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PSICOLOGIA

Fernanda Egger Barbosa


Escola psicológica:
teoria psicanalítica
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„ Constatar claramente a contribuição da Escola Psicanalítica ao estudo


do comportamento humano.
„ Identificar o processo de construção desta escola da Psicologia e a
sua influência para o desvelar do inconsciente.
„ Relacionar os conceitos desenvolvidos pela Psicanálise no que se refere
à constituição do sujeito e ao seu desenvolvimento.

Introdução
Influenciado pelos avanços científicos e pelas tendências modernas
do campo filosófico, Sigmund Freud inaugurou a Clínica da Psicanálise,
tomando o conceito de que a subjetividade e, consequentemente, o
comportamento humano são regidos por outra lógica que não a da razão
cartesiana, mas, sim, por uma que Hegel descreveu como motivada pelo
desejo. Em seus estudos e pesquisas empíricas, Freud desvelou a instância
do Inconsciente (Ics) como sendo o lugar em que os pensamentos se
organizam. O Ics se torna, portanto, o objeto de investigação psicanalítica,
evoluindo e se desdobrando em muitas escolas que abordam as questões
psicológicas em relação ao sujeito e à dinâmica consciente-inconsciente.
A partir dessas concepções, é possível estudar a constituição do sujeito,
enquanto humano, as relações que ele estabelece com o ambiente e o
seu desenvolvimento, tornando-se, assim, uma das maiores escolas e
correntes teórico-metodológicas do campo da Psicologia.
Neste capítulo, você vai conhecer os fundamentos da Escola Psica-
nalítica e a sua contribuição para o comportamento humano, identificar
o processo de construção da Psicanálise e o desvelar do Ics e relacionar
os conceitos psicanalíticos que se referem à constituição do sujeito e aos
seus desenvolvimentos cognitivo e afetivo.
2 Escola psicológica: teoria psicanalítica

1 Escola Psicanalítica: contribuições para o


estudo do comportamento humano
Falar em Escola Psicanalítica exige o regresso a um cenário anterior ao seu
surgimento: o século XVII, que é tido como um período de transformação
profunda da história e do pensamento científico. Naquela época, revelações
epistemológicas e científicas geravam o afastamento da concepção aristotélica
e religiosa da era medieval, de modo a desconstruir o paradigma anterior. Entre
os pensadores dessa época, para a Psicologia, é importante destacar René
Descartes, que emerge no mundo filosófico defendendo a antropomorfização
da verdade, sob o axioma já conhecido: “Penso, logo existo, ou penso, portanto
sou”. Na antiguidade, o lugar da verdade era o das ideias divinas e não do
homem. Nessa época, a verdade humana era cópia da verdade ou um simula-
cro, uma cópia mal feita desta, e enquanto simulacro, deveria ser descartada
ou suprimida. Para Garcia-Roza (1993), Descartes era, ao mesmo tempo, um
revolucionário e um herdeiro do pensamento grego e medieval. Enquanto os
críticos do modo de estudar as ciências (Nicolau de Cusa, Giordano Bruno,
Galileu Galilei, entre outros) transportavam as ideias de um mundo fechado
ao universo infinito, Descartes se debruçava sobre o estudo da subjetividade.
Chalmers (1999) também chamou a atenção para as transformações científicas
daquele período com as pesquisas inovadoras de Galileu e Newton em oposição
à antiga concepção científica aristotélica, ou seja, a lógica incorporava cada vez
mais a experiência como fonte de conhecimento: os empiristas (indutivistas).
Apesar de os pensadores indutivistas também serem alvo das críticas de Chal-
mers (1999), no quesito da ingenuidade de se pensar a ciência como neutra em
relação ao objeto observável, podemos dizer que esses indutivistas, tal como
Freud, são os mais afeitos aos estudos da psique humana, pois é impossível,
para o homem, observar o que quer que seja sendo exclusivamente objetivo.
O campo filosófico, relacionado à investigação do conhecimento e da
subjetividade humana, começou a abrir o seu universo para o desenvolvimento
de diversas teorias críticas, como as de Kant (1724–1804), Hume (1711–1776)
e Hegel (1770–1831), que, segundo Garcia-Roza (1993), seguem esse percurso
cartesiano de afirmar a verdade da razão como sendo a maior característica do
comportamento humano. A partir dessa concepção cartesiana de subjetividade é
que vai se definindo e se consolidando o campo da Psicologia como ciência até
meados do século XIX e início do século XX, período em que surgem diversos
movimentos e escolas de pensamento que investigam e se debruçam sobre
os fatores psicológicos básicos (o pensamento, a inteligência, a linguagem, a
percepção, a motivação, etc.) e sobre o comportamento humano, tendo como
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ponto de partida o conhecimento e a subjetividade oriundos das correntes


filosóficas herdeiras da hegemonia platônica da Antiguidade Clássica.
No campo da Psicologia como ciência, Wilhelm Wundt é considerado
o precursor da Psicologia experimental junto com Ernst Heinrich Weber e
Gustav Theodor Fechner. Wundt criou seu laboratório no Instituto Expe-
rimental de Psicologia da Universidade de Leipzig em 1879, na Alemanha,
atraindo estudantes de várias partes do mundo. Para Araújo (2009, p. 211):
“A definição de Psicologia apresentada por Wundt pode ser assim resumida:
a Psicologia é uma ciência empírica cujo objeto de estudo é a experiência
interna ou imediata”. A partir da Escola de Wundt, várias outras escolas e
correntes de pensamento conformaram o campo da Psicologia. Ainda no
século XIX, nos Estados Unidos, egressos da Escola de Leipzig desdobraram
os ensinamentos de Wundt por intermédio do estruturalismo de Titchener
(1877–1927) e do funcionalismo de J. Dewey (1859–1952, Angel (1869–1949)
e H. A. Carr (1873–1954).
No século XX, as Escolas da Psicologia começaram a se definir de acordo
com os seus referenciais teóricos:

„ Psicologia Comportamental: Watson (1878–1958);


„ Psicologia da Gestalt com alguns dos seus precursores, como Werthei-
mer (1880–1943), Koffka (1886–1941) e Köhler (1887–1967);
„ Behaviorismo: Skinner (1904–1990);
„ Psicologia Cognitiva: Piaget (1896–1980);
„ Psicanálise: Freud (1856–1939).

