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Componente curricular: Filosofia Data: _____/______/________

Docente: Harim Britto Turma:


Discente:

Nietzsche: filosofia “a golpes Os aforismos do filósofo tratam de diversos


temas, como religião, moral, artes, ciências etc.
de martelo” Seu conjunto revela uma crítica profunda e
Friedrich Nietzsche (1844-1900) nasceu em impiedosa à civilização ocidental. Crítica à
Rocken, uma localidade da Alemanha atual. Filho massificação, à visão de mundo burguesa, ao
de um culto pastor protestante, estudou grego, conservadorismo cristão (que ele chamava
latim, filologia e teologia. Aos 24 anos, tornou-se “moral de rebanho”) etc. Dessa crítica surgiu
professor titular de filologia na Universidade da também a questão do valor da existência
Basileia. Ainda jovem, começou a sentir os humana.
sintomas de uma doença que o levaria
progressivamente à deterioração física, a Influência de Schopenhauer
episódios de perda da consciência e a crises de Um dos filósofos que mais exerceu influência
loucura no final da vida. na filosofia de Nietzsche foi Arthur
Schopenhauer (1788-1860), também alemão.
Nietzsche sentiu-se profundamente atraído por
suas reflexões filosóficas depois da leitura de O
mundo como vontade e
representação.Schopenhauer foi um continuador
da reflexão kantiana e um crítico veemente dos
desdobramentos metafísicos que ela teve. Seus
ataques dirigiram-se especialmente a Hegel, a
quem definiu como “charlatão” e “acadêmico
mercenário”, por ter construído uma filosofia
que, em sua opinião, servia aos interesses do
Estado prussiano. Recordemos que, ao englobar
as situações históricas como desdobramentos do
espírito objetivo, Hegel acabava legitimando
todas as formas de governo e instituições,
mesmo as mais nefastas. Para Schopenhauer, a
história não é racionalidade e progresso, mas
sim um acaso cego e enganoso.
Ele também defendeu que tudo o que o
mundo inclui ou pode incluir é
Figura 1: Friedrich Nietzsche inevitavelmente dependente do sujeito e não
existe senão para o sujeito. O mundo é,
Diferentemente da maioria dos filósofos, portanto, representação. A representação do
Nietzsche escreveu boa parte de suas obras sob mundo seria, para Schopenhauer, como
a forma de aforismos. Aforismo é uma máxima, uma“ilusão”. Alcançar a essência das coisas seria
isto é, uma sentença curta que exprime um possível apenas por meio do insight intuitivo,
conceito, um conselho ou um ensinamento. uma espécie de iluminação. Nesse processo, a

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arte teria grande relevância, pois pela atividade Essa vontade insaciável – como força que
estética o sujeito se desprenderia de sua impulsiona todo indivíduo a afirmar sua existência
individualidade para fundir-se no objeto, em uma sem pensar nos demais – seria a origem das lutas
entrega pura e plena. entre os seres humanos; portanto, a origem de
Para Schopenhauer, a essência do mundo seria todas as dores e todos os sofrimentos aos quais as
a vontade (ou a vontade de viver). Entendida como pessoas estão condenadas. Assim, para
um princípio presente em todas as coisas da Schopenhauer, a felicidade não passaria da
natureza, a vontade seria uma pulsão ou um cessação momentânea dessas privações.
impulso cego, carente de fundamentos ou motivos.
No ser humano, essa vontade torna-se desejo Vontade de potência
consciente, o qual, se não satisfeito, provoca A visão pessimista que Schopenhauer tinha da
sofrimento. No entanto, o desejo satisfeito gera vida acabou decepcionando Nietzsche, pois este
tédio, na medida em que alcançamos e temos o entendia a felicidade verdadeira como um
que já não desejamos. Assim, a vida oscilaria sentimento pleno. Isso o levou a romper com o
do sofrimento ao tédio como um pêndulo. pensamento schopenhaueriano e o tornou um de
seus críticos mais contundentes. Apesar disso,

