar, impotente, os atos políticos en- fícios que conseguiam auferir. Este é mais um dos
cenados diante de si, nem tampouco à tentação de preceitos apreendidos de Schopenhauer. Na fron-
compor o elenco da comédia social que oferecia teira da história que se anunciava, Nietzsche denun-
como horizonte para a vida, o bom cidadão, o eru- cia como a dimensão da vida, convertida aos estrei-
dito, o comerciante ou o filisteu. tos limites da sobrevivência moderna, levou o ho-
Ele não aceita esses limites, ajusta a sintonia mem original a sofrer de uma cruel má vontade e do
dos sentidos e dá início à investigação detalhada de mais terrível desprezo, em condições onde o apare-

8 Ibid. 10 Ibid.
9 Ibid. 11 Ibid.

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cimento da sua singularidade tornava-se pratica- considera-o como gênio em estado latente. Do seu
mente inexistente. À expansão do Estado corres- ponto de vista, isto ocorre porque o filósofo, ao
pondia o afastamento insular da existência revoluci- contrário do erudito, além de ter de ser um pensa-
onada e do sentido livre e elevado da cultura. dor, deve ser também um homem empenhado em
“retirar de si a maior parte do ensinamento”13 que
AS INSTITUIÇÕES CULTURAIS, almeja e servir “para si mesmo de imagem e abrevi-
A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO atura do mundo inteiro”.14
A partir do programa crítico de Schopenhau- A distância em relação à existência moderna
er, que desnuda a índole fugaz e inconsistente do era ponto de honra para o filósofo. O empenho, o
mundo moderno, Nietzsche especula sobre algu- esforço para ir além da opinião corrente, eram inici-
mas possíveis conseqüências para os estabelecimen- ativas consideradas fundamentais e necessárias à li-
tos de ensino preocupados com a tarefa de instituir berdade do pensamento: “Quando alguém se vê por
uma educação além da cultura da moda. intermédio de opiniões alheias, o que há de admirar
De início, ele entende como necessária a mu- se até mesmo em si próprio ele não vê nada além de...
dança de objetivos dos educadores superiores, cujas opiniões alheias. E assim são, vivem e vêem os eru-
raízes remontam ao ideal da Idade Média de formar ditos”.15
eruditos. Sua recomendação é de que a primeira me- Tanto Schopenhauer quanto Goethe, ao se
dida deve consistir em decantar os pensamentos das despirem das máscaras da incultura e, se alimentando
influências medievais de formação cultural. No seu no passado, fundarem um processo de autoconheci-
prisma, com Kant, estabelece-se uma bifurcação mento, experimentaram o júbilo de ter da vida, na
fundamental para o pensamento e, conseqüente- aventura pesada de cada uma de suas odisséias, a mais
mente, para as instituições de cultura: o caminho leve e digna das imagens. Nos termos de Nietzsche,
das benesses modernas e o caminho do autogover- viram “o sagrado como juiz da existência”.16 Foram
no. No primeiro, a instituição cultural é compreen- ao encontro de uma única tarefa, de um único sen-
dida na base de um conjunto de dispositivos e de leis tido, isto é, fundar, mediante a educação de si, uma
por meio do qual seus integrantes legitimam-se e diferença criadora e uma nova concepção de cultura,
afastam os proscritos; no segundo, ela é tida como em oposição aos interesses decorativos do mundo
organização sólida de apoio e incentivo aos talentos, moderno.
resguardando-os do “egoísmo míope do Estado”12
Nietzsche não vê com bons olhos a filiação
e da tentação bajuladora do espírito novidadeiro.
de pensadores ao Estado, pois entende que por estar
A recusa da adesão fácil defendida por Nietzs-
comprometida com a “faca da verdade”,17 a liberda-
che tem como meta um alvo superior ao da erudi-
de do pensamento não pode ser rebaixada à função
ção. Ele é bem claro em seus propósitos quando de-
docente como meio de vida. Encerrada na cátedra, a
fende não ser tarefa da educação e da cultura criar
filosofia corre sérios riscos de se acomodar como
eruditos hipócritas, conformados à sua história mais
saber universitário, abdicando do juízo e da crítica
recente. O intuito, na verdade, é o de cultivar ho-
inclusive ao próprio Estado. “Se alguém suporta,
mens efetivos, homens livres com disposição herói-
pois, ser filósofo em função do Estado, tem tam-
ca; trata-se de formar pensadores.
bém de suportar ser considerado por ele como se ti-
Para tanto, a investigação de si como princípio
vesse renunciado a perseguir a verdade em todos os
educacional adquire tal relevância no pensamento
seus escaninhos.”18
nietzschiano que, mesmo admirando Kant, ele não
concede ao ilustre intelectual o mérito de ter suplan- 13 Ibid., p. 297.
tado a condição de erudito. Embora nele reconheça 14 Ibid.
15 Ibid.
o portador de uma genialidade inata, Nietzsche 16 Ibid.
17 Ibid., p. 298.
12 Ibid. 18 Ibid.