Para saber mais sobre a origem da Psicologia como ciência e das Escolas de Psicologia,
leia o artigo “Principais escolas de pensamento em Psicologia”, de Joviane Aparecida
de Moura (2009) no site Psicologado.

Sigmund Freud era um médico austríaco que se dedicou às investigações


sobre o Eu balizado, não pela razão, mas pelo desejo, descobrindo, a partir disso,
o Ics. O início de seus trabalhos, para definir a técnica psicanalítica, ocorreu
pela influência do neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825–1893) sobre
a hipnose (FREUD, 1996a) como sendo uma forma de acessar os conteúdos
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obscuros que fugiam das decisões conscientes de uma pessoa. Não conseguindo
ver eficácia na hipnose em seu trabalho clínico, Freud começou a orientar
sua clínica por meio da associação livre de ideias, em conjunto com o que os
próprios pacientes lhe retornavam. No princípio, ele usava uma leve pressão
sobre a fronte dos pacientes, como se aquilo pudesse induzi-los a falar o que
lhes viesse à mente, porém, um deles sinalizou que aquele procedimento não era
necessário e que bastava que o psicanalista deixasse que ele falasse livremente.
E foi assim que Freud passou a sugerir que seus clientes falassem o que lhes
viesse à cabeça, sem censura, definindo-se, assim, o método psicanalítico
pela livre associação de ideias.
A Psicanálise, como técnica construída por Sigmund Freud (1856–1939), vai
na contramão do Eu único da razão e da verdade de Descartes, inaugurando,
nesse momento, a visão do Eu dividido, que obscurece a verdade. Freud,
porém, também não conseguiu se ver livre da forma platônica de construir
o conhecimento e da ciência (positivista). Garcia-Roza (1993, p. 20) fez essa
diferenciação da seguinte forma: “[...] a psicanálise produziu uma derrubada
da razão e da consciência do lugar sagrado em que se encontravam. Ao fazer
da consciência um mero efeito de superfície do Inconsciente, Freud operou
uma inversão do cartesianismo [...]”.
A Psicanálise freudiana muito contribuiu para a compreensão do funciona-
mento psíquico e para a apreensão do comportamento humano e o tratamento
do sofrimento, ou seja, a partir do Ics, o comportamento humano não pode
ser apenas explicado por aspectos psicológicos racionais. Instaura-se, a partir
daí, toda uma corrente que valoriza o afeto. Para Freud (1996b), o conflito
psíquico é resultante do embate de forças instintivas (inconscientes) e repres-
soras (oriundas do Ego e do Superego), sendo os sintomas as representações
simbólicas desse conflito. Ele desvelou a instância do Ics, revelando a ideia
de dissociação do Eu em sujeito consciente e inconsciente, e as pulsões que
movem o desejo do ser humano em pulsões de vida e de morte (FREUD,
1996a), as quais funcionam sob lógicas diferentes. Freud defendeu que, além
da livre associação, havia outro meio de acesso aos conteúdos inconscientes
expressos por lembranças: as reminiscências dos sonhos (FREUD, 1996c,
1996d). O médico chocou a comunidade científica ao defender a existência de
uma sexualidade infantil, denominando os traumas sofridos na infância pela
instância do Complexo de Édipo (FREUD, 1996e). Ele revelou, ainda, aspectos
subjetivos, como repressões, resistências e identificações como contribuintes
para a formação do caráter, da personalidade e do comportamento humano
e o fenômeno da transferência como o pivô para o tratamento psicanalítico
(FREUD, 1996e).
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Para Garcia-Roza (1993), foi a produção do conceito de Ics que resultou em


uma clivagem da subjetividade, apontando, de tal forma, para uma identificação
do sujeito sob duas realidades — um sujeito dividido —, pois, se a alma fosse
passiva de cognição, não haveria erro. Ressalta-se que o Ics freudiano não
é o lugar das trevas, da irracionalidade. A lógica do Ics é apenas distinta da
lógica da consciência e é o desejo (e não a razão) que a anima.

2 Inconsciente e processo de construção da


Psicanálise
Sigmund Freud era médico e nasceu em uma família judaica de origem aus-
tríaca. Sua descoberta e afirmação da lógica do Ics, movido pelo desejo,
inaugurou a própria técnica psicanalítica e se institucionalizou como Escola
de Psicanálise. A teoria foi se desenvolvendo conforme sua aplicação prática,
ou seja, de forma empírica. Ela perpassa o abandono de Freud da técnica da
hipnose, aprendida com o mestre Charcot, volta-se à livre associação, sugerida
por uma de suas pacientes, e apresenta esclarecimentos sobre a técnica na
troca de inúmeras correspondências com outros pesquisadores de sua época
(Breuer, Ferenczi, Fliess, entre outros). O marco de criação da Psicanálise é
o ano de 1896, com a definição do aparelho psíquico.
Para Mezan (2008), Freud estava ligado a Charcot pela vinculação da histeria
com o processo de hipnose e com Breuer pelo processo catártico e pela teoria
dos estados hipnoides (FREUD, 1996a). A evolução clínica da Psicanálise o
fez avançar, a ponto de acabar com a amizade com Breuer, como reconhece
o próprio Freud (1996f).
Segundo Baratto (2009) o Ics foi elaborado como um sistema de repre-
sentações, obedecendo às leis de deslocamento e condensação, e se constitui
como a verdadeira instância de produção de pensamentos, os quais podem
encontrar um meio de expressão na palavra (enquanto registro simbólico).
A Psicanálise teve um laborioso percurso histórico para sua formulação. O
intuito freudiano, no entender de Baratto (2009), era o de aliviar o sofrimento
dos pacientes expressos por meio de sintomas, tentando investigar o momento
exato em que se estabeleceu o trauma ligado a ele. Freud tentou utilizar as téc-
nicas de hipnose e catarse para descobrir a causa desencadeante dos sintomas.
Inicialmente foram abordados os sintomas que não podiam ser localizados em
lesões biológicas, como paralisias, tiques, cegueiras e comportamentos repeti-
tivos. Nesse percurso investigativo, Freud constatou a presença de uma força
poderosa que se opunha a tornar conscientes certos aspectos inconscientes,
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denominou-a como resistência. A prática clínica comprovou que as emoções