Figura 2: Propaganda da Mercedes Benz, uma representação do cérebro humano, figurando Apolo e
Dionísio. Traduzindo: Cérebro esquerdo: Eu sou o cérebro esquerdo. Sou um cientista. Um
matemático. Eu amo o familiar. Eu categorizo. Sou preciso. Linear. Analítico. Estratégico. Sou prático.
Sempre no controle. Um mestre das palavras e da linguagem. Realista. Calculo equações e brinco com
números. Sou ordem. Sou lógica. Eu sei exatamente quem sou. Cérebro direito: Eu sou o cérebro
direito. Sou criatividade. Um espírito livre. Sou paixão. Anseio. Sensualidade. Sou o som de risadas
estrondosas. Sou o gosto. A sensação de areia sob os pés descalços. Sou movimento. Cores vívidas.
Sou o impulso de pintar em uma tela em branco. Sou imaginação sem limites. Arte. Poesia. Eu
percebo. Eu sinto. Eu sou tudo o que eu queria ser.

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algumas de suas concepções guardariam certas seiva criadora da filosofia, contida na dimensão
semelhanças com as de Schopenhauer. Um dionisíaca. Para o filósofo, o mundo seria o reino
exemplo é o conceito de vontade de potência, com das misturas, das turbulências, das complexidades,
o qual Nietzsche passa a explicar o mundo e a razão pela qual se opôs às cisões separadoras
vida. Em sua obra Assim falou Zaratustra, a vontade entre alto e baixo, superior e inferior, ideal e real,
de potência é identificada com: [...] sensível e inteligível, como ocorreu a partir do
vontade orgânica; ela é própria não unicamente período clássico do pensamento grego antigo.
do homem, mas de todo ser vivo; mais ainda:
exerce-se nos órgãos, tecidos e células, nos Genealogia da moral
numerosos seres vivos microscópicos que Posteriormente, Nietzsche desenvolveu uma
constituem o organismo. Atuando em cada crítica intensa dos valores morais, propondo uma
elemento, encontra empecilhos nos que o nova abordagem: a genealogia da moral, isto é, o
rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se estudo da formação histórica dos valores morais.
opõem e colocá-los a seu serviço. Manifestando- Sua conclusão foi de que o bem e o mal não
se ao deparar resistências, desencadeia uma luta constituem noções absolutas, no entendimento de
que não tem pausa ou fim possíveis. que as concepções morais são elaboradas pelos
seres humanos a partir dos interesses humanos.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. Ou seja, são produtos histórico-culturais.
São Paulo: Moderna, 1993. p. 62. Apesar de sua origem humana, essas
Termo ambíguo, dadas as características concepções são impostas pelas religiões (o
assistemáticas da escritura nietzschiana, a vontade judaísmo e o cristianismo) como se fossem
de potência deu margem a distintas produtos da “vontade de Deus”, portanto, valores
interpretações. Muitos reduziram a vontade de absolutos. Esses valores carregaram as pessoas
potência a uma tese biológica que tentava com as noções e os sentimentos de dever, culpa,
justificar o espírito de competição dos seres dívida e pecado. O resultado foi a configuração de
humanos e seu apetite por poder, tendo inclusive indivíduos medíocres, tímidos, insossos, não
sido utilizada pelo nazismo na defesa de suas criativos, depauperados e submissos.
pretensões dominadoras. Por isso, Nietzsche denunciou a existência de
Hoje em dia, porém, predomina a interpretação uma “moral de rebanho” na civilização cristã e
de que a vontade de potência refere-se não apenas burguesa, pois essa moral estaria baseada na
a um conjunto de pulsões competitivas, sem outra submissão irrefletida e acomodada de grande
finalidade que não seja a própria vida, mas parte das pessoas aos valores dominantes.
também a um impulso de afirmação da vida na O que é tacitamente aceito por nós; o que
direção de uma transcendência criadora, que recebemos e praticamos sem atritos internos e
conduziria a uma plenitude existencial. externos, sem ter sido por nós conquistado, mas
recebido de fora para dentro, é como algo que
Apolíneo e dionisíaco nos foi dado; são dados que incorporamos à
Em sua obra, Nietzsche também criticou a rotina, reverenciamos passivamente e se tornam
tradição da filosofia ocidental com base em peias [amarras que prendem os pés] ao
Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição desenvolvimento pessoal e coletivo. Ora, para que
criadora da filosofia anterior, pré-socrática. Nessa certos princípios, como a justiça e a bondade,
análise, o filósofo alemão estabelece a distinção possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam
entre dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco, como algo que obtivemos ativamente a partir da
segundo os deuses gregos Apolo (deus da razão, superação dos dados. [...] Para essa conquista das
da clareza, da ordem) e Dionísio (deus da aventura, mais lídimas [autênticas] virtualidades do ser é
da música, da fantasia, da desordem), que Nietzsche ensina a combater a
respectivamente. complacência, a mornidão das posições
Para Nietzsche, esses dois princípios ou essas adquiridas, que o comodismo intitula moral, ou
duas dimensões complementares da realidade (o outra coisa bem soante. [...].
apolíneo e o dionisíaco) foram separados na Grécia
socrática, que, optando pelo culto à razão, secou a

