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Nessa primeira parte do texto você verá: (1) quais foram os equívocos teóricos cometidos
pela psicologia geral na interpretação da segunda tópica e (2) qual deve ser a melhor
estratégia metodológica para o entendimento adequado dos conceitos de id, ego e
superego.
Pré-conceitos
Id, ego e superego são sem dúvida alguns dos conceitos psicanalíticos que mais se
popularizaram tanto no âmbito da psicologia geral quanto no senso comum, sobretudo
nos Estados Unidos. Essa constatação por si só já é suficiente para nos despertar certa
curiosidade, afinal a maior parte das descobertas da psicanálise, a exemplo da sexualidade
infantil, da etiologia sexual das neuroses e do pensamento inconsciente geralmente foi
recebida com um alto grau de resistência, principalmente entre os americanos.
As noções de id, ego e superego, no entanto, tiveram um destino diferente e foram
sossegadamente incorporadas ao vocabulário psicológico comum. Minha hipótese para
explicar essa peculiaridade é justamente o que me motivou a escrever este texto.
Penso que se essa tríade conceitual foi aceita com tão pouca resistência pela psicologia
geral isso se deve a uma má compreensão dos conceitos por parte dos não analistas e até
mesmo por certos psicanalistas.
Com efeito, influenciada pelas analogias e metáforas didáticas que Freud elaborou para
explicar como as três instâncias psíquicas interagiam, a psicologia geral acabou por
considerar tais conceitos como meros nomes psicanalíticos para três dimensões da
experiência humana milenarmente conhecidas e que não precisaram da psicanálise para
serem trazidas à luz, a saber: as paixões, a razão e a moral. Assim, o id seria o conceito
representativo das paixões, o ego o da razão e o superego o da moral. Você mesmo, leitor,
provavelmente já deve ter lido tais equivalências em algum livro de psicologia geral ou as
ouvido de algum professor que não era psicanalista.
Entretanto, asseguro-lhe que mesmo uma leitura superficial da obra “O Ego e o Id” (texto
em que Freud introduz as noções de id e superego e apresenta uma nova visão do ego) já
é suficiente para que se perceba que reduzir id, ego e superego a representantes das
paixões, da razão e da moral constitui-se em um grave equívoco teórico na medida em
que, agindo dessa forma, não se faz referência justamente aos aspectos mais cruciais de
cada conceito e que são justamente as novidades trazidas pela experiência da psicanálise.
Portanto, o que você lerá a seguir é uma tentativa de explicar em conjunto a tríade id, ego
e superego a partir dos fenômenos e experiências subjetivas que cada conceito pretende
descrever. Ao final, você será capaz de perceber que somente se nos detivéssemos aos
aspectos mais superficiais dos conceitos seria possível estabelecer uma analogia entre id e
paixões, ego e razão e superego e moral. Uma análise aprofundada nos leva
inevitavelmente a considerar tais noções como instrumentos teóricos para a compreensão
de realidades subjetivas singulares, que não necessariamente têm a ver diretamente com
paixões, razão e moral.
Fazendo a pergunta correta
Toda vez em que queremos entender com certo rigor algum conceito teórico, o
procedimento metodológico mais correto não é se perguntar pelo significado do conceito,
mas antes pelas razões que levaram o autor em questão a introduzi-lo. Em outras
palavras, a pergunta correta a ser feita perante um conceito é: “Por quê?” e não “O que
é?”. Frequentemente, ao adotarmos essa estratégia, deparamo-nos com os problemas e
impasses empíricos e/ou teóricos enfrentados pelo autor, os quais são justamente o que
motivou a produção de um novo conceito ou a reformulação de ideias anteriores.
Os conceitos de id, ego e superego não fogem a essa regra. Freud os elaborou para
resolver problemas. No caso dele, para dar conta de achados clínicos inusitados e
limitações verificadas nas noções teóricas que até então vinha utilizando. Nesse sentido,
para compreender de fato o essencial dessa tríade conceitual freudiana, é preciso que nos
façamos o seguinte questionamento: “Por que, afinal de contas, Freud precisou criar os
conceitos de id e superego e reformular a noção já existente de ego?”.
Nesta segunda parte, ainda não abordarei diretamente a tríade, pois, como eu também
disse anteriormente, é preciso compreender o que levou Freud a introduzir a segunda
tópica. E é justamente isso o que verá no texto abaixo. Em termos mais específicos, você
aprenderá:
(1) Que Freud, conquanto fosse um terapeuta, nunca deixou de formular hipóteses acerca
da organização do psiquismo;
(2) Que a chamada “primeira tópica” (Consciente, Pré-consciente, Inconsciente) foi uma
hipótese desse tipo;
(3) Que a clínica acabou revelando que a primeira tópica era insuficiente, principalmente
o termo “Inconsciente”.
Sabe-se que Freud, embora tenha inventado um método de tratamento das neuroses, a
psicanálise, jamais deixou de lado o seu desejo de ser um cientista. É por isso que desde o
início de sua obra encontramos não apenas descrições e análises de experiências da
clínica, mas também tentativas de sistematizar a estrutura e o funcionamento do
psiquismo.
“Sim, seria”: essa foi a resposta de Freud. Já que o conceito de inconsciente estava
perdendo a especificidade que tinha no início da psicanálise, melhor seria
abandoná-lo de vez.
Mas o que colocar em seu lugar? Se o conceito de inconsciente como uma região
psíquica já não fazia mais sentido, logo aquela primeira divisão da mente em
consciente, pré-consciente e inconsciente também iria para o ralo, certo?