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Na qualidade de concessões profundamente Em resposta ao que identificou na doutrina de


danosas, Nietzsche rejeita o pensamento como pro- Schopenhauer como a face do pessimismo, uma von-
fissão, o filósofo como funcionário e a filosofia tade de não – Schopenhauer concebeu a força da von-
como erudição. A contemplação do filósofo deve tade como fundamento do mundo para aprisionar-se
ser semelhante ao olhar do poeta, e não o exercício no sentimento da impotência –, Nietzsche formula a
de um filólogo, de um conhecedor de línguas ou de vontade em sua máxima potência, e propõe a radica-
um historiador. Ao institucionalizar a filosofia, sus- lidade da diferença como o efetivo destino do eterno
peita Nietzsche, o Estado moderno transformou a retorno, isto é, do vir-a-ser intempestivo.
atividade filosófica num aglomerado de sistemas e
de críticas ininteligíveis, de onde os jovens, depois O ETERNO RETORNO
de submetidos ao martírio de percorrê-lo, saem ali- Em 1881, durante o passeio por uma aldeia da
viados e convictos dos benefícios do amparo cristão cidade onde morava, Haute-Engandine, Nietzsche
e estatal. concebeu o eterno retorno, cuja tese, segundo An-
Vimos com Nietzsche que a lição de Scho- tônio Cândido, é a de que o mundo pode ser com-
penhauer pode ser traduzida em no mínimo três preendido como um desenvolvimento alternado da
princípios fundamentais: 1. a subjetividade como via criação e da destruição, do gozo e da dor, do bem e
de acesso ao universal; 2. o distanciamento das im- do mal.
posições do presente como meio do desenvolvi- De acordo com as conclusões do VII Coló-
mento autocrítico e recurso de aproximação crítica quio Internacional de Royaumont “Nietzsche”, o
da história; e 3. a banalização da cultura promovida eterno retorno não constitui uma formulação que
pelo alargamento do Estado e a incompatibilidade tenha sido objeto de exposições e desenvolvimentos
do pensamento filosófico com o instituto da edu- sistemáticos de sua filosofia. O que há são notas e
cação moderna. algumas indicações apresentadas na obra. Isto, con-
Depreendemos que a linha de sucessão refe- tudo, não torna menor o valor do seu projeto que,
rida por Nietzsche – Kant, Goethe e Schopenhauer conforme diz Nietzsche, pretende uma saída da
– apresenta uma trajetória comum relativa à impor- mentira que já dura dois séculos. Mas que saída é es-
tância que estes intelectuais concederam ao exame sa? Como ela se organiza e quais são as ferramentas
de suas inquietações confrontadas aos imperativos de Nietzsche para encaminhar tamanho empreen-
históricos dos séculos XVIII e XIX, sobretudo em dimento?
face do projeto do sujeito moderno. Sob o risco de restringir a amplitude do tra-
Inaugurado com o Iluminismo, o movimento balho de Nietzsche caindo num discurso impru-
de objetivação do mundo contrasta com a postura dente e estéril, e mesmo ciente da aversão do eterno
desses pensadores que, em nome do livre exercício retorno às explicações e definições, buscar-se-á uma
da diferença frente ao que Nietzsche observou abordagem preliminar de alguns de seus principais
como a intranqüilidade da mundanização – “a crença aspectos.
no mundo” –,19 lançaram-se ao desafio de inscrever
na história do mundo moderno o que poderíamos O DESMONTE DA CRÍTICA FILOSÓFICA
chamar de políticas da subjetividade: o recrutamento Apesar de inicialmente afetado por Scho-
do sujeito pela teoria do conhecimento de Kant; a penhauer e de nele ter identificado o ato legítimo de
exploração poética de Goethe sobre a vida humana um querer – o rompimento da existência com o di-
em todas as suas ramificações; a vontade como di- vino e a demonstração dos fenômenos modernos
mensão trágica da vida, de Schopenhauer; e a vonta- como sintomas de uma vontade –, Nietzsche dis-
de de potência no eterno retorno, de Nietzsche. tancia-se dessa filosofia, sobretudo por não endos-
sar a idéia da vontade como aquilo que se reflete na
19 Ibid., p. 442. aparência, na ilusão do mundo, recusando-se a so-