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CANDIDO, Antonio. O portador. In: Nietzsche: obras do progresso tecnológico ficaram concentrados em
incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 411. (Os poucas mãos. As desigualdades sociais vêm
Pensadores).
aumentando no mundo globalizado.
Portanto, para o filósofo, se cada pessoa Nesse cenário, surgiu no campo filosófico uma
compreender que os valores presentes em sua vida mentalidade menos arrogante quanto aos
são construções humanas, estará no dever de resultados da racionalidade científica. Percebeu-se
refletir sobre suas concepções morais e questionar que, destituídas de valores éticos, a ciência e a
o valor de seus valores, enfrentando o desafio de tecnologia nem sempre contribuem para a
viver por sua própria conta e risco. dignidade humana. Em certos casos, prestam
serviço à tirania e à barbárie.
Niilismo Vamos estudar, a seguir, as principais correntes
Segundo a análise de Nietzsche, no momento e pensadores que marcaram a atividade filosófica
em que o cristianismo deixou de ser a “única mais recente, incluindo o existencialismo, a Escola
verdade” para se tornar uma das interpretações de Frankfurt e as filosofias pós-modernas.
possíveis do mundo (o que se deu a partir da
Idade Moderna), toda a civilização ocidental e seus Existencialismo: a aventura e o
valores absolutos também foram postos em xeque. drama de existir
Nesse contexto, ocorreu uma escalada do niilismo. O termo “existencialismo” designa o conjunto de
De acordo com o filósofo, o niilismo moderno tendências filosóficas que, embora divergentes em
assenta-se, em grande parte, na ideia da morte de vários aspectos, têm na existência humana o ponto
Deus. Em sua obra A Gaia ciência, o filósofo de partida e o objeto fundamental de suas
decreta:“Deus está morto”. No entanto, esclarece reflexões. Por isso, podemos designá-las também
que quem o matou fomos nós mesmos, ou seja, como filosofias da existência, no plural.
trata-se de um acontecimento histórico-cultural, no
qual destruímos os fundamentos transcendentais
(assentados na ideia de Deus) dos valores mais
caros de nossa vida.
[...] Por essa ótica, niilismo seria o sentimento
coletivo de que nossos sistemas tradicionais de
valoração, tanto no plano do conhecimento
quanto no ético-religioso, ou sociopolítico,
ficaram sem consistência e já não podem mais
atuar como instâncias doadoras de sentido e
fundamento para o conhecimento e a ação.

GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha,


2000. p. 65.
Figura 3: Sol da manhã, de Edward
Para combater o niilismo, Nietzsche defendeu Hopper, 1952. Óleo sobre tela, 45,7 cm # 34,7
valores afirmativos da vida, capazes de expandir as cm. O que a pessoa representada na tela
energias latentes em nós. “Ouse conquistar a si poderia estar pensando ou sentindo nesse
mesmo” talvez seja a grande indicação instante existencial?
nietzschiana àqueles que buscam viver de forma
afirmativa, sem conformismo, resignação ou As filosofias da existência propriamente ditas
submissão. surgiram no século XX, mas sofreram grande
influência do pensamento de alguns filósofos do
SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS período anterior, como Arthur Schopenhauer, Sören
Kierkegaard e Friedrich Nietzsche; por isso são
Vimos que o século XX alcançou significativo considerados pré-existencialistas. Entre os
avanço tecnocientífico que, no entanto, foi principais filósofos comumente qualificados como
acompanhado de um desenvolvimento existencialistas, destacam-se Martin Heidegger e
desordenado, causando, por exemplo, enormes
problemas ambientais. Além disso, os benefícios

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Jean-Paul Sartre (que veremos adiante), Simone de Husserl renovou a reflexão sobre o
Beauvoir (1908-1986) e Karl Jaspers (1883-1969). conhecimento, especialmente sobre a relação
entre o sujeito e o objeto. Para esse filósofo, era
Problema de existir preciso purificar essa relação para recuperar, em
No entanto, o que é existir? Existir implica a um extremo, a realidade das coisas (que haviam
relação do ser humano consigo mesmo, com ficado demasiadamente condicionadas ao sujeito)
outros seres humanos, com os objetos culturais e e, no outro extremo, “descoisificar” a consciência.
com a natureza. São relações múltiplas, concretas
e dinâmicas. Algumas dessas relações são
determinadas (como aquelas que resultam de leis
da física) e indeterminadas (como aquelas que
resultam de nossa liberdade ou do acaso, sendo
passíveis ou não de acontecer). Sobre esses temas,
os filósofos existencialistas elaboraram diversas
interpretações, cujo denominador comum é certa
visão dramática da condição humana. O filósofo e
escritor francês Albert Camus (1913-1960) ilustrava
bem essa interpretação quando dizia que a única
questão filosófica séria é o suicídio.
Vejamos algumas concepções características do
existencialismo:
• Ser humano – é entendido como uma
realidade imperfeita, aberta e inacabada, que foi Figura 4: Para Husserl, a consciência
“lançada” ao mundo e vive sob riscos e ameaças. é um fluxo, sempre em movimento.
• Liberdade humana – não é plena, pois está
condicionada às circunstâncias históricas da Isso significa que a consciência não é, para
existência. Nesse sentido, querer não se identifica Husserl, uma realidade essencial ou substancial; é
com poder. Homens e mulheres agem no mundo apenas um movimento, realizado na direção das
superando ou não os obstáculos que se lhes coisas, dos objetos, pois toda consciência é
apresentam. sempre uma consciência de algo.
• Vida humana – não é um caminho seguro em O filósofo trouxe também outra novidade, pois
direção ao progresso, ao êxito e ao crescimento. observou que, nesse movimento, a consciência
Ao contrário, é marcada por situações de manifesta sempre uma intencionalidade, ou seja,
sofrimento, como doença, dor, injustiças, luta pela um modo específico de visar as coisas. Em outras
sobrevivência, fracassos, velhice e morte. Assim, palavras, as coisas são sempre abordadas em
não podemos ignorar o sofrimento humano, a razão de alguma intenção do sujeito.
angústia interior, a exploração social. É preciso Nascia assim a fenomenologia – por definição, a
considerar esses aspectos adversos da vida e ciência dos fenômenos –, a qual se constituiria em
encará-los. um dos principais métodos de investigação
contemporâneos. O que seriam os fenômenos? A
Influência da fenomenologia palavra“fenômeno”vem do grego phaenomenon,
que significa “coisa que aparece”. Portanto, o
Uma doutrina que teve impacto importante na
método fenomenológico consiste basicamente na
conformação das filosofias existencialistas foi a
observação e descrição rigorosa do fenômeno, isto
fenomenologia. Formulada pelo filósofo alemão
é, daquilo que aparece ou se oferece aos sentidos
Edmund Husserl (1859-1938) no início do século
ou à consciência.
XX, ela surgiu primeiramente na atmosfera
Nessa metodologia, busca-se analisar como se
rarefeita da matemática. Depois se expandiu para
forma, para nós, o campo de nossa experiência,
a psicologia e a filosofia e acabou desembocando
sem que o sujeito ofereça resistência ao objeto
nas preocupações humanistas dos filósofos
estudado nem se desvie dele. O sujeito deve
existencialistas, entre outras correntes do
orientar-se para e pelo fenômeno. Desse modo, a
pensamento contemporâneo que a utilizaram.
fenomenologia apresenta-se como a investigação