penosas tendiam a se manter vinculadas a uma lembrança. Fazendo uso da
livre associação, ele identificou o alívio de certas tensões psíquicas. Nessa
primeira parte da teoria freudiana, podemos dizer que, nos estudos clínicos
com pacientes histéricas, descobriu-se que elas sofriam de reminiscências das
situações que lhes foram traumáticas (principalmente na infância) e produ-
ziam sintomas. Para se verem livres dos sintomas, as pacientes precisavam
rememorar essas reminiscências por meio da fala.
Garcia-Roza (1993) aponta para o surgimento de uma primeira definição
de organização do aparelho psíquico no Projeto para uma Psicologia Científica
(FREUD, 1996i), em que, aquilo que se convencionou chamar de Ego tem
uma função repressora com a finalidade de inibir o investimento de energia
pulsional (instintiva) da imagem mnêmica de um objeto satisfatório, evitando,
assim, a alucinação. Essa força ainda está muito ligada às descargas elétricas
neuronais e vê expressa a oposição entre o Ego (Cs) e o recalcado (Ics).
Ao dar ênfase à lembrança em vez de a um acontecimento, Freud formulou
o conceito de fantasma, que está intimamente articulado à teoria do trauma, ou
seja, ele percebeu que nem sempre o trauma está veiculado a um acontecimento
real, mas, sim, à lembrança fantasmática que o paciente tem deste. Para Baratto
(2009), é na interpretação de sonhos que Freud (1996c, 1996d) afirma que a
estrutura do fantasma é comparável à estrutura do sonho, pois o fantasma e o
sonho constituem formas de realização de desejo inconscientes. Além disso,
os mecanismos de deslocamento e condensação são fundamentais no trabalho
do Ego na deformação do desejo (enquanto mecanismos de defesa), visando
a torná-lo irreconhecível para o sujeito.
No que tange aos mecanismos de defesa — elementos importantes na obra
freudiana —, podemos destacar que eles são, resumidamente, formas de o
sujeito consciente se proteger de algum conflito entre o Ego e o mundo externo
ou entre o Ego e os desejos inconscientes. Esses mecanismos geralmente são
úteis para o sujeito quando este precisa enfrentar algo considerado, pelo seu
Ego, como perigoso ou ameaçador. O sujeito acaba criando formas imaginárias
de se proteger dessa situação que, em geral, é reacionada (repetida) diante de
novas situações, as quais, por algum motivo, lembram a primeira ocorrência
que se caracterizou como traumática. Eles não se resumem, no entanto, ape-
nas aos fenômenos citados por Baratto (2009) e Maia (2009), com relação à
formação do conteúdo dos sonhos, mas a eles também. Os mecanismos de
defesa são definidos, abordados e trabalhados ao longo do desenvolvimento
da Psicanálise em textos como As neuropsicoses de defesa (FREUD, 1996b)
e Inibições, Sintomas e Angústias (FREUD, 1996g). Sobre os mecanismos
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de deslocamento e condensação, Maia (2009) afirma que, para Freud, os


sonhos não se reduzem a um conteúdo inconsciente, pois são, na verdade,
formações do Ego.
A partir das contribuições do editor inglês das obras de Freud, James
Strachey, em 1905, Freud já havia publicado dois dos seus trabalhos mais sig-
nificativos para o conhecimento a partir da descoberta do Ics e a compreensão
sobre a sexualidade humana: A interpretação dos sonhos e os Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade (EDINGTON, 2012). Nesse período, Freud
definiu diversos aspectos importantes que delineiam a Psicanálise além da
formulação do Ics: a associação livre de ideias e a interpretação dos sonhos
como forma de acessar seus conteúdos, a vida anímica sexual da criança e o
medo da castração (Complexo de Édipo), as resistências e as repressões da
realização da libido pelo sistema consciente e, por fim, a presença constante
da dualidade das pulsões (autopreservação e sexual).
Sobre o Complexo de Édipo, Moreira (2004) afirma que não se trata apenas
de um complexo nuclear das neuroses (uma das psicopatologias investigadas
por Freud na Psicanálise que inclui a histeria — fenômeno psíquico presente
em suas primeiras pacientes, cujo tratamento inaugura a própria teoria psica-
nalítica), mas de um ponto decisivo na sexualidade humana. O Complexo de
Édipo estrutura e organiza como o sujeito se posiciona em sua vida e como
esse sujeito vai diferenciar o Eu e o Outro, o mundo interno e o externo e
os sexos. “A resolução do Complexo de Édipo” (FREUD, 1996h) é um texto
fundamental para a definição dessa estrutura complexa que muito contribuiu
para a teoria psicanalítica e é tomada como referência por outras Escolas de
Psicanálise.
Testi (2012) afirma que, na busca pelas situações patogênicas que se es-
tabeleceram a partir das repressões da sexualidade e quando se originaram
os sintomas, no lugar das fantasias reprimidas, Freud (1996e) se aprofundou
na história do sujeito até a sua infância. Segundo essa autora, desde os Três
Ensaios, Freud (1996e) deixou claro sua posição acerca da sexualidade infantil,
mesmo que atendesse apenas adultos. Testi (2012) lembra que Freud supervi-
sionou a análise de Hans, feita pelos pais, e de sua própria filha — quem ele
observava os comportamentos infantis.
A partir de 1910, Freud fez uma clara distinção entre pulsões de autocon-
servação (conjunto de necessidades ligadas às funções corporais essenciais
à vida reguladas pelo princípio de realidade) e as pulsões sexuais (GARCIA-
-ROZA, 1993). Freud (1996i) defendia ter verificado que a satisfação dessas
necessidades é acompanhada de uma sensação de prazer. Esse prazer, no
entanto, dissocia-se do instinto, tomando como objeto não mais algo do mundo
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real, mas um fantasma do objeto, passando, portanto, a representar pulsões