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frer da consciência do conhecimento como repre- buem-se a si mesmas a falta primordial, introjetam o
sentação. erro, dizem-se culpadas pelo engodo que presenci-
Em Nietzsche, a vontade não tem rosto, ela é am da vida, dão o exemplo da renúncia, disseminam
múltipla, e só pode agir sobre uma outra vontade o contágio reativo por todas as forças e, finalmente,
porque “só uma vontade pode obedecer àquilo que sublimam o fracasso nos valores piedosos e superi-
a comanda”.20 Deste ponto de vista, Nietzsche de- ores à vida em nome da própria salvação no além.
sobriga-se definitivamente da distinção metafísica Eis a aliança de Deus com o homem para dizerem,
dos mundos e anuncia a Vontade como o nome do um ao outro, não.
libertador e do mensageiro da criação e da alegria –
Diz-se que alguém é forte porque ele carre-
ânimo fundamental eternizado na afirmação.
ga: carrega o peso dos valores “superiores”,
“Quem encontra no esforço o mais alto sentimen- sente-se responsável. Mesmo a vida, sobre-
to, que se esforce; quem encontra no repouso o tudo a vida, parece-lhe difícil de suportar. As
mais alto sentimento, que repouse; quem encontra avaliações estão de tal modo deformadas
em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sen- que já não sabemos ver que o carregador é
timento, que obedeça. Mas que tome consciência do um escravo, que o que ele carrega é uma es-
que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receie cravatura, que o carregador é um carrega-
nenhum meio! Isso vale a eternidade!”21 dor-fraco – o contrário de um criador, de
Segundo Nietzsche, há uma fonte de inspira- um dançarino.24
ção comprometedora de toda a filosofia: o princípio Sem embargo, a avaliação do filósofo vai mais
teórico que estabelece a distinção dos mundos da além. Para Nietzsche, mesmo a tarefa kantiana de
essência e da aparência, do verdadeiro e do falso, do conferir à crítica uma dimensão abrangente e posi-
inteligível e do sensível. Esta concepção, forjada por tiva, denunciando as falsas pretensões do conheci-
Sócrates, tornou a vida algo a ser julgado, medido e mento, não colocou em causa a aspiração de conhe-
limitado por um pensamento que só pode se exer- cer, não fez a crítica da verdade e, embora tenha cri-
cer em nome de valores tidos como superiores – “o ticado a falsa moral, não pôs em questão as aspira-
Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem”–,22 e produ- ções da moralidade nem os seus valores.
ziu uma filosofia voluntarista e submissa.
Todavia, essa passagem em revista da cultura
A predominância dos critérios superiores, as- ultrapassa a crítica da razão. Nietzsche observa que
severa o filósofo, favoreceu em toda parte a vitória a predominância das formas reativas e acusatórias se
do não sobre o sim, da reação sobre a ação. Na ma- expressam também na dialética, enquanto uma arte
triz socrática e nas doutrinas judaico-cristãs encon- destinada a nos convocar para a recuperação de
tramos “a gênese das grandes categorias do pensa- “propriedades alienadas”,25 para a recomposição do
mento: o Eu, o Mundo, Deus, a causalidade, a fina- Espírito ou da consciência.
lidade etc.”,23 terrenos nos quais triunfaram os con-
Este objetivo da dialética contém o pressu-
tra-sensos do ressentimento, da má consciência e do
posto de que nossas propriedades sugerem a vida e
ideal ascético.
o pensamento em si como fenômenos mutilantes.
Estes três contra-sensos, segundo Deleuze, Seria o caso então, pondera Deleuze, de nos tornar-
imprimem um tom bastante peculiar à filosofia da mos os verdadeiros sujeitos destas propriedades de
vontade. Neles, a fraqueza e a infelicidade renunci- mutilação? O sacerdote foi interiorizado pela Re-
am às forças ativas e acusam o outro como causa da forma mas não desapareceu, Deus foi morto mas o
própria inanidade, tornam a ação vergonhosa e aco- homem dele guardou e ocupou o essencial: o seu lu-
modam a impotência no sentimento da inveja, atri- gar. Sem a crítica dos valores, de fato, continuamos
20
a sobrecarregar as costas com o entulho secular dos
DELEUZE, 1976, p. 6.
21 NIETZSCHE, 1996, p. 442.
22 DELEUZE, 1976, p. 20. 24 Ibid.
23 Idem, 1981, p. 25. 25 Ibid., p. 20.