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das experiências conscientes (os fenômenos), que preocupava não era a existência do ser humano, e
são, por sua vez, o mundo da vida (Lebenswelt, em sim a questão do ser em seu conjunto e enquanto
alemão), na terminologia husserliana. tal (ou seja, a questão do ser em geral e não
Conforme analisou o filósofo fenomenologista apenas do ser humano).
francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961),
Husserl tentou a reabilitação ontológica do
sensível. Isso significou, na história da filosofia,
uma volta às próprias coisas, das quais o sujeito
tinha se afastado, o que inspirou grandemente as
filosofias existencialistas.

Heidegger: a volta à questão do ser


A influência da fenomenologia pode ser
observada, por exemplo, no pensamento de um
discípulo de Husserl, o filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976), um dos principais
pensadores do existencialismo, embora ele
negasse ser um existencialista. O filósofo estudou
na Universidade de Freiburg, onde Husserl era
professor. Com a ascensão de Hitler ao poder, em
Figura 5: Caminhante sobre o
1933, afastou-se de seu antigo mestre e amigo,
mar de névoa é uma pintura a
que era judeu. Posteriormente, talvez por tomar
óleo de 1818 do artista alemão
consciência das atrocidades nazistas, isolou-se em Caspar David Friedrich.
sua casa nas montanhas, mantendo poucos
contatos até sua morte.
Rompendo com a tendência dominante da Sentido do ser
filosofia moderna, que desde Descartes estava
Um dos objetivos básicos de sua obra
voltada para a teoria do conhecimento, Heidegger
fundamental, Ser e tempo, é investigar o sentido
retomou a questão da ontologia: por que há algo e
do ser. Heidegger começou pela análise
não nada? Isso ocorreu porque ele defendia que o
fenomenológica do ser que nós mesmos somos.
problema central da filosofia é sobre o ser e a
Criando uma terminologia própria, e por vezes
existência de tudo. Em sua investigação, Heidegger
obscura, denominou o modo de ser do ser humano,
considerava que, ao longo da história da filosofia,
nossa existência, com a palavra Dasein, cujo
ocorreu uma confusão entre ente e ser. Para ele, o
sentido é “ser-aí”, “estar-aí”.
ente é a existência, a manifestação dos modos de
De acordo com o filósofo, há três etapas que
ser. O ser é a essência, aquilo que fundamenta e
caracterizam a vida humana, as quais, para a
ilumina a existência ou os modos de ser.
maioria dos indivíduos, culminam em uma
A partir dessa diferenciação, é possível
existência inautêntica. São elas:
estabelecer duas fases da filosofia heideggeriana.
• Fato da existência – o ser humano é “lançado”
A primeira caracteriza-se pela busca do
ao mundo, sem saber por quê. Ao despertar para a
conhecimento do ser por meio da análise do ente
consciência da vida, já está aí (Dasein), sem ter
humano, da existência humana. Na segunda, o ente
pedido para nascer.
sai do primeiro plano e o próprio ser torna-se a
• Desenvolvimento da existência – o ser humano
chave para a compreensão da existência.
estabelece relações com o mundo (ambiente
Heidegger começou investigando a existência
natural e social historicamente situado). Para
humana somente porque é dela que primeiramente
existir, projeta sua vida e procura agir no campo de
temos consciência. Contudo, objetou que, para
suas possibilidades.
aqueles que o consideravam um existencialista,
Move uma busca permanente para realizar
uma filosofia que colocasse apenas o ser humano
aquilo que ainda não é. Em outras palavras, existir
como centro de preocupação seria antes uma
é construir um projeto.
antropologia. Por isso dizia que a questão que o