sexuais, contrapondo-se com as de autoconservação. Em Freud (1996j), essa
oposição entre as pulsões é atenuada pela oposição libido do Ego (narcísica)
e libido objetal (libido investida sobre objetos externos).
É apenas no texto de 1914 que Freud vai definir mais claramente o Ego em
oposição ao Ics e a ruptura com Jung, por persistir com a ideia da sexualização
da libido (GARCIA-ROZA, 1993). Avançando em seus estudos sobre o embate
de forças inconscientes e conscientes, Freud formulou uma nova organização
psíquica, a qual alguns autores chamam de esquema topográfico do aparelho
psíquico. Dessa forma, Freud (1996k) distinguiu três instâncias mentais: o
Ics, o Pré-Cs e o Consciente (Cs). O trabalho da Psicanálise, nesse caso, seria
o de tornar conscientes os conteúdos inconscientes. Baratto (2009) afirma
que, no texto O Inconsciente, Freud (1996j) levanta a questão de como se dá
a transposição, isto é, a passagem das ideias do sistema Ics para o sistema Cs.
Essa questão é precisamente introduzida em função da concepção tópica de
que o aparelho psíquico é constituído por três sistemas: Ics, Pré-Cs e Cs. Os
estudiosos da Psicanálise chamam essa primeira configuração espacial do
psiquismo humano de Primeira Tópica Freudiana.
De acordo com Baratto (2009), Freud defendeu que o trabalho clínico
comprova que o recalque não é removido, nem os seus efeitos são anulados
pela sugestão (FREUD, 1996l). A autora lembra que os psicanalistas devem
estar advertidos que a revelação do Ics ao paciente em atendimento resulta, na
maioria dos casos, uma intervenção inócua e o fortalecimento das resistências.
A Psicanálise freudiana não visa a promover um alargamento da consciência,
Freud chamou esse método de ambição terapêutica, um sentimento perigoso
para o analista (selvagem). Freud também apontou, mas refutou a ideia da
possibilidade de que a passagem de ideias inconscientes para a consciência
se daria por um esforço de atenção. O Ics se torna Cs pela palavra, ou seja,
por meio das associações das representações inconscientes, uma vez que o
recalque recusa as representações. Foi por essa via que Lacan posteriormente
apontou a distinção de função de linguagem e estrutura de linguagem para
explicar o Ics (BARATTO, 2009).
Em relação ao recalque, para Garcia-Roza (1993), este vem do Ego e tem
como fonte as exigências éticas e culturais do indivíduo. Freud percebeu que
nem todos os sujeitos reagiam da mesma forma às exigências e experiências,
explicando que um determinado indivíduo pode erigir um grande ideal de vida
no qual mede o seu Ego e outro pode simplesmente não ter uma referência tão
alta, Freud entendeu, portanto, que para existir um recalque, é necessário que
exista, como condição, um ideal. No Narcisismo, o Ego real se desloca para o
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novo Ego ideal, dotado de perfeições, que não pode ser renunciado (perfeição
narcísica da infância). O homem então busca recuperá-lo pela forma de um
ideal do Ego. Temos aqui dois termos importantes para a dinâmica psíquica:
o Ego ideal (objetiva a repressão) e o ideal de Ego (objetiva a idealização).
Em Luto e Melancolia, Freud (1996j) abordou mais precisamente o Narci-
sismo e a identificação imaginária com o objeto, caracterizando como a libido
no processo de luto deve passar pelo teste de realidade e pelo confronto com
a perda do objeto, esvaziando-se dos laços afetivos outrora ligados a ela. Um
processo similar, mas fundamentalmente diferente, ocorre na Melancolia,
processo no qual o paciente identifica a fantasia do objeto com o Ego e passa
a investi-lo por essa identificação.
Ainda em Garcia-Roza (1993), notamos que, no texto “Além do Princípio
do Prazer”, (FREUD, 1996m) declarou que há grande parte do Ics no Ego, ou
seja, além de uma parte do Ego estar ligada à consciência, existe outra que é
inconsciente, mas é apenas em O Ego e o Id, de Freud (1996h), que é assinalada
a emergência de um novo sistema que ficou conhecido como Segunda Tópica
Freudiana: Ego, Id e Superego. A nova tríade, no entanto, não vem substituir
a anterior, pois: “[…] enquanto a primeira tópica voltava sua atenção para a
economia libidinal, a segunda está voltada para o confronto da libido com o que
lhe é externo: a exigência de renúncia imposta pela cultura” (GARCIA-ROZA,
1993, p. 206). Em outras palavras, o que recalca a libido são as regras de uma
sociedade. Só podemos falar em ideal do Ego quando se introduz o outro.

Podemos afirmar que as máximas freudianas dessa segunda tópica nos dizem que
não devemos confundir Ics com Cs, mas que algo no Ego também é inconsciente.
Tudo que é recalcado é inconsciente. O Ego pertence tanto ao Cs, como ao Pré-Cs e
ao Ics. Por sua vez, o Id é a parte inacessível do nosso psiquismo e tem características
opostas ao Ego, pois está aberto a influências somáticas e abriga os representantes
pulsionais que buscam satisfação (GARCIA-ROZA, 1993).