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valores estabelecidos, neles buscando algum reco- força esgotaria. Agora pensa-se a força constante-
nhecimento. mente igual, e ela não precisa mais tornar-se infini-
Na renúncia à crítica dos valores é que a afir- tamente grande. Ela é eternamente ativa, mas não
mação da vontade confunde-se com a imposição, pode mais criar infinitos casos, tem de se repetir:
com o desejo de dominar; subordina-se aos interes- essa é a minha conclusão.”29 Uma conclusão a que
ses e imperativos da dominação para se eternizar no Nietzsche chegou como forma de evitar a tendência
poder como a vontade do mesmo – à semelhança de da cultura em atribuir crédito ao teísmo. Ou se acre-
um escravo que se torna poderoso mas que não se dita na pluralidade de forças em retorno seletivo e
inventa como senhor. Para Nietzsche, a história uni- criador, “em um processo circular do todo”,30 ou se crê
versal é a história do modo como as forças reativas em um Deus voluntário, fiador do mundo e do ser.
se apoderaram da cultura ou a desviaram em seu Além da força, do tempo e do infinito, o arse-
próprio benefício. “Os nossos senhores são escra- nal teórico que suporta o eterno retorno abrange
vos que triunfam num devir-escravo universal: o também a articulação de noções como vontade, aca-
homem europeu, o homem domesticado, o bobo... so, sentido e valor. De início, ele considera como
Nietzsche descreve os Estados modernos como propriedade fundamental da força estar em relação
formigueiros, em que os chefes e os poderosos le- com outra força, o que caracteriza a vontade. No re-
vam a melhor devido à sua baixeza, ao contágio des- lacionamento das forças, que se diferenciam em
ta baixeza e desta truanice.”26 quantidade e qualidade, Nietzsche vê o acaso. Se nes-
Na lida com a total inversão dos valores, como sa implicação do acaso as forças distinguem-se umas
escapar às proposições lógicas que, na verdade, es- das outras em quantidade, elas são forças dominan-
condem uma segunda intenção teológica? Que lei tes ou dominadas; quando a diferença entre as forças
originária vai instituir o filósofo para dar conta do se expressa em qualidade, elas são ativas ou reativas.
curso do mundo e da sua eternidade? Com quais re- Como todas as forças encontram-se em esta-
cursos ele constrói um novo caminho? do permanente de movimento, umas em relação às
outras, compreende-se porque Nietzsche propôs a
O ARSENAL TEÓRICO vontade de potência como o princípio plástico de-
Para situar o eterno retorno, Nietzsche recor- terminante da relação entre elas. Enquanto é pró-
re aos conceitos de força, infinito e tempo, articu- prio da força agir ou reagir, à vontade de potência
lando-os com a idéia da situação global. Diz o filó- compete afirmar ou negar, apreciar ou depreciar.
sofo que a força total, resultado da atuação da mul- Pelo fato da vontade de potência também ser dotada
tiplicidade de forças do todo, não corresponde ao das qualidades afirmativas ou negativas, que são an-
infinito. Apesar dessa força não poder ser medida, teriores às qualidades da força, é dela que derivam a
ela é determinada. O que é infinito é o tempo, o ins- significação do sentido e o valor dos valores.
tante – “uma força eternamente igual e eternamente De maneira bastante abreviada, este é o tecido
ativa”27 – em que todos os desenvolvimentos pos- conceitual que permite a Nietzsche engendrar uma
síveis de força já transcorreram. Por isto, o que ge- saída ao predomínio de uma visão plotiniana do
rou o tempo e o que dele nasce é uma repetição, e a mundo, ancorada no ideal religioso, moral e dialéti-
situação global de todas as forças sempre retorna. A co, buscando um outro caminho para a filosofia,
infinidade só passou porque todas as possibilidades para a história e para a política. “Uma nova imagem
do que tem de ser na ordem e na relação de forças do pensamento significa inicialmente o seguinte: o
já se esgotaram. verdadeiro não é o elemento do pensamento. O ele-
“Outrora se pensava que a atividade infinita
no tempo requer28 uma força infinita que nenhuma 28 O tempo do verbo, apesar de suscitar dúvidas ao leitor, corresponde ao
texto original da publicação traduzida, e por isto foi mantido tal como está
editado.
26 Ibid., p. 24. 29 NIETZSCHE, 1996, p. 439.
27 NIETZSCHE, 1996, p. 439. 30 Ibid., p. 440.