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• Destruição do eu – tentando realizar seu nada, um “espaço aberto”, que não é um ser, mas a
projeto, o ser humano sofre a interferência de uma negação do ser em-si.
série de fatores adversos que o desviam de seu Isso não significa que a totalidade do ser
caminho existencial. humano – que inclui também seu corpo (seu ente
Trata-se do confronto do eu com os outros, no em-si) – seja nada. O nada sartriano refere-se
qual o indivíduo comum geralmente é derrotado. somente a essa característica típica, singular,
Seu eu é destruído, arruinado, dissolve-se na aquela que faz de nós um ente não estático, não
banalidade do cotidiano, nas preocupações da compacto, acessível às possibilidades de mudança.
massa humana. Em vez de se tornar si-mesmo, Condição humana e liberdade Se o ser humano
torna-se o que os outros são; assim, o eu é fosse somente um ser em-si (cheio, total, pleno,
absorvido no com-o-outro e para-o-outro. Na com uma essência definida), não poderia ter nem
concepção de Heidegger, o sentimento profundo consciência nem liberdade. Primeiro, porque a
que nos faz despertar da existência inautêntica é a consciência, é um espaço aberto a múltiplos
angústia, pois se trata de um estado afetivo que conteúdos e relações. Segundo, porque a liberdade
revela o quanto nos dissolvemos em atitudes representa a possibilidade de escolha. Por
impessoais, o quanto somos absorvidos pela intermédio de suas escolhas, o indivíduo constrói a
banalidade do cotidiano, o quanto anulamos nosso si mesmo e torna-se responsável pelo que faz.
eu para inseri-lo alienadamente no mundo do Assim, para Sartre, se o ser humano não
outro. Na angústia, sentimo-nos como um ser a expressasse esse “vazio de ser”, sua consciência já
caminho do nada, um ser-para-a-morte. estaria pronta, fechada. Nesse caso, não poderia
Na tentativa de sair desse estado, geralmente manifestar liberdade, pois estaria preso à realidade
buscamos meios para esquecer aquilo que o estática do ser pleno, do ser em-si.
causa. Fugimos. Essa é uma solução provisória, Mais uma consequência dessa característica
pois, conforme apontou o filósofo, somente quando específica do não-ser é que não existe uma
o indivíduo enfrenta seu sentimento e transcende o natureza humana para Sartre, pois falar em
mundo e a si mesmo – conferindo um sentido a “natureza” implica algo fixo e universal,
seu ser – é que consegue superar sua angústia. previamente determinado, válido para todo sempre.
O que existiria, em sua concepção, é uma condição
Sartre: o ser e o nada humana, isto é, “o conjunto de limites a priori que
O nome mais conhecido da corrente esboçam a sua [do indivíduo] situação fundamental
existencialista é o do filósofo e escritor francês no Universo”.
Jean-Paul Sartre (1905-1980), embora isso se Portanto, para Sartre, um dos valores
deva, em boa parte, às suas peças de teatro e fundamentais da condição humana é a liberdade. É
romances, dentre os quais se destacam: A náusea, o exercício da liberdade em situações concretas
O muro, A engrenagem, A idade da razão, Entre que move o ser humano, que gera a incerteza, que
quatro paredes. Conforme veremos, é significativa leva à produção de sentidos, que impulsiona a
a influência da fenomenologia de Husserl e da superação de certos limites e que confere sentido
filosofia de Heidegger em seu pensamento. a sua existência. É a liberdade humana, enfim, que
Em sua principal obra filosófica, O ser e o nada, leva todo indivíduo a ter de definir o que pretende
Sartre ataca duramente a teoria aristotélica da ser como pessoa, a avaliar o impacto de suas
potência. Aristóteles explicava as mudanças do ser escolhas e ser responsável por elas. Isso significa
pela passagem da potência ao ato. Para Sartre, que, de forma quase paradoxal, o ser humano está
porém, o ser é o que é. Trata-se, na linguagem condenado a ser livre, como afirmou Sartre.
sartriana, do ente em-si, que está fora e representa
a plenitude do ser, com toda a sua densidade. Existência e condição humana
Em oposição ao ente em-si, Sartre concebe a No século XX, o filósofo francês Jean-Paul
existência de uma dimensão especificamente Sartre (1905-1980) – um dos principais expoentes
humana denominada ente para-si, que é o não-ser do existencialismo (corrente filosófica que
ou nada, razão pela qual está voltado para fora. estudaremos no Capítulo 14) – abriu uma exceção
Assim, a característica tipicamente humana seria o à noção metafísica tradicional de que cada coisa
tem um ser, uma essência, e que desta resulta sua