Garcia-Roza (1993) destaca também que Freud admitiu que o Ego é aquela
parte do Id que se modificou pela proximidade e influência do mundo externo
(FREUD, 1996n), confrontando o princípio do prazer e da realidade. Mas e o
Superego? Ainda de acordo com o autor, não é apenas contra o Id que o Ego
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se confronta, pois uma parte dele se diferencia e se constitui como instância


autônoma, produzindo, no psiquismo, o Superego, que tem a função de agente
crítico. Este é herdeiro do Complexo de Édipo e construído com uma função
tríplice: auto-observação, consciência moral e ideal de Ego. As crises para
o sujeito são explicadas pela economia e dinâmica psíquica em relação às
negociações do Ego com as exigências pulsionais do Id, das idealizações e
repressões do Superego e da realidade. Uma frase criou polêmica no final da
XXXI Conferência (FREUD, 1996n): Wo es war, sol ich werden. Ela pode ser
entendida de várias formas, mas principalmente como: onde Isto (Id) estava,
então Eu devo ser (estar) — análise mais aprofunda realizada posteriormente
por Jacques Lacan (GARCIA-ROZA, 1993). Você pode visualizar melhor a
diferença das definições da primeira e da segunda tópicas freudianas pela
representação do aparelho psíquico por meio de alguns esboços esquemati-
zados na Figura 1.

Inconsciente Pré-consciente

Consciente

Figura 1. Esquemas visuais do aparelho psíquico: primeira tópica freudiana.

No artigo “A dissecção da personalidade psíquica”, das Conferências


Introdutórias, de Freud (1996n), procura-se mostrar, esquematicamente, as
relações estabelecidas entre o Ego, o Id e o Superego (Figura 2).

Figura 2. Esquemas visuais do aparelho psíquico: segunda tópica freudiana.


Fonte: Freud (1996n, p. 53).
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Encontramos uma analogia sobre o aparelho psíquico que conforma a


personalidade humana e um iceberg flutuante, conforme vimos em Feldman
(2015), lembrando que o conceito é abstrato, ou seja, ele não se encontra no
plano físico (Figura 3).

Figura 3. Adaptação do esquema de Feldman.


Fonte: Feldman (2015, p. 386).

Complementarmente às questões do Ics são desenvolvidas, por diversos pre-


cursores de Freud, algumas conceituações acerca do Narcisismo, da dissociação
do Ego, das fases erógenas infantis, do fortalecimento do Ego, da educação,
entre outras características de comportamento e desenvolvimento humano.
Podemos destacar aqueles que se mantiveram atrelados à Escola Freudiana:
Karl Abraham (estudos dos estágios pré-genitais do desenvolvimento e sobre
o Narcisismo), Sandor Ferenczi (fundamentos da teoria das relações objetais
e a teoria do trauma da sedução real infantil), Wilhelm Reich (crítica de que
uma análise deve ir além da remoção dos sintomas, visando a mudanças
na armadura resistencial), Anna Freud (enalteceu e aprofundou as funções
do Ego e foi pioneira da Psicanálise com crianças) e Bion. Além de outras
escolas oriundas da Psicanálise freudiana, como a kleiniana, winnicotiana,
do Ego, do self e a Escola Lacaniana, entre outras, destacaremos algumas
dessas escolas a seguir, considerando suas contribuições à subjetividade e ao
desenvolvimento humano.
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3 Constituição do sujeito e seu


desenvolvimento
Para destacarmos as especificações das fases de desenvolvimento infantil em
Freud, vale ressaltar que desde o início de seus trabalhos, no Projeto (FREUD,
1996i), ele analisa o vínculo mãe-bebê com uma experiência de satisfação
erógena. A experiência de satisfação vai ser importante no processo dinâmico
psíquico de prazer-desprazer. Para Testi (2012), a experiência de satisfação
em Freud se caracteriza pelo encontro entre o bebê e a pessoa que permite
as descargas das tensões internas (geralmente a mãe), promovendo, assim,
o apaziguamento dessas tensões, que é reconhecida como uma vivência de
satisfação, produzindo a primeira sensação de prazer, além da saciação de
uma pura necessidade. Assim, para a autora, quando a mãe está cuidando do
filho, ela também está despertando no filho a pulsão sexual ou libido.
Garcia-Roza (1993) lembra a distinção freudiana entre Narcisismo primário
e secundário. O narcisismo é uma categoria criada por Freud para representar
um investimento libidinal no Ego. O narcisismo primário descreve um estado
precoce em que a criança investe toda a libido em si mesma (autoerotismo),
ao passo que o secundário descreve o retorno da libido ao Ego depois da
retirada dos investimentos objetais (libido do objeto). O narcisismo primário é
entendido aqui, enquanto realidade psíquica, como o mito primário do regresso
ao seio materno, sendo o autoerotismo uma fase anterior e preparatória ao
narcisismo. Uma das formas de lidar com o narcisismo infantil é o recalque
(função normalizante).
Freud defendia tanto o menino quanto a menina como sendo o primeiro
objeto original de amor da mãe, mas insistia na ideia de que o abandono da
mãe, como objeto de amor, é uma condição necessária para a entrada da menina
no Édipo (MOREIRA, 2004). Freud caracterizou as fases de desenvolvimento
infantil a partir das pulsões sexuais em quatro fazes: oral, anal, genital e fálica.
Para Testi (2012), a sexualidade infantil na teoria freudiana não se caracteriza
por uma fase cronológica de desenvolvimento, mas por fases de organização
psíquica frente ao objeto. Na constituição psíquica do sujeito, Freud classificou
duas etapas de organização pré-genital: a oral e a sádico-anal, pois estando a
satisfação a serviço da autopreservação, é natural que ocorra em referência
à nutrição. Situada entre a organização pré-genital e a organização sexual
adulta, é definida uma organização sexual infantil ou fálica (sob a primazia
do falo). O amadurecimento da criança pode levar à resolução (dissolução)
de seu Complexo de Édipo.
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Devemos destacar, ainda, algumas contribuições à constituição do sujeito e