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mento do pensamento é o sentido e o valor. As ca- a interpretar e avaliar, mas somente a vontade de po-
tegorias do pensamento não são o verdadeiro e o tência, que é potência de metamorfose, potência de
falso, e sim o nobre e o vil, o alto e o baixo, segundo modelar as máscaras, potência de interpretar e de
a natureza das forças que se apoderam do próprio avaliar.
pensamento”.31 A propósito desta espécie de horror vacui, que
Assim entendidos os elementos centrais da dispara os processos de sentido e não remete a ne-
Stimmung nietzschiana, neles, as referências à no- nhuma substância essencial de valor, Deleuze nos
breza, à altivez e à mestria podem ser identificadas oferece um exemplo de toda a magnitude contem-
como sendo próprias da vontade de potência afir- plada na vontade de potência: atrás da caverna pla-
mativa, da força capaz de se transformar; por outro tônica não há outra coisa senão outra caverna atrás
lado, a vileza, a baixeza e a escravidão figuram como de toda caverna, atrás de cada profundidade há
categorias pertinentes a uma vontade de potência “uma profundidade original, ontológica, (...) abismo
negativa. Estas qualidades da vontade, logo, em sen- abaixo de todo fundo”.33
do afirmativas ou negativas, implicarão, respectiva- A vontade de potência não é uma vontade
mente, num devir ativo e num devir reativo. que quer a potência ou que deseja dominar. Querer
Por conseguinte, a partir da orientação de- dominar é a imagem que os fracos fazem da vontade
leuziana, constata-se que o pensamento trágico de de potência, no seu mais baixo nível. Num grau
Nietzsche substitui o ideal do conhecimento, da mais elevado, ela não equivale à cobiça e nem mes-
descoberta do verdadeiro, pela interpretação e pela mo à usurpação, porém guarda o sentido de dar e de
avaliação. Interpretar é fixar o “sentido” de um fe- criar. “Seu verdadeiro nome, diz Zaratustra, é a vir-
nômeno, que é sempre parcial e fragmentário; ava- tude que dá. Da mesma forma a máscara é a mais
liar é determinar o “valor” dos sentidos e totalizar os bela dádiva, testemunha da vontade de potência
fragmentos, levando em conta a sua pluralidade. como força plástica, como a mais alta potência da
Em última instância, na condição de crítico da arte. A potência não é o que a vontade quer, mas
ciência e da cultura modernas, Nietzsche chama a quem quer na vontade.”34
atenção para “os direitos da diferença de quantidade Sob a assistência de Deleuze, pode-se dizer
contra a igualdade e para os direitos da desigualdade que o papel da negação e da afirmação no perspec-
contra a igualação das quantidades”.32 tivismo nietzschiano, de acordo com o vetor de aná-
lise, assume muitas significações, coexistindo sob
A VONTADE DE POTÊNCIA: tensões variadas. Se procuro ver do alto, afirmar im-
UMA NOVA ALIANÇA COM O MUNDO plica reconhecer diferença, jogar, criar; se busco ana-
Deleuze esclarece que o método de Nietzs- lisar do ângulo do que se encontra abaixo, afirmar
che procura descobrir novas “profundidades” de significa negar, se opor à diferença, ao que não cor-
sentido, alterando o espaço onde os signos se distri- responde àquilo que a visão do que está embaixo é.
buem. Ao se alterar esse espaço, as interpretações se Em um outro exemplo dessa tensão, Deleuze
organizam em nova profundidade e cessam de ter o ressalta a diferença entre o sim e o não do Asno e o
verdadeiro e o falso como critério. No lugar da ló- sim e o não de Zaratustra. O primeiro, quando diz
gica, funda-se uma topologia e uma tipologia do sim, quando acredita afirmar, não faz senão carregar.
pensar, sentir e mesmo existir: as interpretações su- Ele acredita que afirmar é carregar, o valor de suas
põem não o que se interpreta, mas o tipo daquele afirmações ele o avalia segundo o peso do que car-
que interpreta. rega. O que ele carrega? O “asno carrega antes de
No lugar da representação, não há nada, o que tudo o peso dos valores cristãos; de resto, quando
há é a máscara, a avaliação; não propriamente coisas Deus está morto, carrega o peso dos valores huma-