Freud foi encontrar o princípio da resposta que daria a essa pergunta num
conceito extraído da obra do médico e psicanalista Georg Groddeck, acerca do
qual já falei algumas vezes aqui no site e cuja obra, aliás, foi meu objeto de estudo
no mestrado em Saúde Coletiva.
O que Groddeck queria, na verdade, era chamar a atenção para o fato de que
nenhum de nós se encontra isolado do contexto em que vive e carrega em si as
marcas de sua própria história. Em decorrência, todas as nossas escolhas são o
produto da nossa relação coma natureza (da qual somos apenas uma
modificação) bem como de nossa história. O conceito de “Es” servia para
Groddeck justamente para evidenciar o fato de que o que nós chamamos de que
nós não somos donos do nosso próprio nariz na medida em que nos encontra na
dependência de fatores que estão para além de nós mesmos e acerca dos quais na
maioria das vezes não temos consciência.
Ora, esse modo de entender a existência humana proposto por Groddeck era
bastante semelhante à conclusão que Freud havia chegado desde que inventara a
psicanálise e que sintetizou na famosa frase: “O eu não é senhor na própria casa.”.
No momento em que Freud proferiu essa frase, o que ele tinha em mente era a
força do inconsciente na determinação da conduta humana. Mas se a ideia de “o
inconsciente” já não fazia muito sentido, como continuar sustentando que o “eu
não é senhor na própria casa”?
O Id freudiano
O Id é justamente o conceito que Freud empregará para situar o lugar que essas
pulsões ocupam no aparelho psíquico. No Id se encontrariam tanto as pulsões
sexuais quanto as pulsões de morte (responsáveis pela agressividade que dirigimos
contra nós mesmos e contra os outros). As pulsões seriam os representantes no
psiquismo de necessidades provenientes do corpo e buscariam unicamente a
satisfação sem levar em conta as possibilidades reais de obtê-la e, muito menos,
se essa satisfação faria bem para o sujeito. A norma que regula o funcionamento
mental dentro do Id é o princípio do prazer, ou seja, no Id uma representação
mental se liga a outra não em função de uma relação lógica ou semântica, mas
sim devido ao fato de ambas estarem ligadas mutuamente a uma experiência de
satisfação ou de busca dela. Assim, no Id, a fórmula 1 + 1 não é necessariamente
igual a 2. Pode ser igual a 3 ou a 20 caso essa estranha equação favoreça a
conquista do prazer e da satisfação. Em outras palavras, não há razão no interior
do Id. A racionalidade é um modo de funcionamento mental a ser conquistado
pelo sujeito.
No próximo post veremos como essa conquista é levada a cabo. Conheceremos de
que modo o Id dá origem ao ego, esse filho ingrato que desde o nascimento já
entrará em conflito com seu genitor e, se possível, veremos ainda o surgimento do
terceiro e último elemento da segunda tópica, o famoso e feroz “superego”.
CONTINUA.
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A primeira tópica
A primeira tópica se mostrou bastante útil para Freud quando a psicanálise estava
direcionada primordialmente à compreensão das formações do inconsciente e da natureza
das representações mentais que causavam angústia e eram recalcadas. Todavia, quando o
foco da pesquisa psicanalítica começou a ser orientado para o ego – a instância do
psiquismo que, por não suportar a angústia gerada por determinadas representações
mentais, as mandava para o inconsciente – essa divisão do aparelho psíquico em
consciente, pré-consciente e inconsciente começou a se mostrar insuficiente. Vejamos por
que.
Até então, Freud achava que o ego estava totalmente situado no consciente e no pré-
consciente, afinal no inconsciente estariam apenas aquelas representações mentais que o
ego teria recalcado. Em outras palavras, naquele momento Freud considerava que o
conflito psíquico que levaria ao adoecimento psicológico seria travado entre um ego
consciente que não quer admitir determinados pensamentos e o conjunto inconsciente
desses pensamentos recalcados, ou seja, um conflito ego versus inconsciente.
No entanto, a experiência clínica foi mostrando a Freud que uma parte considerável do
ego também era inconsciente. Como Freud descobriu isso?
Ora, durante uma análise, o sinal clínico que evidencia que determinados pensamentos e
recordações estão no inconsciente, ou seja, de que foram recalcados, é a dificuldade do
paciente de se lembrar deles ou de falar sobre o assunto. Freud compreendia essa situação
considerando que haveria uma resistência do ego bloqueando o acesso das representações
mentais recalcadas e/ou de seus substitutos. O curioso, contudo, é que o próprio paciente
não teria consciência de que estava empregando essa resistência! Logo, a resistência não
seria um fenômeno consciente, embora fosse uma função do ego. Conclusão: o ego não é
totalmente consciente. Além disso, as resistências se comportariam de modo semelhante
às representações recalcadas, isto é, demandariam certa dose de trabalho para que fossem
tornadas conscientes.
Essa descoberta jogou por terra a hipótese de que o conflito psíquico se fundamentaria
numa oposição entre ego e inconsciente. No entanto, isso não significaria admitir que o
ego não fosse um dos polos do conflito psíquico. De fato, mesmo sendo inconsciente, a
resistência continuava a ser um fenômeno produzido pelo ego. O problema estava em
sustentar que o outro polo do conflito seria o inconsciente, afinal descobrira-se que uma
parte do ego também era inconsciente. E agora, o que fazer?