ao seu desenvolvimento segundo outras Escolas de Psicanálise pós-freudiana.
Além de Anna Freud, que deu continuidade à Escola de seu pai, mas tomando
rumos próprios, Jung, que fundou sua própria terapia, Abraham, Bion, entre
outros, podemos também destacar as contribuições de Melaine Klein. Se-
gundo Ribeiro e Caropreso (2018), entre 1920 e 1945, a Psicanálise infantil
se restringia ao circuito europeu, tendo Anna Freud, Melaine Klein, Margaret
Mahler, Donald Winnicott, Spitz, Ferencsi e Abraham como seus principais
contribuidores. Com os determinantes da Segunda Guerra, alguns desses
psicanalistas precisaram se mudar para os Estados Unidos.
Melaine Klein teve seu ponto de partida se baseando em alguns conceitos
de Freud, como fantasia, mundo interno, Complexo de Édipo, etc., mas ela
também elaborou outros conceitos originais, como o de posição e Ego primitivo
(desde o nascimento) para mobilizar mecanismos de defesa arcaicos (disso-
ciações, identificação projetiva, identificação introjetiva, negação onipotente,
idealização e denegrimento) contra ansiedades primitivas advindas da inata
pulsão de morte, conservando o conceito freudiano do Complexo de Édipo,
mas identificando-o nos primórdios da vida da criança (NEVES, 2007).
Melaine Klein fundou a Escola dos Teóricos das Relações Objetais. Ela
investigava os estágios iniciais do desenvolvimento infantil, criando a técnica
do brincar como forma de expressão do Ics. Klein avaliou o primeiro trimestre
de vida do desenvolvimento infantil, identificando o medo do aniquilamento
(perpetrado pelo trauma do nascimento e pela identificação de objetos par-
ciais, como o seio materno) — uma ansiedade persecutória que engendra seus
primeiros mecanismos de defesa (posição esquizo-paranoide da criança). A
partir desse conceito, Melaine Klein descreveu o desenvolvimento psicológico
do indivíduo humano. O período caracterizado pela Escola kleiniana valorizou
os aspectos relacionados ao desenvolvimento emocional primitivo, as relações
objetais parciais, os mecanismos de defesa primitivos e, apesar da valorização
da transferência oriunda da teoria freudiana, começou-se a ganhar visibilidade
o caráter contratransferencial do analista. Essa Escola se desenvolveu nos
trabalhos de vários autores, inclusive no Brasil, como Isaacs, Segal, Rosenfeld,
Meltzer, Bion e Aberastury (ABRÃO, 2008).
14 Escola psicológica: teoria psicanalítica

Outra importante escola advinda da Psicanálise foi a chamada Escola da Psicologia do


Ego. Nela, destaca-se o trabalho da psicanalista austríaca Margaret Mahler, que junto
com Anna Freud criou o primeiro centro de tratamento infantil em Viena. Fugindo
da perseguição dos judeus, ela se mudou para a Inglaterra e posteriormente para os
Estados Unidos. Em 1950, junto com Manuel Furer, fundou um instituto para tratamento
de crianças em Nova Iorque. Para Ribeiro e Caropreso (2018), usando seus argumentos
sobre a teoria da simbiose e separação-individuação já desenvolvidas, Mahler começou
a pesquisar sobre as patologias decorrentes de vivências não satisfatórias nas fases
iniciais do desenvolvimento infantil. Ela realizou estudos clínicos sobre as psicoses
normais e patológicas em crianças e desenvolveu um modelo de tratamento no qual
a mãe participava, enfatizando o papel do meio ambiente e a dualidade mãe-bebê.
Mahler e a Psicologia do Ego identificam, no desenvolvimento da criança, três fases:
uma fase autística (nas primeiras semanas de nascimento do bebê), uma fase simbiótica
(que vai até os cinco meses) e uma fase de separação-individuação.

Ribeiro e Caropreso (2018) resumem a fase da separação-individuação


como se iniciando entre os 4 e 5 meses de vida do bebê e indo até os 30 a 36
meses. Nas observações diárias no Master Children’s Center (MAHLER,
1971), descreveram-se certos comportamentos frequentes nos bebês, como o
uso de objetos inanimados relacionados à mãe, os quais funcionavam como
substitutos dela durante a sua ausência (objeto transicional). Além disso:

Outro fato observado é que houve significativa modificação cinestésica das


crianças normais quando em contato com o corpo humano e pouca alteração
quando manuseando objetos inanimados. Entretanto, nas crianças psicóticas,
o quadro inverso foi notado. Uma terceira observação foi a ocorrência, entre
irmãos, de diferentes reações diante de estranhos, mostrando que, apesar de
terem o mesmo objeto materno, a aquisição da expectativa confiante e da des-
confiança básica dependem da maneira com que foram cuidados (RIBEIRO;
CAROPRESO, 2018, p. 905).