31 DELEUZE, 1976, p. 86. 33 ESCOBAR, 1985, p. 21.


32 Ibid., p. 37. 34 Ibid., p. 22.

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nistas, humanos – demasiadamente humanos; en- Desde as raízes pré-socráticas, o eterno retor-
fim, o peso do real, quando não há mais valores de no constitui uma das idéias mais antigas da filosofia.
modo algum”.35 Lá, conforme as civilizações e as escolas filosóficas
Eis o niilismo nietzschiano em seus três está- da época, o conceito era articulado a outras noções
gios: o peso de Deus, o peso do homem e o peso do especulativas e concebido sob variadas formas. De
último dos homens – a carga que nós conduzimos maneira geral, essas formas do eterno retorno eram
quando não temos mais o fardo da teodicéia. Ao vistas como ciclos incomensuráveis, que provavel-
que o asno diz sim ao mesmo tempo em que diz mente não tinham uma abrangência total e nem
não a si mesmo, é ao niilismo: nele, a afirmação não mesmo eram consideradas como eternas.
é mais do que um fantasma, e o negativo, sua única De acordo com Deleuze, no passado, o eter-
realidade. Afirmar, para Zaratustra, não é sinônimo no retorno não chegou a se confirmar como uma
de carregar, assumir a carga; afirmar significa desfa- doutrina. Na Antiguidade, ele era o resultado de
zer-se da carga, descarregar, fundar o ato solene e uma interpretação das transformações ocorridas ou
sublime da dança, da criação. O sim de Zaratustra é no mundo físico ou na dinâmica dos astros. De um
a afirmação do dançarino, o sim do asno é a afirma- lado, as mudanças cíclicas geradas na interação dos
ção do carregador; o não de Zaratustra é o da agres- elementos qualitativos determinavam o retorno das
sividade, da atitude, o não do asno é o do ressenti- coisas e dos corpos celestes; de outro, o movimento
mento. circular dos corpos celestes determinava o retorno
das qualidades e das coisas. Nenhuma dessas abor-
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA dagens corresponde ao pensamento de Nietzsche.
E CRIAÇÃO DE NOVOS VALORES
Na expressão “eterno retorno” fazemos um
Dos conceitos apresentados por Nietzsche, o
contra-senso quando compreendemos re-
eterno retorno é um dos mais complexos e de difícil
torno do mesmo. Não é o ser que retorna,
alcance. Isto porque as proposições de sua filosofia mas o próprio retornar constitui o ser en-
encontram-se estruturadas numa conformação me- quanto é afirmado do devir e daquilo que
todológica onde se privilegia a interação múltipla de passa. A identidade no eterno retorno não
signos. Em sua obra sempre vigora uma pluralidade designa a natureza do que retorna, mas, ao
de sentidos, resultado das forças que ali se manifes- contrário, o fato de retornar para o que di-
tam e atuam. fere. Por isso o eterno retorno deve ser pen-
Na visão do filósofo, tudo aquilo que há está sado como uma síntese: síntese do tempo e
sempre no regime de um complexo de sentido. Des- de suas dimensões, síntese do diverso e de
se modo, toda possibilidade de interpretação remete sua reprodução, síntese do devir e do ser
à possibilidade infinita de interpretar, de se produzir afirmado do devir, síntese da dupla afirma-
ção.36
outra interpretação. Mas isso não autoriza a que to-
das as interpretações tenham o mesmo valor e este- O eterno retorno de Nietzsche nos introduz
jam no mesmo plano, porque, como vimos, o valor numa dimensão não explorada, que não diz respeito
é determinado pela vontade de potência. nem à qualidade física nem à quantidade extensiva
Dentre as diversas abordagens possíveis, De- do mundo, mas, sobretudo, ao domínio das inten-
leuze sustenta ser o eterno retorno o tema que per- sidades puras – domínio desenvolvido como lei da
mite resgatar a importância e o sentido fundamental vontade de potência. Nietzsche visava a vontade de
da afirmação na filosofia de Nietzsche. Para isso, ele potência “como princípio ‘intensivo’, como princí-
distingue a originalidade do filósofo em contraste pio de intensidade pura”.37
com as formulações mais clássicas do problema.
36 Ibid., p. 40.
35 DELEUZE, 1976, p. 23. 37 ESCOBAR, 1985, p. 25.