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forma de existir. Ou seja, de acordo com essa Aquarela - Toquinho
concepção antiga, a natureza (ou essência) de um Numa folha qualquer
ser determina sua existência. Eu desenho um Sol amarelo De uma América a outra
Sartre dizia que, no caso humano, a existência E, com cinco ou seis retas Eu consigo passar num
É fácil fazer um castelo segundo
precede a essência. Isso significa que, para ele, o Giro um simples compasso
ser humano, quando nasce, não possui uma Corro o lápis em torno da E, num círculo, eu faço o
natureza pronta e imutável, ele é um nada. Só mão mundo
depois, à medida que vai existindo e se definindo, E me dou uma luva
é que passa a ser (ser algo). No início, há apenas E, se faço chover, com dois Um menino caminha
riscos E caminhando chega no
esse nada, que confere ao ser humano a liberdade Tenho um guarda-chuva muro
de escolha e a grande responsabilidade de E ali logo em frente
construir a si mesmo dentro das condições Se um pinguinho de tinta A esperar pela gente, o
encontradas desde seu nascimento. Cai num pedacinho azul do futuro está
No entanto, Sartre reconhecia que as pessoas papel
Num instante, imagino E o futuro é uma astronave
devem enfrentar as condições a priori (anteriores, Uma linda gaivota a voar no Que tentamos pilotar
já existentes) de sua existência, ou seja, sua céu Não tem tempo, nem
situação histórica, aproximando-se das piedade
concepções de Marx. Por exemplo: nascer escravo Vai voando, contornando Nem tem hora de chegar
não é o mesmo que nascer livre. Portanto, para A imensa curva norte-sul
Vou com ela viajando Sem pedir licença
Sartre, não é a natureza humana, mas sim a Havaí, Pequim ou Istambul Muda nossa vida
condição humana (a situação histórica de cada E depois, convida
indivíduo no mundo) que impõe limites à sua vida. Pinto um barco à vela A rir ou chorar
[...] é impossível achar em cada homem uma Branco navegando
essência universal que seria a natureza humana, É tanto céu e mar Nessa estrada, não nos cabe
Num beijo azul Conhecer ou ver o que virá
existe contudo uma universalidade humana de O fim dela, ninguém sabe
condição. [...] Por condição [entendemos] o Entre as nuvens vem Bem ao certo onde vai dar
conjunto de limites a priori [...]. As situações surgindo
históricas variam [...]. Mas o que não varia é a Um lindo avião rosa e grená Vamos todos
Tudo em volta colorindo Numa linda passarela
necessidade para ele de estar no mundo, de lutar, Com suas luzes a piscar De uma aquarela que, um
de viver com os outros e de ser mortal. dia, enfim
Basta imaginar, e ele está Descolorirá
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. partindo
São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 16. Sereno e lindo Numa folha qualquer
E, se a gente quiser Eu desenho um Sol amarelo
Ele vai pousar (que descolorirá)
E, com cinco ou seis retas
Numa folha qualquer É fácil fazer um castelo (que
Eu desenho um navio de descolorirá)
partida
Com alguns bons amigos Giro um simples compasso
Bebendo, de bem com a E, num círculo, eu faço o
vida mundo (que descolorirá)

Figura 6: Imagem gerada por IA


do Bing, com o promp de comando
"quero uma imagem em estilo
aquarela, com cenas ilustradas da
canção ‘Aquarela’, de Toquinho"

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