Outra importante escola criada nos EUA foi a Psicologia do self. Ela foi
inaugurada por Heiz Kohut, médico austríaco que, assim como Mahler e outros,
fugiu do caos nazista. Kohut inicialmente se considerava um aprofundador
dos conceitos freudianos, porém, em Chicago, ele acabou se distanciando
desses conceitos de base dos egressos da Psicanálise tradicional. Para Kohut,
as concepções psicanalíticas tomavam posturas muito ortodoxas (as Escolas de
Escola psicológica: teoria psicanalítica 15

Anna Freud, Melaine Klein e a Psicologia do Ego). Ele afirmou que fenômenos
psicológicos só podem ser apreendidos por intermédio da introspecção e da
empatia. Por estudar as patologias narcísicas, sofreu críticas negativas contun-
dentes, apesar disso, seus ensinamentos se expandiram. Segundo Sarkis (2016),
os estudos de Kohut sobre as patologias narcísicas apresentadas em trabalhos
e publicadas em seus livros sofreram críticas negativas. Colegas e estudantes
se reuniam e o ajudaram a formar o Grupo de Estudos da Psicologia do self.
Heiz Kohut formulou o conceito de self-objeto que responde empaticamente
às necessidades psicológicas, ou seja, o indivíduo que vem a desempenhar
uma vivência aglutinada às funções que um bebê ainda não pode desempenhar
sozinho, devido a dispor apenas de um núcleo de self a ser desenvolvido, por
intermédio da vinculação com seu próprio self (SARKIS, 2016). De forma
mais clara, para o bebê, o adulto que cuida dele é parte de si mesmo. O self-
-objeto idealizado garante a segurança e o amparo e o sentimento de pertencer
a um contexto humano, mas se esse self-objeto falha, haverá a internalização
idealizada do self vinculado, surgindo, a partir daí, as patologias narcísicas
do self. Kohut defendia a existência de um self completo (não defeituoso) com
capacidades realizantes, criativas e produtivas em oposição ao self narcísico
(defeituoso). A cura do self narcísico se dá pelas vivências emocionais do
paciente na reativação e na análise de transferência, emoções inconscientes
revividas e elaboradas na consciência durante o processo analítico. Mais
tarde, Kohut modificou certos conceitos, como o do narcisismo, que passou
a ser conceituado como uma estrutura da mente, algo próprio das relações
humanas, tendo capacidade de transformações evolutivas. Ele criticava, por
meio do conceito de fúria narcísica, a agressividade destrutiva que é reativa
às ameaças de fragmentação do self. Além disso, Kohut diferenciava, fazendo
uso de metáforas, o homem culpado (relação do homem com suas pulsões) do
homem trágico (que busca um sentido existencial), ao apontar decisivamente
seu distanciamento da Psicanálise freudiana, afirmando que o homem sofre
pela ameaça de fragmentação do self.
A Escola de Donald Woods Winnicott (1896–1971) também se tornou
bastante importante, tendo em vista que o pediatra, psiquiatra infantil e psi-
canalista nascido na Grã-Bretanha atuou clinicamente e escreveu para revistas
destinadas ao público em geral. Nelas, ele discutia os problemas das crianças
e das suas famílias. Sua extensa obra foi dedicada à construção da teoria dos
processos maturacionais (um caminho a ser percorrido partindo da dependên-
cia absoluta e da dependência relativa à independência relativa) que, além de
constituir uma teoria da saúde, com descrição das tarefas impostas desde o
início da vida pelo próprio amadurecimento, configura também o horizonte
16 Escola psicológica: teoria psicanalítica

teórico necessário para a compreensão da natureza e a etiologia dos distúrbios


psíquicos. Winnicott exerceu a psiquiatria infantil com base na Psicanálise
modelada por ele mesmo em três pontos:

1. a teoria da sexualidade no entendimento das patologias maturacionais


e das práticas clínicas;
2. a valorização do fator ambiental;
3. a substituição do Complexo de Édipo pela resolução dos conflitos no colo
da mãe e nos ciclos que vão se ampliando conforme o amadurecimento.

A distinção de seu trabalho, metodologicamente, em relação a Freud e


outros, foi a decisão de estudar o bebê e sua mãe como uma unidade psíquica.
Isso lhe permitia observar a sucessão de mães e bebês e obter conhecimento
referente à constelação mãe-bebê, e não como dois seres puramente distintos.
Assim, não há como descrever um bebê sem falar de sua mãe, pois, no início,
o ambiente é a mãe (ambiente facilitador: mãe suficientemente boa), é apenas
gradualmente que ele vai se transformando em algo externo e separado do
bebê. Naffah Neto (2005) defende que, para Winnicott, muito antes de o bebê
constituir seu self unificado e coeso, ele define um jeito peculiar de estar no
mundo, aglutinando a herança biológica e a articulando com o seu ambiente.
Apesar de um início de self fragmentado (gesto espontâneo, criativo), há um
eixo central, um núcleo a partir do qual se desenvolverá rumo à maturidade,
produzindo experiência, o fator primordial para o desenvolvimento da análise
winnicottiana.
A psicopatia se caracteriza por um transtorno ou falha no ambiente. A
teoria de Winnicott se baseia no fato de que a psique não é uma estrutura
pré-existente, mas, sim, algo que vai se constituindo a partir da elaboração
imaginativa do corpo e de suas funções — o que constitui o binômio psique-
-soma. Essa elaboração se faz na possibilidade materna de exercer funções
primordiais, como o holding (permite a integração no tempo e no espaço), o
handling (possibilita o alojamento da psique no corpo) e a apresentação de
objetos (permite o contato com a realidade). O psique-soma inicial prossegue
ao longo de uma linha de desenvolvimento, desde que sua continuidade de
existência não seja perturbada. Para que isso ocorra, é necessário um ambiente
suficientemente bom, no qual as necessidades do bebê sejam satisfeitas. Um
ambiente mau é sentido como uma invasão a que o psicossoma (o bebê) precisa
reagir. Essa reação perturba a continuidade de existência do bebê. O adoeci-
mento, então, ocorre devido a perturbações na relação mãe-bebê, pois estas
provocam falhas no desenvolvimento do indivíduo. Tais perturbações criam
Escola psicológica: teoria psicanalítica 17