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Nesse mundo de intensas flutuações, de sig- sentenciando que Tudo também não volta, já que o
nos e de sentidos, as identidades se dissolvem, e o eterno retorno é essencialmente seletivo.
querer de cada um só se exerce na medida em que A significação seletiva do eterno retorno se dá
abrange a extensão radical de toda alteridade. Nela, duplamente. Ele seleciona pela via do pensamento
a presença a si se transforma em inumeráveis “ou- porque elimina as “meias-vontades”, e seleciona pela
tros”, e só pode ser apreendida como um instante, via do ser porque suprime as semi-potências. A du-
uma atualização fortuita, cuja causa está no seu en- pla dimensão do eterno retorno consiste, portanto,
volvimento com toda a série. Assim, numa diferen- na afirmação irrestrita do querer e do ser, e o que ele
ça de intensidade, os signos se estabelecem e se tor- faz voltar é a potência extrema de tudo que passa
nam “sentido” porque, ao se dirigirem para outras pela prova.
diferenças implicadas na diferença primeira, por Apesar do esforço da cultura na igualação das
meio delas retornam sobre si. diferenças, isto volta porque nada pode ser igual,
O advento das flutuações ou intensidades que nem o mesmo pode ser idêntico a si. O desigual, o
se atravessam umas nas outras caracteriza a vontade diferente é a verdadeira razão do eterno retorno. Ele
de potência; da volta e da re-volta em todas as dan- concerne apenas ao vir-a-ser e ao múltiplo, num
ças, contradanças e mudanças dessas flutuações ou mundo sem ser, unidade ou identidade. “Por toda a
intensidades é que decorre o eterno retorno. Sob a parte o eterno retorno se encarrega de autenticar;
força de Klossowski, assim Deleuze nos oferece a não identificar o mesmo, mas autenticar as vontades,
visão, a revelação e o enigma de Nietzsche. “(...) o as máscaras e os papéis, as formas e as potências.”39
mundo do eterno retorno é um mundo em inten- Nas relações de produção da diferença, lem-
sidade, um mundo de diferenças, que não supõe bra Deleuze, encontra-se uma diferença de natureza
nem o Um, nem o Mesmo, mas que se constrói so- entre as formas extremas e as formas medianas; en-
bre o túmulo do Deus único como as ruínas do Eu tre a criação dos valores novos e o reconhecimento
idêntico. O eterno retorno, ele mesmo, é a única dos valores estabelecidos; entre atribuir-se valores
unidade deste mundo que não desfruta disso senão em curso e criar novos valores. Esta é a marca mes-
“retornando”, a única identidade de um mundo que ma do eterno retorno, a que constitui o seu funda-
não tem do “mesmo” senão pela repetição.”38 mento: “valores ‘novos’ são precisamente as formas
Na repetição, a vontade visa atingir a sua maior superiores de tudo o que é”.40
intensidade, mas no infinito – onde não há distinção Dentre os valores, há aqueles que não apare-
entre uma vez e uma infinidade de vezes –, a dimen- cem senão para se identificar com o reconhecimento
são mais radical da diferença corresponde à máxima da ordem e aqueles que se perpetuam, mesmo de-
potência dela mesma. Onde não há mais medida é pois de aparentemente assimilados pela sociedade.
quando a expressão da diferença se exerce com maior Esses valores, que transcendem o seu próprio tempo
radicalidade (1, 110, 1100, 11.000, 110.000, 1n). de criação e sempre mobilizam novas forças sociais,
Mas que diferença seria essa que sai do mesmo testemunham a profundidade criadora da vontade
e retorna em repetição? Deleuze nos assegura que o de potência. É esse caos que Nietzsche afirmava ser
eterno retorno não é uma repetição mecânica, não é não o contrário mas o próprio eterno retorno.
um ciclo, não supõe nenhum equilíbrio, nenhuma Dessa agitação caótica e elementar, o filósofo
unidade, nem o mesmo ou o igual. Não é a volta do acena com a transformação da vida e do pensamen-
Todo, do Mesmo, nem um retorno ao Mesmo, e to em novo horizonte histórico e político, contem-
não tem nada em comum com a harmonia física e as- plando o super-homem como poeta, os trabalhado-
tronômica contemplada pelos antigos. Ele recorda, res como soldados e o eterno retorno como a pró-
ainda, que Nietzsche, além de se opor à hipótese cí- pria vertigem da vida em poesia.
clica, faz uma crítica contundente à noção de Tudo,
39 Ibid., p. 28.
38 Ibid. 40 Ibid.