uma sensação de falta de fronteiras no corpo, ameaças de despersonalização,


angústias impensáveis, ameaças de desintegração e despedaçamento e de cair
para sempre e falta de coesão psicossomática.
A última Escola de Psicanálise que abordaremos aqui é a da Escola Francesa
inaugurada por Jacques Lacan. Lacan se tornou um autor polêmico, muito
discutido e admirado, de modo que seus seguidores o consideram um psica-
nalista brilhante, e o maior depois de Freud, enquanto seus críticos o acusam
de deturpar/desvirtuar a Psicanálise, afirmando que a teoria lacaniana é um
retrocesso à Psicanálise. Lacan debruça-se sobre a teoria freudiana para apoiar
suas diversas críticas à Psicologia do Ego e as escolas desenvolvidas nos EUA.
Segundo Garcia-Roza (1993), Lacan lê Freud e se propõe a analisar a
enigmática frase do final da XXXI Conferência: Wo es war, sol ich werden
(FREUD, 1996n). O autor considera que, para Freud, o sujeito não é o sujeito
da verdade, que o Eu desconhece os desejos do sujeito (deslocamento do sujeito
cartesiano já mencionado aqui). Então, “[…] dizem Freud e Lacan é que esse
sujeito, até então absoluto, é atropelado por outro sujeito que ele desconhece
e que lhe impõe uma fala que é vivida pelo sujeito consciente como estranha,
lacunar e sem sentido” (GARCIA-ROZA, 1993, p. 210). No discurso do sujeito
(na cadeia significante), o que é lacunar é o lugar do Outro para Lacan, e é nele
que o sujeito aparece. Lacan fazia distinção desse Outro (com O maiúsculo)
como sendo o lugar do Ics e da ordem simbólica, ao passo que o outro (com letra
minúscula) é o semelhante, ou seja, um outro sujeito. Para Lacan, é esse Outro
que agita (GARCIA-ROZA, 1993). O Outro é a própria ordem simbólica que é
constituída pela linguagem e composta de elementos significantes formadores
do Ics. Já o Ego é a imagem que o sujeito tem de si mesmo, manifestando-se
como defesa e por isso tem a função fundamental de desconhecimento. Em sua
origem, o Ego (moi) é anterior ao Eu ( je). O Eu, para Lacan, é o da realidade
falada, da comunicação, aquele que faz referência a um tu.
Lacan determinou a origem do Ego como anterior à linguagem. Ele formulou
a teoria do Estádio do Espelho como formador da função do Eu, designando
um momento da história do sujeito entre os 6 e 18 meses de vida, quando a
criança se torna capaz de formar sua unidade corporal por identificar a imagem
do outro (reflexo, espelho) (GARCIA-ROZA, 1993). O sujeito é produzido na
passagem do imaginário ao simbólico, ou seja, por meio da linguagem. Nesse
momento, Lacan concebeu a constituição e o desenvolvimento do sujeito a partir
de uma ordem tríplice: a ordem Simbólica, a ordem Imaginária, e a ordem do
Real. Essa última representa a realidade barrada, impossível de ser definida,
já que não é possível de ser definida por escapar da compreensão do sujeito.
18 Escola psicológica: teoria psicanalítica

São considerados discípulos de Lacan os psicanalistas Jaques Allain-Miller,


Fraçoise Dolto, Maud Mannoni, Moustapha Safouan, entre outros, que ajudaram
a disseminar no mundo a Escola Psicanalítica francesa.

Psiquismo Humano de Lacan


Segundo Laender (2010), Lacan fez a releitura do Complexo de Édipo freudiano que
havia sido relegado a um segundo plano pela Psicologia do Ego, demonstrando a
importância do nome do pai na estruturação do psiquismo humano como um fator
essencial da estruturação edipiana. Lacan traduziu o psiquismo humano e utilizou o
esquema L para ilustrar sua descoberta, no qual o eixo do imaginário (a----a') resulta
o triângulo a, a', A.

Fonte: Laender (2010, p. 40).

Podemos apontar uma questão para a reflexão: partindo do que conhecemos


até aqui quanto à revelação do Ics e a constituição do Eu, perpassando por
diversos conceitos que contribuem para o entendimento do campo da Psicologia
e para o desenvolvimento do ser humano, ao comparar a ideia e a dinâmica
da sexualidade infantil presente em todas essas linhas de pesquisa, podemos
afirmar que o ser humano sofre enquanto ainda retém conteúdos infantis na
forma de agir no mundo externo? Talvez aqueles que conseguem melhor se
adaptar às exigências do nosso ambiente interno e externo sejam sujeitos um
pouco mais amadurecidos e livres de suas energias libidinais infantilizadas.
Escola psicológica: teoria psicanalítica 19

Um dos mais famosos casos que Freud atendeu bem no início da construção da
Teoria Psicanalítica ficou conhecido como o caso Dora. Muitos dos conteúdos do
caso foram confiados em cartas a um amigo de Freud, o médico Wilhelm Fliess. Freud
começou a atender a moça, que chamou Dora, em outubro de 1900 e terminou em
31 de dezembro do mesmo ano. O médico só publicou o artigo sobre o caso em
1905 e o considerava um prato cheio para a confirmação de sua teoria, pois notou
a dificuldade de manter uma cronologia dos relatos da vida da paciente devido à
associação livre, às amnésias, que serviam para encobrir os conteúdos recalcados, à
cena edípica presente no relacionamento com seus pais (suspeita de infidelidade do
pai a quem nutria muito afeto), aos seus amplos conhecimentos dos assuntos sexuais,
apesar da sua juventude (18 anos), à utilização de sua doença (sintomas) para conseguir
coisas (ganho primário e secundário), ao papel dos sonhos e à sua interpretação. O
atendimento foi interrompido após a interpretação do segundo sonho, não sendo
um sucesso, do ponto de vista da cura, mas, sim, da confirmação de alguns conceitos
que ele defendia como condição da Psicanálise (FREUD, 1996e).

ABRÃO, J. L. F. Considerações históricas sobre a difusão do pensamento kleiniano


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Leitura recomendada
MOURA, J. A. Principais escolas de pensamento em psicologia. 2009. Disponível em: https://
psicologado.com.br/abordagens/introducao/principais-escolas-de-pensamento-em-
-psicologia. Acesso em: 20 ago. 2020.

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