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CONCLUSÃO ral, tem direito a fundar um pensamento, assumir a


Vimos que Nietzsche apreende da filosofia de sua verdade e tornar-se sujeito de um caminho pró-
Schopenhauer elementos para a formulação de sua prio.
abordagem sobre a cultura moderna. A primeira li- Diante da rendição à mediocridade cultural e
ção é relativa à importância de o homem investigar política, Nietzsche compreende que o produto da
a si mesmo como condição necessária para atingir a coragem que institui o auto-exame, a crítica do pre-
compreensão crítica daquilo que se lhe impõe como sente e a independência do pensamento, ao invés de
história e como destino. representar o pessimismo de nada querer, significa o
A segunda diz respeito à consolidação dessa retorno de uma vontade recalcada pela cultura, que
atividade investigativa. Ela é indispensável para a re- não hesita em eternizar a vida e a alegria em suas má-
alização crítica da cultura, e pressupõe que o pensa- ximas potências.
mento não renuncie à diferença que opõe ao seu Para concluir, deixo o fragmento de Domeni-
tempo em nome de uma existência culturalmente co Losurdo, reunindo em breves palavras a imagem
autorizada. Pensar e viver devem ser faces de um que, do alto a baixo, o vôo da águia permitiu-nos
mesmo projeto criador auto-sustentado. vislumbrar.
A terceira lição recomenda a prudência neces- O filósofo (...) não só pensa em termos
sária na lida com a variante conservadora das insti- profundamente políticos, mas enfrenta ain-
tuições culturais, circunscritas aos interesses do Es- da o problema dos instrumentos necessári-
tado. Isto porque, nelas, a vida fica restrita aos ho- os para o alcance dos objetivos anunciados:
rizontes estabelecidos pelo padrão vigente e a edu- aspira explicitamente a um “novo partido da
cação, reduzida aos objetivos de uma sobrevivência vida”, que ele convida a “criar” através da
infecunda e subumana para o indivíduo. “grande política”, caracterizada pelo despre-
Este indivíduo, por mais que se lhe anuncie zo à mesquinharia chauvinista e provincial
da “pequena política” nacional liberal e pela
como propósito a igualdade de condições para to-
consciência que a contradição principal, a
dos, tem o direito de exercer a singularidade de seu qual atravessa em profundidade toda mani-
projeto contra a modelização cultural e política. Por festação cultural e em torno da qual quase
mais que lhe seja imposto o peso da carga dos valo- tudo gira e deve girar, é aquela entre o se-
res estabelecidos, tem o direito de buscar novos va- nhor e o escravo.41
lores para o homem e para a cultura. Por mais que
lhe seja cobrada a identificação com a ordem cultu- 41 LOSURDO, 1997, p. 71.

Referências Bibliográficas
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense,
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DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
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DIDIER, J. Dicionário da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Larousse do Brasil, 1969.
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LOSURDO, D. Nietzsche e la Critica della Modernità. Per una biografia politica. Roma: Manifesto Libri, 1997.
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NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
ROSSET, C. Lógica do Pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

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